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Revista do Programa de Pós-graduação em Comunicação Universidade Federal de Juiz de Fora / UFJF ISSN 1981- 4070 Lumina 1 Vol.8 • nº2 • dezembro 2014 A autoria no cinema da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone 1 Rodrigo Carreiro 2 Resumo: Este ensaio examina a ideia de que o exercício de um cinema autoral não está obrigatoriamente ligado à noção tradicional de autoria, que costuma requerer do cineasta o não pertencimento a um gênero fílmico específico. Usando a obra de Sergio Leone como estudo de caso, o artigo parte do pressuposto de que os filmes do italiano exerceram uma importante contribuição no processo de revisão de certas ferramentas narrativas e estilísticas que passaram a fazer parte do repertório do cinema contemporâneo, embora esta contribuição – uma operação autoral, no nosso entender – seja minimizada ou ignorada por grande parte dos pesquisadores cinematográficos, sobretudo por causa da militância do diretor no cinema de gênero. Palavras-chave: história do cinema; continuidade intensificada; análise fílmica; western; gênero fílmico Abstract: This essay examines the idea that the exercise of a auteur cinema is not necessarily linked to the traditional notion of authorship, which usually requires that the filmmaker do not follow the rules of an specific filmic genre. Using the work of Sergio Leone as a case study, the article assumes that the films of the Italian director have exerted an important contribution to the adoption of certain narrative and stylistic tools that became part of the repertoire of contemporary cinema, although this contribution - an authorial operation, in our view - have been minimized or ignored by most film researchers, especially because of the militancy of the filmmaker in genre cinema. Keywords: film history; intensified continuity; film analysis; western; filmic genre 1 Uma versão preliminar deste ensaio foi apresentada no GT Fotografia, Cinema e Vídeo do XIX Encontro da Compós, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (RJ), em junho de 2010. 2 Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco e Coordenador do Bacharelado em Cinema e Audiovisual da UFPE (2010-2014). Possui Doutorado e Mestrado em Comunicação pela UFPE. É Bacharel em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco. Email: [email protected]

Sergio Leone e a continuidade intensificada

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ensaio de análise fílmica sobre Sergio Leone

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    ISSN 1981- 4070 Lumina

    1 Vol.8 n2 dezembro 2014

    A autoria no cinema da continuidade intensificada: o caso de Sergio Leone1

    Rodrigo Carreiro2

    Resumo: Este ensaio examina a ideia de que o exerccio de um cinema autoral no est obrigatoriamente ligado noo tradicional de autoria, que costuma requerer do cineasta o no pertencimento a um gnero flmico especfico. Usando a obra de Sergio Leone como estudo de caso, o artigo parte do pressuposto de que os filmes do italiano exerceram uma importante contribuio no processo de reviso de certas ferramentas narrativas e estilsticas que passaram a fazer parte do repertrio do cinema contemporneo, embora esta contribuio uma operao autoral, no nosso entender seja minimizada ou ignorada por grande parte dos pesquisadores cinematogrficos, sobretudo por causa da militncia do diretor no cinema de gnero. Palavras-chave: histria do cinema; continuidade intensificada; anlise flmica; western; gnero flmico Abstract: This essay examines the idea that the exercise of a auteur cinema is not necessarily linked to the traditional notion of authorship, which usually requires that the filmmaker do not follow the rules of an specific filmic genre. Using the work of Sergio Leone as a case study, the article assumes that the films of the Italian director have exerted an important contribution to the adoption of certain narrative and stylistic tools that became part of the repertoire of contemporary cinema, although this contribution - an authorial operation, in our view - have been minimized or ignored by most film researchers, especially because of the militancy of the filmmaker in genre cinema. Keywords: film history; intensified continuity; film analysis; western; filmic genre

    1 Uma verso preliminar deste ensaio foi apresentada no GT Fotografia, Cinema e Vdeo do XIX Encontro da Comps, na Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (RJ), em junho de 2010.

    2 Professor do Programa de Ps-Graduao em Comunicao da Universidade Federal de Pernambuco e Coordenador do Bacharelado em Cinema e Audiovisual da UFPE (2010-2014). Possui Doutorado e Mestrado em Comunicao pela UFPE. Bacharel em Jornalismo pela Universidade Catlica de Pernambuco. Email: [email protected]

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    Introduo: a potica da continuidade intensificada e Sergio Leone

    O processo de continuidade intensificada foi assim nomeado, por David

    Bordwell (2006, p. 120), a partir de uma proposta alternativa da evoluo da potica

    do cinema ao longo do sculo XX. Por potica, aqui, compreende-se o conjunto de

    princpios estilsticos e narrativos que governam a construo de sentido da obra de

    arte e a sua respectiva decodificao pelo pblico. Este tratamento do termo deriva da

    conceitualizao realizada pelo prprio Bordwell (2008, p. 12).

    Bordwell divide a potica do cinema em trs vertentes: temtica, construo

    narrativa em larga escala e prtica estilstica. A primeira lida com questes

    pertinentes narrao (texto, subtexto, personagens, temas, dilogos etc.). A segunda

    examina o modo como o cineasta estrutura as partes da narrativa dentro do todo

    (ponto de vista, trama, cenas, sequncias, elipses etc.). A terceira corresponde

    textura visual e sonora propriamente dita (composies pictricas, montagem,

    msica, iluminao, cenrios, figurinos, locaes externas etc.).

    Indo na contramo da maior parte dos historiadores do audiovisual, que

    tendem a compreender a histria do cinema como uma sucesso de ciclos que

    rompem com os movimentos que os antecederam, Bordwell props que os princpios

    gerais que governam a arte cinematogrfica, cuja premissa o pesquisador norte-

    americano chamou de continuidade clssica (BORDWELL, 2006, p. 119), jamais

    deixaram de operar.

    Seguindo o raciocnio, as trs vertentes da potica do cinema foram e

    continuam sendo submetidas a uma operao de intensificao gradual e incessante,

    cujas origens remontam aos anos 1960. Bordwell chamou esse processo de

    continuidade intensificada. Ele afirma que a continuidade intensificada consiste em

    um repertrio cada vez mais amplo de recursos narrativos e estilsticos, sempre

    apontando em direo a uma experincia flmica cada vez mais visceral e intensa. Ele

    sugere que, embora muitos recursos de estilo e tticas narrativas tenham sido

    introduzidos desde ento no cardpio dos cineastas, os princpios gerais da

    construo narrativa, constitudos durante a fase clssica do cinema, ainda

    continuam valendo:

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    O que mudou, tanto nos registros mais conservadores quanto nos mais vanguardistas, no foi o sistema estilstico da construo cinematogrfica clssica, mas sim certas ferramentas funcionando dentro desse sistema. (...) Desde os anos 1960, essas tcnicas foram trazidas para o primeiro plano, de formas inditas em dcadas anteriores. Enquanto se tornavam mais proeminentes, essas tcnicas alteraram a textura de nossa experincia flmica. (BORDWELL, 2006, p. 119).

    Para melhor ressaltar sua posio, Bordwell traz tona a noo de

    continuidade clssica a potica do cinema construda nas primeiras trs dcadas da

    atividade e refinada entre os anos 1930 e 1960, quando a forma clssica conheceu seu

    apogeu. A continuidade clssica resumida ento nos seguintes termos:

    O espectador entende como a histria se move adiante no espao e no tempo. Planos que estabelecem e restabelecem o conjunto situam os atores dentro do cenrio. Um eixo de ao (ou linha de 180 graus) governa os movimentos e olhares dos atores, e todos os planos, embora possam variar em ngulo, so registrados apenas de um lado do eixo. Os movimentos dos atores so sincronizados atravs de cortes, e os planos mais prximos so reservados para as reaes faciais e linhas de dilogo significativas. Montagem alternada pode justapor vrios feixes de ao (...). Diretores norte-americanos usaram essa sntese de tcnicas de encenao, filmagem e montagem nos anos que se seguiram a 1917, e suas premissas se tornaram a base de uma linguagem flmica internacional para o cinema de entretenimento, passando a ser codificada em manuais e currculos universitrios nos anos 1950. (BORDWELL, 2006, p. 119-120).

    Bordwell assegura que mais ou menos a partir dos anos 1960 a estabilidade

    desse sistema clssico comeou a ser abalada pela introduo de novas tcnicas

    estilsticas e narrativas. Ao contrrio de outros historiadores do audiovisual, contudo,

    Bordwell no concorda que o cinema dos anos 1960 promoveu uma ruptura com o

    cinema clssico. Para ele, as novas tcnicas no rompiam com as prticas estilsticas e

    narrativas anteriores, fazendo na verdade uma operao de natureza bem diferente:

    De maneira geral, as novas ferramentas (...) no desafiam o sistema; elas o revisam. Longe de rejeitar a continuidade tradicional em nome da fragmentao e da incoerncia, o novo estilo aponta para uma intensificao das tcnicas estabelecidas. A continuidade intensificada a continuidade clssica elevada a um nvel maior de nfase (BORDWELL, 2006, p. 120).

    Em sua pesquisa, Bordwell mapeou alguns dos recursos narrativos e

    estilsticos usados pelos cineastas para intensificar a continuidade clssica, ao longo

    das cinco dcadas seguintes (ou seja, dos anos 1960 at hoje). Na vertente temtica

    da potica do cinema, alguns desses recursos seriam: representaes realistas do sexo

    e da violncia; protagonistas mais falhos, solitrios, inseguros ou moralmente

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    ambguos, resultando em personagens mais complexos e psicologicamente mais

    desenvolvidos; tendncia ao alusionismo (citaes a filmes anteriores, de forma

    crtica ou reverente); ateno ao realismo nos detalhes e na acuidade histrica das

    representaes visuais e sonoras.

    Na construo narrativa em larga escala, algumas caractersticas da

    continuidade intensificada seriam: a diviso menos clara da narrativa em trs atos,

    com relaes causais ambguas entre os eventos que compem a trama; introduo de

    subtramas ou tramas paralelas em maior nmero; uso de mais de um protagonista;

    fragmentao cronolgica e espacial das tramas, com cenas mais curtas e no

    lineares.

    No que se refere prtica estilstica (a terceira vertente da potica do cinema),

    so quatro as caractersticas apontadas por Bordwell: montagem visual rpida;

    variao no uso de lentes dentro da mesma cena; cmera mais prxima dos atores;

    movimentos de cmera incessantes, com uso proeminente de tcnicas como cmera

    na mo, traveling e grua. Juntas, essas ferramentas estilsticas e narrativas teriam

    propsitos que Bordwell resume mais ou menos da seguinte maneira:

    Alguns cineastas tm procurado refinar a tradio, explorando seus princpios mais minuciosamente. Esses criadores se perguntam: (...) como posso fazer as conexes causais mais prazerosas, as reviravoltas mais inesperadas, a psicologia dos personagens mais envolvente, a excitao mais intensa, os temas mais firmemente explorados? Como posso exibir meu virtuosismo? Quando os cineastas se revelam bem-sucedidos, revelam o alcance e a flexibilidade das premissas clssicas. (BORDWELL, 2006, p. 51).

    Em sua pesquisa, Bordwell rejeita explicitamente a idia de que o cinema

    irreverente e autorreflexivo, praticado pelos jovens movimentos cinematogrficos que

    emergiram naquela dcada na Europa em particular a Nouvelle Vague francesa ,

    propunha uma ruptura com a linguagem cinematogrfica tradicional.

    No entanto, sua concluso seguinte se junta ao senso comum. Bordwell

    concorda com os historiadores sobre quem foram os diretores que revisaram, criaram

    ou adaptaram as principais ferramentas estilsticas e narrativas que constituam essa

    nova esttica da intensificao. Entre esses nomes esto Jean-Luc Godard, Franois

    Truffaut, Alain Resnais, Michelangelo Antonioni, Ingmar Bergman e Federico Fellini.

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    So os mesmos que se convencionou chamar de diretores modernistas europeus

    (AUMONT, 2008; LAURENT; JULIER, 2009; MANEVY in MASCARELLO, 2006).

    A teoria de Bordwell abre espao nesse grupo de renovadores da tradio

    cinematogrfica para autores da gerao anterior, como Roberto Rossellini

    (inspirador reconhecido da maioria dos cineastas da Nouvelle Vague), Orson Welles,

    Robert Bresson, Akira Kurosawa e Alfred Hitchcock. De modo geral, Bordwell aponta

    para o mesmo grupo de realizadores j consagrados pelos pesquisadores da outras

    correntes tericas. Ou seja, o ponto de maior originalidade (e tambm de discrdia)

    de sua teoria mesmo a negao da idia de ruptura, em prol da noo da

    intensificao.

    Embora essa abordagem nos parea promissora, ela mantm furtivamente um

    desprezo pelo cinema popular de gnero que pode ser encontrado em praticamente

    todas as correntes tericas dos estudos cinematogrficos. Entre os renovadores

    nomeados por Bordwell, bem como pela maioria dos pesquisadores de todas as

    correntes tericas, esto quase sempre diretores vinculados ao conceito do cinema de

    autor (muito popular nos anos 1950 e 60), sempre colocados hierarquicamente num

    patamar superior aos cineastas que trabalham com cinema de origem popular.

    O raciocnio implcito na pesquisa de Bordwell, essencialmente o mesmo que

    podemos encontrar nas diversas correntes da teoria cinematogrfica, est ancorado

    no princpio fundamental do autorismo originado nos anos 1960, e que por sua vez

    devedor da noo romntica de autor, prevalente na teoria literria (e nas artes

    ocidentais de modo geral) desde meados do sculo XIX: a idia de que o grau de

    autoria presente em cada artista est diretamente ligado liberdade com que ele

    capaz de criar. O autorismo resgata a idia de que os artistas deveriam ser livres para

    escrever do modo que o esprito lhes ditasse (BUSCOMBE in RAMOS, 2004, p. 304).

    Usando como estudo de caso os filmes do diretor italiano Sergio Leone, cuja

    carreira de duas dcadas contabilizou sete longas-metragens, sendo cinco westerns,

    um pico romano e um filme de gngster (todos, portanto, pertencentes a gneros

    flmicos rigidamente codificados), pretendemos examinar nesse artigo a idia de que

    o exerccio de um cinema autoral no est obrigatoriamente ligado noo romntica

    de autoria, que exige do cineasta o no pertencimento a um gnero flmico especfico.

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    Para alcanar este objetivo, tentaremos mostrar como o cinema de Sergio

    Leone exerceu uma importante contribuio no processo de reviso e criao de

    certas ferramentas narrativas e estilsticas que passaram a fazer parte do repertrio

    da continuidade intensificada, embora esta contribuio uma operao, sem

    dvida, autoral seja normalmente minimizada ou ignorada por grande parte dos

    pesquisadores cinematogrficos. Esse raciocnio nos leva a duas questes: afinal, qual

    foi a efetiva contribuio oferecida por Sergio Leone renovao estilstica e

    narrativa que o cinema viveu a partir dos anos 1960? E por que razes essas

    contribuio tem sido desprezada?

    O objetivo central deste artigo examinar as duas perguntas. Partimos da

    hiptese de que a militncia de Leone no cinema de gnero e, ainda mais

    significativamente, numa vertente estrangeira, popular e barata de um gnero visto

    como intrinsecamente norte-americano, por lidar com um perodo central da

    formao da identidade cultural do povo dos Estados Unidos est na raiz desse

    relativo apagamento da contribuio efetiva que a obra do italiano deu constituio

    do repertrio da continuidade intensificada.

    Estilo e narrativa em Sergio Leone

    O diretor italiano manejava certos recursos estilsticos e narrativos em direo

    intensificao, sem necessariamente romper com as tradies narrativas que

    vinham antes dele (s quais ele prestava homenagens, atravs de aluses s vezes

    reverentes e outras vezes irreverentes). Mais: as prticas estilsticas e narrativas que

    sinalizavam essa operao de intensificao, e que consistiam em assinaturas autorais

    recorrentes, eram em alguns casos substancialmente diferentes das prticas dos

    diretores modernistas.

    O modo como Leone filmava era particular. Ele no estava simplesmente

    copiando novos recursos de estilo e narrativa, introduzidos no repertrio de tcnicas

    da pelos cineastas modernistas dos anos 1960. Leone produzia algo diferente. Os

    close-ups extremos, o realismo grotesco de cenrios e figurinos, o perfil amoral e

    violento do heri, o tratamento particular e distendido do tempo flmico dado aos

    momentos de tenso, a incluso de elementos diegticos (sinos de igreja, chicotadas,

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    tiros, galopes de cavalo) nas composies musicais, o uso dramtico de rudos e

    silncios; todas eram caractersticas que estavam presentes de forma recorrente nos

    filmes dele, buscavam a intensificao da experincia flmica, e consistiam em

    revises, adaptaes ou inovaes distintas, que se juntavam ao repertrio de

    tcnicas introduzidas por Godard, Bergman e outros mestres europeus

    contemporneos de Leone.

    Vrias dessas caractersticas podem ser percebidas sempre submetidas a

    novos processos de atualizao, reviso e adaptao em filmes contemporneos;

    filmes que, seguindo a teoria de Bordwell, continuam ainda hoje a exacerbar

    gradualmente essa noo de intensificao. O uso de close-ups de rostos, por

    exemplo, aumentou exponencialmente desde meados dos anos 1960, quando

    nenhum outro cineasta alm de Leone usava o recurso de maneira to ostensiva. Os

    protagonistas se tornaram cada vez mais falhos e ambguos. A mistura entre msica e

    efeitos sonoros tem sido expandida continuamente. Todos esses elementos podem ser

    observados nos filmes de Leone, embora ele normalmente no seja colocado ao lado

    de Godard, Truffaut e companhia, na relao dos renovadores do cinema em

    atividade ao longo da dcada de 1960.

    Neste ponto, acreditamos que uma anlise mais minuciosa de uma cena

    escolhida de algum filme de Sergio Leone pode nos ajudar a confirmar o uso desses (e

    de outros) recursos, que apontam em direo continuidade intensificada e se

    tornaram, ao longo dos anos a seguir, populares entre cineastas de todo o mundo.

    Vamos ficar com uma cena de Trs Homens em Conflito (Il Buono, Il Brutto, Il

    Cattivo, Sergio Leone, 1966), o mais popular filme de Leone3. O exame detalhado das

    escolhas narrativas e estilsticas operadas por ele nos permitir enumerar algumas de

    suas contribuies continuidade intensificada.

    3 No primeiro semestre de 2014, o longa-metragem permanecia em sexto lugar na lista dos melhores filmes de todos os tempos organizada pelo Internet Movie Database (IMDB), mais extenso banco de dados de filmes disponvel na Internet. A lista alimentada pelos votos dos 54 milhes de usurios registrados do site.

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    A cena escolhida acontece aos 21m56 de projeo4. Ela mostra o pistoleiro

    Blondie (Clint Eastwood) resgatando o colega Tuco (Eli Wallach), prestes a ser

    enforcado. A seqncia contm 24 planos e totaliza 86 segundos uma mdia de 3,5

    segundos por plano. Para efeito de comparao, a durao mdia de cada plano nos

    filmes do comeo da dcada de 1960 ficava entre oito e onze segundos (BORDWELL,

    2008, p. 47). Com a montagem sendo acelerada progressivamente da em diante

    (uma das caractersticas da continuidade intensificada), essa mdia cairia para um

    valor entre cinco e oito segundos, na dcada de 1970; entre cinco e sete segundo, ao

    final dos anos 1980; entre trs e seis segundos, no final do sculo XX; entre dois e

    trs segundos atualmente (BORDWELL, 2006, p. 122).

    Leone modula o ritmo da cena de forma cadenciada, fazendo-a tanto mais

    rpida quanto mais dramtica a ao. A durao isolada de cada plano varivel. O

    plano de abertura tem 35 segundos; ou seja, ocupa quase metade da durao (FIG. 1

    a FIG. 4). medida que a ao dramtica evolui, a durao dos planos diminui. No

    clmax da cena Blondie parte a corda com um tiro e efetua outros quatro disparos,

    arrancando os chapus de quatro homens que assistiam ao enforcamento (FIG. 11 a

    FIG. 18). Esta ao mostrada em uma sucesso de 12 planos que dura, ao todo, sete

    segundos.

    Da se depreende que Leone usa a tcnica da montagem para modular o tempo

    narrativo, estendendo-o e comprimindo-o de acordo com o grau de tenso. Esta

    tcnica a manipulao do tempo flmico, iniciada com um efeito de

    suspenso/congelamento do tempo, seguido por uma acelerao sbita no momento

    climtico uma das marcas da prtica estilstica do diretor italiano. Ela se coaduna

    perfeitamente com a as caractersticas de montagem da esttica da continuidade

    intensificada, em que a velocidade da justaposio de diferentes planos est vinculada

    nfase dramtica: quanto mais drama, mais rpida a montagem.

    O objetivo narrativo da cena o esclarecimento da natureza relao entre

    Blondie e Tuco. No momento do quase enforcamento, o pblico j foi apresentado

    aos dois personagens, mas desconhece que ambos atuam como parceiros. Esta cena

    4 As figuras que auxiliam esta anlise da cena consistem dos frames mais significativos da sequncia. Eles foram retirados do DVD brasileiro do filme, lanado pela 20th Century Fox.

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    exemplifica outra caracterstica perseguida por Leone em todos os seus filmes: a

    releitura crtica de cdigos rgidos do gnero.

    Em primeiro lugar, o enforcamento de criminosos havia se tornado, desde a

    metade da dcada anterior, uma instncia narrativa recorrente em westerns norte-

    americanos (BUSCOMBE, 1988, p. 145). Na cena, Leone oferece uma releitura bem

    particular desse momento tpico do gnero, operando uma subverso expectativa do

    pblico atravs da chave da ironia. A punio simblica ao criminoso no acontece;

    ao contrrio, o pblico descobre, surpreso, que o heri (apresentado nos crditos

    como O Bom) comparsa do bandido. Essa reverso da expectativa atravs de

    aluses ou referncias a momentos consagrados de exemplares anteriores do gnero

    configura o que Richard Dyer chama de pastiche: um tipo de imitao que voc sabe

    ser imitao (DYER, 2007, p. 1), quase sempre proporcionando um efeito

    intertextual de distanciamento que concretiza a operao de releitura crtica do

    gnero.

    O perfil dos protagonistas, especialmente no que se refere moralidade,

    tambm uma caracterstica tpica de Leone. Os heris dos filmes que ele dirigiu

    representam variaes do mesmo personagem: lacnico, solitrio, vive margem da

    sociedade. Quase no fala; quando o faz, opta pelo modo irnico, de forma a

    demarcar uma distncia crtica entre ele e o interlocutor. O heri de Leone to

    violento, amoral e individualista quanto seus bandidos. um heri falho e

    moralmente ambguo; essa uma das caractersticas narrativas da continuidade

    intensificada de Bordwell.

    FIG. 1: O primeiro plano da cena um detalhe do lao da forca: trata-se do enquadramento predileto de Leone para comear uma nova cena.

    FIG. 2: A cmera move-se para baixo, seguindo a corda, e revela que o homem a ser enforcado Tuco, mostrado num close-up caracterstico de Leone.

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    FIG. 3: Sem cortes, a cmera faz um zoom in e move-se para a esquerda, enquadrando os rostos dos moradores que assistem ao enforcamento.

    FIG. 4: A cmera para no rosto do acusador, cuja voz ouvida desde o incio. Mais um exemplo do estilo de Leone: ouve-se o som antes de ver a origem dele.

    FIG. 5: Por trs de uma pilastra, vemos uma baforada de cigarro, acompanhada de um curto fraseado musical que revela o personagem ...

    FIG. 6: ... antes que ele aparea, um instante depois, enquadrado em close-up: Blondie (Clint Eastwood), que assiste ao enforcamento escondido.

    FIG. 7: O plano de conjunto revela a posio de Blondie em relao a Tuco; a composio emoldura a ao com um elemento em primeirssimo plano.

    FIG. 8: Blondie mastiga um cigarro; o trecho musical satrico que pontua a ao assinala a ironia: um momento icnico do western ser desconstrudo.

    FIG. 9: Os personagens em primeiro plano e Blondie, ao fundo, so mostrados com nitidez, o que sinaliza a participao ativa de ambos neste momento.

    FIG. 10: O acusador finalmente termina de ler a sentena; um plano mdio isola Tuco, que geme; chegou a hora do enforcamento, e a tenso aumenta.

    FIG. 11: Um homem chicoteia o cavalo, enquanto

    FIG. 12: No exato instante em que ouvimos o tiro,

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    Blodie atira para partir a corda da fora: ao simultnea em primeiro e segundo plano ntidos.

    um corte isola Blondie num plano mdio que dura apenas alguns frames e o mostra ajustando a mira.

    FIG. 13: O segundo tiro mostrado do ponto de vista de Blondie, para enfatizar a dificuldade da tarefa do pistoleiro acertar uma corda a longa distncia.

    FIG. 14: A corda parte e Tuco sai correndo; os gritos dos moradores, o galope dos cavalos e o eco do tiro, associados montagem rpida, enfatizam a algazarra.

    FIG. 15: No clmax da cena, Leone acelera a montagem e intercala alguns frames que mostram planos-detalhes do cano da arma de Blondie disparando ...

    FIG. 16: ... e chapus das testemunhas do enforcamento voando logo em seguida; Leone utiliza doze planos diferentes em apenas sete segundos.

    FIG. 17: A edio de som deste trecho rpido cuidadosa. Quando a imagem mostrada da arma, ouve-se o tiro soando forte e bem prximo.

    FIG. 18: No contra-plano, o som do tiro tem menos volume e mais eco; o som se move pelos canais de udio, injetando realismo e tridimensionalidade.

    FIG. 19: Quando o tiroteio encerra, v-se um plano geral que mostra o cavalo de Tuco deixando a cidade, enquanto ouve-se os moradores gritando e correndo.

    FIG. 20: Ao mesmo tempo, Blodie deixa o galpo onde estava escondido numa charreta, fugindo da cidade sem dar chance para que o sigam.

    Ademais, a expertise desses heris levada vrios passos alm, em relao ao

    heri tpico de Hollywood at os anos 1950. Este ltimo sempre foi um craque no

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    gatilho, mas nada que se comparasse com um heri de Leone. A cena escolhida

    reafirma essa expertise: Blondie dispara cinco vezes, arrebentando uma corda a 20

    metros de distncia e depois acertando os chapus na cabea de quatro homens, tudo

    isso em apenas sete segundos. E a caracterizao estilstica e narrativa desse heri

    sempre inclui elementos visuais e sonoros que o faz instantaneamente reconhecvel

    pelo pblico.

    Neste caso, esses elementos so dois: o indefectvel cigarro que Clint Eastwood

    mastiga o tempo inteiro e uma breve sequncia de oito notas musicais divididas em

    duas frases meldicas distintas (respectivamente de cinco e trs notas), que

    funcionam como uma pergunta e uma resposta, simulam o grito de um coiote

    (animal presente na diegese) e tm a funo de criar uma assinatura sonora um

    leitmotiv5 associada instantaneamente ao personagem durante todo o filme.

    Nos filmes de Leone, falar da msica lembrar a parceria entre o diretor e

    Ennio Morricone. A maneira como Leone usa a msica de Morricone segue as das

    regras clssicas de sonorizao estabelecidas em Hollywood desde os anos 1930

    (como demonstra o uso do conceito de leitmotif, criado por Richard Wagner no

    sculo XIX, introduzido no cinema por Max Steiner em 1933 e desde ento utilizado

    massivamente pelos compositores para cinema), enumeradas abaixo por Claudia

    Gorbman:

    [A msica para cinema] (...) d ressonncia dramtica e emocional s cenas, sugere personalidade, encenao e atmosfera, influencia a percepo do tempo e do espao narrativos, cria unidade formal e senso de continuidade, interage com o discurso humano e outros sons, e compensa a relativa ausncia de profundidade espacial que caracteriza a mais antiga arena de observao, a sala de projeo. (GORBMAN in HILL; CHURCH GIBSON, 1998, p. 44).

    Por outro lado, a instrumentao e os arranjos de Morricone demarcam uma

    distncia crtica em relao msica de Hollywood: estrutura pop (intercalando

    versos e refres), uso de instrumentos exticos ou oriundos da msica popular

    (ocarina, guitarra eltrica, bateria, violo flamenco, castanholas), incluso de

    elementos pertencentes diegese (galopes, chicotadas, tiros e o j citado grito de

    coiote) dentro da harmonia, numa influncia da msica concreta que, desde o final da

    5 Um leitmotiv consiste num fraseado ou trecho meldico associado a personagem, local ou situao dramtica dentro de um mesmo filme.

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    dcada de 1940, estava presente nos crculos de compositores vinculados ao

    movimento modernista europeu.

    O instante escolhido por Leone para executar o leitmotif do personagem de

    Eastwood exemplifica o modo irnico como o diretor usava a msica. O trecho inicial

    de cinco notas (L-R-L-R-L) ouvido logo aps o primeiro corte. O plano

    mostra uma baforada de fumaa aparecendo por trs de um pilar de madeira (FIG.

    5); antes que o autor da baforada aparea, o pblico j sabe quem ele (atravs da

    associao msica + fumaa de cigarro). A anlise da insero da msica demonstra

    mais um aspecto perceptvel do estilo de Sergio Leone: a sincronia fina entre a

    imagem e o som. Leone insere o fraseado musical, executado com uma flauta,

    enquanto o rosto do ator ainda est fora do quadro e o espectador v apenas uma

    pequena nuvem de fumaa. O momento em que a nuvem se dissipa coincide com o

    final do trecho musical; um instante depois, Eastwood focalizado em close-up

    (FIG. 6).

    No que se refere trilha sonora, Leone tambm dedicava ateno especial aos

    efeitos sonoros, demonstrando predileo pelo uso de sons fora de quadro para guiar

    a ateno do espectador para reas especficas dentro do quadro, ou para algum

    elemento que passaria a aparecer em quadro apenas no plano seguinte. Ele inclua

    elementos sonoros cujo correspondente imagtico s apareceria aps um movimento

    de cmera ou um corte, de forma a preparar a percepo do espectador para

    determinada imagem que s seria vista aps algum tempo.

    Um bom exemplo desta tcnica est no primeiro plano da cena. O plano

    comea com a imagem de um lao de corda amarrada num galho de rvore (FIG. 1).

    A cmera faz um tilt (move-se para baixo) e enquadra o rosto de Tuco, o bandido, em

    close-up; ele tem o lao em volta do pescoo (FIG. 2). Aps zoom para frente, a

    cmera move-se para a esquerda, enquadrando sucessivamente os rostos dos

    membros da comunidade que assistem ao enforcamento (FIGS. 3 e 4).

    EDurante todo o plano, possvel ouvir claramente os rudos que do

    ambincia e tridimensionalidade cena, inserindo-a no contexto de uma comunidade

    rural: galopes de cavalos, vozes de pessoas, uma pequena algazarra de rudos que

    empresta unidade temporal cena. Acima desses sons, soa a voz de um homem que

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    resume as acusaes contra Tuco. Durante a maior parte do plano, no vemos o autor

    do discurso; mas o movimento lateral da cmera termina enquadrando o rosto do

    acusador em close-up extremo (FIG. 5). A ateno do espectador foi preparada pelo

    udio da cena para culminar com a apario da origem do elemento principal da

    trilha sonora.

    Cabe ressaltar, tambm, o cuidado com a composio dos efeitos sonoros ao

    longo da cena. No plano de nmero 7, quando o acusador encerra seu discurso, Tuco

    emite um gemido alto, demonstrando saber que sua hora chegou; esse gemido eleva a

    temperatura dramtica da cena imediatamente (FIG. 10), efeito realado pelo uso

    do zoom no plano seguinte, reenquadrando dessa maneira o personagem de Clint

    Eastwood que, antes visto bem ao longe em segundo plano e agora observado com

    muito mais destaque, comea a atirar (FIGS. 11, 12 e 13).

    A algazarra ouvida aps os tiros efetuados por Blondie (gritos, sons de pessoas

    correndo, cavalos) no est ali simplesmente para preencher o vazio na trilha sonora,

    mas para agregar realismo e atmosfera emocional. por isso que Leone utiliza de

    forma recorrente os efeitos sonoros amplificados, em volume mais alto do que eles

    seriam ouvidos na vida real, como o j citado gemido ouvido durante o plano sete

    (figura 10). O objetivo deste efeito sonoro claramente emocional, ou seja, provocar

    uma sensao que afeta a percepo geral da cena pelo espectador. Leone se tornou

    um dos primeiros cineastas a usar os chamados sons hiper-reais, muito comuns nos

    filmes de gnero a partir da dcada de 1980.

    Esta mesma preocupao com o senso de realidade est na raiz do desenho de

    produo realista. No western norte-americano, particularmente durante os anos

    1950, quando as cores saturadas do sistema Cinemascope eram utilizadas para

    apresentar caubis limpos e vestidos com roupas coloridas, a direo de arte no

    refletia a vida dura de quem morava naquele ambiente inspito. J os filmes de Leone

    eram diferentes.

    Nesta cena, a obsesso com o realismo fica evidente na roupa suja e

    amarrotada de Tuco (FIG. 10); nos rostos queimados dele e de Blondie (FIGS. 2, 6 e

    8), tpicos de caubis que passam dias cavalgando no deserto causticante; no cuidado

    com o figurino dos membros da comunidade que assistem ao enforcamento; e no rifle

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    manejado pelo personagem de Eastwood, uma arma da marca Henry e com mira

    telescpica (FIGS. 12, 15 e 17), popular de verdade no ano de 1862, quando a ao

    dramtica se passa (HUGHES, 2004, p. 110).

    Essa obsesso com detalhes e o realismo grotesco no eram comuns no cinema

    em 1964. O italiano foi pioneiro nas pesquisas iconogrficas realizadas durante a pr-

    produo, escolhendo figurinos e construindo cenrios com base em dezenas de

    fotografias colhidas em bibliotecas e museus que catalogavam artefatos dos Estados

    Unidos no sculo XIX. No caso de Trs Homens em Conflito, Leone e o roteirista

    Luciano Vincenzoni passaram duas semanas em Washington (EUA), freqentando

    diariamente a Biblioteca do Congresso e compilando uma coleo de fotos e textos

    relacionados guerra civil dos Estados Unidos (FRAYLING, 2000, p. 206). A

    acuidade histrica era um recurso estilstico importante para Leone, um recurso que

    tinha tambm uma razo narrativa: trazia verossimilhana a filmes constantemente

    acusados pelos crticos da poca de desvirtuar e espetacularizar eventos histricos.

    A A preocupao com o realismo tambm est relacionada representao

    grfica da violncia, outra caracterstica importante para Leone. Em meados dos anos

    1960, quando ele comeou a atuar como diretor, a filmagem de atos de violncia em

    filmes norte-americanos estava limitada por uma srie de regras relacionadas

    censura. Filmando na Itlia, Leone no precisava se preocupar com isso. Alm do

    mais, mostrar os efeitos destruidores da violncia sobe o corpo humano era, para os

    cineastas europeus, uma forma de denunciar a desumanidade da guerra e os efeitos

    psicolgicos da Segunda Guerra Mundial ainda estavam muito presentes. Isso tudo,

    associado emergncia de guerras (Coria, Vietn) e ao medo de um holocausto

    nuclear, certamente ajudou os cineastas europeus do perodo a usar a representao

    grfica da violncia como forma de crtica poltica. Os filmes de Leone estiveram

    entre os primeiros a faz-lo. A representao cada vez mais grfica da violncia

    tambm est entre as caractersticas da continuidade intensificada.

    Por fim, o modo de filmar era maneirista: dava ampla visibilidade ao estilo.

    Nesse ponto, Leone se afastava bastante da decupagem clssica do western de

    Hollywood, conhecido por valorizar os planos gerais e de conjunto. Desde Por um

    Punhado de Dlares, Leone apresentava uma predileo especial por close-ups de

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    rostos (FIG. 2, 3, 4, 6, 8, 16 e 18). O estilo do italiano tambm inclua

    justaposies radicais, com nfase em close-ups que davam lugar a planos gerais (por

    exemplo, a justaposio entre as FIGS. 18 e 19). Essas justaposies, que

    fragmentavam o espao flmico de forma radical, obrigavam o espectador a realizar

    um rpido reajuste de sua percepo, de forma que as reaes emocionais eram

    ampliadas; ou seja, a tcnica era usada para intensificar a atmosfera de tenso.

    Leone tambm gostava de composies volumtricas, encenando em linhas

    diagonais que reforavam a perspectiva e abusavam da grande profundidade de

    campo alcanada pelas lentes grande-angulares esfricas que o sistema Techniscope

    proporcionava. Uma de suas composies favoritas consistia em filmar a ao

    principal em segundo plano, bem distante da cmera, enquanto a perspectiva e o

    volume eram acrescentados colocando-se um objeto (revlver, bota) ou parte do

    corpo humano (cabea, nuca, mo, p) em primeiro plano, bem perto da cmera,

    num dos lados do quadro, funcionando como uma espcie de moldura. Essa

    composio em moldura com profundidade de campo, uma variao mais radical de

    dois tipos de composio pictrica a composio em profundidade de campo,

    popular nos anos 1940 e 1950 graas influncia de Cidado Kane (Citizen Kane,

    Orson Welles, 1941) mas pouco usada desde a apario do Cinemascope em 1953, e a

    composio recessiva, em que a encenao realizada em diagonal aparece duas

    vezes em planos da cena do enforcamento (FIGS. 7 e 13).

    Concluso: autoria e gnero em conflito

    Sintetizadas nesta cena curta, possvel enumerar algumas das principais

    caractersticas narrativas e estilsticas do trabalho de Sergio Leone: aluses a filmes

    anteriores e/ou momentos caractersticos do gnero; releitura crtica do gnero

    (atravs de tcnicas como pastiche, ironia e nostalgia); perfil de heri lacnico,

    amoral e individualista; tratamento modular do tempo, ora dilatando-o ora

    acelerando-o, e fragmentao do espao em close-ups; preferncia por composies

    pictricas radicais (close-ups extremos, composies recessivas usando molduras e

    profundidade de campo); desenho de produo e direo de arte realistas; cuidado

    com a acuidade histrica dos objetos cnicos; representao grfica da violncia;

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    msica com influncia simultnea do concretismo modernista e do neorromantismo

    clssico europeu do sculo XIX; desenho de som hiper-real, com nfase para os

    rudos diegticos em volume amplificado; e cuidado meticuloso com a sincronia entre

    som e imagem.

    Todas essas ferramentas fazem parte da continuidade intensificada de

    Bordwell, e foram estudadas pelas geraes subseqentes de cineastas. Christopher

    Frayling (2005, p. 190-192) afirma que professores de montagem de cursos de

    graduao em Cinema em instituies de ensino norte-americanas faziam seus alunos

    estudarem meticulosamente os filmes de Leone na Moviola6, no final da dcada de

    1960, analisando algumas cenas plano a plano. O objetivo era levar os alunos a

    desenvolverem essas tcnicas em direo a uma experincia flmica mais intensa.

    George Lucas e John Milius, que freqentavam a University of Southern California,

    estavam entre esses alunos. Atravs deles (e de outros diretores norte-americanos) o

    tratamento intensificado dos princpios da continuidade clssica, atravs das novas

    tcnicas assimiladas da produo europia nos anos 1970, se popularizou em nvel

    global.

    Enfim, diversas correntes da teoria do cinema olham para os anos 1960 como

    um perodo de experimentalismo e inovao, do ponto de vista das prticas

    narrativas e estilsticas. O cinema europeu do perodo corretamente apontado como

    produto de um momento histrico singular, que expandiu os limites do que se podia

    fazer com a esttica do filme. Mas os diretores apontados como artfices dessa

    revoluo na gramtica do cinema so sempre os mesmos. Esse grupo de renovadores

    no inclui os nomes de cineastas vinculados a gneros cinematogrficos.

    A prpria pesquisa de David Bordwell reflete esse problema. Ao longo do livro

    The Way Hollywood Tells It: Story and Style in Modern Movies (2006), em que

    desenvolve o conceito de continuidade intensificada, o pesquisador norte-americano

    cita Sergio Leone cinco vezes (trs delas para relacion-lo ao uso de close-ups

    extremos ou de lentes grande-angulares). Ele relativiza o papel que os filmes de

    Leone exerceram no processo de reviso e exacerbao de muitas das caractersticas

    de narrativa e estilo que integram o repertrio da continuidade intensificada.

    6 Aparelho utilizado pelos montadores para cortar e colar os pedaos de negativo, que permite a possibilidade de manipul-lo quadro a quadro.

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    Do ponto de vista da histria do cinema, a situao parecida. O nome de

    Sergio Leone no citado uma vez sequer na Histria do Cinema Mundial,

    organizada por Fernando Mascarello (2006). O longo e ambicioso Film History: An

    Introduction (2009), de Bordwell e Kristin Thompson, dedica quatro pargrafos ao

    diretor, concentrando-se em trs contribuies de Leone ao repertrio de tcnicas

    cinematogrficas: close-ups, realismo grotesco e msica romntico-satrica.

    Curiosamente, eles evitam fazer conexes entre o trabalho do diretor italiano e o

    cinema produzido nos crculos modernistas europeus. O trecho encerrado com uma

    frase curta, mas muito importante:

    Embora Leone tenha trabalhado num gnero popular, sua reinterpretao extravagante e altamente pessoal das convenes desse gnero se tornou to significativa quanto os esforos dos diretores de cinema de arte que revisaram e desafiaram a tradio neorrealista. (BORDWELL; THOMPSON, 2010).

    uma passagem paradoxal. Quer dizer que a prtica estilstica e narrativa de

    Leone foi to importante quanto a de Truffaut e Godard? Nesse caso, porque esses

    dois diretores franceses ganham, na organizao grfica do livro, um Box destacado

    sobre as respectivas carreiras, com duas pginas, enquanto Leone, cuja importncia

    foi idntica, fica restrito a uma meno rpida e circunstancial? A prpria frase de

    Bordwell e Thompson traz duas expresses que esclarecem o paradoxo: (1) Leone

    trabalhou num gnero popular (a palavra embora7 explicita o preconceito dos

    autores); e (2) os grandes diretores modernistas merecem mais respeito porque

    faziam cinema de arte.

    Em sntese, a questo que abordamos aqui est relacionada ao apagamento a

    que os filmes de Sergio Leone foram submetidos, no mbito dos estudos

    cinematogrficos. Parece-nos claro que o diretor italiano efetivamente teve um papel,

    ao longo dos anos 1960 e 1970, no processo de continuidade intensificada

    identificado por Bordwell; e tambm nos parece evidente que esse papel continua a

    ser minimizado por estudiosos de praticamente todas as linhas de pesquisa

    cinematogrfica, graas ao preconceito para com diretores que trabalharam com

    gneros flmicos rigidamente codificados.

    7 No texto original, although.

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    MASCARELLO, Fernando (org.). Histria do Cinema Mundial. Campinas: Papirus Editora, 2006.