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Auto Feira Gil Vicente da SENTIDOS 10 PORTUGUÊS ANA CATARINO CÉLIA FONSECA ISABEL CASTIAJO MARIA JOSÉ PEIXOTO OFERTA

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Auto FeiraGil Vicente

da

SENTIDOS 10

PORTUGUÊSANA CATARINO CÉLIA FONSECA ISABEL CASTIAJO MARIA JOSÉ PEIXOTO

OFERTA

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A u t o d a F e i ra

1

G i l V i c e n t e

Auto da Feira

Figuras: Mercúrio1, Tempo, Serafim, Diabo, Roma2, Amâncio Vaz, Denis Lourenço, Branca Anes, Marta Dias, Tesaura, Juliana, Dorotea, Móneca, Gilberto, Nabor, Mateus, Justina, Vicente, Leonarda, Merenciana, Teodora e Giralda.

Entra primeiramente Mercúrio, e posto em seu assento, diz:

Mer. Pera que me conheçais, e entendais meus partidos, todos quantos aqui estais afinai bem os sentidos, 5 mais que nunca, muito mais. Eu sou estrela do céo, e despois vos direi qual, e quem me cá descendeo, e a quê, e todo o al3

10 que me a mi aconteceo.

E porque a estronomia4

anda agora mui maneira, mal sabida e lisonjeira, eu, à honra deste dia, 15 vos direi a verdadeira. Muitos presumem saber as operações dos céos, e que morte hão-de morrer, e o que há-de acontecer 20 aos anjos e a Deos, 1 nas suas palavras é “estrela do céo” e “Deos das mercadorias”; será também o organizador da Feira; 2 primeira cliente da Feira, personagem alegórica; 3 tudo o que; o resto; 4 astronomia;

5 Francisco de Melo, matemático e astrólogo muito conceituado, mestre dos filhos de D. Manuel; 6 sabe muito sobre ciência

e ao mundo e ao diabo. E que o sabem têm por fé. E eles todos em cabo terão um cão polo rabo, 25 e não sabem cujo é. E cada um sabe o que monta nas estrelas que olhou; e ao moço que mandou, não lhe sabe tomar conta 30 d’um vintém que lh’entregou.

Porém quero-vos pregar, sem mentiras nem cautelas, o que per curso d’estrelas se poderá adivinhar, 35 pois no céo nasci com elas. E se Francisco de Melo5, que sabe ciência avondo6, diz que o céo é redondo, e o sol sobre amarelo, 40 diz verdade, não lh’o escondo.

FIXAÇÃO DE TEXTO

António José Saraiva, (apresentação e leitura) Teatro Gil Vicente, Lisboa, Dinalivro, ed. revista, 1988, pp. 265-299.

NOTAS

António José Saraiva, Teatro de Gil Vicente, Lisboa, Manuscrito Editores, 1984.

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7 todas; 8 Saturno é, segundo a mitologia greco-latina, o Tempo, pai de todos os deuses e homens: e, simultaneamente, o nome de um astro; 9 na medida em que isso depende da sua própria vontade; 10 talvez deva ler-se “minguam-lhes”; diminuem-lhes; 11 Joannes Monteregio, célebre astrónomo alemão; 12 Marte (forma latina); 13 despacho (de um requerimento ou pretensão oficial); 14 Touro, Carneiro (Aries em latim), Bode (Capricórnio), Pescado (Piscis, Peixes), Caranguejo (Cancer em latim) são nomes de signos do Zodíaco. O Autor toma-os comicamente como nomes de carnes e peixes para alimentação. Libra, também nome de um signo, significa em latim Balança, mas está tomado no sentido de dinheiro. As duas estrofes aludem à carestia da vida

Que se o céo fora quadrado, não fora redondo, senhor. E se o sol fora azulado, d’azul fora a sua cor, 45 e não fora assi dourado. E porque está governado per seus cursos naturais, neste mundo onde morais nenhum homem aleijado, 50 se for manco e corcovado, não corre por isso mais.

E assi os corpos celestes vos trazem tão compassados, que todos quantos nacestes, 55 se nacestes e crecestes, primeiro fostes gerados. E que fazem os poderes dos sinos resplandecentes? Fazem que todalas7 gentes 60 ou são homens ou mulheres ou crianças inocentes.

E porque Saturno8 a nenhum influi vida contina, a morte de cada um 65 é aquela de que se fina, e não d’outro mal nenhum. Outrossi o terremoto, que às vezes causa perigo, faz fazer ao morto voto 70 de não bulir mais consigo, cantá de seu próprio moto9.

E a claridade encendida dos raios piramidais causa sempre nesta vida 75 que quando a vista é perdida, os olhos são por demais. E que mais quereis saber, desses temporais e disso, senão que, se quer chover, 80 está o céo pera isso, e a terra pera a receber? A lua tem este jeito: vê que clérigos e frades já não têm ao Céo respeito, 85 mingua-lhes10 as santidades, e crece-lhes o proveito.

Et quantum ad stella Mars, speculum belli, et Venus, Regina musicae, secundum Joannes Monteregio11:

Mars12, planeta dos soldados, faz nas guerras conteúdas, em que os reis são ocupados, 90 que morrem de homens barbados mais que mulheres barbudas. E quando Vénus declina, e retrograda em seu cargo, não se paga o desembargo13 95 no dia que s’ele assina, mas antes per tempo largo.

Et quantum ad Taurus et Aries, Cancer, Capricornius positus in firmamento coeli:

E quanto ao Touro e Carneiro, são tão maus d’haver agora, que quando os põe no madeiro, 100 chama o povo ao carniceiro «senhor», c’os barretes fora. Despois do povo agravado, que já mais fazer não pode, invoca o sino do Bode, 105 Capricórnio chamado, porque Libra não lhe acode14.

E se este não hás tomado, nem touro, carneiro assi, vai-te ao sino do pescado, 110 chamado Piscis em latim, e serás remediado. E se piscis não tem ensejo, porque pode não no haver, vai-te ao sino do Cranguejo, 115 Signum Cancer, Ribatejo, que está ali a quem no quer.

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Sequuntur mirabilia Jupiter, Rex regum, dominus dominantium.

Júpiter, rei das estrelas, deos das pedras preciosas, mui mais precioso qu’elas, 120 pintor de todalas rosas, rosa mais fermosa delas; é tão alto seu reinado, influência e senhoria, que faz per curso ordenado 125 que tanto val um cruzado de noite como de dia.

E faz que ũa nao veleira mui forte, muito segura, que inda que o mar não queira, 130 e seja de cedro a madeira, não preste sem pregadura.

Et quantum ad duodecim domus Zodiacus, sequitur declaratio operationem suam.

No Zodíaco acharão doze moradas palhaças, onde os sinos estão

135 no inverno e no verão, dando a Deos infindas graças. Escutai bem, não durmais, sabereis per conjeituras15

que os corpos celestiais 140 não são menos nem são mais que suas mesmas granduras.

E os que se desvelaram, se das estrelas souberam, foi que a estrela que olharam,

145 está onde a puseram, e faz o que lhe mandaram. E cuidam que Ursa maior, Ursa minor e o Dragão, e Lepus, que tem paixão, 150 porque um corregedor manda enforcar um ladrão?

Não, porque as constelações não alcançam mais poderes, que fazer que os ladrões 155 sejam filhos de mulheres, e os mesmos pais varões. E aqui quero acabar. E pois vos disse até ’qui o que se pode alcançar, 160 quero-vos dizer de mi, e o que venho buscar.

Eu são Mercúrio, senhor de muitas sabedorias, e das moedas reitor, 165 e deos das mercadorias: nestas tenho meu vigor. Todos tratos e contratos, valias, preços, avenças, carestias e baratos, 170 ministro suas pretenças, até as compras dos sapatos.

E porquanto nunca vi na corte de Portugal feira em dia de Natal, 175 ordeno ũa feira aqui pera todos em geral. Faço mercador-mor ao Tempo, que aqui vem, e assi o hei por bem. 180 E não falte comprador, porque o Tempo tudo tem.

15 conjeturas

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Entra o Tempo, e arma ũa tenda com muitas cousas, e diz:

Tem. Em nome daquele que rege nas praças d’Anvers e Medina16 as feiras que têm, começa-se a feira chamada das Graças, 185 à honra da Virgem parida em Belém17. Quem quiser feirar, venha trocar, qu’eu não hei-de vender18. Todas virtudes qu’houverem mister19, nesta minha tenda as podem achar, 190 a troco de cousas que hão-de trazer.

Todos remédios especialmente contra fortunas ou adversidades aqui se vendem na tenda presente, conselhos maduros de sãs calidades20. 195 Aqui se acharão a mercadoria d’amor e rezão, justiça e verdade, a paz desejada21, porque a Cristandade é toda gastada só em serviço da openião.

200 Aqui achareis o temor de Deos, que é já perdido em todos estados; aqui achareis as chaves dos Céos, muito bem guarnecidas em cordões dourados. E mais achareis 205 soma de contas, todas de contar quão poucas e poucos haveis de lograr22

as feiras mundanas; e mais contareis as contas sem conto qu’estão por contar.

E porque as virtudes, senhor Deos, que digo, 210 se foram perdendo de dias em dias, com a vontade que deste ò23 Messias memoria24 o teu anjo que ande comigo, Senhor, porque temo ser esta feira de maos compradores, 215 porque agora os mais sabedores fazem as compras na feira do Demo, e os mesmos diabos são seus corretores.

16 em Anvers (Antuérpia) e Medina del Campo realizavam-se duas das mais importantes feiras da Europa; 17 que pariu em Belém; 18 como se verá na continuação, trata-se de uma feira de trocas e não de compras a dinheiro; 19 de que precisarem; 20 qualidades; espécies; 21 a Europa era, nesta época, assolada pelas guerras entre Carlos V e Francisco I de França. Em maio de 1527, Roma foi tomada e saqueada pelas tropas de Carlos V. Havia ainda a dissidência pro-testante; 22 ter proveito; 23 ao; 24 forma do verbo memoriar; lembrar

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Entra um Serafim enviado por Deos a petição do Tempo, e diz:

Ser. À feira, à feira, igrejas, mosteiros, pastores das almas, Papas adormidos! 220 Comprai aqui panos, mudai os vestidos, buscai as çamarras dos outros primeiros, os antecessores. Feirai o carão25 que trazeis dourado, ó presidentes do Crucificado! 225 Lembrai-vos da vida dos santos pastores do tempo passado.

Ó Príncipes altos, império facundo26, guardai-vos da ira do Senhor dos Céos! Comprai grande soma do temor de Deos 230 na feira da Virgem, Senhora do mundo, exemplo da paz, pastora dos anjos, luz das estrelas. À feira da Virgem, donas e donzelas, porque este mercador sabei que aqui traz 235 as cousas mais belas!

Entra um Diabo com ũa tendinha diante de si, como bofolinheiro27, e diz:

Dia. Eu bem me posso gavar28, e cada vez que quiser, que na feira onde eu entrar sempre tenho que vender , 240 e acho quem me comprar. E mais vendo muito bem, porque sei bem o que entendo; e de tudo quanto vendo não pago sisa a ninguém 245 por tratos que ande fazendo.

Quero-me fazer à vela nesta santa feira nova. Verei os que vêm a ela, e mais verei quem m’estrova29

250 de ser eu o maior dela. Tem. És tu também mercador, que a tal feira t’ofereces? Dia. Eu não sei se me conheces?… Tem. Falando com salvanor30, 255 tu diabo me pareces.

Dia. Falando com salvos rabos31, inda que me tens por vil, acharás homens cem mil honrados, que são diabos, 260 que eu não tenho nem ceitil32. E bem honrados, te digo, e homens de muita renda, que tem dívedo33 comigo. Pois não me tolhas a venda, 265 que não hei nada contigo.

25 semblante; 26 eloquente. A palavra parece ter, por vezes, em Gil Vicente, um significado meramente encarecedor e nobilitante, pró-ximo de grande, poderoso; 27 vendedor ambulante de bugigangas; 28 gabar; 29 estorva; 30 com licença. A palavra passou a designar também uma parte do corpo, o traseiro, cujo nome se evitava pro-nunciar em certas circunstâncias; 31 é uma paródia da expressão salvanor; 32 moeda, fração do real. “Não ter alguém em dois ceitis” é achar que alguém não presta para nada; 33 “ter dívedo com al-guém”: ser parente ou muito relacionado com alguém

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Tempo (ao Serafim):

Tem. Senhor, em toda maneira acudi a este ladrão, que há-de danar a feira. Dia. Ladrão? Pois haj’eu perdão, 270 se vos meter em canseira! Olhai cá, anjo de bem: eu, como cousa perdida, nunca me tolhe ninguém que não ganhe minha vida, 275 como quem vida não tem.

Vendo dessa marmelada, e às vezes grãos torrados. Isto não releva nada; e em todolos mercados 280 entra a minha quintalada34. Ser. Muito bem sabemos nós que vendes tu cousas vis… Dia. I35 há de homens ruins mais mil vezes que não bôs36, 285 como vós mui bem sentis.

E estes hão-de comprar disto que trago a vender, que são artes de enganar, e cousas pera esquecer 290 o que deviam lembrar. Que o sages37 mercador há-de levar ao mercado o que lhe compram milhor; porque a ruim comprador 295 levar-lhe ruim borcado38.

E mais as boas pessoas são todas pobres a eito; e eu por este respeito nunca trato em cousas boas, 300 porque não trazem proveito. Toda a glória de viver das gentes é ter dinheiro, e quem muito quiser ter cumpre-lhe de ser primeiro 305 o mais ruim que puder.

E pois são desta maneira. os contratos dos mortais, não me lanceis vós da feira onde eu hei-de vender mais 310 que todos, à derradeira.

Ser. Venderás muito perigo, que tens nas trevas escuras. Dia. Eu vendo prefumaduras39, que, pondo-as no embigo40, 315 se salvam as criaturas.

Às vezes vendo virotes41, e trago d’Andaluzia naipes com que os sacerdotes arreneguem cada dia, 320 e joguem até os pelotes42. Ser. Não venderás tu aqui isso, que esta feira é dos céos: vai lá vender ao abisso43, logo, da parte de Deos. 325 Dia. Senhor, apelo eu disso!

Se eu fosse tão mao rapaz, que fizesse força a alguém, era isso muito bem; mas cada um veja o que faz, 330 porque eu não forço ninguém. Se me vem comprar qualquer clérigo, ou leigo, ou frade falsas manhas de viver, muito por sua vontade, 335 senhor, que lhe hei-de fazer?

E se o que quer bispar44

há mister45 hipocresia, e com ela quer caçar, tendo eu tanta em perfia, 340 porque lh’a hei-de negar? E se ũa doce freira vem à feira por comprar um inguento46, com que voe do convento, 345 senhor, inda que eu não queira lhe hei-de dar aviamento47.

Mer. Alto, Tempo! aparelhar48, porque Roma vem à feira. Dia. Quero-me eu concertar, 350 porque lhe sei a maneira de seu vender e comprar…

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Entra Roma, cantando:

Rom. Sobre mi armavam guerra; ver quero eu quem a mi leva. Três amigos que eu havia, 355 sobre mi armam prefia49; ver quero eu quem a mi leva50.

Fala

Vejamos se nesta feira, que Mercúrio aqui faz, acharei a vender paz, 360 que me livre da canseira em que a fortuna me traz. Se os meus me desbaratam, o meu socorro onde está? Se os Cristãos mesmos me matam, 365 a vida quem m’a dará, que todos me desacatam?

Pois s’eu aqui não achar a paz firme e de verdade na santa feira a comprar, 370 cant’a mi dá-me a vontade que mourisco hei-de falar51.

34 parte numa mercadoria (dava-se este nome à parte da pimenta que certos particulares podiam carregar por conta própria nas naus da Índia)

35 aí36 bons37 sensato; prudente38 brocado; também se emprega no sentido geral de pano39 perfumes40 umbigo41 seta curta42 certa peça de vestuário; “vender até o pelote” é equivalente a

“vender até a camisa”43 abismo; inferno44 ser bispo (em Gil Vicente, tem uma intenção satírica)45 precisa46 unguento47 arranjo de vida48 preparar49 porfia; teimosia50 a cantiga alude às lutas dos príncipes cristãos pela posse

de Roma e os “três amigos” são provavelmente o rei de França, Carlos V, e a fação do Papa, de cujas guerras resultou o saque de Roma

51 os turcos ameaçavam gravemente a Europa e Roma mostra-se receosa de ainda vir a ser ocupada pelos muçulmanos

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Dia. Senhora, se vos prouver, eu vos darei bom recado… Rom. Não pareces tu azado 375 pera trazer a vender o que eu trago no cuidado.

Dia. Não julgueis vós pola cor, porque em al52 vai o engano; ca53 dizem que sob mao pano 380 está o bom bebedor: nem vós digais mal do ano.

Rom. Eu venho à feira dereita comprar Paz, Verdade e Fé. Dia. A verdade pera quê? 385 Cousa que não aproveita, e avorrece, pera que é? Não trazeis bôs fundamentos pera o que haveis mister54; e a segundo são os tempos, 390 assi hão-de ser os tentos, pera saberdes viver.

E pois agora à Verdade chamam Maria Peçonha, e parvoíce à vergonha, 395 e aviso à ruindade, peitai55 a quem vo-la ponha, a ruindade, digo eu. E aconselho-vos mui bem, porque quem bondade tem 400 nunca o mundo será seu, e mil canseiras lhe vêm.

Vender-vos-ei nesta feira mentiras vinta três mil, todas de nova maneira, 405 cada ũa tão sutil56, que não vivais em canseira: mentiras pera senhores, mentiras pera senhoras, mentiras pera os amores, 410 mentiras que a todas horas vos naçam57 delas favores.

E como formos avindos58

nos preços disto que digo, vender-vos-ei como amigo 415 muitos enganos infindos, que aqui trago comigo.

Rom. Tudo isso tu vendias, e tudo isso feirei, tanto que inda venderei, 420 e outras sujas mercancias59, que por meu mal te comprei.

Porque a troco do amor de Deos, te comprei mentira, e a troco do temor 425 que tinha da sua ira, me deste o seu desamor. E a troco da fama minha e santas prosperidades, me deste mil torpidades60. 430 E quantas virtudes tinha te troquei polas maldades.

E pois já sei o teu jeito, quero ir ver que vai cá. Dia. As cousas que vendem lá 435 são de bem pouco proveito a quem quer que as comprará…

Vai-se Roma ao Tempo e Mercúrio, e diz:

Rom. Tão honrados mercadores não podem leixar61 de ter cousas de grandes primores62; 440 e quanto eu houver mister deveis vós de ter, senhores. Ser. Sinal é de boa feira virem a ela as donas tais; e pois vós sois a primeira, 445 queremos ver que feirais segundo vossa maneira.

Ca63, se vós a paz quereis, senhora, sereis servida, e logo a levareis 450 a troco de santa vida. Mas não sei se a trazeis… Porque, Senhora, eu me fundo que quem tem guerra com Deos, não pode ter paz c’o mundo; 455 porque tudo vem dos céos, daquele poder profundo.

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Rom. A troco das estações não fareis algum partido, e a troco de perdões, 460 que é tesouro concedido pera quaisquer remissões? Oh! vendei-me a paz dos céos, pois tenho o poder na terra! Ser. Senhora, a quem Deos dá guerra, 465 grande guerra faz a Deos, que é certo que Deos não erra.

Vede vós que Lhe fazeis, vede como O estimais, vede bem se O temeis… 470 Atentai com quem lutais, que temo que caireis. Rom. Assi que a paz não se dá a troco de jubileus64? Mer. Ó Roma, sempre vi lá 475 que matas pecados cá, e leixas viver os teus.

Tu não te corras de mi: mas com teu poder facundo65

assolves a todo o mundo, 480 e não te lembras de ti, nem vês que te vás ao fundo. Rom. Ó Mercúrio, valei-me ora, que vejo maos aparelhos66! Mer. Dá-lhe, Tempo, a essa Senhora 485 o cofre dos meos conselhos: e podes-te ir muito embora.

Um espelho i67 acharás, que foi da Virgem sagrada. Co’ele te toucarás, 490 porque vives mal toucada, e não sintes como estás: e acharás a maneira como emendes a vida. E não digas mal da feira, 495 porque tu serás perdida, se não mudas a carreira.

Não culpes aos reis do mundo, que tudo te vem de cima, polo que fazes cá em fundo68: 500 que, ofendendo a causa prima69, se resulta o mal segundo. E também o digo a vós, e a qualquer meu amigo, que não quer guerra consigo: 505 tenha sempre paz com Deos, e não temerá perigo. Dia. Prepósito, Frei Sueiro, diz lá o exempro velho: «dá-me tu a mi dinheiro, 510 e dá ao demo70 o conselho».

52 tudo o que; o resto; 53 porque; 54 não vindes bem orientada para alcançar o que vos faz falta; 55 forma do verbo peitar: pagar; su-bornar; 56 subtil; esperta; 57 nasçam; 58 estar de acordo; 59 mer-cadorias; 60 torpeza; ação vergonhosa; desonra (plural); 61 deixar; 62 perfeições. Aplica-se especialmente a ditos espirituosos e galantes; 63 porque; 64 nesta fala, Roma alude à questão da remissão de pe-nas do Purgatório mediante certas cerimónias, como as visitas às igrejas (estações) ou a Roma (jubileus) em certas datas, ou median-te dádivas em dinheiro ou ainda mediante penitências. Por estas formas, alcançam-se os perdões ou indulgências, que constituíam para Roma uma importante fonte de benefícios; 65 eloquente. A palavra parece ter, por vezes, em Gil Vicente, um significado me-ramente encarecedor e nobilitante, próximo de grande, poderoso; 66 preparos; prenúncios; 67 aí; 68 nestes versos apresenta-se a tese de Carlos V: a guerra não é dos reis, mas sim dos abusos de Roma; 69 Deus; 70 Diabo

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Depois de ida Roma, entram dous lavradores, um per nome Amâncio Vaz, e outro Denis Lou-renço, e diz:

Ama. Compadre, vás tu à feira? Den. À feira, compadre. Ama. Assi, ora vamos eu e ti ò longo desta ribeira. 515 Den. Bofá71, vamos. Ama. Folgo72 bem de te vir aqui achar! Den. Vás tu lá buscar alguém, ou esperas de comprar?

Ama. Isso te quero contar, 520 e iremos patorneando73, e er também aguardando polas moças do lugar. Compadre, enha74 mulher é muito destemperada, 525 e agora, se Deos quiser, faço conta de a vender, e dá-la-ei por quase nada.

Qu’eu quando casei com ela diziam-me: – étega75 é; 530 e eu cuidei pola abofé que mais cedo morresse ela, e ela anda inda em pé. E porque era étega assim foi o que m’a mim danou76: 535 avonda77 qu’ela engordou e fez-me étego a mim.

Den. Tens boa mulher de teu! Não sei que tu hás, amigo… Ama. S’ela casara contigo, 540 renegaras tu com’eu, e dixeras o que eu digo. Den. Pois, compadre, cant’à minha, é tão mole e desatada, que nunca dá peneirada78, 545 que não derrame a farinha.

E não põe cousa a guardar, que a tope quando a cata; e por mais que homem se mata, de birra não quer falar. 550 Trás d’ũa pulga andará três dias, e oito, e dez, sem lhe lembrar o que fez, nem tão-pouco o que fará,

Pera que t’hei de falar? 555 Quando ontem cheguei do mato pôs ũa enguia a assar, e crua a leixou levar, por não dizer sape a um gato. Quant’a mansa, mansa é ela: 560 dei-me logo conta disso!

71 exclamação: boa-fé; também pode significar em verdade. O verso significa “vamos, então!”; 72 alegro-me; 73 cavaqueando; 74 minha (linguagem rústica); 75 héctica: atingida por uma doença debilitan-te; 76 causou dano; 77 em suma; bastar; 78 peneirar a farinha

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Ama. Juro-t’eu que mais val isso cinquenta vezes qu’ela.

A minha te digo eu que se a visses assanhada… 565 Parece demoninhada79… ante S. Bertolameu! Den. Já siquer80 terá esprito… Mas renega da mulher que ò tempo do mester81 570 não é cabra nem cabrito.

Ama. A minha tinh’eu em guarda pera bem de minha prol, cuidando que era ourinol, e tornou-se-me bombarda. 575 Folga tu que ess’outra tenhas, porque a minha é tal perigo, que por nada que lhe digo logo me salta nas grenhas.

Então tanto punho seco 580 me chimpa nestes focinhos! Eu chamo pelos vezinhos, e ela nego dar-me em xeco82. Den. Isso é de coraçuda83! Não cures de a vender: 585 que se alguém te mal fizer já sequer tens quem te acuda.

Mas a minha é tão cortês que se viesse ora à mão que m’espancasse um rascão, 590 não diria: – «Mal fazês.» Mas antes s’assentaria a olhar como eu bradava. Todavia a mulher brava é, compadre, a que eu queria.

595 Ama. Pardeos84! Tanto me farás, que feire a minha contêgo… Den. Se queres feirar comêgo, vejamos que me darás. Ama. Mas antes m’hás-de tornar, 600 pois te dou mulher tão forte, que te castigue de sorte que não ouses de falar, nem no mato, nem na corte.

Outro bem terás com ela: 605 quando vieres da arada, comerás sardinha assada, porqu’ela jenta a panela. Então geme, pardeus, si, diz que lhe dói a moleira. 610 Den. Eu faria por maneira que esperasse ela por mi.

Ama. Que lhe havias de fazer? Den. Amâncio Vaz, eu o sei bem… Ama. Denis Lourenço, ei-las cá vêm. 615 Vamo-nos nós esconder, vejamos que vêm catar85, qu’elas ambas vêm à feira. Mete-te nessa silveira, qu’eu daqui hei-de espreitar.

Vem Branca Anes a brava, e Marta Dias a mansa, e vem dizendo a brava:

620 Bra. Pois casei má hora, e nela, e com tal marido, prima… Comprarei cá ũa gamela, par’ò ter debaixo dela, e um grão penedo em cima. 625 Porque vai-se-me às figueiras, e come verde e maduro; e quantas uvas penduro jeita86 nas gorgomeleiras87: parece negro monturo.

79 endemoninhada; 80 sequer; ao menos; 81 na ocasião em que é preciso; 82 talvez seja uma variante de seco; 83 animosa; 84 interjei-ção: por Deus; 85 procurar; 86 deitar; 87 goelas

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630 Vai-se-me às ameixieiras, antes que sejam maduras. Ele quebra as cereijeiras, ele vendima as parreiras, e não sei que faz das uvas. 635 Ele não vai à lavrada, ele todo o dia come, ele toda a noite dorme, ele não faz nunca nada, e sempre me diz que há fome!

640 Jesu! Jesu! Posso-te dizer, e jurar e tresjurar, e provar e reprovar, e andar e revolver, que é milhor pera beber, 645 que não pera maridar. O demo que o fez marido! Que assi seco como é beberá a torre da Sé: então arma um arruído 650 assi debaixo do pé!…

Mar. Pois bom homem parece ele. Den. Aquela é a minha froxa. Mar. Deu-t’ele a fraldilha roxa? Bra. Milhor lh’esfole eu a pele, 655 que homem há i da puxa! Ò diabo que o eu dou, que o leve em fatiota, e o ladrão que mo gabou! E o frade que me casou 660 inda o veja na picota88!

E rogo à Virgem da Estrela, e à santa Gerjalém89, e òs choros da Madanela, e à asninha de Belém, 665 que o veja eu ir à vela pera donde nunca vem. Den. Compadre, nô mais sofrer! Sai de lá desse silvado. Ama Pera eu ser arrepelado 670 não havi’eu mais mester!

Den. E não n’hás tu de vender? Tu dizes que qués feirar…

Ama. Não qu’ela se me tomar, leixar-m’-á quando quiser! 675 Den. Mas dêmo-las à má estrea90; e voto que nos tornemos. E er depois tornaremos com as cachopas d’aldea. Entonces91 concertaremos92.

680 Ama. Isso me parece a mi muito milhor que eu ir lá. Oh que couces que me dá, quando me colhe sob si! Den. Cant’àquela si, dará…

[Diabo para as mulheres]

685 Dia. Mulheres, vós que quereis? Nesta feira que buscais? Mar. Queremo-la ver, nô mais, pera ver em que tratais, e as cousas que vendeis.

690 Tendes vós aqui anéis? Dia. Quejandos93? De que feição? Mar. D’uns que fazem de latão. Dia. Pera as mãos, ou pera os péis94? Mar. Não… Jesu! Nome de Jesu! 695 Deus e homem verdadeiro!

Foge o diabo, e Marta diz:

Mar. Nunca eu vi bofalinheiro95

tão prestes tomar o mu96! Branc’Anes, mana, crê tu que, como Jesu é Jesu, 700 era este o diabo inteiro! Bra. Não é ele pau de boa lenha, nem lenha de bom madeiro… Mar. Bofá97, nunqu’ele cá venha! Bra. Viagem de João Moleiro, 705 que foi pola cal da azenha98! Mar. Pasmada estou eu de Deos fazer o demo merchante99! Mana, daqui por diante não caminhemos nós sós.

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710 Bra. S’eu soubera quem ele era, fizera-lhe bom partido: que me levara o marido, e quanto tenho lhe dera, e o toucado e o vestido. 715 Inda que mais não levara desta feira, em extremo me alegrara e descansara, se o vira levar o demo, e que nunca mais tornara.

720 Porque, inda que era diabo, fizera serviço a Deos, e a mi mercê em cabo; e viera-me dos céos, como vem a frol100 ao nabo.

Vão-se ao Tempo, e diz Marta:

725 Mar. Dizei, Senhores de bem, nesta tenda que vendeis? Ser. Esta tenda tudo tem. Vede vós o que quereis, que tudo se fará bem.

730 Conciência quereis comprar, de que vistais vossa alma? Mar. Tendes sombreiros101 de palma muito bons pera segar102, e tapados pera a calma? 735 Ser. Conciência digo eu, que vos leve ao paraíso. Bra. Não sabemos nós qu’é isso. Dai-o ò decho por seu, que já não é tempo disso.

740 Mar. Tendes vós aqui burel103, do pardo, de lã meirinha? Bra. Eu queria ũa pucarinha pequenina pera mel. Ser. Esta feira é chamada 745 das Virtudes em seus tratos.

Mar. Das virtudes? E há ’qui patos? Bra. Quereis feirar a cevada quatro pares de sapatos104? Ser. Oh piadoso Deos eterno! 750 Não comprareis pera os céos um pouco d’amor de Deos que vos livre do inferno? Bra. Isso é falar per pincéos105.

Ser. Esta feira não se fez 755 para as cousas que quereis. Bra. Pois cant’a essas que vendeis, daqui afirmo outra vez que nunca as vendereis. Porque neste sigro106 em fundo 760 todos somos negligentes: foi ar que deu polas gentes, foi ar que deu polo mundo, de que as almas são doentes.

E se o hão de correger 765 quando for todo danado, muito cedo se há-de ver que já ele não pode ser mais torto nem aleijado. Vamo-nos, Marta, à carreira, 770 que as moças do lugar virão cá fazer a feira. Que estes não sabem ganhar, nem têm cousa que homem queira.

Mar. Eu não vejo aqui cantar, 775 nem gaita, nem tamboril, e outros folgares mil, que nas feiras soem107 d’estar. E mais feira de Natal, e mais de Nossa Senhora, 780 e estar todo Portugal… Bra. S’eu soubera qu’era tal, não estivera eu cá agora.

88 pelourinho; forca; 89 Jerusalém; 90 desejar a má estrea a alguém: desejar a sua má sorte; 91 então; 92 ajustaremos; 93 de que modo; de que qualidade; 94 pés; 95 vendedor ambulante de bugigangas; 96 fugir; 97 exclamação: boa-fé; também pode significar em verda-de; 98 Gil Vicente parece aludir a alguma história folclórica de um moleiro que foi arrastado pela água na calha da azenha e nunca

mais voltou. Assim desejam as mulheres que o Diabo desapareça; 99 mercador; 100 flor; 101 chapéus; 102 ceifar; 103 certo tipo de pano que se usava no luto; 104 quereis trocar por cevada quatro pares de sapatos; 105 parece significar palavras bonitas mas sem sentido; 106 século, no sentido de mundo terreno. O verso significa: “cá em baixo neste mundo”; 107 costumam

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Vêm à feira nove moças dos montes, e três mance-bos, todas com cestos nas cabeças cobertos cantando, e como chegam, se assentam por ordem a vender; e diz-lhe o

Ser. Pois vindes vender à feira, sabei que é feira dos céos; 785 por tal vendei de maneira que não ofendais a Deos, roubando a gente estrangeira. Tes. Responde-lhe, Leonarda, tu Justina, ou Juliana. 790 Jul. Mas responda-lhe Giralda, Tesaura, ou Merenciana.

Mer. Responde-lhe, Teodora, porque creo que a ti crea. Tes. Responda-lhe Dorotea, 795 pois que mora junto c’o Juiz d’aldea. Dor. Móneca responderá, que falou já com senhor. Mon. Responde-lhe tu, Nabor, 800 contigo s’entenderá, ou Denisio, ou Gilberto, qualquer de vós outros três. E não vos embaraceis nem torveis, porque é certo 805 que bem vos entendereis.

[Gilberto para o Serafim]

Gil. Estas cachopas não vêm à feira nego a folgar, e trazem de merendar nesses cestos que i têm.

810 Mas pois, quanto ao que entendo, sois, samica108, anjo de Deos, quando partistes dos céos, que ficava Ele fazendo? Ser. Ficava vendo o seu gado. 815 Gil. Santa Maria! Gado há lá? Oh Jesu! como o terá O Senhor gordo e guardado!

E há lá boas ladeiras, como na serra d’Estrela? 820 Ser. Si. Gil. E a Virgem que fazia ela? Ser. A Virgem olha as cordeiras, e as cordeiras a ela. Gil. E os Santos de saúde todos, a Deus louvores? Ser. Si. 825 Gil. E que léguas haverá daqui à porta do Paraíso, onde São Pedro está?

Nab. Lá vêm ò redor das vinhas compradores a comprar, 830 samica, ovos e galinhas.

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Dor. Não lhe hei-de vender as minhas, que as trago pera dar.

Vem dous compradores, um per nome Vicente, e outro Mateus, e diz a Justina:

Mat. Vós rosa do amarelo, mana, tendes i queijadas? 835 Jus. Tenho vosso avô marmelo. Conhecei-lo? Mat. Aqui estão, emborilhadas109! Jus. Estade, má ora, quêdo, pela vossa negra vida! 840 Mat. Menina, não hajais medo… Vós sois mais engrandecida que Branca de Figueiredo.

Se trazeis ovos, meus olhos, não mos vendais a ninguém. 845 Jus. Andar em burra e ter bem! Ouvide ora o rasca-piolhos azeite no micho, em que vem! Vic. Minha vida Leonarda, traz caça pera vender? 850 Leo. Vossa vida negra e parda! Não lhe abastará comer da vaca com da mostarda?

Vic. E a mesa de meu senhor irá sem ave de pena? 855 Leo. Quem? E vós sois comprador? Pois nem grande nem pequena não matou o caçador. Vic. Matais-me vós logo bem com dous olhinhos qu’eu digo… 860 Leo. Mais vos mata a vós o trigo, porque não vale a vintém, e traz mau micho consigo.

Vic. Vós fazeis de mim rascão110… Leo. Pàção111 vos fizestes vós; 865 porém bem vos vimos nós guardar bois no Alqueidão. Mat. Que vindes vender à feira, Teodora, alma minha, minha alma, minha canseira? 870 Trazeis alg~ua galinha? Teo. Som112 voss’alma galinheira?

Que má ora cá viestes pera quem vos pôs no paço! Mat. Senhora, eu que vos faço, 875 que vos agastais113 tão prestes? Dizei-me vós, Teodora, trazeis vós tal cousa e tal deste jeito, muit’embora? Mas lá dessoutro metal 880 não falam à lavradora…

Vic. Senhora Móneca, trazeis algum cabrito recente? Mon. Não bofé, Senhor Vicente: quisera ora trazer três, 885 de que vós foreis contente. Vic. Juro à santa cruz de palha que hei-de ver o que aqui está! Mon. Não revolvais aramá, que não trago nemigalha114!

890 Vic. Não me façais descortês, nem queirais ser tão garrida115! Mon. Pola vossa negra vida! Olhade como é cortês! Oh! que lhe saia má saída! 895 Mat. Giralda, eu achar-vos-ei dous pares de passarinhos? Gir. Irei por eles aos ninhos, entonces os venderei: comereis vós estorninhos116?

900 Mat. Respondeis como mulher muito de sua vontade. Gir. Pois digo-vo-la verdade: pássaros hei-de vender? Olhai aquela piedade!

905 Vic. Senhora minha Juliana, peço-vos que me faleis discreta palenciana117, e dizei-me que vendeis. Jul. Vendo favas de Viana. 910 Vic. Tendes alguns laparinhos? Jul. Si, de porca. Vic. Nem coelhos? Jul. Quereis comprar dous francelhos, pera caçardes ratinhos? Vic. Quero, polos Evangelhos!

108 talvez; porventura; 109 embrulhadas; enredadas; 110 tunante; tipo ordinário. Gil Vicente aplica-o à criadagem da corte; 111 corte-são, homem do paço; 112 sou: forma do verbo ser;

113 aborreceis; 114 migalha; nada; 115 tem o sentido do francês co-quette; 116 pássaro; 117 palaciana; educada

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915 Mat. Vós Tesaura, minha estrela, não viríeis cá em vão… Tes. Pois si, vossa estrela vos er118 ’ela… como aquilo é de rascão! Mat. Mas como isso é de donzela! 920 Porém vá já como vai, e casemo-nos, senhora. Tes. Pois casai co’ele, casai… Casar má-ora, meu pai, casar má-ora!

925 Mat. Porém trazeis algum pato? Tes. E quanto dareis por ele? Hui! e ele revolve o fato! Olho mau se meta nele! Mat. Não trazeis vós o qu’eu cato119. 930 Vic. Merenciana deve ter neste cesto algum cabrito. Mer. Não m’haveis de revolver, senão pardeos que dê grito tamanho, que haveis de ver.

935 Vic. Eu hei-de ver que trazeis. Mer. Se vós no cesto bulis… Vic. Senhora, que me fareis? Mer. Um «aque-delrei», ouvis? Não sejais vós descortês.

940 Vic. Não quero senão amores, pois vosso, senhora, sô. Mer. Amores de vosso avô, o da ilha dos Açores… Andar, aramá120 vós só!

945 Mat. Vamo-nos daqui, Vicente. Vic. Bofá vamos. Mat. Nunca vi tal feira. Vic. Vamos comprar à ribeira, que anda lá a cousa mais quente.

Vão-se os compradores, e diz o Serafim às moças:

Ser. Vós outras quereis comprar 950 das virtudes? Todas Senhor, não. Ser. Saibamos por que rezão. Dor. Porque no nosso lugar não dão por virtudes pão. Nem casar não vejo eu 955 por virtudes a ninguém… Quem tiver muito de seu,

e tão bons olhos com’eu, sem isso casará bem.

Ser. Pois porque viestes ora 960 cansar à feira de pé? Teo. Porque nos dizem que é feira de Nossa Senhora: e vedes aqui porquê. E as graças que dizeis 965 que tendes aqui na praça, se vós outros as vendeis, a Virgem as dá de graça aos bons, como sabeis.

E porque a graça e alegria 970 a madre da consolação deu ao mundo neste dia, nós vimos com devação121

a cantar-lhe ~ua folia. E pois que já descansamos975 assi em boa maneira, moças, assi como estamos, demos fim a esta feira, primeiro que nos partamos.

Alevantam-se todas, e ordenadas em folia cantaram a cantiga seguinte, com que se despediram:

CANTIGA Primeiro coro

Blanca estais colorada, Virgem sagrada. Em Belém vila do amor da rosa naceu a flor: Virgem sagrada.

Segundo coro

Em Belém vila do amor naceo a rosa do rosal: Virgem sagrada.

Primeiro coro

Da rosa naceo a flor, pera nosso Salvador: Virgem sagrada.

Segundo coro

Naceo a rosa do rosal, Deus e homem natural: Virgem sagrada.

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118 partícula de reforço por vezes associada a também. Em Gil Vicente, é um arcaísmo característico da linguagem dos camponeses; 119 procuro; 120 em má hora; 121 devoção

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