32
PODER JUDICIÁRIO Justiça Federal de Primeira Instância SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DE SERGIPE 1ª VARA FEDERAL Sentença Tipo “A” – Fundamentação Individualizada Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500 Classe 233 – Reintegração/manutenção de posse Autor: IMPERIAL CONSTRUÇÕES E EMPREENDIMENTOS LTDA. Réu: COMUNIDADE QUILOMBOLA PONTAL DA BARRA, representado pela Defensoria Pública da União Assistentes litisconsorciais INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO DE REFORMA AGRÁRIA INCRA e FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES FCP SENTENÇA 1. RELATÓRIO IMPERIAL CONSTRUÇÕES E EMPREENDIMENTOS LTDA ajuizou a presente ação de reintegração, com requerimento de medida liminar, em face da COMUNIDADE PONTAL DA BARRA, visando a reintegração da posse, com o desfazimento de construção ou plantação. Aduziu, em suma, que: 1) em 03.07.2007, adquiriu a propriedade e posse de duas faixas de terras situadas no Município de Barra dos Coqueiro, sendo: 1) uma sítio de coqueiro (terreno acrescido de marinha) no lugar antigamente denominado Porto Grande, Matrícula 1978; 2) Terreno de marinha à margem do Rio Japaratuba, Matrícula 1980; 2) mantinha a posse de ambos os imóveis sem sofrer qualquer esbulho ou turbação quando, no dia 14.05.2009, a ré invadiu o referido imóvel de maneira clandestina; 3) a invasão dos seus imóveis foi uma forma de protesto dos moradores contra as autoridades públicas que teriam feito promessas de construção de casas e até agora não teria cumprido; 4) a comunidade vem derrubando coqueiros da área. Requereu a medida liminar de reintegração de posse e, na eventualidade de não estarem presentes os requisitos, seja designada audiência de justuiificação. Com a inicial, juntou guia de arrecadação de custas (f. 15), procuração (f. 16) e demais documentos (f. 17/42) A demanda foi proposta perante o Juízo Estadual da Comarca de Barra dos Coqueiros.

SENTENÇA - artjur.files.wordpress.com · ajuizou a presente ação de reintegração, ... apresentou contestação (f. 516/547), aduzindo, em ... não pode reivindicar ou reintegração

Embed Size (px)

Citation preview

PODER JUDICIÁRIO

Justiça Federal de Primeira Instância SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DE SERGIPE

1ª VARA FEDERAL

Sentença Tipo “A” – Fundamentação Individualizada

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500 Classe 233 – Reintegração/manutenção de posse Autor: IMPERIAL CONSTRUÇÕES E EMPREENDIMENTOS

LTDA. Réu: COMUNIDADE QUILOMBOLA PONTAL DA BARRA,

representado pela Defensoria Pública da União Assistentes litisconsorciais

INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO DE REFORMA AGRÁRIA – INCRA e FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES – FCP

S E N T E N Ç A

1. RELATÓRIO

IMPERIAL CONSTRUÇÕES E EMPREENDIMENTOS LTDA

ajuizou a presente ação de reintegração, com requerimento de medida liminar, em face da COMUNIDADE PONTAL DA BARRA, visando a reintegração da posse, com o desfazimento de construção ou plantação.

Aduziu, em suma, que: 1) em 03.07.2007, adquiriu a propriedade e posse de duas faixas de terras situadas no Município de Barra dos Coqueiro, sendo: 1) uma sítio de coqueiro (terreno acrescido de marinha) no lugar antigamente denominado Porto Grande, Matrícula 1978; 2) Terreno de marinha à margem do Rio Japaratuba, Matrícula 1980; 2) mantinha a posse de ambos os imóveis sem sofrer qualquer esbulho ou turbação quando, no dia 14.05.2009, a ré invadiu o referido imóvel de maneira clandestina; 3) a invasão dos seus imóveis foi uma forma de protesto dos moradores contra as autoridades públicas que teriam feito promessas de construção de casas e até agora não teria cumprido; 4) a comunidade vem derrubando coqueiros da área.

Requereu a medida liminar de reintegração de posse e, na eventualidade de não estarem presentes os requisitos, seja designada audiência de justuiificação.

Com a inicial, juntou guia de arrecadação de custas (f. 15), procuração (f. 16) e demais documentos (f. 17/42)

A demanda foi proposta perante o Juízo Estadual da Comarca de Barra dos Coqueiros.

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

II

A Juíza Estadual designou audiência de justificação e deferiu medida cautelar inominada para que a Comunidade mantenha a ordem e preservação do local, sem depreciá-lo com a retirada de vegetação nativa ou construção (f. 44).

Na audiência de justificação (f. 57), após o INCRA e o MPF manifestarem interesse no feito, a Juíza Estadual declinou da competência em favor da Justiça Federal.

Após a remessa dos autos a Justiça Federal, a autora requereu a emenda da inicial (f. 81/92) para reafirmar a sua posse mansa e pacífica da área e que a circunstância de ter sido reconhecida como remanescente das comunidades dos quilombos não autoriza o direito de invadir terras particulares ou pública, ainda que pretendem obter a titulação sobre as referidas áreas. Ao final, requereu que fossem acostados os procedimentos que tramitam na Procuradoria da República em Sergipe e INCRA, bem assim o oficial de justiça fosse ao local verificar a situação do imóvel.

Na f. 96, determinei a inclusão da União e do INCRA no pólo passivo e designei audiência de justificação.

O MPF requereu a sua intervenção no feito na condição de custos constitucionis e custos legis (f. 112/144). Acostou documentos (f. 145/303).

A autora apresentou rol de testemunhas para audiência de justificação (f. 314/315).

Na audiência de justificação (f. 322/337), este Juízo excluiu a União do feito, determinou a juntada das fotos apresentadas pela autora (f. 339/354) e, após a oitiva das testemunhas (f. 330/332, 333/335 e 336/337), este Juízo deferiu a liminar para reintegrar a autora na posse da área.

A Comunidade Pontal da Barra, representada pela Defensoria Pública da União, apresentou contestação (f. 516/547), aduzindo, em suma, que: 1) o texto constitucional operou a afetação das terras ocupadas pelos quilombolas a uma finalidade pública, qual seja, assegurar o uso das terras, de acordo com os seus costumes e tradições, a fim de garantir a reprodução física, social, econômica e cultural dos grupos em questão; 2) em razão da afetação do texto constitucional, o proprietário particular não pode reivindicar ou reintegração na posse das terras em seu nome, cabendo tão-somente o direito de requerer uma reparação pecuniária; 3) para as comunidades quilombolas a terra possui um significado completamente diferente da cultura ocidental, pois “não se trata apenas da moradia, que pode ser trocada pelo indivíduo sem maiores traumas, mas sim do elo que mantém a união do grupo, e que permite a sua continuidade no tempo através de sucessivas gerações, possibilitando a preservação da cultura, dos valores do modo peculiar de vida da comunidade ética” (f. 531); 3) a Fundação Cultural Palmares expediu certidão de auto-reconhecimento em 20.03.2006, sendo que a aquisição do imóvel

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

III

ocorreu no ano de 2007; 4) embora a Comunidade tenha estabelecido a sua residência em área contígua a atualmente ocupada, sempre utilizou a área para fazer roças, colher frutas, construir cacimbas, extrair palhas dos coqueiros para construir e renovar suas moradas, além de utilizar a área como passagem que ligava ao antigo povoado de Porto Grande; 5) em razão das enchentes e vazantes do rio Japaratuba, das condições sanitárias inadequadas, surtos permanentes de doença, falta de energia elétrica, a comunidade se viu obrigada a deslocar suas residência para a poção de terra objeto da presente demanda; 4) a posse não deve ser protegida, haja vista que jamais usou, gozou ou usufruiu das terras reivindicadas, tendo as adquirido para fins especulativos.

Na f. 556/557, o MPF noticiou a interposição de agravo de instrumento (f. 558/616) contra a decisão que reintegrou a autora na posse da área.

A Relatora do AGTR n.º 102040/SE deferiu o efeito suspensivo ao recurso interposto pelo MPF (f. 619/621).

O INCRA apresentou contestação (f. 625/650). Narrou o procedimento para a regularização da comunidade quilombola, salientando que: 1) o reconhecimento como remanescente de comunidade quilombola ocorreu em 20.03.2006; 2) o procedimento é anterior a obtenção do terreno pela autora; 3) a autora não é proprietária, mas sim de uma ocupação que possui caráter precário, não gerando quaisquer direito sobre o terreno ou a indenização por benfeitorias. Defendeu a sua legitimidade para defender a posse das terras das comunidades quilombolas. Discorreu sobre o conceito e procedimento para reconhecimento das comunidades quilombolas. Defendeu que a autora não comprovou a sua posse e que a obteve para fins de especulação imobiliária.

Juntou documentos (f. 662/821)

Em sede de réplica (f. 827/832), sustentou que a pretensão da presente demanda se restringe a questão possessória, sendo estranho questões relacionada ao título de Comunidade Quilombola ou a procedimentos administrativos do INCRA objetivando a titulação da área. O direito de propriedade e de posse não pode simplesmente ser ignorado.

Determinada a intimação das partes para informarem as provas que pretendem produzir (f. 835), autora, a ré, o INCRA e o MPF requereram, respectivamente, a produção de prova testemunhal nas f. 839/841, 843/844, 849/850, 859/860.

Na f. 851/856, foi juntado o acórdão lavrado no AGTR 102040/SE, na qual deu provimento ao recurso para suspender a decisão que determinou a reintegração de posse.

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

IV

Em petição de f. 859/860, o MPF: 1) após juntar relatório de diligência (f. 861/866), alegou que a autora estava descumprindo a liminar deferida pelo TRF da 5ª Região; 2) requereu ainda que fosse juntado o relatório antropológico realizado pela equipe contratada pelo INCRA.

A Autora se manifestou na f. 869/871 acerca do descumprimento da medida liminar do TRF da 5ª Região.

O INCRA juntou o laudo antropológico (f. 875/1061).

Na f. 1064, determinei a realização de inspeção judicial e deferi a prova testemunhal requestada. Determinei que os patronos trouxessem suas testemunhas independente de intimação.

Auto de inspeção judicial na f. 1089, sendo que os trabalhos foram filmados e fotografados conforme CD/DVD (f. 1090).

A Fundação Cultural Palmares – FCP requereu a sua intervenção no feito na qualidade de litisconsorte passivo ambiental (f. 1092).

Na audiência realizada no dia 23.11.2010 (f. 1093/1096), após a oitiva das testemunhas presentes (f. 1097/1099, 1100/1102, 1103/1105), a autora insistiu na oitiva das testemunhas ausentes. O MPF se opôs a oitiva posterior, com exceção daquelas que não compareceram por motivo médico, devidamente comprovado. Este Juízo deferiu a oitiva das testemunhas ausentes, redesignando a audiência para outro dia. O MPF interpôs agravo retido. Foi mantida a decisão por seus próprios fundamentos, tendo o autor se manifestado acerca do agravo retido em audiência. A FCP requereu a juntada de fotos tiradas durante a inspeção (f. 1106).

Audiência realizada no dia 15.12.2010 1, em que foi ouvida uma testemunha, cujo depoimento foi gravado em DVD (f. 1166).

Na audiência ocorrida no dia 25.01.2011, pelo período da manhã (f. 1204/1205), foram tomados os depoimentos pessoais dos réus (f. 1206, 1207), depoimentos das testemunhas ausentes e arroladas pela parte autora (f. 1208, 1209, 1210, 1211). No período da tarde (f. 1212/1213), foram prestados os depoimentos das testemunhas arroladas pela ré (f. 1214, 1215, 1216, 1217), pelo INCRA (f. 1218, 1219). Todas as oitivas foram gravadas em DVD (f. 1220).

Depoimento colhido mediante precatória (f. 1142/1143).

As partes apresentaram memoriais na f. 1148/1183 (autora), 1187/1229 (réu), INCRA (f. 1232/1233), FCP (f. 1236), MPF (f. 1298/1340).

1 Apesar de no termo de audiência constar a data 15.10.2010, a audiência ocorreu no dia 15.12.2010, conforme designação na f. 1094.

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

V

Na f. 1241, o INCRA juntou documentos relativos ao Relatório Técnico de Identificação e Delimitação do Território – RTID (f. 1242/1297). Intimadas acerca da sua juntada, as partes e o MPF se manifestaram na f. 1344/1348 (autora), 1351 (réu), 1354 (FCP) e 1355 (MPF).

Os autos vieram conclusos em 18.08.2011.

É o relatório. Passo a decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

Inicialmente, cumpre relembrar, para fins de eventuais embargos de declaração, que incumbe ao órgão julgador decidir o litígio segundo o seu livre convencimento motivado, utilizando-se das provas, legislação, doutrina e jurisprudência que entender pertinentes à espécie. Assim, o julgador não se encontra obrigado a manifestar-se sobre todas as alegações das partes, nem a ater-se aos fundamentos indicados por elas ou a responder, um a um, a todos os seus argumentos, quando já encontrou motivo suficiente para fundamentar sua a decisão. Isto porque a decisão judicial não constitui um questionário de perguntas e respostas, nem se equipara a um laudo pericial a guisa de quesitos. Neste sentido, colacionam-se os seguintes precedentes:

“O não acatamento das argumentações contidas no recurso não implica cerceamento de defesa, posto que ao julgador cabe apreciar a questão de acordo com o que ele entender atinente à lide. Não está obrigado o magistrado a julgar a questão posta a seu exame de acordo com o pleiteado pelas partes, mas sim com o seu livre convencimento (art. 131, do CPC), utilizando-se dos fatos, provas, jurisprudência, aspectos pertinentes ao tema e da legislação que entender aplicável ao caso concreto.” 2 “Processo civil. Sentença. Função prática. A função judicial é prática, só lhe importando as teses discutidas no processo enquanto necessárias ao julgamento da causa. Nessa linha, o juiz não precisa, ao julgar procedente a ação, examinar-lhe todos os fundamentos. Se um deles e suficiente para esse resultado, não esta obrigado ao exame dos demais. Embargos de declaração rejeitados.” 3 “(....) A função teleológica da decisão judicial é a de compor, precipuamente, litígios. Não é peça acadêmica ou doutrinária, tampouco se destina a responder a argumentos, à guisa de quesitos, como se laudo pericial fosse. Contenta-se o sistema com a solução da

2 AgRg no Ag 512437/RJ, 1ª Turma, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, julgado em 16.10.2003, DJ 15.12.2003 p. 210. 3 EDcl no REsp 15450/SP, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, 2ª Turma, julgado em 01.04.1996, DJ 06.05.1996 p. 14399. No mesmo sentido:REsp 172329/SP, 1ª Seção, Rel. Ministro FRANCISCO PEÇANHA MARTINS; REsp 611518/MA, 2ª Turma, Rel. Ministro FRANCIULLI NETTO, REsp 905959/RJ, 3ª Turma, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI; REsp 807690/SP, 2ª Turma, Rel. Ministro CASTRO MEIRA.

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

VI

controvérsia, observada a res in judicium deducta, o que se deu no caso ora em exame.” Nítido, portanto, é o caráter modificativo que o embargante, inconformado, busca com a oposição destes embargos declaratórios, uma vez que pretende ver reexaminada e decidida a controvérsia de acordo com sua tese.” 4

Não havendo preliminares argüidas ou conhecíveis de ofício, examino o mérito.

2.1. Mérito

A questão de mérito gira em torno de um conflito possessório entre a empresa Imperial Construções e Empreendimentos Ltda. e a Comunidade Quilombola Pontal da Barra sobre um terreno onde a segunda teria construído as suas casas e que se situa nas margens da rodovia estadual SE204.

A fim de delimitar a questão, transcrevo a alegação da parte autora:

“Segundo a peça ministerial a área em litígio já se encontra ocupada pela comunidade ré por mais de 20 anos. Essa informação merece destaque, nesse momento, vez que se torna prejudicial a sua comprovação com relação o mérito desta lide. Em verdade, a localização da comunidade Pontal da Barra é na denominada Ilha do Rato, margeando o rio Japaratuba. Não se está nesses autos a tratar dessa área. A área objeto desta lide se encontra a uma distância de aproximadamente 400 metros, margeando a pista de acesso ao Município de Pirambu. (...) O que se questiona é tão somente o fato da comunidade re ter se deslocado de seu habitat natural (Ilha do Rato/Beira do Rio Japaratuba) e ter invadido uma área de terra distante a 400 metros”. (f. 326/f. 327)

Já a ré (Comunidade Pontal da Barra), secundado pelo INCRA, pela FCP e pelo MPF, entende que não houve invasão nenhuma porque aquela área integraria a propriedade da comunidade quilombola, restando ao abrigo do art. 68 do ADCT.

Antes de examinar a matéria é mister fazer algumas considerações iniciais acerca do art. 68 do ADCT, uma vez que a questão subjudice está umbilicalmente ligada à incidência do presente dispositivo constitucional.

Dispõe o art. 68 do ADCT, verbis: Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.

4 EDcl no REsp 675.570/SC, 2ª Turma, Rel. Ministro FRANCIULLI NETTO, julgado em 15.09.2005, DJ 28.03.2006 p. 206.

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

VII

A intenção do constituir ao contemplar a propriedade aos remanescentes das comunidades dos quilombos foi a de resgatar uma divida histórica para com os negros escravos, bem como preservar a cultura afro e fazer justiça social a essa minoria.

“O que se pretendeu assegurar na nova Constituição é que os diferentes

grupos formadores da sociedade gozem da proteção quanto a seus modos de viver, isto é, o direito à sua cultura própria, ao mesmo tempo em que se estabelece a garantia de ampla participação social e política desse seguimento (ou minoria) através dos benefícios sociais que a igualdade segundo a lei impõe, sem descurar-se das diferenças culturais, ínsitas a todas as minorias étnicas.

Sob o ponto de vista cultural, é que a proteção às terras ocupadas pelas comunidades remanescentes de quilombos deve ser entendida, por se tratar da

efetivação de um direito constitucionalmente garantido em um Estado democrático pluriétnico.

(...) O que se busca assegurar é o respeito a essas comunidades, a

possibilidade de que possam continuar se reproduzindo segundo suas próprias tradições culturais e assegurando, também, a sua efetiva participação em uma sociedade pluralista. 5

Quanto a natureza deste dispositivo, trata-se de um autêntico direito fundamental fundado na cláusula de abertura material (art. 5º, § 2º da CF/88), e imantado pelos princípios da máxima efetividade e da aplicabilidade imediata (art. 5º, § 1º da CF/88).

Trata-se de um direito fundamental que não estende a todos pelo só fato de sua natureza humana, mas a uma classe específica, de maneira coletiva. Funda-se na idéia de proteção a grupos vulneráveis, com base numa idéia de especialização funcional, verbis:

“Flavia Piovesan explica, com precisão, os novos paradigmas a serem incluídos no Direito. Segundo ela ‘a partir da extensão da titularidade de direitos, há o alargamento do próprio conceito de sujeito de direito, que passou a abranger, além do indivíduo, as entidades de classe, as organizações sindicais, os grupos vulneráveis e a própria humanidade. Este processo implicou ainda a especificação do sujeito de direito, tendo em vista que, ao lado do sujeito genérico e abastrato, delineia-se o sujeito de direito concreto, visto em sua especificidade e na concretude de suas relações. Isto é, do ente abstrato, genérico, destituído de cor, sexo, idade, classe social, dentre outros critérios, emerge o sujeito de direito concreto, historicamente situado, com especificidades e particularidades. (...) Aos poucos, um novo regime jurídico de proteção a pessoas ou grupo de pessoas particularmente vulneráveis vêm merecendo atenção especial dos sistemas normativo internacional e nacional, que passam a reconhecer direitos próprios destinados às crianças, aos idosos, às mulheres, às pessoas vítimas de

5 Rios, Aurélio Virgílio. Quilombos na perspectiva da iguadade Étnico-Racial: Raízes, Conceitos, Perspectivas. Ordem Jurídica e Igualdade Étnico-Racial. SEPPJR, 2006. Disponível em: < http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/documentos-e-publicacoes/artigos/documentos-e-publicacoes/docs_artigos/quilombos_na_perspectiva_da_igualdade_etnico_racial.pdf >. Acesso em: 27 jan. 2012

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

VIII

tortura, e aquelas que sofrem discriminação racial ou que não se beneficiaram de políticas públicas genericamente adotadas no Brasil, como é o caso dos afrodescendentes, em especial os remanescentes de quilombolas, que estão ainda a perseguir o reconhecimento do Estado de seus direitos culturais e territoriais” 6

O dispositivo em tela é dotado de eficácia plena e imediata (classificação de José Afonso da Silva), já que possui densidade normativa suficiente.

“Contudo, a aplicabilidade imediata (eficácia jurídica plena) é evidente e ressalta já da redação do dispositivo. Estão suficientemente indicados, no plano, normativo, o objeto do direito (a propriedade definitiva das terras ocupadas), seu sujeito ou beneficiário (os remanescentes das comunidades dos quilombos), a condição (a ocupação tradicional das terras), o dever correlato (reconhecimento da propriedade e emissão de títulos executivos) e o sujeito passivo ou devedor (o Estado, Poder Público). Qualquer leitor bem-intencionado consegue tranquilamente o que a norma quer dizer, e o jurista consegue aplicá-la sem a necessidade de integração legal” 7.

Em que pese o dispositivo seja claro, o seu caráter especial 8, novidadeiro 9 – não há precedente na legislação anterior– e o potencial conflituoso com direitos de terceiro (principalmente o de propriedade 10), encerra algumas dúvidas ao intérprete relevantes, tais como: 1) o significado da comunidade remanescente de quilombola para fins de proteção do texto constitucional; 2) o alcance do território da comunidade quilombola; 3) a forma de acesso a este direito. Não obstante isso, a intervenção do legislador é necessária para regular aspectos marginais que não interfere na usufruição do direito, qual seja, assegurar a propriedade definitiva aos remanescentes da comunidade quilombola.

Para o deslinde da controvérsia, somente serão analisados os itens 1 e 2 supra.

A primeira questão é o que se deve entender por remanescentes das comunidades dos quilombos? Tal questão é fundamental porque a estas comunidades é assegurada a propriedade definitiva de suas terras.

6 Rios, Aurélio Virgílio. Quilombos na perspectiva da iguadade Étnico-Racial: Raízes, Conceitos, Perspectivas. Ordem Jurídica e Igualdade Étnico-Racial. SEPPJR, 2006. Disponível em: < http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/documentos-e-publicacoes/artigos/documentos-e-publicacoes/docs_artigos/quilombos_na_perspectiva_da_igualdade_etnico_racial.pdf >. Acesso em: 27 jan. 2012 7 Rothenburg, Walter Claudius Direitos dos Descendentes de Escravos (Remanescentes das Comunidades de Quilombos). Livro “Igualdade, Diferença e Direitos Humanos” - Editora Lumen Juris – 2008, p. 446 a 471. Disponível em: < http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/documentos-e-publicacoes/docs_artigos/artigo_descendentes_de_escravos.pdf >. Acesso em: 27 jan. 2012 8 É um direito fundamental aplicável a alguns e não a todos 9 Este direito somente foi reconhecido com a CF/88, de 05.10.1988, uma vez que passados 100 da abolição da escravatura (1888 – com a assinatura da Lei Áurea), a questão do negro foi ignorada pelas Constituintes. 10 Não haveria de reconhecer o direito a terra se os negros fossem espoliados por uma determinada pessoa, mas, no decorrer de anos, a terra pode ter alienada a terceiros que não praticaram qualquer ilícito, entrando a questão do terceiro de boa-fé.

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

IX

A questão continua sendo debatida tanto por antropólogos como alguns juristas (a maioria dos textos que li são membros do Ministério Público e de outros atores processuais que lidam com a matéria) sem que tenha chegado a um consenso sobre a matéria.

A propósito, transcrevo excertos de textos sobre o tema: 1 - Afigura-se, inicialmente, para uma melhor compreensão do tema, esclarecer a definição de comunidade remanescente de quilombo. Como se sabe, os quilombos surgiram na época da escravidão no Brasil, como uma forma de resistência dos escravos a toda sorte de humilhações e condições sub-humanas por que passavam. Os escravos "rebeldes" "fugiam" dos domínios do seu senhor para formarem grupos de resistência. Desse modo, por todo o País, vários núcleos se formaram, dando origem aos quilombos. Muitos líderes se destacaram nesses grupamentos, dentre eles o conhecido Zumbi dos Palmares, que liderou a Comunidade Quilombo dos Palmares, aos arredores da cidade alagoana, cujo nome presta homenagem aos quilombos: União dos Palmares. Com a abolição da escravidão, no ano de 1888, muitas dessas comunidades continuaram a existir, bem como muitos dos ex-escravos, não tendo para onde ir, à margem da sociedade e sem condições mínimas para uma existência digna, formaram novos grupamentos, que, apesar de não servirem mais como um núcleo de resistência à escravidão, serviam como um meio de ajudarem-se mutuamente e resgatar a cultura e a religiosidade da terra natal "deixada". Pois bem, essa maneira de viver foi passada de geração em geração, de modo que os atuais integrantes das comunidades quilombolas revivificam as culturas originais e a religiosidade de seus antepassados nas terras que hoje ocupam. São, pois, esses grupamentos sociais que a Constituição Federal chama, no art. 68 do ADCT, de comunidade remanescente de quilombo. Apesar de o texto constitucional referir-se a remanescente, sem sombra de dúvida essa expressão deve ter sua interpretação alargada. Explica-se. É que remanescente refere-se ao que restou, ao que sobrou. Assim, interpretando literalmente o texto, ele teria aplicação praticamente inócua, haja vista que, se hoje há algum remanescente do período da escravidão, este, certamente, deve estar nos seus últimos dias. Então, onde se lê remanescente, entenda-se descendente, que significa derivar, provir por geração2 . Destarte, devemos estender o conceito de comunidade quilombola como sendo descendentes de quilombos. Só assim obteremos efetividade do comando constitucional 11. “Entretanto, o dispositivo fala em remanescentes de quilombos e daí surgiu um embate hermenêutico quanto à amplitude do termo a ser considerado. A palavra remanescente dá a idéia daquilo que resta, que sobeja. Entretanto, há dois pontos a serem considerados: as comunidades quilombolas continuaram a se formar mesmo após a abolição da escravidão no Brasil e, as que se formaram, independentes da época, detêm uma identidade cultural própria, não sendo, portanto, meras expressões da África no Brasil. A própria visão estigmatizada da época constituía uma barreira à disseminação do

11 GAMA, Alcides Moreira da. O direito de propriedade das terras ocupadas pelas comunidades descendentes de quilombos. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 825, 6 out. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/7396/o-direito-de-propriedade-das-terras-ocupadas-pelas-comunidades-descendentes-de-quilombos>. Acesso em: 27 jan. 2012.

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

X

conceito de quilombo, como algo bem maior e mais rico do que a acepção popular admitia. Por uma visão clareada pelos conceitos antropológicos, consideram-se remanescentes de quilombos: Todas as comunidades predominantemente negras que se distinguem entre si e no conjunto da sociedade por uma identidade étnica com uso de regras e meios próprios de pertencimento e exclusão, ancianidade de ocupação fundada em apossamento coletivo de seus territórios, detenção de uma base geográfica comum ao grupo, organização em unidade produtiva familiar coletiva e uso de processos peculiares de manejo de recursos naturais. (NUER, 1997, p. 74). Em 1994 a Associação Brasileira de Antropologia designou um conceito para caracterizar as comunidades remanescentes de quilombos: Contemporaneamente, portanto, o termo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar. (ABA, 1994 apud NUER, 2005, p. 37) 12.

Os quilombos sempre foram vistos como um espaço de liberdade e de resistência contra a opressão da escravidão, contudo estudos mais recentes apontam que a representação do quilombola não é estática. Estudos mais recentes demonstram que é falsa a visão de que todos os quilombos se organizaram sob a forma do Zumbi de Palmares, mediante a resistência armada.

Até porque estes grupamentos que se formaram durante e até mesmo após a escravidão foram sofrendo a influência da sociedade envolvente. Neste passo, não é essencial para caracterizar como um remanescente da comunidade quilombola que conserve um dialeto africano ou um vínculo ancestral ou que todos descendam de uma origem comum. Não é necessário que todos os membros da comunidade sejam negros (alguns podem se casar com pessoas fora do grupo) ou que estejam isolados.

“Assim, pode-se concluir que qualquer grupo composto primordialmente por negros fugidos, que tenha logrado permanecer livre durante a vigência das leis escravistas do país, ainda que composto de outros indivíduos que não apenas os escravos fugidos, era considerado quilombo. Em todas elas podemos notar o vínculo histórico-social que liga a atual comunidade com um grupo formado por escravos fugidos, perseguidos ou não, e que permaneceram livres, embora não alforriados. Com a abolição da escravatura e o fim das perseguições oficiais, esses grupos tiveram a oportunidade de se aproximar dos núcleos

12 SOUZA, Adriano Stanley Rocha; OLIVEIRA, Ana Luisa Albergaria Lima et al. A posse de terras quilombolas na região metropolitana de Belo Horizonte. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2581, 26 jul. 2010. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/17043>. Acesso em: 27 jan. 2012.

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

XI

populacionais da sociedade envolvente, passando o contato a ser natural e gradativo, embora já houvesse relações de troca e até de casamento entre os dois grupos, anteriormente à abolição, como indicam pesquisas históricas recentes. Entretanto, ainda que as relações comerciais qualificadas por interesses comuns entre as duas sociedades possam ter sido fortemente estabelecidas com o passar do tempo, isso não significou que essas comunidades, formadas originariamente por escravos fugidos, tenham passado a se identificar com qualquer outro grupo da sociedade que os havia excluído ou mesmo perseguido. Dessa maneira, as populações que mantiveram o vínculo social e histórico com os grupos formados essencialmente por escravos fugidos, ainda que composto por elementos não considerados escravos, os quais eram considerados quilombolas perseguidos pelas forças escravistas, e que construíram sua própria história, a margem do domínio da sociedade envolvente, passaram a ser consideradas primordialmente como remanescentes de quilombos. O vínculo histórico social emerge então como parâmetro constitucional adequado para a definição de que sejam comunidades remanescentes de quilombos, a partir da própria legislação colonial. Por outro lado, a idéia de que teria havido um completo isolamento de comunidades rurais negras da sociedade envolvente e mesmo das relações de mercado não tem sustentação histórica ou antropológica. Alfredo Wagner lembra que a afirmação da identidade dos quilombolas se fez nas transações econômicas. Isto é, na “fronteira” entre os grupos étnicos. Segundo ele, a transação comercial é que assegurava solidez na fronteira do quilombo, de modo que a identidade étnica teria se firmado com mais intensidade no contato do que no suposto isolamento das comunidades negras rurais no Brasil. 13 “Assim, a idéia de uma comunidade sem qualquer relação com a ―sociedade englobanteǁ é absolutamente destoante da realidade brasileira. Mesmo em Palmares- ―o arquétipo do quilomboǁ no imaginário social, há forte de presença de "brancos, mestiços de vária estirpe e índios, além de negros africanos e nascidos no Brasil" e, portanto, "um território social e econômico, além de geográfico, no qual circulavam diversos tipos sociais"”14

Do ponto de vista legal (infralegal), o Executivo adotou um conceito de remanescente da comunidade quilombola, nos termos do art. 2º do Decreto n.º 4.887/03:

Decreto n.º 4.887/03, Art. 2o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de

13 Rios, Aurélio Virgílio. Quilombos na perspectiva da iguadade Étnico-Racial: Raízes, Conceitos, Perspectivas. Ordem Jurídica e Igualdade Étnico-Racial. SEPPJR, 2006. Disponível em: < http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/documentos-e-publicacoes/artigos/documentos-e-publicacoes/docs_artigos/quilombos_na_perspectiva_da_igualdade_etnico_racial.pdf >. Acesso em: 27 jan. 2012 14

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

XII

ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. § 1o Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade. Art. 3º (omissis), § 4o A autodefinição de que trata o § 1o do art. 2o deste Decreto será

inscrita no Cadastro Geral junto à Fundação Cultural Palmares, que expedirá certidão respectiva na forma do regulamento.

§ 2o São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural. § 3o Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental.

A doutrina defende que o Decreto adotou o critério da auto-atribuição, na esteira da Convenção n.° 169 da OIT.

“Essa orientação indeclinável inspira a regulamentação: o Decreto 4.887/2003 preceitua que ‘a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade’ (art. 2°, § 1°) e que essa autodefinição ‘será inscrita no Cadastro Geral junto à Fundação Cultural Palmares, que expedirá certidão respectiva’ (art. 3º, § 4º). O critério da auto-definição também é o adotado em âmbito internacional: a Convenção 169 da OIT dispõe que a consciência da própria identidade ‘deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos’ aos quais se aplica a Convenção (art. 1.2.)” 15. Para além do vínculo histórico social que deve nortear o critério de reconhecimento de um território quilombola, é preciso lembrar que o Decreto nº 4887, de 20 de Novembro de 2003, estabeleceu o critério da auto-definição como forma primordial de identificação e caracterização das comunidades remanescentes de quilombolas, como consta do seu art. 2º: (...) O critério antropológico da auto-identificação do grupo étnico elegido pelo Decreto nº 4887, hoje largamente utilizado para a caracterização de uma comunidade tradicional, foi reconhecido pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Congresso Nacional e incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro como lei ordinária. No inciso II do art. 1º da Convenção nº 169 está dito que “a consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos quais se aplicam as disposições da presente Convenção.” (...) O critério da auto-idenficação, considerado como essencial para a caracterização de um grupo social diferenciado, surge a partir de lições de

15 Rothenburg, Walter Claudius Direitos dos Descendentes de Escravos (Remanescentes das Comunidades de Quilombos). Livro “Igualdade, Diferença e Direitos Humanos” - Editora Lumen Juris – 2008, p. 446 a 471. Disponível em: < http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/documentos-e-publicacoes/docs_artigos/artigo_descendentes_de_escravos.pdf >. Acesso em: 27 jan. 2012

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

XIII

Frederick Barth, que inovou os métodos para constituição de limites de unidades étnicas, procurando-se fugir aos fundamentos biológicos, lingüísticos e raciais 14. Em conseqüência, há o abandono da “visão explicativa” das comunidades, a qual tenta, através de um “observador externo”, produzir um conhecimento segundo o qual se pretende conferir a uma comunidade certa identidade, determinando-se o lugar dos indivíduos e seu grupo no universo social. Muitas vezes, nessa visão explicativa, atribuem-se elementos de unidade desconhecidos pelo próprio segmento social em estudo, revelando-se aí a sua insuficiência e imprecisão, bem como a necessidade de superá-la. Por isso, a extrema importância das investigações de Frederik Barth, que coloca como questão central para a identificação da comunidades não as diferenças culturais entre grupos percebidas por um observador externo, mas sim os “sinais diacríticos”, isto é, aquelas diferenças que os próprios atores sociais consideram significativas e que, por sua vez, são revelados pelo próprio grupo 15. 16

Embora o Decreto que regulamenta a questão adota o critério do auto-atribuição como principal critério, não é avesso a processos sociais objetivos.

“A regulamentação brasileira não ignora processos sociais objetivos. Como pondera JULIANA SANTILI (2005:136-137), os principais critérios adotados para a identificação das comunidades de quilombos são ‘a auto-atribuição (critério também consagrado pela Convenção 169 da OIT, já mencionado) e a relação histórica com um território específico’. O Decreto 4.887/2003 determina que devam ser avaliados também outros fatores (trajetória histórica própria, relações territoriais específicas, ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica), que revestem de objetividade a auto-atribuição inicial. Apenas que todo o procedimento não prescinde, desde o início, da auto-definição. A indispensável auto-definição precisa ser seguida da ‘identificação, delimitação e levantamento ocupacional e cartorial’ da área (art. 7º do Decreto 4.887/2003), retaradas num relatório técnico, que deverá ser encaminhado a diversos órgãos para manifestação (art. 8º) e permitirá contestação por qualquer interessado (art. 9º). É possível afirmar, contudo, e com ARRUTI (2003), que ‘o peso que o argumento da auto-atribuição terá na argumentação pelo reconhecimento oficial será inversamente proporcional ao peso que se puder atribuir aos outros itens daquelas listas de critérios que têm orientado a descrição de tais comunidades’ 17

16 Rios, Aurélio Virgílio. Quilombos na perspectiva da iguadade Étnico-Racial: Raízes, Conceitos, Perspectivas. Ordem Jurídica e Igualdade Étnico-Racial. SEPPJR, 2006. Disponível em: < http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/documentos-e-publicacoes/artigos/documentos-e-publicacoes/docs_artigos/quilombos_na_perspectiva_da_igualdade_etnico_racial.pdf >. Acesso em: 27 jan. 2012 17 Rothenburg, Walter Claudius Direitos dos Descendentes de Escravos (Remanescentes das Comunidades de Quilombos). Livro “Igualdade, Diferença e Direitos Humanos” - Editora Lumen Juris – 2008, p. 446 a 471. Disponível em: < http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/documentos-e-publicacoes/docs_artigos/artigo_descendentes_de_escravos.pdf >. Acesso em: 27 jan. 2012

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

XIV

Neste passo, com base na autorização prevista no art. 3º, § 1º 18 do Decreto n.º 4.887/2003, o INCRA editou o IN n.º 20/2008 que prevê a elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação – RTID como documento indispensável para confirmar a natureza quilombola da comunidade e delimitar o seu território para fins de titulação.

O laudo antropológico é uma oportunidade de recuperar/resgatar, ainda que de maneira incompleta, fragmento do passado de um segmento da população que foi esquecido, ignorado e marginalizado. Digo isso porque a história se preocupa em registrar os fatos sob a ótica dos vencedores e não dos vencidos que muitas vezes são marginalizados. Dado a escassez de dados e decorrido o tempo de 100 anos, fica difícil estabelecer um liame lógico, direto com a escravidão, já que as pessoas daquela época provavelmente não existem mais. Reforça isto a compreensão de que o recurso ao esquecimento, seja dos escravos e de seus eventuais descendentes, constitua uma forma de livrar de uma dor/vergonha. Trata-se da história de um passo que alguns fazem questão de esquecer enquanto outros nem fizeram questão de registrar (ignorar).

Entendo que o critério da auto-atribuição constitui o 1° passo (fundamental – porque a comunidade se auto reconhece como remanescente de quilombola) para o processo, contudo não pode ser fator único e exclusivo para resolver a questão.

Isto porque se o direito fosse assegurado a todos que possuíssem ancestralidade africana, o dispositivo perderia a sua razão de ser. Com efeito, restaria abolido o direito de propriedade, já que, considerando o grau de miscigenação no Brasil, quase todo mundo carrega dentro de si, em maior ou menor grau, algum traço da raça negra, o que não significa necessariamente que tenha mantido/mantenha os laços culturais. Neste passo, a finalidade é proteger uma comunidade que, em razão do fenômeno da escravidão, permaneceu em maior ou menor grau a margem do sistema (não se integrou totalmente a sociedade brasileira) e através do seu modo de ser e viver mantém uma relação especial com o território onde vive. O direito não é de uma pessoa só, mas é usufruído enquanto membro de uma comunidade.

Acerca dos riscos: “Se a auto-atribuição apresenta-se, do ponto de vista antropológico, como o mais indicado critério de reconhecimento de uma comunidade como remanescent3e de quilombo, pode ser que reste ao Direito a tarefa ingrata de invalidá-lo em situações de fraude evidente. Se um grupo supostamente fragilizado candidata-se à obtenção de vantagens públicas, num contexto de escassez que é típico dos recursos públicos e dramático em Estados de muita

18 Decreto n.º 4.887/03, Art. 3º (omissis), § 1o O INCRA deverá regulamentar os procedimentos administrativos para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, dentro de sessenta dias da publicação deste Decreto.

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

XV

gente pobre, a usurpação da condição que legitima essa candidatura viola gravemente a isonomia, pois priva de tais vantagens outros grupos realmente fragilizados. Portanto, assim como não se pode ignorar a precedência do critério da auto-identificação, não se deve sobrevalorizá-lo, mas admitir, em casos extremos, sua infirmação. Certo é, contudo, que a auto-atribuição goza de uma presunção favorável e exige forte argumentação para ser invalidada”19

O território dos remanescentes das comunidade quilombolas não se restringe ao local onde vive, mas é composto pelo espaço onde mora e reproduz o seu modo de viver. O vínculo com aquela meio é fundamental para a reprodução do seu modo de viver. Nas palavras de Alcides Moreira da Gama 20, “é a relação que, com o passar dos anos, o corpo social adquiriu com as terras ocupadas, difundindo sua cultura, seus modos de criar, fazer e viver, e resgatando valores surrupiados, como meio, inclusive, de assegurar sua reprodução física, social, econômica e cultural”.

Acerca da necessidade de proteção destas terras, ensina o Procurador Regional da República Daniel Sarmento (f. 254/274):

(...) o reconhecimento de que o próprio texto constitucional operou a afetação das terras ocupadas pelos quilombolas a uma finalidade pública de máxima relevância, eis que relacionada a direitos fundamentais de uma minoria étnica vulnerável: o seu uso, pelas próprias comunidades, de acordo com os seus costumes e tradições, de forma a garantir a reprodução física, social, econômica e cultural dos grupos em questão. (...) Para comunidades tradicionais, a terra possui um significado completamente diferente da que ele apresenta para a cultura ocidental hegemônica[6]. Não se trata apenas da moradia, que pode ser trocada pelo indivíduo sem maiores traumas, mas sim do elo que mantém a união do grupo, e que permite a sua continuidade no tempo através de sucessivas gerações, possibilitando a preservação da cultura, dos valores e do modo peculiar de vida da comunidade étnica[7]. da terra, o grupo tende a se dispersar e a desaparecer, tragado pela sociedade envolvente. Portanto, não é só a terra que se perde, pois a identidade coletiva também periga sucumbir. Dessa forma, não é exagero afirmar que quando se retira a terra de uma comunidade quilombola, não se está apenas violando o direito à moradia dos seus membros. Muito mais que isso, se está cometendo um verdadeiro etnocídio.

Voltando propriamente a questão possessória, a posse é um conceito relacional de modo que a pretensão à tutela jurídica é exercida em face da pessoa que supostamente ameaça, turba ou esbulha a posse, não produzindo efeitos erga omnes. A proteção possessória é deferida a quem possui a melhor posse. 19 Rothenburg, Walter Claudius Direitos dos Descendentes de Escravos (Remanescentes das Comunidades de Quilombos). Livro “Igualdade, Diferença e Direitos Humanos” - Editora Lumen Juris – 2008, p. 446 a 471. Disponível em: < http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/documentos-e-publicacoes/docs_artigos/artigo_descendentes_de_escravos.pdf >. Acesso em: 27 jan. 2012 20 O direito de propriedade das terras ocupadas pelas comunidades descendentes de quilombos. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 825, 6 out. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/7396/o-direito-de-propriedade-das-terras-ocupadas-pelas-comunidades-descendentes-de-quilombos>. Acesso em: 27 jan. 2012.

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

XVI

Sobre o tema, os ensinamentos doutrinários abaixo transcritos são elucidativos:

A outro giro, os três vícios objetivos da posse qualificam-se como relativos, isto é, são apenas oponíveis por aquele que sofreu o esbulho em virtude da aquisição ilícita da posse. Não existe posse injusta em caráter erga omnes. Com efeito, só socorrerá a alegação do vício possessório em favor daquele que sofreu a agressão, pois, no confronto com outras pessoas que pretendam obter a mesma posse a posteriori, o esbulhador poderá alegar posse justa e, assim, obter respaldo em juízo, em face de eventuais agressões 21. Os efeitos da posse não são afastados nem mesmo se o exercício de fato tiver sido adquirido de forma contrária ao Direito. Porém, a posse gerada de um ilícito tem proteção restrita e condicionada à situação de seu opositor, ou seja, daquele que a molesta, pois não será ela defendida contra quem tiver melhor posse que a sua, ou contra o proprietário, no juízo petitório. Isso significa que mesmo a posse injusta e a de má-fé podem dar ensejo à pretensão de sua tutela por meio de uma ação, e somente no decorrer do respectivo processo e final pronunciamento jurisdicional de mérito será restará esclarecida, diante das provas produzidas durante a fase instrutória, e fixada qual a posse que merece proteção. Não há qualquer obstáculo legal, inclusive, para que seja a posse viciosa a tutelada na sentença, ao final da ação. (...) Assim, a defesa da posse, qualquer que seja sua qualificação, é relativa e circunstancial, sempre correlacionada à situação fática daquele contra quem se pretende uma tutela jurisdicional de proteção possessória. Apenas para fins de ilustração, uma posse de má-fé merece proteção em face de toda a sociedade, contra quem pode opô-la; todavia, no mérito, não será ela tutelada se confrontada a uma melhor posse (v.g. uma posse de boa-fé) ou ao direito de propriedade (quando no juízo petitório) 22.

Embora os partidários da posse defendam sua autonomia frente ao direito de propriedade (a posse pode surgir independente da existência de um direito real que o legitime), tal distinção é flexibilizada quando se trata da aplicação ou não do art. 68 do ADTC.

Trata-se de um direito em que a posse legitima o direito de propriedade. Pouco importa que os quilombolas possuam o título formal de propriedade. É que a CF já transferiu a propriedade das terras em favor destas comunidades, sendo que a intervenção do Estado é para reconhecer um direito pré-existente. Neste passo, conservam todos os direitos possessórios decorrentes desta propriedade reconhecida pelo Constituinte.

“O que justifica o direito à propriedade das comunidades quilombolas é a relação direta com o objeto por meio da posse, portanto não é a propriedade enquanto domínio que legitima a posse, mas o inverso a posse, o uso efetivo

21 FARIAS, Cristiano Chaves. ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. Ed. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2006. p. 79. 22 SIMARDI, Cláudia Aparecida. Proteção Processual da Posse. Ed. Revista dos Tribunais. P. 99-100.

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

XVII

do meio, como utilidade social, é que legitima a propriedade, daí essencial a intervenção do Estado em lhe consolidar, inclusive, se necessário por meio da desapropriação”. O registro imobiliário a favor da comunidade é apenas um meio executivo de estabilizar o direito de viver com dignidade, este sim o objetivo fundamental do legislador, tornando público o exercício deste direito.

Havendo colisão entre a posse de uma comunidade quilombola e a de um terceiro, a CF já fez um juízo de preferência em favor do primeiro, ainda que os particulares tenham adquirido a posse, mediante justo título.

Partindo destas premissas, examino o caso concreto.

Analisando o laudo antropológico (f. 876/1071), parece que conseguiu estabelecer um liame histórico entre a população da Ilha do Rato e a descendência negra. Adoto os seus fundamentos, como se aqui tivessem transcritos.

Ressalte-se que a via possessória não é adequada para ampla discussão sobre o laudo antropológico, devendo a parte autora, querendo, desconstituí-lo em via própria.

Caracterizada os moradores como remanescentes da comunidade quilombola, é preciso perquirir se a área em que estão atualmente integra ou não a área pertencente à comunidade quilombola para fins de proteção possessória.

De início, impõem-se alguns esclarecimentos.

No campo processual, a busca da verdade – com a conseqüente certeza judicial – dá-se por meio de um processo de reconstrução histórica e crítica dos fatos, como se fosse um historiador, complementando as lacunas da narrativa mediante a aplicação das regras normais (id quod plerunque accidt) e técnicas de experiência e, excepcionalmente, as regras sobre os ônus da prova. A prova nunca dará ao juiz a certeza, mas somente uma aproximação, maior ou menor da certeza dos fatos 23.

A prova produzida neste processo exige uma olhar peculiar do julgador. A questão é mais complexa porque, a semelhança dos processos de segurado especial, o julgador não está julgando um fato específico e delimitado no tempo, mas está examinando toda uma vida de uma pessoa (no caso em exame, com a agravante de que se trata de uma comunidade). Assim, fatalmente, a narrativa das testemunhas será contraditória, sendo praticamente impossível que o juiz extraia um conjunto probatório harmônico e coeso.

Embora o imóvel possua matrícula e tenha sido transferido a autora (f. 23/24), em verdade, não possui a propriedade da área, uma vez que a área está 23 Cf. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, pp. 29/31

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

XVIII

qualificada como terreno de marinha e acrescido de marinha, ambos de propriedade da União. Em verdade, os autores possuem a área sob o regime de ocupação, conforme manifestação da União na audiência do dia 08.10.2009 (f. 322), verbis:

“A União alega que essa demanda tem caráter meramente possessória, pois nenhuma das partes discutem o domínio da área, pois ambas reconhecem que a propriedade é da União e instada a se manifestar, a Superintendência de Patrimônio da União em Sergipe informa que a área objeto da presente demanda encontra-se cadastrada em nome da autora sob o regime de ocupação” (f. 322).

Na ocupação, a pessoa é considerada perante a União mera detentora da área, uma vez que não possuía qualquer título hábil a justificar sua posse (alienação, doação, permuta, aluguel, aforamento, cessão ou concessão de uso para fins de moradia), o qual é expedido pela Secretaria do Patrimônio da União.

Lei 9.636/98, Art. 7º. A inscrição de ocupação, a cargo da Secretaria do Patrimônio da União, é ato administrativo precário, resolúvel a qualquer tempo, que pressupõe o efetivo aproveitamento do terreno pelo ocupante, nos termos do regulamento, outorgada pela administração depois de analisada a conveniência e oportunidade, e gera obrigação de pagamento anual da taxa de ocupação. (Redação dada pela Lei nº 11.481, de 2007) Decreto-Lei n.º 9.760/46, Art. 127. Os atuais ocupantes de terrenos da União, sem título outorgado por esta, ficam obrigados ao pagamento anual da taxa de ocupação.

Não obstante isso, assiste o direito de utilizar os interditos possessórios contra terceiros.

Em sede de cognição sumária, este juízo deferiu a medida liminar em favor da autora para reintegrá-la na posse da área em questão, contudo foi suspensa pelo eg. TRF da 5ª Região. Após meditar sobre a questão, tenho que o melhor direito assiste a comunidade quilombola.

A narrativa do caderno processual demonstra que a comunidade de Pontal da Barra residia no local denominado Ilha do Rato, que fica nas margens do rio Japaratuba 24 e já próximo do Oceano Atlântico (vide fotos de f. 348, 352/354) e de uma área de mangue. No local denominado Ilha do Rato não havia luz, água, saneamento básico e, para piorar, todo ano os moradores sofriam com as cheias do Rio Japaratuba que inundavam as suas casas.

Edélzio de Góis Feitosa – f. 336/337 “Que as casas que estão nas margens da rodovia foram construídas a partir de maio, depois da primeira enchente. (...) Que as casas da ilha do rato não

24 O Rio Japaratuba divide os Municípios de Pirambu e de Barra dos Coqueiros, sendo que o lugar Ilha do Rato faz parte deste último.

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

XIX

chegaram a cair em decorrência da maré, mas a maré chegou bem perto. Que existe uma cheia decorrente das chuvas que descem pelo rio Japaratuba. Que essas cheias atingem toda a área que fia à margem do rio Japaratuba. Além da ilha do Rato são atingidas as áreas da comunidade Canal, Touro e Pirambuzinho, na parte baixa do rio, próximo ao encontro com o oceano. Ivan Batista dos Santos – f. 1100/1101 Que acredita que os moradores da ilha do rato deixaram o local por causa da maré. Que tinha épocas que a maré invadia as casas. Que geralmente a maré de março alagava o local. Alonso da Silva – f. 1103/1105 Que no inverno desce muita água doce do rio e alaga as margens.

Após o reconhecimento como remanescente de comunidade quilombola em 20.03.2006 (f. 357), começou os procedimentos para a identificação e regularização da área, com a intervenção do MPF para a sua agilização pelo menos desde 2007 (Vide f. 362, 366/367, 368/369, 372, 380, 397/399, 401/405).

Diante da precariedade da estrutura e também das cheias, começou uma discussão para realocar a comunidade para outra área, fora das margens do rio, mas ao mesmo tempo próximo ao rio. Em razão da indefinição do local e também considerando as cheias do Rio Jarapatuba que atingiam as suas casas, em 05.2009, os moradores da Ilha do Rato abandonaram as suas casas nas margens do rio e instalaram-se suas casas suas casas em local mais para o interior, próximo ao mangue e de frente para rodovia (vide fotos de f. 340, 341, 342, 348, 350).

Audiência pública no MPF no dia 19.05.2008 (f. 398) O Sr. Robério, representante da Comunidade do Pontal da Barra, relatou que na quinta passada foi procurada por alguns moradores revoltados com a precária situação que vivem; há mais de dois anos existe a promessa de realocação da comunidade e que efetivamente nada é feito; que os moradores não podem edificar no local casas de alvenaria, que também não pode tirar madeira do mangue e suas casas estão caindo aos pedaços ; que orientou aos ocupantes para que não degradassem o mangue com a extração de madeiras, nem tirassem cocos dos coqueiros que existem no local; que os manifestantes não aceitam deixar o local sem uma ação afirmativa do estado; que na área do acampamento invasor existem hoje cerca de 300 pessoas da comunidade

Embora suas casas não estivessem construídas no local onde atualmente estão, não se pode deixar de considerar que tal espaço integra o território quilombola. Isto porque o território dos remanescentes da comunidade quilombola não se restringe ao local onde edificam as suas residências, mas é composto pelo espaço onde mora e reproduz o seu modo de viver

Conforme bem exposto pelo Parquet Federal,

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

XX

“A comunidade Pontal da Barra sempre realizou a utilização tradicional das terras da União e daquelas terras que foram adquiridas pela Imperial Construções e Empreendimentos LTDA. em julho de 2007, e que ora são o objeto dessa reintegração. Apenas agora, no entanto, em razão das catastróficas condições de moradia a que estavam submetidos na área do manguezal que ocupavam, a comunidade viu-se obrigada a deslocar suas residências em algumas centenas de metros, levando à visualização concreta da utilização das terras da construtura Imperial. Diz-se visualização concreta porque em momento anterior à construção de moradias na porção do território que hoje se discute, a posse da comunidade sobre tais terras era caracterizada não pela construção das suas residências, mas pela utilização dos recursos naturais da propriedade para sua subsistência. Com efeito, nos depoimentos colhidos nesta Procuradoria da República, e que foram juntados aos autos, verificou-se que as terras da União e da Construtora Imperial sempre foram utilizadas pela comunidade para fazer roças, colher frutas, extrair palha dos coqueiros para construir e renovar suas moradas, construir cacimbas. Da mesma forma, a comunidade sempre se utilizou da área como única passagem que ligava a comunidade ao antigo povoado de Porto Grande.

Com razão, razão o Parquet Federal.

Visando conhecer melhor a situação do local, este magistrado realizou uma inspeção judicial, tendo tirado fotos e filmado o local (Vide f. 1089/1090).

Inicialmente, fui para a margem do Rio Japaratuba onde pude constatar diversas casas, algumas de alvenaria, outras de barro com telhado de palha de coqueiro. Diversas casas haviam caído e as que estavam de pé foram abandonadas. Não tinha água, energia ou esgotamento sanitário. Para obter água, faziam cacimbas que nada mais são do que buracos escavados no solo, de ondea água jorrava. As cacimbas que vi no local eram revestidas com manilhas para que não fechassem o buraco. Vi que bem próximo destas casas havia um remanescente de mangue e o acesso desta comunidade de suas casas para a rodovia se fazia através de uma estrada de piçarra.

Em seguida, este juízo caminhou mais para dentro do terreno (no sentido perpendicular (90º) e, logo de cara, este magistrado presenciou pessoas lavando roupas numa cacimba maior, mas próximo às casas da Ilha do Rato. Andando no meio deste terreno, pude constatar alguns coqueiros (parecia que antes havia muito mais) e algumas cacimbas com manilhas, vegetação em volta (a entender que não era mais utilizada).

Depois disso, fui para frente da rodovia onde a comunidade estava alojada. As suas casas eram de barro, madeira e palha, com telhado de palha de coco. Neste momento, compareceu a antiga posseira Maria da Anunciação Andrade Santos que havia vendido a área para a autora. A mesma mostrou as

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

XXI

cercas do imóvel e andei pela margem da rodovia até o mangue. No mangue, constatei algumas pessoas dentro retirando alguma coisa.

A inspeção judicial transmitiu uma idéia do local, mas não foi apta para demonstrar uma ancianidade na utilização da terra porque o meio ambiente sofreu inúmeras mudanças (construção de uma rodovia separando o terreno que atualmente é da Imperial, fechamento natural de cacimbas) 25.

Não obstante isso, dos depoimentos, subtende-se que a comunidade morava há, pelo menos, há mais de 30 anos no local conhecido como Ilha do Rato até se mudar em 05.2009, contudo utilizava os terrenos próximos para fazer cacimbas, colher palha de coqueiros, catar frutas e utilizar o mangue. Mesmo quando havia oposição dos demais posseiros, a comunidade utilizava a área por uma questão de sobrevivência mesmo, porque estavam espremidos nas margens do Rio Japaratuba.

Maria da Anunciação Andrade Santos (pessoa que cedeu a área para

a Imperial) – f. 330/332 Que reside há 35 anos em Pirambu/SE. Que reconhece a foto aérea da área em litígio. Que a ocupação mostrada na foto está lá há muito tempo. Que foram exibidas a autora as fotos nº. 1 e 2, numeradas por este Juízo. Que quando o pai da depoente comprou o sítio em 1965 já existia uma comunidade morando na ilha do rato, perto da maré (foto 01). Que essa comunidade sempre morou à beira da maré. Que a depoente era a proprietária do sítio que foi vendido à Imperial Construções. Que a Comunidade morava perto da maré próximo ao sítio de Joatan, vizinho da depoente à época. Que não havia qualquer utilização ou construção pela comunidade na área do sítio que era da depoente. Que costuma passar pelo local onde está o sítio. Que a invasão ocorreu em maio/09, numa quinta feira à noite. (...) Que o sítio é cortado por uma rodovia estadual (foto 02). Que ficou sabendo da intenção de invadir a outra área do terreno que fica do outro lado pista. Às perguntas do(a) Procurador Federal respondeu que: que sobrevive da venda de cocos. Que há mais de 35 anos reside na cidade de Pirambu. Que também já residiu no sítio, não sabendo precisar o período, mas sabe dizer que foi logo após o nascimento de sua filha mais velha, nascida em 1976. Que antes da ocupação da comunidade quem ocupava a área era a depoente.

Maria da Anunciação Andrade Santos (pessoa que cedeu a área para a Imperial) – f. 1097/1099

Que o terreno em questão foi adquirido pelo pai da depoente. Que a depoente era quem tomava conta do referido terreno e ficou com sua posse após o falecimento de sua genitora. Que explorava cocos e o pasto no terreno. Que criava cabras, cavalos e ovelhas. Que o terreno sempre foi cercado. Que por dentro do terreno passava uma estrada. Que a pista que foi construída depois dividiu o terreno no meio. Que vendeu os dois lados do terreno. Que o pessoal que ocupa parte do terreno morava na ilha do rato, na

25 Inclusive, esta me pareceu uma dificuldade na tomada dos depoimentos porque as pessoas estavam falando do mesmo local, mas em épocas diferentes.

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

XXII

beira da maré. (...) Que a área de mangue que fica próxima ao Rio Japaratuba fica dentro do terreno da autora. (...) que o pai da depoente adquiriu as terras em 1975 e a comunidade já existia na ilha do rato. (...) não sabe dizer especificamente há quanto tempo a comunidade ocupa o pontal, mas que quando o pai da depoente comprou o terreno já havia alguns moradores no Pontal (Ilha do Rato). Edélzio de Góis Feitosa – f. 336/337 que reconhece a área mostrada na foto 01. Que as casas mostradas na foto [2] são ocupadas pelas pessoas que ocupam atualmente o terreno da Imperial. Que o depoente é filho de Barra dos Coqueiros e conhece a região e passar por lá todos os dias. (...) Que todos os moradores da área junto ao rio são provenientes de Piaçabuçu/AL. Que a comunidade invadiu o terreno de Joatan que é vizinho da Imperial e também de Valmir pelo lado de Pirambu. Que tem uma propriedade no local, e residência também em Aracaju. Que nos dias em que não está na capital, está em sua propriedade. Que as casas que estão nas margens da rodovia foram construídas a partir de maio, depois da primeira enchente. Ivan Batista dos Santos – f. 1100/1101 que reside na cidade de Pirambu há 25 anos. (...) Que não sabe dizer como a comunidade se formou, pois quando chegou a Pirambu a comunidade já existia. Wilson da Cruz – f. 1216 (qualificação), gravado no DVD de f. 1220 Nasceu e criado em Pirambu. Possui 64 anos. A partir de 85 tem conhecimento do pessoal se instalando ali. Jailton Bispo Santos – f. 1210 (qualificação), gravado no DVD de f.

1220 Mora no Povoado Touro em Barra dos Coqueiros. Nasceu e foi criado ali. Tem 51 anos. A comunidade tem entre 20 e 30 anos. Alonso da Silva – f. 1103/1105 que nasceu no povoado de Porto Grande, no município de Barra dos Coqueiros. Que se mudou para Pirambu há 30 anos. Que quando se mudou foi para o Canal São Sebastião e depois é que foi para a cidade de Pirambu. Que conhecia os moradores que ficavam na ilha do rato, porque a sua pescaria era feita tanto no rio quanto no mar. Que quando chegou a Pirambu existiam poucos moradores na ilha do rato. Que conhece os moradores da ilha do rato como pescadores. Que só havia o proprietário da área chamado Valdemir, já falecido e que os terrenos eram cercados dos dois lados. Que só os proprietários tinham acesso. Que a filha de Valdemir se chama Maria 26 e que foi ela quem ficou com o terreno por ser filha única. (...) Que sabe que o antigo proprietário Valdemir freqüentava a área há uns 30 ou 35 anos. Que antes de Valdemir a área pertencia a João Queler.

Alonso da Silva – f. 1103/1105

26 Está se referindo a Maria da Anunciação Andrade Santos

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

XXIII

Que só havia o proprietário da área chamado Valdemir, já falecido e que os terrenos eram cercados dos dois lados. Que só os proprietários tinham acesso. Que a filha de Valdemir se chama Maria e que foi ela quem ficou com o terreno por ser filha única. (...) Que sabe que o antigo proprietário Valdemir freqüentava a área há uns 30 ou 35 anos. Que antes de Valdemir a área pertencia a João Queler. Que os moradores da comunidade passavam pelo terreno de Valdemir para pegar caju e o mesmo não se importava. Que no terreno onde a comunidade está atualmente instalada existe um cajueiro. Que o cajueiro fica do lado do poente, ou seja, do outro lado da pista. Erivaldo Morais dos Santos – f. 1165 (qualificação), gravado no DVD

de f. 1166 Há 30 anos mora em Pirambu. Tem uma terra em Capela onde passa a semana. Quando chegou a Pirambu, já existia a comunidade. Tinha muitas casas. Tinha casa de taipa, tijolo e de palha. Eles são pescadores. Manoel Paulino dos Santos Filho – f. 1208 (qualificação), gravado no

DVD de f. 1220 Que mora há 20 anos em Pirambu. (...) Que já tinha muita gente próxima ao rio. (...) Que naquele tempo não tinha ponte. (...) Que eles iam de canoa para Pirambu. (...) Que o pessoal da Ilha do Rato sobrevivia da pesca. (...) Que tinha uma estrada na beira do rio. (...) Que as casas eram de taipa, de palha de coqueiro. (...) Que antes era aberto, não havia nenhuma cerca. Adilson Rodrigues Lima – f. 1209 (qualificação), gravado no DVD de

f. 1220 Mora no Município de Barra dos Coqueiros, no povoado Touro há 45 anos. Nasci lá. O povoado Touro fica próximo 4 km da Ilha do Rato. O pessoal ficava na Ilha do Rato, na beira do Rio Japaratuba. Já tinha conhecimento que a comunidade morava na Ilha do Rato. Conhece a localidade da Ilha do Rato. Não sabe quanto tempo a ponte foi construída. A comunidade da Ilha do Rato tinha que atravessar de barco para ir ao Município de Pirambu. A comunidade da Ilha do Rato é de pescadores. Não tem conhecimento se plantavam ou criavam animais. Não tem conhecimento se o pessoal cavava cacimbas. Não viu o pessoal tirando água. Edivaldo Santos de Jesus – f. 1211 (qualificação), gravado no DVD de f.

1220 Mora no povoado Touro por toda a minha vida. Tenho 39 anos. Que mais ou menos a comunidade tem trinta anos. Depoimento pessoal de João Batista dos Santos prestado em

25.01.2011 – f. 1206 (qualificação), gravado no DVD de f. 1220 Tem 1 ano e pouco que se mudaram da beira do rio para frente da rodovia. Depoimento pessoal de Wilson de Andrade – f. 1207 (qualificação),

gravado no DVD de f. 1220 Tem uns 2 anos que saiu da beira do rio e foram para a frente da Rodovia.

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

XXIV

O depoimento de Maria da Anunciação Andrade Santos foi bastante esclarecedor. Embora procurasse transparecer que exercia a posse mansa e pacífica, contradizia em momento seguinte ao admitir que a comunidade utilizava a área, ainda que contra a sua vontade. Disse que aterrava as cacimbas feitas na sua terra e que, naquela época, eram simplesmente escavadas no solo.

Maria da Anunciação Andrade Santos (pessoa que cedeu a área para a Imperial) – f. 1097/1099

Sobre a utilização de cacimbas: Que as pessoas que residiam na beira da maré não pegavam água no terreno da depoente. Que havia cacimbas e tanques no terreno da depoente. Que os moradores da ilha do rato possuíam fontes próprias no terreno de Joatã. Que os moradores da ilha do rato pegavam palha de coqueiro e água, mas nunca construíram fontes no referido terreno. Que não pegavam água no terreno da depoente para lavar roupa e outras utilidades. (...) Que várias vezes chegou ao terreno e percebeu que novas cacimbas eram construídas, mas que eram aterradas pela depoente. Que não sabe dizer quem cavava essas cacimbas. Que as cacimbas que a depoente aterrava não possuíam manilhas e eram simplesmente escavadas no solo. (...) Que onde fica uma lagoa no terreno era um poço que foi cavado para armazenar água. Que alguns moradores da ilha do rato possuíam animais como gado e cavalo e que esses animais ás vezes iam beber água no terreno da depoente. Que as cercas não resistem por muito tempo. Sobre a utilização do mangue: Que a área de mangue que fica próxima ao Rio Japaratuba fica dentro do terreno da autora. Que o terreno de Joatã fica mais próximo à praia. Que os moradores da ilha do rato pegavam madeira e acredita que também pegavam crustáceos. Sobre a utilização da palha: Que os moradores da comunidade passavam por uma cerca e apanhavam palha no seu imóvel e no imóvel de outras pessoas.

Na inspeção judicial, arquivo “M2UU00616”, minutos 12:00 – 13:00, Maria da Anunciação Andrade Santos confessou que aterrava as cacimbas feitas na sua terra:

“vocês fizeram e eu fui aterrei porque vocês estavam instalados lá e a intenção era vir para aqui. Aterrei Não tinha necessidade porque a área era a mesma. Quando vinha cacimba, fechava. Quem fez a cacimba. Os moradores eram alojados na beira do rio.

Como a Ilha do Rato não era abastecida pela DESO, era necessário pegar de algum lugar. A comunidade ficava próximo do Rio Japaratuba já no

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

XXV

encontro com o mar, logo a água era salobra. Então, é evidente que precisava de água e o meio para obtê-la seria cavar cacimba. As cacimbas que este magistrado encontrou durante a inspeção estavam revestidas com manilhas, mas, antigamente (antes de utilizar as manilhas), as cacimbas eram simplesmente escavadas e, em seguida, fechavam naturalmente pela ação dos ventos, por isso passou a se utilizar de manilhas para que as mesmas não fechassem. Neste passo, esta é a razão porque este Juízo não encontrou qualquer cacimba antiga.

João Batista dos santos− f. 1206 (qualificação), gravado no DVD de f. 1220

O pessoal pegava água nas cacimbas. No início, cavava, ficava minando água e depois fechava. Depois, passou a utilizar manilha para durar mais tempo. Jailton Bispo A água era tirada de cacimba. Quando chegou lá, não havia costume de utilizar manilha. Fechava naturalmente. Alonso da Silva – f. 1103/1105 Que logo no início não existiam cacimbas nos terrenos, que estas somente começaram a existir de uns 10 anos para cá. Que as cacimbas eram feitas, mas o gado arrebentava tudo. Que as águas das cacimbas eram utilizadas para beber, lavar roupa. Que as cacimbas eram escavadas e com meio metro de profundidade já brotava água. (...). Que com o tempo as cacimbas secam e é necessário escavar outras em outros lugares. Que não sabe dizer quem fez as cacimbas com manilhas. Maria Soledade Silva – f. 1214 (qualificação), gravado no DVD de f. 1220 Que mora em Barra dos Coqueiros. (...) Que trabalhava na área da saúde como auxiliar de enfermagem, desde 89. (...) Que visitava de dois e dois em meses para vacinação. (...) Que desde dois 2000 não vai mais. (...) Que tinha casa de taipa e de palha de coqueiro. (...) Que conseguiam essas palhas lá nos sítios vizinhos. (...) Que não existia a ponte. Que faziam a travessia de barco. (...) Se fossem para Barra dos Coqueiros, saiam pelo sítio, estrada no meio do mato. (...) Que criavam galinhas próximas a casa deles. (...) Que não tinha e não tem até hoje água e luz. (...) Que faziam uns buracos no fundo da casa deles para a água. (...) Que quando chegou tinham muitas casas. (...) Que tiram caranguejos do lado de cá da ponte. (...) Que muitas vezes presenciou as lagoas que se formavam com as cheias. (...) Que não havia nenhuma cerca. (...) Que atrás das casas eles tiravam a água ou buscavam em Pirambu. Que via eles fazendo as redes, Que a água era retirada das cacimbas, que ficavam próximas das casas deles as tarrafas. (...) Que o acesso era livre da comunidade aos terrenos, que não tinha cerca... Wilson da Cruz – f. 1216 (qualificação), gravado no DVD de f. 1220 Tiravam caranguejo e siri no mangue. Inicialmente, as casas eram de palhas. A vegetação era mais densa. Não tem água, nem luz. Fazem cacimba para ter água. Próximo a mim onde possuía um chiqueiro, havia uma cacimba. Se cavar

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

XXVI

próximo do mague, a água sai com a cor de ferrugem. Se cavava com 1,0 m de profundidade, já brotava água. Esta estrada ligando Barra dos Coqueiro a Pirambu possui uns 7 anos. Antes da ponte, o acesso a Barra dos Coqueiros era pela praia. Tem pouco tempo que foram para a beira da pista. Pegavam as palhas dos coqueiros. Quando das cheias do inverno, formava lagoas, várzeas entre maio/junho e dava peixes. A sua comunidade ia para o local pescar peixes e lavar roupas. João Oliveira é pai de Joatã. A distância da beira do Rio para a frente da rodovia é de 3,0 Km. Este morro ficava a 1,0 Km dentro do terreno de Joatã.

Na época das cheias, formava lagoa nos terrenos dos fundos onde a comunidade quilombola aproveitava para pescar e também lavar roupa.

Ivan Batista dos Santos – f. 1100/1101 que quando chove há a formação de pequenas lagoas em toda a área no fundo das casas. Que presenciou a comunidade pescando e lavando roupa quando se formavam essas lagoas. Jailton Bispo Santos – f. 1210 (qualificação), gravado no DVD de f.

1220 Nas cheias do Rio Japaratuba, formavam lagoas e os moradores pescavam na área. Edivaldo Santos de Jesus – f. 1211 (qualificação), gravado no DVD de f.

1220 Na época das cheias, formavam lagoas e eles utilizavam para lavar roupa e efetuar pescaria. Wilson da Cruz – f. 1216 (qualificação), gravado no DVD de f. 1220 Quando das cheias do inverno, formava lagoas, várzeas entre maio/junho e dava peixes. A sua comunidade ia para o local pescar peixes e lavar roupas.

Igualmente, a questão da palha dos coqueiros. Antigamente, a posseira anterior explorava uma plantação de cocos e, como tal, só ficava aproveitava os frutos, sendo que a palha ficava jogada no terreno. Muitas casas utilizavam a palha de coqueiros e “A palha necessita ficar trocando de 2 em 2 anos”. Como a palha ficava espalhada dentro do terreno, era natural que os moradores da Ilha do Rato a catassem de lá, quando fosse necessário para cobrir suas casas. A autora argumentou que somente catavam com a autorização do antigo proprietário. Pouco importa se havia autorização ou não porque é fundamental demonstrar que tal material era explorado e fundamental para a manutenção de sua moradia.

Edélzio de Góis Feitosa – f. 336/337 Que as palhas que cobrem as casas da ilha do rato foram retiradas dos coqueiros da região. Que já retirou da propriedade do depoente e também da propriedade da Imperial. Que a comunidade cortam os coqueiros da região, utilizando a água dos cocos, que já cortaram coqueiros para servir como aterro de casa e construção de casas. Que já houve derrubada de coqueiros para a extração de água de coco e mel de abelha.

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

XXVII

Ivan Batista dos Santos – f. 1100/1102 Que os moradores conseguiam as palhas, provavelmente, nos sítios em volta da ilha do rato. Que já viu aves na comunidade que são criados soltos ou confinados. Que para os moradores chegarem até Pirambu tinham que atravessar o Rio de barco. Adilson Rodrigues Lima – f. 1209 (qualificação), gravado no DVD de

f. 1220 Trabalhou com o Valdemir, pai de Maria. Começou a trabalhar a partir dos 15 ou 16 anos. Trabalhou tirando coco. É necessário tirar as palhas. Muitas vezes Maria mandava passar o trator e muitas vezes gente pegava para fazer alguma coisa. Jailton Bispo Santos – f. 1210 (qualificação), gravado no DVD de f.

1220 Trabalhou ali tirando coco. A palha não tinha finalidade. Não tem conhecimento se o pessoal da Ilha do Rato fazia cacimba. Não sabe se a comunidade da Ilha do Rato tinha alguma desavença com os donos do imóvel. Os moradores da Ilha do Rato tinham que ir por Pirambu ou então pela praia. Trabalhou 15 anos na área por períodos curtos. Não via ninguém transitando pela área. D. Maria criava gado, ovelha. A palha ficava lá, o pessoal pedia e dava. (...) D. Maria dava palha quando pedia. Nunca viu cacimba na área. Joatã é outro morador da área. Nunca viu nenhuma plantação de coco. D. Maria dava palha quando pedia.

Próximo aos moradores da Ilha do Rato, existe um mangue, onde pode ser extraído madeira para construção e crustáceos (siris e caranguejos). Alguns dos depoentes negaram que utilizaram o mangue, contudo esta negativa não está de acordo com a realidade dos autos. Aparentemente, o IBAMA exerce uma fiscalização para que não seja retirada qualquer madeira no mangue, contudo não impede a retirada dos crustáceos que lá existem. A própria aparência do local dá a entender que o mangue se estendia até o litoral, contudo foi derrubado, provavelmente pela comunidade.

Edivaldo Santos de Jesus – f. 1211 (qualificação), gravado no DVD de f.

1220 Já trabalhou no terreno de Valdemir que depois foi de sua filha Maria. No ano, descascava coco 04 vezes, já que o coco dava 3 meses. Valdemir criava gado. Na época não havia pista e o gado era criado solto no pasto cercado. Via o pessoal transitando por dentro do terreno, pegando caranguejo no mangue. Já viu tirando palha de coco. Não sabe se cavava o terreno para tirar água. Ivan Batista dos Santos – f. 1100/1102 Que acredita que os moradores da Ilha do rato utilizavam o manguezal. Que já viu gente dentro do mangue. Alonso da Silva – f. 1103/1105

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

XXVIII

Que os moradores da ilha do rato não utilizavam o manguezal próximo da área, porque o IBAMA não deixa. Que a fiscalização do IBAMA na área é intensa. (...) Que no local existe caranguejo e siri que são pescados no rio e podem ser encontrados no mangue. Às perguntas do Procurador Federal da FCP, respondeu que: Que o IBAMA não impede que sejam pescados caranguejos e siris do mangue. Que a comunidade também pescava no manguezal. Que o IBAMA impede que seja retirada madeira do mangue.

Antes de haver a estrada que cortava o terreno no meio, os moradores se deslocavam para Barra dos Coqueiros por dentro dos terrenos. Depois que passou a existir a estrada, eles utilizavam uma estrada de Piçarra que foi vendida por Maria a Joatã. Outra questão é que antes da construção da rodovia e da ponte, a comunidade necessitava entrar por dentro do terreno para chegar na sede de Barra dos Coqueiros.

Erivaldo Morais dos Santos – f. 1165 (qualificação), gravado no DVD

de f. 1166 (...) Que quando chegou, a comunidade já existia. (...) Que nas terras ocupadas pela comunidade havia muitas casas de palha, de tijolo e de taipa. (...) Que para a comunidade chegar até Barra dos Coqueiros, ela utilizava uma estrada por dentro. (...) Que na área em que os quilombolas estavam não existia cerca. Manoel Paulino dos Santos Filho – f. 1208 (qualificação), gravado no

DVD de f. 1220 Que antes era aberto, não havia nenhuma cerca. Adilson Rodrigues Lima – f. 1209 (qualificação), gravado no DVD de

f. 1220 Se eles quisessem ir para o Touro, tinha uma estrada que só não estava acabada. A estrada ficava dentro dos terrenos e havia cerca

Embora a antiga posseira afirmasse que toda a área estivesse cercada, a prova dos autos orienta em sentido contrário, pois a mesma admitiu que os animais da Ilha do Rato invadiam o seu terreno para beber água e a cerca não durava muito tempo.

Maria da Anunciação Andrade Santos (pessoa que cedeu a área para a

Imperial) – f. 1097/1099 Que alguns moradores da ilha do rato possuíam animais como gado e cavalo e que esses animais ás vezes iam beber água no terreno da depoente. Que as cercas não resistem por muito tempo.

Os depoimentos pessoais dos representantes da comunidade quilombola bem demonstram o modo tradicional de utilização da terra e também a relação com antigo posseiro Valdemir, pai de Maria.

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

XXIX

Depoimento pessoal de João Batista dos Santos prestado em 25.01.2011 – f. 1206 (qualificação), gravado no DVD de f. 1220

Que mora em Barra dos Coqueiros há 15 anos. (...) Que naquela época já tinham muitas casas. (...) Que esse pessoal vive do pescado no rio e no mar. (...) Que as casas eram de palha. (...) Que em um ano ou dois anos precisam trocar essas palhas de coqueiros. (...) Que já fazia muitos que a comunidade estava lá, mais de dez anos. (...) Que quando chegou não tinha ponte, não tinha nada, atravessava de canoa. (...) Que o pessoal pegava água nas cacimbas. (...) Que faziam essas cacimbas perto das casas, cavavam. (...) Que quando chegou já tinha um campo de futebol ali. (...) Que já catou muitas vezes coco na área. (...) Que da Ilha do Rato para Barra dos Coqueiros vai pela estrada de areia para Barra dos Coqueiros. (...) Que as mulheres lavavam roupas nas lagoas que se formavam com as cheias. (...) Que a dificuldade seria bastante se a comunidade não tivesse acesso pelo terreno de trás.

Depoimento pessoal de Wilson de Andrade – f. 1207 (qualificação), gravado no DVD de f. 1220

Chegou com 25 anos e hoje está com 64 anos. Morou no Canal São Sebastião, em Barra dos Coqueiros. Quando chegou, já havia 3 ou 4 pessoas. Estas pessoas eram da minha cor. Inicialmente, sua casa era de palha e depois fez uma construção. Tira palha de todo canto. Atravessava de canoa. Tirava caranguejo e pescar camarão. Pegava no mangue. Não tem água, nem energia. A água era tirada de cacimba. Quando chegou lá, não havia costume de utilizar manilha. Fechava naturalmente. Trabalhei com o Valdemir. Tinha um viveiro de peixe. Tinha problema porque Valdemir não queria que cavasse cacimba. As terras eram deles e não achava certo. Quando saía, a gente abria o buraco e, quando ele via, ele aterrava. Só usava para pegar água. Depois de Valdemir, quem ficou com as áreas foi Maria. Quando morava na beira do rio, havia uma estrada na beira do mangue para sair. Tem uns 2 anos que saiu da beira do rio e foram para a frente da Rodovia. Lá ninguém comprava palha e pedia o dono que dava. O terreno de Joatã fica próximo do de Dona Maria. Havia uma plantação de macaxeira próximo aos cercadinhos de casa. Valdemir explorava gado e tirava côco. Quando chovia, formava lagoa. A comunidade pescava e lavava roupa nestas lagoas. A comunidade não poderia ficar no local sem cavar as cacimbas.

Então, conforme se verifica havia sim a utilização da área para o atendimento de suas necessidade básica, devendo integrar a propriedade para fins de proteção possessória. Ressalte-se que o território dos remanescentes da comunidade quilombola não se restringe ao local onde edificam as suas residências, mas é composto pelo espaço onde mora e reproduz o seu modo de viver. Tais comunidades não são estanques, podendo-se movimentar dentro do seu território, conforme juízo de conveniência.

Em petição de f. 859/860, o MPF:, após juntar relatório de diligência (f. 861/866), alegou que a autora estava descumprindo a liminar deferida pelo TRF da 5ª Região (f. 619/621), uma vez que “construiu uma cerca em volta das casas da comunidade quilombola, no intuito de dificultar o acesso às cacimbas, à estrada onde as crianças

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

XXX

são recolhidas pelo ônibus escolar e de modo a isolar os dois grupos de quilombolas que compõe a comunidade, ou seja, o que está na beira da pista daquele que está à beira do rio”.

De fato, a cerca construída está dividindo o terreno e isolando a comunidade, contudo o pedido não pode ser conhecido na presente demanda.

Com efeito, dispõe o art. 922, do CPC: Art. 922. É lícito ao réu, na contestação, alegando que foi o ofendido em sua posse, demandar a proteção possessória e a indenização pelos prejuízos resultantes da turbação ou do esbulho cometido pelo autor.

Acerca do tema, transcrevo o texto doutrinário abaixo 27: “A estrutura tradicional da ação de conhecimento faz com que o autor, responsável pela propositura da demanda, realize pedido em face do réu que, ao se defender – por meio da contestação – não faz propriamente um pedido para obtenção de qualquer bem da vida, limitando-se a “pedir” a improcedência da ação. Enquanto o autor formula pedido de caráter material (obter a condenação a pagar, a entregar determinada coisa, declarar a existência de uma relação jurídica, desconstituir um negócio jurídico, etc.), buscando uma modificação no mundo empírico, o “pedido” do réu na contestação é a manutenção do status quo por meio da improcedência do pedido formulado na petição inicial. É possível até mesmo dizer que o autor realiza o pedido de forma completa, tanto em seu aspecto processual (pedido imediato) como no aspecto material (pedido mediato). Já o réu, por sua vez, também realiza “pedido” em sua contestação, mas um pedido incompleto, tão somente no aspecto imediato, já que em sua defesa sempre demandará a prolação de uma sentença declaratória negativa, o que irá ocorrer se comprovar que o autor não tem os requisitos mínimos para exercer o direito de ação ou ainda quando demonstrar não existir o direito alegado. Não seria incorreto, portanto, ao menos como regra geral, afirmar que o réu não faz pedido mediato em sua contestação. Por vezes, entretanto, a própria lei ou ainda a natureza da ação, permite ao réu a formulação de pedido em face do autor não estritamente em sentido processual, mas objetivando também a obtenção de um bem da vida (que tanto pode ser o próprio objeto do pedido do autor como outro qualquer). Tal admissibilidade de verdadeira inversão dos pólos da demanda pode se verificar nos três fenômenos objeto de nossas preocupações; reconvenção, pedido contraposto e ações dúplices. Apesar de pertencerem ao mesmo gênero – contra- ataque do réu – são espécies diferentes, embora a doutrina não tenha se preocupado firmemente com a definição da natureza jurídica de cada um deles e por conseqüência com sua diferenciação.28

27 Neves, Daniel Amorim Assumpção Neves. Contra-Ataque do Réu: Indevida Confusão entre as Diferentes Espécies. Disponível em: <http://www.professoramorim.com.br/amorim/texto.asp?id=376>. Acesso em: 17 dez. 2010. 28 Tal constatação já havia sido feita por JOEL DIAS FIGUEIRA JR., O novo procedimento sumário, São Paulo, RT, 1996, p. 208, nota 57.

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

XXXI

(...) O art. 922 assim prescreve: “É lícito ao réu, na contestação, alegando que foi o ofendido em sua posse, demandar a proteção possessória e a indenização pelos prejuízos resultantes da turbação ou do esbulho cometido pelo autor”. Para alguns doutrinadores, como afirmado acima, tal característica é suficiente para atribuir aos interditos possessórios a natureza de ação dúplice.29 Para tais autores, a possibilidade aberta ao réu de se tornar também autor sem necessidade de ação autônoma seria o suficiente para tornar a ação dúplice; ou seja, bastaria a desnecessidade de reconvenção para o réu formular pedido em face do autor para que a ação se tornasse de natureza dúplice. Não concordamos com tal ponto de vista, já que em nosso entendimento nas ações dúplices a posição de ataque do réu não advém de permissão processual para tanto, e sim da própria natureza do direito material discutido. Dessa forma, ainda que rotineiramente se atribua aos interditos possessórios a natureza dúplice, não nos parece que a natureza jurídica da relação de direito material possessória leve inexoravelmente a tal conclusão. A previsão do art. 922 do CPC, bem como do art. 278, § 1º, ao permitir que o réu faça pedido em face do autor na própria contestação, não está criando ações dúplices – e nem poderia uma regra processual faze-lo – e sim criando especialidades procedimentais para a elaboração de pedido de caráter reconvencional. Entender essa opção do legislador como uma tentativa de criação de ações dúplices é distorcer a própria natureza jurídica da relação de direito material debatida no processo, o que a toda evidência, é manifestamente inviável. Nesse sentido já havia se manifestado Ovídio A. Baptista da Silva, ao ressaltar ser “importante observar que a ação possessória não é, como a verdadeira ação dúplice, demanda que dispense o pedido de proteção possessória e o subseqüente pedido indenizatório, quando o demandado pretenda obtê-los.”30 Aponta corretamente para a faculdade do réu de elaborar tal pedido, sem o que o juiz não poderá concede-lo, sob pena de afronta ao princípio da inércia da jurisdição. A mesma percepção teve Adroaldo Furtado Fabrício, quando afirma de maneira absolutamente certa que de “reconvenção se trata, como quer que seja, com todas as notas características desta, exceto as formais. Em vez de oferecida em peça separada, com distribuição, registro, pagamentos de taxas e emolumentos etc., a contra-ação é manifestada no corpo mesmo da contestação, sem formalidades outras”. E conclui de forma bastante clara e correta: “Importante é observar que – ao reverso do que ocorre nas verdadeiras ações dúplices – a lei não dispensa o pedido, liberando-o, si, e somente, de forma especial e de tramitação igualmente específica.”31 Os interditos possessórios (bem como os processos que seguem o rito sumário

29 Nesse sentido as lições de ANTONIO CARLOS MARCATO, Procedimentos especiais, 8ª ed., São Paulo, Malheiros, p. 118, JOEL DIAS FIGUEIRA JR. Liminares nas ações possessórias, 2ª ed., São Paulo, RT, 1999, p. 310 e KAZUO WATANABE, “Ação dúplice”, in Revista de Processo n. 31, pp.138-143, inclusive trazendo informações que assim já era desde os estudos dos romanistas. ARAKEN DE ASSIS, Procedimento sumário, op. cit., p. 93, entra em contradição ao afirmar que a possessória é dúplice, já “que o réu poderá demandar na contestação “a proteção possessória”. 30 Cfr. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 13, São Paulo, RT, 2000, p. 215. Afirma que a mesma técnica foi utilizada no procedimento sumário e na Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95). 31 Cfr. Comentários ao Código de Processo Civil, op. cit., p. 416.

Processo nº 0003734-76.2009.4.05.8500

XXXII

e sumaríssimo) encontram-se em posição bastante diversa daquelas ações dúplices genuínas, como a ação de prestação de contas e de divisão ou demarcação. Nesses casos, é a própria sentença de improcedência que entrega ao réu o bem da vida, sem que em sua defesa ele tenha que expressamente ter requerido tal prestação jurisdicional. Assim não ocorre como nas ações cujo procedimento permite pedido de caráter reconvencional na própria contestação, onde o juiz em sua sentença deve julgar improcedente o pedido do autor e procedente o pedido do réu, sem o que não se pode falar em entrega da prestação jurisdicional32. Nas verdadeiras ações dúplices, o julgamento é tão somente de improcedência, já que pedido existe exclusivamente por parte do autor, mas em razão da natureza jurídica da relação de direito material, tal improcedência é suficiente para o acolhimento de um implícito pedido mediato do réu.

Nos termos do dispositivo legal e ensinamento supracitados, a ação possessória admite pedido contraposto, no bojo da contestação, desde que haja requerimento expresso. In casu, na contestação da ré, limitou-se a requerer “a total improcedência dos pedidos formulados pela parte autora, rechaçando a reintegração da posse pleiteada na inicial, dados os fundamentos acima apresentados”. Desta maneira, não é possível atender ao requerimento ministerial, sob pena de proferir sentença ultra petita. Nada impede que a Comunidade Quilombola ou qualquer outro interessado avie o pedido de demolição da cerca em demanda própria.

3. DISPOSITIVO

Diante do exposto, julgo improcedente o pedido com resolução de

mérito (art. 269, I do CPC).

Condeno a parte autora ao pagamento de custas e honorários advocatícios, estes fixados no valor de R$ 1.000,00 (mil reais), nos termos do art. 20, §4º, do CPC. Tais valores serão corrigidos de acordo com o Manual de Cálculos da Justiça Federal vigente por ocasião da execução dos valores. .

Sentença não sujeita ao reexame necessário (art. 475, I do CPC).

Publicar. Registrar. Intimar.

Aracaju, 31 de janeiro de 2012.

Fábio Cordeiro de Lima

Juiz Federal Substituto da 1ª Vara/SE

32 ARAKEN DE ASSIS, Procedimento sumário, op. cit., p. 95, observa o fenômeno no sentido inverso, afirmando que se houver o pedido expresso – que o autor considera imprescindível – o juiz está obrigado a expressamente decidi-lo na sentença, sob pena de proferir decisão infra petita.