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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS - CEJURPS CURSO DE DIREITO SER NEGRO NO BRASIL: A LUTA PELA INCLUSÃO ÉTNICA FRENTE O ORDENAMENTO JURÍDICO VIGENTE DAÍRA ANDRÉA DE JESUS Itajaí (SC), 16 de outubro de 2007

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS - CEJURPS CURSO DE DIREITO

SER NEGRO NO BRASIL: A LUTA PELA INCLUSÃO ÉTNICA FRENTE O ORDENAMENTO JURÍDICO VIGENTE

DAÍRA ANDRÉA DE JESUS

Itajaí (SC), 16 de outubro de 2007

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS - CEJURPS CURSO DE DIREITO

SER NEGRO NO BRASIL: A LUTA PELA INCLUSÃO ÉTNICA FRENTE O ORDENAMENTO JURÍDICO VIGENTE

DAÍRA ANDRÉA DE JESUS

Monografia submetida à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, como

requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Orientadora: Professora Mestra Andrietta Kretz

Itajaí (SC), 16 de outubro de 2007

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AGRADECIMENTO

Primeiramente, agradeço à Deus por permitir que tudo se tornasse realidade.

Agradeço ao meu pai Manoel, às minhas irmãs Daiane e Samara e ao meu sobrinho, o pequeno Richard pelo apoio nessa etapa difícil e cheia de

surpresas, além de suportarem a minha constante ansiedade.

Agradeço também a professora Andrietta pelo incentivo e, principalmente pela tranqüilidade na

coordenação da pesquisa jurídica.

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DEDICATÓRIA

Indubitavelmente, dedico este trabalho à minha mãe Mara, pelo exemplo de caráter, luta, força e

por uma vida cheia de dedicação e amor.

Obrigada por carinhosamente acreditar neste sonho e ser o meu espelho.

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TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo

aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do

Vale do Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e a

Orientadora de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.

Itajaí, 16 de outubro de 2007

Daíra Andréa de Jesus Graduanda

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PÁGINA DE APROVAÇÃO

A presente monografia de conclusão do Curso de Direito da Universidade do Vale

do Itajaí – UNIVALI, elaborada pela graduanda Daíra Andréa de Jesus sob o título

Ser negro no brasil: A luta pela inclusão étnica frente o ordenamento jurídico

vigente, foi submetida em 05 de novembro de 2007 à banca examinadora

composta pelos seguintes professores: Andrietta Kretz (presidente), Maury

Roberto Viviani (examinador), Newton Cesar Pilau (examinador) e aprovada com

a nota 10 (dez).

Itajaí , 20 de novembro de 2007.

Professora Mestra Andrietta Kretz Orientadora e Presidente da Banca

Professor Mestre Antonio Augusto Lapa Coordenação da Monografia

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ROL DE ABREVIATURAS E SIGLAS

COEPIR Coordenadoria Especial de Promoção da Igualdade Racial

CRFB Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

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ROL DE CATEGORIAS

Rol de categorias que a Autora considera estratégicas à

compreensão do seu trabalho, com seus respectivos conceitos operacionais.

Ação afirmativa

A ação afirmativa consiste numa série de medidas

destinadas a corrigir uma forma específica de desigualdade de oportunidades

sociais: aquela que parece estar associada a determinadas características

biológicas (como raça e sexo) ou sociológicas (como etnia e religião), que

marcam a identidade de certos grupos na sociedade. 1

Constituição

Constituição deve ser entendida como a lei fundamental e

suprema de um Estado, que contém normas referentes à estruturação do Estado,

à formação dos poderes públicos, forma de governo e aquisição do poder de

governar, distribuição de competências, direitos, garantias e deveres dos

cidadãos.2

Cor

A cor corresponde à maior ou menor pigmentação da pele. 3

1 SELL, Sandro César. Ação afirmativa e democracia racial: uma introdução ao debate no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002. p. 15. 2 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19 ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 2. 3 PINHO, Rodrigo César Rebello. Teoria geral da Constituição e direitos fundamentais. Rio de

Janeiro: Takano, v. 17, 2001. p. 95.

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Crime

Considera-se crime a infração penal a que a lei comina

pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativamente ou

cumulativamente com a pena de multa (...)4

Dignidade da pessoa humana

A dignidade da pessoa não consiste apenas no fato de ser

ela, diferentemente das coisas, um ser considerado e tratado como um fim em si

e nunca como um meio para a consecução de determinado resultado. Ela resulta

também do fato de que, pela sua vontade racional, só a pessoa vive em

condições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele

próprio edita.5

Direitos fundamentais

Direitos fundamentais são direitos do ser humano

reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de

determinado Estado.6

Discriminação racial

A expressão discriminação racial significará qualquer

distinção, exclusão, restrição ou preferência baseadas em raça, cor,

descendência ou origem racial ou étnica que tem por objetivo ou efeito anular ou

restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano (em igualdade

4 Artigo 1º, da Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto-lei nº 3.914, de 9 de dezembro de 1941). 5SANTORO FILHO, Antonio Carlos. Dignidade humana e Direito penal. Disponível em: <www.ibccrim.org.br>, 18.12.2002. Acesso em 20 jul. 2007.

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de condição), de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político,

econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de sua vida.7

Eficácia

Poder de uma norma de produzir, no tempo e no espaço, os

efeitos desejados.8

Etnia

Pode ser definida basicamente como uma comunidade

ligada por laços raciais, lingüísticos, religiosos e culturais. O termo é muito

confundido com a palavra raça.

Igualdade

O princípio da igualdade consagrado pela Constituição opera

em dois planos distintos. De uma parte, frente ao legislador ou ao próprio

executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos normativos e medidas

provisórias, impedindo que possa criar tratamentos abusivamente diferenciados a

pessoas que se encontram em situações idênticas. Em outro plano, na

obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública, de aplicar a lei e

atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento. 9

6 KRETZ, Andrietta. Autonomia da Vontade e Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais. Florianópolis: Momento Atual, 2005, p. 51 apud, SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 34. 7 Artigo 1º, da Convenção Internacional Sobre Todas as Formas de Eliminação da Discriminação Racial. 8 MELO, Osvaldo Ferreira de. Dicionário de política jurídica. Florianópolis: OAB-SC Editora. 2000, 36. 9 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1° e 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. São Paulo: editora Atlas. 2007. p. 82.

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Injúria Preconceituosa

Será preconceituosa ou discriminatória quando a ofensa à

dignidade ou decoro utilizar elementos referentes à raça, cor, etnia, religião,

origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.10

Preconceito

Preconceito é uma atitude negativa, desfavorável, para com

um grupo, ou seus componentes individuais. É caracterizado por crenças

estereotipadas. A atitude resulta de processos internos do portador e não do teste

de atributos reais do grupo. Nas Ciências Sociais, o termo preconceito é usado

quase exclusivamente em relação aos grupos étnicos. Dentro dessa limitação há

o consenso vastamente difundido quanto a alguns elementos da definição do

termo: preconceito é uma atitude desfavorável para com um grupo étnico (ou

membros individuais do grupo). 11

Princípio

(...) estruturação de um sistema de idéias, pensamentos ou

normas por idéia mestra, por um pensamento chave, por uma baliza normativa,

donde todas as demais idéias, pensamentos ou normas derivam, se reconduzem

ou se subordinam. 12

Raça

A opinião da Biologia é, no presente caso, clara e

inequívoca. A concepção moderna de raça, fundada sobre as teorias da

10 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. volume 2. 6 ed. São Paulo: Saravia, 2007. 320. 11 MIRANDA NETO, Antonio Garcia et al. Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro:

Fundação Getúlio Vargas, 1986. p. 962. 12 ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 47.

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hereditariedade, priva de toda justificação a antiga concepção segundo a qual

existiram diferenças fixas e absolutas entre raças humanas e, por conseguinte,

uma hierarquia de raças superiores e inferiores. Para os sábios atuais, as raças

são subdivisões biológicas de uma espécie única, a do Homo Sapiens, dentro da

qual as características hereditárias comuns a toda espécie ultrapassam de longe

as diferenças relativas e mínimas que separam as subdivisões.13

Racismo

O tratamento desigual manifestado pelo agente, em função

de raça ou cor de pele, ou qualquer outro ato em que se identifique a

desigualdade segundo critérios objetivos.14

Validade

É A NORMA CUJA ETICIDADE A COLOCA JURIDICAMENTE PERFEITA DENTRO DE UM SISTEMA POSITIVO.15

13 DUNN, L.C. Raça e Ciência: a origem dos preconceitos. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 8. 14 CENEVIVA, Walter. Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 78. 15 MELO, Osvaldo Ferreira de. Dicionário de política jurídica, p. 97.

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SUMÁRIO

RESUMO.........................................................................................XIV INTRODUÇÃO ................................................................................... 1 CAPÍTULO 1 ...................................................................................... 4 UMA PROJEÇÃO HISTÓRICA DA PRESENÇA DO ELEMENTO NEGRO NO BRASIL COM DESTAQUE PARA A ORIGEM DO PRECONCEITO DE COR................................................................... 4 1.1 A FORMAÇÃO ÉTNICA BRASILEIRA ............................................................4 1.2 A ESCRAVIDÃO...............................................................................................8 1.3 O PROCESSO ABOLICIONISTA.....................................................................9 1.3.1 LEI EUSÉBIO DE QUEIRÓS ...............................................................................11 1.3.2 LEI DO VENTRE LIVRE .....................................................................................12 1.3.3 LEI DOS SEXAGENÁRIOS .................................................................................14 1.3.4 LEI ÁUREA .....................................................................................................14 1.4 DEFINIÇÃO DE PRECONCEITO DE COR ....................................................17 1.4.1 A ORIGEM DO PRECONCEITO DE COR ................................................................18 1.5 DEFINIÇÃO DE RAÇA ...................................................................................20 1.5.1 O QUE É RACISMO?.........................................................................................24 1.5.2 DEFINIÇÃO DE COR .........................................................................................25 1.6 AFINAL, QUEM É NEGRO NO BRASIL? ......................................................26 CAPÍTULO 2 .................................................................................... 28 APARATO NORMATIVO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AO PRECONCEITO DE COR E SUA APLICABILIDADE PRÁTICA: A IMPORTÂNCIA DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 ....................................................................... 28 2.1 DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS.................................28 2.2 OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS CONSTITUCIONAIS..............................31 2.2.1 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ...............................................34 2.2.2 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE.............................................................................36 2.3 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO APARATO NORMATIVO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AO PRECONCEITO DE COR............................................................39 2.4 DISTINÇÃO DO TIPO INJÚRIA QUALIFICADA NA MODALIDADE PRECONCEITUOSA, DO CRIME DE PRECONCEITO DA LEI 7.716/89............45 2.5 BREVES DESTAQUES HISTÓRICOS ACERCA DO APARATO NORMATIVO INTERNACIONAL EM RELAÇÃO À LIBERDADE E A IGUALDADE.....................................................................................................4848 2.6 REQUISITOS FORMADORES DA NORMA CONSTITUCIONAL: LEGITIMIDADE, VALIDADE E EFICÁCIA...........................................................49 2.6.1 INEFICÁCIA SOCIAL DA LEGISLAÇÃO ANTI-RACISMO ...........................................52 CAPÍTULO 3 .................................................................................... 54

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A BUSCA PELA IGUALDADE E INCLUSÃO SOCIAL NO ESTADO DE SANTA CATARINA.................................................................... 54 3.1 AÇÕES AFIRMATIVAS E SUA JURISDICIDADE .........................................54 3.1.1 O SISTEMA DE COTAS RACIAIS .........................................................................58 3.2 A MUDANÇA SÓCIO-RACIAL NO BRASIL ..................................................62 3.3 O RUMO DAS AÇÕES AFIRMATIVAS EM SANTA CATARINA ..................64 3.3.1 AS POLÍTICAS DE INCLUSÃO NO MUNICÍPIO DE ITAJAÍ.........................................68 3.4 A EDUCAÇÃO E A CAPACITAÇÃO DOS JURISTAS NA LUTA CONTRA O PRECONCEITO DE COR.....................................................................................71 3.5 JURISPRUDÊNCIAS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL .......................72 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................77 REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS .......................................... 80 ANEXOS........................................................................................... 86

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RESUMO

A presente pesquisa aborda a existência da discriminação e

do preconceito de cor na sociedade brasileira frente a legislação anti-racial em

vigor. Denota uma investigação bibliográfica realizada a partir do artigo científico

“O preconceito e a discriminação racial latente no contexto social catarinense

frente o aparato normativo vigente” elaborado pela pesquisadora, sob a

supervisão da sua orientadora. O assunto é polêmico porquanto vive-se num país

escondido sob o mito da democracia racial. Faz-se um retrospecto da formação

étnica brasileira, do aparato normativo em vigor e da produção internacional

pertinente ao tema, enfatizando a distinção das categorias preconceito e

discriminação, bem como, do tipo injúria qualificada mediante a utilização de

referências a cor, etnia ou origem pelo artigo 140, §3º, do Código Penal do crime

tipificado na Lei nº 7.716 de 1989. Dar-se-á ênfase também às ações afirmativas,

especialmente, à iniciativa que vem ocorrendo no Estado de Santa Catarina e o

longo caminho a ser percorrido para que seja alcançada a igualdade material

previamente assegurada pela Constituição da República Federativa do Brasil de

1988. Para alcançar o objetivo proposto, a pesquisa está dividida em três

capítulos, com sub-itens, nos quais fica evidenciada a situação dos negros no

Brasil, a luta pela inclusão étnica e a abundante legislação. As providências

metodológicas para delinear este trabalho baseiam-se na utilização do método

indutivo para o relato, operacionalizado pelas técnicas do referente, das

categorias, do conceito operacional e da pesquisa bibliográfica.

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INTRODUÇÃO

A relação da sociedade brasileira para com o negro é

baseada na discriminação mascarada, cujo caráter é de ordem implícito e

objetivo. Hodiernamente, atitudes violentas de grupos racistas e a implementação

de ações afirmativas colocam reiteradamente na ordem do dia discussões acerca

da identidade racial.

Diante da atualidade e complexidade do tema, a presente

Monografia tem como objeto a temática Ser negro no Brasil: a luta pela inclusão

étnica frente o ordenamento jurídico vigente.

O objetivo desse estudo é o reconhecimento da existência

do preconceito de cor na sociedade brasileira, das inúmeras leis que dispõem

acerca da matéria e da necessidade de uma efetiva mudança sócio-econômica e

implementação de políticas culturais inclusivas para a eficácia social da norma.

Para tanto, principia–se, no Capítulo 1 fazendo uma

abordagem acerca da evolução histórica da presença do elemento negro no

Brasil, da escravidão, legislações abolicionistas e do legado enraizado na cultura

nacional que é o preconceito de cor e em muitos casos a discriminação racial. A

partir do retrospecto histórico traçado, da definição e da origem de categorias

essenciais, parte-se para a análise de quem é realmente negro no Brasil, afinal,

país auto-intitulado como multi-racial.

No Capítulo 2, trata-se dos princípios constitucionais da

dignidade da pessoa humana e da igualdade, das leis federais, estaduais e

municipais relacionadas ao assunto ora discutido, com ênfase ao disposto na

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diferencia-se o crime de

racismo tipificado pela Lei nº 7.716 de 1989, do crime de injúria preconceituosa

tipificado pelo artigo 140, §3º do Código Penal. Investiga-se também os três

requisitos formadores da norma constitucional - legitimidade, validade e eficácia –

e a eficácia social da legislação anti-racial.

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No Capítulo 3, cuida-se da urgente necessidade de

implementação de uma mudança econômica e sócio-racial no país. Aborda-se a

respeito da execução das medidas afirmativas, como eventos, palestras, projetos

educacionais, inclusive das cotas raciais e dos projetos que já vêm sendo

executado no Estado de Santa Catarina e no Município de Itajaí.

O presente Relatório de Pesquisa se encerra com as

Considerações Finais, nas quais são apresentados pontos conclusivos

destacados, seguidos da estimulação à continuidade dos estudos e das reflexões

sobre a luta do negro contra o preconceito e a discriminação racial e o aparato

normativo vigente, principalmente o Texto Constitucional.

A opção por este tema deu-se pela inefetividade do Estado

através dos seus Três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) em evitar que

os negros continuem a serem vítimas e estarem em condição de desvantagem

mesmo após mais de cem anos da abolição da escravatura.

Para a presente monografia foram levantadas as seguintes

hipóteses:

� Existe preconceito e discriminação racial na sociedade brasileira, embora muitos equivocadamente acreditarem que se vive num país cuja democracia racial predomina. O preconceito denota uma atitude negativa para com um grupo caracterizado por crenças estereotipadas, conquanto que a discriminação racial é a exteriorização dessa atitude.

� A legislação brasileira no que toca à essa temática de discriminação é abundante e severa. Todavia, falta aplicabilidade à norma, mais especificamente, a eficácia social dessas leis restam prejudicadas dentro de um sistema inerte, omisso e relapso.

� Diversas medidas estão sendo colocadas em prática para a eliminação do cerne do problema que é o preconceito alojado no interior dos indivíduos. Nessa seara, as ações afirmativas aliadas ao desenvolvimento social e econômico podem ser medidas substanciais com resultados positivos.

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Quanto à Metodologia empregada, registra-se que, na Fase

de Investigação foi utilizado o Método Indutivo, na Fase de Tratamento de Dados

o Método Cartesiano, e, o Relatório dos Resultados expresso na presente

Monografia é composto na base lógica Indutiva.

Nas diversas fases da Pesquisa, foram acionadas as

Técnicas, do Referente, da Categoria, do Conceito Operacional e da Pesquisa

Bibliográfica.

O assunto é relevante e atual uma vez que proliferam nos

tribunais e na mídia brasileira questões envolvendo as polêmicas cotas raciais e

demais políticas públicas de inclusão social, além da natureza da identidade

racial.

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CAPÍTULO 1

UMA PROJEÇÃO HISTÓRICA DA PRESENÇA DO ELEMENTO NEGRO NO BRASIL COM DESTAQUE PARA A ORIGEM DO

PRECONCEITO DE COR

1.1 A FORMAÇÃO ÉTNICA BRASILEIRA

No tocante a formação étnica brasileira, constituem as três

etnias pioneiras: os homens que vieram para o país, os índios e mais tarde os

negros. Portanto, embora presente uma forte sensação de invisibilidade do negro,

na sociedade concebida atualmente, esta é fruto de uma considerável relação de

miscigenação étnica e diversidade cultural.

Desde o início as relações não se revestem de caráter

amistoso, pelo contrário, prevalece a lei do dominador imediato e mais forte – o

europeu que, de modo geral, impôs seus costumes, língua e religião.

Os jesuítas que para cá vieram aprendem a língua tupi-

guarani com o único objetivo de traduzir a língua nativa para uma importada e

muito mais difícil. Tudo conforme manda a lei do dominador e visando à execução

do projeto de dominação, os padres Manuel de Nóbrega e José de Anchieta

foram grandes arquitetos.

Os missionários dos ensinamentos de Cristo, daquela

época, como por exemplo Santo Inácio de Loyola e novamente José de Anchieta

preocupados com a salvação das almas dos escravos lutavam para que estes

levassem uma vida cristã, porém sabiam que economicamente a escravidão era

importante.

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Cláudio Valentim Cristiani16 discorrendo acerca dos

elementos étnicos formadores da sociedade brasileira esclarece que:

Os elementos formadores da cultura em geral, e do direito especificamente, no Brasil Colonial, tiveram origem em três etnias distintas. É evidente que essa formação não foi uma justa posição em que as condições particulares de cada raça tenham sido respeitadas. Antes, foi uma imposição dos padrões dos portugueses brancos aos índios e aos negros.

Os jesuítas também têm a sua parcela de contribuição a

favor da escravidão das populações negras, porque agiam em nome da

civilização e da religião cristã, procurando ter os índios sob a sua administração

para, posteriormente, livrá-los da escravidão como forma de não concorrerem

com o tráfico negreiro, pois tinham interesse econômico na escravidão específica

dos negros. Ainda assim, segundo Júlio José Chiavenato17, essa atitude dos

jesuítas não impediu os índios de serem escravos.

No entanto, em virtude da não adaptação dos índios ao

trabalho escravo e devido às guerras com os brancos e a imposição da Igreja

para não escravizá-los, sob o argumento de serem apropriados para a catequese,

passa-se à escravidão dos negros.

Por volta de 1531 desembarcam no Brasil os primeiros

navios negreiros, época em que a população brasileira era má distribuída e as

cidades estavam em lento desenvolvimento. Em 1568, o tráfico de escravos já era

oficializado no Brasil, permanecendo de modo intenso, com um papel bastante

significativo na economia do país.

O homem negro não era visto como um ser humano, mas

sim como mercadoria. Era comercializado proporcionando lucros para a coroa

portuguesa. Essa comercialização englobava a exploração abusiva e condições

de trabalho sub-humanas.

16 CRISTIANI, Cláudio Valentim, O direito no Brasil colonial. In: WOLKMER, A. C. (Org.).

Fundamentos de história de direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 213-214.

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Novamente Júlio José Chiavenato18: “Eram examinados

como animais: apalpados, dedos enfiando-se pelas bocas, procurando os dentes

para adivinhar a idade ou conferir se o vendedor não mentia”.

No mesmo caminhar, Jacob Gorender19 sustenta:

(...) a tendência dos senhores de escravos foi a de vendê-los como animais de trabalho, como instrumentum vocate, bem semovente. O Eclesiástico comparou o escravo ao asno e Aristóteles escreveu que o boi serve de escravo aos pobres. A Lei Aquiliana, em Roma, ao tratar do crime de morte de escravo alheio, equiparou-a à de um quadrúpede doméstico, para efeitos de ação judicial de indenização pelo proprietário lesado. As Ordenações Portuguesas - Manuelinas e Filipinas – num mesmo título o direito de enjeitar escravos e bestas por doença ou manqueira, quando dolosamente vendidos.

Para facilitar a compreensão do panorama sócio-cultural da

época, analisando a literatura brasileira, constata-se que o negro não aparece na

literatura freqüentemente, a não ser por motivo de piada ou papel ainda menor

que secundário.20 O escritor Gregório de Matos relatando minuciosamente a vida

do negro escreve que este era propenso a comer bananas e tinha uma espécie

de piolho nos seus cabelos encaracolados.

Mais tarde é que personagens como Henrique Dias, Calabar

e Zumbi dos Palmares tiveram destaque na literatura, pelo papel de liderança e

espírito guerreiro nas mais variadas batalhas que enfrentaram. Entretanto, é Frei

José de Santa Rita Durão (1722 – 1784), no poema Caramuru, considerado o

primeiro a incorporar a figura do negro nobre na literatura brasileira.

Alguns pensadores como Montesquieu eram contra a

escravidão por razões econômicas, a não ser, no caso de prisioneiros de guerra.

17 Acerca do assunto consultar CHIAVENATO, Julio José. O negro no Brasil: da senzala à guerra

do Paraguai. 4 ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 106. 18 Ibidem, p. 106. 19 GORENDER, Jacob. Ensaios 29. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1985. p. 50. 20 Para maiores esclarecimentos consultar SAYERS, Raymond. O negro na literatura brasileira.

Rio de Janeiro: Ed. O Cruzeiro, 1958.

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Ao passo que outros se mostraram totalmente contra a escravidão por motivos

humanitários, acompanhado de diversos seguidores.

O negro sempre procurou resistir, quer seja com baixa

produtividade, com a formação de quilombos ou com lutas, suicídios, abortos.

Destaca-se a Rebelião Baiana (1798), Insurreição Malê (1835), Revolta dos

Escravos do Maranhão (1838/1841) e outras participações em movimentos

sociais buscando a conquista e eficácia de direitos humanos fundamentais.

Enquanto estratégia de resistência rumo a liberdade, os

quilombos eram altamente organizados e marcaram a sociedade brasileira sendo

uma das formas mais significativas de resistência. Formado por grupos

comprometidos em viver em liberdade e reconstruir comunidades com uma nova

consciência eram aldeias criadas por africanos que fugiam das plantações onde

eram escravos.

O Quilombo dos Palmares, que durou aproximadamente um

século, é considerado o mais importante da época colonial. Foi liderado por

Zumbi, até hoje visto e respeitado como um símbolo da resistência negra no

Brasil.

O fato é que a identidade da formação brasileira está

relacionada à pluralidade étnica. Entretanto, o modelo de colonização do Brasil,

com a escravidão primeiro do habitante nativo, depois a do negro, implicou na

extinção de milhares de vida de maneira brutal.

Apesar de todo o sofrimento, diante do significativo índice de

descendentes de escravos, aqui estabelecidos, o papel do negro na formação do

país é fundamental, seja transformando o solo brasileiro, lutando contra a

natureza para a construção de casas, escolas e demais edificações, seja na rica

diversidade cultural transmitida.

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1.2 A ESCRAVIDÃO

No Brasil a escravidão influenciou a produção açucareira,

cafeeira, mineira e do trabalho em serviços e ofícios urbanos. Frente a essa

repercussão na economia e a proposta desta pesquisa, mister discorrer acerca

da categoria em questão.

Explique-se que de acordo com a Convenção sobre a

escravatura, assinada em Genebra, em 25 de setembro de 1962, pela Sociedade

das Nações, atual Organização das Nações Unidas - ONU, a escravidão denota:

(...) o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade. O tráfico de escravos compreende todo ato de captura, aquisição ou cessão de um indivíduo com o propósito de escravizá-lo; todo ato de aquisição de um escravo com o propósito de vende-lo ou trocá-lo; todo ato de cessão, por meio de venda ou troca, de um escravo, adquirido para ser vendido ou trocado, assim como, em geral, todo ato de comércio ou de transporte de escravos.

Apesar dos escravos negros serem uma preciosidade no

mundo antigo, a escravidão enquanto categoria social já predominava. A maioria

dos escravos nesse período eram brancos, até porque a travessia do Saara

implicava num obstáculo difícil para os mercadores da época.

Bárbaros, cidadãos que não podiam pagar as próprias

dívidas, ou simples estrangeiros, enfim, é antigo o costume de escravizar

determinados grupos, com verdadeiras capturas em massa. Toda a Europa

traficava e aqui, não foi diferente. Formaram-se companhias internacionais e

portuguesas a fim de desenvolver o comércio do tráfico de escravos.

Salienta Jacob Gorender21 acerca do escravismo colonial:

21 GORENDER, Jacob. Ensaios 29. O escravismo colonial. p. 41.

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Impõe-se, por conseguinte, a conclusão de que o modo de produção escravista colonial é inexplicável como síntese de modos de produção preexistentes, no caso do Brasil. Seu surgimento não encontra explicação nas direções unilaterais do evolucionismo nem do difusionismo. Não que o escravismo colonial fosse invenção arbitrária fora de qualquer condicionamento histórico. Bem ao contrário, o escravismo colonial surgiu e se desenvolveu dentro de determinismo sócio-econômico rigorosamente definido, no tempo e no espaço. Deste determinismo de fatores complexos, precisamente, é que o escravismo colonial emergiu como um modo de produção de características novas, antes desconhecidas na história humana.

Diante desse cenário, o processo abolicionista aparece

como um avanço extremamente urgente e significativo para o fortalecimento da

idéia de liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana, embora saiba-se

que na extinção do regime escravocrata tenha faltado assistência para o início do

trabalho livre.

1.3 O PROCESSO ABOLICIONISTA

Quanto à erradicação da escravatura o Brasil foi o último

país do ocidente a abolir a escravidão. Até 1850 o tráfico de escravos não tinha

sido suprimida, mas surgiram as primeiras legislações relacionadas a garantias

de igualdade racial. Foi um processo gradual, cuja implementação encontrou

muita resistência no Brasil, devido à carência de mão-de-obra.

Utilizando as palavras de Emilia Viotti da Costa, no que

dizem respeito à abolição da escravatura destaca-se:

Dessa forma, a abolição foi apenas um primeiro passo em direção à emancipação do povo brasileiro. O arbítrio, a ignorância, a violência, a miséria, os preconceitos que a sociedade escravista criou ainda pesam sobre nós. Se é justo comemorar o Treze de Maio, é preciso, no entanto, que a comemoração não nos ofusque

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a ponto de transformarmos a liberdade que simboliza num mito a serviço da opressão e da exploração do trabalho.22

A luta pela extinção do processo de escravidão durou mais

de oitenta anos e foi acentuada tendo em vista os ideais revolucionários

abolicionistas e a imigração. Eliminar essa instituição aceita por mais de três

séculos é uma batalha iniciada há muito tempo com repercussão até os dias

atuais.

Como o processo ocorre não em conseqüência de um

desenvolvimento cultural ou de um amadurecimento social, mas sim por

imposição de leis. Assim, o estudo da evolução das legislações propriamente dito

é medida essencial para que se possa compreender melhor os reflexos do

tratamento desigual ainda característico atualmente.

Não é novidade que foi a pressão estrangeira,

principalmente a da Inglaterra que influenciou na diminuição gradual do tráfico

escravagista. Evidente que na época o processo abolicionista tinha um caráter

exclusivamente econômico, mas foi de grande importância para o fim do

verdadeiro genocídio praticado contra os negros africanos.

A Inglaterra assumiu um papel extremamente positivo na

extinção do tráfico negreiro, pois observava a lucratividade e o aumento da

independência financeira de Portugal com o trabalho escravo. Com um interesse

comercial expressivo interessou-se pela total eliminação do tráfico de escravos

para o Brasil.

Frente ao predomínio de uma falsa idéia de democracia

racial o Brasil foi o país que trouxe o maior número de escravos. George Reis

Andrews23 confirma:

O Brasil foi o país que recebeu durante o período colonial e até o século XIX mais africanos escravos do que qualquer nação do

22 COSTA, Emilia Viotti da. A abolição. 6 ed. São Paulo: Global, 1997. p. 96. 23 ANDREWS, George Reid. Negros e Brancos em São Paulo: 1888-1988. Trad. Magda Lopes.

São Paulo: Universidade do Sagrado Coração, 1991. p. 21

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Novo Mundo e abriga atualmente a segunda maior população negra do mundo em termos numéricos absolutos.

A imprensa brasileira, de um modo geral, não se mostrou a

favor da causa abolicionista tão facilmente, tendo em vista os interesses

econômicos vigentes, entretanto alguns juristas e demais intelectuais europeus

davam grandes contribuições.

É que em dado momento a escravidão passa a não ser tão

lucrativa para a economia do país como anteriormente e cada vez mais ganha

evidência a utilização daqueles com poder de compra no mercado, os

trabalhadores assalariados.

O gradual processo de abolição teve inúmeras legislações

que contribuíram para que, de fato, acontecesse, algumas com maior repercussão

prática enquanto outras nem tanto. Contudo, a idéia de minimização ou

extermínio da escravidão começa a se fazer presente, através da ratificação de

tratados, convenções, acordos e promulgação de leis.

Já em 1810, rendendo-se às pressões, Portugal celebra

tratado com a Inglaterra comprometendo-se a adotar medidas que viabilizassem

uma abolição gradual do tráfico de escravos. Assim, em 1815 assina uma

declaração reconhecendo juntamente com outros países da Europa a importância

de exterminar o tráfico com urgência.

1.3.1 Lei Eusébio de Queirós

O tráfico de escravos sendo proibido em 7 de novembro de

1831 (Lei Diogo Feijó), permitindo a entrada de africanos no país para uma vida

legalmente livre, facilita a aprovação em 4 de setembro de 1850, da Lei Eusébio

de Queirós, a qual teve uma pequena repercussão prática.

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Emilia Viotti da Costa24 narra que:

A lei foi aprovada em 1850. Segundo a nova lei, a importação de escravos foi considerada ato de pirataria e como tal deveria ser punida. As embarcações envolvidas no comércio ilícito seriam vendidas com toda carga encontrada a bordo, sendo seu produto entregue aos apresadores, deduzido um quarto para o denunciante.

A partir daí, inicia-se uma verdadeira caçada ao

contrabando, que aos poucos diminui, com a vigilância da Inglaterra e das

autoridades brasileiras, no combate as reiteradas tentativas de continuar o tráfico

de escravos.

1.3.2 Lei do Ventre Livre

Em 28 de setembro de 1871, é aprovada a Lei de Ventre

Livre, a qual, ainda atrelava os libertos a seus antigos donos até os 21 anos, pois

determinava que as crianças trabalhariam nas fazendas tão-somente até essa

idade. A liberdade dos filhos das escravas nascidos no Brasil a partir da vigência

da lei foi uma utopia. É que as datas de nascimento dessas crianças eram

alteradas.

O projeto de lei que gerou muita polêmica e discussão entre

o Partido Conservador e Liberal foi proposto pelo gabinete conservador em 27 de

maio do mesmo ano, presidido pelo Visconde do Rio Branco, o senador José

Maria da Silva Paranhos, preocupado com a imagem externa do país.

Nesse sentido, Emilia Viotti da Costa25 preleciona:

O projeto oferecia grandes vantagens aos proprietários: condenava a escravidão a desaparecer a longo prazo, sem abalo para a Economia, dando aos proprietários bastante tempo para se

24 COSTA, Emilia Viotti da. A abolição. p. 29. 25 Ibidem, p. 47.

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acomodarem sem dificuldades à nova situação. E o que era ainda mais importante: respeitava o direito de propriedade.

Igualmente foi pequena a repercussão prática da lei e as

tentativas de burlá-la eram fortes. Entretanto é referência obrigatória para

qualquer discussão relacionada à abolição da escravatura. Abriu espaço para

novas iniciativas com a tutela de crianças pobres, ingênuas (filhos livres de

mulheres escravas) e órfãs.

Aliás, com relação às tentativas de burlar a Lei do Ventre

Livre destaca-se:

Senhores havia que procuravam emancipar escravos doentes ou incapacitados, em lugar de outros mais qualificados de acordo com os requisitos da lei. Esperavam, dessa forma, conseguir indenização por escravos que já se tinham tornado imprestáveis. Para evadir-se da lei, proprietários de escravos também se apressaram em alforriar com cláusula de prestação de serviços escravos que se achavam em condições de serem incluídos preferencialmente nas listas de escravos a serem emancipados pelo Fundo de Emancipação. (...) ingênuos continuaram a viver como escravos, a ser vendidos juntamente com suas mães, a ser castigados como qualquer outro escravo, perfazendo as mesmas tarefas a que teriam sido obrigados se não tivesse sido libertos pela lei de 1871. Para ele, a liberdade continuava uma promessa a ser cumprida num futuro distante.26

Aos poucos, diminuía consideravelmente o índice da

população escrava. Os abolicionistas, por sua vez, não pararam por aí, a luta

ainda continuaria para assegurar o sonho de liberdade, igualdade e dignidade dos

negros.

26 Ibidem, p. 46.

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1.3.3 Lei dos Sexagenários

Em 1885 a Lei dos Sexagenários ou Lei Saraiva - Cotegipi

(Lei 3.270) estabeleceu a liberdade para os maiores de 65 anos e mediante

indenização, libertação gradual dos demais escravos.

O projeto dessa lei provoca um clima de grande tensão,

resistência e divergência entre partidários que, inclusive, seguiam uma ideologia

parecida. Acerca do projeto comenta Emilio Viotti da Costa27:

Analisando o novo projeto, artigo por artigo, diante de um grande número de pessoas que se reuniu no Teatro Politheama, Rui Barbosa demonstrou que, com as alterações introduzidas, ele se afastara completamente da versão original, representando uma concessão aos interesses escravistas. De fato, o novo projeto estipulava que os escravos emancipados aos sessenta anos ficavam obrigados a trabalharem mais três anos gratuitamente (ou até atingirem a idade de 65 anos), a título de compensação aos seus senhores. Oferecia ainda vantagens aos senhores que se decidissem espontaneamente a emancipar seus escravos, concedendo-lhes indenização.

O problema era que poucos escravos atingiam essa idade e

tal fato justifica-se pelas terríveis condições de vida que levavam, trabalhando

duro, com uma jornada diária de trabalho sub-humana, sem o mínimo de cuidado

médico ou apoio emocional.

1.3.4 Lei Áurea

Brilhante participação ativa de intelectuais e políticos como

Joaquim Nabuco28, José Carlos do Patrocínio – ambos fundadores da Sociedade

Brasileira contra a Escravidão em 1880 – e Ângelo Agostini que fomentaram o

27 Ibidem, p. 68. 28 Ver a obra de NABUCO, Joaquim. O abocionista. Brasília: Vozes, 1977.

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fortalecimento das campanhas abolicionistas por todo o país. Já em 1884 o

Ceará, por exemplo, decretava o fim da escravidão.

A agitação e o clamor público era muito expressivo, gerando

inúmeros debates, conflitos, entraves políticos e lutas. Mas o árduo caminho para

se chegar na conquista de libertação foi descrito principalmente pela classe

dominante, até porque na época, apenas trinta por cento da população era

alfabetizada.

Diversos abolicionistas dedicados a causa estão anônimos

na história, posto que não puderam escrever tampouco contar sua própria

trajetória, ante a valorização exacerbada da ação parlamentar enquanto dádiva

das classes dominantes.

Aliás, interessante trazer a baila um pequeno trecho da obra

O Abolicionista29:

O abolicionismo era, além do mais, uma causa generosa e cristã e falava aos sentimentos filantrópicos que a sociedade cultivava. Ser a favor da emancipação dos escravos era ser a favor do progresso e da civilização, pois a escravidão fora condenada em nome do progresso e da civilização nos países mais desenvolvidos. (...) A abolição passara a ser uma causa nobre; a defesa da escravidão odiosa. Alistar-se nas fileiras do abolicionismo era também combater as oligarquias que se apegavam à escravidão. Para uns a escravidão era uma convicção; para outros, um expediente (ou talvez ambos) e, cada vez mais, as fileiras do abolicionismo recebiam novos recrutas.

Intensificou-se a participação dos negros no processo

abolicionista e as fugas em massa dos escravos aumentaram. Cada vez mais, os

senhores temiam perder o controle da situação, juntamente com o seu patrimônio

e estabilidade.

A pressão sobre o governo imperial foi grande tanto interna

(grande concorrência de mão-de-obra imigrante) quanto externa, principalmente

29 COSTA, Emília Viotti da. A abolição. p. 63.

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da Inglaterra. O Projeto de Abolição foi apresentado à Câmara em 8 de março de

1888 e em 13 de maio de 1888, a princesa Isabel Cristina Leopoldina de

Bragança sanciona a Lei nº 3.353 a Lei Áurea, extinguindo a escravidão no Brasil.

Finalmente, veio a abolição da escravatura. Abdias do

Nascimento tece duras críticas à lei em comento, comparando-a a uma

mistificação histórica, juntamente com a Lei do Ventre Livre, as quais, não

implicaram numa redemocracia do país, propriamente dita.

Interessante mencionar o seguinte trecho dessas críticas:30

O 13 de maio de 1888, representou para aquela elite europóide o que representou para Pilatos o ato de lavar as mãos. E foi num outro 13 de maio que Rui Barbosa tocou fogo em todos os documentos relativos à escravidão e ao tráfico negreiro, tentando apagar de uma vez por todas essa nódoa no suposto humanismo brasileiro. Lavando suas mãos, nas águas rituais da magia branca, Rui Barbosa pretendeu liberar as classes dirigentes das conseqüências do seu tenebroso passado escravagista. Ao mesmo tempo, quis erradicar para sempre a possibilidade de o negro investigar mais minuciosamente sua própria história. Pois do resgate de sua história, o negro poderia passar à reivindicação do que de direito lhe cabe: a indenização pelos séculos de massacre, exploração e espoliação que sofreu.

Mas a perseguição, insegurança e falta de valorização não

havia terminado. Após a vigência das leis supracitadas, os negros são chamados

a encontrar espaços em projetos políticos, econômicos e sociais, extremamente

fechados.

Os ex-escravos tiveram dificuldades em se adaptar a nova

situação e o clima político que se criou era desfavorável a sua efetiva participação

na sociedade. Viviam conforme lhes permitia a situação econômica e de saúde,

peculiaridade regional, concorrência de mercado dentre outros desafios.

30 NASCIMENTO, Abdias do. Combate ao racismo: Discursos e projetos. Brasília: Coordenação de

Publicações – Câmara dos Deputados, 1983. p. 11.

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De um lado, aqueles que partiram para as zonas rurais, não

raro foram substituídos pelo imigrante branco europeu ou japonês. De outro

também foram preteridos nas cidades enquanto mão-de-obra para a nascente

indústria brasileira.

Até a oficial abolição da escravatura, a população negra era

considerada mera mercadoria, e discutia-se constantemente o direito de existirem

com seres humanos. Contra esta população foram usadas todas as formas de

exploração, dominação e diferenças imagináveis que possam separar os

cidadãos.

Com essa extinção o negro não tinha os direitos sociais e de

cidadania garantidos, mas juridicamente foi muito importante pois, repita-se, em

tese, foi o fim da escravatura. A lei ora analisada não criou nenhum mecanismo

para integrar o ex-escravo à sociedade, predominando uma questão verificada até

os dias atuais – o preconceito de cor.

1.4 DEFINIÇÃO DE PRECONCEITO DE COR

A análise do aparato normativo antidiscriminação em vigor

exige uma qualificação jurídica de fenômenos como Discriminação Racial e

Preconceito, porquanto a possibilidade de interpretações equivocadas.

Na definição da categoria preconceito, vale-se dos

ensinamentos de Antonio Garcia Miranda Neto31:

Preconceito é uma atitude negativa, desfavorável, para com um grupo, ou seus componentes individuais. É caracterizado por crenças estereotipadas. A atitude resulta de processos internos do portador e não do teste de atributos reais do grupo. Nas Ciências Sociais, o termo preconceito é usado quase exclusivamente em relação aos grupos étnicos. Dentro dessa limitação há o consenso vastamente difundido quanto a alguns elementos da definição do

31 MIRANDA NETO, Antonio Garcia et al. Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro:

Fundação Getúlio Vargas, 1986. p. 962.

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termo: preconceito é uma atitude desfavorável para com um grupo étnico (ou membros individuais do grupo).

O preconceito é a causa para a prática de atitudes

discriminatórias, que culminam no racismo. É o elemento justificador dessas

medidas abusivas que resulta da socialização do homem e da cultura do meio

social que está inserido.

José Leon Crochick32 assim se manifesta com relação ao

tema:

(...) aquilo que leva o indivíduo a ser ou não ser preconceituoso pode ser encontrado no seu processo de socialização, no qual se transforma e se forma como indivíduo. (...) O processo de socialização, por sua vez, só pode ser entendido como fruto da cultura e de sua história, o que significa que varia historicamente dentro da mesma cultura e em várias culturas diferentes.

Cuida-se de um tema polêmico arraigado de interpretações

equivocadas e fortalecido por segregações sociais, que apenas levam à

conclusão do grau de ignorância da população brasileira que mascara a sua

existência sob o argumento de “país da miscigenação racial.”

Apesar do aparato normativo já citado, principalmente com a

promulgação da Lei Áurea, a luta pela liberdade não foi concluída. Evidente que o

preconceito de cor e a discriminação são questões sociais que urgentemente

precisam ser resolvidas.

1.4.1 A origem do preconceito de cor

Na antiguidade, era a evolução de determinados povos que

causava certos tipos de preconceito, mas com o passar do tempo a justificativa

32 CROCHICK, José Leon. Preconceito, Indivíduo e Cultura. São Paulo: Rode Editorial, 1997. p.

11.

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para um tratamento diferenciado baseou-se, principalmente, nas vantagens de

ordem econômicas.

Para corroborar tal assertiva, Arnold Rose33 em seu artigo: A

origem dos preconceitos aponta que: “Uma das origens mais evidentes dos

preconceitos é a vantagem ou o proveito material que deles se extrai”.

Afirma Joel Rufino Santos34 sobre o tema: ”O racismo dentro

dos países capitalistas desenvolvidos, que não foram colônias (como a Inglaterra

e a França, por exemplo), é fruto da competição e da divisão de trabalho.”

O fato é que a origem do racismo não pode ser definida

cientificamente, sendo impossível determinar datas precisas que indiquem o

surgimento do tratamento discriminatório com relação às raças na humanidade.

É Eliane Azevedo35, quem descreve a primeira referência

racista aceita pelos pesquisadores:

(...) a mais antiga referência a discriminação racial data de aproximadamente 2000 a.C e consta de um marco erigido acima da segunda catarata do Nilo, proibindo qualquer negro de atravessar além daquele limite, salvo se com o propósito de comércio ou de compras. Fica óbvio que a discriminação era fundamentalmente de ordem econômico-política, usando a raça como referencial.

Destaca-se a título de exemplo o tipo de colonização

portuguesa no Brasil em relação aos negros e indígenas, mantendo sobre eles o

domínio e impondo sua cultura, fortalecido por um complexo de superioridade.

Os próprios jesuítas, assim como inúmeros filósofos e

pensadores que se preocupavam com a salvação das almas dos negros e com as

suas condições de vida, tinham real consciência da sua importância para o

desenvolvimento da economia daquela época. Enquanto isso, inicialmente as

33 ROSE, Arnold M. A origem dos preconceitos. In: DUN, L.C. et. Al. Raça e ciência, 1972. p. 163. 34 SANTOS, Joel Rufino dos. O que é racismo, 1984. p. 39. 35 AZEVEDO, Eliane. Raça, conceito e preconceito. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 23.

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índias e posteriormente as negras eram sexualmente usadas e os filhos advindos

dessa união não eram reconhecidos tampouco valorizados.

Sob o âmbito mundial, a situação também não era das

melhores. Os descobrimentos e colonizações contribuíram para a propagação do

racismo, na medida em que aumentava a pobreza e a diferença entre as classes

sociais.

O ápice da difusão desse fenômeno deu-se com a

exploração de argumentos biológicos para justificar as diferenças raciais pelo

francês Joseph-Arthur Gobineau36, até hoje considerado o pai do racismo, que

associava os negros aos macacos, escritor ensaio “A Desigualdade das Raças

Humanas” e também os escritos de Charles Kingsley.

Joseph-Arthur Gobineau, em síntese, defendia que os

arianos representavam a raça suprema no mundo moderno. Para ele, negros,

índios e brancos formam espécies diferentes, assim no caso de cruzamento entre

si o descendente seria estéril ou teria alguma deficiência.

Tais obras somadas as de outros autores baseadas na

narrativa de viagens que descrevem vulgarmente as diferenças étnicas,

auxiliaram na propagação de uma idéia errônea que até pouco tempo atrás era

universalmente aceita.

Embora a pesquisa de Darwin materializada em: Origem das

Espécies, baseada, em resumo, na evolução das espécies tenha trazido novos

argumentos científicos no que toca à raça humana, a influência social e

hostilidade a determinados grupos, não diminuiu.

1.5 DEFINIÇÃO DE RAÇA

A categoria raça não guarda relação com o fator biológico,

mas é muito utilizada na identificação de um grupo cultural ou étnico- lingüístico,

36 Ibidem, p. 25.

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adquirindo uma variedade de significados. Nesse viés, o sentimento das

diferenças raciais é universal.

Dunn37 enfatiza que:

A opinião da Biologia é, no presente caso, clara e inequívoca. A concepção moderna de raça, fundada sobre as teorias da hereditariedade, priva de toda justificação a antiga concepção segundo a qual existiram diferenças fixas e absolutas entre raças humanas e, por conseguinte, uma hierarquia de raças superiores e inferiores. Para os sábios atuais, as raças são subdivisões biológicas de uma espécie única, a do Homo Sapiens, dentro da qual as características hereditárias comuns a toda espécie ultrapassam de longe as diferenças relativas e mínimas que separam as subdivisões. Esta mudança de perspectiva biológica tende a revalorizar a concepção de unidade humana que se encontra nas antigas religiões e mitologias, e que tinha desaparecido durante o período de separatismo geográfico, cultural e político, do qual saímos atualmente.

Para Eliane Azevedo38:

O ponto fundamental do conceito de raça é o fato de que as populações, em cujas características se elaboram as classificações raciais, pertencem à mesma espécie. Em outras palavras, o mais fundamental aspecto biológico das raças está naquilo que as une e não naquilo que as separa.

Cientificamente, é sabido que as raças não têm origens

genéticas diferentes, as diferenças físicas que deram origem à classificação das

mesmas resultam de adaptações climáticas, de acordo com as regiões que os

homens ocupavam acentuado pelo processo de seleção natural. Assim,

sociologicamente, as raças surgiram quando o homem já havia atingindo o

estágio de homem moderno.

37 DUNN, L.C. Raça e Ciência. p. 8. 38 AZEVEDO, Eliane. Raça, conceito e preconceito. p. 22.

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Inicialmente, importa ressaltar a idéia de que é impossível

delimitar as raças, pois as variações existentes entre tais grupos são superficiais,

o que inibe, ou melhor, impossibilita a separação biológica. A maioria das

classificações baseiam-se em características físicas, o que é ineficaz. Os estudos

de freqüências gênicas, através de marcadores genéticos no sangue também não

são perfeitos.

O mais importante é que embora as variadas características

do ser humano, todos pertencem à mesma espécie. Essa idéia de unicidade está

relacionada à descoberta da hereditariedade biológica. Todos os homens

descendem de ancestrais comuns sendo, portanto, apresentados pelo sangue,

tendo uma herança biológica comum.

Essa evidente variedade de características físicas dos

grupos tem uma importância prática no sentido de que estabelece separações

entre a população. Por exemplo, a cor da pele oferece imediata impressão da

diferença entre os grupos.

De maneira geral, é comum dizer que a raça é caracterizada

pela freqüência de características hereditárias que não aparecem uniformemente

em todos os seus membros. Ocorre que além dos indivíduos se diferenciarem, o

meio no qual estão inseridos, também não é o mesmo e algumas combinações de

genes, se adaptam melhor do que outras a certas condições.

Interessante mencionar o trecho do artigo de Harry

Shapiro39:

Se compararmos as raças sob o ponto de vista da resistência biológica, também não se constatam, pelo menos até o presente momento, diferenças acentuadas que permitam afirmar que uma seja superior à outra. Certos fatos parecem provar que todas as raças se adaptam progressivamente ao seu meio, o que lhes permite acomodar-se melhor às suas condições de existência do que o fazem os grupos de invasores adaptados a condições diferentes. É assim que as recentes pesquisas sobre a perda do

39 SHAPIRO, L. HARRY. Raça e Ciência. p. 133-134.

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calor corporal provaram que os negros dispõem, nesse aspecto, de um mecanismo fisiológico mais eficaz que os brancos. Não se segue que o negro tenha uma superioridade biológica sobre o branco, salvo nas circunstâncias especiais onde este fenômeno de adaptação constitui para ele uma vantagem. Analogamente os esquimós têm, no seu próprio meio, uma clara superioridade sobre todas as outras raças; mas esta vantagem torna-se para eles um inconveniente em outras regiões. Pretende-se, por vezes, que as raças que vivem sob climas menos extremos e não sejam constrangidas a adaptar-se a situações também especiais, se acomodam a uma maior variedade de condições mesológicas. Mesmo se assim for, seria difícil classificar estas raças a partir de sua resistência biológica, visto que tais julgamentos só têm, no fim de contas, um valor relativo e provisório.

No que diz respeito a idéia de raça pura, registre-se que é

incompatível com os conhecimentos de genética desenvolvida até então, portanto

anticientífica. A mistura dos povos acompanhou os agricultores ainda no período

de difusão do emprego do arado e posteriormente os bárbaros, que inventaram o

carro de guerra, domesticaram o cavalo e diversas outras invenções e se

espalharam por toda a Europa.

Até mesmo entre os judeus, que são conhecidos por um

certo isolamento reprodutivo, a partir de estudos de cálculos de freqüências

gênicas, constatou-se uma mistura racial na taxa aproximada de 1% de genes por

geração. Para corroborar40:

Todavia, estudos antropológicos demonstram semelhanças entre judeus e não-judeus vivendo na mesma região, e os geneticistas, através de cálculos de freqüências gênicas, concluíram que existe mistura racial entre os judeus a uma taxa média de 1% de genes por geração.

Então, fica claro que tendo como justificativa a especialidade

científica, do ponto de vista biológico as raças humanas não existem, tese já

pacificada. Seguindo essa linha de raciocínio, a idéia de classificação biológica de

40 AZEVEDO, Eliane. Raça, conceito e preconceito. p. 33.

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afro-descendência através da morfologia, fica para segundo plano, ou melhor, é

amplamente desvalorizada.

Resta a identificação a partir das características e critérios

de ordem psicológica e cultural, o que deixa inúmeras dúvidas. A própria

categoria ‘mulato’, por exemplo, dentre tantas outras, é popular e não de

antropologia física.

Incabíveis e superadas, portanto, as teses referentes à

pureza e uniformidade de raças, destaca-se a imprecisão, má colocação e

confusões geradas pelo termo mulato.

1.5.1 O que é racismo?

Colhe-se do artigo 1º, da Convenção Internacional Sobre a

Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial a única definição de

discriminação racial disponível no ordenamento jurídico:

A expressão discriminação racial significará qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseadas em raça, cor, descendência ou origem racial ou étnica que tem por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano (em igualdade de condição), de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de sua vida.

Esse reconhecimento dos direitos humanos foi aprovado

pela Assembléia Geral da ONU em 1965, ratificada pelo Brasil através do Decreto

Legislativo nº 23, passando a ter efeitos a partir de 1969, promulgado pelo

Decreto nº 65.810.

Na sua obra de Direito Constitucional Walter Ceneviva41

conceitua racismo “como o tratamento desigual manifestado pelo agente, em

41 CENEVIVA, Walter. Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 78.

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função de raça ou cor de pele, ou qualquer outro ato em que se identifique a

desigualdade segundo critérios objetivos.”

No ordenamento jurídico brasileiro racismo é caracterizado

pelo tratamento desigual baseado na etnia ou cor da pele, pelo sentimento de

superioridade de determinado povo em detrimento dos demais.

Joel Rufino dos Santos42 cita em sua obra: ”O racismo é

fenômeno universal. O homem está sempre defendendo seu espaço contra a

invasão de outros, os quais, freqüentemente pertencem a outras raças”.

Em síntese, o termo racismo caracteriza-se pelo tratamento

desigual baseado na cor e etnia. É uma ofensa que leva em consideração

algumas características físicas e também culturais do indivíduo.

1.5.2 Definição de cor

Indubitavelmente, trata-se de algo extremamente

insignificante mas que pode desencadear em graves e violentas práticas

discriminatórias.

Para Rodrigo César Rebello Pinho43: “A cor corresponde à

maior ou menor pigmentação da pele”.

Como já abordado anteriormente, ao ser avaliada

fenotipamente tem uma relação muito fraca com o grau de ancestralidade

africana, fato que gera inúmeras confusões principalmente num país tão tico em

miscigenação quanto o Brasil.

Visando dar sustentação à esse distanciamento entre a cor e

o grau de ancestralidade de um determinado indivíduo, vale-se do seguinte

apontamento extraído de uma reportagem da Revista Veja:

42 SANTOS, Joel Rufino dos. O que é Racismo. p. 18. 43 PINHO, Rodrigo César Rebello. Teoria geral da Constituição e direitos fundamentais. Rio de

Janiero: Takano, 2001, v. 17. p. 95.

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1.6 AFINAL, QUEM É NEGRO NO BRASIL?

Na sociedade atual, a genética ganha uma inserção cada

vez maior. Assim, estando em voga os debates quanto à legitimidade das cotas

universitárias para negros, enquanto ação afirmativa, os geneticistas são

chamados a responder o questionamento: quem é realmente negro no Brasil?

Em que pese toda pressão por uma resposta definitiva no

plano científico, concluem Pena e Bortolini44:

Tendo em vista a nova capacidade de se quantificar objetivamente, por meio de estudos genômicos, o grau de ancestralidade africana de cada indivíduo, pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações afirmativas? Prima facie poderia parecer que sim, mas a nossa resposta é um enfático NÃO... Acreditamos que a genética moderna pode oferecer subsídios para as decisões políticas e que o perfil genético da população brasileira certamente deve ser levado em conta em decisões políticas. Por outro lado, a genética não pode arrogar-se um papel prescritivo explícito.

Raça é apenas uma construção social e é inócua a tentativa

de se adotar um critério científico de grupos raciais. Mas não é só, como a cor é

um fraco fator de predição de ancestralidade genômica africana, conclui-se que

nem todo afro-brasileiro é negro e nem todo negro é geneticamente um

afrodescendente.

O assunto é delicado e mostra-se complexo, na medida em que envolve fatores

genéticos, culturais, econômicos, políticos e sociais. Os estudos genéticos

realizados no Brasil reiteram o fato de que entre as características genômicas,

não existem correspondências e a miscigenação existe entre os mais variados

grupos étnicos. É que houve entrecruzamentos sucessivos entre os grupos, o que

os torna muito próximos.

44 PENA, S. D. P.; BORTOLINI, M. C. Pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas e

demais ações afirmativas? Estudos avançados, v. 18, n. 50, 2004. p. 46.

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A identificação através da autodefinição abre espaço para

inúmeras dúvidas e incertezas. Buscando equilibrar a polêmica aqui lançada,

Sandro César Sell 45 destaca que:

À identidade negra, então, associa-se a inseparabilidade de uma certa posição sócio-cultural. Um lugar onde o negro é esperado e um lugar do qual só com muito espanto e incômodo social ele pode se ver livre. Definida dessa maneira, a condição de negro aproxima tanto, e simplesmente, da posição de excluído, que é despiciendo dizer quão pouca operacionalidade jurídica teria esse conceito nas práticas de Ação Afirmativa.

Já que o Brasil caracteriza-se pela miscigenação,

predomina uma falsa impressão de que vivemos fraternalmente numa democracia

racial. Mas do cotidiano, percebe-se uma injusta opressão dissimulada, seja no

mercado de trabalho, na educação ou até mesmo na violência.

Inibir as atitudes discriminatórias que implicam no índice de

desemprego, salários mais baixos, menores oportunidades de ascensão social e

trabalhos mais degradantes é um desafio para a cidadania. Nesse caminhar, a tão

sonhada igualdade, em tese, já está garantida.

Nas linhas acima delineadas estão expostas questões

relacionadas ao preconceito de cor e discriminação racial, além de uma breve

evolução da legislação nacional: Lei Diogo Feijó, que aboliu o tráfico negreiro, Lei

Eusébio de Queiroz, Nabuco de Araújo, Lei do Ventre Livre e Lei dos

Sexagenários.

A seguir, um destaque especial para o princípio da dignidade da pessoa humana e igualdade e a legislação brasileira positivada relacionada ao assunto aqui discutido, ante a sua importância, enfatizando a necessidade de um amadurecimento social.

45 SELL, Sandro César. Ação afirmativa e democracia racial: uma introdução ao debate no Brasil.

Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002. p. 62. 49 Acerca da distinção entre as categorias direitos humanos e direitos fundamentais consultar KRETZ, Andrietta. Autonomia da Vontade e Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais. Florianópolis: Momento Atual, 2005.

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CAPÍTULO 2

APARATO NORMATIVO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AO PRECONCEITO DE COR E SUA APLICABILIDADE PRÁTICA: A

IMPORTÂNCIA DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988

2.1 DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS

Após um longo período de desigualdade escancarada, os

direitos humanos tornam-se a base da Sociedade. É que na Antigüidade o

fenômeno da limitação do poder do Estado era desconhecido e a grosso modo, as

leis que organizavam os Estados não atribuíam ao indivíduo direitos frente ao

poder estatal.

Entretanto, em algumas civilizações ancestrais, no Código

de Hamurabi, nos escritos de Platão e diversos outros filósofos já percebe-se uma

preocupação em atribuir não apenas deveres, mas também direitos aos seres

humanos.

Hodiernamente, está disposto no Ato das Disposições Finais

e Transitórias da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no

artigo 7º que: ”o Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos

direitos humanos.”

A origem dos direitos humanos está no direito natural

clássico, com a concepção de que o homem é titular dos direitos dados por Deus.

A expressão “direitos humanos” aparece pela primeira vez, aproximadamente em

1770, na França.

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O direito natural ou jusnaturalismo foi criado pela filosofia

estóica na Grécia Antiga e evidentemente reflete no ordenamento jurídico pátrio.

Alguns de seus pressupostos referem-se a preceitos universais e imutáveis e

outros adaptáveis à época e a determinadas regiões. Dessa forma, são regras

natas da natureza humana.

Na Antigüidade, não se destaca nenhum avanço relevante

acerca dessa temática. A sociedade medieval, por sua vez, era religiosa,

economicamente auto-suficiente, rural e coletiva. Com a transição para a

sociedade moderna e fortalecimento do comércio as pessoas começam a pensar

mais em si. O individualismo cresce juntamente com a urbanidade e é o fim do

domínio de uma só religião.

Começa a surgir um novo direito natural – racionalista – não

codificado. O simples fato de ser homem, já o fazia titular de direitos humanos. As

primeiras reivindicações dos autores ius naturalistas foram o direito a tolerância,

liberdade de religião e humanização do direito penal, com a limitação do poder do

Estado Absoluto.

Quando se fala em direitos humanos é bastante comum a

confusão conceitual entre com as categorias direitos fundamentais, as quais

inúmeras vezes são aplicadas como sinônimas. Aliás, no próprio Texto

Constitucional a terminologia utilizada “direitos fundamentais”, não é uniforme.

Veja-se, os direitos humanos49 são mais genéricos e amplos

de um ponto de vista geral, sob um âmbito internacional. Ao passo que os direitos

fundamentais estão num âmbito mais nacional, garantidos pelo ordenamento

jurídico de cada Estado.

O título II, do Texto Constitucional de 1988 “os direitos e

garantias fundamentais”, está subdividido em cinco capítulos: direitos individuais e

coletivos, direitos sociais, nacionalidade, direitos políticos e partidos políticos.

Especificamente, esses direitos e garantias fundamentais consagrados pela

Constituição estão limitados nos outros direitos garantidos, o que caracteriza o

princípio da relatividade.

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Como características, mais uma vez adota-se as exposições

da professora Andrietta Kretz, pelo cunho altamente didático. Ensina que o

“caráter analítico deve-se ao fato de haver um grande número de dispositivos

legais apresentados pela Constituição da República Federativa do Brasil de

1988.”50

No que toca ao pluralismo acrescenta: “é característica em

razão da redação final do texto constitucional acolher posições algumas vezes

controvertidas entre si.”51

E ainda quanto ao caráter pragmático “é conseqüência do

grande número de dispositivos constitucionais, que dependem de regulamentação

legislativa infraconstitucional, que estabelecem programas e diretrizes a serem

implementados e garantidos pelos poderes políticos.”52

Portanto, os direitos humanos no atual contexto

constitucional brasileiro envolvem um caráter analítico, pluralista e pragmático

que, em tese, são harmônicos entre si.

Quanto à sua evolução, o direito de liberdade é considerado

de primeira dimensão, cujas origens estão nas doutrinas iluministas e

jusnaturalistas dos séculos XVII e XVIII (Hobbes, Locke, Rosseau e Kant). Os

sociais, culturais e econômicos, além dos direitos coletivos provenientes dos

movimentos e reivindicações de justiça social do século XX, são direitos de

segunda dimensão.

Os transidividuais, aqueles que ultrapassam as fronteiras

das contendas nacionais - os direitos de solidariedade são de terceira dimensão.

Já os de manipulação genética, vida e morte são de quarta dimensão e,

finalmente, os relacionados à realidade virtual são os de quinta.

50 Ibidem, p. 68. 51 Ibidem, p. 69. 52 Ibidem, p. 69.

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Comumente, existem diversas teorias negadoras dos direitos

humanos, as quais tecem duras críticas que advêm de muitas frentes, desde

revolucionários até pensadores pós-modernos.53

Destaca-se a crítica marxista que diz respeito a visualização

dos direitos humanos como discurso da justificação da dominação social,

mascarando verdadeiras condições estruturais que só poderiam levar à

desigualdade social.

Outras sequer preocupam-se em fornecer bases sólidas de

justificação de suas posições, entretanto, tais críticas, não são objeto de estudo

do presente trabalho, razão pela qual, não será realizada maior abordagem. Aqui,

o enfoque é para uma perspectiva dos direitos humanos na medida em que se

encontram positivados ou assegurados pela Constituição.

2.2 OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS CONSTITUCIONAIS

Já que a idéia de soberania vem sendo rechaçada com o

passar dos tempos e fala-se em relações transnacionais, não mais internacionais,

faz-se necessário discorrer acerca dos princípios de um modo geral, enfatizando

sua importância frente à regra específica, propriamente dita.

Vale-se dos ensinamentos do filósofo Ronald Dworkin54,

desenvolvidos e difundidos pelo jurista e filósofo alemão Robert Alexy, o qual, ao

tratar do sistema de normas, defende a existência de uma diferença qualitativa e

conceitual entre princípios e regras.55

A norma denota o gênero, da qual o princípio e a regra são

as respectivas espécies. Os princípios são as normas de ordenação amplas, ou

mandados de otimização que podem ser cumpridos em diferentes graus ou

53 Ver SAMPAIO, José Adércio Leite. Direitos Fundamentais: Retórica e Historicidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. 54 DWOEKIN, Ronald. Los Derechos em Serio. 4. ed. Barcela: Ariel, 1999. 55 Sobre o assunto ver ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: A Teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação Jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001.

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níveis, segundo sejam aplicados por inteiro ou em partes, através do princípio da

ponderação.

Enquanto as regras, por sua vez, são as normas com

exigência de cumprimento integral ou descumprimento total, sendo que a sua

validade exige o cumprimento integral de seu conteúdo fático e jurídico.

De acordo com Ruy Samuel Espíndola56 os princípios são:

(...) estruturação de um sistema de idéias, pensamentos ou normas por idéia mestra, por um pensamento chave, por uma baliza normativa, donde todas as demais idéias, pensamentos ou normas derivam, se reconduzem ou se subordinam.

Portanto, existe uma quantidade enorme de valores éticos

intrínsecos aos princípios que atingem a Constituição como um todo,

emprestando-lhe uma significação uniforme. A grosso modo, possuem como

principais características a generalidade, primariedade e dimensão axiológica.

Mais especificamente, acerca do princípio constitucional,

assegura Luís Roberto Barroso57:

Conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins (...) normas eleitas pelo constituinte como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui.

Os princípios gerais do direito constitucional surgem da

igualdade que se apregoa nas sociedades democráticas e possibilitam a

interpretação e aplicação do Texto Constitucional.

De outra banda, as regras notoriamente denotam comandos

diretos que servem apenas para determinadas situações e que são sempre

específicas e positivadas.

56 ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 47.

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Diante deste contexto, os juristas precisam estar atentos e

preparados para trabalharem com os princípios que não se acabarão com a

globalização cada vez mais evidente, o que já não pode ser garantido no que

tocam as regras.

A professora Andrietta Kretz58 ensina que:

Outro aspecto inovador é o fato da Constituição de 1988 apresentar o principal rol de direitos fundamentais bem no início do texto, ou seja, logo após o preâmbulo e os princípios fundamentais. Também faz uso da terminologia “direitos e garantias fundamentais”, que nas Constituições Brasileiras anteriores de 1988 apresentava-se como “direitos e garantias individuais”, muito embora a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, não apresente uma uniformidade em todo o texto constitucional no uso terminológico da categoria “direitos e garantias fundamentais”.

Mais uma vez Andrietta Kretz59 esclarece:

(...) Alexy destaca o caráter prima facie, tendo em vista que os princípios ordenam que algo deva ser realizado na “maior” medida do possível, levando em conta as possibilidades jurídicas e fáticas, por isso não contêm mandatos definitivos e sim prima facie. O princípio não determina como deverá ser resolvida uma relação entre razões opostas. Por esta razão, os princípios não possuem conteúdo determinativo com relação a princípios opostos ou possibilidades fáticas. Já as regras, pelo contrário, apresentam um conteúdo exato, ou seja, contêm uma determinação no âmbito das possibilidades jurídicas e fáticas, e essas mesmas possibilidades poderão fazer com que a regra não seja válida.

Assim, percebe-se que, de maneira sintética Andrietta Kretz

destaca que os princípios suscitam problemas de validade e peso, já as regras

somente questões de validade.

57 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 151. 58 Para maiores elucidações pesquisar em KRETZ, Andrietta. Autonomia da Vontade e Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais. p. 68. 59 Ibidem, p. 65.

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Embora bastante difundida é importante fazer esta distinção

entre as categorias ora trabalhadas posto que facilitam a compreensão da

discussão proposta.

O artigo 1º da Constituição de 1988 dispõe que “A República

Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e

do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de direito.” A partir daí,

fica a ressalva de que o sistema de governo é republicano, descentralizado

política e administrativamente e fundado na soberania popular.

2.2.1 O princípio da dignidade da pessoa humana

Como anteriormente exposto, um princípio é o pilar do

ordenamento jurídico, a substância do direito. Sendo anteriores à própria lei,

devem ser respeitados, estando inseridos de fato, no ordenamento jurídico

atribuindo eficácia à norma.

Nessa discussão, não poderia deixar de citar como

fundamentos o princípio da legalidade, igualdade e dignidade da pessoa humana,

essenciais em sede de Estado Democrático de Direito.

Indubitavelmente, a luta pela garantia das liberdades

individuais foi marco precursor inafastável, de forma que os conceitos de

liberdade e dignidade se confundem como que se considerasse a dignidade como

evolução natural daqueles.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

nos seus artigos 1º, inciso III, e 60, § 4º, inciso III, estabeleceu como fundamento

do Estado Democrático de Direito o princípio da dignidade da pessoa humana.

Quando presente a prática de condutas como preconceito e discriminação essa

dignidade é arrombada.

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Rizzato Nunes61 lecionando acerca da dignidade oferece o

seguinte conceito:

(...) é um conceito que foi sendo elaborado no decorrer da história e chega ao início do século XXI repleto de si mesma como um valor supremo, construído pela razão jurídica. Com efeito, é reconhecido o papel do Direito como estimulador do desenvolvimento social e freio da bestialidade possível da ação humana. (...) se torna necessário identificar a dignidade da pessoa humana como uma conquista da razão ético-jurídica, fruto da reação à história de atrocidades que, infelizmente, marca a experiência humana.

Na sociedade atual já se reconhece que a dignidade da

pessoa humana, antes de se constituir apenas em princípio constitucional,

representa uma ampla qualidade intrínseca do ser humano, não dependendo de

nenhuma previsão legal para ser reconhecida. Aqui, reporta-se àquela distinção

entre as categorias regras e princípios.

É aceito que a partir do reconhecimento pelos cristãos da

igualdade entre cidadãos e escravos, os quais passaram a ser reconhecidos

como filhos de Deus o conceito de dignidade ganha valoração. Em seguida, com

os ideais iluministas do fim do século XVIII, a visão de liberdade e igualdade,

representa a base das liberdades e dos direitos da personalidade do homem.

Assim se manifesta Kant62 sobre a dignidade:

No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade. (...) o que se faz condição para alguma coisa que seja fim em si mesma, isso não tem simplesmente valor relativo ou preço, mas um valor interno, e isso quer dizer, dignidade. Ora,

61 NUNES, Rizzato. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. Doutrina e

Jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 46. 62 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Tradução de

Leopoldo Holzbach, São Paulo: Martin Claret, 2004. p. 65.

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a moralidade é a única condição que pode fazer de um ser racional um fim em si mesmo, pois só por ela lhe é possível ser membro legislador do reino dos fins. Por isso, a moralidade e a humanidade enquanto capaz de moralidade são as únicas coisas providas de dignidade.

Aos poucos a necessidade de garantias mais amplas fica

cada vez mais presente, ganhando força a proteção ao interior do indivíduo, a

tutela à sua personalidade.

2.2.2 O princípio da igualdade

Os princípios democráticos fundam-se na igualdade,

liberdade e justiça. O Texto Republicano de 1988, por sua vez, prescreve

dispositivos rigorosos, transformando a prática de racismo em crime inafiançável

e imprescritível, sujeito ainda à pena de reclusão.

Contempla a Igualdade como um dos direitos fundamentais

rechaçando qualquer tipo de preconceito e discriminação. A igualdade é um

direito fundamental e serve como base para a completa exclusão das restrições

sociais.

Extremamente famosa a máxima de Aristóteles baseada em

tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua

desigualdade. É que em dadas situações constata-se que o tratamento igual para

os iguais e o tratamento desigual para os desiguais pode aumentar ainda mais a

desigualdade.

Para José Cretella Júnior63:

A igualdade não é e nem pode ser um obstáculo à proteção que o Estado deve aos fracos. Consiste a igualdade em considerar desigualmente condições desiguais, de modo a abrandar, tanto quanto possível, pelo direito, as diferenças sociais e por ele

63 CRETELLA JÚNIOR, José. Elementos de direito constitucional. 1998. São Paulo: editora revista dos Tribunais, 1998. p. 184.

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promover a harmonia social, pelo equilíbrio dos interesses e da sorte das classes.

Não obstante, é comum ouvir ou ler que de todos os

objetivos que a humanidade busca, a igualdade destaca-se como sendo um dos

mais antigos, posto que o homem no fim sempre desejou ser tratado igual.

Alexandre de Moraes64 acrescenta:

O princípio da igualdade consagrado pela Constituição opera em dois planos distintos. De uma parte, frente ao legislador ou ao próprio executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos normativos e medidas provisórias, impedindo que possa criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que se encontram em situações idênticas. Em outro plano, na obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública, de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento.

O fundamento filosófico do princípio em análise é a paridade

essencial de todos os homens enquanto seres racionais e livres, com a mesma

dignidade. Toda disposição normativa que estabeleça alguma diferenciação tem

que estar sustentada por uma justificativa racional, sob pena de se tornar hostil à

igualdade constitucional.

Então, a lei é fonte de discriminação pela relevância jurídica

que dá a este ou aquele critério diferenciador que, em regra, tem origem

extrajurídica. Por isso, afasta-se qualquer alusão à proibição de fomentar de

maneira positiva situações que privilegiem determinados grupos que se encaixam

numa posição social de desfavorecimento.

Faz-se necessário investigar se o critério discriminatório

adotado possui fundamento lógico ou justificativa racional para atribuir o

específico tratamento jurídico em razão da desigualdade. É que o aludido

princípio não impede a distinção, mas sim a diversidade de estatuição de medida

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material e formalmente não discriminatória, dependendo para caracterizar a

inconstitucionalidade da falta de razoabilidade e consonância com o sistema

jurídico.

O que se busca é uma igualdade fática que afaste a

exclusão étnica-social e a disparidade econômica existente entre negros e

brancos, já que a distância entre as duas categorias sociais é enorme.

A igualdade precisa ser um fator presente e real

principalmente, num Estado Democrático de Direito, mormente porque a

legitimidade do ordenamento jurídico é construída a partir de processos

democráticos onde haja participação igualitária, autônoma e discursiva dos

destinatários das normas.

A igualdade pode ser formal e material. Conforme o

entendimento de Rodrigo César Rebello Pinho65:

Há duas espécies de igualdade: formal e material. A formal, dentro da concepção clássica do Estado Liberal, é aquela em que todos são iguais perante a lei. (...) a material (...) Trata-se da busca da igualdade de fato na vida econômica e social.

Na acepção de igualdade formal o Estado não pode

discriminar, enquanto que na acepção de igualdade material, o Estado deve

alcançá-la atentando-se para as necessidades dos grupos que são menos

favorecidos. Pode-se dizer que além da igualdade material vedar o tratamento

discriminatório, abre espaço para a implantação de políticas públicas culturais

inclusivas.

64 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1° e 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. São Paulo: editora Atlas. 2007. p. 82. 65 PINHO, Rodrigo César Rebello. Teoria geral da Constituição e direitos fundamentais. P. 91.

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2.3 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO APARATO NORMATIVO BRASILEIRO EM

RELAÇÃO AO PRECONCEITO DE COR

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é

essencial para a organização básica do Estado e sua estrutura política. Com a

previsão de direitos e garantias fundamentais é um elemento substancial para a

democracia social e combate ao racismo. É a partir dela que decorrem as demais

regras positivadas. Alexandre de Moraes66 explica que:

Constituição deve ser entendida como a lei fundamental e suprema de um Estado, que contém normas referentes à estruturação do Estado, à formação dos poderes públicos, forma de governo e aquisição do poder de governar, distribuição de competências, direitos, garantias e deveres dos cidadãos. Além disso, é a Constituição que individualiza os órgãos competentes para a edição de normas jurídicas, legislativas ou administrativas.

É difícil conceituar o que vem a ser Constituição, mas o

ponto comum é de que trata-se de uma norma fundamental. Nesse sentido Celso

Ribeiro Bastos67 destaca que:

Tentar oferecer um conceito de Constituição não é das tarefas mais fáceis de serem cumpridas, em razão de este termo ser equívoco, é dizer, prestar-se a mais de um sentido. Isso significa dizer que há diversos ângulos pelos quais a Constituição pode ser encarada, conforme seja a postura em que se coloque o sujeito, o objeto ganha outra dimensão. Seria como um poliedro que fosse examinado a partir de ângulos diferentes. Para cada posição na qual o observador se colocasse, facetas diferentes dessa figura geométrica seriam vistas, não lhe sendo possível examiná-la toda de uma só vez. Exatamente assim ocorre com a Constituição. Não se pode dar um conceito único, pois ela varia conforme a ótica a partir da qual se vai visualiza-la.

66 MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. São Paulo. Atlas. 2005, p. 83. 67 BASTOS, Celso Ribeiro. Fundamentos do direito constitucional. 2ªed. (2003) 4ª tiragem, Curitiba: Juruá, 2006. p.80.

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Quanto à sua origem, a Constituição vigente no país é

resultado de diversos acontecimentos, não golpes de Estado, mas sim da

necessidade de um novo ordenamento jurídico, principalmente ante a conhecida

“revolução prolongada”.

Já em 1215, o rei da Inglaterra, conhecido como João Sem

Terra, realizou juntamente com os barões feudais um acordo que teve como

conseqüência a Magna Charta Libertatum - um tipo de contrato de domínio que

desencadeou uma série de textos que contribuíram para a evolução das

constituições.

A Magna Charta Libertatum é reconhecida como o ponto de

partida para outros textos que, da mesma maneira, são tradicionalmente

considerados grandes colaboradores para a estruturação das constituições, a

saber: a Petition of Rights, o Habeas Corpus Act e Bill of Rights, de 1628, 1679 e

1689.

No que diz respeito à classificação da Constituição Brasileira

quanto ao seu conteúdo é solenemente formal, de forma escrita, dogmática

quanto ao modo de elaboração, promulgada quanto a origem, rígida porque exige

procedimento formal e complexo para a sua alteração e analítica.

Realizada a cronologia das principais leis que proibiram o

tráfico de escravos para o Brasil, englobando a promulgação do Código Criminal

em 1830, com penas rígidas para àqueles que praticassem o tráfico de escravos,

faz-se um breve histórico das legislações brasileiras quanto ao preconceito de

cor.68

O Código Criminal do Império de 1831 conferia ao escravo o

poder de ser sujeito ativo dos crimes e de não ser sujeito passivo no caso de

cárcere privado ou açoite. E os Códigos Penais de 1890 e 1940 não deram tanta

importância para a questão da discriminação em razão da cor.

68 Sobre a formação constitucional do Brasil, ver BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB Editora, 2004.

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A Constituição Política do Império do Brasil de 1824 vale-se

da ideologia de escravidão de negros, ratificada pelos jesuítas. A preocupação

expressa com o preconceito, ainda não esteve presente na Constituição da

República dos Estados Unidos do Brasil de 1891, tampouco na Constituição da

República dos Estados Unidos do Brasil de 1934, 1937 e de 1946. Mas nessa

época já havia a permissão para que todos os indivíduos pudessem exercer seus

cultos ou religiões desde que não ofendesse a lei e a moral.

A Lei nº 1390/1951 (Lei Afonso Arinos) é considerada o

primeiro diploma legal que objetivava combater a discriminação racial. A punição

equivalia à prática de contravenção penal que possui legislação própria (Decreto-

Lei nº 3.688/41) e comumente é chamada de crime anão, pois é considerada um

crime menos grave que as demais infrações.

Em 1956 foi editada a Lei nº 2.889 que definiu o crime de

genocídio como comportamento com a intenção de destruir, no todo ou em parte,

grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Por outro lado, não era considerado

como político para efeito de extradição.

A Constituição do Brasil de 1967, menciona expressamente

no artigo 150, § 1º, quando trata de direitos e garantias individuais: “Todos são

iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e

convicções políticas. O preconceito de raça será punido pela lei.”

Constata-se a utilização do termo raça, hoje considerado

inadequado e referência sutil ao termo preconceito. Trata-se, portanto, de uma

iniciativa ainda que restrita.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1969,

não traz qualquer inovação pertinente ao tema, repetindo no artigo 153, o

disposto no artigo 150, da Constituição de 1967.

Finalmente, a Constituição da República Federativa do Brasil

de 1988, que destaca como objetivo fundamental, no inciso IV, do artigo 3º:

“promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, cor, idade e

quaisquer outras formas de discriminação”.

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Notoriamente, o texto constitucional almeja a consolidação

de um Estado Democrático de Direito e já no preâmbulo concebe à igualdade o

status de valor supremo. Ao tratar da matéria no artigo 3º, Título I, Dos Princípios

Fundamentais, ressalta a importância do tema e torna esses direitos efetivamente

em princípios.

No artigo 4º, inciso VIII, resta repudiado o racismo em sede

das relações internacionais e o artigo 5º, inciso XLII, considera o crime

imprescritível. Mais adiante o artigo 7º, inciso XXX, proíbe expressamente a

diferença de salários e critérios de admissão por motivo de cor e resta atribuído

ao Estado o dever de colocar a criança a salvo de toda forma de discriminação no

artigo 227.

A Constituição de 1988 reconhece que o preconceito ainda

não foi eliminado e condena qualquer tipo de diferenciação, pune severamente o

crime de racismo tornando-o inafiançável e imprescritível. Isto é, o Estado tem o

direito de aplicar a punição ao agente em qualquer tempo e no caso de prisão,

não existe direito ao oferecimento de garantia, seja em dinheiro ou em

equivalente monetário para organizar a defesa em liberdade.

O problema é que nem os crimes considerados hediondos,

como o estupro e o homicídio qualificado, não são considerados imprescritíveis,

apesar da gravidade dessas condutas e das penas serem muito superiores aos

dois anos de reclusão, pena mínima de muitos crimes de racismo.

Como no Brasil existem outros crimes que preocupam muito

mais à sociedade, aparentemente fica difícil entender a gravidade desse tipo que

comporta pena de reclusão (probabilidade de execução da pena em regime

fechado), vedação de fiança e imprescritibilidade.

Evidente que a proibição constitucional não consegue inibir

de modo substancial atitudes preconceituosas já praticadas há séculos, mormente

porque o preconceito é uma realidade de todas as sociedades do mundo.

Entrementes, é um avanço das Constituições anteriores onde os direitos e

garantias individuais eram tratados nos artigos finais.

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A Constituição Federal de 1988 traça um modelo de Estado

Democrático de Direito, trazendo no decorrer do seu texto o respeito às

diferenças. Embora os defeitos que as palavras utilizadas possam apresentar

cabe ao intérprete investigar qual é o conteúdo real da norma jurídica.

Como a sociedade avança desenfreadamente, não se pode

ficar restrito à uma mera interpretação sistemática, sob pena de inviabilização de

julgamentos baseados na eqüidade e amplitude da distância entre a lei e a justiça.

A lei deve estar em harmonia com as novas realidades.

Nesse caminhar, Francesco Ferrara69 expõe que:

“o texto da lei não é mais do que um complexo de palavras escritas que servem para uma manifestação de vontade, a casca exterior que encerra um pensamento, o corpo de um conteúdo espiritual.”

Agora, o principal instrumento de criminalização no Brasil

está positivado no Código Penal, através da Lei nº 7.716/1989, atualizada pelas

Leis nº 8.081/1990, nº 8.882/1994 e nº 9.459/1997. Essa Lei qualificou a conduta

discriminatória como crime, já que pela Lei Afonso Arinos de 1951, era

considerada mera contravenção conforme mencionado anteriormente.

A Lei que criminaliza a prática de racismo relaciona no seu

artigo 1º as condutas de discriminação e preconceito apenas para os casos

referentes à raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

O caput do artigo 20 da Lei nº 7.761/1989 assim dispõe:

“Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor,

etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e

multa.”

A Lei é muito detalhista e até mesmo prolixa, na medida que

tipifica como crime uma série de situações agrupadas da seguinte maneira: os

69 FERRARA, Francesco. Como aplicar e interpretar as leis. Lider, 2002. p. 33.

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artigos 3º, 4º e 13, tratam das limitações ao trabalho; os artigos 5º, 7º ao 10º , da

obtenção a serviços ou bens; o artigo 6º, da limitação à educação; os artigo 11 e

12; da locomoção e o artigo 14, da convivência familiar e social.70

Analisando essa lei como um todo percebe-se que o que se

busca é a igualdade. Porém, falta aplicabilidade a essa norma que tipifica os

crimes decorrentes do preconceito de raça ou cor. Um dos principais motivos é

que prevê penas muito severas, que dificilmente serão imputadas aos agentes,

uma vez que a sociedade como um todo considera o problema inexistente.

A Lei 8.072/1990 confere ao genocídio o caráter de crime

hediondo, mesmo na forma tentada. No âmbito local, na cidade de Itajaí, cita-se a

Lei nº 4.025 de 2003, a qual declara de utilidade pública municipal, o Núcleo de

Reflexão Afro-Descendentes Manoel Martins dos Passos da Região Foz do Rio

Itajaí. As principais finalidades do Núcleo estão estabelecidas no artigo 1º dessa

Lei:

os valores fundamentais do ser humano, o combate ao racismo, a defesa dos direitos individuais e coletivos, a promoção humana, social, política cultural, esportiva e educacional voltada às populações afro-descendentes.

Para a promulgação da Lei nº 3.761 de 2002, que alterou a

Lei Municipal nº 2.830 de 1993, incluindo no Programa Multidisciplinar o conteúdo

de Cultura Afro-Brasileira, o Núcleo Afro-Descendentes Manoel Martins dos

Passos teve notória mobilização.

Outra regra que altera o disposto na Lei nº 2.830 é a Lei nº

4.008 de 2003, nos seus artigos 5º e 6º, com a proposta de inclusão no calendário

escolar do Dia Nacional da Consciência Negra, na data de 20 de dezembro.

Mais tarde, o Decreto nº 7.733 de 2005 institui no município

o programa de Educação para Diversidade Étnica e Cultural, cujo objetivo é

implementar a Lei Federal nº 10.639, que inclui, no âmbito federal, a

70 Também utilizando essa divisão AGUIAR, Alexandre Magno Fernandes Moreira. Crítica à incriminação do racismo. Jus navegandi, Teresina, ano 10, nº 1128, 3 ago. 2006. Disponível em:

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obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira, no currículo oficial

da Rede de Ensino.

A existência da Coordenadoria Especial de Promoção da

Igualdade Racial (COEPIR) no Município de Itajaí, a qual promove diversos

debates, fóruns e outras atividades voltadas para a efetiva implementação da Lei

Federal nº 10.639 de 2003.

Existem dois fatores principais que implicam no desrespeito

às legislações vigentes, a saber: a interpretação das leis pelos operadores do

direito e a falta de profissionais que além de entender se dediquem a questão

aqui debatida.

Apesar da abundância de dispositivos que tratam da

matéria, o despreparo e interesses econômicos levam a impunidade.

Absurdamente, já existem diversas tentativas de acordo para os crimes raciais,

sob o âmbito da Lei 9.099/95, cujo rito especial notoriamente não comporta tal

tipo penal.

Somadas essas prejudiciais ao fato de que o processo

contra a discriminação se baseia quase que exclusivamente na prova testemunhal

e que as testemunhas evitam se manter atuantes, a situação fica precária. Pelo

menos, a preocupação com sanções estatais no combate a condutas

discriminatórias já se faz presente.

Toda a abordagem acerca da Constituição Federal é

extremamente relevante já que algumas leis federais, estaduais e municipais com

o intuito de punir com rigor os autores dos crimes aqui tratados, surgiram a partir

da mesma, nas diversas passagens que remete a proteção dos direitos humanos.

2.4 DISTINÇÃO DO TIPO INJÚRIA QUALIFICADA NA MODALIDADE

PRECONCEITUOSA, DO CRIME DE PRECONCEITO DA LEI 7.716/89

Na diferenciação dos tipos penais, injúria qualificada ou

preconceituosa (artigo 140, §3º, do Código Penal), com base na Lei 7.716/89,

http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8735. Acesso 17 mai 2007.

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entende-se que o elemento subjetivo do agente - sua intenção - é essencial para

o enquadramento do tipo penal.

Dispõe o artigo 140, §3º, do referido Diploma Legal:

Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa. § 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003) Pena - reclusão de um a três anos e multa. (Incluído pela Lei nº 9.459, de 1997).

No caso de injúria, por exemplo a ofensa limita-se a uma

pessoa específica e resta ferida a honra subjetiva da vítima, a sua dignidade. O

objetivo não seria agredir todos os negros ou outro determinado grupo étnico

como um todo, pois daí sim, estaria configurado o crime de preconceito, cuja

consecução independe dos resultados que venham a ocorrer.

A jurisprudência catarinense não discrepa71:

PENAL - PRECONCEITO DE RAÇA OU COR - LEI N. 7.716/89 - ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE DOLO PELA DEFESA - CONDENAÇÃO MANTIDA - RECURSO DESPROVIDO Configura crime de racismo, a oposição indistinta à raça ou cor, perpetrada através de palavras, gestos, expressões, dirigidas a indivíduo, em alusão ofensiva a uma determinada coletividade, agrupamento ou raça que se queira diferenciar. Comete o crime de racismo, quem emprega palavras pejorativas, contra determinada pessoa, com a clara pretensão de menosprezar ou diferenciar determinada coletividade, agrupamento ou raça. O crime de racismo é tão repudiado pela consciência nacional que a Carta Política o considerou imprescritível (inciso XLII do art. 5º). O crime de racismo é tão repudiado pela consciência nacional que a Carta Política o considerou imprescritível (inciso XLII do art. 5º).

71 Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação criminal nº 2004.031024-0. Relator, Desembargador Amaral e Silva, julgado em 15 de fevereiro de 2005.

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Fernando Capez72 ensina que:

Para a configuração da injúria por preconceito, é fundamental, além do dolo representado pela vontade livre e consciente de injuriar, a presença do elemento subjetivo especial do tipo, constituído pelo especial fim de discriminar o ofendido por razão de raça, cor, etnia, religião ou origem. A simples referência aos “dados discriminatórios” contidos no dispositivo legal é insuficiente para caracterizar o “crime de racismo”, que, é bom que se diga, é inafiançável e imprescritível (art. 5º, XLII, da CF). Enfim, recomenda-se muita cautela para evitar excessos e coibir as transgressões legais efetivas, sem contribuir para o aumento das injustiças.

A injúria pode se dar através de todos os meios hábeis para

a manifestação do pensamento, seja de forma escrita, verbal, gestual e etc. O fato

é que a injúria qualificada afasta os institutos da imprescritibilidade e

inafiançabilidade. A maioria dos casos é considerado como injúria preconceituosa,

cuja pena é a mesma da Lei Caó, isto é, de 1 a 3 anos de reclusão e multa.

Esse instituto foi criado para que os denunciados pelo crime

de preconceito de cor alegassem somente ter praticado o crime de injúria,

considerado de menor gravidade. Daí a punição mais severa, se o homicídio

culposo por exemplo, é punido com detenção. Justamente por esse motivo

diversos pesquisadores alegam que tal instituo fere o princípio constitucional da

proporcionalidade entre os delitos e suas penas.

Inúmeras decisões descaraterizam o dolo dos acusados

pela prática discriminatória. A atitude inerte de muitos magistrados e também de

diversos promotores de justiça que desconsideram a existência do crime tipificado

no artigo 5º, inciso XLII, da Constituição Federal é mais um aspecto negativo que

implicam na predominância de uma discriminação mascarada.

72 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte especial – dos crimes contra a pessoa, dos crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos. Vol. 2. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 407.

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Como o Poder Judiciário não consegue oferecer uma

resposta satisfatória à população e a comprovação da existência do crime é

extremamente complexa, a maioria das vítimas sequer buscam a tutela

jurisdicional, ocasionando um verdadeiro descrédito.

2.5 BREVE DESTAQUES HISTÓRICOS ACERCA DO APARATO NORMATIVO

INTERNACIONAL EM RELAÇÃO À LIBERDADE E A IGUALDADE

Interessa destacar que existem diversas Convenções

Internacionais acerca do Racismo, a partir dos ideais contidos na Declaração

Universal dos Direitos do Homem em 1948, que reconhece os direitos humanos

fundamentais.

Aprovada em 09 de dezembro de 1948, a Convenção da

ONU considerou o crime de genocídio como contra o direito internacional,

contrário ao espírito e aos fins das Nações Unidas a que o mundo civilizado

condena. Já em 1942 a Declaração das Nações Unidas valoriza os direitos

individuais e em 1946 o Brasil, por decreto, constituiu a Comissão Especial de

Apuração de Patrimônios Nazistas.

Na realidade existe um complexo universo de instrumentos

universais e nacionais que protegem os direitos humanos. Dessa maneira, direitos

idênticos são tutelados por dois ou mais instrumentos de alcance regional ou até

mesmo global.

A convenção sobre a Eliminação de todas as formas de

Discriminação Racial foi ratificada pelo Brasil em 27 de março de 1968 reforça o

dever dos Estados em garantir a dignidade, liberdade e segurança jurídica.

Muito antes disso, a Magna Carta firmada pelo Rei João

Sem Terra em 1215, na Inglaterra, a Paz de Westfalia, de 1648, a Declaração de

Direitos dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, impulsionada pela

Revolução Francesa e a Constituição Alemã de Weimar, de 1919, a qual, tenta o

acréscimo dos princípios da democracia social.

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A Declaração Francesa proclamou a igualdade e a

universalidade dos direitos humanos, porém não conseguiu extinguir a separação

entre o homem e o cidadão, aceitando a legalidade da escravidão. Destaca-se a

influência de Roperpierre e Rousseau para a Revolução Francesa.

A Revolução Russa em 1918 leva à declaração dos direitos

do povo, dos trabalhadores e dos explorados, contemplando os direitos sociais, a

partir dos ideais de Lênin.

Em 1993, são realizadas inúmeras conferências mundiais,

como a Conferência Mundial de Direitos Humanos realizada em Viena, que

abordou dentre outras causas os direitos das minorias étnicas. Entretanto, deixou

sérias divergências no que toca ao conceito propriamente dito de direitos

humanos e as condições práticas de garanti-los.

Em 2001 foi proclamado pela Assembléia Geral das Nações

Unidas o Ano Internacional da Mobilização contra o Racismo, Discriminação

racial, Xenofobia e Todas as Formas de Intolerância. Ainda no mesmo ano em

Durban, África do Sul, houve um encontro governamental sobre o tema e como

conseqüência foram adotadas uma declaração e um programa de ação.

Atualmente, a idéia de igualdade étnica ganha espaço nos

debates internacionais, impondo aos cidadãos a irrestrita obediência às

concepções de dignidade, liberdade e igualdade.

2.6 REQUISITOS FORMADORES DA NORMA CONSTITUCIONAL:

LEGITIMIDADE, VALIDADE E EFICÁCIA

Fala-se bastante na chamada crise constitucional e transição

do constitucionalismo frente a capacidade que a norma jurídica tem em produzir

seus efeitos. O sistema de normas constitucionais existe para ser efetivado, na

medida em que os anseios da população sejam respeitados e os dispositivos

devidamente concretizados.

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Os pressupostos de validade, eficácia e legitimidade

implicam na formação da norma constitucional e merecem ser abordados até pela

confusão semântica que exercem nos estudos jurídicos.

Primeiramente uma norma precisa estar ligada aos

elementos que constituem o ato jurídico que normalmente se tratam do agente, do

objeto e da forma. A norma será válida quando respeitados os limites formais e

materiais impostos pela Constituição, ou seja, considerados os processos de

formação e produção. Sinteticamente, Tércio Sampaio Ferraz Junior73 esclarece

que findado tais processos, será publicada e a norma válida, partindo para a sua

vigência.

Para Hans Kelsen74 uma norma jurídica é considerada como

objetivamente válida apenas quando a conduta humana que ela regula lhe

corresponde efetivamente, pelo menos numa certa medida e que, se uma norma

nunca é aplicada nem respeitada em parte alguma, não será considerada como

norma válida.

Para que a norma seja válida é necessário que tenha

integrado o ordenamento legal em vigor, através de um procedimento legítimo

para a criação normativa. A validade da norma deriva de sua própria essência,

como categoria do dever ser, enquanto que a eficácia, de outro lado, significa a

observância da norma pelos que lhe estão sujeitos.

A norma será legítima quando predominar a concretização

dos fins sociais da legislação, proveniente dos anseios populares. Será eficaz do

ponto de vista social quando for obedecida e aplicada atendendo aos anseios da

população e do ponto de vista jurídico quando capaz de atingir o objetivo jurídico

delimitado pelo legislador.

A eficácia está relaciona à aplicação da norma jurídica e

pode ser dividida em absoluta, plena, contida e limitada. A eficácia absoluta está

relacionada à intangibilidade e efeitos visíveis que a impedem de ser alterada, até

73 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 196.

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mesmo por emenda (artigo 1º, por exemplo); a eficácia plena possibilita a

imediata aplicação da norma sem necessidade de lei posterior para tal (artigo 2º).

Quanto as de eficácia contida, Michel Temer75 conceitua

como “aquelas que tem aplicabilidade imediata, integral, plena, mas, que podem

ter reduzido seu alcance pela atividade do legislador infraconstitucional.”

De outra banda, as normas de eficácia limitada, não são

dotadas de aplicabilidade imediata integral. Para atingir a eficácia, estas

necessitam de regulamentação posterior, ou seja, por meio de uma lei ordinária

adquire a capacidade de atingir os efeitos pretendidos.

Ingo Wolfgang Sarlet76 assim dispõe acerca da eficácia

social:

Ou efetividade, pode ser considerada como englobando tanto a decisão pela efetiva aplicação da norma (juridicamente eficaz), quanto o resultado concreto decorrente – ou não – desta aplicação.

A efetividade, por sua vez é a soma da legitimidade,

validade e da eficácia, durante toda a vigência da lei ou de algum dispositivo dela.

As normas de uma ordem jurídica positiva valem (são válidas) porque a norma fundamental que forma a regra basilar da sua produção é pressuposta como válida, e não porque são eficazes: mas elas somente valem se esta ordem jurídica é eficaz, quer dizer, enquanto esta ordem jurídica for eficaz. Logo que a Constituição e, portanto, a ordem jurídica que sobre ela se apóia, como um todo, perde a sua eficácia, a ordem jurídica, e com ela cada uma das suas normas, perdem a sua validade (vigência). Uma ordem jurídica é considerada válida quando as suas normas são, numa consideração global, eficazes, quer dizer, são de facto observadas e aplicadas.

74 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 12. 75 TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional, 20ª ed. São Paulo: Malheiros Editora Ltda, 2005. p. 24. 76 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 215.

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Se verdadeiramente tivesse eficácia jurídica na aplicação da

lei, as ações levadas ao conhecimento do Poder Judiciário teriam respostas, ou

um maior número de casos pelo menos chegaria na esfera judicial.

O professor Osvaldo Ferreira de Melo77 ensina que o

paradoxo existente entre os valores aceitos pela sociedade e a norma possibilitam

uma desobediência repetitiva, que confere à norma o caráter de eficácia reduzida

ou inexistente.

A grosso modo, até existe harmonia entre a norma

constitucional e as demais leis derivadas, no entanto constata-se mesmo a

ineficácia de todas estas no âmbito de suas aplicações.

2.6.1 INEFICÁCIA SOCIAL DA LEGISLAÇÃO ANTI-RACISMO

A eficácia das normas vigentes que combatem a

discriminação, principalmente no Brasil, país potencialmente rico, mas

realisticamente pobre, que nega a predominância da existência de preconceito em

razão da cor da pele, é motivo de muito debate.

De modo geral, a legislação brasileira é abundante e severa

a respeito, já que tecnicamente a inefetividade não tem o poder de revogar as

leis. Não se olvida que a desinformação, fraca consciência jurídica crítica acerca

do tema em comento e o despreparo dos operadores do direito culminam na

inefetividade da produção legislativa brasileira.

Aliás, a formação inadequada e insuficiente desses

profissionais dificultam diretamente a condenação por discriminação racial. Até

porque a prova para este tipo de crime é extremamente difícil e processos são

reiteradamente arquivados.

Nem sempre existe gravação, testemunha, foto ou

documento que possam comprovar a versão da vítima. Ante o descaso político

77 Para um esclarecimento mais minucioso consultar MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política de direito. Porto Alegre: Antonio Fabris Editor/CMCJ-Univali, 1998.

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para com esta temática, poucas pessoas encaminham-se a uma delegacia para

formalizar uma ocorrência.

Literalmente, os artigos das legislações anti-racistas até

possuem certa eficácia jurídica, mormente porque são leis vigentes e editadas,

embora não aplicadas concretamente. Agora, para que exista a eficácia social, a

lei tem que ter potencialidade para regular determinadas relações, podendo ser

aplicada a casos concretos.

Repita-se, o problema na sociedade brasileira não é a

inexistência de leis, mas sim a falta de aplicação prática e adoção de políticas

culturais inclusivas. No caso de descumprimento não resta aos transgressores

nenhuma sanção.

Embora diante de todo o aparato normativo acima aquilatado

a discriminação racial é uma realidade presente e ostensiva, herdada do modelo

econômico e social adotado pelo Brasil colônia e o abandono dos negros com o

fim da abolição da escravatura.

O processo de evolução da ciência jurídica é um movimento

dialético, no qual a ampliação de direitos é uma constante. Portanto, é difícil falar

em esgotamento da fase histórica da busca de novos direitos e reafirmação dos

direitos humanos.

No próximo capítulo será feita uma análise da repercussão

prática do assunto ora debatido frente ao fundamento até aqui apresentado,

dando ênfase à implementação das legislações no Estado de Santa Catarina e

principalmente na cidade de Itajaí. Será discutida a implementação das políticas

inclusivas, que envolvem significativas mudanças no setor político, social e

econômico.

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CAPÍTULO 3

A BUSCA PELA IGUALDADE E INCLUSÃO SOCIAL NO ESTADO DE SANTA CATARINA

3.1 AÇÕES AFIRMATIVAS E SUA JURISDICIDADE

No capítulo anterior, foi feita uma abordagem acerca dos

principais dispositivos legais relacionados à discriminação e ao preconceito racial,

categorias já diferenciadas, incluindo um estudo sobre os princípios da igualdade

e dignidade da pessoa humana, enquanto fundamentos para a exclusão das

atitudes negativas para com os negros.

Ficou claro que a legislação não basta para modificar o

cenário que não é favorável às populações não-brancas. Falta aplicabilidade à

norma e não existe uma democracia racial. Diante desse quadro, discute-se as

medidas atuais para eliminar o preconceito e as desvantagens provenientes do

mesmo, enfatizando a situação do negro no Estado de Santa Catarina e

colacionando alguns julgados dos tribunais pátrios a título de parâmetro.

Com as polêmicas cotas raciais, as ações afirmativas

passam a ser debate obrigatório na ordem do dia. Entretanto, é comum as

pessoas manifestarem suas opiniões sem ter exata noção do que significam e

implicam esses tipos de ações. Fundamentam suas opiniões a partir do conteúdo

escasso e manipulador que em algumas situações a televisão oferece.

Criadas nos Estados Unidos onde era forte a tradição de

segregação das populações não-brancas, visando combater as minorias nas

escolas e relações empregatícias, as ações afirmativas ou discriminações

positivas são mecanismos de iniciativa pública ou privada que objetivam alcançar

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uma situação de igualdade material à determinadas minorias, cujas condições são

desfavoráveis.

Adota-se o conceito oferecido por Sandro Cesar Sell para

esclarecer o que de fato vem a ser uma ação afirmativa78:

A ação afirmativa consiste numa série de medidas destinadas a corrigir uma forma específica de desigualdade de oportunidades sociais: aquela que parece estar associada a determinadas características biológicas (como raça e sexo) ou sociológicas (como etnia e religião), que marcam a identidade de certos grupos na sociedade.

Tais medidas visam acabar com a situação desvantajosa na

qual encontram-se determinadas parcelas da sociedade. Tem que haver

coerência com os fatores de ordem social, política e econômica na tentativa de se

corrigir as distorções injustas produzidas ao longo da história brasileira, cujo

passado colonial deixou os negros numa posição crítica.

É muito difícil se manifestar acerca desse assunto,

principalmente acerca das cotas. Ainda assim, a pesquisadora ousa oferecer a

algumas dessas ações e seus impactos, caráter de jurisdicidade e eticidade,

dentro do contexto social brasileiro, justamente pelos benefícios a longo prazo

que ela visa e pode gerar.

O assunto é delicado, num país que fora os casos isolados,

não assume a forte existência do preconceito racial, e acredita numa ascensão

natural dos brancos, a qual, na realidade não é tão natural assim. Ora, não há

dúvidas de que o preconceito de cor vem ajudando há muito tempo na redução da

concorrência ante as posições que os brancos puderam alcançar.

Existe uma política artificial que os favoreceu e ainda

favorece. Portanto, é hipocresia e radicalismo a utilização do argumento de que

nada igualmente artificial pode ser levado em consideração. Muitos vivem sob a

78 SELL, Sandro César. Ação afirmativa e democracia racial: uma introdução ao debate no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002. p. 15.

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fantasia de que a seleção no mercado de trabalho apenas se dá por competência,

excluídos critérios relacionados à origem, sexo e cor.

Uma crítica comumente feita a esse argumento é a de que os negros ascenderiam “por meios artificiais”, o que neutralizaria seu efeito de “modelo social”, pois os negros socialmente bem – sucedidos seriam vistos como indivíduos ajudados.79

As ações afirmativas para minorias étnicas e raciais já são

realidades em diversos países. Significam “discriminações positivas dos cidadãos

lesados pelo processo histórico anteriormente discutido para o nivelamento de

oportunidades entre os indígenas, negros e brancos.

A desigualdade racial vigente hoje no Brasil tem fortes

raízes históricas e esta realidade não será alterada significativamente sem a

aplicação de políticas públicas dirigidas a este objetivo. Todavia, reflita-se que

políticas públicas mal elaboradas e colocadas em prática não modifica a estrutura

do poder para melhor.

Uma ação afirmativa deve ser elaborada com cautela, bom senso e interesse

social, sem qualquer desvirtuação para questões obscuras de ordem política, ou

para dar uma resposta rápida e insensata à população. Daí sim, poderá contribuir

através dessas ações concretas e possibilidades de reconhecimento social

positivo dos negros, para o resgate da sua auto-estima e respeito dos demais

grupos sociais

Cabe ao Estado garantir a igualdade entre os seus

jurisdicionados. Então, esses tipos de medidas servem para a implementação da

igualdade material. Conforme já aludido anteriormente, o princípio da igualdade

tem um sentido formal (igualdade de todos perante a lei) e um sentido material

(longe de ser alcançada). O fato é que a realidade fática é muito diferente da

jurídica, garantida em tese.

79 Ibidem, p. 28.

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Sendo assim, existe sim um fundamento teórico

constitucional para essas medidas de desequiparação ou compensatória para

aqueles grupos absurdamente discriminados somente devido a sua origem étnica

ou pelo conjunto de sua característica física.

Existem tipos de discriminação que são denominados

intencionais e são considerados legítimos por toda a sociedade. Por exemplo:

quando a lei exige determinado nível educacional uma faculdade ou pós-

graduação em determinado grupo para assumir determinada função que exige

conhecimentos específicos.

É nas discriminações positivas onde reside o foco de muita

discussão. É natural tanto questionamento acerca das ações afirmativas, visto

que dar tratamento diferenciado a determinados grupos étnicos e não a

determinados grupos econômicos parece ferir o princípio da igualdade. Aliás, fica

muito melhor para a consciência humana aceitar a ajuda aos pobres em razão da

sua miserabilidade econômica do que a um determinado grupo em razão da sua

cor.

Como a ênfase desse estudo é a Constituição da República

Federativa do Brasil de 1988, ousa-se afirmar que a partir de todo o aparato legal

citado no Capítulo 2, a ação afirmativa tem especial fundamento constitucional,

quer seja no seu preâmbulo, seja no artigo 3º ou no clássico artigo 5º, verifica-se

uma preocupação na instrumentalização da igualdade material.

A exclusão social que a população negra sofre no país é

grotesco resultado do acesso precário aos serviços que estão colocados à sua

disposição. As políticas públicas precisam ser efetivamente universais, mas o

Brasil é um país neófito em políticas públicas no campo das ações afirmativas de

recorte racial.

Por oportuno, diga-se que o sistema de cotas constituem

estratégias extremas de ação afirmativa, portanto quando se fala nessas ações

não está se abordando especificamente a questão das cotas, que exige muito

esclarecimento. No país apenas as cotas vêm adquirindo maior visibilidade, mas

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não são ações afirmativas exclusivas. Os debates, fóruns mundiais, conferência,

respeito às manifestações culturais são ações amplamente positivas que também

devem ser levadas em consideração.

As cotas são apenas uma modalidade das ações afirmativas

que podem ser incentivos fiscais, aumento de pontos em licitações, ou ainda, nem

ser ação da iniciativa estatal, mas sim de iniciativa de um particular, como a

criação de cursos preparatórios para o vestibular voltados para os afro-

descendentes que estudaram em escolas públicas.

Conforme Sandro César Sell80 embora sustentada a justiça e

a constitucionalidade, a ação afirmativa como medida política é bastante

heterodoxa na tradição política brasileira, mas aceita a políticas sociais populistas

ou de caráter assistencial, seguindo modelos religiosos.

O objeto central desta pesquisa não é o sistema de cotas e

nem será feito qualquer juízo de valor acerca da sua implantação. No entanto,

realiza-se uma breve abordagem das principais questões que envolvem este

instituto.

A luta contra o preconceito de cor e a discriminação racial vem ocupando posição

proeminente no debate político contemporâneo. O correto é que estabilizada uma

sociedade dentro de um ideal de justiça a cor deixe de ser um elemento tão

relevante.

3.1.1 O sistema de cotas raciais

Para fazer esse apanhado acerca das cotas, vale-se

principalmente da obra Cotas Raciais na Universidade: Um debate81, organizado

por Carlos Alberto Steil, a partir de um debate composto por cientistas das mais

variadas áreas do conhecimento, acerca do processo de implantação de cotas

para negros na Universidade de Brasília.

80 Ibidem, p. 70. 81 Cotas raciais na universidade: um debate/organizado por Carlos Alberto Steil – Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006.

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É sabido que a expressão ação afirmativa surgiu no direito

estadunidense em 1963 com a Executive Order nº 10.965 e consolidou-se em

1965 com a Executive Order nº 11.246. A participação do Poder Executivo foi

substancial para o aparecimento e fortalecimento desse tipo de ação afirmativa.

Para confirmar o alegado fica exposto o discurso do

Presidente norte-americano Lyndon Johnson proferido em 196582:

Você não pega uma pessoa que durante anos foi impedida por estar presa e a liberta, trazendo-a para o começo da linha de uma corrida e então diz: “você está livre para competir com todos os outros” e, ainda acredita que você foi completamente justo. Isto não é o bastante para abrir as portas da oportunidade. Todos os nossos cidadãos têm que ter capacidades para atravessar aquelas portas. Este é o próximo e o mais profundo estágio da batalha pelos direitos civis. Nós não procuramos somente liberdade, mas oportunidades. Nós não procuramos eqüidade legal, mas por capacidade humana, não somente igualdade como uma teoria e um direito, mas igualdade como um fato e igualdade como um resultado.

No Brasil, indubitavelmente, as cotas são a forma mais

polêmica de ação afirmativa e logo de plano já esclareça-se que não há uma

solução pronta e acabada para a questão das cotas, cujo debate está acirrado na

ordem do dia da vida acadêmica.

Não se fará aqui qualquer juízo de valor, apenas com o

conjunto de informações transmitidas, objetiva-se maior densidade ao assunto

evitando os constantes embates entre a opinião pública desprovidos de

cientificidade.

Aos poucos, incentivado pela Conferência Mundial contra o

Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, o

sistema espalhou-se para várias universidades públicas federais e estaduais

brasileiras. A Universidade Federal de Santa Catarina adota o Programa de

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Ações Afirmativas, elaborado por uma Comissão Institucional, conforme a

Resolução Normativa nº 008/CUN/2007, de 10 de julho de 2007:

Art. 1º O "Programa de Ações Afirmativas" da Universidade constitui-se em instrumento de promoção dos valores democráticos, de respeito à diferença e à diversidade socioeconômica e étnico-racial, mediante a adoção de uma política de ampliação do acesso aos seus cursos de graduação e de estímulo à permanência na Universidade. Art. 2º O "Programa de Ações Afirmativas" da Universidade a que se refere o artigo anterior destina-se aos estudantes que: I – tenham cursado integralmente o ensino fundamental e médio em instituição de ensino pública; II – pertençam ao grupo racial negro, na forma prevista nesta Resolução Normativa; III – pertençam aos povos indígenas.

Tais medidas serão implantadas no ano letivo de 2008.

Igualmente, a Universidade do Estado de Santa Catarina também têm projetos

que visam a promoção da igualdade racial, citados mais adiante.

Foi em 2003 aprovada na íntegra um projeto que destinava

uma cota de 20% das vagas do vestibular para negros na Universidade de

Brasília – UnB que foi a primeira universidade federal a ratificar o sistema de

cotas. Após muito debate e discussão entre o movimento negro, alunos,

professores e da comunidade em geral, o sistema foi aprovado por meio do

Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade da universidade.

Na execução do projeto cotista foram estabelecidos

mecanismos para evitar a ação de supostos fraudadores. Contra esses

mecanismos duras críticas foram lançadas, desde a legitimidade de uma

82 Consultar RODRIGUES, Eder Bomfim. Igualdade e inclusão social no Brasil: ações afirmativas na Unb. Jus Navegandi, Teresina, ano 10, nº. 862, 12 nov. 2005. Disponível em: <jus2.uol.com.br/doutrina/texto/texto.asp?id=7516>. Acesso em 17 ago. 2007.

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autodeclaração até a legitimidade de uma comissão capaz de averiguar quem é

negro no Brasil e merecedor do benefício das cotas.

Algumas universidades adotam a autodeclaração dos

candidatos, todavia, a UnB em 2004, estabeleceu critérios adicionais. Para

especificar esses critérios colaciona-se o seguinte trecho acerca do edital de

inscrições para o 2º vestibular de 200483:

O edital da “utopia racial” da UnB trazia no item 3.1 a seguinte informação: “Para concorrer às vagas reservadas por meio do sistema de cotas para negros, o candidato deverá: ser de cor preta ou parda; declarar-se negro(a) e optar pelo sistema de cotas para negro”. O item 3.2 afirmava que: “no momento da inscrição, o candidato será fotografado e deverá assinar declaração específica relativa aos requisitos exigidos para concorrer pelo sistema de cotas para negros”. Finalmente, o item 3.3 rezava que: “o pedido de inscrição serão analisados por uma Comissão que decidirá pela homologação ou não da inscrição do candidato pelo sistema de cotas para negros (Cespe/UnB, 2004b)”

De início, o resultado foi muito tumulto, constrangimento de

grande monta contra esses critérios adotados e dúvidas para se chegar a

conclusão de quem realmente tinha direito a se beneficiar das cotas. Os

questionamentos acerca da legitimidade dos sociólogos, cientistas ou

representantes do movimento negro para identificar ou qualificar um cidadão

como beneficiário desde então não pararam e o assunto é resultado de muita

discussão, seja nos meios acadêmicos, no judiciário, no legislativo ou

informalmente entre a população.

A título de reflexão e valendo até mesmo como argumentos

contrários à adoção de cotas raciais destaca-se84:

Mas, se é certo que o racismo institucional se implantou no país com requintes de perversidade, uma vez que discrimina

83 Cotas raciais na universidade: um debate/organizado por Carlos Alberto Steil. Porto Alegre:Editora da UFRGS, 2006, p. 25-26. 84 Ibidem, p. 64/65.

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racialmente sem nomear “raças”, por que haveríamos de combatê-lo enredados no mesmo conceito que permitiu conferir legitimidade científica à discriminação de povos vistos como “diferentes” e inferiores ao padrão branco “caucasiano”? Qual é afinal o objetivo do anti-racismo: combater o racismo por meio da desconstrução persuasiva do conceito de raça no imaginário social ou criar direitos de “raça”, contribuindo para que esse mesmo conceito seja legitimado e perpetuado nas mais diversas práticas sociais?

Para fomentar e acirrar ainda mais o debate85:

Depois de discutir com esses estudantes e ler o artigo do Maio e Santos, fico me perguntando: será que aqueles que estão propondo e aplicando essa política de reserva de vagas para negros estão se dando conta do que isso significa em termos da construção ou reconstrução da noção de “raça” em nosso país? Se os estudantes dizem que “raça” não existe e que pertencem à raça humana, a partir de agora, com as cotas raciais, terão que abdicar desse pressuposto lógico para concordar com a política pública implantada. Não há como fugir do dilema. Ou você é contra a idéia de “raça” e concorda que pertence à raça humana ou você concorda que “raças” existem.

Constata-se que são inúmeras as manifestações favoráveis

e contrárias às cotas raciais, reforçando a delicadeza e profundidade do tema,

principalmente sob o âmbito jurídico.

3.2 A MUDANÇA SÓCIO-RACIAL NO BRASIL

As políticas públicas de promoção da igualdade racial não

terão eficácia se o crescimento econômico não incluir a questão sócio-racial. O

poderoso sistema de mercado dificilmente atenderá, ou melhor, responderá a

essas demandas uma vez que as massas negras estão excluídas desse mercado.

Defende-se, aqui, o desenvolvimento social e econômico

enquanto estratégia de combate ao preconceito e discriminação racial. É que uma

85 Ibidem, p. 136/137.

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economia excludente do desenvolvimento humano, a longo prazo deixa uma

nação sem futuro, fazendo com que uma estratégia nacional de combate ao

desemprego e à pobreza (incluindo o enfoque cor), abra possibilidades de

equiparar os direitos econômicos entre os indivíduos independente da sua cor.

A fundadora da Casa Dandara e oficial de programas do

Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento Diva Moreira, assim

discorre86:

Quando nós, negros, propugnamos um estado vinculado à etnicidade por ele excluída significa que, do ponto de vista de uma teoria da Justiça, uma entidade de exercício privilegiado de poder como o Estado não pode se perpetuar no serviço das elites brancas. Se falamos de uma teoria compreensiva da Justiça, não podemos deixar de considerar que ao defendermos o vínculo normativo entre Estado e etnia, não perdemos de vista o fato de que esse deve ser um desiderato político temporário visando ao ideal de uma sociedade em que a raça se torne irrelevante na alocação dos recursos e na distribuição de oportunidades.

Atualmente, a discussão da questão política e da

democracia do desenvolvimento econômico e social ganha espaço desde o

âmbito municipal até o mundial. Evidente que com a máxima urgência, o anseio é

de que se viva numa sociedade onde o fator “cor” ou “raça” deixe de ser um

critério de classificação das pessoas.

Embora toda a importância dos grupos raciais na construção

do Brasil, o Poder Judiciário ainda não têm sido um exemplo no combate à

discriminação racial. Não há dúvidas de que o Brasil está carente de decisões

jurisprudenciais que ressaltem a constitucionalidade da igualdade garantida em

lei. Felizmente, parece que o cenário está começando a melhorar.

É preciso conhecer as verdadeiras necessidades dos grupos

étnicos menos favorecidos, partilhar os conhecimentos e propiciar a participação

86 ASHOKA EMPREENDEDORES SOCIAIS E TAKANO CIDADANIA (org.). Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora 2003. In: MOREIRA, Diva. Reflexões sobre mudança sócio-racial no Brasil, p. 71.

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comum na tomada de decisões. Para tanto, a representação política deve ser

mais inclusiva, na qual os negros tenham maior expressão. Necessita-se de

lideranças fortes e organizadas e reforma política, para que a hegemonia de

tradicionais elites seja abalada.

De fato, é difícil alcançar essas cotas no Poder Executivo,

Legislativo e Judiciário. Por isso, é que se apresenta a educação como

ferramenta para que se forme uma elite intelectual independente de cor. Uma

sociedade que proporciona uma educação de qualidade para todos com certeza

dá um grande passo para o avanço, posto que propicia maiores possibilidades de

prosperidade financeira.

A capacitação de juristas também é essencial, porque para a

propositura de demandas, defesas, julgamento ou iniciativas de ações públicas é

preciso conhecer as figuras jurídicas peculiares da temática anti-racista, o que

não é tão simples quanto a primeira vista possa parecer.

Políticas públicas de qualidade, bem estruturadas e

apoiadas por fortes setores da sociedade, se colocadas em prática podem

alavancar um desenvolvimento social e econômico ainda que não seja um

caminho rápido a ser percorrido.

3.3 O RUMO DAS AÇÕES AFIRMATIVAS EM SANTA CATARINA

De fato, existe discriminação racial em Santa Catarina.

Algumas vezes é mais concreta e em outras é mais latente, cheia de subterfúgios.

Especificamente sobre crimes raciais, não há muitos casos. Em se tratando de

volume processual, esse crime se esconde nos casos de agressões, torturas e

violência policial.

Pelo número de casos registrados parece que a

discriminação não existe ou se existe é bem pequena. Mas é lógico que a

quantidade dos casos é superior aos relatos das delegacias espalhadas pelo

Estado catarinense.

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A pesquisadora entrando em contato com diversas pessoas

negras, as quais exercem as mais variadas profissões escutou inúmeros relatos

de situações vexatórias enfrentadas por elas em razão da sua cor. A maioria

delas tiveram vergonha em narrar os fatos não querendo dizer sequer seus

nomes, tampouco registrar um boletim de ocorrência.

A invisibilidade do negro no estado é outro fator que

prejudica ainda mais a situação que já não é das melhores. Muitos catarinenses

acreditam que vivem no estado mais branco do Brasil. Aliás, a invisibilidade oficial

da população negra é uma fantasia compartilhada nos mais variados municípios

da região.

Ocorre que do Dossiê contra a Violência Racial em Santa

Catarina baseado em dados extraídos do Instituto Brasileiro – IBGE, verifica-se

que de uma população de 4.855.080 habitantes no estado, cerca de 600.000

consideram-se negros. Desses, 52,81% fazem parte da população negra

masculina e 47,18% da população feminina.

Presente no estado está a proposta de tramitação de um

Projeto chamado Odara “Tudo de Bom” – Fortalecimento Educacional para

Negros e Negras no Ensino Médio, onde cada grupo terá 16 horas presenciais e

14 à distância, com base na Lei 10.639/03, voltada para a formação continuada

nas disciplinas de história, artes, português, literatura e biologia. Os alunos

orientados pelos tutores receberão auxílio financeiro e formação cultural.

O estado é contemplado com o Programa de Ações

Afirmativas para a População Negra nas Instituições Públicas de Educação

Superior – UNIAFRO é dividido em quatro eixos/níveis. O primeiro está

relacionado à formação de gestores; o segundo à produção de material didático; o

terceiro a estudos e projetos e o quarto nível de fortalecimento institucional.

O programa, desenvolvido por dezoito universidades

brasileiras com o Ministério da Educação conta com o apoio do Programa

Diversidade Étnica na Educação – PDEE (o qual apoia a formação de grupos de

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pesquisa, de professores e materiais que possam fortalecer as instituições nessa

temática – executado pela Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC.

Alguns eventos têm uma rica contribuição na elevação de

valores culturais que não podem ser esquecidos, como o: Seminário Por uma

Educação das Relações Étnico Raciais – Diversidade Étnica na Educação (15 e

16 de agosto de 2005, Florianópolis) II Seminário Municipal Diversidade Étnico-

Racial (2006)87, em Florianópolis; Fórum Permanente de Educação e Diversidade

Étnico-Racial; Mostra de Cinema Africano Malembe (de 02 a 06 de outubro de

2007), também na capital catarinense, o III Seminário de Educação das relações

raciais e multiculturalismo (04 a 07 de dezembro de 2007, na UDESC) e o II

Encontro da ABPN – Associação Brasileira de Pesquisadores Negros.

Com relação aos seminários de Diversidade Étnico-Racial:

Organizado pela primeira vez em 1998, pelo então Grupo de Trabalho Educação e Desigualdades Raciais do Núcleo de Apoio Pedagógico da UDESC, o Seminário de Educação, Relações Raciais e Multiculturalismo tinha por finalidade se constuir um espaço de reflexão e disseminação de informações acerca da realidade educacional dos afrodescendentes em Santa Catarina e de discussão sobre as estratégias de mudança desse quadro. Em 2006, o II Seminário se adequou a um novo momento, ele fecha o conjunto de atividades do Programa Diversidade Étnica, financiado parcialmente com recursos do UNIAFRO - Programa de Ações Afirmativas para a População Negra nas Instituições Públicas de Educação Superior do Ministério da Educação, objetiva contribuir na qualificação de multiplicadores (professores, gestores educacionais, organizações do movimento negro e pesquisadores) na temáticas da diversidade étnico-racial e da promoção da igualdade no estado.

Importante a contribuição do Conselho Estadual de

Populações Afro-descendentes – CEPA -, do Núcleo de Estudos Negros - NEN,

87 Informações retiradas do site: <www.udesc.br/multiculturalismo/seminario/neab.html>. Acesso em: 15 set. 2007.

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do Núcleo de Estudos Afro-brasileiro – NEAB88 da Universidade Estadual de

Santa Catarina:

Após nove anos de atividades voltadas para o combate às desigualdades raciais e promoção das populações de origem africana, entendeu-se como necessário instituir na Universidade do Estado de Santa Catarina, o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, como um espaço institucional capaz de coordenar e dar visibilidade aos múltiplos esforços de professores, estudantes e funcionários comprometidos com a defesa da diversidade étnico-cultural em nosso estado. Entre o primeiro Ciclo de Debates sobre o Negro (1994) e a criação do NEAB-UDESC(2003), muitas experiências foram vividas. Das antigas solidariedades individuais que tornaram possíveis os primeiros eventos, construímos, hoje, um dos mais enraizados projetos institucionais desenvolvidos em uma universidade brasileira. Foram mais de quarenta trabalhos acadêmicos, entre trabalhos de conclusão de curso, monografias, dissertações de mestrado, teses de doutorado e relatórios de pesquisa. Criaram-se as disciplinas de História da África no Curso de História, Antropologia e Multiculturalismo no Curso de Pedagogia Modalidade a Distância (23.000 alunos), História e Populações de Origem Africana no Curso de Especialização em História Social no Ensino Médio e Fundamental (04 edições), Curso de Especialização em Educação, Relações Raciais e Multiculturalismo (1997-1999). Recentemente, o projetos do Núcleo tornaram-se campo de estágio para alunos de graduação dos cursos de Biblioteconomia e História. Através dos programas Diversidade na Educação, Memorial Antonieta de Barros e Atendimento a Juventude Catarinense, estamos atuando junto às áreas da educação dos diferentes níveis de governo. Em 2004, colaboramos ativamente na articulação de centros e grupos de pesquisa espalhados por diversas regiões do país que, constituiu o Consorcio dos NEABS, cujo um dos primeiros frutos foi o Acordo de Cooperação Institucional entre o MEC e os núcleos de estudos afro-brasileiros e grupos correlatos. Acreditamos que o volume e significado das ações de pesquisa, ensino e extensão, realizadas em parceria com instituições universitárias e entidades do Movimento Negro catarinense, têm contribuído para mudança da cultura institucional de nossa universidade e de outras organizações públicas ou que servem aos propósitos públicos.

88 Ibidem.

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Reconhecendo que o país ao longo de sua história

estabeleceu um modelo de desenvolvimento excludente, já em 2003, o governo

federal criou a SEPPIR – Secretaria Especial de Políticas de Promoção da

Igualdade Racial e instituiu a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial,

recolocando a questão étnica na agenda nacional e facilitando o cumprimento da

Lei nº 10.639/03 que altera a Lei de Diretrizes e Bases – LDB e estabelece as

diretrizes curriculares para a implementação da mesma.

Para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e

Africana, os professores terão como referência: consciência política e história da

diversidade; fortalecimento de identidades e de direitos; ações educativas de

combate ao racismo e a discriminações.89

3.3.1 As políticas de inclusão no Município de Itajaí

No município de Itajaí, o processo de inclusão étnico racial

teve destaque a partir de 1985 com o fim da ditadura, mas já em 1984 uma

equipe de docentes do Colégio Salesiano publicou um periódico “Idéia Força”

dando ênfase a situação dos negros na sociedade brasileira90.

Em 1988, um grupo chamado de A Pastoral do Negro

promoveu a Campanha da Fraternidade também voltada para a realidade dos

negros tendo em vista o centenário da abolição. Após, surgiu o Movimento Negro

Tio Marco em 1992, sendo uma militância mais estruturada da história dos afro-

descendentes.

A contribuição do Movimento para a cidade foi muito forte,

seja pelas inúmeras palestras e eventos promovidos, seja pelas propostas

89 Para maiores esclarecimentos acerca da educação e as relações étnico-raciais ver: Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, 2005. 90 Consultar Políticas de Inclusão: Leis Municipais de Itajaí para Inclusão Étnico/Racial na Educação/org. Moacir da Costa. Editora Maria do Cais, 2007.

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encaminhadas à Câmara de Vereadores de Itajaí, em especial, a que pretendeu

inserir no currículo escolar o conteúdo de História Afro-brasileira.

Como já salientado no capítulo 2, a Lei nº 2.830/93 é a

primeira lei municipal a prezar sobre a importância de se incluir no currículo

escolar a história dos afro-descendentes. Todavia, a lei não foi aplicada e, em

1998 o Movimento passou a se chamar Núcleo Afro-descendentes Manoel

Martins dos Passos e mais uma vez se mobilizou para garantir a implementação

da lei, propondo alterações.

Em 19 de junho de 2002 foi implantada a Lei nº 3.761 que

também não foi efetivamente aplicada. Posteriormente, foi incluído no calendário

escolar o Dia da Consciência Negra e sancionado o Decreto nº 7.733 de 2005

que institui o Programa Municipal de Educação para Diversidade Étnica-Cultural.

Atualmente é presente na cidade a Coordenadoria Municipal

de Promoção da Igualdade Racial - COEPIR, cuja coordenadora é Maria da

Conceição Pereira, que promove fóruns, encontros e auxilia na implementação da

Lei Federal nº 10.639. Presente está também o Grupo de trabalho sobre a

Diversidade Étnica na Educação, formado por profissionais ligados à Secretaria

Municipal de Educação, Coordenadoria supracitada, pela Fundação Genésio

Miranda Lins, Núcleo de Estudos Afro-brasileiro, da Universidade Estadual de

Santa Catarina – UDESC e pelo Curso de História de Itajaí.

Extremamente positivas a atuação desses grupos, pois

sabe-se que a atuação de alguns movimentos negros em determinadas épocas

influenciou a estrutura política e econômica de alguns países. O ideal é que esses

movimentos tornem-se ainda mais robustos, com maior capacidade de

mobilização que impliquem na conquista de resultados. O importante é que

impliquem nas tomadas de decisões dos Poderes Executivo, Legislativo e

Judiciário.

Brilhante o trabalho publicado no início do corrente ano,

baseado numa coletânea que sistematiza todo o processo de inclusão étnico-

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racial na cidade: Políticas de Inclusão – Leis Municipais de Itajaí para Inclusão

Étnico/racial na Educação sob a organização do professor Moacir da Costa.

O trabalho é resultado de uma parceria entre os membros do

Grupo de Trabalho de Diversidade Étnica e Cultural, Secretaria Municipal de

Educação, Coordenadoria do Estado de Santa Catarina – UDESC, Fundação

Genésio Miranda Lins e NEAB – Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros.

Nos dias 30 e 31 de maio de 2007, ocorreu o III Fórum

Regional de Diversidade Étnica na Educação, oportunidade na qual trabalhou-se

com várias temáticas: Artes, diversidade educação (dra. Maria Cristina Rosa); A

África vai a sala de aula (dr. Paulino); A Lei nº 10.639 de 2003, Caminhos e

Descaminhos (msc. José Nilton); Abayomi, Arte Africana em Retalhos (Renata

Garcia); Construção da auto-estima da criança (Estela Maris Cardoso); Geografia,

técnicas de interpretação de mapas (esp. Elenir Gularte Marques); A participação

dos africanos e afrodescendes na construção de Itajaí e região (dr. José Bento

Rosa da Silva); A Educação indígena (Orivaldo Nunes Júnior); Fornação,

diversidade, identidade na educação infantil (msc. Neli Góes).

A partir do Fórum buscou-se divulgar e ampliar a

participação dos diversos seguimentos da comunidade escolar na tarefa de

aplicabilidade das leis relacionadas à diversidade étnica na educação e

implementação de ações afirmativas.

O Grupo Gestor do Programa de Estudos Afro-Brasileiros de

Itajaí e o NEAD – Núcleo de Estudos Afrodescendentes vem ocupando um

espaço marcante na medida em que busca coletar dados a respeito da situação

do aluno negro na sua trajetória escolar como um todo para um melhor

diagnóstico da realidade brasileira dos afrodescendentes. Dados como índice de

reprovação, abandono, matrícula e desempenho destaque.

O Grupo Gestor é formado por diversos profissionais que

atuam como multiplicadores após as reuniões de estudos e auxilia para um

panorama das escolas da rede estadual de ensino da gerência de educação,

ciência e tecnologia -GEECT.

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Na medida em que os eventos que envolvem a temática da

inclusão entre os grupos étnicos aumentarem, a tendência é que cada vez mais a

barreira ainda encontrada diminua significativamente. Claro que o processo é

gradual, até porque o preconceito é uma herança cultural herdada há muito

tempo.

O ideal é que chegue um determinado momento em que não

sejam necessárias esse tipo de medida para a inclusão, mas tão somente a título

de conhecimento e reflexão. Por enquanto, aponta-se a educação como

ferramenta de apoio na luta contra o preconceito e a discriminação racial. Mas

isso exige dos profissionais educacionais conhecimentos específicos que muitas

vezes não têm.

3.4 A EDUCAÇÃO E A CAPACITAÇÃO DOS JURISTAS NA LUTA CONTRA O

PRECONCEITO DE COR

A maioria das escolas públicas já são deficientes em prestar

um ensino básico, seja pela falta de estrutura, falta de recursos dentre outros

diversos motivos. As disciplinas são transmitidas precariamente e os alunos por

sua vez muitas vezes nem se interessam por elas. Dentro disso tudo incluir

disciplinas que enfoquem a diversidade cultural pode contribuir se ministrada com

qualidade. Do contrário, a iniciativa é inócua.

Desde a tenra idade as crianças já têm que ter a noção de

que as pessoas têm características variadas e possuem ascendência também

variadas. E não para por aí, a partir dessa noção as crianças necessitam perceber

que é gostoso e relevante conhecer as diversidades culturais existentes e

aprender a respeitá-las.

Desde pequeno é importante que se tenha conhecimento da

história brasileira e da contribuição do negro e do índio na formação do Brasil, no

crescimento da economia, no desenvolvimento e progresso da infra-estrutura que

se tem no presente momento.

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O problema é que a situação da educação brasileira é

lamentável e vergonhosa e paralelamente, o mercado de trabalho é competitivo,

ameaçador e extremamente preconceituoso. É essa realidade perversa que é

difícil vencer.

Atualmente, é mais comum ver os negros ocupando maiores

destaques na televisão, não fazendo apenas papéis de empregados domésticos

ou coadjuvantes. Também é um grande passo positivo, na medida em que as

crianças em casa, aliás a população como um todo, vão achando cada vez mais

natural a integração.

Necessita-se de operadores do direito que tenham afinidade

e conheçam das matérias relacionadas ao tema evitando vícios que causem

nulidade processual e extinções de processos sem resolução do mérito,

prescrição, arquivamento por insuficiência de provas. O Poder Judiciário já está

atolado de demandas e estigmatizado pela morosidade, portanto tendo em vista

que esse tipo de crime fere a dignidade do ser humano clama-se por celeridade e

objetividade.

Para começar a formação acadêmica desses profissionais

muitas vezes é precária. É sabido que a consolidação do ensino jurídico no Brasil,

por volta do século XIX, se deu em um contexto histórico de independência do

Brasil em relação ao domínio colonial Português. Ainda no presente momento

existem obstáculos que não permitem a reformulação cultural do aprendizado

jurídico. É justamente essa formação que impede a utilização do direito como

instrumento de transformação da realidade social.

3.5 JURISPRUDÊNCIAS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Tem-se um verdadeiro ciclo do caos. Nas delegacias os

casos perdem o seu componente de discriminação racial já no preenchimento do

boletim de ocorrência. Poucos boletins desencadeam em inquéritos policiais. Mais

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tarde, aparecem as figuras da prescrição ou da decadência ou os processos são

arquivados por insuficiência de provas.

A partir das informações supracitadas, colaciona-se na

presente pesquisa duas ementas de jurisprudências do Supremo Tribunal

Federal:

QUEIXA-CRIME - INJÚRIA QUALIFICADA VERSUS CRIME DE RACISMO - ARTIGOS 140, § 3º, DO CÓDIGO PENAL E 20 DA LEI Nº 7.716/89. Se a um só tempo o fato consubstancia, de início, a injúria qualificada e o crime de racismo, há a ocorrência de progressão do que assacado contra a vítima, ganhando relevo o crime de maior gravidade, observado o instituto da absorção. Cumpre receber a queixa-crime quando, no inquérito referente ao delito de racismo, haja manifestação irrecusável do titular da ação penal pública pela ausência de configuração do crime. Solução que atende ao necessário afastamento da impunidade.91

HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA. 1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros "fazendo apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias" contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII). 2. Aplicação do princípio da prescritibilidade geral dos crimes: se os judeus não são uma raça, segue-se que contra eles não pode haver discriminação capaz de ensejar a exceção constitucional de imprescritibilidade. Inconsistência da premissa. 3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais. 4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um

91 Inquérito nº 1458/Rio de Janeiro.Tribunal Pleno. Relator Ministro Marco Aurélio. Julgado em 15/10/2003.

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processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista. 5. Fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo de que os judeus e os arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta, características suficientes para justificar a segregação e o extermínio: inconciabilidade com os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático. Estigmas que por si só evidenciam crime de racismo. Concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social. Condutas e evocações aéticas e imorais que implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e constitucional do País. 6. Adesão do Brasil a tratados e acordos multilaterais, que energicamente repudiam quaisquer discriminações raciais, aí compreendidas as distinções entre os homens por restrições ou preferências oriundas de raça, cor, credo, descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas na pretensa superioridade de um povo sobre outro, de que são exemplos a xenofobia, "negrofobia", "islamafobia" e o anti-semitismo. 7. A Constituição Federal de 1988 impôs aos agentes de delitos dessa natureza, pela gravidade e repulsividade da ofensa, a cláusula de imprescritibilidade, para que fique, ad perpetuam rei memoriam, verberado o repúdio e a abjeção da sociedade nacional à sua prática. 8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e alcance da norma. 9. Direito comparado. A exemplo do Brasil as legislações de países organizados sob a égide do estado moderno de direito democrático igualmente adotam em seu ordenamento legal punições para delitos que estimulem e propaguem segregação racial. Manifestações da Suprema Corte Norte-Americana, da Câmara dos Lordes da Inglaterra e da Corte de Apelação da Califórnia nos Estados Unidos que consagraram entendimento que aplicam sanções àqueles que transgridem as regras de boa convivência social com grupos humanos que

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simbolizem a prática de racismo. 10. A edição e publicação de obras escritas veiculando idéias anti-semitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas conseqüências históricas dos atos em que se baseiam. 11. Explícita conduta do agente responsável pelo agravo revelador de manifesto dolo, baseada na equivocada premissa de que os judeus não só são uma raça, mas, mais do que isso, um segmento racial atávica e geneticamente menor e pernicioso. 12. Discriminação que, no caso, se evidencia como deliberada e dirigida especificamente aos judeus, que configura ato ilícito de prática de racismo, com as conseqüências gravosas que o acompanham. 13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. 14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. 15. "Existe um nexo estreito entre a imprescritibilidade, este tempo jurídico que se escoa sem encontrar termo, e a memória, apelo do passado à disposição dos vivos, triunfo da lembrança sobre o esquecimento". No estado de direito democrático devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável. 16. A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem. Ordem denegada.92

92 Habeas Corpus nº 82424.Tribunal Pleno. Rio de Janeiro. Relator Ministro Maurício Corrêa.

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Muitos casos são considerados injúria qualificada tipificada

no artigo 140, §3º do Código Penal e não como o crime de racismo previsto na Lei

nº 7.716 de 1989.

Infelizmente, o racismo é enfrentado por meio da tutela

penal, sendo o Ministério Público o detentor da ação penal e no caso de

indenização, compete ao autor (vítima) comprovar o dano a ensejar a restituição

de ordem econômica. Muitas vezes a denúncia não é ofertada ou recebida,

porquanto o mito da democracia racial toma conta da população.

A partir do que foi abordado, destaca-se que o princípio

constitucional da igualdade não proíbe que a lei faça discriminações positivas,

privilegiando certos grupos menos favorecidos. Desde 1988, o país está

comprometido a efetivar um Estado Democrático de Direito com ênfase na

cidadania e dignidade da pessoa humana, afastando a realidade cruel daqueles

que enfrentam dificuldades para o acesso e a permanência nas escolas e no

mercado de trabalho em decorrência de atitudes discriminatórias.

Veja-se, realisticamente a legislação não basta para conter

as atitudes preconceituosas experimentadas pelas pessoas negras em razão da

sua cor, por isso, as ações afirmativas, auxiliam no aumento do grau de cidadania

a esses excluídos de um sistema econômico forte e dominador.

A sociedade precisa reconhecer a memória coletiva

daqueles que foram brutalmente dominados em razão da sua cor, começando a

parar de negar a existência do preconceito e discriminação, categorias que

possuem sentidos diferentes, conforme já trabalhado nesta pesquisa. Outro passo

é admitir a existência de diversas leis que tratam do assunto, porém, de modo

geral, desprovidos de eficácia social, a qual começa a ganhar espaço com a

implantação de ações afirmativas aliadas ao desenvolvimento social e econômico.

Julgado em 17/09/2003.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em constrita síntese, no decorrer desse estudo ficou clara a

preocupação em se diferenciar as categorias preconceito e discriminação racial,

evitando confusões semânticas que os próprios dispositivos legais não auxiliam a

dissipar. De um lado, o preconceito denota uma atitude negativa para com um

grupo caracterizado por crenças estereotipadas. De outro lado, a discriminação

racial é a exteriorização dessa atitude.

Em parte, o cerne do problema é de ordem cultural, um

legado do tipo de colonização que o Brasil foi submetido: o colonizador branco e

o escravo negro. Portanto, com a pesquisa defende-se que a essência do

problema da discriminação racial é o preconceito tanto na forma latente como na

escancarada, os quais, indubitavelmente existem na sociedade brasileira.

A partir da legislação supracitada que combate a

discriminação racial, verificou-se que as leis não são as exclusivas soluções

imediatas para a eliminação da problemática do preconceito. Falta à norma

eficácia social e a divulgação da legislação antidiscriminatória, embora sejam

rígidas e abundantes.

É nesse contexto que surgem e ganham um espaço cada

vez maior as políticas públicas culturais inclusivas que se aplicadas com

responsabilidade e seriedade e, somadas ao desenvolvimento social e econômico

trarão resultados positivos. Repita-se que dentre as mais variadas ações

afirmativas, especificamente as cotas raciais não são objetos diretos do presente

estudo, embora também pesquisada.

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Não se trata de um estudo estritamente voltado a favor ou

contrário a implantação desse sistema, mas sim voltado para a reflexão dessas

medidas aliadas à outras de adequação social como um todo.

Procurou-se colacionar diversos trechos das mais variadas

obras e argumentos contrários para corroborar o alegado, possibilitar ao leitor

opções de leituras e induzi-lo à reflexão e aprofundamento do tema. Não se trata

de uma pesquisa fechada, muito pelo contrário, pretende-se aqui fomentar

debates no tocante à essa temática.

Não se olvida que se está longe da igualdade material,

todavia, à luz do Texto Republicano de 1988 e com fulcro nos princípios da

dignidade da pessoa humana e da igualdade, a luta tem que continuar. O

ordenamento jurídico é legítimo, mas a lei não é cumprida, sendo ineficaz no

âmbito da sua aplicação.

A pesquisa revelou que os autores de crimes de racismo

geralmente não são responsabilizados penalmente, tampouco sofrem perdas de

ordem patrimonial na esfera civil, apesar das leis nacionais e diversos dispositivos

internacionais repreenderem a prática desse ilícito. O Poder Judiciário

reiteradamente se omite e são poucos os profissionais da área jurídica que se

dedicam a esse tipo de causa.

Por essas razões é que a capacitação técnica dos juristas, o

apoio ao debate e um maior investimento na educação, base para o crescimento

do país, necessariamente precisam ocorrer.

Utilizou-se de diversos entendimentos doutrinários,

jurisprudenciais, da legislação pátria, apesar do constante aparecimento de

dispositivos legais ante a implementação de cotas raciais e de diversas

bibliográficas. A maior dificuldade da acadêmica foi justamente encontrar algumas

das obras pesquisadas, porque a produção literária específica do tema em análise

não é abundante.

Espera-se fomentar a discussão no tocante ao assunto

pesquisado e analisado provocando reflexão e indagações, rechaçando uma

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conclusão fechada e imutável. Até porque o assunto é inquietante e suscita sérios

problemas de ordem prática.

Para a elaboração do presente trabalho e diante da

abundância do tema, foram levantadas as seguintes hipóteses:

� Existe preconceito e discriminação racial na sociedade brasileira, embora muitos equivocadamente acreditarem que vive-se num país cuja democracia racial predomina. O preconceito denota uma atitude negativa para com um grupo caracterizado por crenças estereotipadas, conquanto que a discriminação racial é a exteriorização dessa atitude. � A legislação brasileira no que toca à essa temática de discriminação é abundante e severa. Todavia, falta aplicabilidade à norma, mais especificamente, a eficácia social dessas leis restam prejudicadas dentro de um sistema inerte, omisso e relapso. � Diversas medidas estão sendo colocadas em prática para a eliminação do cerne do problema que é o preconceito alojado no interior dos indivíduos. Nessa seara, as ações afirmativas aliadas ao desenvolvimento social e econômico podem ser medidas substanciais com resultados positivos.

Tais hipóteses mostraram-se verdadeiras levando-se em

consideração todo o estudo realizado. A categoria preconceito se difere da

categoria discriminação racial e ambas existem no Brasil. A produção legislativa,

de fato, é ampla, todavia, ainda não tem eficácia social e é por esse motivo que

se faz necessária a adoção de políticas culturais inclusivas. Assim, se mostra

louvável a luta do negro pela inclusão étnica, afastando a sua invisibilidade e

vulnerabilidade devido a exclusão social, por meio das ações afirmativas.

Finalmente, diante de todo o exposto, diversas ações

afirmativas são compatíveis com o nosso sistema jurídico-constitucional, já que

têm como objetivo diminuir o preconceito e a desigualdade racial, tão rechaçados

pela Constituição pátria.

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ANEXOS

� Reportagem da Revista Veja, Editora Abril, de 6 de junho de 2007, edição

2011, ano 40, nº 22, págs, 82/88, relacionada ao sistema de cotas e à origem dos

ancestrais do ser humano.

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Os gêmeos Alex e Alan Teixeira da Cunha, 18 anos, filhos de pai negro e mãe branca A decisão da banca da Universidade de Brasília que determina quem tem direito ao privilégio da cota mostra o perigo de classificar as pessoas pela cor da pele – coisa que fizeram os nazistas e o apartheid sul-africano Rosana Zakabi e Leoleli Camargo Um absurdo ocorrido em Brasília veio em boa hora. Ele é o sinal de que o Brasil está enveredando pelo perigoso caminho de tentar avaliar as pessoas não pelo conteúdo de seu caráter, mas pela cor de sua pele. No início de maio, o estudante Alan Teixeira da Cunha, de 18 anos, e seu irmão gêmeo, Alex, foram juntos à Universidade de Brasília (UnB) para se inscrever no vestibular. Visto que têm pele morena, eles optaram por disputar o concurso por meio do sistema de cotas raciais. Desde 2004, a UnB – e outras 33 universidades do país – reserva 20% de suas vagas a alunos negros e pardos que conseguem a nota mínima no exame. Alan e Alex são gêmeos univitelinos, ou seja, foram gerados no mesmo óvulo e, fisicamente, são idênticos. Eles se inscreveram no sistema de cotas por acreditar que se enquadram nas regras, já que seu pai é negro e a mãe, branca. Seria de esperar que ambos recebessem igual tratamento. Não foi o que aconteceu. Os "juízes da raça" olharam as fotografias e decidiram: Alex é branco e Alan não.

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Alan, que quer prestar vestibular para educação física, foi classificado como preto na subcategoria dos pardos e pode se beneficiar do sistema de cotas. Alex, que pretende cursar nutrição, foi recusado. "Não sei como isso é possível, já que eu e meu irmão somos iguais e tiramos a foto no mesmo dia", diz Alex, que recorreu da decisão. A UnB informa que o recurso está sendo analisado e o resultado sairá nesta quarta-feira. A avaliação divergente dos irmãos Alan e Alex pela UnB é uma prova dos perigos de tentar classificar as pessoas por critério racial. Em todas as partes onde isso foi tentado, mesmo com as mais sólidas justificativas, deu em desastre. Os piores são as loucuras nazistas e as do apartheid na África do Sul. Ambas causaram tormentos sociais terríveis com a criação de campos de concentração e guetos. Os nazistas exterminaram milhões de pessoas, principalmente judeus, em nome da purificação da raça.

Biologicamente as raças são chamadas de subespécies e definidas como grupos de pessoas – ou animais – que são fisiológica e geneticamente distintos de outros grupos. São da mesma raça os indivíduos que podem cruzar entre si e produzir descendentes férteis. Esse é o conceito científico assentado há décadas. Recentemente, porém, esse conceito foi refinado. Pode haver mais variação genética entre pessoas de uma mesma raça do que entre indivíduos de raças diferentes. Isso significa que um sueco loiro pode

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ser, no íntimo de seus cromossomos, mais distinto de outro sueco loiro do que de um negro africano. Em resumo, a genética descobriu que raça não existe abaixo da superfície cosmética que define a cor da pele, a textura do cabelo, o formato do crânio, do nariz e dos olhos. Como os seres humanos e a maioria dos animais baseiam suas escolhas sexuais na aparência, a raça firmou-se ao longo da evolução e da história cultural do homem como um poderoso conceito. Em termos cosméticos sempre será assim, mas tentar explicar as diferenças intelectuais, de temperamento ou de reações emocionais pelas diferenças raciais é não apenas estúpido como perigoso.

O sistema de cotas raciais nas universidades foi uma promessa de campanha do presidente Lula. Embora já encampada pelas universidades, a lei que o regulamenta espera aprovação no Congresso, junto com outra lei temerária que institucionaliza o cisma racial no país: o Estatuto da Igualdade Racial. Caso os dois projetos sejam aprovados, metade das vagas nas universidades federais terá de ser preenchida por negros. O mérito acadêmico fica em segundo plano. Também haverá cotas para negros no funcionalismo público, nas empresas privadas e até nas propagandas da TV. As certidões de nascimento, prontuários médicos e carteiras do INSS terão de informar a raça do portador. Ao matricularem os filhos na escola, os pais terão de informar se eles são negros, brancos ou pardos. A lei de cotas e o estatuto racial são monstruosidades jurídicas que atropelam a Constituição – ao tratar negros e brancos de forma desigual – e oficializam

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o racismo. Resume a antropóloga Yvonne Maggie, da Universidade Federal do Rio de Janeiro: "A discriminação existe no dia-a-dia e precisa ser combatida, mas, se ambas as leis entrarem em vigor, estaremos construindo legalmente um país dividido em raças, e isso é muito grave. Será como tentar apagar fogo com gasolina".

As políticas raciais que se pretende implantar no país por força da lei têm potencial explosivo porque se assentam numa assertiva equivocada: a de que a sociedade brasileira é, em essência, racista. Nada mais falso. Após a abolição da escravatura, em 1888, nunca houve barreiras institucionais aos negros no país. O racismo não conta com o aval de nenhum órgão público. Pelo contrário, as eventuais manifestações racistas são punidas na letra da lei. O fato de existir um enorme contingente de negros pobres no Brasil resulta de circunstâncias históricas, não de uma predisposição dos brancos para impedir a ascensão social dos negros na sociedade – como já foi o caso nos Estados Unidos e na África do Sul. Até as primeiras décadas do século XX, prevalecia o pensamento racista no Brasil. Sociólogos defendiam a tese de que, para o país se desenvolver, era necessário "embranquecê-lo", diminuindo a porção de sangue negro que circulava nas veias do povo. O sociólogo pernambucano Gilberto Freyre foi um dos pioneiros no combate a esse raciocínio perverso, não apenas por nobilizar o papel do negro na formação da identidade nacional brasileira. Freyre foi além disso ao mostrar que as culturas e não as diferenças raciais eram os fatores decisivos nos processos civilizatórios. Depois de Freyre, a miscigenação racial foi sendo gradualmente aceita até se transformar, hoje, num valor

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cultural dos brasileiros. A música popular, por exemplo, não cansa de festejá-la. O país tem orgulho da beleza de suas mulatas. Diz o sociólogo Simon Schwartzman, ex-presidente do IBGE: "O preconceito racial existe, mas existe também um histórico de convivência amigável, de aceitação das diferenças raciais, religiosas e culturais que representam um patrimônio a ser aperfeiçoado. Por que não progredir nesse caminho, em vez de dividir a sociedade em raças estanques?".

A inspiração para a adoção de cotas "raciais" são os Estados Unidos. Lá, uma secular história de discriminação dos negros foi amenizada pela integração forçada nas escolas e nos locais de trabalho. Nunca houve nada parecido no Brasil. Não há por aqui escolas ou bairros só para negros. Enquanto em alguns estados americanos o casamento entre brancos e negros era proibido, no Brasil é um fato do cotidiano que não causa nenhuma atenção. Quem acha que o problema racial no Brasil é parecido com o dos Estados Unidos, nunca leu os elogios à nossa democracia racial feitos por tantos autores negros americanos. A história tem exemplos eloqüentes de que a oficialização da discriminação racial tem conseqüências desastrosas. O mais notório deles, evidentemente, é o genocídio promovido por Hitler entre os judeus. Os nazistas desenvolveram metodologias para determinar o grau de impureza racial das pessoas e separá-las dos alemães. O geneticista Otmar von Verschuer, mentor de Josef Mengele, o médico-monstro de Auschwitz, foi um dos expoentes

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desse procedimento. Com base em medidas que incluíam as feições e características do rosto, a cor dos olhos e o tamanho e o formato do crânio, Von Verschuer doutrinou centenas de médicos, funcionários de saúde e oficiais da SS no anti-semitismo pseudocientífico, ou seja, na arte de reconhecer um judeu.

A África do Sul viveu décadas de turbulência e esfacelamento da sociedade após instituir, em 1948, o apartheid, que segregava os negros. A nova Constituição, aprovada em 1996, proibiu todo tipo de discriminação racial. O governo tentou incluir os negros na sociedade branca com um conjunto de medidas chamado de "ação afirmativa". Entre elas estava a inclusão de negros em cargos do funcionalismo público e a obrigação das escolas e universidades do país em aceitar cotas de estudantes negros. O resultado foi um desastre. A qualidade do serviço público despencou e o desemprego entre os negros subiu de 36% para 44%. A lição aqui não é a de que os negros fazem um trabalho pior que os brancos. E, sim, a de que, para uma sociedade funcionar perfeitamente, o melhor sistema é distribuir as vagas na universidade e os empregos públicos com base puramente no mérito individual, independentemente da cor da pele.

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A discriminação do diferente ou estrangeiro é tão antiga quanto a civilização. Os gregos viam com desprezo os estrangeiros e os chamavam de "bárbaros" – significando "aqueles que gaguejam" –, por não saberem falar grego. No século XX, a discriminação racial se amparou no raciocínio de cientistas, sociólogos e pensadores hoje relegados à lata de lixo da história. Em 1883, o inglês Francis Galton criou o conceito de eugenia, que pregava o aperfeiçoamento humano através do cruzamento seletivo entre pessoas com características desejáveis, como inteligência ou força física. Pouco antes de Galton, disseminaram-se com sucesso as idéias do franzino e arrogante conde francês Joseph-Arthur de Gobineau. Em seu célebre ensaio A Desigualdade das Raças Humanas, Gobineau defendia a tese de que os alemães, descendentes de um povo mítico, os arianos, representavam a raça suprema no mundo moderno. Chefe da delegação francesa ao Brasil em 1869, o conde previu que logo o país se tornaria terra despovoada em conseqüência dos casamentos inter-raciais. Gobineau achava que negros, brancos e índios não apenas formavam raças diferentes, mas espécies completamente distintas. Portanto, o cruzamento entre elas produziria descendentes estéreis, como a égua e o jumento resultam na mula.

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Além de pisotear a Constituição, tratando negros e brancos de forma desigual, o projeto de separar os brasileiros e definir direitos com base na "raça" é também um disparate científico. "Os genes que determinam a cor da pele de uma pessoa são uma parte ínfima do conjunto genético humano – apenas seis dos quase 30.000 que possuímos", diz a geneticista Maria Cátira Bortolini, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em parceria com o geneticista mineiro Sérgio Pena, Maria Cátira é autora de um estudo recente que mostra que os negros brasileiros por parte de pai têm em média mais genes europeus do que africanos (veja o quadro). Sérgio Pena, por seu turno, divulgou na semana passada um outro estudo, feito em parceria com a BBC Brasil, mostrando que várias celebridades negras brasileiras também têm forte ascendência européia. "Esses estudos mostram que é impossível dividir a humanidade em raças", diz Pena. O grande geneticista italiano Luca Cavalli-Sforza, em seu monumental estudo sobre as raças humanas lançado em 1995, resumia: "Não é que todos os seres humanos sejam iguais, mas as variações dentro de uma mesma comunidade são tão grandes quanto entre comunidades diferentes".

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A diferença de cor de pele é um fenômeno relativamente recente na história da humanidade. Quando o Homo sapiens surgiu, há 200.000 anos, todos tinham a pele negra e habitavam a África. À medida que foram se espalhando pelo mundo, primeiro na Ásia, depois na Oceania, na Europa e na América, as populações se adaptaram aos novos ambientes. Os cientistas acreditam que a seleção natural exercida nesses ambientes tenha dado origem às diferentes cores de pele e características anatômicas que distinguem as raças. Na África, a pele escura do ser humano foi preservada para protegê-lo do alto grau de radiação ultravioleta do sol. O grupo que migrou para o norte da Europa sofreu uma pressão seletiva no sentido do clareamento da pele para aproveitar melhor o sol fraco e sintetizar a vitamina D, essencial para os ossos. Toda essa diferenciação no tom de pele ocorreu nos últimos 20.000 anos, segundo geneticistas. O Brasil, que tinha o privilégio de ser oficialmente cego em relação à cor da pele de seus habitantes, infelizmente corre o risco de ser mergulhado no ódio racial.

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