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Série o jovem sherlock holmes livro 04 tempestade de fogo andrew lane

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Prólogo

OCHINESINHOSEGUROUAAGULHAcomdedos rmesemergulhouapontanofrascode tintanamesaà sua frente.Próximoao frascoestavaoantebraçodeummarinheiro,queocupavaacadeiradooutroladodamesa.Eraumantebraçoimenso—pareciaumpresuntonabancadadeumaçougueiro.

—Vocêtercertezadequererâncoraazul?—perguntouochinês.ElesechamavaKaiLung.Seurostoeraenrugado,eocabelotrançadoque

pendiaporsuascostastinhacordefuligem.—Jáfalei—respondeuomarinheiro—,queroumaâncora!Porqueeumoro

etrabalhonumbarco,entendeu?—Eupoderfazerumpeixe—argumentouKaiLung,emvozbaixa.Âncoraseramfáceis.Etambémsemgraça.KaiLungtinhaa impressãode

que passava metade de seu tempo tatuando âncoras azuis em antebraçosmusculosos de marinheiros, às vezes com o nome de uma mulher embaixo,dentrodeumlindopergaminho.Oproblemaeraqueaoutrametadedotempoelepassava transformando tatuagenscomnomesdeantigaspaixõesemoutrascoisas: arame farpado, ores,qualquer imagemquepudessedisfarçaras letras.Eleinsistiu:

—Eupoderfazerpeixebonito,talvezpeixe-japonês,comescamasdascoresdoarco-íris.Vocêgostardaideia?Tatuagemdepeixeboaparamarinheiro,não?

—Queroaâncora—disseohomem,teimoso.—Certo.Tudobem.Âncora,então.—Eledeuumsuspiro.—Vocêpensar

emalgumtipoespecialdeâncora,ouumacomummesmo?Omarinheirofranziuocenho.—Quantostiposdeâncoraexistem?—Âncoracomum,então.Elesepreparouparafazeraprimeiramarcacomaagulha.Atintaentrariano

pequenofuronobraçodomarinheiroetingiriaotecidoinferior.Aolongodosanos,acamadaexternadapele sedesgastaria,mudariae sebronzearia,masatinta caria ali, sob a pele, para sempre. Se usasse a quantidade su ciente defuros e de cores, Kai Lung podia desenhar qualquer coisa — um peixe, umdragão,umcoração...ouumaâncoraazul.Maisumaâncoraazul.

Aportaseabriuderepente,empurradacomforçapeloladodefora,ebateuna parede. A maçaneta de dentro deixou uma marca na parede de tijolos

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expostos. Havia um homem sob o batente. Ele era tão alto e largo que nãosobravamuito espaço no vão da porta ou acima de sua cabeça raspada. Suasroupasestavamamarrotadasesujas.Pareciaqueeletinhapassadoalgumtempoviajandovestidocomelas,etalveztambémdormindocomelas.

—Você—rosnouelecomsotaqueamericano,olhandoparaomarinheiro.—Fora!

O sujeito apontouopolegarpara tráspor cimadoombro, caso a instruçãonãotivessesidoclara.

—Ei!Eumarqueihora!Omarinheiro se levantou, cerrandoospunhose sepreparandoparabrigar.

Avançouemdireçãoàporta.Orecém-chegadodeuumpassoàfrente.Otopoda cabeça do marinheiro mal chegava ao queixo dele. Sem tirar os olhos domarinheiro,ohomemestendeuamãoesquerdaeagarrouamaçaneta.Apertou.Poruminstante,nadaaconteceu,eentão,comtristezanocoração,KaiLungviuamaçaneta caramassadaeretorcidasobapressão.Empoucossegundos,maispareciaumaboladepapelquedemetal.

—Tudobem—disseomarinheiro.—Temoutrostatuadoresporaí.Orecém-chegadodeuumpassoparao lado,eomarinheiropassouporele

semolharparatrás.—Vocême fez perder cliente—disseKaiLung.Ele não tinhamedodo

recém-chegado.Eratãoidosoehaviavistotantoemsualongavidaquepoucascoisasoassustavam.Àquelaaltura,amorteeraumavelhaamiga.—Esperoquetragaoutroparacompensar.

O homem recuou, abrindo caminho, e outro sujeito entrou na saletaminúsculadaresidênciadeKaiLung.Eramaisbaixoemaisbem-vestidoqueseu arauto, e segurava umabengala.Umaonda gélida pareceu acompanhá-loparadentrodocômodo.KaiLungsentiualgoseespalharporseucorpo,elevoualgumtempoparaentenderoqueera.

Medo.Eramedo.—Você querer tatuagem?—perguntou, tentandomanter um tomde voz

calmo.—Eugostariadefazerumatatuagemnatesta—respondeuohomem.Seu

sotaquetambémeraamericano.—Éumnome,onomedeumamulher.Avozeratranquilae rme.Aluzatrásdeledeixavaseurostonapenumbra,

masailuminaçãofracadalamparinaaóleodeKaiLungfezbrilharotopodabengala. Por um momento o chinês achou que fosse um pedaço grande egrosseirodeouromaciço;arquejou,impressionado,masderepentepercebeuo

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querealmenteera.Otopodabengalaestavaesculpidonaformadeumacaveirahumana.

— Você querer nome da mulher natesta? — perguntou Kai Lung. — Amaioria querer nome de namorada no braço, ou talvez no peito... perto docoração.

— A mulher não é minha “namorada” — disse o homem. Sua vozcontinuava tranquila,masemalgum lugar láno fundohaviaumtomque fezKaiLungestremecer.—E,sim,queroonomedelatatuadonatesta,pertodocérebro, para que eu me lembre. É melhor que seu trabalho seja bom. Nãotoleroerros.

—Souomelhortatuadordacidade!—respondeuKaiLung,orgulhoso.—Foioquemedisseram.Éporissoqueestouaqui.KaiLungsuspirou.—Qualénomedamulher?—Euoescrevi.Vocêsabeler?—Eulermuitobem.Ohomemestendeuamãoesquerda.Seguravaumpedaçodepapel.KaiLung

o pegou com cuidado, evitando tocar na pele do sujeito. Olhou o nome nopapel.Estavaescritocomumaletraesmerada,eochinêsnãotevedi culdadeparaentender.

—VirginiaCrowe—disseele.—Éisso?—Éexatamenteisso.—Qualcorvocêquerer?—perguntouKaiLung.Eleesperavaqueohomemdissesse“azul”,massesurpreendeu:—Vermelho.Queroemvermelho.Dacordosangue.

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Capítuloum

—PARE!—GRITOURUFUSStone.—Vocêestámematando!Sherlockafastouoarcodascordasdoviolino.—Nãofaçatantodrama.— Não estou fazendo drama. Mais alguns segundos e meu coração teria

saltadopelagargantaemeestranguladosóparanãoprecisarsuportarmaisessacoisa.Pareciaumgatosendotorturado!

Sherlocksentiusuaautoconfiançamurcharcomoumafolhasecanooutono.—Nãoacheiqueestivessetãoruim—protestouele.— Esse é o problema — respondeu Stone. — Você não sabequal é o

problema.Senãosouberqualéoproblema,nãopodeconsertá-lo.Ele massageou a nuca e se afastou alguns passos, e era evidente que se

esforçavaparaencontrarumamaneiradeexplicaraSherlockoqueexatamentehavia de errado. Vestia uma camisa listrada larga, as mangas enroladasdisplicentemente,eumcoletequepareciafazerpartedeumterno no,masacalçaeradecotelêeocourodasbotasestavagasto.EleseviroueolhouparaSherlock por um momento. Seu rosto tinha uma expressão de absolutaperplexidade e — como o menino percebeu, com um aperto angustiante nopeito—dedecepção.

Sherlockvirou-separanãoveraquelaexpressãonorostodealguémqueeleconsideravaumamigoetambémumaespéciedeirmãomaisvelho.

Deixouoolharpassearpelocômodoemqueosdoisseencontravam—porqualquerlugarquenãofosseStone.ElesestavamnosótãodeumedifícioantigodeFarnham.Stonealugavaumquartonosegundoandar,e,comoasenhoriagostavadele,deixava-oensaiarepraticarcomoviolino—eensinaraoúnicoalunodemúsicaqueelejáaceitara—noamploespaçodosótão.

Ocômodoeragrandeeempoeirado,osfeixesdeluzdosolquevazavampelasbrechasnotelhadoformavamescorasdiagonaisquepareciamajudarosesteiosdemadeiraa sustentaro teto triangular.DeacordocomStone,aacústicaeraligeiramentepiorqueadeumceleiro,masconsideravelmentemelhorqueadeseuquarto.Haviacaixasebaúsempilhadosaolongodasparedesbaixas,eumalçapão emumcanto abria-separa uma escadaquedavano cômodo emqueSherlock e Stone se encontravam. Subir e descer aquela escada segurando oviolinoeoarcocomumadasmãoseracomplicado,masSherlockgostavado

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isolamentodosótãoedasensaçãodeespaço.Umdia,pensouele,voutermeuprópriolugarparamorar—algumlugarpara

onde eupossame retirardomundoenão ser incomodado.Enão voudeixarninguémentrar.

Lá fora, pombos voejavam e pousavam, bloqueando a luz por instantes.Ofriodaruapenetravanosótão,dedosdeargeladoabrindocaminhopeloespaçoentreastelhas.

Sherlock suspirou. O violino parecia pesado em sua mão, e também umpoucodesajeitado,comoseomeninonuncativesseseguradouminstrumentoassimantes.NosuporteàsuafrenteestavaapartituradeumapeçadeMozart— de acordo com Stone, era a transcrição para violino de uma ária famosachamada “A rainha da noite”, da óperaA auta mágica. Pelo que Sherlockentendera, as notas pretas presas entre as linhas da pauta eram como umcódigo,masomeninologoodecifrara:umacriptogra asimplesdesubstituição.Umabolinhapretanaquela linhasempresigni cavaumanotaquesoavaassim—amenosqueestivesseacompanhadadeumacerquilha,oquea fazia subirligeiramenteparaum“sustenido”,oudeum“b”angularpequeno,quebaixavaanota ligeiramente, para um “bemol”. Sustenido e bemol eram meio caminhopara a nota seguinte ou a anterior à que ele estava tocando. Era um códigosimples e fácil de aprender — mas então por que Sherlock não conseguiatransformaramúsicaescritaemalgoqueRufusStonepudesseouvirsemfazercareta?

OmeninosabiaqueseuprogressonãoestavasendotãorápidoquantoRufusgostaria, o que o deixava com raiva. Queria ter sido capaz de pegar oinstrumentoetocarcomperfeiçãojánaprimeiravezeemtodasasoutras,masinfelizmenteavidanãoeraassim.Deveriaser,pensouSherlock,comrebeldia.Ele se lembrava de ter sentido omesmo em relação ao pianona casa de suafamília.Passarahorassentadoaoinstrumento,tentandodescobrirporquenãoconseguia tocá-lo logo de início. A nal, a questão do piano era sua lógicainvariável:quandoseapertavaumatecla,umanotasaía.Amesmateclasempreproduzia a mesma nota. Com certeza, era preciso apenas lembrar qual teclageravaqualnotaparaquesepudessetocar.Oproblemaeraque,pormaisquetivesse pensado no assunto, Sherlock nunca conseguira se sentar ao piano etocar como sua irmã fazia — um som uido e belo, como as águas de umriacho.

Quatrocordas!Oviolinosótinhaquatrocordas!Seriaassimtãodifícil?—Oproblema—disseStonederepente,virando-seeencarandoSherlock

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—équevocêestátocandoasnotas,masnãoamelodia.—Issonãofazomenorsentido—retrucouSherlock,nadefensiva.—Faztodoosentido.—Stonesuspirou.—Asárvoresnãosãoa oresta.A

oresta é formada por todas as árvores, em conjunto, e mais os arbustos, osanimais,ospássaroseatémesmooar.Semtudoisso,restaapenasummontedemadeira...nenhumsentimento,nenhumaatmosfera.

— Então de onde vem osentimento na música? — perguntou Sherlock,frustrado.

—Nãodasnotas.—Masnopapelsótemasnotas!—protestouSherlock.—Entãoacrescentealgoseu.Acrescentealgumaemoção.—Mascomo?Stonebalançouacabeça.—Sãoaspequenaslacunasquevocêinclui...ashesitações,asênfasessutis,

asligeirasvariaçõesdevelocidade.Éaíquemoraosentimento.Sherlockfezumgestonadireçãodapartituranosuporte.— Mas isso não está escrito! Se o compositor quisesse que eu fosse mais

rápidooumaisdevagar,teriaescritoissonamúsica.— Ele escreveu — retrucou Stone. — Em italiano. Mas isso é só uma

orientação.Vocêprecisadecidircomoquertocaramúsica.—Elesuspirou.—Oproblemaéquevocêestátratandoissocomoumexercíciodematemáticaoudegramática.Quertertodasaspeçasdiantedesieachaqueseutrabalhoémontaroconjunto.Amúsicanãoéassim.Elademandainterpretação.Demandaquevocêacrescentealgoseu.—Elehesitou,tentandoacharaspalavrascertas.—Qualquerexecução,naverdade,éumduetoentrevocêeocompositor.Eledáaslinhas gerais, mas você acrescenta os detalhes. É a diferença entre ler erepresentar uma história. — Percebendo a expressão desolada no rosto deSherlock, ele continuou:—Olhe, você já viuCharlesDickens lendo um deseuspróprioscontosdiantedeumaplateia?Experimentealgumdia,valeopreçodoingresso.Elefazumavozdiferenteparacadapersonagem,andadeumladopara o outro no palco, falamais rápido nas partes empolgantes e lê como senunca tivesse visto aquilo antes e estivesse tão ansioso quanto a plateia paradescobrir o que vai acontecer. Éassim que você deve tocar: como se nuncativesseouvidoamúsicaantes.—Elehesitouefezumacareta.—Querdizer,deumjeitobom.Seuproblemaéquevocêtocaamúsicacomosenuncaativesseouvidoanteseaestivessedescobrindoaolongodocaminho.

Sherlockpensouqueeramaisoumenosissomesmo.

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—Seráquedevodesistir?—perguntouele.—Nuncadesista—replicouStoneenergicamente.—Nunca. Denada.—

Ele passou amão pelo cabelomais uma vez.—Talvez eu tenha abordado aquestãodojeitoerrado.Vamostentarumcaminhodiferente.Certo,vocêencaraa música como se fosse um problema matemático... bom, vejamos quaismúsicosescreviammatemáticaemsuascomposições.

—Existealgum?—perguntouSherlock,desconfiado.Stonerefletiuporuminstante.—Vamospensar.JohannSebastianBacherafamosoporcolocarcódigose

brincadeirasmatemáticas em suasmelodias.Se vocêolhar aOferenda musical,algumasdaspeçassãoumespelhodesimesmas.Aprimeiranotaeaúltimasãoiguais;asegundaeapenúltimasãoiguais;eporaívai,atéomeiodapeça.

—Uau.—Sherlockestavaimpressionadocomaaudáciadaideia.—Eaindaassimfuncionacomomúsica?

— Ah, sim. Bach era um compositor excepcional. Suas brincadeirasmatemáticasnãoprejudicamamúsica,pelocontrário:aincrementam.—Stonesorriu,percebendoque nalmenteprenderaaatençãodomenino.—Nãosouespecialista em Bach, mas acredito que exista outra peça dele estruturada deacordocomumaespéciedesequênciamatemática,emqueumnúmerolevaaoseguintedeacordocomalgumaregra.Éumapeçacomnomeitaliano.Agora,tentemoscomMozartdenovo,masdestavez,enquantoestivertocando,queroque recupere aqueles sentimentos.Lembre-se deles e deixe-os orientar seusdedos.

Sherlockvoltouaergueroviolinoatéoombro,acomodando-oentreoqueixoeopescoço.Deixouqueosdedosdamãoesquerdaencontrassemascordasnaextremidadedobraço.DavaparasentiroquantoapeledapontadeseusdedoshaviaengrossadosobatutelaincansáveldeStone.Omeninoergueuoarcoeomantevefirmeacimadascordas.

—Comece!—ordenouStone.Sherlock observou as notas na folha, mas, em vez de tentarentendê-las,

deixouque seuolhardeslizasseporelas,encarandoafolhacomoumconjuntointeiro,enãoenxergandocadanotaindividualmente.Olhandoafloresta,nãoasárvores.Ele se lembrou das notas que estava tocando antes, e então respiroufundoecomeçou.

Nosminutosseguintes,o tempopareceuumborrão.OsdedosdeSherlockiamdeumacordaaoutra,apertando-asparaemitirasnotascertasumafraçãodesegundoantesqueseucérebropudesseenviarqualquersinalparadizer aos

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dedosquaiseram.Eracomoseoseucorpojásoubessecomoagir,deixandoamente livrepara utuaralémdamúsicaeprocurarseusigni cado.Ele tentoupensarnapeçacomosealguémaestivessecantando,edeixouqueoviolinosetornasse a voz, hesitando em algumas notas, reforçando outras para enfatizarsuaimportância.

Apáginachegouaofimsemqueelesequersedesseconta.—Bravo!—gritouStone.—Nãoestáperfeito,masmelhorou.Vocêatéme

convenceudequeestavasentindoamúsica,nãosóatocando.—Ele touosraiosinclinadosdeluzsolarquepenetravamnocômodo.—Vamospararporaí:em harmonia, por assim dizer. Continue treinando as escalas, mas tambémquero que você treine notas individuais. Sustente uma nota de maneirasdiferentes...comtristeza,comfelicidade,comraiva.Deixequeaemoçãoentrenamúsicaevejacomoelamudaanota.

— Eu... não sou bom com emoções — confessou Sherlock, com a vozcontida.

— Eu sou — respondeu Stone, baixinho. — O que signi ca que possoajudar. — Ele pôs a mão no ombro de Sherlock por um instante e apertou,entãoarecolheu.—Agoraváembora.Váveraquelameninaamericana,passeumtempocomela.

—Virginia?—Sherlocksentiuocoraçãoseacelerar,masnãosabiaseeradefelicidadeoupavor.—Mas...

—Sem“mas”.Vávê-la.—Tudobem—disseSherlock.—Àmesmahoraamanhã?—Àmesmahoraamanhã.Omeninoen ouoviolinonoestojoedesceuaescada,meiodeslizando,até

osegundoandardacasa,depoiscorreupelosdegrausatéotérreo.AsenhoriadeStone—umamulhermaisoumenosdamesmaidadedomúsico,comcabeloescuroeolhosverdes—saiudacozinhaparadizeralgoquandoSherlockpassourápido,maselenãoouviu.Emsegundosomeninoestavasobafriaeinsensívelluzdosol.

Farnhamestavamovimentadacomosempre:asruasdeparalelepípedosoudelama estavam cheias de gente indo para todos os lados, cuidando de seusafazeres. Sherlock cou parado por um instante, observando a cena — asroupas, as posturas, a variedade de embrulhos, caixas e bolsas que as pessoascarregavam—,etentouentenderaquilotudo.Aquelehomemali—oquetinhaumaerupçãovermelhanatesta—estavasegurandoumpedaçodepapelcomosesuavidadependessedaquilo.Sherlocksabiaquehaviaumaclínicaaalguns

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minutos de caminhada atrás do sujeito e uma farmácia logo adiante. Comcerteza quase absoluta, ele estava indo buscar os remédios receitados em suaconsulta.Ohomemdooutroladodarua—tinharoupasboas,masestavacomabarbaporfazereosolhosvermelhos,eseussapatosestavamgastosesujosdelama.Talvezumvagabundousandoumpaletódoadoporalgumparoquiano?EquantoàquelamulherquepassoubemnafrentedeSherlock,erguendoamãoparaafastarocabelodosolhos?Asmãospareciammaisvelhasqueamulheremsi: brancas e enrugadas, como se tivessem cadomuito tempodentrod’água.Umalavadeira,obviamente.

SeráqueeraissooqueRufusStonequeriadizerquantoavera orestaemvezdasárvores?Omeninonãoestavaolhandoparaaspessoascomosefossempessoasesimvendosuashistóriasepossíveisfuturos,tudodeumasótacada.

Por ummomento Sherlock cou tonto diante da dimensão de tudo o queestava observando, e então o momento passou e a cena se desfez em umamultidãodegenteindoparatodososlados.

—Vocêtábem?—perguntouumavoz.—Poruminstanteacheiquefossedesmaiar.

SherlocksevirouedeudecaracomMatthewArnatt—Matty—aseulado.O garoto era menor que Sherlock, e um ou dois anos mais novo; por umsegundo,porém,Sherlocknãoviuummenino,seuamigo,masumconjuntodesinaiseindícios.Noentanto,foisóporumsegundo,edepoiselevoltouaverMatty—ofirmeeconfiávelMatty.

— Quer dizer que Albert não está se sentindo bem — disse Sherlock,referindo-se ao cavaloquepuxavaobarcodeMatty, ondeomeninomorava,semprequeelequeriasemudardecidade.

—Deondevocêtirouisso?—perguntouMatty.—Temfenonamangadasuaroupa—indicouSherlock.—Vocêtemdado

decomercomamãoparaele.Normalmentevocêodeixapastarondequerqueele esteja amarrado. Só alimentaria um cavalo com a mão se estivessepreocupado,achandoqueelenãoestácomendodireito.

Mattyergueuumasobrancelha.—Vocênãoprecisamejogarnacaraqueàsvezesgostodedarorangopara

ele—respondeuomenino.—Albertéomaispróximodeumafamíliaqueeutenho.—Eleencolheuosombros,constrangido.—Entãogostodedaralgumacoisaespecialparaeledevezemquando.

—Ah.—Sherlockguardoua informaçãoparaanáliseposterior.—Comovocêsabiaqueeuestavaaqui?—perguntoueledepoisdeumtempo.

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—Davaparaouvirvocêtocando—respondeuMatty,sucinto.—Acidadeinteiraouviuvocêtocando.DeveserporissoqueAlbertnãotavaconseguindocomer.

—Engraçadinho.— Não quer ir comer alguma coisa? Tem muita comida sobrando no

mercado.Sherlock pensou por um instante. Ele deveria car com Matty ou ir

encontrarVirginia?—Nãoposso—disseele,lembrando-sederepente.—Meutiofalouqueeu

deveriaestardevoltaparaoalmoço.Elequerqueeucatalogueeorganizeumacoleçãodesermõesantigosqueeleadquiriurecentementeemumleilão.

—Quealegria—respondeuMatty.—Divirta-secomisso.—Elesorriu.—TalvezeupossairencontrarVirginianoseulugar.

—E talvez eupossapendurar você emumaponte,de cabeçaparabaixo emergulhadoatéonariznaágua—retrucouSherlock.

Mattyapenasoencarou.—Eusótavabrincando—disseele.—Maseunão.SherlockpercebeuqueoolhardeMattyinsistiaemsedesviarparaarua,na

direçãodomercado.—Podeir—acrescentouele.—Vápegaralgumasfrutasmachucadasepães

velhos.Talvezeuovejamaistarde.Ouamanhã.Mattydeuumbrevesorrisodeagradecimentoesaiucorrendo,esquivando-se

eenfiando-sepelamultidãoatésumirdevista.SherlockandouumpoucopelaestradaquesaíadeFarnham,rumoàcasados

tios.Semprequeumacarroçapassavaeleseviravaparaencararocondutor,masamaioriaevitavaseuolhar.Omeninonãolevavaissoamal—vinhafazendoisso havia tempo su ciente para saber que o índice de sucesso era deaproximadamenteumaemcadavinte carroças.Depoisdeum tempo,umdoscondutoresolhouparaeleegritou:

—Aondevocêvai,garoto?—MansãoHolmes—respondeuele,tambémgritando.—Elesnãooferecemtrabalhodebico.—Eusei.Vou...visitarumapessoa.—Podesubir,então.Voupassarpelosportõesprincipais.Enquanto jogava seu violino para cima da carroça em movimento e a

escalava,caindonomeiodeummontedefeno,Sherlockseperguntouporque

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ainda não gostava de admitir que morava lá.Talvez achasse que as pessoasfossemtratá-lodeformadiferentesesoubessemqueafamíliadelefaziapartedaburguesia localproprietáriadeterras.Eleachavaumaidioticeimensaquealgosimplescomoherdarumterrenoeumacasapudessesepararalguémdeoutraspessoas.Quandocrescesse,Sherlockfariaquestãodenuncadistinguirninguémporesseaspectosocial.

A carroça avançou barulhenta pela rua durante uns vinteminutos, e entãoSherlockpuloupara fora,gritandoum“Obrigado!”alegreporcimadoombro.Olhouo relógio.Faltavameiahoraparaa refeição: temposu cienteparaqueeleselavasseetalveztrocassedecamisa.

Como sempre, o almoço era umaocasião silenciosa.O tio deSherlock—Sherrinford Holmes — ocupava o tempo alternando-se entre comer, ler umlivroetentarafastarabarbadacomidaedotexto,enquantoatia—Anna—falava em um monólogo contínuo sobre seus planos para o jardim, suasatisfaçãoemverqueosdoisladosdafamíliaHolmespareciamestarsefalandode novo, fofocas diversas sobre outros donos de terras da região, e sobre suaesperançadequenoanoseguinteoclimafossemelhordoqueoqueacabaradepassar.Vezououtra,perguntavaaSherlockoqueelevinhafazendooucomoestava se sentindo, mas, ao tentar responder, o menino percebia que a tiacontinuarafalandosemlhedaratenção.Comosempre.

MaselereparouqueaSra.Eglantine—aameaçadoraeseveragovernantadamansão—destacava-seporsuaausência.Ascriadasserviramacomidacomahabitual deferência silenciosa, mas a presença trajada de preto que cava àjanela, parcialmente oculta pela luz que vinha de fora, não estava lá. Ele seperguntouporuminstanteondeestariaagovernanta,eentão,comumtoquedeprazer,percebeuquenãoseimportavanemumpouco.

Sherlockterminoudecomerantesdostioseperguntousepoderiaseretirar.—Sim,pode—respondeuotio,semtirarosolhosdolivro.—Deixeiuma

pilhadesermõesantigosnaescrivaninhadaminhabiblioteca.Eu cariagrato,meu rapaz, se você pudesse organizá-los de acordo com o autor, e depoisordenarcadapilhapeladata.Estou tentando—disseele, levantandoporummomentooolharsobassobrancelhascheiaseencarandoSherlock—catalogaro crescimento e o desenvolvimento das cisões na cristandade, com referênciaparticular à criação recente da Igreja de JesusCristo dos Santos dosÚltimosDias na América. Esses sermões deverão se mostrar muito úteis para essepropósito.

—Obrigado—respondeuSherlock,retirando-se.

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A biblioteca de tio Sherrinford cheirava a livros velhos e secos, mofo,encadernaçõesdecouroefumodecachimbo.Quandoasportassefecharamàssuascostas,Sherlocksentiuosilênciocomoalgoquase físico:umaverdadeirapressãonosouvidos.

AescrivaninhadeSherrinfordestavacobertaporpilhasaltasdepapéissoltosdetodosostamanhoseespessuras.Algunseramdatilografados,outrosescritosàmãoemdiversosestilos;amaioriaestavapresacomlaçosoubarbante.Aosesentar,umpouco trêmulo,nacadeiradecourobarulhentado tio,Sherlock sedeuconta,comumapertonocoração,dequeaspilhasdepapelerammaisaltasque ele e o impediam de ver o restante da biblioteca. A tarefa seria longa etediosa.

Elecomeçoua trabalhar.Oprocessoparecia simples—pegarumtextodapilhamaispróxima,descobrirquemeraoautoreoanoemqueforaescritoparadepoiscolocá-loemumadasváriaspilhasnochãoatrásdesi—,maséclaroquenãofoitãocorriqueiroassim.Algunssermõesnãotinhamonomedoautorescritoemlugaralgum,outrosnãotinhamdataeoutrosaindanãoeramdatadosnemassinados.Sherlocklogopercebeuqueprecisariatirarsuasconclusõescombaseemoutraspistas.Umadelaseraacaligra a.Analisandoaescritairregularena,eraóbvioquealgunssermõestinhamsidoredigidospelamesmapessoa,e

o menino cou feliz de colocá-los todos na mesma pilha. Outros textosmencionavamlugaresespecí cos—emgeral,igrejas—,oquesigni cavaqueele poderia situá-los ao menos na mesma região geográ ca e, portanto,provavelmenteatribuí-losaomesmoautorougrupodeautores.Comotempo,Sherlock percebeu que alguns dos textos datilografados apresentavam asmesmas características—umn apagado, umaparticularmentealto—,oqueindicava que talvez tivessem sido redigidos na mesma máquina de escrever.Assim,tambémcolocou-osemumamesmapilha.Omeninonãochegoualeratentamentenenhumdossermões—issoteriasidoumaperdadetempoaqueelenãopodiasepermitir—,mas,enquantoosfolheavaàprocuradeindicaçõesdeautoriaedata,aindaassimconseguiuregistrarumououtrodetalhe:osaltosebaixos da vida no campo, o desejo insatisfeito do amor de Deus, a análisecuidadosa de assuntos, a nal, imperscrutáveis. Também achou tercompreendidoapersonalidadedoshomensquehaviamescritoossermões:umerasérioesisudo,apavoradopelofogoeternodoinferno;outrosedeslumbravacom a beleza da criação divina; um terceiro se concentrava em detalhes epormenores, ignorando completamente o contexto mais amplo. Pelo menosum, pensou Sherlock, era de uma mulher que escrevia os sermões a serem

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apresentadospelomarido.No mdascontas,otrabalhoomanteveocupadoporumasboasduashoras,

duranteasquaiselenãofoiperturbado.Depois de algum tempo, ele decidiu fazer um intervalo e esticar as costas

doloridas.Levantou-seeseafastoudaescrivaninha,impressionadocomofatodequeaspilhasdepapelnãopareciamnadamenores,apesardeoutrascatorzeouquinzepilhasteremsurgidonochão.

O menino passou a circular pelas estantes repletas de livros de seu tio,deslizando os olhos pelos títulos sem se concentrar em nenhum. Por algumtempo, ele não sabia bem o que estava procurando, ou mesmo se estavarealmenteprocurandoalgo,masentãolheocorreuconferirseotiotinhaalgumlivrosobreBach,ousobremúsicaemgeral.TalvezSherlockpudessedescobriralguns detalhes sobre amaneira comoos compositores usavam amatemáticaem suas obras. Embora Sherrinford Holmes passasse seu tempo escrevendosermões e outros textos religiosos para vigários e bispos de todo o país, suabibliotecanãoeraapenasumrepertóriodelivrossobrecristianismo.Haviaumaboaseleçãodetítulossobrepraticamentetodososassuntosdomundo.

E,pensouSherlockconsigomesmo,JohannSebastianBach eraumnotóriocompositor de músicas religiosas. Ele com certeza criara muito material paraórgãosdeigrejas,eSherlocktinhaumaforteimpressãodehavervistoonomedo compositor junto a diversas peças nos hinários da capela na EscolaDeepdeneparaMeninos,e tambémnosda igreja local.FariasentidoqueumescritorreligiosotivesselivrossobreBachemsuacoleção.

Sherlock embrenhou-se mais nas penumbras das estantes, procurandoqualquer coisa relacionada a música. A porta não estava visível quando ele aouviuseabrir.Imaginouquefosseotio,entãovoltou-seemdireçãoàluzparalhedizer comoo trabalhoavançava,mas saiudo corredor entreduas estantesbematempodeverasanquinhaspretasdeumasaiadecrinolinadesaparecerematrásdeumaestantedooutroladodabiblioteca.

Sra.Eglantine?Oqueelaestavafazendoali?Ela parecia saber exatamente aonde ia. Confuso, Sherlock se aproximou

devagar, fazendo o máximo de silêncio possível. Ele não sabia por quê, mastinhaasensaçãodequeagovernantafaziaalgosecreto,clandestino,algoqueela desejava que permanecesse em segredo. Com certeza não iria espanar asestantes—essatarefaestavaabaixodela,eerareservadaaumadascriadas.

Sherlockolhoupelocantodaestante,mantendoocorpoeamaiorpartedorostoescondidos.EraaSra.Eglantine.Elaestavaajoelhadamaisoumenosno

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meio do corredor entre as estantes, a saia de crinolina espalhada à sua volta,tirando blocos inteiros de livros e largando-os no tapete. Parte da mente deSherlocksofreuaoveroslivrosseremtratadoscomtantodescaso,algunscaíramabertos,comaspáginasdobradasoualombadaamassada.Depoisdeterretiradotodos, ela se abaixou aindamais, coma cabeçapertodo tapete, e observouoespaço recém-liberado. O que quer que estivesse procurando não estava lá.Bufando de decepção, a governanta en ou de volta os livros às pressas,aparentemente semse importar comaordememqueestavamantesou seosenfiavadecabeçaparabaixoounaorientaçãocerta.

Ela olhou para a esquerda, na direção contrária à de Sherlock. Alerta, elerecuoulogoantesdeelaviraracabeçaparaadireitaeolharemsuadireção.Omeninosabiaqueeraumexagerodaimaginação,maselequaseconseguiaveraintensidadedoolhardagovernantaqueimarotapeteelevantarapoeira.

Sherlock contou até vinte e voltou a espionar na mesma hora em quecomeçouaouvirobarulhodebatidasirregulares.Convencidadequenãoestavasendoobservada,aSra.Eglantinevasculhavaoutraprateleira,maisalta,jogandoos livros no chão. De novo examinou atentamente o espaço vazio, fez umacaretadefrustraçãoeenfiouoslivrosdevoltadequalquerjeito.

—Comovocêousaentrarnaminhabiblioteca!—gritouumavoz.—Saiadaquiagora!

Sherlock ergueu a vista, em choque. Na outra extremidade da leira deestantesestavaSherrinfordHolmes.Eledeviaterentradoemsilêncio,semqueSherlocknemaSra.Eglantinepercebessem.

Agovernantaseendireitoudevagar.—Vocêéumidiota—disseela, lentamenteecomclareza.—Nãopossui

autoridadenestacasa...nãomais.Eusouaresponsávelaqui.

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Capítulodois

SHERLOCKSENTIUOFÔLEGOFICAR presonagarganta.Comoela seatrevia afalarcomotiodeledaquelaforma?Asensaçãodeulugaraumlampejosúbitodealegria:agovernantajamaissobreviveriaàquelaafronta.Estariaforadacasadentrodeumahora,eninguémlamentaria.

SherrinfordHolmesfechouopunhojuntodaperna,masaexpressãoemseurostonãoeraderaiva.Estavamaisparafrustraçãoeimpotênciadoqueparaairajusti cadadeumhomemque agrouumacriadabisbilhotandoseuspertences.Sherlock esperou que o tio explodisse de fúria, demitisse a Sra. Eglantineimediatamenteeaexpulsassedacasasemoferecerreferências,maseleapenasbalançouacabeçaebateuinutilmentecomopunhonacoxa.

—Vocênãotemessedireito!—gritou.—Tenhotodoodireito—retrucouagovernanta.—Tenhotodososdireitos

queeuquisernestacasa,qualquerdireitoqueeudecidaexercer,porquevocêeaquela sua esposa insuportável sabem o que vai acontecer sealgum dia meirritarem.

—V-vocêéumamulhercruelemá—gaguejouSherrinfordHolmes.Ele parecia incapaz de sustentar o olhar da Sra. Eglantine. O homem

encaravao tapete,eSherlock couchocadoaoverqueseusolhosestavamseenchendodelágrimas.

A governanta deu passosmuito lentos e calculados pelo corredor, entre asestantes, até parar em frente ao tio de Sherlock.Ela eramais baixa,mas seuporteafaziaparecerimensadiantedosombroscurvadosdeSherrinford.

—Seuidiotapatético!—exclamouaSra.Eglantine.Ela levantouamãoepegou o queixo dele com a ponta dos dedos.Assistindo a tudo das sombras,Sherlockviu,horrorizado,asmarcasnasbochechasdotio.—Você casentadoaqui,diaapósdia,escrevendopalavrasinúteisparaqueoutrosidiotaspatéticoseiludidos do país inteiro repitam como papagaios, e você acha, realmenteachaqueestá fazendoalgodignodenota. Issonãoquerdizernada, seuvelho.Eudevia fazer tudo cair à sua volta só para lhemostrar quão pouco omundo seimportaria se você parasse. Eu poderia fazer isso. Com o que eu sei, poderiaarruinarestafamília.

— Então por que hesita? — perguntou Sherrinford, a voz abafada pelosdedosqueapertavamseurosto.

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Agovernanta couemsilêncioporuminstante;abriuaboca,masnenhumarespostasaiu.

—Vocênãopode—continuouSherrinford.—Sevocêrevelasseoquesabe,sim,minha família estaria arruinada,mas vocêperderia acesso a esta casa.E,então,aondeiria?Vocêpassouumanooumaisvasculhando-a,dealtoabaixo,de um canto a outro. Não sei o que procura, mas sei que deve ser muitoimportanteequevocê jamaisfaráqualquercoisaquerepresenteumriscoparasuabusca.

—Achoquevocêsabeoqueestouprocurando—disseela,comumtomdedesprezo, soltandoo rostodohomem.—Eachoque está aqui, dentrodestabiblioteca.Éporissoquevocê casentadonaquelaescrivaninha,diaapósdia,comoumagalinhavelhachocandoumaninhadadeovosquenuncanascerão.Mas já vasculhei todo o restante da casa, e tenho certeza de que está nestabiblioteca.

—Saia—disseSherrinford—,ouvoudispensá-la,equeDeusmeprotejadas consequências.Voudispensá-la,sóparaencerrarestepesadeloeparasaberqueaimpedideencontrarotesouropatéticoquevocêachaquedeveestaraqui,oquequerqueseja.

ASra.Eglantinepassouporeleapassos rmes,emdireçãoàporta.Quandochegouao naldocorredor,virou-separaencararSherrinford.Doispontosdecorintensabrilhavamcomobrasanobrancoglacialdorostodagovernanta.

—Vocênãopodeselivrardemimsemsofrerasconsequências—sibilouela.—Eeunãopossodarcabodevocêsemperderotesouro.Aperguntaé:quemtemmaisaperder?—Elasepreparouparasair,masvoltouasevirar.—Exijoquevocêselivredaqueleseusobrinho—acrescentou.—Livre-sedele.Mande-oembora.

—Eleaassusta?—perguntouSherrinford.—Vocêreceiaqueeledescubrasuaverdadeiraposiçãonestacasaetomealgumaatitude?

—Oqueelepoderiafazer?Ésóummenino.Pior:ésóumHolmes.Em seguida ela deu meia-volta e foi embora. Alguns instantes depois

Sherlockouviuaportadabibliotecaseabriresefechar.—Elatemmedodevocê—disseSherrinfordemvozbaixa.Omenino demorou umpouco para perceber que o tio falava com ele.De

algumaforma,Sherrinfordsabiaqueeleestavaali.—Nãoentendo—disseSherlock,indoparaocorredor,paraaluz.—Nãotemmesmoporquevocêentender.—Otiobalançouacabeçacomo

sederepenteasentissemuitopesada.—Esqueçatudooqueviu.Esqueçatudo

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oqueouviu.Afasteissodeseuspensamentos.Façacomoeue njaquenãoháproblema algumnesta casa e que tudo está calmo e sereno, na paz deDeus.Finjaqueaserpentedesatãnãorastejouparadentrodenossoconvívio.

—Mas,tio...Sherrinfordfranziuatestaeergueuamãomagra.—Não—disse ele, determinado.—Não tocareimais nesse assunto.Ele

nuncamais serámencionado.—Sherrinford suspirou.—Eu gostaria de lheperguntar até onde você avançou na catalogação dos sermões, mas estoucansado.Vourepousarumpouco,aquinapazdemeusanctumsanctorum.—Eleolhou os livros desarrumados nas estantes e no chão.—Depois, botarei umpoucodeordemaqui.Eunormalmentepediriaqueumagovernanta zesseisso,masnasatuaiscircunstâncias...

Sherlockseretiroudabibliotecaemsilêncio.Aosairefecharaporta,ouviuotiomurmurandoalgoparasimesmo.

ASra.Eglantineestavanocorredor,eomeninopermaneceunassombras,observando-a.Elafalavacomumadascriadas.

— Diga à cozinheira que irei vê-la em breve. O menu desta semana étotalmenteinadequado.Precisaráseralterado.Diga-lhequesó careisatisfeitaquandoforrevistoporcompleto.

EnquantoacriadasaíaapressadaeaSra.Eglantinepermanecia imóvelporum instante, pensativa, Sherlock percebeu que seus próprios pensamentos seviravam emuma direção audaciosa.A governanta parecia se sentir à vontadeparavasculharacasainteiraembuscadealgo.Eseelefossevasculharoquartodelaenquantoelaestivesseocupada?Talvezconseguissedescobriralgumapistasobre o que a mulher estava procurando. Se Sherlock achasse algo, e entãoencontrasse o objeto escondido antes dela, então já não haveriamaismotivoparaqueagovernantapermanecessenacasa.Aindaqueelenãodescobrisseoque a Sra.Eglantine procurava, talvez conseguisse revelar omotivo do poderdela sobre seus tios. Se o menino pudesse libertá-losdisso, retribuiria toda ahospitalidadequerecebiadeles.

ASra.Eglantineencaminhou-separaosfundosdacasa,possivelmenterumoaoqueviria a serumaconversa tensa coma cozinheira.Sherlock sentiuumapontadadepena.Elegostavadacozinheira;amulhersemprelheofereciaumafatia de pão com geleia ou um bolinho com creme quando ele passava pelacozinha.Era aúnicadentreos criadosque tinha coragemdeenfrentar aSra.Eglantine.

Comoseutioseencontravanabibliotecaesuatiadeviaestarbordandona

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salade estar, comocostumava fazer à tarde,Sherlock sabiaque seusparentesprovavelmentenãooincomodariam.Tambémsabiaque,segundoohoráriodetrabalho da criadagem, naquele momento as lareiras dos quartos principaisestariamsendolimpas.Nãohaverianinguémnoandardecima,onde cavamasacomodaçõesdosempregadoseoquartodeSherlock.

Ele chegou ao andar superior sem ver ninguém.Seu quarto era o primeirodepoisdaescada.Aoladohaviaumcômodoqueteriaacomodadoomordomose a família tivesse dinheiro para contratar um. Após a curva do corredorcavam os quartos da Sra. Eglantine e os dos diversos rapazes e moças que

trabalhavamnoestábuloenosjardins,etambémaescadadosfundos,queelesusavamparacircularpelacasasemseremvistos.SóSherlockeaSra.Eglantinetinhampermissãoparausaraescadariaprincipal.

Eledobrouo corredor.O restantedo andar estava vazio, claro.AportadaSra. Eglantine estava fechada, mas não trancada. Isso teria sido uma terrívelquebradocontratoimplícitoentrepatrãoeempregado.Teoricamente,ostiosdeSherlockpodiamentrarnosquartosdosempregadosaqualquermomento,porqualquer motivo, e, embora esse direito teoricamente valesse também para omenino, ainda assim ele sentiu o coração bater mais rápido e as mãoscomeçaremasuarenquantosepreparavaparapegaramaçaneta.

Girou-asemfazerbarulho,abriuaportaeentrou,fechando-aatrásdesiemseguida.

Ocômodotinhacheirode lavandae talco,e tambémumlevearoma oralmaismarcante,quelembravaorquídeasmortas.Opisodemadeiraeracobertoporapenasumtapetepuídonocentrodoquarto.Acamaestavabem-arrumada,etodaaroupaqueagovernantatinhaestavapenduradadentrodeumarmárioestreitooudobradaeguardadanacômoda.Tirandoumaescovadecabelonoparapeitoda janela, umdesenhodeumapaisagememolduradopenduradonaparede e uma Bíblia em uma estante perto da cama, não havia qualquerornamento.

Oquartotinhaumaspectotãoimpessoalqueeradifícilacreditarquealguémde fato morasse e dormisse ali todos os dias. Considerando a frieza da Sra.Eglantineesuaimobilidadequaseinumana,Sherlockimaginavaqueelafossepara seu quarto tarde da noite, ao m de um dia de trabalho, e cassesimplesmenteparada,comoumaestátua,voltandoasemexerapenasquandoosolnascesseefossehoradevoltaraoserviço.Desligarafalsahumanidadeatéquefosseprecisofingiroutravez.

Omenino afastou essa ideia.Amulher não era uma criatura sobrenatural.

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Eratãohumanaquantoele—sóquemuitomaisdesagradável.Eleapoiouascostasnaporta.Ocorreu-lhequeaSra.Eglantinetalveztivesse

feitoexatamenteomesmonoquartodeleantesderevistarocômodo,e issoodeixou irritado. Se ela havia vasculhado a casa inteira, como dissera, entãocertamente vasculhara seuquarto.Maldita!Oque estavaprocurando,eporqueissoadeixavainvulnerávelademissões?

Sherlocklogomemorizouaposiçãodetudooquevia:aescova,aBíblia,atéoligeiroângulodoquadroqueestavatortoeadistânciaentreolençoldecimadacamaeostravesseiros.LevandoemcontaodetalhismodaSra.Eglantine,omenino tinha a sensação de que ela perceberia se algo fosse deixadominimamente fora do lugar. Antes de sair, ele precisaria se assegurar de quetudoestivessedevoltaàposiçãooriginal.

Começoupelacômoda,vasculhandorapidamenteemmeioàsroupasdecadagaveta.Reprimiuasensaçãodeculpadizendo-sequehaviaumagrandechancede que a Sra. Eglantine tivesse feito o mesmo com as roupasdele. Nãoencontrounada,entãopassouamãopelopiso sobacômodaparaver sealgocaíraaliembaixo.Tambémnada.

Deuascostasparaacômoda,masentãoteveumaideiasúbitaeseviroudenovo. Rapidamente puxou cada gaveta até o m e passou a mão por baixo,tentandodescobriralgumpedaçodepapelouenvelopepresoali.Depois,olhouno espaço vazio da cômoda para ver se havia algo en ado no fundo. Porém,excetopelapoeira,asteiasdearanhaeumlençoderendavelho,nãoencontrounada.

Depoisdetercertezadequeacômodaestavatalcomoantesdeelechegar,Sherlockvoltou-separaoarmário,masumbarulhodoladodeforaoparalisou.Seu coração batia tão forte que chegava a doer. Aquilo havia sido uma dastábuas do piso rangendo? Tinha alguém do outro lado da porta, tentandoescutaroquehavianointeriordoquartodamesmaformaqueSherlocktentavaescutar lá fora? A Sra. Eglantine terminara sua conversa com a cozinheira evoltaraaoquartoporalgummotivo?

Omeninoouviuobarulhodenovo:umsomderaspagem,difícildesituar.Sherlockprocuroudesesperadamentealgumlugarondeseesconder.Debaixodacama?Dentrodoarmário?Deuumpassocurto,hesitante,commedodequeopisorangesseaseuspéseoentregasse.

Antes que pudesse se mexer de novo, ouviu o barulho pela terceira vez, eentãooreconheceucomumaondadealívio.Eraumapárecolhendoascinzasemumadaslareirasdoandarinferior,eosomecoavapelaschaminés.Sherlock

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relaxouevoltouaabrirasmãos.Agoraquesuaatençãohaviasidoatraídaparaalareira,omeninofoiatélá.

Passouasmãospelocarvãofrioparaversealgohaviasidoescondidoali,eatéentortouopescoçoparaolhardentrodachaminé,masnãoencontrounada.

Voltouarevistaroquarto,olhandoembaixodacama,masachouapenasumamala vazia. O armário estava ocupado por alguns vestidos pendurados emcabidesedoischapéusemumaprateleira—tudopreto,éclaro.SherlocknãosabiaaocertoseissoeraapenasumacaracterísticadetodasasgovernantasouseaSra.Eglantinepassavaavidainteiravestidadepreto.Elaerauma“senhora”,oquesigni cavaqueeracasadaouviúva,masSherlocksóconseguiaimaginá-lapercorrendoanavedaigrejacomumvestidodenoivapreto.Eleestremeceueafastoudacabeçaaimagemgrotesca.

Parou sobre o tapete e olhou em volta. Havia conferido todos os lugaresóbvios. O quarto era bem pequeno, e ele podia ver praticamente todos osesconderijos.Nãohavianadaestranho,nadaqueelenãoesperariaencontrarnoquartodeumagovernanta.

Seelequisesseesconderalgoemseupróprioquarto,ondeofaria?Com uma ideia repentina, Sherlock deu um passo para o lado e puxou o

tapete.Embaixohaviasóopisodemadeira.Elenãoesperavaencontrarnada—aSra.Eglantinecertamenteerasagaz,eesconderalgoembaixodoúnicotapetedocômodoerasimpleseóbviodemais—,masaindaassimprecisavaconferir,porviadasdúvidas.

Olhandoopisodemadeira,Sherlockdecidiutestarastábuascomopé,paraver sealgumaestava solta.Talvezagovernanta tivesse levantadoumadelas eescondido algo embaixo. Se havia feito isso, então recolocara a tábua bemdemaisparaSherlockperceber.Eleprecisariadeumpédecabraparaerguê-las,eissodeixariamarcas.

Oquadronaparedeinsistiaemchamarsuaatenção.Sherlockoignorouporum ou dois minutos, pensando que sua mente ordenada estava apenasincomodadacomainclinaçãodamoldura,masseuspensamentosinsistiamemvoltar a ele.Ocorreu-lhe que podia haver algo oculto atrás da imagem.Comcuidado,eleretirouoquadrodaparedeeovirouparaveroverso.

Sóhaviaumaanotaçãodepreçofeitaalápis.Ele suspirou e recolocou o quadro na parede, inclinado exatamente no

mesmoângulo.Comasmãosnacintura,examinouoquartomaisumavez.Sehaviaalgum

segredoalidentro,estavamuitobem-escondido.

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Aliás,seéqueosegredoestavadefatodentrodoquarto.Movidopor um impulso, ele atravessouo cômodo até a janela estreita que

davavistaparaosjardinsatrásdacasa.Nãoviuninguém,entãoeraseguro.Ajanelaestavaligeiramenteaberta.Eleaabriumaiseseinclinouparafora.

Havia algo pendurado em um pedaço de barbante preso por um prego namadeiradobatentedajanela—umembrulhoquependiaamenosdeummetrodo parapeito. Era tão pequeno que quase não se conseguia ver do jardim, amenosquealguémsoubesseexatamenteoqueprocurar.

Sherlock o puxou para dentro e o apoiou no parapeito. O barbante estavacobertodealcatrão,para resistiràs intempéries,acoisaestavaembrulhadaemumoleado.Deixouumapoeiraavermelhadanajanela,oquedeuaSherlockaimpressãodequehaviasidocobertocompódetijoloparaquefosseaindamaisdifícilvê-lodoladodefora.Alguémseesforçaramuitoparaesconderaquilo.

Hesitandoporuminstante,etremendodeansiedade,Sherlockdesamarrouobarbanteeabriuoembrulho.

Nointeriorhaviaumpapeldobrado.Sherlocklimpouasmãoscomumlençoantes de desdobrá-lo cuidadosamente, registrando mentalmente quais dobrascavamporbaixoequais cavamporcima.Jáeraumproblemaomeninoestar

noquartodela;SherlockcomcertezanãoqueriaqueaSra.Eglantinesoubessequeelehaviaencontradoemexidoemseuspapéissecretos.

Os papéis se desdobraram em duas folhas grandes. A de cima era umconjunto de plantas baixas da mansão Holmes — esquemas de todos oscômodos em todosos andares, tudo emescala.Muitos cômodoshaviam sidoriscados com tinta vermelha.Namaioriahavia anotações ou setas apontandoelementosespecí cos,juntodepontosdeinterrogação.Aoladodeumaparedeparticularmente grossa entre a sala de jantar e a de visitas havia a seguinteanotação: “Procurar compartimentos secretos na parede. Com acesso porqualquerumdoslados.”

Asegunda folhaera ligeiramentemenor.Tinhaumconjuntodepalavraseexpressõesescritasnamesmacaligra adasanotaçõesfeitasnasplantasbaixas.Estavam contornadas por retângulos, e esses retângulos estavam ligados porlinhasesetasformandoumaespéciedetrama.PareciaqueaSra.Eglantine—presumindo-se que fosse ela — estava tentando relacionar uma série deelementos,descobertasepensamentosparaformarumpadrãocoerente—semsucesso. Sherlock passou o olhar por algumas anotações e viu nomes deintegrantesdafamíliaHolmes,etambémnomesqueelenãoconhecia,alémdelugaresdosquaisachavaque jáouvira falarepalavrasquepareciamaleatórias,

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masquesupostamentetinhamalgumsigni cadoparaagovernanta.Nocentro,como uma aranha no meio da teia, as palavraspratos de ouro haviam sidocirculadasduasvezescomtraçosenfáticos.

Pratosdeouro?Eraissooqueelaprocurava?Comrelutância,Sherlockvoltouadobrarospapéis, tomandoocuidadode

usar os mesmos vincos na mesma ordem em que des zera o embrulho. Elequeria poder guardá-los para analisá-los melhor, mas seria arriscado. E nãopodiacopiá-los—haviainformaçãodemaisali,elevariamuitotempo.Sherlockagora sabia mais do que antes, porém não fazia ideia do que tudo aquilosignificava.

Eleenvolveuospapéiscomotecido,voltouaamarrá-loscomobarbantee,depois de conferir se o jardim continuava deserto, baixou o embrulhocuidadosamente.

Porfim,fechouajanela,lembrando-sededeixarumafrestaaberta.Deuumaúltimaolhadapeloquarto,paraversealgolhepassaradespercebido

e também para veri car se deixara algum vestígio. A resposta para ambas asperguntasfoinão.

Depoisdeesperaralgunsinstantesjuntoàportatentandoouvirseerasegurosair,SherlockdeixouoquartodaSra.Eglantineeseguiupelocorredor.Porummomentopensouementrarnopróprioquarto,masalinãohaverianadaafazeranãoserdescansarepensar,eeletinhaoutrasprioridades.Foiparaotérreo.

Apesada porta de carvalho quedava para a entrada e os jardins fechou-secomumbaquequandoSherlockchegouaosaguão.Alguémhaviaacabadodesairdacasa.Porumajanelaestreitaeleviuuma guraderoupaspretasindoatéumacarroça,queaesperava.EraaSra.Eglantine.Elahaviavestidoumcasaco,o que signi cava que provavelmente iria à cidade. Devia ter encerrado aconversa com a cozinheira, e Sherlock sentiu um arrepio ao perceber queescapara por um triz. Se o casaco estivesse guardado no quarto, e não nacozinha,elatalvezotivesseencontrado.

Fazendobarulho,acarroçaseafastou,saiupelosportõesedesapareceupelaestrada.Omeninovirou-seefoiatéacozinha.

—Sr.Sherlock!—gritouacozinheiraquandoelesurgiu.Ela era uma mulher grande, que quase sempre estava com o rosto alegre

avermelhado pelo calor dos fornos e as mãos cobertas de farinha, mas agoraparecia pálida, e a pele em torno de seus olhos estava enrugada, como se elaestivessetentandoparardechorar.Elacontinuou:

—Acabeidepôropãonoforno.Voltedaquiaunsminutosparacomeruma

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fatiaquentinhaedeliciosacommanteigafrescaqueacabamosdebater!—Obrigado—disseele—,maseuestavaprocurandoaSra.Eglantine.Orostodacozinheirapareceuenvelhecercincoanosemcincosegundos.— Ela foi à cidade. E já vai tarde! Pelo visto, a qualidade dos legumes e

verdurasque tenho feitopara esta casanão atende às expectativasdela.—Amulherfungou.—Qualquerumachariaqueelaéadonadacasa,enãoaSra.Holmes,equeaquiéumhotelgrã-fino,enãoumacasadecampo.

—Elaémesmodifícildeagradar—disseSherlock,comcuidado.Amyus Crowe lhe ensinara que a rmações genéricas, soltas assim,

costumavam incentivar pessoas falantes a falar aindamais, e a cozinheira eraumadaspessoasmaisfalantesqueeleconhecia.

— É mesmo. Nunca vi ninguém com tanto olho para achar defeito, e alíngua é a ada como faca de açougueiro. Já trabalhei com centenas degovernantas ao longo dos anos, mas ela com certeza é a mais arrogante edesagradável.

— Por que meus tios a contrataram, a nal? — perguntou Sherlock. —Imaginoqueelatenhaapresentadoboasreferênciasdeempregosanteriores.

—Seapresentou,nuncavinenhuma.— Sempre a vejo pela casa — disse ele. — Parada, sem fazer nada, só

vigiandoeouvindo.— Ela é assim mesmo — concordou a mulher. — Como um corvo,

empoleiradoemumgalhoesperandoumaminhoca.—Seurostoagoraestavacomeçando a car corado de novo. Ela fungou outra vez. — Assim que elachegou, virou esta cozinhade cabeça para baixo.Levou tudopara o jardim eesfregouasparedeseochão.Tudobem,elafeztudosozinha.Fechouaportaetrabalhouduranteumdia inteiro, foi sim.Disseque jáesteveemoutrascasasquetinhamratosecamundongos,equequeriagarantirquenãotivessenenhumaqui.Caradepau!Comoseeufossedeixaralgumratoentrarnaminhacozinha!

—Elaéumamulherestranha—concordouSherlock.—Fizunsbiscoitoshoje,maiscedo—con denciouacozinheira.—Quer

alguns,paraenganaroestômagoatéahoradochá?— Eu adoraria — respondeu ele, sorrindo. — Na verdade, caria feliz de

pularocháesócomerseusbiscoitos.—Ébomverquealguémgostadoqueeucozinho—disseamulher,com

umsorrisolargo.Elapareciamaisalegreagora.Depoisdedevorartrêsbiscoitos,Sherlockdeixouacozinha.Elenãosabiase

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haviafeitomuitoprogresso,maspareciacertoqueaSra.Eglantinechantagearaostiosdeleparapoderentrarnacasaequeprocuravaporalgo.Seriamospratosdeouromencionadosemsuasanotações?Sherlockimaginavaqueerapossível,maspareciaimprovável.Porqueseustiosteriampratosdeouro?Paraqueelesusariamessetipodecoisa?JáfaziamaisdeumanoqueSherlockmoravacomostios e nunca vira nenhum prato diferente dos usados no dia a dia e dos deporcelana na,paraosdomingoseparaquandohaviavisitas.Nenhumdosdoisconjuntostinhaqualquertraçodeouro,nemsequerumabordafolheada.

Derepente,Sherlocknãoconseguiaencararaperspectivadepermaneceremcasapelorestantedodia.Sentia-seoprimidocomoseusasseumcasacopesado.Precisavasair.Poralgunssegundos,pensouemiratéacasadeAmyusCrowe— e Virginia —, mas achou que havia mais a ser feito em relação à Sra.Eglantine. Se ela estava em Farnham, comprando legumes e verduras maisfrescos que os da cozinheira, então o menino talvez pudesse encontrá-la eobservá-laescondidoporalgumtempo.A nal,talvezoslegumesfossemapenasumadesculpa.Talvezelativesseoutromotivoparairàcidade.

Sherlocksaiupelaportada frentee foiaoestábulo,onde cavaseucavalo.Eleoconsideravaseucavalo,emboranaverdadeotivesseroubadodomalignobarão Maupertuis, pouco depois de se mudar para a mansão Holmes.Felizmente,obarãonãoaparecerapararecuperá-lo,eocavalopareciabastantesatisfeito de car com alguémque cuidava dele e o levava para cavalgar comregularidade. Sherlock o batizara de Philadelphia, como uma espécie debrincadeira.Ocavalonãopareciaseincomodar.

Depois de selarPhiladelphia damaneira como aprendera como cavalariçoque trabalhava para a família Holmes, Sherlock saiu a trote pelo portão dapropriedadeeseguiupelaestradaquelevavaaFarnham.Aolongodosúltimosmeses ele aprendera a cavalgar bastante bem,desde aquela viagem turbulentaquefizeracomoirmãoàRússia.

Enquantoocavalotrotavacalmamenteporentreasárvoresaltasda orestaAliceHolt,SherlocklembrouasimesmoqueaquelaviagemtiveraavercomamisteriosaCâmaraParadol— a gangue criminosa internacional que tambémestiveraenvolvidanastramascolossaisdobarãoMaupertuis.Nãoseouviafalardeles desde que o plano de assassinar o chefe do serviço secreto russo eincriminarMycroft,irmãodeSherlock,fracassara,masSherlocksabiaqueelescontinuavamagindoemalgumlugar.OmeninoàsvezesperguntavaaMycroftsobreeles,masoirmãoalegavaestarigualmenteintrigadoquantoàsatividadesdogrupo.Aúnicacertezaeradeque,emalgumcantodomundo,elesestavam

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ematividade.Sem que Sherlock se desse conta, a periferia de Farnham o cercou: os

barracoscomtetodepalhaquemargeavamaestradadesdeamansãoHolmesderamlugaraconstruçõesdetijolosvermelhosetelhas.EmvezdetrotaratéocentroecorreroriscodeservistopelaSra.Eglantine,eleamarrouocavaloemumestábuloqueconhecia,naentradadacidade,epagoualgumasmoedasaocavalariço para que desse comida e água ao animal. Seguiu o restante docaminhoapé.

Se a Sra. Eglantine falara a verdade sobre os legumes, então estaria nomercado. Sherlock seguiu na direção dele, à sombra de um edifício de doisandares cercadode colunas.A áreadomercado estava abarrotadadebarracasoferecendotodotipodecomida,defrutasaervilhasfrescas,decarnedefumadaafrutosdomar.

SherlocknãoviaaSra.Eglantineemlugaralgum,masnotouMattyparadojuntoaumabarracade legumes.Pareciaestaresperandoquealgocaíssepertodele.

MattyviuSherlockeacenou.OmeninoreparouqueMattyvoltouaolharderelanceparaabarraca,poruminstantefezumaexpressãoindecisae,então,seaproximoudeSherlock.

—Esperandopeloalmoço?—perguntouomenino.— Não costumo separar a comida em “refeições” — admitiu Matty. —

Comosemprequedá.—Muitosábio.VocêviuaSra.Eglantineporaí?—Agovernanta?—Mattyestremeceu.—Tento car longedela.Aquela

mulherédomal.—Sim,masvocêaviu?Mattyfezumgestocomacabeçanadireçãodeumcomerciantevendendo

trutasfrescasdispostasnochão.—Elatavaalifazalgunsminutos.Dissequeopeixetavamuitopequeno.—Vocêviuparaqueladoelafoi?Omeninodeudeombros.—Desdequeelavápara longedemim,nãomeinteressa.Porquê?Oque

foi?SherlockpensousedeviacontaraMattysobreoconfrontoentreseutioea

Sra.Eglantine,masdecidiunãofalarnada.Eraassuntoparticulardafamília—pelomenosporenquanto.

—Sópreciso saberonde aSra.Eglantine está— respondeu ele.—Acho

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queelaestáplanejandoalgo.—Nãodevesermuitodifícilacharaquelamulher—disseMatty.—Elase

vestecomosetododiafossedomingo,eaindaporcimacomosealguémtivessemorrido...

À medida que os meninos andavam pelo mercado, passando pelos váriosvendedores, fregueses e curiosos que lotavam o lugar, Sherlock escutavafragmentosdeconversasvindodetodososlados.

“...eeufaleique,seelevoltassesemaquilo,euiaembora...”“...vocêmedeusuapalavradequeonegócioestavafechado,Bill...”“...seeuvirvocêcomaquelesujeitodenovo,menina,voulhedarumtabefe

tãofortequesuacabeçavaificargirandoporumasemana...”Uma voz em particular chamou a atenção de Sherlock. Tinha sotaque

americano.Ele reconheceuosotaquedesuasconversascomAmyusCroweedotempoquepassaraemNovaYork.Virouacabeça,achandoquetalvezfosseCrowe, mas o rosto que viu era mais jovem, liso e anguloso. O cabelo dohomemestavapresoemumrabodecavaloapertado,enoladodireitodacabeçaparecia faltar a orelha.Sóoqueomenino conseguia ver era queno lugardaorelha havia apenas uma cicatriz escura. As roupas estavam empoeiradas esurradas,eeleconversavacomumsujeitolourodecabelocurtoerostocheiodecicatrizesredondas,comosetivessetidoumavaríolagrave.

— ... vai nos esfolar vivos e usar nossa pele para fazer chapéu — dizia ohomem sem orelha. — Precisamos achar Crowe e a lha dele. Os dois sãonossaúnicachance!

—Bom,sabemosoquevaiacontecerconoscosenãoosencontrarmos.VocêselembradeAbner?

— Sim. — O rosto do homem de cabelo escuro se contorceu ante alembrançadesagradável.—Só caolhandoparaaparedeagora,depoisdoqueochefe fezcomele.Écomosenãotivessemaisnadadentrodacabeça,sóonecessáriopararespirarecomer...

Os sujeitos andavam em uma direção, Sherlock e Matty em outra, e omeninosóconseguiuescutarissoantesqueosdoisseafastassemdemais.Masparecia sério.Sherlockdecidiuque iria veroSr.Croweassimquepossível.Oamericanoprecisavasaberquealguémoestavaprocurando.

Quandoterminoudepensarnoassunto,eleeMatty jáhaviamchegadoaooutroladodomercado.

—Espereaquiumminuto—disseMatty.Elesaiucorrendo,indoemdireçãoaoedifíciodedoisandarescomcolunas.

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Mattydesapareceunassombras,eSherlockoperdeudevista.Estavaprestesasevirareobservaramultidãoàprocuradeumamulherdepretoquandoacabeçado amigo apareceu acima do parapeito, correndo pelo alto do edifício. EleacenouparaSherlock,queacenoutambém,impressionadocomarapidezcomque Matty subira ali. O barqueiro magricela passeou o olhar aguçado pelamultidão.Empoucossegundosjáapontavaparaalgo.

Sherlock perguntou sem emitir som, esperando que Matty entendesse aspalavrascomsuahabilidadedelerlábios:ÉaSra.Eglantine?

Bolo de carne!, respondeu Matty. Sherlock não sabia se ele estava fazendoalgumsom,masomovimentodeseuslábioseraclaroobastante.Brincadeira!,gesticulouele.Elaestáali!

Sherlockfezumsinaldepositivocomopolegar,eacabeçadeMattysumiudoparapeito.

Omeninoseen ounamultidãodecompradoresecomerciantes, seguindonadireçãoparaaqualMattyapontara.Eleobservouacabeçadaspessoasasuafrente,procurandoopeculiarpenteadorepuxadodaSra.Eglantine.Depoisdealgunsinstantes,virapraticamentetodasasvariaçõespossíveisdecabelo,cabeçae chapéu: escuro, ruivo, louro, grisalho, branco e careca; cacheado, rabo decavaloeaparado;cabeçasdescobertas,toucas,cachecóis,bonés,chapéus-coco...tudomenosumamulherdecabelopretopresotãoapertadoquepareciapintadonacabeça.Een meleaviu.Agovernantaestavaemumadasúltimasbarracas,de costas para o menino. Conversava com um homem baixo de cabelocompridoeoleosopenteadoparatrásnaslateraisedivididonomeio.Osujeitotinha a pele marcada, e seu casaco estava coberto de sujeira e gordura nosombros,noscotovelosepunhos.NãoeraotipodehomemcomquemSherlockimaginariaaSra.Eglantinetendoalgumtipoderelação.

Omeninoseaproximou,tomandoocuidadodeolharparaoutroladoa mdequeelesnãopercebessemquealguémosouvia.

Aochegarmaisperto,escutouohomemdizer:— O tempo tá andando, querida, e ainda não vi nenhum sinal daquele

negócio.Vocêtemcertezadequetánacasa?—Sópodeestarlá—respondeuaSra.Eglantine,comsuavozcalculadae

fria.—Evocênãoprecisame lembrarháquanto tempoeu trabalhonaquelelugar.

—Tem algo que eu possa fazer para acelerar as coisas? — perguntou ohomem.

—VocêpodeselivrardoSherlock,aquelepivete—retrucouela.—Elevive

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bisbilhotandoporaíeéespertodemaisparaomeugosto.—Querumsumiçotemporáriooudotipopermanente?—Tãopermanente—sibilouamulher—quequeroqueelesejapicotadoe

espalhadoporumaárea tãograndequeninguém jamais conseguirá encontrartodosospedaços.

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Capítulotrês

CHOCADO,SHERLOCKSENTIUOQUEIXOcair.ElesabiaqueaSra.Eglantineoodiava, mas o fato de que o sentimento fosse su ciente para querer que elemorresse,apontodechegarapedirquealguémomatasse...issofoiumchoque.OqueSherlockhaviafeitocontraela?Istoé,alémdequestionarsuaposiçãoedesafiarsuaautoridade.

O homem de cabelo oleoso estava falando alguma coisa, e o menino seconcentrouparaouvir.

—Voupensarnoassunto—respondeuele—,voumesmo,masoproblemaé que eu poderia ter um bom rendimento em cima do que sei sobre aquelesarrogantesdosHolmes,masestoumecontendo.Emvezdefazê-losmepagarumguinéuporsemanaparaguardarosegredo, tôusandoessa in uênciaparamantervocêtrabalhandoparaeles.—Ohomemdeuumarisadadedeboche.—Vamosfalaraverdade,quemcontratariaumamegeramal-humoradacomovocêsem ser obrigado? Tô perdendo dinheiro com esse acordo enquanto vocêdesfrutaumbeloempreguinhoeumsalário.

ASra.Eglantinecomeçouafalar,masohomemlevantouumadasmãoseelasecalou.

—Eu sei o que você vai dizer—prosseguiu ele.—Vai falar que quandoencontraresseseutesouroquetáescondidonacasavairacharcomigo,evamosficarricos.Oproblemaéqueessetesouroéoquesechamade“hipotético”...Eununcavi enão tô convencidodequeexiste.Poroutro lado,odinheiroqueafamíliaHolmespoderiamepagarpelosegredodeleséreal.Dinheironamão...oucervejanabarriga,nomeucaso.Entãoprecisodecidir:émelhoreuterumpoucodedinheirorealouummontededinheirohipotético?

ASra.Eglantinefungou.—Nóstemosumacordo,Sr.Harkness—disseela.—Sevoltaratrásagora,

ninguémmaisacreditaráemvocê.—Souumchantagista—observouHarkness, tranquilo.—Aúnica coisa

emqueaspessoasacreditaméqueeuvourevelarseussegredossenãoforpagocomregularidade.—Elesuspirou.—Olhe,nóstemosnosdadobemaolongodosanos,querida.Vocêdesenterrasegredosfamiliaresnoslugaresondetrabalhaeostrazparamim,eeuosusoparaganharalgumaspratasdevezemquando.Mas,desdequevocêouviufalardessesupostotesouro,acoisatodafoiparao

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saco.Porquenãopodemosvoltaraoqueeraantes?—Emprimeirolugar—disseaSra.Eglantine,comumtomgélido—,eu

não sou sua “querida”, nem nunca vou ser, e, em segundo, suas chantagenstriviais sobre as pessoas da cidade por causa de roubos ridículos e romancesaindapioresmallherendemdinheirosu cienteparabancaraquelasapostasquevocêgostadefazernoscavalosenaslutasilegais.Sequerteralgumfuturo,sousuaúnicachance.

Harknesssuspirou.— Você tem uma língua a ada, mas também persuasiva nessa sua boca,

Betty.Tudobem...voudeixarrolarpormaisummês.Massóummês,ouviu?Depois disso, vou cravar meus dentes na família Holmes e arrancar todo odinheiroqueeupuder.

— Para você — retrucou ela —, eu sou Sra. Eglantine.Nunca tome aliberdadedemechamarpeloprimeironome.—Elapareceudegelarumpouco,estendendoamãoparatocarobraçodele.—Estouquaseencontrando,Josh...sei que estou. Só preciso de mais tempo. — Hesitou por um instante. — EprecisoqueaquelepiveteintrometidodoSherlock queforadomeucaminho.Vocêpodefazerissopormim?

—Voumandarumdosmeusrapazescuidardisso—prometeuele.—Vocêtemtempoparaumrango?

Elabalançouacabeça.—Aquela famíliamalditaestáesperandoa refeiçãodanoite. Juro, Josh, às

vezes a vontade que dá é de envenenar todos eles e vê-los se contorcer emagonianotapetedasaladejantar.Masaindanão.Precisovoltar.

—Mantenhacontato.—Eleriu.—Eaviseseacharostaispratosdeourodequevivefalando.

—Euvouachar.—ASra.Eglantinesevirou,eentãovoltouaolharparaohomem.—Ah,quaseesqueci.Acheiistonoquartodeumadascriadas.—Elaen ouamãoemumbolsoescondidodasaiadecrinolinaetirouumacarta.—Éumbilhetedeumgarotoquesedizapaixonadoporela.

—Nãoestouinteressadoemfofocas—respondeuHarkness.—Vocêestariasesoubessequeogarotoemquestãoéo lhomaisvelhodo

prefeitodeFarnham.Harknessinclinouacabeça,subitamenteinteressado.—O lhodoprefeitonamorandoumacriadazinhasem-vergonha?Issodeve

valerumaspratas.Oprefeitoémuitopreocupadocomascompanhiasdorapaz.Falaparatodomundoqueo lhovaisecasarcomumanobre.Elevaiquerer

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queessesegredofiquemuitobem-guardado.—Harknessfranziuocenho.—Acartatáescritanaletradogaroto?Eeleassinou?

—Comamorebeijos.Harknesssorriu.—Aspessoasnãoaprendem,nãoé?Porviadasdúvidas,nuncaregistronada

por escrito. — Ele estendeu a mão e pegou a carta da Sra. Eglantine. —Obrigadoporisto.Querodinheiroagora,oueuponhonaconta?

—Paguedepois.Sónãoesqueça.—Ah,nãovouesquecer.Tenhoumaexcelentememória.Eles se separaram, e a Sra. Eglantine seguiu para um lado enquanto Josh

Harknessfoiparaoutro.Sherlockquaseesperouqueohomemtentassedarumbeijo na bochecha dela, com base naquela sugestão de amizade no nal daconversa,mas,seelepensounisso,nãochegouatentar.

Oolhardomeninopassou,incerto,deumparaooutro.DeveriaseguiraSra.EglantineouJoshHarkness?Elepensouquenãoprecisavaseguirnenhum dosdois — poderia simplesmente ir procurar Matty e passar o resto do dia emFarnham—,massabiaquedeveriaaproveitaraquelaoportunidade.Haviamaisemjogodoqueeleimaginara:nãoapenassuaprópriasegurança,mastambémofuturo de sua família. Eletinha que descobrir o que estava acontecendo eresolveroproblema.Sepudesse.

Depois de alguns segundos, decidiu que omelhor era seguir o homem decabelooleoso.ASra.Eglantineestavavoltandoparaamansão—elamesmadissera isso. Sherlock sabia onde ela estaria e tinha uma boa ideia do que amulherestariafazendo.Osujeitoéqueeraofatordeincertezanomomento,eera sobre ele que Sherlock precisava descobrir muito mais. Qualquer ameaçaimediatacontraele,Sherlock,viriadaqueladireção.

Harkness agorapossuía alguma informação incriminadora envolvendoumadas criadas da mansão Holmes. Quem seria? Sherlock não sabia o nome denenhuma, e raramente falava algo com elas, mas todas pareciam bastantesimpáticasetrabalhavambem.Edaíqueumadelasencontrarafelicidadecomum garoto de classe social diferente? Sherlock não entendia por que alguémprecisavaserpunidoporisso,quediráopaidogaroto.

Maisumavez,ocorreu-lhequeosistemainglêsdeclassesoperária,médiaealtaeranãosóinútilearcaico,comotambémprejudicialparaaprópriaessênciadasociedade.

Depois de conferir se a Sra.Eglantine não se virara para voltar por algummotivo,Sherlockesgueirou-sepelamultidãoparairatrásdoamigodela.

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Omeninomanteve-sebemafastado,paraocasodeHarknessolharporcimadoombro.EleprovavelmentenãoconheciaorostodeSherlock,maspareciaotipodehomemquesempreveri cavasenãoestavasendoseguido.Enquantoosdois avançavam pela multidão, Sherlock não pôde deixar de perceber quealgumaspessoas—emgeral,asmaisbem-vestidas—seafastavamdocaminhodohomemeviravamorostoparanãoolhá-lo.Harknesspareciaserconhecidopor muita gente — e não no bom sentido. Sherlock lembrou-se no mesmoinstantedealgunsdosgarotosmaisvelhosnaEscolaDeepdenequeimplicavamcomosmaisnovos.Elesdes lavampeloscorredoresdaescolamaisoumenosdo mesmo jeito, e os outros saíam do caminho como peixinhos pequenosfugindodeummaior.

Sherlocksentiuumapresençaa seu lado.Virouacabeça ligeiramente, semsabersequeriadescobrirquemera.TalvezaSra.Eglantinetivesseolhadoparatráseovisto.Masnão—eraMatty.ElesorriuparaSherlock,comendoumacouve-florcrua.

—Oguêguetáacontecendo?—perguntoudebocacheia.—Estamosseguindoumapessoa.—Quem?ASra.Eglantine?Sherlockbalançouacabeça.—Não.Umhomemcomquemelaestavaconversando.Achoqueonome

deleéHarkness.JoshHarkness.OrostodeMattypareceucongelar.Elearregalouosolhos,preocupado.— Josh Harkness? Um sujeito baixo com cabelo que parece lavado com

querosene?—Essemesmo.Mattybalançouacabeça.—Melhornãosemetercomessehomem,Sherlock.Jáouvihistóriassobre

ele.Opessoaldosbarcosnocanalfaladeleaossussurros.Ele cacompartedoslucrosdamaioriados ladrõesqueatuamna cidade.Pega cincopor centodosrendimentos,umavezporsemana.Esealguémnãopagar,elepegacincoporcentodocorpodeles...Cortafora.Dedosdasmãos,dospés,orelhas,nariz...oquefornecessárioparaformarcincoporcentodopesodapessoa.Éaregra,eele nunca varia. — Matty estremeceu. — A gente conversou, eu e ele, umpoucodepoisquechegueiaFarnham.Elemepegoupeloombronomercadoefaloubaixinho: “Percebi que vocênão se incomodade surrupiar punhadosdecomidaaquieali,meujovem.Nãotemproblema...queninguémdigaqueJoshHarkness priva um menino de seu alimento. Mas aceite o conselho de um

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amigo:sealgumdiavocêevoluirparapegardinheiroemvezdefrutasepães,eucocomparte.Pergunteaqualquerum.Eseeunãoreceberminhaparte...”—

Mattyfezumsinaldecortecomosdedos.—“Bom,deumjeitooudeoutro,eucocomumaparte,seéquevocêmeentende.”Eleédomal,Sherlock.Mesmo

emumalistadepessoasquenãosãoboas,eleficaquasenotopo.Sherlockassentiu,pensativo,enquantoosdoisavançavampelamultidão.— Entendo. Fiquei com a sensação de que o sujeito não tinha muitos

escrúpulos,maselesabealgosobreminhafamília...algumainformaçãoqueestáusandoparaameaçá-los.

—É,ohomemmexecomchantagemtambém.Elecolecionatodotipodesegredinhodaspessoasetodasemanaasobrigaapagaroquepuderemparaelenãofalarnada.—Mattybalançouacabeça.—Sãounspenceaqui,unsxelinsali,ealgumaslibrasacadasemana,masno nalacumula.Eletáfazendoumafortunasemnenhumtrabalho.

—Eestá lucrandocoma infelicidadedaspessoas—disseSherlock, sério.Ele percebeu que a ideia o enfurecia. — Harkness é um parasita da raçahumana,ealguémprecisafazeralgo.Porqueninguémfaznada?

— As pessoas chantageadas têm muito medo de ir à polícia, porque seussegredosvãoserreveladosseelas zeremisso.Alémdomais,eleprovavelmentetáchantageandometadedosguardasdeFarnham.Aúltimacoisaquefariamédenunciá-lo.

—Entãoachoqueprecisareiagirporminhaconta.Sherlock cou surpreso ao ouvir as próprias palavras, mas elas pareciam

transmitiroqueeraocertoasefazer.Matty estava prestes a acrescentar algo, mas, lá na frente, Josh Harkness

dobrouuma esquina, saindodomercado.Ele ainda segurava a carta roubada.Sherlock fez um gesto para que Matty casse quieto. Juntos, os dois seafastaramdamultidãoeforamatéamesmaesquina.Sherlockseesgueirouatéocantodaparedede tijolose espioucomcuidado,quaseesperando car caraacaracomochantagista,masohomemestavamaisadiante,andandoporumaruavazia.EleesperouatéHarknesschegarquaseno naldarua.SeSherlockeMatty fossematrásquandoohomemestivesseaindanametadedocaminho,eleacabariavendoosdoisimediatamente,casosevirasse.Sóhaveriaelesnarua.

Harknesschegouao mdaviaevirouàesquerda.Assimqueelesumiudevista,SherlockpuxouMattyecomeçouacorrer.

Osdoislevaramapenasalgunssegundosparachegarao nal.Ali,damesmaforma que antes, Matty esperou enquanto Sherlock espiava pela esquina.

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Harknessestavaaunsseismetrosdedistância,aindacaminhando, ignorandotudo à sua volta. Sherlock supôs que o homem tinha muita con ança em simesmo.

O menino começou a sentir um cheiro atacar-lhe as narinas: um odorintenso,umamisturadeprodutosquímicosdelimpezaealgomaisdesagradável,como esgoto.Seus olhos começarama lacrimejar, irritadospelo vapordoquequerquefosseaquilo.

No nal da rua, em vez de entrar em outra rua ou viela, Harkness paroudiantedeumaportaeaabriucomumachave.Eledeuumaolhadadescon adaparaosdois lados,aindasegurandoacartaroubada.Sherlockrecuouparanãoser visto, tentando reprimir um espirro insistente. Quando achou que seriasegurodarmaisumaolhadapelaesquina,ohomemjáhaviadesaparecido.

—Oquetemali?—perguntouaMatty.Oamigoolhoupelaesquinatambém,porbaixodeSherlock.Efungou.—Umcurtume—respondeuele,com rmeza.—Elespegamaspelesde

vaca que vêm das fazendas e dos abatedouros e curam para transformar emcouro.

—Curam?Elejáouviraapalavraantes,masnãosabiadireitooquesignificava.—É.—Mattylhelançouumolhardedeboche.—Vocêdeveriasairmais

vezes.“Curar”éoqueeles fazemparatransformarpeleemcouro.Apele camaisrígidaeduramais,nãoapodrece.

—Ecomoelesfazemisso?—Usamumasfacasa adaspararasparomáximopossíveldacarne,depois

banhamaspelescomumtroçoquímico.Sherlock fungou de novo, sentindo uma sgada no fundo do nariz e da

garganta,provocadapeloamoníaco.—Sim,estousentindoocheirodaquímica.Mattyfezumacareta.—DáparasentiremtodaFarnham.Sãounsprodutosbemhorríveis.Sherlockfranziuocenho.—Comoassim?—Bom,umcaramefalouqueoprodutoerachamado“ureia”.Sherlockpensouporuminstante.Ureia.Pareciainócuo.Parecia...ah.Sim.

Parecia“urina”.EleolhouparaMatty,franzindoatesta.—Estámedizendoqueelestratamcourocomurina?Mattyconfirmoucomacabeça.

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—Ecomoutrascoisas,masvocêprovavelmentenãoquernempensarnisso.Sóaceiteumconselho:tapeonarizsemprequepassarporaquelelugar.—Elebalançouacabeça.—Ouviumahistóriasobreumdoshomensquetrabalhavamali. Ele estava tentando usar uma vara comprida para mexer as peles em umtanquegrandequetemlá,masperdeuoequilíbrioecaiudentrodele.

Sherlockarregalouosolhos.—Caiudentrodo...?—Exatamente.—Eoqueaconteceu?—Elemorreuafogado.—Afogadoem...?— É. — Matty estremeceu. — Quando eu morrer, quero que seja

tranquilamente,duranteosono.Nãoafogadoemumabanheirade...—Precisamosentrarlá—disseSherlock,determinado.—Oquê?—Eufaleiqueprecisamosentrarlá.—Támaluco?—JoshHarknessentroulá.—Sim.Eusei.Porissomesmo.Olugarémaisfedidoqueaquelacabanade

ondevocême resgatounaquelaestação ferroviáriaamericananoanopassado,que aliás fedia como se alguém tivesse cadopreso emorrido lá, e ainda porcimanestelugaraquitáumdoshomensmaisperigososemumraiodecentenasdequilômetros.Àsvezeseumeperguntosevocêbatebem,Sherlock.

Sherlocksuspirou.—Olhe,bemqueeuqueriaquenãofossenecessário,maselepossuialguma

informação sobreminha família.Está chantageandomeus tios.Eles sãoboaspessoas.Nuncaprejudicaramninguém,ejáfazmaisdeumanoquecuidamdemimemealimentam.Precisofazeralgopararetribuir.—Sherlockolhouaruacomumaexpressãoséria.—Concluíquenãogostodechantagistas.

—Tudo bem.—Matty olhou em volta.—Mas tentar aquela porta seriaperda de tempo.Harkness provavelmente trancou depois de entrar, emesmoquenãotenhatrancado,nãosabemosondevaidar.Podeserbemnomeiodeuma sala cheia de gente.Temuma janela quebrada depois da esquina.Achoquepodemosentrarporali.

—Comoéquevocêsabequetemumajanelaquebradadepoisdaesquina?MattyfitouSherlockcomumaexpressãoexasperada.—Euseionde camtodasasjanelasquebradasdeFarnham...sóparaocaso

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deeuprecisar.Vocênemimaginaoqueaspessoasdeixamemcimadasmesasdecozinha.Mas,nessecasoaqui,decidinuncausarajanelaassimquedescobrioquehaviaalidentroequemeraodono.

Sherlockfranziuocenho.—PorqueseráqueHarknessnãoaconsertou?Mattydeudeombros.—Talvezelesaibaqueninguémemsãconsciênciainvadiriaolugar,sabendo

quemeleéetal.Talvezajaneladeixeentrarumpoucodearfresco.Deussabequeaquelelocalprecisadeumaventilação.

Sherlock assentiu e saiu com Matty pela esquina, caminhando pela rua epassando pela porta fechada por onde Harkness havia entrado. Por via dasdúvidas, o menino evitou olhar para o lado, para o caso de a porta estarligeiramente aberta e Harkness estar olhando para fora, vigiando para ver sealguém o havia seguido.A con ança com que o homem caminhara desde omercado sugeria que ele não esperava estar sendo seguido, ou que não seimportava,masSherlocknãopodia correro risco.Talvezo sujeito fossemaisesquivodoqueparecia.

Omeninosentiuumarrepioaopassaremfrenteàporta.Quaseesperavaqueela seabrissederepente.Deixando-apara trásechegandoàesquina,deuumsuspirosilenciosodealívio.

Matty estava logo ao seu lado. Juntos, os dois entraram em um beco deparalelepípedosdeserto.

Aparededocurtumeformavaumdosladosdobeco.SherlockviuajaneladequeMattyfalara.Ficavaamaisdedoismetrosdealtura,eovidroestavatodorachado.Amolduradocantoinferiordireitoestavavazia.

OcheiroquesaíadoburaconajanelafezSherlocktervontadedesevirarevomitar.Mas ele contraiu osmúsculosdabarriga e engoliu em seco algumasvezes.Nãopodiasedaraoluxodesertraídopeloprópriocorpo.Tinhatrabalhoafazer.

Sherlockolhouparaajanela:eraaltademaisparasubirsozinho,eorebocodaparedetinhatudoparaesfarelarseeletentasseusá-lapara rmaropé.Teriaquepensaremoutraformadeentrar.

—Subanosmeusombrosqueeudou impulso—disseSherlock.—Vocêabreajanelaeentra,edepoismepuxa.

—Nãovaidarcerto—respondeuMatty,segurodoquedizia.—Acredite,sou especialista em entrar nos lugares. Posso subir e passar pela janela semproblema,masnãovouaguentarseupesopelotempodepuxarvocêparacima.

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—Elefezumacareta.—Vaiterqueserocontrário.Eumeabaixo,vocêsobeemmim,entrapelajanelaemepuxaparacima.

O olhar de Sherlock se alternou entre a janela alta e o corpo franzino deMatty.Eleassentiu,relutante.

—Temrazão—disse—,masnãoqueromachucá-lo.Mattydeudeombros.—Acontece—respondeuele,emtomcasual.—Arranhõesehematomas

saram.Juro,seumabotanorostoforapiorpartedomeudiahoje,vou carfelizcomopintonolixo.

—Pintosgostamdelixo?—perguntouSherlock.Mattyoencarou.—Ésóumaexpressão—respondeuele.—Aspessoasfalamissootempo

todo.—Nuncaouvi.— Como eu disse, você deveria sair mais. Ver gente. — Matty sorriu. —

Agoravamos.Você táperdendo tempo.—Ele seabaixou, rmandoasmãosnas coxas. — Suba logo. Você tá tão magro quanto no dia em que nosconhecemos,masachoqueganhouumpoucodemúsculo,eissopesa.

Antes que tivesse tempo de reconsiderar a ideia, Sherlock apoiou o joelhodireitonascostasdeMattyelevantouapernaesquerda,alçando-seaté cardepé.Mattygrunhiu,masmanteveascostas rmes.Sherlocklogoen ouamãonoburacodajanelaetateouàprocuradatrava.Soltou-a,recolheuamãoeabriuajanela.DeuumpuloparasubiresentiuMattyvacilarsobseuspés.Apoiouabarriganamolduradajanelaesecontorceuparaentrar.Amadeiraraspouemsua pele. Antes de cair no chão, ele se segurou ali na janela e se encolheu,olhandoemvolta.

Estava em um cômodo pequeno, sem ninguém, mas cheio de caixas.Apoiadadepéemumadasparedeshaviaumacalhademadeiraparecidacomumescorregainfantil.Opiso cavaamaisoumenosummetroemeiodabeirada janela — obviamente construído um pouco acima do nível do chão. Issofacilitavaascoisas.Sherlockdesceuatéoassoalho,virou-seese inclinouparafora da janela.Matty olhava para cima na expectativa.Quando viu Sherlock,estendeu a mão. Sherlock a pegou e puxou o menino. Matty erasurpreendentemente pesado, e Sherlock sentiu os músculos das costas, masconseguiuiçarogarotopelajanelasemmuitosproblemas.

Os dois passaram pelas caixas até uma porta no meio da parede. Estavafechada.Sherlockgirouamaçanetaeabriu-aligeiramente.

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Pelafresta,viuumasalagrandequeocupavaocentrodaconstrução.Haviaumaplataformasuspensaquecontornavaocômodo,comváriasportas saindoparaoutrosaposentoseumapassagemàdireitaquesupostamentelevavaàportaprincipal,mas quase tudo cava nomesmonível da rua.Nomeio do espaçohavia quatro tanques de madeira, que pareciam barris imensos cortados pelametade.Todoscontinhamalgumlíquido.Emdoisdosbarris,olíquidoeraclaroeembolotado,comoumasopa,combolhassurgindodevagarnasuperfície,masnosoutroseraalgomaislímpido,maisparecidocomágua.

OcheiroqueemergiadostanqueseratãofortequeSherlockpodiajurarqueopróprioarestavaborbulhandoacimadeles.

—Agoravouficarumasemanasemcomer—reclamouMatty,sussurrando.—Respirepelonariz—sugeriuSherlock.—Eutôrespirandopelonariz.Oqueprecisoérespirarpelasorelhas.NãohaviasinaldeJoshHarkness,masdoisoutrossujeitosestavamnasala.

Andavamdeumtanqueparaoutro,usandopedaçoscompridosdemadeiradotamanho do corpo deles paramexer os líquidos.Cada vez que faziam isso, ocheiroficavapiorporummomento.

— Conheço aqueles caras — disse Matty. — Eles andam pela cidaderecolhendodinheiroparaHarkness.Sãogentedomal.

Sherlockolhouparaasváriasportasfechadas.EmumadelasdeviaestarJoshHarkness.Omeninonãoseatreveriaaexplorarolocalatéquesoubesseondeestavaochantagista.

EnquantoSherlockpensavanisso,umaportadooutroladodasalaseabriueHarknessapareceu.Nãoseguravamaisacarta.

—Continuemmexendoos couros—gritou eleparaoshomens junto aostanques.—Aqueleúltimolotesaiumoleecheiodemanchas.Nãopagovocêsparaficaremàtoa.

—Nãofazdiferençaseagentemexeounãomexe,chefe—respondeuumdos homens, tambémgritando.—Tem a ver com a qualidade das peles.Asvacasqueosenhortáusandosãotãovelhasquantominhavó.Aspeleséquesãomolesecheiasdemarcas.Seosenhorquercouromelhor, temquetrazerpelesmelhores.

— Não discutam comigo! — berrou Harkness. — Se vocês acham quesabemfazermelhor,entãoabramseuspróprioscurtumes!Atélá,vãotrabalharcomoquereceberem!

Os homens deram de ombros, trocaram um olhar e voltaram a mexer ostanques. Harkness os encarou com uma expressão raivosa por uns instantes,

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depoissaiupisandoduropelaplataformaatéumaescadaquedavanocentrodosalão.Eleseaproximoudeumdostanquese counapontadospésparaolharládentro.Ocheironãopareciaincomodá-lo.

— Não tem peles su cientes neste aqui — gritou ele. — Joguem maisalgumas.

Osdois sujeitos foram até um lugar queSherlocknão conseguia enxergar,pois suavisãoestavaatrapalhadapelos tanques.Harkness foi atéelespisandoduro.Porummomentoasalapareceuvazia.

Sherlock aproveitou a oportunidade. Saiu rápido e em silêncio para aplataforma de madeira e correu até a porta de onde Harkness havia surgidopoucoantes.Mattyoseguiusemfazerbarulho.

Elechegouàporta,abriu-aàspressaseentrou,fechando-aantesqueostrêssujeitos reaparecessem de trás dos tanques. Parte da mente de Sherlock, aemocional, estava preocupada pensando em como sair dali,mas o restante, aparte lógica, dizia que, se os homens haviam sumido uma vez, então eraprovável que sumissem de novo. Ele só precisava esperar. Por enquanto, oimportanteeravasculharossegredosdaquelecômodo.

Sherlock olhou à sua volta. Em uma parede estavam apoiadas várias dastravesdemadeira,cadaumacomumganchonaponta—provavelmenteparatirarocourodostanques.Asoutrasparedestinhamprateleirasrepletasdecaixasde papelão identi cadas por letras:A, B, C e assim por diante. Ele foi até aprimeiracaixa,puxou-adaprateleiraetirouatampa.

Estavacheiadepapéis:recortesde jornal,cartas,documentosquepareciamo ciais e uma ou outra fotogra a. Sherlock passou os olhos por alguns. Osrecortes de jornal eram uma combinação estranha de reportagens sobreatividadescriminosas—roubos,assassinatoseoutrosdelitos—ematériasdenatureza mais social — nascimentos, casamentos e óbitos. Os documentoso ciais eram muito parecidos: algumas atas de tribunal ou depoimentos detestemunhas,comumpunhadodefolhasautenticadasdepapelofícioealgumascertidões de nascimento e de casamento. Uma ou duas pareciam ter sidoarrancadas dos livros de registro de uma igreja. As cartas iam de declaraçõesmanuscritasdeamorouódioapropostascomerciaisdatilografadas,alémdeunsdesa osaduelo.Algumasdasfotogra aseramretratossimples, inocentesaté,normalmentecomonomedapessoaanotadonoverso,enquantooutraseramdo tipo que fez Sherlock virar o rosto de repente, envergonhado.No geral, acaixaeraumaamostracompletadavidahumana.

Elepensouporummomento.Aindaqueamaiorpartedoquehaviadentro

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da caixa — com exceção de algumas fotogra as — fosse completamenteinocente,deviateralgumsigni cadomaissérionosseusrespectivoscontextos.A carta que a criada da mansão Holmes recebera do namorado — e queSherlockpresumiaque estivesse agora emoutra caixanaquela sala—pareciaapenasuma simplesdeclaraçãode amor, atéque se vissequema escrevera: olhodoprefeito,umhomemquenãopertenciaàclassedacriada.Deviasero

mesmo caso com todas as outras. Um nascimento podia ser apenas umnascimento—ounão,seamãenãofossecasada.Issoseriaumescândalo.Umcasamentopoderiaserbastante inocente—amenosqueonoivo játivessesecasadoantesesuaprimeiraesposaaindaestivesseviva.Entãoseriabigamia.Atéuma morte —principalmente uma morte — podia ser suspeita se parentesfossemherdardinheirodeacordocomotestamento.Entãoseriaassassinato.

Sherlock olhou em volta, sério. Se fosse divulgado, o conteúdo daquelascaixaspoderiadestruirvidasemuminstante;noentanto,destruiriavidasmaislentamente se não fosse. Josh Harkness sugaria dinheiro das pessoas queameaçavaatédeixá-lasnamiséria,dormindonarua.

Ele xouosolhosnacaixacomaletraH.Emalgumlugaralidentroestavaosegredo que a Sra. Eglantine havia descoberto sobre a família Holmes. Sequisesse,Sherlockpoderiadarumaolhadarápida.Descobriroqueelasabia—um segredo tão poderoso que seus tios prefeririam manter aquela víborapeçonhentaporpertoaselivrardelaecorreroriscodevê-lorevelado.

Ouomeninopodiadestruiraquela,etodasasoutras,elibertarcentenasdepessoasdesseflagelo.

Vendoporesselado,haviamesmoalgumaopção?Aúnicaquestãoera:como?

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Capítuloquatro

SHERLOCK SABIA QUE PRECISARIA USAR as ferramentas à sua disposição paradestruir as cartas, as fotogra as eosoutrosdocumentos.Havia caixasdemaisparaeleeMattytiraremdocurtume,eosdoisseriamvistossetentassem.Não,eleprecisariadestruí-lasalimesmo.

Mascomo?Pensouemtalvezprovocarumincêndio.Claro,issodestruiriaomaterialdechantagemnotesourodeHarkness,mastambémacasa,eofogoprovavelmenteseespalhariaparaosprédiosvizinhos.Haviaumaboachancedeque pessoas morressem, e Sherlock não queria carregar esse peso naconsciência. Por um instante ele se sentiu paralisado, o cérebro rodopiandoenquanto organizava as diversas imagens que vira desde que ele invadira ocurtumecomMatty,poucoantes.Eentãosedeuconta:ostanques!Elepoderiajogar as caixasnos tanques!Seospapéisnão fossemapagadosoudissolvidospelos químicos alcalinos, cariam encharcados e se desintegrariam sozinhos.HaviaalgodepoéticoemusarpartedoridículoimpériodeJoshHarknessparadestruiraoutra.

—Certo—disseele—,vamoslá.—GraçasaDeus—respondeuMatty.—Eutavaquasedesmaiandocom

essecheiro.—Não—explicouSherlock—,euquisdizerqueéhoradedestruirmosisso

tudo.Mattyapenasoencarou.—NãopodemosdeixarHarknessescapar—insistiuSherlock.—Eleestá

arruinandoavidadaspessoasaospoucos.—Eelevaiarruinaranossavidamuitomaisrápidose zermosalgumacoisa

para irritá-lo. — Matty balançou a cabeça, desesperado. — O sujeito é umanimal!Émaisperigosoqueumtexugoraivosoencurralado!

Teimoso,Sherlocktambémbalançouacabeça.—Nãomeimporto.Nãopossosairdaquiedepoisandarpelacidadesabendo

que, de cada três ou quatro pessoas que vejo, uma está pagando para que elefiquedebocafechada.Aspessoastêmdireitoàprivacidade.

—Ainda que os segredos deles possammandá-los para a cadeia se foremrevelados?—perguntouMatty,astuto.

—Aindaassim—disseSherlock.—Sealguémcometeuumcrime,existe

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umprocessoparaisso.Éregistrado.Apolíciainvestiga.Sãocoletadosindícioseprovas.Seasprovas são su cientes,apessoaépresa. JoshHarknessnãoestápunindoos criminososporque se consideraummembro informaldapolícia...eleestálucrandoemcimadeconsciênciasculpadas.

Mattyfezumacareta.— Isso aqui ainda são provas — disse ele. — E acho que você tem uma

opiniãomuito cor-de-rosa sobre a polícia.É como eu falei antes, os policiaistambémtãotirandoumdinheiroouentãoroubandoaquiealinotempolivre.Umbandidodeuniformeaindaéumbandido.

Sherlockse lembroudaocasiãoemqueseu irmãoMycroft foraacusadodeassassinato,algunsmesesantes.Omeninoprecisavaadmitirqueapolícianãohavia mostrado muito interesse em procurar indícios na época, mas, aindaassim,oprincípioeraválido.

—Olhe—disse ele—, reconheçoqueo sistemanão éperfeito.Nem seicomoseriaumsistemaperfeito.Talvezapolíciadevarecebermelhoressalários.Talvez as pessoas precisem ser avaliadas antes de serem admitidas na forçapolicial.Talvezprecisemdemaistreinamento.Talvezprecisemdeconsultoresparaajudá-losainvestigarcrimesdifíceis.Nãosei.SóseiquegentecomoJoshHarknessnãoéaresposta.Elenãoestáfazendonadaparaimpediroscrimes...naverdade,porele,quantomaiscrimesacontecerem,melhor.

—Nãovouconvencervocêadesistirdisso,vou?—Não.—Evocêvaifazercomousemaminhaajuda.—Exatamente.—Entãoachoqueémelhoreuajudar,nomínimoparaquevocêsaiavivo

dessa.Minhavidaseriamuitomaisentediantesemvocê.—Obrigado—falouSherlock.—Não tô falandoque isso é bomou ruim— respondeuMatty.—Só tô

falando.—Elesuspirou.—Certo,qualéoplano?—Vamospegaressascaixasejogartudoquetemdentronostanques.Mattydeudeombros.— Não sei por quê, mas eu sabia que a gente teria que chegar perto dos

tanques.Vocêsabequeaquelescarasnãovãodeixaragentevoltaraestasalamaisumavez,emuitomenosduas,né?

—Entãovamosterquedistraí-los.—Comoquê?— Ainda estou pensando nisso. — Sherlock re etiu por um instante. —

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Temqueseralgoqueatraiatodoselesparaomesmoladodoedifício.—Fogo?—sugeriuMatty.—Perigosodemais.—Eseeudeixarqueelesmevejametentemmeperseguir?—Aítereiquedarcontadasvinteeseiscaixassozinho.— Ah. — Os olhos de Matty se iluminaram. — E se esperarmos até o

anoitecerparaentãovoltarmos,invadirmosedestruirmostudodeumavez,comcalma?

Sherlockbalançouacabeça.— Este lugar é tão importante que Harkness deve ter vigias à noite. Só

conseguimos entrar agora porque é dia e temmuita atividade no curtume.Ànoite, com tudo tranquilo, qualquer vigia vai nos ouvir ounos ver, então issoexcluiaopçãodeesperarmosescondidosatéosolsepôr.Não,precisamosfazerisso agora.—Ele pensou por ummomento.—Talvez— disse, devagar—possamoslevantaralgumastábuasdopiso.Estasalafoifeitaacimadoníveldosolo.Poderíamosesconderascaixasembaixodopiso.Harknessnãosaberiaoque havia acontecido com elas. — Ele franziu a testa, considerando osproblemasóbvios.—Não,seriaimpossívellevantarastábuassemdeixarlascasemarcas.Eledescobririanahora.

—Bom,eunãoseioquefazer—disseMatty.—Quetalagentedeixarpralá,então?

— Não.Tem que haver uma solução. — Sherlock esvaziou a mente, naesperançadequeasdiversaspeçasque rodopiavamemsuacabeça formassemalgumaimagemcomsentido.Aospoucos,elasformaram.—Certo,eisoquevamos fazer.Você vai se esgueirar pelos tanques até o outro lado e abrir umburacoemumdeles.

—Comoquê?—Vocêtemalgumafaca?Mattyen ouamãonobolsoetirouumcanivete.Alâminaestavadobrada

paradentrodocabo.—Tenhoisto.—Use-aparafazerumfuronaschapasdemadeiraqueformamocorpodo

tanquemaisafastado,ouen ealâminaentreduaschapasesolte-as.Façaissosemservisto.

—Tudobem.Considerandoqueeunãosejavisto,oqueacontecedepois?—Olíquidodentrodotanquevaicomeçaravazar.Quandoelesperceberem,

vão chamar todo mundo para ajudar a fechar o buraco e limpar a sujeira do

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chão.—Eentãovão cardistraídosporalgumtempo.Éaíqueagentepegaas

caixasejoganotanquemaispróximo?—Issomesmo.Sóqueprecisamosarranjarumjeitomaisrápidodefazerisso.

Lembra que, quando entramos, vimos uma calha de madeira encostada naparede?

—Lembro—respondeuMatty,incerto.—Eles provavelmente usam aquilo para jogar as peles de vaca dentro dos

tanques.Nãoacreditoqueasergamporcimadosombrosejoguemumadecadavez... seria difícil e fariamuita bagunça.Achoque eles simplesmentedescemtudo pela rampa. Enquanto todos estiverem distraídos, vou pegar a calha eapoiá-ladaquiatéotanquemaispróximo.Eassimpodemosdespejarascaixasdentrodotanque.

—Éumplano—disseMatty.—Nãoseiseébom,masnãoconsigopensaremnadamelhor.

—Certo,vamoslá.Sherlock foi até a porta e abriu-a ligeiramente. O cheiro de esgoto do

curtume coumaisforte,irritandoonarizdeleefazendo-olacrimejar.Olhandopara fora,eleviuqueo lugarcontinuavavazio,masaindaouviavozes.OquequerqueHarknessestivessefazendocomseusfuncionários,estavademorando.

OmeninovirouacabeçaeolhouparaMatty.—Certo...vá!—sussurrouele.Matty passou por Sherlock e se espremeu porta afora. Avançando em

silêncio,elepercorreuaplataformademadeiraatéunsdegrausquedesciamnapartecentraldoespaçoepassouporoutracalhademadeira.Esgueirou-sepelasala,escondendo-seatrásdecadatanque,atésumirdavistadeSherlock.

Os minutos seguintes foram enervantes. Sherlock esperou, quase semrespirar, sem saber se Matty estava mesmo furando o tanque mais afastado.Estariaeletentandodesesperadamentepenetrarumamadeiradurademaisparaalâmina?TeriasidopegoporHarknessouumdosseushomens?

Algo semexeu emumdos lados, atraindo a atençãodeSherlock.Umdoshomens vinha pela lateral de um tanque, carregando uma das madeiras comgancho na ponta. Ele parou e começou a enrolar um cigarro com uma dasmãos.SherlockvirouosolhosparaondeMattysumira,masnãoviuomenino.Oempregadonãopareciaagircomosealguminvasor tivessesidodescoberto,entãoSherlockdeduziuqueoamigoaindaestavaemsegurança.

Prestesadesviarosolhos,Sherlockviuumacabeçaaparecerportrásdeum

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dostanques.EraMatty.Deondeestava,ogarotonãoviaosujeitocomatravede madeira, mas, se andasse alguns metros, caria no campo de visão dele.Sherlock tentoudesesperadamentementalizarparaqueMattyolhasse emsuadireção,masseuamigopareciaestarsepreparandoparacorreratéaescada.

EstavaprestesafazeralgumbarulhoparachamaraatençãodeMattyquandoseuamigooencarou.Sherlockfezumgestoparaqueelenãosaíssedali.Mattybalançouacabeça.Sherlock indicoucomacabeçao lugarondeoempregadoestavaeimitouummovimentodecaminhadacomosdedos.Oamigoentendeueassentiu.

Sherlockvoltouaolharnadireçãodosujeito.Elehaviaacendidoocigarroeagora caminhava para a frente, a madeira apoiada no ombro como um ri e.MaisalgunspassoseeleveriaMattyseolhasseparaaesquerda.

Sherlocknão sabiaoque fazer.Ele caria exposto seatraíssea atençãodohomem,mastambémnãopoderiadeixarqueMattyfossedescoberto.

Alguémberroudooutro ladodostanques.Pelavoz,deviatersidoosujeitoquediscutiracomHarkness.

— Vazamento! — gritou ele. — Vocês sabem o que fazer! Marky, peguealgumasfolhasparalimparochão.Nicholson,vocêeeuprecisamosbotarumpoucodefibraparaselaresseburacologoeprenderumatábuaporcima!

Osujeitocomatravedemadeiracorreuparaajudar.SherlockgesticulouparaMatty,quecorreuatéaescada,eentãofoirápidoatéele.

—Comeceatrazerascaixasparafora—disse.—Voupegaracalha.Matty sumiu para dentro do depósito e Sherlock correu até a calha, que

estavaapoiadanocorrimão.Eramaispesadadoqueparecia,eSherlockprecisoudetodaasuaforçaparaarrastá-laatéodepósitoeentãoempurrá-ladocorrimãoatéotanquemaispróximo.

Quando Sherlock terminou, Matty já havia empilhado quatro caixas.Enquantoelevoltavaparabuscarmais,Sherlockpegavaumadecadavezeasempurrava pela calha. A inclinação não era su ciente para que as caixasdeslizassem por conta própria, mas o menino descobriu que podia usar asegundacaixaparaempurraraprimeira,eentãoaterceiraparaempurrarasduas.Emmenos de umminuto, as quatro caixas estavamna calha e ele forçava aúltima,tentandofazerasquatrodescerem.

Aprimeiracaixaestavabalançandoemcimadotanque.Sherlockrecuouumpassoeentãocorreuparaafrente,acertandoaúltimacaixadamesmaformaquezera comoutros jogadoresno campode rúgbidaEscolaDeepdene.Acaixa

deuumtranco,aforçadoimpactosendotransmitidaparaaprimeira,quecaiu

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dentrodotanque.Masaindaeramuitocedoparacomemorar.EnquantoMattytraziaascaixas,

Sherlock as empilhava na calha e as forçava para a frente.Uma caixa após aoutra, todas caíram no tanque. Sherlock viu-as boiando na substância tóxica,para então elas se encherem do líquido e afundarem.Transformaram-se emnada,esperavaele.

Do outro lado dos tanques, dava para ouvir vozes gritando e batidas demartelo.

Oprocessovirouumasériedemovimentosrepetitivos.Pegarcaixa.Colocarcaixa na calha.Empurrar a caixa com omáximo de força. Pegar outra caixa.Sherlocksentiaosmúsculosdoloridoscomoesforço.

Comotempo,elepercebeuMattyaseulado,ajudandoaempurrarascaixas.—Sãoasúltimas—disseMatty.Oamigopareciaexausto.Seucabeloeseurostoestavamcobertosdepoeira.—Oque...?—gritoualguém.Sherlockolhouparaomeiodo salão. JoshHarkness encaravaosmeninos.

Seurostoeraumamáscaradedescrençaenfurecida.—Rápido—disseSherlock.—Vamoscolocarasúltimascaixasali!—Deixeiasmais levesparao nal—respondeuMatty.—Devedarpara

jogardireto.Ele tinha razão. Sherlock pegou a caixa com a letraY e, equilibrando-se

comoumarremessadordepeso,jogou-aparaotanque.—Ei!—gritouHarkness.—Paremcomisso!Acaixabateunabeirada,eporuminstanteSherlockachouqueelafossecair

paratrás,masfelizmenteoembaloajudouatombá-laparadentro.—Peguemessesgarotos!—berrouHarkness.Dois dos empregados que Sherlock vira antes vieram correndo do nal do

salão.Hesitaramporuminstantequandoviramosmeninos,masafúriaterrívelnorostodeHarknessosimpeliuadiante.Seguravamastravesdemadeiracomosefossemlanças.

SherlockpegouMattypeloombroeopuxoupelaplataforma, levando-oaocômodoporondeeleshaviamentrado.Atrásdesi,ouviuobarulhodepassosapressadossubindoaescadademadeira.

Mattychegouàportaprimeiro.ElesevirouparadizeralgoaSherlock.Antesquepudesse falar qualquer coisa, Sherlocko empurroupara trás e se abaixou.Uma trave de madeira voou por cima dele, e o gancho a ado cravou-se nobatentedaporta.

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—Saia!—gritouSherlock.—Rápido!Matty engatinhou para dentro da sala. Sherlock se virou para enfrentar o

homemque o atacara.Ele puxava o pedaçodemadeira, tentando soltá-lo dobatente.Seuamigoestavaaunstrêsmetrosdedistância,aproximando-secomumaexpressãoviolentanorosto.Harknesspegaraumaescadadealgumlugareestava subindo pela lateral do tanque no qual as caixas haviam sido jogadas,obviamentecomaesperançaderesgataralgumacoisadabagunçaqueSherlockfizeracomomaterialdechantagem.

Porum instanteSherlock fezumaoração silenciosaparaque ele caíssenotanque,eentãocorreuparadentrododepósito,atrásdeMatty.Bateuaporta,mesmosabendoqueissolhesdariaapenasalgunssegundos.

Matty jáestavana janela.Ele sevirou,viuSherlocke juntouasmãosparafazerumcalço:palmasviradasparacimaededosentrelaçados.

—Subavocê—disseele.—Emepuxedepois.AtrásdeSherlock,algobateunaporta,fazendo-aestremecer.Sherlockatravessouocômodoemtrêspassos,abaixou-se,pegouaspernasde

Mattyeoergueuatéajanela.—Vá!—disseele.—Euvouatrás.Matty parecia disposto a argumentar, mas já estava com metade do corpo

parafora.Sensatamente,esforçou-separasair,enãoparaficar.Aporta se abriude repente.Umhomemsurgiu sobobatente, eumoutro

logoatrás.—Seumoleque!—rosnouosujeitodafrente.Eledeuumpassoadiante,amadeiraerguidanamão.Sherlockpegouumadastravesqueestavamagrupadasnaparede.Preparou-

se,segurando-anadiagonaldiantedocorpo,ospésafastados,sabendoque iaterquebrigar.Àsvezespareciaque,mesmocomtodaa lógicadomundo,namaioriadasocasiõeseleaindaprecisariabrigar.

Osujeitoeradealturamedianaetinhabarriga,masasorelhasdistorcidaseonarizquebradoindicavamqueelejáforalutadordeboxe—provavelmentelutasclandestinas,emringuesnomeiodocampo,semseguirasregraso ciais.Eleavançouumpasso,tambémcomamadeiranadiagonal,mascomapontaparabaixo.Ohomemsorria.

—EuvouseroJoãoPequeno—disseele—,evocêpodeserRobinHood.—Istonãoébrincadeiradecriança—respondeuSherlock.—Nãomesmo.De repente ele atacou com a madeira, tentando arrebentar o joelho de

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Sherlock com a ponta sem gancho. O menino se defendeu com o própriobastão.Quandoasmadeirassechocaram,avibraçãosúbitasubiupelobraçodeSherlockefezseusdentesdoerem.

Ohomemfezumgestocomacabeça,reconhecendoamanobrainesperadadeSherlock.Eleatacouumasegundavezcomaextremidadeinferiordahaste,masestavaapenas ntando.Mudouadireçãodogolpederepente,descendoaextremidade superior em direção à cabeça de Sherlock. O menino ergueu aprópria trave com as mãos para evitar que a arma do sujeito o derrubasse eprovavelmente rachasse seu crânio, mas, antes que as barras de madeira setocassem,ohomemreverteraogolpedenovo,acertandoavirilhadeSherlock.Omeninoseretorceu,masabarraoatingiunoquadrildireito.Eledobrouumdosjoelhoseseabaixoubematempodeveroganchodamadeirapassardoiscentímetrosacimadesuacabeça.

Sherlock tentou se levantar desesperadamente, ignorando as ondas de dorqueseespalhavamdoseuquadrilatéojoelho.Comohomemdesequilibrado,Sherlockestendeuamadeiraeprendeuoganchonocalcanhardosapatodele.Quandopuxou,osujeitocaiudecostasesoltouumpalavrão.Seucorpoatingiuochãocomumbaque,eopisodemadeiravibroutodo.

O outro homem passou por cima do companheiro caído. Ele era maiscuidadoso,agitandoabarrademadeiradeumladoparaooutro,tentandoevitarqueSherlockprevissedeondeviriaogolpeseguinte.Fintouuma,duasvezes,eentãopuxouabarraeatacouSherlockcomoseestivesseusandoumalançaemvez de um cajado. Sherlock deu um pulo para trás e percebeu que o ganchoafiadonaextremidadepoderiasertãomortalquantoapontadeumalança.

Osujeitorecuouamadeiramaisumavez.EmvezdeatacarSherlock,porém,elevirouacabeçaligeiramenteefaloucomocompanheiro:

— Levante-se, idiota! Vá lá para fora. Pegue o outro garoto se ele aindaestiverporlá.Senãoestiver,nãodeixequeesteaquisaiapelajanela.

O homem balançou a cabeça enquanto se levantava sofregamente. Suaexpressãoeraummistodemauhumorefúria.

—Queroesseaí,Marky.Eurealmentequeroesseaí.Vocêviuoqueelefez.—Vivocêcairdebundanochão—debochouMarky.—Agoraválápara

fora.Agoranãoéhorademúsculos feridoseegos feridos.Ochefevaiquererfalar com esse menino, e, do jeito que conheço você, sei que vai cortar agargantadogaroto,porqueeleofezdeidiota,eentãoochefevaidescontaremnósdois.

Osujeito—provavelmenteNicholson,considerandoosnomesqueSherlock

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ouviraantes—recuouesevirouparaaportadarua.LançouumúltimoolharcruelparaSherlockeentãosaiu.

—Vocênãoquersairpelajanela—disseMarky,sorrindoparaSherlock.—SeNicholsonopegar,vocêjávaiestarmortoantesdepisarnochão,apesardoqueeufaleiparaele.Nicholsonnãogostadepassarvergonha.Nãogostanemumpouco.

—Então,qual é a alternativa?—perguntouSherlock, tandoosolhosdeMarky xamente embusca de algum sinal de que o homem estava prestes aatacarcomoganchodatrave.

—Aalternativaévocêlargaressamadeiraevircomigo.Ochefequerfalarcomvocê,sóisso.Sóquerterumaconversinha.

Sherlockbalançouacabeça.—Considerandooqueeu z,achoquetenhomaischancecomseuamigolá

foradoquecomJoshHarkness.Pelomenosvoumorrerrápido.Markydeudeombros.—Entendoseupontodevista,deverdade.Éumasituaçãodifícil,nãoé?Se

sair pela janela, você morre logo em seguida, mas rápido. Se vier comigo,continuavivoporumpoucomaisde tempo,mas suamorte serámais lentaedolorosa.—Elebaixouotomdevoz,tentandofazerSherlockrelaxar.—Sabe,garoto,seeufossevocê...

De repente ele atacou, tentando cravar o gancho no ombro de Sherlock epuxá-lopara si,mas omeninohavia percebidoque as pálpebrasdeMarky seabriram ligeiramente, o que signi cava que ele estava prestes a fazer algummovimento.ForaumdosensinamentosdeAmyusCrowe:comoprever,apartirdegestosmínimos,oqueaspessoas fariam.Ele chamava issode “linguagemcorporal”. Sherlock agitou amadeira para a esquerda e a direita à sua frente,bloqueandoaarmadeMarkyedesviando-aparaolado.

—Entãoéassimquevocêquer—disseMarky,recuandodenovo.—Umimpasse,certo?Sóque,quandoochefechegar,vãoserdoiscontraum,evocênãovaiternenhumachance.

—Sempreháumachance—respondeuSherlock,comomáximopossíveldepetulância.

—Duas viasde fuga—observouMarky—,e ambas estãobloqueadas.Amenos que você seja um mago capaz de atravessar o chão, não tem comoescapar.

—Tenho,se...—SherlockseconteveparanãofalaronomedeMatty—...semeuamigotiverfugidoantesqueNicholsonchegasseàjanela.Eleirádireto

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àpolícia.Eoshomenschegarãoemquestãodeminutos.Markybalançouacabeçaemdesprezo.—Ospolíciadaquinãovãoseatreverafazernadacontraochefe.Elesabe

muitacoisasobretodomundo.—Mas como ele vai provar?— retrucouSherlock.—Todoomaterial de

chantagemacaboudeserdestruído.Markyfranziuocenho,pensativo.—Quandoospoliciaisdescobriremquetodasascartas,todososdocumentos

queHarkness usava para ameaçá-los desapareceramnos tanques do curtume,vão entender que ele não terá mais como chantageá-los. E o que vão fazerdepois? — Sherlock percebeu a expressão perturbada de Marky e continuou,com um tom mais urgente: — Em primeiro lugar, eles vão vir aqui paracon rmar se é verdade, edepois vão retribuir toda a “gentileza”deHarkness.Quandoeletiverperdidoopoder,seráexatamentecomoqualqueragricultoroucervejeiro de Farnham... só que todo mundo o odeia. Com muita sorte elechegaráinteiroàcadeia.

PelamaneiracomoMarkycurvouosombros,Sherlockviuqueacertaraemcheio.

—Comoelevaipagaravocê?—perguntouele.—Todoomaterialqueeletem usado para chantagear as pessoas desapareceu, um dos tanques estácontaminado e outro está vazando. Um dos empreendimentos dele estáarruinadoeooutroestácomproblemas.Seeufossevocê,começariaaprocuraroutroemprego.—Omeninofezumabrevepausa.—Amenosqueeletambémsaibaalgosobrevocê.Mas,seforisso,entãoaprovaestánaqueletanque,juntocomtodasasoutras.JoshHarknesssótemapalavradele,masnãovaichegarmuitolongecomisso.Ninguémvaiacreditaremumahistóriasemprovas.

—Vocêéumgarotoesperto—reconheceuMarky.Eleassentiu,pensativo.— Tem razão... Harkness já era. Se a polícia não o pegar, então não vaidemorar até alguns donos de terra daqui, que têm sido chantageados por ele,resolveremfazer justiçacomasprópriasmãos.EmpoucotempoHarknessvaiacabarvirandoaduboemalgumaplantação.—Elerelaxouelargouamadeira.—Sealgumacoisaacontecer...seeuforpego...falebemdemim.Faleparaospolíciaqueeudeixeivocêfugir.—Elefezumgestodecididocomacabeça.—Éhorademudardepro ssão—concluiuMarky,eentãosevirouesumiupelaporta.

Sherlockmalpodiaacreditarnoquehaviaacontecido.Tinhaimaginadoqueprecisarialutarparafugir.FicarafalandocomMarkyparadistraí-lo,paraganhar

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tempoepensaremumplanodeataque,maspelovistoeleselivraranabasedaconversa.

Eleolhouparaa janela.Eratentador,masooutrosujeito—Nicholson—provavelmente já estava ali embaixo, e, depois do que acontecera, Sherlockduvidavaqueeleestivessedispostoadiscutir.

Com relutância, o menino foi até a porta e voltou ao salão central docurtume.

Olhouemtorno,tentandoencontrarJoshHarkness,masnãooviu.Oúnicoindíciodequeeleestiveraalieraumamontoadodepapelúmidoemanchadoedecaixasdepapelãoaoladodotanquemaispróximo,nomeiodeumapoçadelíquidomarrom. O cheiro estava pior do que antes — provavelmente porqueHarkness agitara o conteúdo dos tanques ao tentar recuperar seumaterial dechantagens.Comapenasumrápidoolhar,Sherlockconcluiuqueaquelespapéisnão serviriam para mais nada. O pouco que restava de texto impresso aindavisívelnasfolhasmanchadasestavaborradoeincompreensível.

Omeninocontornouaplataforma,indonadireçãodeondeaportaprincipalprovavelmenteficava,torcendoparaqueHarknessjátivesseidoembora.

Eleestavaerrado.O chantagista surgiu de trás de um dos tanques. Seu cabelo estava todo

emaranhado, e seusolhospareciamarregalados apontodequase saltaremdorosto. Harkness segurava uma faca em cada mão. A luz se re etiaameaçadoramentenaslâminascurvaseafiadas.

—Facasdeesfolar—disseele,emtomcasual,emboraaexpressãoemseurostonão indicassenenhumacasualidade.—Usadasparaarrancarocourodacarcaçadasvacas.Muitoa adas.Muitoa adasmesmo.Comovocêestáprestesadescobrir.

— Não vai adiantar nada me matar — observou Sherlock, com uma voztranquilaapesardaaceleraçãorepentinadasbatidasdeseucoração.

—Nãovaiadiantarnada—concordouHarkness—,maspelomenosvoudormirumpoucomelhorhojeànoite.Vocêarruinouminhavida.Rouboumeuganha-pãoetirouotetodesobreaminhacabeça.

—Salveimuitaspessoasdaruínaedodesespero—respondeuSherlock.—Achoqueéumatrocabastantejusta.

—Ninguémperguntounada.—Harknesssemovimentou.—Hámenosdemeiahora,euestavasatisfeitocomoquetinha.Agora,nãotenhomaisnada.Precisareicomeçardozero.

—Seaspessoasdaquideixarem.—Comoquemnãoquerianada,Sherlock

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desceuos poucosdegraus que levavamaté omeiodo salão.Ele estavamuitovulnerávelnaplataforma.—Quandodescobriremque você jánão tempodersobreelas,algumasvãoviratrásdevocê.Suamelhoropçãoéfugir.

— Nisso você tem razão. — Harkness assentiu. — Mas vou arrancar omáximopossíveldesuapeleparalevarcomigo,e,quandoconseguirmeinstalarem algum lugar, vou curti-la e transformá-la em um colete, para que todomundo possa olhar para mim e ver o que acontece com quem deixa JoshHarknessfurioso.

AntesqueSherlockpudessedarqualquer resposta,Harknessergueuamãodireitaacimadoombroe,derepente,agitou-aparaafrente,arremessandoumadasfacasnadireçãodacabeçadomenino.Alâminapareceugirar lentamentenoar.Sherlock seabaixou, e a faca coucravadanamadeirado tanquemaispróximo.

Harknessbalançouaoutrafaca,jogando-adamãoesquerdaparaadireita.—Vocênãopode fugirpara sempre,garoto.Mas,por favor, tente.Vai ser

muitomaisdivertidoparamim.Sherlock seviroue tentouarrancara facado tanque,masestavapresa.De

repente,seuinstintoofezinclinaracabeçaparaolado,enomesmoinstanteasegundafacapassouvoandojuntoaseurosto.Essaacertouotanquepelocabo,rebateu e caiu no chão. Sherlock se abaixou para pegá-la, mas Harkness jácorria em sua direção, os braços estendidos, e omenino deu impulso e roloupelochãoparaseesquivar.

O chantagista pegou a faca do chão e puxou a outra do tanque com umaforçaextraordinária.ElesevirouparaSherlock.

—Quantomaisvocêresistir—rosnouele—,melhoraquelecoletevai caremmim.

— Vá sonhando — respondeu Sherlock. — A única roupa que você vaiganharéumuniformedeprisioneiro.

Ele estendeu amãopara o lado, na direçãoda escada queHarkness haviausadoparasubirnabeiradadotanque.Puxou-apelosdegrausdecimaeagiroupara apontar a outra extremidade para Harkness. O homem arregalou aindamais os olhos. Ele recolheu a mão direita de novo, preparando-se para jogaruma das facas, mas Sherlock correu e o acertou com o primeiro degrau daescada, empurrando-o para trás. Pego de surpresa, Harkness cambaleou,balançandoos braços.Antes quepudesse se equilibrar e reagir, seu calcanhardireito coupresonamassadepapelepapelãoqueelehaviatiradodotanque.Ohomemescorregouecaiu.Suacabeçabateunopisodemadeira,fazendoum

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barulhoalto.Seusolhossereviraramnasórbitas.Antesqueeleserecuperasse,Sherlockjogouaescadaparaoladoepulouem

cimadotóraxdele,prendendoseusbraçoscomosjoelhos.Omeninopegouasfacas das mãos inertes de Harkness e as ergueu, rmando-as com a pontavoltadaparaorostodohomem.Harkness couhorrorizado.Antesqueeleselibertasse,Sherlockbaixouasfacasderepente,umadecadaladodopescoçodochantagista. As lâminas caram cravadas no piso de madeira, prendendotambémotecidodocasacodele.

Sherlocklevantou-seeencarouohomem.—Éaquiqueapolíciavaiencontrá-lo—disseele.—Lembre-sedequeàs

vezesoscoelhosreagem.Omeninoentãosevirouecorreuparaaporta.

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Capítulocinco

SHERLOCKRESPIROUOARPURO depoisde sairdadelegacia, onde apresentaraumaversãoeditadadoquehaviaacontecido.Eracomoestarcobertodelamaemergulhar em um rio límpido. Ele sentiu os pulmões expelirem os odoresterríveisdo curtume.Sabiaqueo ardas ruasnão era exatamente fresco,mas,comparadoaofedordocurtume,eraoidealdepureza.

Tendoasensaçãodequesuasroupasestavamimpregnadascomocheiro,eledecidiuqueprecisavasetrocarassimquepossível.

OmeninoencontraraMattyparadoembaixodajaneladocurtume.EledeuumsonorosuspirodealívioquandoviuSherlock.

—Eunãosabiaoquetinhaacontecidocomvocê—disseMatty.—Acheique Harkness o tivesse pegado. — O menino franziu o cenho. — O queaconteceucomele?Vocênãoo...matou,certo?

Sherlockbalançouacabeça,cansado.—Conversamosumpouco—respondeuele.—Deixei-oláedisseàpolícia

ondeeleestava.Mattydeudeombros.—Nãovaifazerdiferença.Quandoalguémpescaopeixegrandedolago—

disseele—,osegundomaiorassume.Éassimquesãoascoisas.—Eusei—respondeuSherlock—,masnãopossofazernadaquantoaisso.

Nãoagora.PelomenostiramosHarknessdecirculaçãoedestruímosomaterialde chantagemdele. Isso vaideixarmuitagente feliz.—Ele franziuo cenho,reparandonaposturatranquiladeMatty,queestavaparadonomeiodobeco.—O que aconteceu com aquele sujeito que mandaram aqui para fora, oNicholson?

— O cara com uma pança de cerveja? Ele saiu e cou aqui, parado. Nãoestavanadafeliz.Pareciaqueiaarrancaracabeçadealguémassimquepusesseasmãosnele.

—Eondevocêestava?Mattyapontouparaumapilhadeengradadosdooutroladodobeco.—Quandoouviosujeitoseaproximando,eumeescondiali.Elenãoestava

exatamentequieto,faloupalavrõesqueeununcatinhaouvidoantes.—Eoqueaconteceudepois?—Eleficoualiporalgunsminutos,depoisoamigodelesaiu.

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—Marky.—É,elemesmo.Ocarapegouobraçodooutroefaloualgumacoisa.Aíde

repenteosdoisforamembora.Sherlockassentiu.—Consegui convencerMarky de que, sem as chantagens deHarkness, a

cidadeseriabempoucoacolhedoracomeles.Achoquedecidiramtentarasorteemoutrolugar.

—Paraondevamosagora?—Paracasa—respondeuSherlock.—Nãotenhocasa,sóobarco.—EstavafalandodamansãoHolmes.Mattybalançouacabeça,resoluto.—Nãogostodaquelagovernantaestranha—disseele—,eelanãogosta

nadademimtambém.Prefiroficaraquiforamesmo,senãoseimporta.—Acredito—respondeuSherlock—quevocêvaivera in uênciadaSra.

EglantinenacasadosHolmesdiminuirbastantedaquiamaisoumenosumahora.Comcertezavocêserábem-vindonamansãoHolmesdeagoraemdiante.—Eleexaminouoamigocomumolharcrítico.—Bom,issosevocêtomarumbanhoepentearocabelo.

***

MontadocomMattynolombodePhiladelphia,SherlockseguiatrotandoporaquelasestradinhasconhecidasemdireçãoàmansãoHolmes.

—Vocêachaquevãomedeixarcomeralgumacoisaquandoagentechegarlá?—gritouMattyporcimadoombrodeSherlock.

—Acreditoqueissopossaserprovidenciado.Eles levaram mais ou menos meia hora para chegar à propriedade, e, no

momentoemquecruzaramoportãoprincipaleportodoocaminhoatéacasa,SherlocksentiuMatty carcadavezmaistenso.Osdois ignoraramaentradaprincipaldamansãoeforamdiretoatéoestábulo,ondedeixaramocavaloaoscuidadosdeumdoscavalariços.

—Vamos—disseSherlock.—Estouansiosoparaencerraresteassunto.Eleentroupelaportaprincipal,seguidodeMatty.Osombriocorredorparecia

vazio,masasaparênciasenganam,comoelebemsabia.

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—Sra.Eglantine!—gritouSherlock.Partedassombrassedestacouedeuumpassoàfrente.Ocorredorpareceu

ficarunsdezgrausmaisfrio.—JovemSr.Holmes—disseumavoz,comumtomtãofrioquepoderiater

congeladooar.—Comovocêparecedeterminadoafazerdestacasaumhotel,indoevindoaseubel-prazer, talvezdevapagarpeloprivilégiodesehospedaraqui.

—Imaginoquehotéis contratemgovernantas consideravelmentemelhoresqueaquetrabalhaaqui—retrucouele.

AexpressãonorostodaSra.Eglantinenãosealterou,masSherlocksentiuocorredorficaraindamaisgelado.

—Deboche, criança— chiou ela.—Aproveite enquanto pode. Seus diasnestacasaestãocontados.

—SevocêesperaqueseuamigoJoshHarknessfaçaalgocomigo,vai cardecepcionada.OSr.Harknessestápreso,enãovaisairdacadeiatãocedo.

—Émentirasua—respondeuagovernanta,entreosdentes,masSherlockpercebeuquesubitamenteelahaviaassumidoumaposturadefensiva.

— Eu nunca minto — disse ele, simplesmente. — Deixo isso para gentecomo você. — Ele fez uma breve pausa, preparando o ato seguinte. — Porfavor,avisemeustiosquedesejofalarcomelesnasaladejantar.

—Avisevocêmesmo.Avozdelapoderiacortarvidro.—Vocêéqueéacriadaaqui,nãoeu.Encaminheminhasolicitação.Agora.

E,porfavor,tenhaabondadedepedirtambémqueacozinheirapreparealgunssanduícheseumjarrodelimonada.Meuamigoeeuestamoscomfomeesede.

A governanta o encarou; sua expressão indicava que ela estava reavaliandoSherlock, e não gostava do que via. Ela se virou e desapareceu em meio àssombras.

—Venha—disseSherlockaoamigo.—Vamosnosprepararparafalarcomeles.

Ele conduziu o amigo pelo corredor até a sala de jantar. Ocorreu-lhe quepodia terescolhidorealizaroconfrontonasaladevisitas,ondeosconvidadoseram recebidos, mas Sherlock queria fazer isso em algum lugar mais formal,menosconfortável.

Namesanomeiodasaladejantarhaviaapenasdoiscandelabroseumcestodefrutas.MattypegouumaperaenquantoSherlocksesentavaemumacadeiradooutroladodamesa,diantedaluzquevinhadasjanelas.Mattycontornoua

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mesatambémeficouatrásdoamigo,comendoapera.Sherlock tentou acalmar o ritmo da respiração. Ele sabia o que queria

conquistar nos minutos seguintes, mas entendia que estava lidando compessoas,nãopeçasdexadrez,easpessoasàsvezesfaziamcoisasinesperadas.

Esea in uênciadaSra.Eglantine sobreos tiosdele fossemaiordoqueamera posse de alguma informação incriminatória?Talvez eles defendessem aSra. Eglantine, apesar do que já havia acontecido na casa.Talvez os três seunissemcontraSherlock.

AportaseabriueSherrinfordHolmesentrou,seguidodepertoportiaAnna.—Éincomumqueosenhordoprópriolarsejaconvocadopelotutelado—

disseele,emumtombrando.— Peço desculpas se a Sra. Eglantine deu a entender que eu o estava

convocando — respondeu Sherlock, baixinho. — Eu apenas gostaria deconversarcomvocêsdoissobreumassuntosério.

—Esseassuntotemalgumarelaçãocomoqueaconteceunabibliotecahoje?—perguntouo tio.—Se tiver, lembro-me claramentede ter ditoque aquilonãoseriamaismencionado.

— Quero falar sobre um homem chamado Josh Harkness — respondeuSherlock—edesuainfluênciasobreestafamília.

Elepensouempediraostiosquesesentassem,masseriafaltadeeducação.Eramacasaeasaladejantardeles,eSherlocknãoqueriaparecerarrogante.

AntesqueSherrinford respondesse, aSra.Eglantine entrouna sala.Vinhaseguidaporduascriadas;umatraziaumpratodesanduícheseaoutraseguravaumabandejacomumjarroequatrocopos.Elaspuseramtudonamesa.

—Porfavor—disseSherlockàSra.Eglantineenquantoascriadassaíam—,que aqui um instante.Você tem tanto a ver com este assunto quantomeus

tios.Ela abriu a boca como se fosse dizer algo, mas voltou a fechá-la. Parecia

inquieta,insegura.Atémesmoassustada.—Vocênãomeapresentouaseuamigo—disseSherrinford.Elepuxouumacadeirajuntoàmesaparaaesposa.TiaAnnasesentou,eele

também.— Este é Matthew Arnatt — respondeu Sherlock. — Ele mora em

Farnham.—Umcigano—disseaSra.Eglantine.—Nãovalenada.—Jáfalei—respondeuMattyportrásdeSherlock—quenãosoucigano.SherrinfordHolmesdeuumligeirotapanamesa.

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—Aindaquefosse—disseele—,osciganossãoumpovoantigoenobre.Alémdomais,vocêtemonomedeumhomemquefoidiscípulodeJesusCristoe autor de um dos quatro evangelhos. Você é bem-vindo em minha casa,Matthew.

—Joia—respondeuomenino.— Está com fome? — perguntou a tia de Sherlock. —Talvez queira um

sanduícheeumcopodelimonada.—Euquerosim,senãoforincômodo—disseomenino,estendendoamão

porcimadoombrodeSherlockepegandoalgunssanduíches.—Então—falouSherrinfordHolmes—,oqueétãoimportanteparaque

vocêtenhaconvocadoumareuniãodefamília,eoqueissotemavercomessehomemmencionado,umindivíduocujonomemerecusoapronunciar?

Sherlockrespiroufundo.—JoshHarknesséumchantagista—disseele.—Elereúne informações

sobrepessoas,informaçõesqueessaspessoasprefeririammanteremsegredo,eameaçarevelá-lassenãoreceberdinheiroregularmente.

—Você está sugerindo— respondeu Sherrinford, com um ligeiro tom deadvertência—que,dealgumaforma,essecriminosodescobriualgumsegredodenossafamília?SouumrespeitávelestudiosodaBíblia,eminhaesposaéummodelo para a comunidade. Que segredos seriam esses capazes de chamar aatençãodetamanhocafajeste?

Sherlockbalançouacabeça.—Nãoimportaoqueeledescobriuoudeixoudedescobrir.Aquestãoéque

todososarquivosdele,todaacoleçãodedocumentosecartas,foramdestruídos.ASra.Eglantinearquejouecobriuabocacomamão.—Tem certeza? — perguntou Sherrinford Holmes, inclinando-se para a

frente.—“Masa língua,nenhumhomempodedomar.Éummal irrefreável;estácheiodepeçonhamortal.”Tiago,capítulo3,versículo8.

—Agentetemcertezaabsoluta—interrompeuMatty,enquantomastigavaumpedaçodesanduíche.—Nósdoisdestruímostudoaquilo.

—Vocêviu?—perguntouSherrinford.—Vocêviuissopessoalmente?—Vi.Oconteúdodetodasascaixasficouilegível.SherrinfordHolmesserecostounacadeiraepassouamãodireitapelatesta.

Estendeuaesquerdaetocouobraçodaesposa.—Entãoopesadelo...acabou.Elesuspirou.Durantemaisoumenosumminuto,ocômodo couemsilêncio.Nenhum

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ruído,nenhummovimento,masalgomudou.Foicomoseumanuvemtivessesaídodafrentedosol.Asalapareceuficarmaisclaraeaquecida.

— Você fez a esta família, e a muitas outras, um grande bem — disseSherrinford.—Vejoemvocêomesmotraçodecaráterdeseuirmão,etambémdeseupai...meuirmão.Estouemdívidacomvocê.—EleseviroueencarouaSra.Eglantine.—E jánão estoumais sujeito a você,mulhermaligna.Vocêjamaisencontraráoquequerqueestejaprocurandonestacasa.Façasuasmalas.Se não estiver fora desta casa em uma hora, eu mesmo me encarregarei deempilhartodososseuspertenceseatearfogo,etambémlhedareiumasurradechibata.Esperoquenuncamais tenhaquever seu rostoououvir suavozportodaaminhavida.Vocênãoébem-vindaaqui.

—Aindaseioseusegredo!—anunciouaSra.Eglantine,dandoumpassoàfrente.—Nãoserátãofácilselivrardemim.

—Ninguém acreditará em você—disse tiaAnna.Ela se levantou, e suaestaturadiminutapareciaseimporsobreagovernantaalta.—AInglaterraestácheiadegovernantasrancorosas.Ninguémacreditanaconversadelas,eporumbommotivo.Écomodizem:“Fofocaementiraandamdemãosdadas.”

Sherrinfordconfirmoucomacabeça.— “Tua voz será uma repreensão para o transgressor; e, diante de tua

repreensão, que a língua do caluniador cesse sua perversidade” — citou ele,baixinho.—Saiadaquiagora,mulher,enquantoaindapode.

ASra.Eglantinedirigiuumolharfuriosoaosquatropresentesali:Sherlock,Matty,tioSherrinfordetiaAnna.Abriuefechouabocaalgumasvezes,comosesoubessequetinhaalgumacoisaadizermasnãosoubesseexatamenteoquê.Atéque,por m,deumeia-voltaesaiudasalacomosefosseumasombrasendoexpulsaporumacortinaaberta.

—Seráqueésimplesassim?—perguntouSherrinford.Eleestendeuamãoepegouadaesposa.— Vocês precisarão vigiá-la — respondeu Sherlock. — Ela talvez tente

roubaralgumacoisa.Podeaté tentarseesgueirarparadentrodacasadenovoquandonão tiverninguémporperto.Elaqueralgoqueestáaqui, enãoachoquevaidesistirtãofácil.Masagoraserámuitomaisdifícil.Elaperdeuopoderdeinfluência.

—Malpossoacreditar—dissetiaAnna.—ASra.Eglantinetemsidoumapresençamalignaaquiportantotempoquequasenãoconsigoimaginarcomoéviversemela.

—Vocêstêmalgumaideiadoqueelatavaprocurando?—perguntouMatty.

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Sherrinfordbalançouacabeça.— Ela nunca disse. Levei algum tempo para perceber que ela estava

procurando alguma coisa.Ela se ofereceu para trabalhar como governanta hátrês anos, e, como suas referências eram impecáveis, contratei-a sem receios.Masamulher era rabugenta, eos criadosnão se afeiçoarama ela.Depoisdealgum tempo, pedi para ela ir embora,mas ela revelou conhecimento sobre...certosfatosarespeitodestafamíliaqueeunãogostariaquefossemdivulgados.Então nos obrigou a deixá-la car e a lhe dar dinheiro, que era transferidoàquele homem detestável, Joshua Harkness. — Ele suspirou. — Um dia,peguei-a vasculhando nosso quarto. Exigi saber o que ela estava fazendo. Amulherfalouparaeunãomemeteremumassuntoquenãoeradaminhaconta.Respondiqueelaestavaemminhacasaequesaberoqueelafaziaera,sim,daminhaconta.Eladeuumarisadadedesprezoedissequeacasapassaraa serdela.

—Percebemosqueelaestavavasculhandotodososcômodos,umaum—continuou a contar tia Anna em voz baixa, quando cou evidente queSherrinford não falaria mais nada. — Mas nunca descobrimos o que elaprocurava.Nãohámuitosobjetosdevalornestacasa.

—ASra.Eglantinetemaplantabaixadacasa—lembrouSherlock.—Estáemseuquarto,penduradadoladodeforadajanela.Vocêsprecisamrecuperá-la,antesqueoutrapessoaaencontre.

Sherrinfordbalançouacabeçaesorriu.Sherlocknãose lembravade jamaistervistootiosorrir.

—Acreditoquetenhoumagarrafadevinhomadeira,quereserveiparaumaocasiãoespecial—disseele.—Duvidoquevenhaaterocasiãomaisespecialqueestanavida.Entendoquevocêsdoissãopraticamentecrianças,massintoque seus parentes e Deus me perdoarão se eu lhes oferecer uma taça. Umapequena,éclaro.

SherrinfordHolmesdeuumaolhadade esguelhapara sua esposa e ergueuuma sobrancelha de um jeito inquisidor.Tia Anna assentiu, e ele foi até oaparadorparabuscarumagarrafaealgumastaças.

—Achoquelhedevemosumaexplicação—disseeleenquantovoltavaesesentava.—Com a Sra.Eglantine, sua vida aqui tem sido desagradável, parausarumtermodelicado.Depoisdoquevocêconseguiu,omínimoquepodemosfazerédizeroqueelasabia.

Sherlockbalançouacabeça.—Nãoprecisa—respondeuele.—Toda família temodireitodeguardar

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seussegredos.—Masestetemavercomvocê—disseSherrinford.—Jáoguardamospor

tempodemais.Eleapertouobraçodaesposa,quelhedeuumtapinhaleveereconfortante

namão.Sherlocksentiucomoseochãoaseuspésestivesseseabrindoaospoucos.

Umsegredoquetinhaavercomele?Sherrinford abriu a bocaparadizer algo,mashesitou.OlhouparaMatty e

franziuocenho.— Talvez... — começou — devamos conversar mais tarde. Quando

pudermostratardissoemparticular.SherlockolhouparaMatty.—Qualquerquesejaahistória—disseele,com rmeza—,nãoqueroque

continueemsegredo.Mattyémeuamigo.Queroqueelesaibatudooqueháparasabersobremim.

Sherrinfordnãopareceuseconvencer.— Ainda assim, Sherlock, esteé um assunto familiar. Não sei se seria

adequadoseoutraspessoassoubessemalgosobreisso.Talvezseuirmãodevaserconsultadoantesdefalarmosdiantedeoutraspessoas.

—Outraspessoasjádescobriram.—Sherlock touotioeatia.—Olhem,umavezouviMycroftdizerquealuzdosoléomelhorprodutodelimpeza.Naocasião,acheiqueeleestavafalandoliteralmente,queumcômodo cacheiodepoeiraeteiasdearanhaseascortinaspermaneceremfechadas,maspercebiqueusava o sentido gurado. Ele queria dizer que a situação só piora quandotentamos esconder algo. Saber a verdade, e deixar que todo mundo saiba,costumaseramelhoropção.

Sherrinfordsuspirou.—Muitobem—disseele,devagar,servindoovinhonastaças.—Trata-se

de seu pai.Desde a época em que éramos pequenos, Siger, seu pai, era umacriança estranha,mesmo naqueles tempos.Em alguns dias, ele era agitado echeio de energia, capaz de subir emqualquer árvore e pular qualquer cerca, eengoliaacomidaefalavatãorápidoqueaspessoasnãoconseguiamentender.Em outros, simplesmente permanecia na cama ou cava à toa em casa, semdisposiçãonemânimo.Nossopaidiziaqueeraumafase.Nossamãenãotinhatantacerteza.Elapediudiagnósticosaváriosmédicos.OsquevieramquandoSiger estava correndo para todos os lados sem parar disseram que ele eranaturalmente alvoroçado. Os que o viram quando Siger mostrava completa

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indiferença a tudo à sua volta disseram que ele era naturalmente sensível edelicado... melancólico. Quando a melancolia ou a agitação se tornaram umfardo pesado demais para nossos pais, ele foi levado a um sanatório, e lá omantiveramemobservação.

—Meupaiera...é...louco?—sussurrouSherlock.— Eu jamais o descreveria assim — respondeu Sherrinford, sério. — Ele

era...é...meuirmão,eemalgunsdiaseraimpossívelperceberqualquerproblemacom ele. — Sherrinford fez uma pausa. — Mas, em outros dias, cava tãoinquieto que chegava a ser perigoso, ou tão deprimido que falava em tirar aprópriavida.Eudissequeno sanatórioo “mantinhamemobservação”, enãoque “cuidavam” dele, porque certa vez o visitei, e nunca esquecerei o horrorabjetodaqueleambiente.Tenhocertezadequeaquelelugaromarcou.—Elecou em silêncio, olhandopara amesa,masSherlock suspeitoude que o tio

estivesse relembrando o passado longínquo. — Um médico que veio vê-loquandoSigermoravaemcasa,entreumatemporadaeoutranosanatório,eraparticularmente erudito. Ele havia ouvido falar de um francês que descreveraumadoençachamadadefolieàdouble forme,ou“insanidadeemduas formas”.Bom, esse médico experimentou diversos medicamentos... uma soluçãoalcoólicadeheléboro-negroparainduzirovômito,umadecocçãodededaleirasesumodacicuta.Houvealgumefeito,masnãofoisu ciente.Aúnicacoisaqueajudavadeverdadeeramorfina.

Morfina!A palavra foi como uma faca de gelo no coração de Sherlock.Omenino já havia passado por algumas experiências com essa substância. OshomensdobarãoMaupertuisodrogaramcomláudano,queeraumasoluçãodemor naeálcool,eaCâmaraParadoldepoisusaraumasubstânciasemelhanteem Mycroft, o irmão de Sherlock. Será que aquele produto horrível estavamisturadoàhistóriadafamíliainteira?

—Oqueémorfina?—perguntouMatty.—Éumasubstânciaderivadadoópio,queporsuavezéaseivaressecadada

papoula. É um produto químico maligno, do qual não mais falarei, mas queajudouaestabilizarasoscilaçõesemocionaisextremasdeSiger.—Sherrinforddeu uma risada sem ânimo. — O nome da substância foi inspirado no deusgregodossonhos:Morfeu.

Sherlockbalançouacabeça.—Não sei se entendi.Meu pai estava doente, e essa substância o deixou

melhor.Qualéoproblema?—Oproblema—respondeuSherrinford—équenossa sociedadenãovê

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com bons olhos as pessoas com... problemas mentais. Sendo medicado commor na,Sigercresceue couforte,eninguémforadafamíliajamaissoubequehavia algo errado. Casou-se com uma mulher de boa família e alistou-se noExército.Sealguémdescobrissequeeletinhaumadoençanacabeça,SigerseriaexpulsodoExércitonahora.Seus amigos e vizinhos se afastariam.A famíliaseriamaculadapelavergonha...Nãomeimportotantocomisso,maseleesuamãeperderiamtudo.Alémdomais,oestigmaperseguiriaseupai,suamãe,vocêe seu irmão. Vocês seriam taxados como lhos de um louco. As pessoaspresumiriamquevocêstambémprovavelmenteenlouqueceriam.

—ComoaSra.Eglantinedescobriuisso?—sussurrouSherlock.—Elatrabalhavanosanatório—respondeutiaAnna,baixinho.—Quando

jovem.DevetervistoSigeralgumdia,umgrandeacaso,quandoeleestavamaisvelho e de farda.Percebeu o escândalo que a família enfrentaria se omundosoubessequeelehaviapassadoalgumtempoemumsanatórioequedependiaderemédiosparapermanecersão,ecomeçouanoschantagear.

Sherlockfranziuocenho.— É isso que não entendo — disse ele. — Por quevocês? Por que não

chantageoumeupai,minhamãeouMycroft?— Talvez ela tenha chantageado — respondeu Sherrinford. — Nunca

perguntamos.UmaideiasurgiunamentedeSherlock.Elehesitouantesdefalar,pensando

váriasvezesnessaideia,examinando-adetodososângulossóparacon rmarsenãohaviaesquecidonada.Eraumaideiagrave,eelequeriatercertezadequefaziasentidoparanãodizeralgoconstrangedor.

—Peloquevocêsnoscontaram—falouelecuidadosamentedepoisdeumtempo—,osegredoquevocêsguardavamsereferiaameupaieàfamíliadele.Entendoque, seo segredo fosse revelado,avergonhada famílianãoatingiriavocês.Nós,sobretudoele,équeteríamosproblemas.

TiaAnnasorriuparaSherlockeestendeuamãoporcimadamesaparatocarnadele.

—MeuqueridoSherlock—disse ela.—Nãopodíamospermitir que issoacontecesse a Siger. Ele é da família. Cresceu junto com Sherrinford. Nãopodíamoscruzarosbraçosedeixarqueelesofressetamanhavergonha.EumelembrodecomoSigerestavaorgulhosoaoentrarparaoExército.Seriamuitoerradotirarissodele.

—MasavidadevocêsfoiprejudicadapelapresençadaSra.Eglantinenestacasa.

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— Em alguns momentos na vida, nosso Bom Senhor nos impõe algumaprovação — disse Sherrinford. — Ele nos testa, e não podemos demonstrarfraqueza.

— O que mais poderíamos ter feito? — perguntou tia Anna, maispragmática.—ResponderàqueledetestávelSr.Harknessquenãopagaríamosnada e então assistido a nossos parentes seremhumilhados empúblico?Nãoseriacorreto.

Sherlockencarouostios.Percebeuquetinhapassadoavê-losdeumaformadiferente.Osdoisjánãopareciamserrelíquiasantiquadaseobsoletas,vindasdeuma época esquecida; eram pessoas vivas, com emoções, sentimentos epreocupações.EletentouimaginarotioSherrinfordeseupaibrincandoquandopequenos.Tentouimaginarsuatiamaisjovem,vestindosuasmelhoresroupas,talvezcomparecendoaocasamentodeSigerHolmescomamãedeSherlock.Poruminstanteogarotopercebeuqueconseguiaimaginartodasessascoisas.

— Obrigado — disse ele apenas. — Em nome dos meus pais, que pormotivosdiferentesnãopodemagradecerpessoalmente,obrigado.

—Eraomínimoquepodíamosfazer—disseSherrinford.—Nãoera—respondeuSherlock.—Epor issofoiumgestotãonobree

altruísta.—Agora—dissetiaAnna—,precisosairecontrataroutragovernanta.Esta

casanãovaiseadministrarporcontaprópria,eascriadassãotãoavoadasqueprecisam que alguém que vigiando-nas o tempo todo, senão nem consigoimaginaroquepoderiaacontecer.

—Eeuprecisoarrumarabiblioteca—dissetioSherrinford.—Issotalveztomealgumtempo.

Osdoisselevantaram.AtiadeSherlockdeuumúltimosorriso,otioacenoudistraidamentemaisumavez,eosdoissaíramdasaladejantar.

—Genteboa—comentouMatty.—Boanãocheganemaospésdeles—respondeuSherlock.—Então,oquevocêquerfazeragora?Omeninorefletiuporuminstante.— Eu estava pensando em ir ao chalé de Amyus Crowe. Acho que ele

precisa saber o que aconteceu.E provavelmente tambémdevemos lhe contarsobre aqueles americanos que o estavam procurando no mercado hoje. Ossujeitosmencionaramonomedele.

Mattydeudeombros.—Elepodenosdar algumconselhoparao casode JoshHarknessdecidir

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carnacidadee tentarviratrásdenossocouroparacompensaroprejuízodocurtume—disseMatty.—EachoqueseriabomreverVirginia.

Sherlockoencarou,masMattyolhouparaelecomarinocente.— Você não precisa vir — disse Sherlock, em tom neutro. — Achei que

Alberttalvezprecisasseseralimentado.—Eleéumcavalo—respondeuMatty,dandodeombros.—Estácercado

decomidaemqualquerlugaremqueeuoamarre.Écomomedeixaremumapadaria.Elevaicomergramaatéseempanturraredepoisvaidormir.

— Você acha que cavalos cam entediados? — perguntou Sherlock. —Afinal,elespassamotempotodoparadosnomeiodomato.

Mattyergueuumasobrancelha.— Nunca pensei nisso. Acho que eles não se importam. Talvez quem

pensando coisas profundas sobre omundo e tudoquehánele, ou talvez nãopensem em nada muito além do próprio focinho. — Ele franziu o cenho eencarouSherlock.—Vocêpensademais.Alguémjálhedisseisso?

Os dois saíram para o sol do m de tarde. Sherlock pegou um cavaloemprestadonoestábulo,eosdoisseguiramnadireçãodacasaondemoravamAmyusCroweeafilha.

Nocaminho,Sherlockpercebeuqueseuspensamentossealternavamentredois extremos: nervosismo diante da ideia de rever Virginia e incerteza sobreseus sentimentos em relação ao pai: um homem que, para Sherlock, sempreparecerauma forçadanatureza, comsua risada fortee seuamorpeloar livre,masqueagoraomeninoviaqueeramuitomaiscomplexo.

Sherlocknãoconseguiadeixardeimaginarseafolieàdoubleformedequeseupaisofriaerahereditária,comoumamarcadenascença,ouapenasumadoençacontagiante,comogripe.

Ao se aproximarem do pequeno chalé, Sherlock reparou que a égua deVirginianãoestavanocercado.

—NãovejoSandia—observouele.—Virginianãoestáaqui.—Quersairparaprocurá-la?Sherlockoencarou,irritado.—Vamos entrar— respondeu ele,mal-humorado.—Fazumameiahora

desdeaúltimavezquevocêcomeu.Jádeveestarcomfomedenovo.—Provavelmente—concordouMatty.Eles desmontaram e prenderam os cavalos à cerca na frente do chalé.

Enquanto caminhavam até a porta, algo incomodava Sherlock, e ele levoualgunsinstantesparaentenderoqueera.Oamontoadodeobjetosque cavado

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ladodeforadochalé—machados,botasenlameadaseoutrascoisasassim—haviasumido.

A porta estava fechada, o que não era normal. Sherlock bateu, com umpressentimento estranho de que havia algo muito errado. Seus pensamentosvoltaramàconversaentreouvidanomercado.ElepresumiraqueosamericanosquisessemaajudadoSr.Crowe.Seráqueseenganara?

Nenhumarespostaveiodointeriordochalé.Omeninobateumaisumavez.Aindasemresposta.EleolhouparaMatty,aseulado.Oamigooencarou,franzindoocenho.Sherlockabriuaporta.Nointeriornãohaviaqualquerobjetopessoal.AmyusCroweeVirginianão

estavamali,tampoucohaviaqualquersinaldequealgumdiativessemestado.

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Capítuloseis

CHOCADO,SHERLOCKENTROU.OTAMANHO,adisposição,amobília—tudolhepareciafamiliarmas,aomesmotempo,diferente.Oespaço,semabagunçadesempre,estavamuitomaiordoqueemsuamemória.

A área de parede exposta o incomodou—Sherlock acostumara-se a vê-lacobertadedesenhosemapas.Orebocoestavamarcadopelosfurosdosal netesqueantesprendiampapéis,eissoaomenostranquilizouSherlock,con rmandoque ele estava no chalé certo e que não havia confundido a casa de AmyusCrowecomoutrademesmotamanhoeformatonaruamaisadiante.

—Elesdevemtersaídoàspressas—disseMatty,entrandonochaléatrásdoamigo.

—Talveztenhamdeixadoumbilhete.—Sherlockindicouotérreo.—Olheporaqui.Euvejoláemcima.

— Não tem nada aqui — disse Matty. — Se eles tivessem deixado umbilhete,estariaàvista.

—Talveznãoquisessemqueobilhetefosseencontradoporqualquerpessoaqueentrasse.Talvezotenhamescondido.

Mattyoencaroucomumaexpressãocética.—Vocêestáinventandocoisas—disseele.—Reconheça,elesfugiram.Eu

mesmojá zissovezessemconta.Alguémtácobrandooaluguel,entãovocêdesaparecenomeiodanoite. Junta as trouxas e vaiparaum lugarnovoondeninguémoconheça.—Elefranziuocenho.—MaseunãoimaginavaqueoSr.Crowefossedefugir.Quemtáatrásdeledeveserdemetermedomesmo,paraqueeletenhadadonopédessejeito.

— Você está esquecendo aqueles dois americanos que vi no mercado —observouSherlock.—ElesdisseramquequeriamalertaroSr.Crowesobrealgo.

—TalvezoSr.Crowetenhafugidodeles.—Maselenãoteriafugido—protestouSherlock.—Nãosemfalarconosco.Mattydeudeombros.—Talvezelesnãosejamtãobonsamigosquantovocêpensa—retrucouele.

— Pela minha experiência, coisas como amizade são esquecidas quando asituaçãoapertaeodinheiroacaba.

Sherlockoencarou.—Estáfalandosério?

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Mattyevitouoolhardoamigo.—Omundo é cruel, Sherlock.Sempre foi fácil para você.Mas espere até

ficarpobre,comfrioefome.Aívocêvaiverdequevaleaamizade.—Vocêémeuamigo.—Sherlocksentia-secomose,derepente,omundo

queeleconheciaestivessedesaparecendo.—Nuncameesquecereidisso.Estoufalandosério.Nãoémentira!

— Eu sei que você tá falando sério, mas sua barriga tá cheia e você temdinheironobolso.Faleissodenovodepoisdeperdertudo.—Mattybalançouacabeça.—Olhe,estouindoprocuraralgumbilhete.Vouserapessoamaisfelizdomundoseencontrar.

Enquanto o menino começava a olhar dentro de gavetas e atrás dealmofadas,Sherlocksubiuaescadaestreitademadeira,quasebatendoacabeçanotetobaixo.Sentia-semal,emparteporqueseusamigoshaviamdesaparecido,mas também por causa das palavras de Matty. Seria a amizade assim tãodescartável? Matty achava que Sherlock o abandonaria se a situação cassedifícilparaele?

Seráqueeleoabandonaria?Sherlocksentiuumcalafrioeenterrouopensamentolánofundodamente.

Nomomentoeletinhaquestõesmaisimportantescomquesepreocupar.Oandardecimaestavatãovazioquantootérreo.AcamadeAmyusCrowe

estavaarrumada,eseuarmário,vazio.Obanheironãotinhasequerumaescovadedentesoudecabelo.

Sherlock parou na porta do quarto de Virginia, remexendo-se inquieto.Nuncaentraranaquelecômodoantes,e,emborafosseóbvioqueameninanãoestava lá, ele sentiaquenãodeveriaentrar.Comose,poralgumarazão, fosseproibido.

Não,quebobagem,disseomeninoasimesmo.Erasóumquarto.Entrou.Assimcomonoquartodopai,acamaestavaarrumada,eoarmário,

vazio.Nãohaviaqualquerpertencepessoalnacômodaounopeitorildajanela.Sherlockpensoutersentidoumtraçodoperfumedelanoar.Estranho...ele

nem sabia que ela usava perfume, não achava que fosse o tipo de garota queusaria perfume,mas, se fechasse os olhos, conseguia imaginá-la logo às suascostas.

Quando estava prestes a sair, viu de relance algo colorido no travesseiro.Virou-seesedebruçousobreacama.

Ali,notravesseiro,haviaumamechadocabelocordecobredela.Sherlocksentiualgoenvolverseucoraçãoeapertá-locomforça.Derepente

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pareciaimpossívelrespirar.—Encontroualgumacoisa?—gritouMattydotérreo.—Não—respondeuSherlock,sentindooapertonopeitodiminuir.Suavoz

pareciaestridenteaseusprópriosouvidos.—Evocê?—Nada.Nãotemnadanosarmáriosdacozinhanemnadespensa.Tátudo

limpo. Isso signi ca que eles levaram a comida também. Pela minhaexperiência,issoquerdizerqueelesnãovãovoltar.

Sherlockdesceua escada, abaixando-separanãobater a cabeçano tetodenovo.Quandovoltouàsaladotérreo,observououtravezosfurosnorebocodaparede do outro lado. Ele nunca se dera conta de que havia tantos papéispregadosali.

—Nenhumsinal—disseMatty.—Elesforamemboradevez.Quefaçamboaviagem,então.

Sherlockbalançouacabeçacomenergia.—AmyusCrowenãofugiriaassim,semsedespedir.Aindaquetivessequeir

embora às pressas por algum motivo urgente, deixaria uma mensagem. EVirginia...—Eleseinterrompeu,semquererterminarafrase.Aindanãotinhacertezados sentimentosdamenina,emboraestivessecadavezmaiscientedoquesentiaporela.—Bom—continuou,semjeito—,elatambémteriafaladoalgumacoisa.Precisamoscontinuarprocurando.

AntesqueSherlocksemexesse,seumaiorreceiofoiexpressadoporMatty:—É,podemtersidoaqueleshomensnomercado.Elesdevemtervindoaqui

e levadooSr.CroweeVirginia.Ouentãoele soubequeoshomensviriamemeteuopécomafilha.MasporquealguémperseguiriaoSr.Crowe?

Sherlockpensouporuminstante, lembrando-sedospequenosdetalhesqueAmyusCrowedeixaraescaparsobreseupassadonosEstadosUnidos:caçandocriminososfugitivosdepoisdaGuerradeSecessão.

—AchoqueoSr.Crowe fezmuitos inimigosemseupaísnatal.Deve tersidoporissoqueeleveioparacácomVirginia.Talvezalgodopassadodeleotenhaalcançado.

— Deve ser algo bem assustador, se ele preferiu fugir em vez de encarar.Você sabe como ele é grande e corajoso. Não imagino o Sr. Crowe seassustandocomqualquercoisamenordoqueumelefanteenlouquecido.

Sherlockoencarou.—Quandofoiquevocêviuumelefante?Mattyfechouacara.—Jáviemfiguras,ué.

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—Não, comcertezaháalgoerrado.—Irritado,Sherlockdeuumsoconaprópriacoxa.—Sóprecisodescobriroqueé.

—Talveztenhaalgumacoisaláfora—sugeriuMatty.—Podemosdarumaolhada.Vamosnoslimitaràsparedesexternasouaaté

um ou dois metros de distância do chalé, senão vamos acabar explorando ocampointeiro.

Osdoissaíram,eSherlocksevirouautomaticamenteparaadireita,enquantoMatty foipara a esquerda.Sherlock analisou asparedesde tijolos eo tetodepalha,olhandodecimaabaixoenquantoandava.Passouporduasjanelaseumaglicíniaplantadapróximaàparede,masnãoviunadaqueparecessedeslocado.Pensou sehaveria algoen adono tetodepalha,pordentrooupor fora,masabandonoua ideia.SeAmyusCrowetivessedeixadoalgumamensagem,seriaem algum lugar mais acessível, algum lugar onde ele sabia que Sherlockprocuraria.

Mais ou menos na metade do caminho até os fundos do chalé, Sherlockquasetropeçouemalgonochão.Porummomentoachouquefosseumacobra,e deu um pulo para trás, mas o objeto permaneceu imóvel, e parecia sujo emarromdemais.Omenino se abaixou para analisá-lo.Era um tubo, feito detecidomasreforçadopordentrocomarosparamanteraforma.Iadeumburaconaparededochaléatéumaelevaçãonagrama,ealidesaparecia.Seriaalgumexperimento de Amyus Crowe? Sherlock só conseguiu imaginar essapossibilidade, mas o objeto não indicava para onde o Sr. Crowe e Virginiahaviamido.

ElereencontrouMattynosfundosdochalé.—Achoualgoestranho?—perguntou.—Nada.—Mattyfranziuocenhoporuminstante.—Sóumcoelhomorto.

Bom,amaiorpartedeumcoelhomorto.Tavasemcabeça.—Onde?Estavacaídonochão?Omeninonegoucomacabeça.—Tava do lado de um pedaço de lenha. Parecia ter sido colocado ali de

propósito,masnemimaginoporquê.Sherlockdeixouseuspensamentoscorreremsoltosporuminstante.— Um coelho morto sem cabeça? — disse ele, depois de um tempo. —

Preciso admitir, se isso é uma mensagem, é bem difícil de decifrar. — Elesuspirou.—Certo,vamoscontinuar.Encontrovocêdenovonaportadafrente.

—Masvocêjáconferiuessepedaço—reclamouMatty—,eeujáconferiooutro!

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—Doisparesdeolhossãomelhoresqueum.Vocêpodepegaralgoqueeutenhadeixadopassarevice-versa.Vamos,sóvailevarmaisalgunsminutos.

Osdoissesepararameretomaramabusca.SherlocknãoviunadaqueMattypudesse ter deixado passar. Parou um instante para observar o coelhomorto,caídonagramajuntoaumpedaçodelenhaqueAmyusCroweprovavelmentepretenderausarno fogão,masoanimalnão revelavanada.Tirandoo fatodeque estava sem cabeça e de que as patas dianteiras tocavam a extremidadeinferiordamadeira,eraapenasumcoelhomorto.Haviamuitosespalhadospelocampo.

MattyjáoesperavaquandoSherlockchegouàportadafrente.Ergueuumasobrancelha, curioso. Sherlock balançou a cabeça emnegativa.Matty deu deombros,indicandoquenãohaviaencontradonadaqueoamigotivessedeixadopassar.

—Viumnegócioquepareceumtubo—disse—,massóisso.Desconsolado,Sherlock voltou a entrar comeleno chalé.Passouosolhos

pelocômodovazio,comasmãosnacintura.—Continuocomasensaçãodequenãoestouvendoalgumacoisa—disse

ele,frustrado.—Sevocênãotávendo,entãodejeitonenhumque euvouver—respondeu

Matty.—Nãosesubestime.Vocêtemumolhobomparadetalhes.Sherlockobservoumaisumavezaparedecheiadefuros,tentandoignoraros

detalhes—cadafuroindividualmente—eenxergaraimageminteira.—Matty—disse—,achoquetemumamensagemaqui.OmeninoolhouparaSherlockedepoisparaaparede.—Vocêtávendocoisas.—Sim,estou.Vocêtemumacaneta?—Eeulátenhocaradequemandacomcanetanobolso?Sherlocksuspirou.—Umlápis,então?—Tambémnão.—Umafaca?—Isso—respondeuMatty—eupossoarranjar.—Ele en ouamãono

bolsoepegouamesmafacaquehaviausadonotanquedocurtume.—Aqui.Nãoquebre.

—Nãovouquebrá-la.—Sherlockseaproximoudaparede.Observou-aporalguns instantes, tentando recriar mentalmente tudo que estava pregado ali

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antes.—Haviaummapagrandeaqui,nãoé?Eleapontoualâminaparaumtrechodaparede.—Achoquesim.—Certo.—Arranhandoo reboco coma faca como se fosse uma caneta,

Sherlock ligou quatro furos para formar, de acordo com suas estimativas, umretângulonaposição, formaedimensãocertas.—Esteéomapa.Tinhadoispedaçosdepapelporaqui,àdireita.—Cadavezmaiscon ante,ele localizoudoisconjuntosdequatrofurosetambémosligou.Agorahaviatrêsretângulosnaparede.—Lembroquetambémhaviaalgumascoisasaqui.Achoqueeramretratos.

— Estavam inclinados — observou Matty. Sherlock apontou quatro furosque pareciam corresponder à suamemória,masMatty balançou a cabeça.—Unsdoiscentímetrosparaaesquerda—disse.—Não,aínão...umpouquinhoparabaixo...É,aímesmo.

Um a um, Sherlock ligou os diversos furos até recriar tudo que havia sidopregadoàparede.Alguns itens tinhamsidoa xadoscomapenasumal nete,nãoquatro,enessescasosomeninofaziaumXparaindicaroiteminteiro.

Recuou para observar o trabalho. O reboco estava coberto com uma sérieentrecruzadaderiscoseX.

—Vocêesqueceualguns—indicouMatty.—Não—respondeuSherlock.—Nãoesqueci.Essesfurossãonovos.—Temcerteza?—Certezaabsoluta.Observecomatenção.Mattyaproximou-sedaparede,estreitandoosolhos.—Não—disse Sherlock—, afaste-se.Tente olhar paraalém daparede e

ignoreosfurosquemarquei.Matty balançou a cabeça, mas obedeceu. De repente arregalou os olhos,

surpreso.—Éumaseta!—gritou.—Exatamente.EleseguiuoolhardeMatty.Furosquenãoseligavamanadaantespresoà

parede—furosnovosquedeviamtersidofeitosdepropósito—formavamumasetaqueapontavaparaajanela.

Osmeninosseguirama indicaçãoeolharamapaisagemverdejantedo ladodefora.

—Seráadireçãoqueelestomaram?—perguntouMatty,incerto.—Sefor,achoqueissonãoajudamuito.

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—Émaisperto—disseSherlock.—EstaéajanelaquedánocercadodeSandia,aéguadeVirginia.OSr.Croweestánosdizendoparaprocurarmosnocercado.Eledeixouumamensagemlá.

— Quanto trabalho. Ele podia simplesmente ter pregado um bilhete naparede.

— Como você disse, se ele tivesse deixado um bilhete, qualquer pessoaacharia — respondeu Sherlock. — Ele deixou uma pista que indica umamensagem.—OmeninoestendeuafacaparaMatty.—Aqui,obrigado.

Mattydeudeombros.—Pode car—disseele.—Dojeitoqueascoisastão,vocêprovavelmente

vaiprecisardelamaisdoqueeu.Osdoissaíramjuntosdochalé.Sherlockconduziuoamigoatéaáreacercada

queeravisívelpelajanela.Elespularamoportão.—Porondecomeçamos?—perguntouMatty,olhandoparaochão.—Não

tôvendonadaóbvio.— Não será algo óbvio — observou Sherlock. — O Sr. Crowe deve ter

escondidoamensagemparaqueninguémaencontrasse.—Elepensouporuminstante.—Seeutivesseumrolodebarbante,poderíamosfazerumamalhadequadrados e conferir um de cada vez, e assim teríamos certeza de queexploramostudo.Semisso,corremosoriscodequealgopassedespercebido.

— Que tal — sugeriu Matty — se começarmos cada um de um lado eandarmosparaafrente,olhandoochão,aténosencontrarmos?Damosentãoumpassoparaolado,viramosevamosatéacercadenovo.Aíviramos,damosoutro passo para o lado e recomeçamos mais uma vez. Dessa forma, vamosconferirfaixasdocercadoecobriroespaçointeiro.

—Pareceumbomplano.—Sherlockassentiu.—Vamoslá.Os dois passarammeia hora avançando e recuando pelo cercado, cada um

examinando o terreno minuciosamente enquanto andava, conferindo cadapunhadodemato, tocade coelho emontede estercoque a éguadeVirginiadeixara.Depoisde algunsminutos,Sherlock começou a sentirdornas costasporcausadaposiçãodesconfortávelemqueprecisava car:encurvadoedandopassoscurtos.Omenino imaginouque,de longe,eleeMattydeviamparecergalinhasciscando.

—Acheiumacoisa!—exclamouMatty.—Oquefoi?Omeninopegoualgodochãoeomostrou.Eraumgarfo.—Éumgarfo—disseSherlock.

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—Euseiqueéumgarfo.Seráqueéimportante?Sherlockdeudeombros.—Deixe-oaí.Senãoencontrarmosnada,talveztenhamosquecavar.Cincominutosdepois,foiSherlockquemdescobriualgo.—Matty,venhacá!O menino en ou o garfo no chão e correu para onde Sherlock estava

agachado.—Oquefoi?Sherlockindicouumburacoquedesciachãoadentronadiagonalecujaboca

eracontornadaporraízes.—Achoqueéumatocadecoelho.—Parabéns.Jáacheiumascinco.—Masestatemalgodentro.Sherlocken ouamãonatocaparapegaroquevira.Seusdedostocaramem

algumacoisapeludaegrudenta.Pinçandooobjeto,elerecolheuamão.Eraacabeçadeumcoelho,comopescoçocortadoensanguentado.—Umacabeçadecoelhodentrodeumatocadecoelho—comentouMatty,

emtomirônico.—Quedescobertasurpreendente.QuerdizerqueoSr.CroweeVirginiaforamcapturadosporumaraposa?

—Vocêvê—respondeuSherlock—,masnãoentende.Dêumaolhadanopescoço.

Mattyassimofez,eentãoassentiuaocompreender.—Acabeçafoicortadaporumalâminaa ada,nãoarrancadaoumordida.—

Ele pensoupor um instante.—Essa deve ser a cabeça do coelho que vimosatrás do chalé.Ainda assim... uma raposa ou um arminho pode ter pegado acabeçadecimadamesadacozinhaesóter...largadoaqui.

—Achoquenão.Seumanimaltivesseroubadoisto,teriacomidoumaparte.Haveria marcas de mordida. Mas parece que alguém simplesmente cortou acabeçaeacolocounesteburaco.

Mattyseconcentrounacabeçadecoelho.— Está bem recente — reconheceu ele. — Foi morto provavelmente há

menosdeumdia.—Éumamensagem—disseSherlock,pensativo—,masaperguntaé:que

tipodemensagem?—Elehesitouporuminstante.—Não—continuou—,aperguntaaserfeitaé:existemaisalgumamensagemalémdesta?

Mattyolhouemvoltaesuspirou.—Querdizerqueprecisamosterminardeexplorarocercado?

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—Sim.Ofatodetermosachadoalgonãosigni caquenãohámaisnadaaencontrar.

—Euestavacommedodequevocêfossedizerisso.Sherlock deixou a cabeça de coelho onde a encontrara, e os meninos

retomaramabusca,vasculhandoomatoàprocuradealgoquepudessetersidolargadooujogado.Depoisdeunsquarentaecincominutos,chegaramao naldocercado.

—Nada?—perguntouMattyenquantoelesvoltavamaochalé.—Nada—confirmouSherlock.—Ouéacabeçadecoelho,ounãohánada

ali.Mattyolhouparaondeeleshaviamdeixadoacabeça.— Não entendo que mensagem pode ser essa, a menos que o Sr. Crowe

tenhaescritoemumpedacinhodepapeleen adonabocadobicho.Masissoserianojento.

—Nãoéacabeçaemsi—respondeuSherlock—,oupelomenoseuachoque não. É mais provável que seja o lugar onde ela estava, ou mesmo suaexistência.Acho que o Sr.Crowe não teve tempo de fazer algo complicado,comoescreverumbilhete.Sópôdefazeralgunsfurosnaparedeparaindicaradireção,eentãoenfiaracabeçaemumburaco.

—Eletevetempodecaçarematarumcoelho—disseMatty.— Acho que já tinha o coelho. Provavelmente o pegou antes e estava

preparandoumarefeição...cortandoacabeça, tirandoas tripaseapele.Achoque algo aconteceu e ele precisou ir embora, e, depois de esvaziar o chalé detudo que ele eVirginia tinham, só restaram alguns segundos para bolar umamensagem.

Mattysuspirou,frustrado.— Tá, mas qual mensagem? Acho que ele pensava que fôssemos mais

inteligentesdoquerealmentesomos.— Uma cabeça de coelho e um pedaço de lenha — murmurou Sherlock,

tentando fazer a cabeça se agitar e conceber alguma revelação súbita que sópoderiaocorrerseeleficasserepetindooóbvio.

—Tora—sussurrouMatty,quandoelesentraramnochalé.—Perdão?—Fala-se tora,não lenha.Tora éum tronco cortado, e lenha équando a

toravaiparaumafogueira.Normalmenteévocêquemgostadesaberaspalavrascertas...precisaaprenderessascoisas,então.

—Cabeçadecoelhoeumatora—corrigiu-seSherlock.Aideiafugidiaem

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suacabeçafinalmentecomeçouaseagitar.—Umcoelhodecapitadoeumatora.Matty,vocêéumgênio!

—Sou?—perguntouomenino,surpreso.—Bom,tecnicamentenão,masvocêtemumacapacidadeextraordináriade

despertaragenialidadedosoutros.Étãoóbvio!—É?—Lembra quando os homens deDukeBalthassar sequestraram você e o

levaramaNovaYork,enósolocalizamos?Mattyassentiu,confuso.—Lembraquandoeuoencontreinaqueleprédio?Quevocêtentoumedizer

queelesolevariamdetremparaaPensilvânia?Mattysorriu.—É,aquilofoiesperto,nãofoi?— Você apontou para a cabeça e apertou os olhos, como se pensasse, e

depois indicouuns vândalosna rua.Levei algum tempopara juntar as peças,masconsegui.

—Sim,eumelembro,masedaí?Sherlocksuspirou,exasperado.— Não está vendo? Foi isso o que Amyus Crowe fez aqui. Uma cabeça

decapitadaeuma tora.EleeVirginiaestão indoparaEdimburgo,a capital daEscócia!

Mattyfranziuocenho.—Issonãofazomenorsentido—disseele,descon ado.—Oqueissotudo

temavercomEdimburgoeaEscócia?—Faztodoosentido—respondeuSherlock.Elesentiaachamapuraefria

davitóriaseespalharpelocorpo,consumindoocansaçoeadornosmúsculos.Eleconseguira!Decifraraocódigo!Sabiaqueeraaquilo!—Eunãodiriaqueéamelhorpistadomundo,masoSr.Croweprecisouusarosrecursosqueestavamaoseualcance.Podiausarosfurosnaparedeparanosindicaroladodeforadochalé, tinha o corpo do coelho e as toras lá atrás.Combinou os ingredientesparaformarumapista,eentãolevouVirginiaaEdimburgoporqueeraoúnicolugarparaoqualelepodiaapontarcomumamensagem!

— Mas por que ele nos indicou que foi para Edimburgo? — perguntouMatty.

—Devequererqueoprocuremos lá.Éoúnicomotivo.Senãoquisesse irembora sem se despedir, poderia ter deixado um bilhete dizendo apenas“Adeus”.Não faria diferençapara quemo encontrasse.Mas é evidentemente

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importantequeninguémsaibaqueelefoiparaEdimburgo.Achoqueelecorreperigo.Achoquequernossaajuda.

—Vamosatrásdele,nãoé?—disseMatty,alegre.—Bom—respondeuSherlock,hesitante—, temosoutrasopções.Talvez

devamoscontaraomeuirmão.—Quanto tempo issovai levar?Eoqueelevai fazer?Peloqueseidoseu

irmão,duvidoqueelevápegaropróximotremparaaEscócia.Vaisóenviarummonte de telegramas, mandando gente procurá-lo, mas as pessoas não vãoreconhecerVirginianemoSr.Crowe.

Sherlockbalançouacabeça.—NuncafomosaEdimburgo—disseele.—Nãosabemosnadadacidade.

Comopoderemosajudá-lossenósmesmosnosperdermos?—Eu já fui aEdimburgo— retrucouMatty, animado.—Meu pai levou

minhamãee eupara ládebalsa.Demoramos semanaspara chegar.Ficamosporummêsetanto,enquantoeleprocuravatrabalho.

—Aindaassim...nós,doisgarotos,sozinhosnaEscócia?—VocêfoiaosEstadosUnidos.EàRússia.—NosEstadosUnidoseuestavacomoSr.Crowe.—AtéquevocêeVirginiafugiramsozinhos.—Nãofoidepropósito—protestouSherlock.—Nãoconseguimosdescer

dotremantesquedeixasseaestação.EMycroftfoiàRússiacomigo.—Atéeleserpreso.—Mas isso não fazia parte do plano.De qualquer forma, estávamos com

RufusStone.Eleajudou.—UmaluzintensapareceuseacendernacabeçadeSherlock.—EsepedirmosparaRufusirconosco?

—Seráqueeleiria?—perguntouMatty,descon ado.—AcheiqueeleeoSr.Crowenãofossemcomacaraumdooutro.

— É verdade — reconheceu Sherlock. — Os dois são como cão e gato,mas... — Ele pensou por um instante. —Tenho quase certeza de que meuirmãoestápagandoRufusStonepara car emFarnhamecuidarparaqueeunão arranje problemas. Mycroft ainda acha que a Câmara Paradol vai tomaralguma atitude contra mim. Se eu disser a Rufus que você e eu iremos aEdimburgo, ele vai ter que nos acompanhar, não? Se ele precisa me manterlongedeproblemas,nãoteráescolha.

—Elenãopodesóimpedirquevocêpegueumtrem?Sherlocksorriu.—VocêconheceRufusStone.Sabecomoeleé.Setiverqueescolherentre

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meimpedirdeiràEscóciaeircomigoparaumaaventura,oqueachaqueelevaipreferir?

—Fazsentido—concordouMatty.—Quandofalaremoscomele?—Vamos reunir umpoucomais de informações primeiro.Quero dar uma

olhadanaestaçãodeFarnham.SeVirginiaeoSr.CroweforamparaaEscócia,nãodevemteridoacavalooudecarroça.Ficariammuitovulneráveis.Não,elesforamdetrem.

Matty franziuo cenho,pensando cuidadosamentenoqueo amigodissera.Sherlockoobservou,tendoumasensaçãosúbitadecompanheirismo.Mattysetornarapartedesuavidadeumaformaqueelenunca imaginaria.Emmuitossentidos,omeninoeraocontráriodeSherlock—seguiaoinstinto,enquantoSherlock seguia a lógica; era emotivo, enquanto Sherlock era frio; agia porimpulso, enquantoSherlockpreferia semprepensar em todas as opções antes—,maseraespertoe incrivelmente leal.Eraomaispróximoqueele tinhadeummelhoramigo.Sherlockseperguntouseseriasempreassim.

—SeoSr.CrowecomprouduaspassagensparaEdimburgonabilheteriadaestaçãodeFarnham—disseele,devagar—,deixourastros.Seosamericanosestãoatrásdele,podemirdiretoàbilheteriaeperguntaraondeelefoi.Elenãoédepassardespercebido.

—Nãoémesmo—concordouSherlock.—Entãooqueelefaria?Mattydeudeombros.—Seilá.—OSr.Croweprovavelmentevaicomprarduaspassagensparaumaestação

intermediária, como Guildford, por exemplo, mas pode saltar do trem comVirginiaantesdisso,talvezemAshWharf.Elápodecomprarduaspassagenspara Edimburgo. Se tiver alguém atrás deles, irá de Farnham direto paraGuildfordeperderáo rastro,porqueninguémnabilheteria se lembrarádoSr.Crowe.

—Issoseriaesperto—reconheceuMatty.— Na verdade — continuou Sherlock —, se eu fosse ele, compraria duas

passagens para Guildford, saltaria em Ash Wharf, compraria duas passagenspara Londres e, quando chegasse lá, compraria outras duas para Edimburgo.Dessaforma,orastroficariaaindamaisconfuso.

—Temcertezadequeelefariaisso?Sherlockassentiu.—Eleéumcaçador.Sabequaisrastrosumapresapodedeixar,evaitomar

cuidadoparanãofazeromesmo.

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—Eagora,fazemosoquê?—VamosparaFarnham.Os dois se afastaram do chalé e cavalgaram até o centro de Farnham, e

Sherlocknãopodiadeixardesentirumapontadeculpa.Eledetestavadeixarochalévazioedesprotegido.OqueaconteceriacomacasaatéAmyusCroweeVirginiavoltarem?Elesvoltariam,Sherlocktinhacerteza.Elefariadetudoparavoltarem.

O bilheteiro da estação — um idoso alto com suíças cheias e brancas —con rmouqueumsujeitograndedeternobrancoechapéu,acompanhadodeumagarota comroupasdemenino, compraraduaspassagensnodia anterior.SherlockficoufelizdesaberqueaspassagenseramparaGuildford.Atéaí,haviaacertadonamosca.

—Olhe—disseMatty,apontandoparaooutroladodarua.Em um espaço triangular pequeno junto a um estábulo havia um cavalo

pastando.Estavaamarradoaumacercaporumarédeacomprida.—AquelaéSandia—disseMatty.—Temcerteza?—perguntouSherlock.—Absoluta.— Pelo menos sabemos que ela está bem. Virginia provavelmente pagou

alguémnaestaçãopara cardeolhonela.Sehouvetempoparaisso,elesnãoforamlevadosàforça.Devemterdescobertoquehaviagenteatrásdeles.PeloqueconheçodoSr.Crowe,eleconseguiusemanterumpassoàfrente.

DerepenteSherlocksesentiumuitomelhor.—VamosparaAshWharfagora?Omeninopensouporuminstante.Chegavaomomentoemqueoacúmulo

deindíciosapenascon rmavaoqueelejásabia.Estavabemcon anteemsuasdeduções.

—Não, vamos falar comRufus Stone. Precisamos lhe dizer o que vamosfazer,edepoistemosqueconversarcommeustios.—Sherlockselembroudoque havia acontecido mais cedo naquele dia. — Acho que os ânimos aindaestãofavoráveisparaqueelesnãomeproíbamdeviajarporalgunsdias,aindamaissesouberemqueRufusStoneiráconosco.

Mattyvirou-separair,masSherlockestendeuamãoeosegurou.Oamigovoltou-separaele,intrigado.

—Oquefoi?Sherlock hesitou, pensando em como formular a pergunta. Pensando se

deveriaperguntar.

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—Aquilo que você disse antes, sobre a amizade acabar quando a situaçãoapertaeodinheiroacaba...vocêfalousériomesmo?

Mattydesviouoolhar.Apertouoslábiosporuminstante,eentãorespondeu:—Játiveamigos—dissebaixinho.—Nãotenhomais.Elesforamembora,

umporum,quando acharamconveniente.Então aprendique é assimque ascoisassão.

— Não comigo — respondeu Sherlock. — E não com Amyus Crowe eVirginia.

Mattyassentiu,relutante.—Pelomenosvocêmeconvenceudequeelesnãoqueriamirembora.Éum

começo.Agoravamos.Otempotápassando.EncontraramStoneondeSherlockhaviaimaginado:emsuasacomodações,

tocandosozinhonosótão.Osmeninosaindaestavamnaruaquandoouviramamelodia,algoquepareciaumamúsicadançanteagitada.Àmedidaquesubiamaescada,osomfoi candocadavezmaisalto,atéqueelesentraramnosótãoeamúsicapareceupreencheroespaçointeiro,girandoerodopiandoemtornodaguramagriceladeRufusStone,quemoviaoarcoloucamentesobreascordas.

Elenãodeuqualquer indicaçãodequehavia escutadoosmeninos chegarem.Deolhosfechados,Stonetocounotascadavezmais intensasnoinstrumentoaté terminar comumúltimo oreio.Poruma fraçãode segundoo arpareceuestremecercomogelatina,eentãotudovoltouaonormal.

—Éumabaitamúsica—disseMatty,satisfeito.—Muita gentileza sua— respondeu Stone, virando-se e sorrindo para os

dois. — Mas preciso admitir que ela soa melhor se for tocada à luz de umafogueiranomeioda orestaàmeia-noite.Oproblemaéque,àmedidaquevouenvelhecendo,pre rocadavezmaisoconfortodeumacasasecaequente.—ElefitouSherlockeMatty.—Aconteceualgumacoisa,nãofoi?Contem-me.

Os dois relataram tudo para Rufus Stone: Sherlock apresentava os fatos eMatty completava comdescrições vívidas.Ohomem foi candomais emaissério à medida que os meninos falavam. Quando Sherlock terminoudescrevendooqueexatamenteosdoisplanejavamfazer,Stone couparadoporuminstante,pensando.

—VocêspretendemmesmoiraEdimburgo?—perguntou,enfim.—Sim—respondeuSherlock.—Enãohánadaqueeupossadizerparafazê-losmudardeideia?—Não—respondeuMatty.Stonesuspirou.

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—Entãoaindabemqueeusempredeixoumamaletaprontapertodaporta.Nãovaiseraprimeiravezqueprecisoiremboraderepente.

—Adiferença—disseSherlock,baixinho—équevamosvoltar.Trazendomaisduaspessoas.

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Capítulosete

SOMENTENODIASEGUINTEOStrêspuderampartirparaEdimburgo.Depois de convencerem Rufus Stone a acompanhá-los, como o adulto

responsável — tarefa que Sherlock achou surpreendentemente fácil,considerandoasituação—,MattyfoiprovidenciaralguémquetomassecontadeAlbertenquantoSherlockvoltavaàmansãoHolmes,paraconversarcomostios. Como já esperava, eles ainda estavam deslumbrados e distraídos peladerrocada da Sra. Eglantine e pela consequente liberdade adquiridasubitamente.Omeninointroduziuaquestãodaviagemcomofatoconsumado,e, comoprevira, eles concordaram.A nal, jáhaviamaceitadoqueeleviajasseaosEstadosUnidoseàRússiaantes.Edimburgo,emcomparação,eralogoaliaolado.Oulogoaliemcima.

Tio Sherrinford quase pôs o plano inteiro a perder quando pediu para serapresentadoaRufusStone.

—Minhaconsciência—proclamouele—nãomepermitequeeudeixemeusobrinho atravessar o país com um homem que não conheço. Não sei nadasobreele.

Pensando no estilo boêmio das roupas deRufus Stone e em seu brinco edente de ouro, Sherlock reprimiu uma careta de preocupação. Se Sherrinfordconhecesse Rufus Stone, provavelmente proibiria o sobrinho de manterqualquercontatocomeleemFarnham,quediráviajaremsuacompanhiaatéaEscócia.Sherlockpassaraasentirgranderespeitopelostios—algoquebeiravao amor familiar —, mas eles não eram as pessoas mais compreensivas domundo.Nervoso,omeninodisse:

— Se serve de alguma coisa, Mycroft conhece o Sr. Stone há anos e ocontratourecentementeparamedaraulasdeviolino.

—Ah—respondeuSherrinford,assentindocomacabeça.—Nessecaso,retiro meu pedido. Seu irmão é um homem perspicaz, e con o em seujulgamentonoquetangeaocaráterdealguém.—Eleolhoudeesguelhaparaaesposa.—Sabe,lembro-medeMycroftdizerquehaviaalgoerradocomaSra.Eglantineassimqueeleaconheceu.Talvezeudevessetercontadoaeleoqueamulherestavafazendoconosco.Mycrofttalvezpudesseterajudado.

—Oqueestáfeito,estáfeito—respondeuAnna,tocandoamãodele.—OBom Senhor não deposita em nossos ombros um fardo que não possamos

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carregar,eosqueEledeposita,nosfortalecem.Sherlock jantoucomos tios aquelanoite.Acomidanãoestavanomesmo

níveldesempre—asondasdechoquedademissãodaSra.Eglantinepareciamtersepropagadoatéacozinha—,enãohouvemuitaconversa.TioSherrinforde tia Anna pareciam abalados pela magnitude do que havia acontecido. Nãohaviasequero uxocontínuodeopiniões,fofocasecomentáriosdatiasobreoseventosdodia.Assimqueterminoudecomer,Sherlockpediulicençaefoisedeitar.Odiahaviasidocheio,eeleprecisavarecuperarasenergiasparaoqueviriaaseguir.

Sherlock,MattyeRufusStoneencontraram-senaestaçãodeFarnhambemcedo na manhã seguinte. Os três traziam, cada um, uma mala com roupas,objetosdehigienepessoaleoutrositensnecessáriosemviagens.

— Esta ideia — disse Rufus Stone, com uma expressão grave — éextraordinariamenteruim.Meusurtoinicialdeentusiasmosedesfezcomoumapoçadeáguada chuvaabsorvidapela terra.Edimburgoéumacidadegrande,cheiadegente.Oquevocêspretendemfazerémaisoumenoscomoprocurarumaformigaespecíficaemumformigueiro.Nãoseráfácil.

—Nadaquevaleapenaéfácil—observouSherlock.—Touché.Stonesorriu.Elepagoupelaspassagens;comprouosbilhetescomdestinoa

Londres,considerandoquepoderiamcompraraspassagensparaEdimburgoláequeseriaconstrangedorepotencialmenteperigosodeixarrastros,considerandotodoocuidadoqueAmyusCrowetivera.SherlockoferecerapartedodinheiroqueMycrofthaviamandado,masStonedeudeombros.

— Seu irmão paga o meu salário regularmente para ensinar você a tocarviolino — comentou ele. — De qualquer jeito é o dinheiro dele que estácomprandoaspassagens.Nãofazdiferençaquemdenósoentrega.

Otremsópartiriadaliaumahora,entãoRufussugeriuquetomassemumaxícaradecháecomessemumsanduíche.Osmeninosconcordaram,animados.A casa de chá mais próxima cava do outro lado da rua. Enquanto os trêscomiam, Sherlock viu pela janela dois homens parados diante da estação eolhandoemvolta.Umdelestinhacabelopreto,presoemumrabodecavalo;ooutrotinhaasfaceseatestacobertasdemarcasdevaríola.

— Aqueles dois são os homens que estão atrás de Amyus Crowe? —perguntouRufus,seguindooolhardeSherlock.

Mattyassentiu.Eles viram os homens irem até a bilheteria e fazerem uma pergunta ao

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atendente.Osujeitobalançouacabeçaemnegativa.Umdoshomensfezmaisuma pergunta e passou um punhado de dinheiro pelo balcão. O atendentedestacoudoisbilheteselhesentregou.

— Eles compraram passagens — indicou Rufus. — Quer dizer queprovavelmenteembarcarãonomesmotremquenós.OusabemdeEdimburgo,ouestãosedirigindoaGuildford.Qualquerquesejaodestino,precisamos carlongedeles.

Depoisde terminaremossanduícheseochá,os trêsatravessarama ruadevoltaàestação.Apósalgunsminutos,otremsearrastoupelaplataforma—ummonstro de ferro negro envolvido por vapor e chiando como um demôniobíblico.Elesocuparamumdoscompartimentos.Sherlocktentouencontrarosamericanos,masnão viuonde eleshaviamentradono trem—oumesmo seentraram.

Àquela altura,omenino já estava acostumadoa viajarde trem.Passouumtempo distraindo-se com a paisagem que corria pela janela, mas, quando secansou disso, esperou chegar à próxima grande estação—que acabou sendoGuildford—esaiurapidamentedotremparacomprarojornaldeumvendedornaplataforma.EraumaediçãolondrinadoTimes,provavelmentepartedeumaremessagrandequechegaradetremmaiscedo.

Alocomotivasoltavaumanuvembrancadevaporpelaplataformaquandoomeninovoltoudojornaleiro.Enquantoeleseguia juntoàsparedesdemadeirados vagões, uma brisa repentina dispersou o vapor, e Sherlock viu um dosamericanoscaminhandopelaplataforma.Eraomaisalto,odecabelopretocomtraçosgrisalhoseumacicatrizenrugadanolugardaorelhadireita.Elevinhadabilheteria. Seu companheiro — o sujeito com marcas de varíola no rosto —estavaparadodiantedaportadovagão,mantendo-aabertaparaqueotremnãosaísseantesqueoamigovoltasse.Quandoseaproximoudooutro,ohomemdecabelo preto balançou a cabeça. O que quer que ele estivesse procurando —Sherlock descon ava de que fossem informações sobre Amyus Crowe —, ohomemestavadesapontado.

Eles voltaram para dentro do trem, e Sherlock foi ao vagão onde estavamseusamigos,pensandoseoshomenssaberiamsobreele,MattyeRufusStone.Rufus não passara muito tempo com o Sr. Crowe, mas Sherlock e Matty oacompanhavam com frequência. A maioria das pessoas em Farnhamprovavelmente vira Sherlock e o Sr. Crowe juntos em algum momento, ehabitantesdecidadespequenaseramfofoqueirosinveterados—algocomoqueJoshHarknesshavialucrado.Bastariamalgunspenceouumacanecadecerveja

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paraelesdescobriremqueAmyusCrowepassavatempocomalguémmaisalémda lha.SeossujeitostivessemumadescriçãodeSherlockeMatty,poderiamreconhecê-losnotrem.Otrioprecisariatomarcuidado.

Sherlockchegouaovagãonomesmoinstanteemqueovigiadaplataformasopravaoapitoparaavisaraospassageirosqueo tremestavaprestesa sair.Omeninoseacomodounoassento.Mattypareciadormir,eRufusStoneestavaocupado tentandodecorarumapartitura, reproduzindocomosdedosasnotasque lia. Como não queria interrompê-los, Sherlock se recostou no assento eabriuojornal.

As páginas apresentavam matérias sobre política e relatos do que haviaacontecido em outros países. Como Mycroft falara com desprezo sobrejornalistas eopoucoque eles sabiamde fato sobreosmotivos verdadeirosdetudoqueacontecia,Sherlockfezapenasumaleiturarápidadasmatérias.Certavezseuirmãolhedisseraquelerumartigodejornalsobrepolíticaeracomoleruma crítica literária escrita por alguém que, em vez de ler o livro, apenas sebasearanoqueouviradepessoasencontradasnarua.

OmeninoprocuroualgumrelatosobreapresençadoExércitobritâniconaÍndia,masnãohavianada.JáfaziaalgumtempodesdequeSherlocknãotinhanotíciasdopai.Omeninosabiaqueasituaçãoestavaagitadaporlá,mas cavapreocupado.Nãoconseguiaevitar.

Aprimeirapáginadojornaleracheiadeanúnciospessoais,eSherlockestavaprestes a ignorá-los quando algo estranho chamou sua atenção. Eram textoscurtos, em geral de dez ou vinte palavras— escritos por leitores que haviampagadoparapublicá-los—,masSherlockpercebeuqueabriampequenasjanelaspara um mundo do qual ele provavelmente não descobriria mais nada.“Cachorro perdido, região de Chelsea, atende pelo nome Abednego.Recompensa generosa pela restituição, vivo ou morto.” O menino achavacompreensívelquealguémamasseumanimalapontodeoferecerdinheiropararecuperá-loseeledesaparecesse,masquetipodepessoabatizariaocachorroemhomenagemaumpersonagemobscurodaBíbliaedesejariarecuperá-lomesmoquemorto?Nãofaziasentido.Equantoao“Precisa-seurgentementedecriado,essencialapresentarboasreferências.Devesabertocarocarina”?Eraóbvioqueaspessoasprecisavamdebonsempregados,masporquealguémdesejariaumcriado com habilidades musicais, e ainda por cima com um instrumento tãoinusitado?Cadaanúncioeraumrecortedavida,eSherlockqueria sabermaissobreascircunstânciasquecercavamcadaum.Eraevidentequealgunsestavamemcódigo—conjuntosaparentementealeatóriosdeletrasenúmeros—,eele

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tentou usar as habilidades que aprendera com o irmão e Amyus Crowe paradecifrá-los.Emalgunscasos,omeninoatétevesucesso.Amaioria tratavadeencontrosdiscretos,provavelmentedepessoasqueseamavammasporalgummotivonãopodiamseverempúblico;noentanto,outroserammaisestranhos.Umespecí cofezosanguedomeninogelar.Depoisdedecifrá-lo,aspalavrasdiziam simplesmente: “JosephLamner, você vaimorrer amanhã. Ponha seusnegóciosemordem.Prepare-separaconheceroCriador.”

Relutante,Sherlockparoudelerosanúnciospessoaisparanãoficarobcecadodemais com isso e passou os olhos pelo restante do jornal. Duas páginascontinhambrevesnotíciassobreopaís,eaatençãodomeninofoiatraídaporumrelatoemespecial,quesereferiaàcidadeparaaqualelessedirigiam.

EDIMBURGO.SirBenedictVentham,empresárioproeminente,foiencontradomortoontemànoite em sua casa nos arredores da cidade. A polícia declarou suspeitar de assassinato porenvenenamento,devidoàexpressãodistorcidanorostodavítimaeàcordesualíngua,eanunciouque está prestes a efetuar uma prisão.Ao longo dos anos, o estilo empresarial agressivo de SirBenedict lhe rendeudiversos inimigos.Nosúltimos tempos, o empresário temiapor sua vida ecomia apenas o que era preparado por sua leal e con ável cozinheira, que trabalhou para eledurantequaseduasdécadas.

Frustradocomaescassezdedetalhes,SherlockseperguntoucomopoderiadescobrirmaissobreesseassassinatoemEdimburgo.EleduvidavaquetivessealgoavercomodesaparecimentodeAmyusCrowe—seriaumacoincidênciamuitograndeseumamatériadeumjornalqueelecompraraporacasoemumaestação intermediária estivesse diretamente relacionada com o motivo de eleestarnotrem—,masqueriaaprenderalgosobreolugaraondeestavaindo,terumanoçãodecomoeraEdimburgoeque tipodecoisaaconteciapor lá.Umdos ensinamentos que Amyus Crowe lhe inculcara durante suas caminhadasregulares pelos bosques nos arredores de Farnham era que, quanto mais sepudessesabersobredeterminadoambiente,maispossívelseriacontrolá-lo.Casose perdesse emuma oresta, amaioria das pessoas caria com fome ou sededentrodeumaouduashorasenãoteriaamenorideiadecomosairdali.GraçasaoSr.Crowe,porém,Sherlockagorasabiaquaisplantaspoderiacomerequaisdeveria evitar, sabia seguir rastros de animais para encontrar água, e tambémcomodescobrirparaqueladoficavaonorte.

Aopensaremtécnicasdesobrevivênciaemterrenosdesconhecidos,veio-lheàmente uma lembrança deNovaYork e de quando ele chegara lá,mais oumenos um ano antes. Na época, o menino cara impressionado com aquantidadedejornaisqueeramvendidosnasesquinas.Eleagoraseperguntava

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quantosjornaishaviaemLondres,esetodospublicavamasmesmasmatérias.Supunhaquenão—cadaumdeviaterestiloeenfoquepróprios.Seelequisessemesmo saber mais sobre o histórico e os detalhes daquele assassinato emEdimburgo, talvez fosse uma boa ideia comprar o maior número possível dejornais diferentes, recortar as matérias relevantes e compará-las, procurandodivergências e elementos mencionados por uma matéria mas ignorados poroutras.

O trem já estava a certa distância de Guildford, e Sherlock perdera aoportunidade de voltar à plataforma e comprar mais alguns jornais. Fez umaanotaçãomentalparase lembrardecomprá-losnaestaçãodeWaterlooassimquechegasselá.

Aoterminardelerojornal,SherlockrecortoucuidadosamenteareportagemsobreoassassinatoemEdimburgo,dobrou-aváriasvezeseaguardounobolso.Acomparaçãodematériasvariadasserianomínimoumexercíciointeressante.

Mattydormiaencolhidonoassento,comacabeçaapoiadanajanela.RufusStonetambémestavadeolhosfechados,mas,pelamaneiracomosuasmãossemexiam,estavaensaiandomentalmenteapartedeviolinodapartitura.

Sherlock olhou pela janela de novo, mas a paisagem rural que passavarapidamenteláforanãoointeressava.Eleabriusuamalaepegouumlivrosobremaquiagem para teatro — como fazer e como usá-la para produzir efeitosvariados.

Omeninomergulhounolivro,decorandoosdetalhesdecomoprepararpastademaquiagemeaplicá-laparaqueapessoa casseirreconhecívelamenosquefosse vista de perto. O livro também descrevia como a mudança da posturapodia fazer alguémparecermais alto oumais baixo. Sherlock se esqueceudotrem e da viagem, até que o vagão passou por um conjunto particularmentebarulhentodeagulhas,eentãoomeninoergueuosolhoseviuqueRufusStoneoobservava.

— Considerando uma carreira no teatro? — perguntou Stone, apontandoparaolivro.—Nãorecomendo,damesmamaneiraquenãorecomendoenfiaramãonabocadeumcachorroepuxaralínguadele.Paga-sepouco,trabalha-semuitoeasociedadenãovalorizaaquelesqueaentretêm.Faloporexperiênciaprópria...Jápasseimaistempodoquegostariadelembraremteatrosescurosmeapresentandoparaplateiaspequenasedesagradáveis.

— Não sei o que quero fazer quando crescer — respondeu Sherlock comfranqueza —, mas gosto da ideia de poder mudar minha aparência para queninguémmereconheça.

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—Parasersincero—confessouStone—,houveocasiõesemquefoivaliosopoderpassardespercebidoporumsenhoriofuriosoouumaex-namorada.

—Vocêentendedemaquiagemartística?—perguntouSherlock,intrigado.—Aprendialgumascoisasaolongodosanos,trabalhandoemteatros...ou,

para ser mais preciso, passando tempo nos camarins com atrizes jovens ebonitas.Etrabalhandoparaseuirmãotambém.Existemalgumassemelhançassurpreendentes entre atuaçãoe espionagem.—Ele sorriu,mas sem traçosdehumor.—Éclaroquemorrernopalco,diantedeumaplateiahostil,émuitomenosdolorosodoquemorrernobecodeumacidadeestranha,comumafacacravadaentreascostelas.

—Vocêpoderiameensinar?—pediuSherlock.Stonedeudeombros.—Possotentar.Masvocêvaiprecisardeumpoucodetalentoartísticobruto

emuitotreino...naverdade,maisoumenosamesmaproporçãonecessáriaparatocarviolinodireito.Digaoquejásabeevereioquepossoacrescentar.

StonepassouorestantedaviagemensinandoaSherlockalgumasdicassobreaartedamaquiagem.DeuvidaaosfatosinertesdolivrodeSherlock,contandohistórias divertidas de ocasiões emque vira bigodes falsos caíremdo rosto deatoresouviraamaquiagemdelessemancharcomosuordetalmodoqueelespareciam um bizarro animal listrado. Sherlock ria, mas ao mesmo tempoaprendia,eotrajetopareceucorreremuminstante.

Omenino já estava se acostumando com a estação deWaterloo.O lugar,comseusenormesarcosdeferroevitrais,era-lheagoraumambientefamiliar,assimcomoamultidãodegentevestidacomtodotipoderoupa,desdefraquespretosapaletóscompadrãoxadrezvermelhoeamarelo.

RufusStoneconduziuosmeninosparaforadaestação.—PrecisamoschegaràestaçãoKing’sCross—disseele.—Ficadooutro

ladodeLondres.Ostrensparaonortedopaíssaemdelá.Sherlock olhou para trás à procura dos americanos, mas, se eles haviam

continuadonotrem,estavamforadevista.Talveztivessem cadoemGuildfordparaperguntarsobreumamericanograndeeumameninaquehaviampassadoporaliumoudoisdiasantes.

Haviaumcabrioléesperandoemfrenteàestação, ignorandootrânsitoquelutava para passar. O condutor balançava a cabeça em negativa para todomundoquetentavachamá-loouabriraportadacabine.Sherlockpresumiuqueohomemesperavaalguémimportante,eestavaprestesapassardiretoquandoRufusStoneseaproximousemhesitareabriuaporta.Emvezdeexpulsá-loou

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gritarcomele,ocondutorpulouparaochãoepegouamaladeRufus,eentãoolhouparaSherlockeMattycomexpectativa,evidentementeprontoparapegarasmalasdelestambém.

Mycroftincentivaraoirmãoanuncapegaroprimeirocabrioléqueaparecesse— podia ser uma armadilha ou algum truque —, então a atitude de Stonesurpreendeu o menino. Mas o violinista estava tão con ante que Sherlockacabou deixando a mala no chão e entrou também no veículo. Matty fez omesmo.

Tudo cou claro quando Sherlock percebeu que se acomodava diante docorpanzildeMycroftHolmes.

—Ah,Sherlock—disseMycroft.—Bem-vindo.Porfavor, queàvontade.EojovemSr.Arnatt;talvezvocêpossaseacomodaraquiameulado.Acreditoquehajaespaço,sevocênãoseincomodaremseespremerpertodaporta.Peçoapenasparatercuidadocomminhacartola.

—VocêenviouumtelegramaparaMycroft—disseSherlockaRufusStone,emtomacusador,enquantoostrêssesentavam.

Omeninoouviuocondutorjogarasmalasnatraseiradacarruagem.Oviolinistaestavacomumaexpressãoimpassível.—Preciseifazerisso—respondeuele.—Trabalhoparaseuirmão,e,seele

descobrisse que eu deixei você ir aEdimburgo sem avisá-lo, seria um infernoparamim.

—Defato—con rmouMycroft.—Orgulho-medeterciênciadetudoqueacontece à minha volta. Se eu soubesse que meu irmão passou despercebidopelacidade,ficariaarrasado.

—AindavouaEdimburgo—disseSherlock,comfirmeza.Mycroftassentiu.— Indubitavelmente. — Ele ergueu a mão e bateu a bengala no teto da

carruagem.—King’sCross!—gritou.—Oquê?Comumsolavanco,acarruagemseafastoudacalçada.—VocêachaqueodesaparecimentodeAmyusCrowenãomeinteressa?—

Mycroftbalançouacabeça.—Alémdeseromaispróximoquetenhodeumamigopessoal,eleé tambémumhomemdehabilidadesexcepcionais,alguémporquem tenhoumprofundo respeitopro ssional. Sedesapareceude súbito,com certeza há algummotivo, e desejo saber qual é. A presença desses doisamericanostambéméperturbadora,vistoquenãosabemosseelessãoamigosou inimigos.Assim como você, Sherlock, encontro-me confuso, e acho esse

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estadodeespíritoparticularmentedoloroso.—Evocê?—perguntouSherlock.—Viráconosco?—Receioquemeusdiasdeviajante caramparatrás—respondeuMycroft.

— Nossa expedição à Rússia me convenceu de que é melhor para mimpermaneceremLondres,ondeestouconfortável,epermitirqueoutraspessoassaiam atrás de indícios e respostas. Mas farei minha parte: enquanto vocêprocuraoSr.Croweesua lha, farei investigaçõesarespeitodessesvisitantesamericanos.

Sherlock sentiu um aperto no coração. A decisão de Mycroft não osurpreendia,maseleteriasentidomuitomaisconfiançacomoirmãoaseulado.

—Ah—continuouMycroft—,quase esqueci.Parabénspor suadeduçãoquanto ao destino exato doSr.Crowe.Nãoposso criticar sua lógica, emborapossa criticar a decisão do Sr. Crowe de escolher uma cabeça de coelho.Certamentehaviaalgomenosofensivoaoalcance,ealgomenospassíveldeserroubadopor umpredador.—Elepassouoolhar pelo interior do cabriolé.—Você acha — murmurou, levando a conversa por uma tangente — que eupoderiamandarestofar,forrareacarpetarumacarruagemdemodoareproduzirminha sala? Ou o Diogenes Club? Assim eu poderia viajar com absolutoconfortosemomal-estarresultantedodeslocamento.

—Masquemlhetrariaasuaxícaradechádamanhãouoseuxerezdatarde?—perguntouRufusStone,sorrindo.

—Issopodeserprovidenciado—respondeuMycroft.—Ocabriolépoderiaparar diante de certos estabelecimentos em momentos predeterminados, paraque os garçons passassem as bandejas pela janela. Refeições inteiras mepoderiam ser entregues para que eu as consumisse em trânsito. Imagine otempoqueeupouparia!

— Se você pudesse comer e beber aqui dentro— comentou Sherlock—,cariatãogordoquejamaisconseguiriasairdenovo,oqueacabariaporanulara

vantagemde sepossuir aprópria carruagem.Você seriaumcaracoldentrodaconcha.

Mycroftassentiu.—Bemlembrado—reconheceuele.—SenãofoiparanosimpedirdeiraEdimburgo—interrompeuMatty—,

porquevocêtáaqui,Sr.Holmes?— Excelente pergunta, meu jovem, e que vai direto ao cerne da questão.

Estou aqui para vermeu irmãomais novo, é claro, pois não o vejo hámuitotempo,etambémparaavisaravocêstrêsparatomarcuidado.Suponhoquelhes

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tenha ocorrido que algo capaz de fazer Amyus Crowe fugir em vez de lutarprovavelmenteémaioremaisperigosodoqueimaginam.SempreconsidereioSr.Croweumhomemdestemido.Descobrirqueexistealgocapazdeassustá-loécomodescobrirqueooutroladodaLuaéinteiramenteoco,comoseosatélitefosseumavasilhaenãoumabolacomoaTerra.—Elesuspirou.—TambémsoulevadoaentenderqueEdimburgoéumacidadeexcepcionalmentesombriae violenta.Os próprios escoceses são uma raça celta, o que signi ca que seuestado de espírito tende a oscilar da depressão apática à raiva súbita. NãopensemqueaEscóciaserácomoFarnhamouLondres.Vocêsnãochegarãoatranspormares,apenasorioTyne,easpessoasfalarãoinglês,oualgopróximoaisso, porém vocês deverão tratar a Escócia como um país estrangeiro. —Mycroft estendeu um envelope. — Tomei a liberdade de providenciar ospreparativos para sua viagem.Aqui estão suas passagens e o endereço de umhotel com uma reserva em seu nome. Mantenham-me informado de suasdescobertas. Lamento dizer que não tenho agentes em Edimburgo, ou teriapedido a eles que procurassem Amyus Crowe e sua lha, e também queprotegessemvocêstrês.

—Obrigado—disseSherlock,pegandooenvelope.—Mycroft...—Sim,Sherlock?Omeninohesitouantesdefalar.—Achoquevocêprecisa saberqueaSra.Eglantinenão trabalhamaisna

casadetioSherrinfordetiaAnna.Mycroftfitouoirmãoporumbomtempo.— Não? — murmurou ele, en m. — Devo concluir que o repentino

infortúniodaquelamulherextraordinariamentedesagradáveltevealgoavercomvocê?

—Tevetudoavercomele—disseMatty,orgulhoso.—Ecomigotambém!— Você me contará essa história na volta. — Mycroft continuou tando

Sherlock. Havia uma expressão estranha em seus olhos, como se ele vissealguém muito familiar e ao mesmo tempo completamente desconhecido. —Vocêtemmeutalentoparaverasementeemvezdesóobservara or—disseele depois de alguns instantes —, mas também tem algo que me falta: umapreço pelas ores e uma aversão por ervas daninhas. Admiro-o, Sherlock.Admiro-oimensamente.

O menino desviou o olhar, sentindo um súbito nó na garganta. Ficouobservando os edifícios passarem pelas janelas do cabriolé até conseguircontrolarasemoções.

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—Escrevereiparanossamãe—anunciouMycroft,de repente.—Pedireiqueelaconvidenossostiosparapassaralgunsdiascomela.Jáhámuitoqueessadisputa familiar passou do ponto em que deveria ter sido esquecida. QuandonossopaivoltardaÍndia,queroqueissoestejasuperado.

—Nossamãeestá...bem?—perguntouSherlock,hesitante.Mycrofttensionouoslábiosdeformaquaseimperceptível.—Elatemdiasbonseruins,masacreditoqueestejaserecuperando.—EEmma?—Nossairmãestá...bom,elaestácomoestá—disseMycroft,misterioso.

—Digamosapenasassim.Acarruagemderepenteseaproximoudacalçadaeparou.Sherlockouviuo

condutordescendo.Uminstantedepois,aportaseabriu.—King’sCross—anunciouMycroft.—Sebemmelembrodoshorários,o

próximotremcomdestinoaEdimburgosairádentrodeumahora.—Obrigadopornosreceber—disseStone.—Epelaspassagensereservas

nohotel.—Cuidedemeuirmão—respondeuMycroft.EleencarouMattyeergueu

umasobrancelha.—E,senãose incomodar,cuidedesseaítambém.Acho-ocuriosamentedivertido,eéevidentequemeuirmãogostadele.

—Você é um sujeito engraçado—disseMatty, alegre.—Obrigado pelopasseio.

MycroftvoltouoolharparaSherlockeestendeuamão.—Enviem-meum telegramaquando lhes for conveniente—disse ele.—

EndereceaoDiogenesClub.Avisem-medoprogressodesuabusca.Etomemcuidado.Muitocuidado.Tenhoummaupressentimento,enãoacreditoquesetratedagotaquereceioestarcomeçandoadesenvolver.

Os três — Sherlock, Matty e Rufus Stone — saltaram da carruagem. Ocondutor fechou a porta e subiu com agilidade de volta em seu assento.SherlockouviuMycroftbaterabengalanotetoegritar,comavozabafada:

—ArcodoAlmirantado,meubomhomem!Eentãoocabrioléseafastoudaestação.—Agenteagoratáporcontaprópria—disseMatty.

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Capítulooito

AESTAÇÃODEKING’SCROSSeraidênticaàdeWaterloo—umvastoespaço,cheiodegenteesperandonopátioedepombosempoleiradosnasvigasdeferrofundidoquesustentavamotetodevidro—,sóquemenor.Fumaçapairavanoar,eocheiroacredecarvãoqueimadoeraconstante.Asparedesevigasestavamcobertasporumafinacamadadepoeiranegra.

Sherlock olhou em volta, imaginando se valeria a pena perguntar se emalgummomentonosúltimosdoisdiasalguémviraumhomemgrandedeternobrancoechapéuacompanhadoporumamenina.Nãoadiantarianadaperguntaràs pessoas que pegariam os trens — eram escassas as chances de que elastambém tivessem estado ali quando Amyus Crowe e Virginia passaram pelaestação —, mas ele talvez pudesse falar com os bilheteiros ou os guardas daestação. Ou, pensou Sherlock enquanto passeava o olhar pelas paredes dosaguãodeembarqueedesembarque,poderiafalarcomosmendigosebatedoresde carteira, que circulavam como fantasmas pela multidão, invisíveis eincógnitos até que se ouvissem gritos ocasionais como: “Já falei, nãotenhotrocado,emesmosetivessenãoodariaavocê!”e“Minhacarteira!Ondeestáminha carteira?”, que pontuavam seus movimentos. Sherlock descon ava deque mendigos e ladrões passassem dia e noite ali. Aquele era seu local detrabalhoetambémsuaresidência.

Omeninodesistiuantesmesmodeabordaroprimeiromendigoquevisseeofereceralgumasmoedasemtrocadeinformações.AmyusCrowejátentaralheexplicar sobre o problema de se tentar con rmar algo que já era conhecido.Sherlock tinha toda a certeza de que Crowe e Virginia haviam ido paraEdimburgo e passado pela estação de King’s Cross. Achar um mendigo quedissessequerealmenteviraumhomemgrandedeternobrancoechapéupassarpor ali com uma menina não afetaria essa certeza — seria apenas umainformação adicional. Por outro lado, ummendigo que dissesse que não viraninguém que correspondesse à descrição não signi caria que elesnão haviampassadoporali.Nãosepoderiaesperarqueummendigoselembrassedetodasas pessoas que vira no pátio da estação. “Ohomem sensato”, disseraCrowe,“não tenta con rmar o conhecimento que já possui; ele tenta refutá-lo.Encontrar indícios que comprovem suas teorias não é útil, mas encontrarindícios que as contrariem é inestimável. Nunca tente provar que você tem

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razão;emvezdisso,sempretenteprovarqueestáerrado.”Oproblemaeraque,nessecaso, seSherlocksupunhaqueAmyusCrowee

VirginiahaviampassadoporKing’sCross,aúnicamaneiradeprovarqueessateoria estava errada era descobrir que eles haviam passado por outro terminallondrino — e isso signi caria perder um dia inteiro conferindo Paddington,Euston,LiverpoolStreeteasoutrasestaçõesprincipais.Nãohaviatempoparaisso.

—Vocêparecepensativo—disseRufusStone, dando-lheum tapinhanoombro.

— Só estou analisando um problema — respondeu Sherlock. — EstavapensandosevaleriaapenaperguntarporaípeloSr.Crowe,masachoqueissoapenasnosconfundiria.

Oviolinistaassentiu,concordando.— Ainda que ele tenha comprado uma passagem aqui, não foi para

Edimburgo.Eleteriadespistadoseurastrodamesmamaneiraqueofezaosairde Farnham. — Stone olhou ao redor. — Ainda falta um pouco até o trempartir,emeuestômagoestáachandoqueminhagargantafoicortadasemquelhe avisassem. Vamos arranjar algo para comer antes de embarcarmos... Eupago.

Stone assim o fez. Achou um vendedor de castanhas não muito perto damultidão e comprou três saquinhos. Sherlock e ele precisaram assoprar ascastanhaspara esfriá-lasumpoucoantesde comer,mas agargantadeMattyparecia revestida de tijolos. O menino simplesmente engolia uma a uma,sorrindosemparar.

Depois de carem satisfeitos, Stone conduziu os meninos pelo pátio nadireção das plataformas. Ele apresentou as passagens ao guarda, e os trêsembarcaram. Em todos os aspectos em que Sherlock reparou, o trem eraidênticoaoqueostrouxeradeFarnham.

— Será uma viagem longa — disse Stone, sentando-se em umcompartimentopequeno.—Acomodem-se.Durmamumpouco, sepuderem.Existemduascoisasqueumhomemdeve fazersemprequepossível:dormirecomer. Nunca se sabe quando ele terá outra oportunidade para isso. — Ohomem olhou para Sherlock. — Eu devia ter trazido o violino. Poderíamoscontinuarnossasaulas.

—Nessecaso—disseMatty,comummurmúrioaltoosu cienteparaserouvido—,euteriapegadooutrotrem.

Rufusoencarou.

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—Imagino—respondeuele—queseugostomusicalseresumeaumameraflautinhadelatãobarataeumchocalhoqualquer.

— Não fale mal das autinhas. — Matty balançou a cabeça. — Dá paratocar muita coisa boa com uma autinha de latão. Com uma dessas e umchocalhojádáparadançar,eéparadançarqueamúsicaserve.—ElelançouumolhardedesafioparaStone.—Nãoé?

Stoneapenasbalançouacabeça,fingindotristeza,enãofalounada.— Na verdade — disse Sherlock —, eu queria conversar um pouco mais

sobreteatro...sobremaquiagem,disfarcesecoisasdotipo.Oviolinistaassentiu.—Eu cariamuitofelizdefalarmaissobreisso.Adoromelembrardeminha

épocanostablados, fazendo guraçãonofundodeumacena importanteparaalguma outra pessoa, ou dos tempos emque eu tocava no fosso da orquestraenquantoosatoresexibiamsuaartenopalco.—Eleergueuumasobrancelha,intrigado. — Você parece ter uma curiosidade muito grande pela arte e peloofíciodainterpretação.Possoperguntaromotivodisso?

Sherlock deu de ombros, pouco à vontade para falar sobre sonhos epreferências.

—Achointeressante—respondeu.Stonecontinuouencarando-o,comexpectativa,eSherlockacrescentou,mal-

humorado,paraquebrarosilêncio:—Se quermesmo saber, foi desde aquele café emMoscou.Eu estava lá,

sentadonomeiodeseteouoitopessoascomquemeuhaviapassadoosúltimostrêsdias,enãoosreconheci.Nenhumdeles.—Sherlocksentiuorostoardercomumaemoçãosúbitaquepareciaumamisturadesagradáveldevergonhaeraiva.Só ao dizer as palavras ele se deu conta do quanto aquele incidente o haviaincomodado.—Euachavaquefosseumbomobservador—comentouele.—AmyusCrowesempredizquetenhoolhoparapequenosdetalhes,eaindaassimelesmeenganaram.Elesmeenganaram!

—Eleserammelhoresquevocê—respondeuStonecalmamente.—Masissonãoémotivoparaseenvergonhar.Nãosouomelhorviolinistadomundo.Nuncasereiomelhorviolinistadomundo.Massoubomeestoumelhorando.

—Queroseromelhor—disseSherlock,baixinho.—Queroseromelhorviolinista, o melhor rastreador e o melhor em disfarces. Se não posso ser omelhor,entãodequeadiantatentar?

—Vocêvaisedecepcionarmuitocomavida,meuamigo.—Stonebalançouacabeça.—Muitomesmo.

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Houveumperíododesilênciotensonacabine,atéqueRufusStone,talvezparaamenizaroclima,começouacontarhistóriasdaépocaemquetrabalhavanoteatroededeterminadosatoresqueentravamtãobemnopersonagemquepareciammergulharaprópriapersonalidadenaatuação.

—Oproblema—disseStone—éque,sevocênãoacreditarqueéumvelho,uma mulher ou um mendigo, como pode esperar que outra pessoa acreditenisso? Enxergar o personagem é só ver a superfície; o verdadeiro disfarceconsisteemseropersonagem.

—Mascomoeufaçoisso?—perguntouSherlock.—Sevocêquer ngirqueestátriste,tenteselembrardealgummomentode

suavidaqueotenhafeitochorar.Seprecisaparecerfeliz,lembre-sedealgoqueo tenha feito rir. Se precisa ser um mendigo, lembre-se de quando estevefaminto,sujoecansado...sepuder.—Eledeuumsorrisomaroto.—Sequerngir que está apaixonado, pense no rosto de alguém importante para você.

Assim, seu rosto e seu corpo vão assumir a postura certa demaneira natural,sem que você tenha que exagerar para reproduzir o efeito. Ah, e sempreaproveiteadesatençãodaspessoas.

Sherlockfranziuocenho.—Comoassim?—Emgeral,aspessoasveemapenasoqueesperamver.Elasnãoexaminam

detalhadamentetodomundoqueencontramnarua.—Stonefechouosolhosporuminstanteepassouamãopelocabelo.—Comopossoexplicar?Écomoumpanodefundonoteatro.Sevocêquerqueaplateiaacreditequeapeçaéambientada na China, não vai passar semanas pintando um pano de fundodetalhado coma imagemdeumpalácio ouumpovoado chinês tão realista aponto de parecer que as pessoas estão vendo a paisagem verdadeira por umajanelaimensa.Vaitraçarapenasalgunsdetalhes,comoumtelhadocurvoouumbambuzal,edeixarqueamentedaplateiacompleteacena.Amenteéótimaparadecidirrapidamenteoquesevêderelance,combaseemalgunselementosquechamemaatenção,eentãopegaralgumaimagemdamemóriaecolocá-lanolugardoqueseestávendodefato.Sevocêquerparecerummendigo, nãovairecriarminuciosamente cada detalhe das roupas, do cabelo e do rosto de ummendigo. Issovai fazer você sedestacar.Concentre-se emalguns elementos-chave,eentãomisture-seaocenário.Entendeoquequerodizer?

—Achoquesim.Stonedeumaisalgunsexemplos, eosdois caramconversandoporalgum

tempo,masdepoisoassuntoseesgotoueSherlockcomeçouaolharpelajanela

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dacabine.Cidades iam e vinham, campos passavam muito rápido e aos poucos a

paisagem plana e uniforme que Sherlock associava ao sul da Inglaterra foidandolugaraumcenáriomaisrústicoedescuidado.Atéasvacascomeçaramaparecerdiferentes:peludas,marronsecomchifrescurvosna frentedacabeça,emvezdasmalhadasedepelocurtoqueeleconhecia.Otremcruzouumaouduaspontes sobre rios largos, eSherlock se lembroudapontedemadeiraemcavaletesqueelehaviaatravessadocomVirginiaeMattynosEstadosUnidos,quandofugiamdeDukeBalthassar.

Virginia.Sódepensarnonomedelaseucoraçãodavaumsalto.Sherlocknãopodianegarquetinhaalgumsentimentofortepelamenina,algoquenãosentiapormaisninguém,masnãoconseguiade niressesentimento.Nãosabiaoqueera,ouoquesignificava,eaintensidadeoassustava.Elenãoestavaacostumadoàideiadequemaisalguém zessepartedesuavida.Sempreforasolitário,tantona escola quanto em casa. Detestava sentir quedependia de alguém,mas eraissooquesentiaagora.NãoimaginavaumavidasemqueVirginiaestivesseneladealgumamaneira.

O tremparou emNewcastle para se reabastecer de carvão e água.Os trêsaproveitaram a oportunidade para esticar as pernas na plataforma e comprarmaisumlanche.Dessavezcomeramtortasdemaçã,cozidasapontode caremquentesfeitobrasas.Ovaporquesubiapareciaumaréplicaemminiaturadoquesaíadalocomotiva.

Depoisdealgum tempo,Sherlockvoltouà cabine, emboraainda faltassemalgunsminutosparaapartidadotrem.Nãotinhadisposiçãopara carandandoincessantementedeumladoparaooutrodaplataforma.Nuncase interessarapelaideiadeseexercitarsempropósito.Deixou-secairnoassentoestofadoesepôsaencararaparedeemfrente.Chegouàconclusãodequeviagensdetremeraminsuportavelmentetediosas.Viagenspormarerammaislongas,mashaviamais a ser visto,mais a se fazer.Navios dispunham de bibliotecas, salões dejogos,restaurantesetodasasatividadesinteressantesdavidaabordo.Trensnãotinhamnada.

Enquanto tavaaparede,contandoosminutosatédeixaremNewcastle,eleaos poucos se deu conta de que estava sendo observado. A conclusão não oalcançoupornenhumaformasobrenatural,nenhumformigamentonanucaoucalafrio na espinha. Foi algo mais simples e prosaico: uma mancha rosada evermelha, imóvel em sua visãoperiférica.Um rosto.Doisolhos azuis tavamSherlocksempiscar.

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Sherlock tentou captar o máximo possível de detalhes sem ter que virar orostoderepenteemostrarquehaviareparadonoseuobservador,masocorpodapessoaestavaparcialmenteocultoportrásdeumapilhadecaixotesemcimadeumcarrinhodecarga.

Depoisdeextrairoquepôdesemdeixaróbvioquehaviapercebidoapessoaqueoobservava,Sherlockdecidiuolharmelhor.Virando-sesubitamente,olhouparaadireita,bemnosolhosdeumhomemqueacreditoureconhecer.

Sentiuocoraçãovacilar.OsujeitoeraaimagemdoSr.Kyte,umhomemquelheforaapresentadoem

Whitechapel como gerente e ator de uma companhia teatral, mas quedemonstraraserumagentedaCâmaraParadol,envolvidoemumaconspiraçãoparaassassinarumconderussoamigodeMycroft.Ohomemeragrandecomoumurso,comumtóraxdotamanhoeformatodeumbarril,umajubaruivaquedesciaatéagoladacamisaeumavolumosabarbadamesmacor,cobrindo-lheopescoço e parte do tórax como uma cascata de ferrugem. Da última vez queSherlockviraoSr.Kyte,ohomemlutavadesesperadamentecomRufusStonedentrodeumacarruagememumaruadeMoscou.Eleescapara,eRufus caraensanguentado,furiosoecomdesejodevingança.

SherlockselembroudequeapelenabochechaeemtornodosolhosdoSr.Kyteeracheiadecentenasdepequenosarranhões.Naépoca,omeninoacharaquepareciamestranhos cortes feitos ao se barbear,mas em lugares ondenãocostuma crescer barba. Apesar do vidro manchado da janela que separava osdois,Sherlockagoraestavapertoobastanteparaveroscortes.Nãohaviadúvida—eraoSr.Kyte.

O homem o encarou por um bom tempo. Não sorriu, assentiu nem fezqualquersinaldequeperceberaqueforavisto.Algunssegundosdepois,recuoulentamenteparadentrodasombradeumaestruturanomeiodaplataforma—algumdepósito.OcoraçãodeSherlockestavaamil,eoarparecia toparcomalgumobstáculonopeitosemprequeeletentavarespirar.

EleprecisavaavisarRufusStone!PrecisavacontarparaMycroft!Nãosabiasea presença do Sr. Kyte indicava que a Câmara Paradol estava envolvida nodesaparecimentodeAmyusCrowe,seelesestavamseguindoSherlockporqueoresponsabilizavam pelo fracasso de seus planos, ou se era tudo uma grandecoincidência,masofatoeraqueoSr.Kyteestavaali,observando-o, observando-os,eissosigni cavaqueasituaçãohaviamudado.Jánãoeraamesmadeapenasdezminutosantes.

Ogritodeumapitoavaporoarrancoudeseuspensamentos.Otremestava

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prestesasair.PercebendoquenemMattynemRufusStonehaviamvoltado,omeninofezmençãodeselevantar.Porém,nessemomento,aportadacabineseabriueMattyentrou.Seguravaumbolinhodecarne.

— Qual é o problema? — perguntou Matty. — Parece que você viu umfantasma.

—Quaseisso.OndeestáRufus?Mattyfranziuocenho.—Acheiqueelejátivessevoltado.Tavaumpouquinhonaminhafrente.—

Elejogouobolinhoparacimaevoltouapegá-lo.—Viummontedestesemuma barraca fora da estação.O cara que tava vendendo se distraiu com umamulherquepassava.Foiotempodeeusurrupiarum.

—Mas...—começouSherlock,eentãoseinterrompeu.Não era hora de conversar. Ele passou por Matty e saiu da cabine para o

corredorqueseguiaaolongodovagão.Emcadaextremidadehaviaumaportaparaaplataforma.Sherlockcorreuatéamaispróximaeolhoupelajanela.

Emtodaaplataforma,passageirosvoltavamabordo,masnãohaviasinaldeRufusStone.

Oapitodotremsooumaisumavez.Empoucosinstantesrestavaapenasoguardadaestaçãonaplataforma,olhandodeumladoparaooutroaolongodotrem,esperandoparaagitarabandeira.

Sherlockolhoudaesquerdaparaadireita.RufusStonenãoestavaàvista.Omeninoqueriasaltardovagãoeprocuraroamigo,masotremsairiaaqualquermomento.EseRufustivesseapenasentradoporoutraportaeagoraestivesseandando pelo trem? Se fosse esse o caso e Sherlock saísse,ele seria odesaparecido. Esquecido em uma estação na qual a Câmara Paradol oobservava.

Mas e se a Câmara Paradol tivesse capturado Rufus Stone? Com certezahaviaassuntospendentesentreStoneeoSr.Kyte.

Comumsolavanco,otremcomeçouasemexer.Alocomotivaseafastoudaplataforma, puxandoos vagões.Empouco tempo a estação se distanciou e otremsaíadacidaderumoaocampo.

Sherlockvoltouàcabine,mas couparadonocorredor,olhandodeumladopara o outro, torcendo para que Rufus Stone aparecesse, andandotranquilamente com aquele seu jeito insuportável. Depois de cinco minutos,Sherlock precisou reconhecer que Stone não apareceria. Ele ainda estava naestaçãodeNewcastle,provavelmentenasmãosdaCâmaraParadol.

—Eentão?—perguntouMattyquandoSherlockvoltouparaacabine.Suas

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pernasestavamcheiasdefarelo.—CadêoSr.Stone?—Achoqueele couparatrás—respondeuSherlock,comumaexpressão

grave.—Oqueaconteceu?Eletopoucomalgumagarota?Sefoiisso,ébemacara

dele.Aquelelánãopodeverumrabodesaia.Sherlockbalançouacabeça.—Não,achoqueeletopoucomaCâmaraParadol.Mattycontorceuorosto,semacreditar.—Comoassim,aspessoasparaquemaquelebarãofrancêstrabalhava?—E que incriminaram Mycroft de assassinato e tentaram matar o amigo

deleemMoscou.—Oqueelestavamfazendonaestação?—Devemternosseguido—respondeuSherlock.Elesesentia impotente,

sem a menor ideia do que fazer. — Não temos como saber. Só podemosespecular,eaespeculaçãoépiordoqueafaltadeinformação,porquenoslevanadireçãoerrada.

—Entãooqueagentefaz?Depoisdepensarporuminstante,Sherlockrespondeu:—VamosseguirparaEdimburgo.Seumguardadotremaparecer,podemos

dizerquenossoamigo couemNewcastleequeestamospreocupadoscomapossibilidade de ele ter sofrido um acidente. Quando chegarmos à Escócia,iremos para o hotel que Mycroft providenciou para nós. Se Rufus conseguirescapar da Câmara Paradol ou de quem quer que o tenha capturado, ou sehouveralgummotivoinocentequeexpliqueporqueperdeuotrem,elesabequeestaremoslá.

Sherlockseacomodoumelhornoassento,cruzandoosbraçoseapoiandooqueixo no peito. Matty encarou-o por um instante, depois se virou e couolhandopela janela.Apesarde estar comoamigo,Sherlocknunca se sentiratãodesesperadamentesozinho.

—Agentepoderiavoltarparacasa—disseMattydepoisdeumtempo,emvozbaixa.

AideiajáhaviaocorridoaSherlock,maselearejeitara.— Poderíamos — respondeu ele —, mas isso não ajudaria o Sr. Crowe,

Virginia nem Rufus. Além do mais, a Câmara Paradol sabe onde moramos.Nossamelhor opção énos escondermos emEdimburgo até resolvermos todaessaconfusão.Esperarapoeirabaixar.

—ComoVirginiaeoSr.Crowe—disseMatty.—Elestambémescaparam

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eseesconderam.—Eusei.—SherlocknãoolhouparaMatty.—Eusei.Maseuqueriasaber

por quê.Nem imaginooquepoderia assustaroSr.Crowe apontode fazê-lofugiremvezdeficaresedefender.

Em algum momento, o trem passou da Inglaterra para a Escócia, masSherlocknãoviusehaviaumsinalparaindicarafronteira.

As estaçõespassarama se suceder comuma frequênciamaior, e osnomespareciam diferentes dos que havia nas placas das plataformas inglesas. Apaisagemeramais acidentada e selvagem—colinas irregulares e escuras, emvezdemontessuaves.Atéocéupareciamaisencoberto.

Depoisdealgumtempo,umcobradorapareceu,eSherlockexplicouqueseuamigonãohaviavoltadoaotrem.Ohomem coubastanteirritadoedissequefalaria com o chefe da estação seguinte para ver se haviam recebido algumamensagemouseseriapossívelenviaralgumaaNewcastle.Sherlocksabiaqueissonãoseriasu cienteequeeratardedemais.Di cilmenteproduziriaalgumresultado.

Otempopareceusearrastar.Ocobradorvoltoumaistardeparadizerquenãohavia notícias de Rufus Stone, e Sherlock cou ainda mais soturno. Poucodepois, olhando pela janela, ele percebeu que o trem passava por umaconcentração maior de casas. Não eram feitas de tijolos, mas de pedaçosgrandesdepedracinzenta.Tinhamumaspectosevero,permanente.Osol,queestavapróximoaohorizonte, lançavasobreasconstruçõesumaluzalaranjada.Otremcomeçoua reduziravelocidadeatépor mparar,comumchiado,aolongo de uma plataforma que parecia ter quilômetros de comprimento. AsplacasnaplataformadiziamEdimburgo.

—Chegamos—disseMatty.Eles saíram do trem segurando suas malas. Levaram a de Rufus também.

Sherlock puxou Matty para um canto e parou. Queria observar enquanto osoutrospassageirossaíam,sóparaversereconheceriaalguém—comooSr.Kyteou,quemsabe,RufusStone.

A estação era uma massa fervilhante de gente vestida com uma enormevariedade de roupas, como cartolas, paletós felpudos de tweed e calçasremendadas.Haviaatémesmo—eSherlockprecisoureprimirumaexclamaçãoaovertalcoisa—homensdesaia.

Mattyreparounareaçãodoamigo.—É—disseele—,medesculpe...achoqueeudeviatercomentadoantes.

Tambémfiqueisurpresoquandovimaquialgunsanosatrás.

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—Homensdesaia?Bom,talvezvocêtenhaachadoqueeunãoperceberia.—Nãosãosaias—respondeuMattycomfirmeza.—Sãokilts.—Kilts—repetiuSherlock,experimentandoapalavradesconhecida.—Sãoumaroupatradicionalusadapelosclãsescoceses.—Matty fungou.

— Pelo que eu sei, “clã” é uma palavra chique para família. En m, os clãscostumavam estar sempre em guerra uns com os outros, até que todosresolveramsejuntareodiarosingleses,eaparentementeeramaisfácillutardekilt.Oualgoassim.Dequalquermodo,elessãopintadosdecoresdiferentesdeacordocomafamíliaaqueapessoapertence.

—Presumo—disseSherlock—quefosseparatercertezadequeapessoaestálutandocomumhomemdeoutroclãenãocomumprimodeterceirograu.

—Deveser—respondeuMatty.Sherlock arquivou a informação no cérebro. Kilts de cores diferentes para

famíliasdiferentes—issomereciamaisestudo.EmLondres,àsvezesaúnicamaneiradesedescobrironomedealguémnaruaeraperguntando,mas,seemEdimburgo dava para ver um homem e saber no mesmo instante que ele sechamavaMacDonald,bom,issopoderiaserútil.

—Maisalgumacoisaqueeudevasaber?—perguntouele.—Aquelabolsinhapenduradanafrentedokiltchama-se“sporran”eéusada

para guardar coisas pequenas, comodinheiro.Ah, e se um escocês estiver dekilt,ébemcapazquetenhaumaadagaenfiadanameia.

—Entendi.Obrigado.Sherlock continuou olhando em volta, e escutando. Havia muita gente

conversando perto deles, mas as palavras eram pronunciadas com sotaque,difíceisdeentender.Claro,Sherlockestavaacostumadocomsotaqueslocais—as pessoas em Farnham falavam de um jeito diferente das de Londres, e osvários americanos que ele conhecera falavam de forma diferente de qualquerpessoa da Inglaterra —, mas não imaginara que em um lugar relativamentepróximodeLondreshouvesseumsotaque tãocarregadoapontode serquaseincompreensível.ComMattyesperandoaseu lado,paciente,Sherlockpassoumais ou menos um minuto prestando atenção, analisando as conversas daspessoas à sua volta, até entender o básico. Quando seus ouvidos caramhabituados, o sotaque pareceu se misturar ao ambiente, permitindo que aspalavrassedestacassem.

—Certo—disseogarotodepoisqueosúltimospassageirospassarampelasportas da estação, deixando a plataforma sem ninguém —, acho que já meadaptei.Vamosdescobrirondeficaohotel.

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Eles saíram e pegaram o segundo cabriolé que viram. O condutor pareciaindecisoquantoaoriscodelevardoisgarotosdesacompanhados,masSherlocktirou um punhado de moedas do bolso e o homem assentiu. Desde que osgarotospudessempagar,elenãoseimportavacomaidadedosdois.

Sherlock jáhaviaolhadooque tinhadentrodoenvelopequeMycroft lhesdera,entãogritouparaocondutoronomedohotel.

Otrajetolevouunsvinteminutos;passaramporconjuntosdealtosedifíciosgeminadostambémfeitosdeblocosdepedracinzentaeporgrandesgaleriasemansões cercadas por gramados enormes e cercas demetal. Vendo de perto,Sherlockpercebeuqueapedracinzentatinhatraçosdeoutrascores—laranja,amarelo,azul,verde—equeatémuitaspedrasdefatocinzentaseramriscadascomtonsmaisescuros.

O cabriolé passou ao longodeumparque, viroude repente à esquerda e àdireitaeentrouemumaavenidalargacheiadelojasehotéis.Eracomparávelatudo que Sherlock havia visto em Londres, Nova York e Moscou. Ele jápercebiaqueEdimburgoeraumacidadeantigaeimponente.

O veículo virou de repente à direita e parou. Enquanto Sherlock e Mattysaíam, o condutor tirou asmalas deles do compartimento às suas costas e asjogouno chão.Obviamente achava que não deveria descer da carruagemporcausade crianças.Sherlock resistiu à tentaçãode jogarodinheiro aospésdocondutor.Emvezdisso,estendeuamãoatéumpoucoabaixodoalcancedele,demodoqueohomemtevequeseinclinardeformadesajeitadaparapegar.

Eleshaviamparadodiantedeumaltoedifíciogeminado;aplacadizia“HotelFrazer”. O cabriolé se afastou e fez uma curva, voltando para a avenidaprincipal,epartedocérebrodeSherlockpercebeuqueelesestavamnoaltodeumaclive.Orestantede seucérebroestavaocupadoadmirandoocasteloqueapareceuquandoocabrioléfoiembora:eraenormeesombrio,masofatodeserconstruídoemumacolinaparcialmenteimersaemnévoasfazia-oparecerumagigantescanuvemdetempestadepairandoacimadacidade.

—Eagora?—perguntouMatty.SherlocksentiuograndepesodaausênciadeRufusStone.Semoviolinista,

ele estava vulnerável, inseguro.Dois garotos sozinhos emEdimburgo.Oquepoderiamfazer?

—Nãosei—respondeuele.

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Capítulonove

DEPOISDEDEIXARASMALASnoquarto,SherlockeMattydesceramaescadariadohotelesaíramparaacidade.Osolhaviasumidonohorizonte,eaescuridãoda noite foi enfeitada pela iluminação de lâmpadas a gás e por tochas acesasinstaladas em suportes nos edifícios de pedra. As ruas já estavam cheias degente indo de taverna em taverna, aparentemente buscando um lugar ondepudessemsedivertirmaisdoqueondeestavam.Fazendoopossívelparaevitartumulto, os dois encontraram uma taverna relativamente civilizada, ondepuderam se sentar em um canto, comer uma torta de presunto defumado ebeberumacervejaaguadaqueotaverneiropareceunãose incomodaremlhesservir.Porém,quandoSherlockpediuumajarradeágua,ohomemsóoencaroucomdesgostoefezumacareta.

De quando em quando, alguém tentava se sentar ao lado deles e puxarassunto.Àsvezeseraumamulherusandomaismaquiagemqueonecessárioeroupas que pareciam não ser lavadas havia algum tempo, mas em geral eraalgum homem com barba por fazer, usando um terno manchado oususpensórioscomumacamisacinzentasemgola.Mattysemprediziaamesmacoisa—“Nossopaivaichegarlogo,eelenãovaigostardevervocêaqui”—,erapidamenteapessoa iaemboraresmungandoumpedidodedesculpasouumpalavrão.Quando isso aconteceu pela primeira vez, Sherlock apenas ignorou,masdepoisdaterceiravezeleencarouMattycomumaexpressãointrigada.Omeninoevitouseuolhar.

—Temmuitagenteestranhaporaí—murmurouele.—Qualquerquesejaacidade,alguémsemprevaitentarfazeramizadesevocêforumgarotoeestiversozinho.Vocêlogoaprendeanãosemetercomnenhumadessaspessoas.

Sherlocknãoperguntoumaisnada.EraóbvioqueMattynãoqueriaentraremdetalhes,maseleficounovamentefelizporestarjuntodoamigo.

Passaramalgum tempodiscutindooque fariamemrelaçãoaRufusStone.Estava claro que os dois haviam alimentado uma esperança secreta de que oencontrariamnohotel,ouque,pelomenos,receberiamalgumamensagemdele.Ofatodequenãohavianadaosincomodaramaisdoquegostariamdeadmitir.

— Poderíamos avisar à polícia — sugeriu Matty. — Dar Rufus comodesaparecido.

—Oproblemaéquenãosabemosrealmenteoqueaconteceucomele,então

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apolícianãopoderáfazermuitacoisa.Nãoovimossersequestrado.Vãodizerque ele só perdeu o trem e que vai aparecer amanhã. Ou pior: vão carpreocupados ao saber que há dois garotos sozinho em Edimburgo. Vão nosdeixar com um guardião ou nos mandar para a casa de algum lantropo atéRufuschegar.Eissonãopodeacontecerdejeitonenhum.

Mattyassentiu.—Entendo.Maseoseuirmão?Poderíamosmandarumtelegramaparaele,

contandooqueaconteceu.—E em uma hora ele enviaria em resposta um telegrama mandando-nos

voltaraLondresatéeledescobriroquehouvecomRufus.Seele zesseisso,eunãopoderia desobedecer... já tentei antes, e nuncadá certo.Não, precisamosficaraqui.Émelhornãocontarmosparaninguémoqueaconteceu.

— O que você acha que aconteceu com Rufus? — perguntou Matty,baixinho,semolharparaSherlock.

Sherlocksuspirou.Vinhatentandonãopensarmuitonoassunto.— Não sei. Talvez aqueles americanos o tenham pegado e estejam

interrogando-o.ConsiderandoqueRufusnãosabenadaqueelesjánãosaibam,provavelmentevãosoltá-lo.

Ou matá-lo, pensou Sherlock, mas não expressou esse medo em palavras.EmboraMattytivesseotipodeconhecimentodasruasqueelenuncateria,eramaisnovoeprecisavaserprotegidodecertascoisas.

—ElesabesobreEdimburgo—comentouMatty.— Se eles estavam no trem conosco, também sabem sobre Edimburgo.

Descon oqueissonãosejamaissegredo.—Sherlockhesitouporuminstante.—Poroutrolado,seforaCâmaraParadol,entãonãoseioquequeremcomele.

Sherlockpercebeuqueaconversahaviaminadoseuapetite.Pensarnoquepodia estar acontecendo a Rufus enquanto eles relaxavam em uma tavernaconfortávelecomiambemfezseuestômagorevirar.

— Não quero deixar você preocupado — sussurrou Matty depois de umtempo—,masjáviuaquelecaraali?—Eleindicoucomacabeçaaparededooutroladodataverna.—Sentadosozinho.

Sherlock tentou olhar disfarçadamente. Ficou preocupado, achando quetalvezMatty tivessevistooSr.Kyte,masdeuumsuspirodealívioaoverumsujeitomagrodesconhecidosentadosozinhoaumamesa.Porém,noinstanteseguinte, começou a se sentir inquieto. Não havia qualquer sinal de que ohomemestivesse interessadoneles dois,mas ele tinha algo de estranho, algoqueSherlocknãoconseguiude nir.Paracomeçar,ohomemera extremamente

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magro, como se tivesse passado semanas sem comer, e sua pele era quasetranslúcida de tão pálida. Os olhos do homem não podiam ser vistos sob asombradascavidadesoculares,eosossosdafaceedoqueixoseprojetavamsobumapeleesticadade tal formaqueSherlockachouqueo rosto fosse racharaqualquermomento.Suasroupastambémeramestranhas:pareciamumdiatersidoaspeçasmaiselegantesdosujeito,masagoraestavamcobertasdesujeira,ehavia uma mancha verde nos ombros e nas mangas do casaco. Ele estavaolhando para a frente, mas não parecia observar nada especí co. Não havianinguémsentadopertodele,e,emboraosujeitonãotivessenenhumabebidanamesa,otaverneironãopareciadispostoaseaproximarparaanotarumpedidoouexpulsá-lo.Ohomemestavaapenasalisentado,semfazernada.

Atavernaencheu,edepoisdeumtempoSherlockeMattynãoconseguirammais ver o estranho homem pálido. Os dois terminaram de comer e seprepararam para ir embora. Quando se levantaram, abriu-se uma brecha namultidão. Sherlock olhou na direção da mesa distante. O sujeito não estavamaislá.

— Já ouviu falar dos ressurreicionistas? — perguntou Matty ao saírem dataverna.

Elepareciatenso.—Nãoreconheçootermo—respondeuSherlock.—EramunscaraschamadosBurkeeHare.Oprimeironomedosdoisera

William.Eleseramfamososporestasbandasháalgunsanos.Ouvifalardelesquandomeupai tavatrabalhandoaqui.Eumelembreidelesquandoviaquelecara lá. Muitos médicos vinham a Edimburgo para estudar, por causa daEdinburghMedicalCollege,mas eles tinhamumproblema: comoéque iamaprendersobreocorpohumanosenãotinhamnenhummortoparaexaminar,abrir,verondeficavamtodososórgãoseondeficavaosangue?

—Acheiqueasfaculdadesdemedicinapudessemusarocorpodecriminososexecutados—disseSherlock,franzindoocenho.

—Na teoria, sim— respondeuMatty—,mas a quantidade de cadáveresdisponíveis era sempre menor que a de estudantes de medicina querendoexaminar algum.Eaquantidadede crimesque levavamalguémà forca tinhadiminuídomuito,entãohaviamuitomenoscorposparaseusar.Sessentaanosantes,umapessoapodiaserenforcadapormileummotivosdiferentes.Depois,passaramaserbempoucos.Entãoafaculdadesórecebiaunsdoiscadáveresporano.EfoiaíqueentraramBurkeeHare.

— Acho que já sei aonde isso vai chegar — disse Sherlock, baixinho,

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sentindo um arrepio na espinha. — Eles pegavam corpos nos cemitérios evendiam,nãoé?

Mattyoencarou.—Nãoexatamente—disseele—,masrealmenteissoaconteciamuito.As

pessoaschamavamissode“roubodecadáveres”.Eratãocomumqueotúmulode um morto recente costumava ser vigiado por amigos e parentes para queninguémoviolasse.Osmaisricosmandavamconstruirumajaulaemvoltadotúmulodosparentes.Antesdeperceberemoquetavaacontecendo,aspessoasiamvisitaralgumentequeridoeviamqueotúmulotinhasidoremexido,comoseapessoativessevoltadoàvidaesearrastadoparaforaporcontaprópria.—Matty e Sherlock abriam caminho pelas ruas movimentadas em direção aohotel.—Claro,quandoaspessoasdescobriram,osladrõesdecadáverestiveramque mudar de tática. Eram bastante criativos, esses ladrões. Usavam pás demadeira,porquefaziammenosbarulhoqueasdemetal,ecavavamnadiagonalpara não deixar sinais em cima dos túmulos. Aí eles chegavam a uma dasextremidades do caixão, quebravam a madeira e puxavam o corpo com umacorda.

—Certo,mas vocêdissequeesses taisBurke eHarenãoeram ladrõesdecadáveres.Oqueelesfaziam,então?

—Paracomeçar,eleseramirlandeses—respondeuMatty.—VieramparaEdimburgo trabalhar na construção do canal Union. Burke acabou sehospedandonapensãodamulherdeHare.Elesseencontravamparabeber,euma noite começaram a conversar sobre formas de conseguir dinheiro. Umdeles sugeriuquepodiam roubaro corpode alguémquehouvessemorridodecausasnaturaisnacidadeequenãotivesseparentes,evenderparaalguémdafaculdadeusaremaulasdeanatomiahumana.Poucotempodepoisumhóspedevelhodapensão,quedeviaquatropratasaHare,morreudecausasnaturais.Osdois encheramde cascade árvoreo caixãoque ia ser sepultadoe venderamocadáverparaumtaldeDr.Knoxaquidacidade,porsetepratas.

—Quantainiciativa—comentouSherlock,comcinismo.— O problema era que não tinha gente su ciente morrendo de causas

naturais,entãoelesdecidiramdarumaajudinhanoprocesso.Aprimeirapessoaque eles mataram foi um moleiro da região. Embebedaram-no de uísque edepois o sufocaram. A segunda foi outro hóspede da pensão, uma mulherchamadaAbigailSimpson.Depoisdisso...—Mattydeudeombros.—Bom,elesforamemfrente.ODr.Knoxpagavaumbomdinheiroparacadacorpoqueeles entregavam, enão faziaperguntas... dezpratas seo cadáver estivesse em

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boas condições, oito se tinha algum problema. Eles preferiam mulheres ecrianças,claro,porqueeramaisfácildominaresufocar.

Sherlockcomeçouasesentirmal.Oqueoperturbavaeraamaneiracasualcom que Burke e Hare faziam aquilo. Os assassinatos não eram crimespassionais nem incidentes espontâneos “do calor do momento” — eram, naprática, uma série de decisões comerciais.Decisões comerciais que envolviammatargente.

— Quantas pessoas eles acabaram matando? — perguntou Sherlock,baixinho;estavamvirandoumaesquinaesedirigindoàentradadohotel.

—Omaisprováveléquetenhamsidodezessete—respondeuMatty—,aolongodeumano.

—Eninguémsuspeitou?Querdizer,omédicoquecompravaos cadáveresdeve terpercebidoqueaquelesnãoeramcriminosos executados.A forca comcertezadeixaumamarcavisívelnopescoço,eaquelescadáveresnãodeviamternenhuma.

—ODr.Knox?É,elesabiasim,masBurkedepoisjurouquenão.Ocarasónão queria interromper o fornecimento de corpos. Ele tava ganhando areputaçãodeseromelhorprofessordeanatomiadaregião,emuitosestudantesqueriam ter aula comele epagavambempeloprivilégio.Elenãoqueria abrirmãodisso.—Mattybufou.—DizemqueumadasvítimasdeHareeBurke,umhomemchamado JamieMaluco, era conhecidona cidade.QuandooDr.Knox mostrou o corpo no auditório, para a aula, alguns estudantes oreconheceram. O médico disse que devia ser outra pessoa, mas começou adissecaçãopelorosto,paradeixarocorpoirreconhecívellogodeumavez.

— Como isso tudo terminou? — perguntou Sherlock, abrindo a porta dohotel.—Suponhoqueeles tenhamsidodescobertos,casocontráriovocênãosaberiatudoisso.

— Burke e Hare mataram uma mulher chamada Marjory Docherty napensão, mas não conseguiram se livrar logo do corpo, então o esconderamdebaixo de uma cama. Havia algumas pessoas no local, e elas caramdescon adas. Quando Burke saiu, elas foram ao quarto dele e acharam amulher. Aí, chamaram a polícia. Burke e Hare tiraram o cadáver da pensãoantesqueapolíciachegasse,maslevaramparaacasadoDr.Knox,ondedepoisa polícia o descobriu. Hare aceitou testemunhar contra Burke em troca deimunidade. Burke foi condenado à forca, e o corpo dele foi dissecado empúbliconaEdinburghMedicalCollege...tudodeacordocomalei,claro.

—EoqueaconteceucomHare?

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—Desapareceu.Ninguémnuncamaisouviufalardele.—Entãoeleaindapodeestarnacidade?Mattyassentiuenquantoabriaaportadoquarto.—Podeatéser,masémaisprovávelqueeletenhavoltadoparaaIrlanda.

***

Na manhã seguinte, ainda não havia notícias de Rufus Stone. Deprimidos,SherlockeMattycomerammingaudeaveianocafédamanhã,queforaservidosilenciosamente por uma criada silenciosa. O mingau estava tão grosso quepoderia ser cortado com uma faca, e tinha gosto de lavagem, mas eles oacharamincrivelmentesaborosoesatisfatório.

—Qualéoplano?—perguntouMatty.—Vouprocurarumalivrariaoubiblioteca—disseSherlock.—Precisode

ummapadacidade,etenhoqueaprendermaissobreolugar.Sintoqueestouperdido aqui, não consigo me orientar. Que tal se você for aos lugares queconheciaeversealguémselembradevocêepodenosajudar?Vamosprecisardetodaaajudapossível.—Ele couemsilêncioporuminstante,pensando.—Aqueleparque,maisacimanaruadohotel...vamosnosencontrarnosportõesaomeio-dia.

—Nãotenhorelógio—comentouMatty.—Entãopergunteashorasaalguém.Quandoterminaramomingau,osdoissedespediramesaíramàrua.Sherlock encontrou uma biblioteca na avenida principal, próximo dali. O

cheiro seco dos livros lá dentro era acolhedor e fez Sherlock se lembrar dabibliotecadetioSherrinford.Omeninosempresesentiaàvontadeemmeioalivros.ElefoiparaaseçãodedicadaàEscócia,pegouumabraçadadevolumesdaestanteesesentouaumamesaparaler.

Apósumahora,Sherlocktinhaumanoçãomuitomelhordageogra aedahistória de Edimburgo e de sua relação com a história geral da Escócia.Descobriu que a cidadehavia sido construída em cimade sete colinas, o quetalvezexplicasseofatodequetodasasruaspareciamladeiras.

Depoisdealgumtempo,aspequenas letraspretasqueSherlock tentava lercomeçaramasemisturar.Eleafastouolivroefechouosolhosporuminstante.Oproblema,concluiu,eraqueas informaçõesqueelequerianãoestavamem

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livrosde referência.AondeaspessoasdeEdimburgo iamquando tinhamquefugir?Oquefaziamparaseescondersehouvessealguémprocurandoporelas?Quem era o mandante da comunidade criminosa da cidade? Essa pessoapreferiria ajudar alguém que estivesse sendo perseguido ou os perseguidores?EssetipodecoisaMattyteriamaischancededescobrircomseuscontatos,masa informação acabaria se perdendo se não fosse registrada e atualizada detempos em tempos. Sherlock concluiu que precisava anotar todos os fatos edetalhes que ele eMatty descobrissempelo caminho. Se pudessemanter umchamentodessas informações,eletalvezpudesseconsultá-lasnovamenteem

outraocasião.Umpensamentosúbitoeperturbadorlheocorreu,fazendo-oestremecer.Não

haviamuitadiferençaentreoqueeleestavasepropondoa fazereoqueJoshHarkness zera: reunir e guardar informações sobre atividades suspeitas ouilegais.AúnicadistinçãoeraofatodequeSherlocknãousariaissoparaobterlucro.

O menino conferiu o relógio que pendia de uma corrente em seu colete.Onzeemeia.HoradecomeçarairaoencontrodeMatty.

Enquanto recolocava os livros nas estantes, Sherlock percebeu que haviamapasdeEdimburgoàvendaporseispencenobalcãodabiblioteca.Comprouum,voltouparaamesaondeestavalendoeoabriu.Deuumaolhadarápidanosdetalhes: o formato da cidade e os sentidos das vias principais. Localizou aprincipallinhaférreaquevinhadeLondresetraçouarotaqueocabrioléhaviapercorrido.ElestinhamseguidoporumaruachamadaPrinces—claramenteaprincipalviaquecruzavaacidade.Comisso,Sherlockpôdeidenti carondeohotelficavaeondeelepróprioestavanaquelemomento.

Eledobrouomapaeseguiuparaoparque.Sentia-semaiscon antedequeagoraconseguiriaseorientar.

O sol brilhava acima das nuvens, lançando feixes diagonais de luz pelaextensãosalpicadadeazulecinza,comosefossemvigasdesustentaçãodocéuinteiro. Sherlock percorreu aPrinces Street, vendopartes do castelo cada vezqueolhavapelas ruas transversais ao longodo caminho.A construção jánãopareciaumanuvemmaciçaecinzentasobreacidade,mashaviaalgonelaquedesa ava a geometria e a perspectiva. Era como se não fosse possível quehouvesseocasteloláemcimaenquantoacidadeestavaaliembaixo.

Ao passar por um determinado beco, Sherlock ouviu algo se agitando nassombras. Parou, intrigado, e olhou para o lado. Não tentou se aproximar dobeco—seriaumaestupidez—,mas,sealguémoseguia,elequeriasaberquem

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era.Porummomentoviuapenasumaáreadesombras,comosefosseescuridão

líquida,ondeosoljamaispenetraria,masdepoisdealgumtemposeusolhossehabituaramaocontrasteeelepercebeualgoquepareciaestar utuando,comoumbalãobranco.Océrebrodomeninoprecisouseconcentrarporuminstanteatéentenderoqueestavaencarando:orostodealguémtodovestidodepretoeparadonobeco,olhandoparaarua.

Sherlockdeuumpassoinvoluntárioparatrás.Orostoerabrancocomogiz,eos olhos pareciam tão fundos que as cavidades oculares eram apenas buracosnegros.Osossosdasfaceserammuitopronunciados,eoslábios—seéqueaguraostinha—estavamrecolhidosacimadosdentes,quepareciamsorrirpara

Sherlock,comoseapessoaestivessesedivertindocomalgumapiadaparticular.Por bastante tempo o menino acreditou que havia um corpo humano emdecomposição,quaseumesqueleto,paradonobecoolhandoparaele.Teriasidotiradodacovaedeixadoali,apoiadoporumpedaçodemadeira,paraservirdeadvertência?Masquemfariaalgotãomacabro?

A guraergueuamãoatéoladodorostoeacenou,eentãorecuouparaassombrasatéqueSherlocknãopudessemaisvê-la.Foi sódepoisqueosujeitodesapareceu que Sherlock, tremendo e com frio, lembrou-se do homem nataverna, o que estava sozinho. Seria o mesmo? A gura parecera ainda maisesquelética,aindamenosviva,masissopoderiaserefeitodailuminaçãoruim.

O que estava acontecendo? Sherlock pensou no que seus tios tinham lhecontado.Seráqueeleestavaficandolouco,comoopai?

Poralgunssegundoseletevevontadedeentrarnobecoeprocurarpela gura—procurarpelaverdadedoquevira—,masrecuou.Pela lógica,aexplicaçãomais provável era que aquilo era uma armadilha, que a gura era um engodopara atraí-lo. Mas seria algo aleatório ou alguém sabia que muitas vezes acuriosidadedeSherlocksuperavaseubomsenso?Abalado,omeninoseafastoudaentradadobecoenãoolhouparatrás.

Oparque cavasómaisalgunsminutosdecaminhadaadiante.Quandoelechegoulá,Mattyjáoesperava.

— Tá tudo bem? — perguntou o amigo. — Parece que você viu umfantasma.

—Não seja idiota—respondeuSherlock,grosseiro.—Nãoexiste issodefantasma.

—Tábem,nãoprecisaficarnervoso.—Descobriualgumacoisa?—perguntouSherlock.

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Mattybalançouacabeça.—Amaioria dos caras e garotos que eu conhecia por aqui semudou.Ou

entãomorreu.Chegueiaacharalgumaspessoasqueselembravamdemim,maselasnão sabemdenenhumamericanograndeque tenhapassadopor aqui.Evocê?

—Agorajáseimeorientarpelacidade.— Bom, já é alguma coisa — disse Matty, com cinismo. — Se a gente

tivessealgumaintençãodesemudarparacá,querdizer.—Nãosubestimeaimportânciadoconhecimentogeográfico.Oamigooencarou.—Eoqueagentefazagora?—perguntoueledepoisdealgumtempo.Sherlockrefletiuporunsinstantes.Eletambémhaviapensadonoassunto.—Acreditoquepossamosvoltaràestaçãoeconversarcomoscobradorese

guardas—disseele,devagar—,maselesdevemvercentenasdepassageirospordia, e nada garante que vão se lembrar do Sr. Crowe. Além do mais, se elecontinuoucomamesmacautelaque tinhaemFarnham,deve ter saltadoemumaestaçãoanterioretalvezcontratadoumacarroçaparatrazê-loaEdimburgocomVirginia.

—Se é que ele tá aqui— comentouMatty.—A nal, a única coisa queapontou esta cidade para você foi uma cabeça de coelho e uma tora. Não émuito. Ainda acho que podemos ter seguido uma direção completamenteerrada.

—MesmocomodesaparecimentodeRufus?—perguntouSherlock.Mattydeudeombros.—Temrazão.Apistaprovavelmenteeraboa,mas,agoraqueagentetáaqui,

oquefazer?Esperarqueapareçaalgumaoutra?— Matty — disse Sherlock, devagar —, já falei isso antes, e vou falar de

novo:vocêpodenãoserumgênio,masdespertaagenialidadedaspessoasàsuavolta.

—Comoassim?— Amyus Crowe deixou uma pista que nos traria a Edimburgo, se a

interpretamoscorretamente.Porqueelefezisso?—PorqueoSr.Crowequeriaqueviéssemosatrásdele—respondeuMatty.— Exatamente. Elequeria que o seguíssemos.Não estava dizendo apenas

“Adeus. Estou indo para Edimburgo”! Queria que soubéssemos exatamenteaonde ele estava indo, e o único motivo para isso é que ele queria que oseguíssemos. Ele quer nossa ajuda. Agora que estamos aqui, ele não vai nos

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deixaràderiva.Vaimandaroutrapista,algoquenosleveatéondeeleestá.—Eelenãopodiaterfeitoissologonocomeço?—ElesabiaapenasqueestavavindocomVirginiaparaEdimburgo.Quando

chegasse aqui, arranjaria algum lugar para se acomodar em paz, algum lugarondenãopudesseserencontrado.Ouseja,nãoseriaumhotel.Émaisprovávelque seja algum chalé alugado na periferia da cidade. Quando ele tivesse umendereço,dariaumjeitodenosavisar.

—Maselenãosabeondeestamos—comentouMatty.—Entãoeledeixariaumamensagememalgumlugarparaquepudéssemos

encontraremqualquerlugardacidade.—Sherlockpensounojornalquetinhalidonotrem.Lembrou-seespeci camentedapáginadeclassi cadosquetantoohaviafascinado:mensagensdeumapessoaparaoutra,oudeumapessoaparatodoumgrupo,tantoempalavrasclarasquantoemcódigo.—Elevaipublicarumanúncionojornaldacidade—disse,confiante.—Elesabequededuziuumdoslugaresondeeuprocuraria.

— Mas e se tivermos perdido o anúncio? E se ele publicou a mensagemontem?

Sherlockbalançouacabeça.—Elenãotinhacomosaberquediaestaríamosaqui.Peloqueconheçode

AmyusCrowe,eledeveterpagadoparapublicaremoanúncioasemanainteira.Matty assentiu. Ou ele achava que o que Sherlock dissera fazia todo o

sentido,ouestavadispostoaconfiarnoamigo.—Entãovamoscomprarumjornallocal.Vamoscomprartodos.— Quantos são? — perguntou Sherlock, pensando se os dois teriam que

vasculhardezoudozejornaisouseAmyusCroweteriacolocadooanúncioemtodos.

—Três—respondeuMatty.Elesevirouparacomeçaraandar,masdepoisvoltouaolharparaSherlock.—Vocêvaiterquelerosanúncios—comentou—,porqueeunãosei ler.Etôsemdinheironenhum,entãovocêtambémvaiterquecomprarosjornais.

Viramumjornaleiroemfrenteaoparqueecompraramumexemplardecadaumdos três jornais deEdimburgo, a ediçãodaquele dia, e então voltaram aoparque e se sentaram em um banco para que Sherlock pudesse lê-los. ElepercebeudeimediatoqueamatériasobreoassassinatoemEdimburgo—aqueele havia visto no exemplar doTimes no trem— estava na capa dos três.Oprimeiro—oEdinburghHerald—davaotomgeraldosoutros:

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Hoje pela manhã a polícia de Edimburgo prendeu uma mulher suspeita do assassinato porenvenenamento do excêntrico empresário Sir Benedict Ventham. Fontes próximas à políciarelataramqueapessoaemquestãochama-seSrta.AggieMacfarlane,cozinheiradofalecidoSirBenedicte,conformeapuramos, irmãdeGahanMacfarlane, famoso líderdaganguecriminosaSaqueadores Negros. Acredita-se que ela tenha posto veneno na comida de Sir Benedict pormotivosatéomomentoconhecidosapenasporela.

SaqueadoresNegros?OnomedagangueperturbouSherlock.Soavaperigoso,atésinistro.Omeninoestavaprestesapassaràseçãodeclassi cadosdojornalquandoviuoutraocorrênciadonome,emumareportagemlogoabaixodotextosobreoenvenenamentodeSirBenedictVentham.

INCÊNDIODESTRÓIQUITANDALOCAL

Ontemànoite,olocalondefuncionavaaquitandadossenhoresMacPhersoneCargill,naPrincesStreet, foi consumido por um incêndio de proporções apocalípticas. Durante quase três horastranseuntesusarambaldesparacombateraschamascomáguaretiradadoriopróximo,semmuitosucesso.Nãoseregistrounenhumamorte,poisoincêndioaconteceuduranteanoite.Aquitandade MacPherson e Cargill foi uma instituição na cidade por mais de cinquenta anos. Diversosindivíduos da comunidade local, que desejampermanecer anônimos, informaram à reportagemqueosquitandeiroshaviamatraído recentementea atençãodosSaqueadoresNegros— infameganguecriminosaqueatuaemEdimburgoextorquindoempresários(...)

Sherlockseguiuparaaseçãodeclassi cados.NãoeratãograndequantoadoTimes — ocupava pouco mais de meia página. Quase todos os anúnciospareciam ser de lares à procura de criadas, cozinheiros ou mordomos(“imprescindívelapresentarreferências”),eumpunhadodeavisosdeachadoseperdidos(“EncontradonaKing’sStreetumbrochefeminino—esmeraldasembasedeouro.Possíveisdonosdevemencaminharumadescriçãocompletaporescritodo itemparaquepossa serprovidenciadoo retorno”).NãohavianadaqueparecessetersidoescritoporAmyusCrowe.

Por via das dúvidas, Sherlock conferiu também as páginas de cartas. Amaioriapareciaserreclamaçõessobrefatosincorretosemediçõesanterioresdojornaloucomentáriossobreafaltademodosdasclassesinferiores,masumadascartaschamouaatençãodomenino.ElealeuemvozaltaparaMatty:

Senhor,

Escrevo em referência à recente onda de relatos sobre homens emulheres em toda a cidade que sópoderiamserdescritoscomo“falecidosmasaindasemexendo”.TaiseventossãoumaafrontaaDeuse

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atestam a fragilidade moral da população desta cidade. Peço a atenção dos leitores em relação àsseguintespassagensdaBíblia:

Isaías26:19:“Osteusmortosviverão,osseuscorposressuscitarão;despertaieexultai,vósquehabitaisnopó;porqueoteuorvalhoéorvalhodeluz,esobreaterradassombrasfá-lo-áscair.”

Apocalipse 20:13: “O mar entregou os mortos que nele havia; e a morte e o Hades entregaram osmortosqueneleshavia;eforamjulgados,cadaumsegundoassuasobras.”

Peçoquetodosre itam:issonãoindicaqueoArmagedomestápróximoequeDeuslogonosjulgará?Arrependam-sedeseuspecadosantesquesejatardedemais!

ComagraçadeDeus,GeorgeThribb,Esq.

AcartafezSherlockpensarnasduas gurasesqueléticasquetinhavisto—nataverna,nanoiteanterior,enarua,apenasmeiahoraantes.Seriaaissoqueacartasereferia?Haviaumaondadepessoasquepareciamcadáveresandandopelasruas?Sesim,oqueissosignificava?

Sherlockafastouessespensamentos.Pormaisinteressantesquefossemtaisespeculações,nãoajudavamnatarefadomomento:encontrarAmyusCroweeVirginia,ouRufusStone.

NoEdinburghStar,osclassi cadoserammaisvoltadosparaanúnciossobrefestas (ou “cèilidhean”, como pareciam ser chamados), animais de estimaçãoperdidos e cavalos à venda.Um anúncio em particular chamou a atenção deSherlock:“Papagaioperdido,saberecitartextocompletodeHamletepoemasdeTennyson. Paga-se recompensa pelo retorno.” Um pássaro que sabia recitarHamletinteiro?Sherlocknãopodiaacreditar.

Foi noEdinburghTribune que ele encontrou o que procurava.Emmeio àvariedadehabitualdeanúncios,umsedestacouimediatamente.

Hotelsigerson

Encontreolugarperfeitoparadescansarerelaxar.Bastanosdizerquaissãoseussonhos,enósostransformaremosemrealidade.Doisdiasemnossasinstalaçõesfarãomaravilhas,etodososseusdesejosserão

realizados.

Nós,osrespeitáveisCramond,estamospertodeKirkcaldy,emFife.

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—Éisso—disseSherlock,apontandoparaoanúncio.—Eunãoseiler—repetiuMatty,compaciência.SherlockoleuemvozaltaparaMatty,quefranziuocenho.—Meiocansativo—disseele—,etambémumpoucoesquisito.Nãoparece

umlugarquehospedegentenormal.—Nãoéumhoteldeverdade—respondeuSherlock.—Comovocêsabe?Omeninoindicouasduasprimeiraspalavras.—HotelSigerson.MeupaisechamaSiger,SigerHolmes.Comoeusouo

filhodeSiger,esseanúnciofoiescritoparamim.Mattypareciaincerto.—Podesercoincidência.TalvezexistaumhotelSigerson.— É possível — reconheceu Sherlock —, mas o preço desses anúncios é

calculadoporpalavra.Temmuitaspalavras aqui,maisdoque serianecessárioparadizeràspessoascomoohotelébom.Noentanto,hápalavrassu cientesparaconterumamensagemsecreta.

— Então o Sr. Crowe e Virginia estão em Kirkcaldy. — Matty fez umacareta. — Isso ca a quilômetros daqui. Achei que eles viessem paraEdimburgo.

—AreferênciaaKirkcaldyéumaarmadilha.Elesnãoestãolá.—Estãoonde,então?Sherlockdeudeombros.—Nãosei.Precisodecifraramensagem.Eleobservouotextomaisumavez.Seoanúnciofosseumconjuntoaleatório

de letras ou números, ele tentaria uma criptogra a de substituição conformeAmyusCrowelheensinara.Essetipodecriptogra asebaseavanoprincípiodesubstituiçãodeumelementoporoutro—por exemplo, trocar as letrasa pelonúmero 1, as letrasbpor2eassimsucessivamente.Paradecifraresse tipodecódigo sem saber qual havia sido a estratégia de substituição era precisoconhecer a frequência com que determinadas letras apareciam na escritanormal.Amaiscomumeraa,seguidadee,o, s, r ei.Entãoeraprecisoapenasprocurara letraouonúmeromais frequenteesubstituí-lopora, depois seguircom a lista. No entanto, para que houvesse boas chances de se decifrar ocódigo,eranecessárioumtextocodi cadobastantelongo.Sóque,aoanalisara

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mensagem,Sherlockpercebeuquenãoeraumacriptogra adesubstituição.Emprimeirolugar,otextofaziaalgumsentido,pormaisestranhoquefosse.Pareciaumapropaganda.Trocaras letrasdeuma fraseoudeumparágrafoproduziriaum conjunto de palavras completamente embaralhadas e sem signi cado.Entãoocódigodeviaseroutro.Sherlockpegouumacanetadobolsoerabiscounamargemdojornalasiniciaisdaspalavras,maslogonasprimeiras—eolppder...—percebeuqueaquilonãoestavacerto.

Pensouentãoquetalvezfossemasúltimasletras.Rabiscououtrasérie:eoroarer...Não,issotambémnãopareciacerto.

Talvezeledevessepartirdofinal,enãodocomeço.Tentouasduasopçõesdenovo—iniciaiseúltimas—,massóachoufekdpecron...eemyeosdsss...AmenosqueAmyusCrowetivesseresolvidocomplicarascoisaseescreveremoutroidioma,Sherlockdefinitivamenteestavanocaminhoerrado.

Podiatentaraspalavras,emvezdasletras.Experimentoulistarasprimeiraspalavrasdecadafrase—encontrebastadoisnós—,depoisassegundas—o nosdias os. Com a ressalva de que a primeira série lembrava um poemapessimamenteescrito,tambémnãofaziasentido.

Sherlocksuspirouemordeuaparteinternadolábio,cientedequeMattyoobservavaatentamente.Suasideiasestavamseesgotando.Talvezocódigofossecomplicadodemaisparaele.

Omeninosentiaalgoperturbando-lheamente.Tentouseobrigararelaxar,aparar de pensar, para que o raciocínio pudesse a uir à superfície. Ele haviatentadoasprimeiraspalavrasdasfrases,eassegundaspalavras.Ese...eseeletentasseaprimeirapalavradaprimeirafrase,asegundadasegundafraseeassimsucessivamente?

A essa altura, Sherlock já havia decorado o anúncio; podia escrever aspalavrassemnemrelê-lo.

EncontrenosemCramond—Consegui!—sussurrouele.—Oquê?—ElesestãoemumlugarchamadoCramond.Mattypareciadesconfiado.—AcheiquevocêtivesseditoqueCramonderaonomedopessoaldohotel.— O hotel nãoexiste— repetiu Sherlock.—É um código.OSr.Crowe

tinhaquecolocaronomedolugaraqui,masfezcomqueparecesseoutracoisa,o nome de uma pessoa, e então disfarçou fazendo referência a um lugar deverdade:Kirkcaldy.

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—Certo...MasondeficaCramond?Sherlockpegouomapaquehavia compradonabiblioteca.Noversodode

Edimburgohaviaumdosarredores.Nocantosuperiordireitohaviaumíndicereferenteàgradedeletrasenúmerosaolongodamargem.SherlockexaminouoíndiceatéacharCramond—comumbrevesentimentodeorgulho—,depoisprocuroupelagradedereferênciadomapa.

— Fica no litoral — disse ele. — Só a alguns quilômetros daqui.Talvezpossamosarranjarumacarroçaparanoslevaratélá.

Eledobrouomapaeojornaleosguardounosbolsos.Sentiu-setomadodealívioeesgotamento.Eleconseguira!EncontraraAmyuseVirginiaCrowe!

Agoraviriaapartedifícil:descobrirporqueeleshaviamfugidoeconvencê-losavoltar.

Ummovimento acimadoombrodeMatty chamou a atençãodeSherlockparaumlugaratrásdoamigo.Haviadoishomensseaproximando.Umtraziaalgo nas mãos: parecia um saco vazio. Sherlock levou um instante parareconheceroamericanocommarcasdevaríolaqueeleviraemFarnhamenaestaçãodeGuildford.Sentiuumcalafrio,eseucoraçãoseacelerouderepente.Virouosolhos ligeiramenteparaorostodeMatty.Estavaprestesamandaroamigocorrerquandopercebeuqueeletambémolhavaporcimadeseuombro.Seusolhosestavamarregaladoseassustados.

DeviahavermaishomensseaproximandoportrásdeSherlock—entreeles,provavelmente,osujeitoderabodecavaloesemorelha.SherlockestavaprestesaempurrarMattyparaaesquerdaepularparaadireitaquandoohomematrásdeMattypercebeuqueocircoforanotado,correue jogouosacoemcimadacabeça do garoto. Sherlock estendeu asmãos para arrancar o saco,mas algopesadocaiuemsuacabeçaecobriuseurosto;omundoseapagou.Elesentiumãosoagarraremeoderrubaremnochão.

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Capítulodez

OSACOTINHAUMFORTEcheirodefumodecachimbo,eSherlockcomeçouasufocarporcausadocalor,doodorpungenteedafaltadear.Passavaumpoucodeluzatravésdasfalhasdotecido,masnãoeraosu cienteparaqueelepudesseenxergarà suavolta.Amalhadeestopa roçava-lhena testa,nasorelhasenanuca.Sherlock sentia apele se esfolar, alguns trechos cando emcarne viva.Eleiasairdalibastantearranhado.

Sesaísse.Seuspulsosetornozeloshaviamsidoamarradosdeformarápidaehabilidosa,

ecomforçasu cienteparaimpediracirculaçãodosangue.Osbraçosestavampresosemvoltadaspernasedopeito.Ergueram-nocomoseelefosseumsacodebatataseolevaramàspressaspeloparqueantesquealguémvisseoqueelesestavam fazendo. Provavelmente, o mesmo estava acontecendo com Matty.Sherlocktentousacudiropéesquerdo,masacordaemsuaspernasseapertou,eelemalconseguiasemoverumcentímetro.Sentia-sepresoportirasdecouro.Talvez fosse essa a sensação de morrer esmagado por uma daquelas cobrasenormesdaAméricadoSul—sucuris,pítonsouoquequerquefossem.

Sherlockabriuabocaparagritarepedirsocorro,maslevouumsocoatrásdaorelha.Uma fustigada vermelha agonizante se espalhoupor sua cabeça comoumraio,deixandoumrastrodedornauseante.Eleestavaprestesavomitar,massabiaque,seo zessedentrodaquelesaco,precisariasuportarasconsequências,entãoengoliuváriasvezes,obrigandooestômagoaseacalmar.

Quandoabriuaboca,sentiualguns ocosminúsculosdetabacogrudaremnalínguaepordentrodoslábios.Ogostoamargoprovocououtraondadeânsia,eSherlockengoliumaissalivadesesperadamente.Elesabiaquealgumaspessoasfumavamemascavamtabaco.Comoaguentavamaquilo?

Seus dedos pareciamgrandes e inchados, como linguiças fritando emumafrigideira. Parecia que al netes e agulhas o espetavam enquanto o sangue seesforçavaparapassarpelascordasqueprendiamseuspulsos.

Oshomensqueocarregavamoreacomodaramnosbraços.PoruminstanteSherlockseperguntouoqueelesestariamfazendo,masentãosentiuapressãono tórax e nas pernas relaxar, e depois balançaram-no rapidamente para trás,paraafrente,eosoltaram.Elevooupeloar,impotente,semsabersequerparaque lado cavaocéueochão,esperandoumaeternidadeatéatingir...oquê?

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Grama?Concreto?Asuperfíciedeumrioouumcanal?Achando que talvez acabasse afundando de repente em água gelada, ele

quicou em uma superfície macia e rolou até acertar uma tábua vertical. Acaçambadeumacarroça,forradacompalha?Eraoqueparecia.Sherlockouviualgoatingirapalhaaseulado,elogoemseguidaumobjetopesadobateunelecomtantaforçaqueodeixousemfôlego.

EraMatty.—Você está bem?—perguntouSherlock atravésdo sacode estopa,mas,

antesqueobtivesseumaresposta,algooacertounascostelas.Sherlocksentiuondasnauseantesdedorseespalharempelotórax.Arquejou.

Matty, sensato, não falou nada. Talvez nem pudesse. Talvez estivesseinconsciente.

Oshomensqueoshaviamcapturadonãodisseramumapalavrasequer,masamensagem era clara: não se mexam, não resistam, quem quietos. Qualquertransgressãodessasregrasseriacastigada.

Apesardetudo,pelomenososdoisaindaestavamjuntos.Issotinhaalgumvalor. Enquanto permanecesse vivo e em pleno controle dos sentidos e damente, Sherlock acreditava em sua capacidade de se livrar de quase qualquersituação.

Sua dedução de que os dois haviam sido jogados em uma carroça foicon rmada quando eles se puseram em movimento. Na posição em queSherlockcaíra,suacabeçaestavavoltadaparaadireçãoemqueacarroçaseguia.Elelogoanalisoutudodequeselembravadoúltimominuto.EstiveradefrenteparaMatty no parque e à sua esquerda havia o portão para a Princes Street.Quandoocobriramcomosaco,pegaram-noeolevaramcomacabeçaviradapara a frente e a direita, paralonge do portão e da Princes Street. Ele foralançado de cabeça na carroça, então isso signi cava que, com quase toda acerteza,oveículoseafastavadaPrincesStreetedocentrodeEdimburgo.

Duranteo trajeto,Sherlock tentouregistrar todasascurvasqueeles faziam— em que direção a carroça virava e o tempo aproximado que havia levadodesdeacurvaanterior.Oesforçomentaldecontagemememorizaçãooajudouaconteropânico,easinformaçõesseriamfundamentaissedepoiseleprecisasserefazeropercurso.

Apósalgumtempo,acarroçaparou.MãosagarraramSherlockeopuserammais oumenos de pé.Ele foi jogado no ombro de alguém e levado embora.Ouviaospassos,deduzindo,então,queapessoanãoandavaporgrama.Seriapedraouterrabatida?Ohomemqueocarregavatropeçoualgumasvezes,então

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talvez fossem paralelepípedos, e alguns deviam estar soltos. Essa informaçãotambémpoderiaviraserútil.

Os dedos de Sherlock pareciam estar pegando fogo por causa da falta decirculação de sangue. Sua mente começou a imaginar a pele escurecendo ecaindo.Desesperado,eletentouseobrigarapensaremoutracoisa.Ospassos!Haviammudado:ohomemqueocarregavaagoraandavasobremadeira,ealuzque vazava pelas falhas do tecido estava mais escura, mais suave. Ele estavadentrodealgumaconstrução.

O som dos passos no piso mudou, cou mais oco. Sherlock percebeutambémque estava sendo inclinado, coma cabeça acimadospés.Ohomemqueolevavasubiaumlancedeescadas.

Quandochegaramaoandarsuperior,Sherlockvoltoua carniveladoeouviumaisalgunspassosnopisodemadeira.Noentanto,osompareciadiferentedeantes.Oassoalhorangiamais,comosenãofosseestável.

Ohomemqueocarregavaderepenteolargou.Omeninotevemenosdeumsegundoparaseprepararparaaqueda.Acertouochãocomoombroesquerdoegritou.Mordeualínguadedoresentiugostodesangue.

Outroimpactoaseulado—Matty,recebendoomesmotratamento.Elenãogritou,masSherlockoescutougemer.

Algo a ado de metal passou entre as mãos de Sherlock. Antes que elepudesse reagir,oobjeto fezummovimento rápidoeascordasemseuspulsoscaíram. No instante seguinte, zeram o mesmo com as amarras em seustornozelos.

Eleergueuasmãosetirouosacodacabeça.Umaluzcinzentaepálidaoofuscou,eomeninopiscouváriasvezes.Estava

em um cômodo do tamanho da sala de jantar da casa dos tios, mas assemelhanças paravam por aí. Em vez de coberto por tapetes, o piso era detábuas, e o reboco nas paredes estava rachado. Uma mancha esverdeada demofoseespalhavapelosrestosdescascadosdopapeldeparede.Erapossívelverasripasdemadeirapelosburacosdoreboco.Faltavamalgumastábuasnopisoefezes de rato se espalhavam pelo chão comominúsculas pedrinhas pretas.Otetoestavapraticamentesemrebocoeasvigaspareciamcostelas.Ochãotinhapoças d’água formadas pelas chuvas que se in ltraram pelo teto esburacado,contribuindoparaoaspectodedescasoedecadênciadoambiente.

QuandoSherlocktentouseajoelhar,ojornalcaiudoseubolsosobreopisoapodrecido. Ele viu a palavraCramond escrita na margem. Olhou para cima,horrorizado. Havia três homens diante de uma janela quebrada. Dois se

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encontravamdepé,eoterceiroestavasentadonomeiodelesetinhaasmãosapoiadasemumabengalanafrentedocorpo,masaluzqueosenvolviafazia-osparecerbonecosdepalitorabiscadoscomcarvãoemumpapel.Sherlockforçouavista, tentandoenxergaro rostodos três,masnãoadiantou.A luz era fortedemais.

Mattyestavaencolhidoapoucosmetrosdele.Umsaco semelhanteaoquecobriraSherlockcontinuavapresoemvoltadacabeçaedosombrosdoamigo.Poruminstante,Sherlocknãopercebeuqualquermovimento,e,comumapertoangustiante no coração, pensou se o amigo estariamorto,mas então viu queMattyrespiravadevagar.Eleestavavivo,provavelmenteapenasdesmaiara.

ConsiderandoasuspeitadeSherlockquantoaoqueacontecerianosminutosseguintesnaquelecômodo,desmaiarpareciaumaboaopção.

EleolhoualémdeMatty.Haviaumacadeiraaoladodostrêssujeitos.RufusStoneestavaamarradoaela.OhomemolhouparaSherlockesorriu.Ogestoteria sido mais tranquilizador se Rufus não estivesse com a testa e as facesinchadas e os dedos ensanguentados. Parecia que haviam sido tratados comalicate.

—Permita-me explicar o processo—disse uma vozbaixa, quasedelicada.Sherlockachouquepertenciaaohomemdomeio.OsotaqueerasemelhanteaodeAmyusCrowe;obviamente,osujeitoeraamericano.—Nãosintoqualquerremorsoquantoamachucarcrianças. Já z issoantes, e fareidenovo.Nãoéalgoquemeagrada,mas,casonecessário,causareiimensadoravocêparaobteroquedesejo.

— E o que você deseja? — perguntou Sherlock. — Não tenho dinheiroalgum.

Ohomemnão riu,masSherlockpercebeuumtoquedehumorna suavozquandoelerespondeu:

—Seudinheironãome interessa,menino.Tenhotantodinheiroquenemseiondegastá-lo.Não,queroinformaçõessobreseuamigoAmyusCroweeafilhadele,eissoéalgoquevocêtem.

— Não sei de nada — disse Sherlock, tentando demonstrar o máximopossíveldeconvicção.

Ele estreitou os olhos, tentando identi car alguns traços no rosto ou nasroupasdo sujeitoapesarda luz intensaqueocercava.Sóconseguiuverqueabengalaemqueohomemapoiavaasmãostinhaumacabeçagrandeeestranha.

—Entãovocêmorreráemagonia.Simplesassim.Vocêestáprestesasentirmuitador,mas,quantomaisrespostasverdadeirasmeder,maistempoviveráe

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menosdorsentirá.Agora,tenhoumasériedeperguntasalhefazer.Sãomuitosimples.Vocêasresponderácomamesmasimplicidade,semtentarmentirouesconderaverdade.

OolhardeSherlockparounojornal.Eleprecisavaimpedirqueohomemovisse.

—Oqueacontece seeunão souberas respostas?—perguntou,pensandodesesperadamentenoquefazer.

O menino tirou os olhos do jornal de repente. Ficar olhando para baixopoderiachamaraatençãodeles.

—Boapergunta—concordouohomem—,ejáre etisobreelaemdiversasocasiões no passado. Como você deve imaginar, já realizei muitos, muitosinterrogatórios como este. Felizmente, tenho uma solução. Entenda, nós otemosobservadoháalgumtempo.Paraváriasperguntasque lhe farei, seiquevocêsabearesposta.Paraváriasperguntasquelhefarei,eu jáseiasrespostas.Você,contudo,nãosabeoqueeusei.Nãopodecorreroriscodementir...Istoé, amenosquegostededor.Amelhor alternativa émedizer a verdade.Sãopoucas as chances de você me enganar, porque em algumas perguntas eusaberei, com certeza absoluta, se você mentir, ainda que diga “Não sei”. Asregrasestãoclaras?

Sherlock pensou por um instante. A maneira como o homem calmoapresentaraoproblemaeraeleganteesimples.Seomeninodecidisseenganá-loou alegar ignorância, havia uma chance estatística de ser desmentido.O queSherlock não sabia era a quantidade de perguntas que o homem faria e aquantidade de respostas que já conhecia. Se essas quantidades fossem dez euma,respectivamente,Sherlocktalveztivessechancedepreservarosegredodoesconderijo de Amyus Crowe. Se fossem dez e cinco, a chance seria bemmenor.

Suamentelógicasondouoproblemaportodososlados,tentandoencontraralgumabrecha,maseraimpossível.Ohomemquefariaasperguntasestavaemvantagem.Haviapensadoemtudo.

—Vocêentendeuasregras?—indagouosujeito.Suavozestavatãodelicadaquantoantes.—Nãovouperguntardenovo.

—Sim,entendi—respondeuSherlock,movendoopéparaoladocomosetentasseseajeitarparaumaposiçãomaisconfortável.

Ele conseguiu empurrar o jornal para uma das poças d’água formadas pelachuvaquehaviaentradopelotetoarruinado.

Ohomemvirouacabeçaligeiramente,demodoaolharparaRufusStone,e

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algonamaneiracomoaluziluminouorostodeleintrigouSherlock.— Desnecessário dizer — acrescentou ele — que não vou tolerar

interrupções.Estáclaro?Stonebalançouacabeçamachucadaeensanguentada,masSherlock,muito

preocupado comoque acontecia ao jornal, nãoprestou atenção ao amigo.Aágua começava a encharcar as folhas, mas uma mão ágil poderia tirá-las dapoça.

Sherlockarriscouumaolhada.Atintacomeçaraa carborrada,apagandoasletrasque ele escreveranasmargens.Emalgunsminutos até a letra impressaseriaindecifrável.Omeninodeuumsuspirodealívioevoltousuaatençãoparao rosto do homem calmo, tentando determinar se ele vira algo. Sherlock derepente se deu conta do fato de que havia algoerrado com a pele do sujeito.Pareciasercheiademarcas,maselenãoconseguiadistingui-las.

—Entãovamoscomeçar.Ohomemergueuumadasmãosqueestavaapoiadanabengala.Espantado,

Sherlockpercebeuqueacabeçadoobjetoeraumacaveiradouradabrilhandoàluz que entrava pela janela,mas só conseguiu vê-la por um segundo, porquelogodepoisosoutrosdoishomens caramnafrente.Elespassaramporcimadocorpo inertedeMatty,pegaramSherlockpelosbraçoseopuseramdepé.Astábuasdopisorangeramesecurvaramsobseupeso.

Cadaumseguravaumacordacomumnócorredionaextremidade.Umdoshomens—oderabodecavaloesemorelha—passouo laçopelacabeçadomenino eo apertounopescoçodele. Jogou aoutra extremidadeda cordaporumadasvigasexpostasdotetoepuxoucomforça.Rufusforçouasamarrasemprotesto,masohomemqueestavamaispertodelelhedeuumabofetadacomodorsodamão,indiferente.Oviolinistacaiuparatrás,gemendo.

Sherlock sentiu a corda se apertar embaixo do queixo, sufocando-o. Porinstinto, cou na ponta dos pés para tentar aliviar a pressão, mas o outrohomem—odasmarcasdevaríola—passouolaçodacordaqueseguravaporbaixodospésdomeninoeoapertounaalturadostornozelos.

—Sugiro—disseohomemcalmo,comumtomdevoztranquiloerazoável,otipodevozqueumvigáriousariaaopedirumaxícaradechá—quevocêsesegurebemnacordaacimadesuacabeça.Dentrodealgunssegundos,suavidavaidependerdequão rmevocêconseguirásesegurar.Etambém,éclaro,dasinceridadedesuasrespostas.

OhomemqueseguravaacordanopescoçodeSherlockpuxou-aderepente.O nó se apertou, tirando os pés de Sherlock do chão. O menino se agarrou

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desesperadamentenacordaacimadacabeça,paratentarnãosufocar.As brasdacordaeramásperas,maselesentiaasmãoscomeçaremasuaresabiaque,seescorregasse,acabariapenduradopelopescoçoeseenforcando.

Seus pés balançavam no ar a centímetros do chão.O homem puxou commais força, e Sherlock subiu mais, agarrando-se na corda. Sua visão estavacandoavermelhada,maseleaindapôdeverasilhuetadohomemquesegurava

acordaatravessarocômodoeamarrá-laemumaripaexposta.—Agora—disseohomemcalmo—,vamoscomeçar.—Elepigarreou.—

QualéanaturezadesuarelaçãocomAmyusCrowe?— Não... conheço... ninguém... com... esse... nome...! — respondeu

Sherlock,arquejandoemmeioapreciosasgolfadasdear.—Ora,seiqueissoéumaevidentementira—falouohomemcalmo.Eleergueuamãoumcentímetroacimadabengala.QuandoSherlockolhou

parabaixo,viuohomemqueprenderasuapernaseagachar,estenderobraçoparatrásepegardassombrasumapedradotamanhodacabeçadomenino.Apedraestavaenroladaemumbarbante,ehaviaumanzolpresonaextremidade.OhomemergueuapedracomamãoepassouoanzolnacordaemtornodospésdeSherlock.Eentãosoltouapedra.

O peso de repente se transferiu para a corda e, portanto, para os pés deSherlock, puxando-o para baixo, esticando seus músculos e tendões eaumentandoapressãodonóemseupescoço.Omeninoseagarroucomaindamais força na parte de cima da corda, lutando desesperadamente para nãosufocar.

—Partindodopressupostodequevocêsejadotadodeumaburrice inataenãotenhaentendidoasregras—disseohomemcalmo—,repetireiapergunta.A penalidade em caso de mentiras deve estar óbvia agora. Como você comcerteza já concluiu, eusei a respostaaestapergunta:qualéanaturezadesuarelaçãocomAmyusCrowe?

—Professor!—falouSherlock,arfando.—Ótimo.Obrigado.—Umapausa.—Agora, a segunda pergunta: onde

AmyusCroweestáagora?AvisãodeSherlockestavasereduzindoaumtúnelembaçado.Elesentiao

sanguepulsandonosouvidos,masaperguntaaindareverberavaemsuacabeça.Ele não podia respondê-la—de nitivamente não podia respondê-la!Mas senãoofizesse...

Elenãotinhaescolha.NãopodiaentregarAmyuseVirginia.—Não...sei...—disse,arquejante.

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Ohomemcalmosuspirou.—Outramentira.Vocênãoteriavindotãolongesenãosoubesseondeseu

professorestá.Vocêéteimosoouapenasidiota?Eleergueuamãomaisumavez,apenasumcentímetroacimadojoelho.Desesperado,Sherlocktentoudarumchutenacabeçadohomemagachado,

masapedraemseustornozeloserapesadademais.Ohomemestendeuamãoparaassombrasepegououtrapedradomesmotamanho.Estatambémestavaamarradacomumbarbanteeumanzol.

A corda já estava forçando o queixo de Sherlock para cima. Seus dedoscomeçavama carcomcâimbra.Elenãosabiaquantotempoaindaaguentariasustentarocorpoeevitaramorte.

OhomemaospésdeSherlockprendeuoanzolnacordaesoltou.Apedrabateu na que já estava pendurada. Sherlock sentiu como se seu peso tivessedobradodesdequeacordaforaamarradaemseupescoço.Osmúsculosemseusombrosebraçostremiamcomoesforço.Seucoraçãobatiacomforçanopeito,esuavisãosereduziraaumcírculodotamanhodeumamoedanomeiodeumaescuridão avermelhada. A corda em seus pés feria sua pele, e o peso pareciaprestesadeslocarsuaspernasdasarticulações.OhomemagachadoaospésdeSherlock se mexeu, e o menino ouviu o som distinto das tábuas do pisorangendo sob o peso do homem.Damesma forma, o sujeito que prendeu acorda na cabeça de Sherlock deu um passo para a direita, e mais uma vezSherlockouviuastábuasdoassoalhorangeremsobopesodocapataz.Mesmocomaaudiçãoprejudicadapeloalucinantepulsardosangue,Sherlockpercebeunorangidoumsinaldequeamadeiratalvezpudesseseestilhaçarsubitamente.Astábuaseramvelhaseestavampodres.Omeninoteveumaideia.

Noentanto,precisariaacertarotempoexato;casocontrário,nãofuncionaria.—Vocêparecerealmenteincapazdeentendersuasituaçãoatual—disseo

homemcalmo.Suavozpareciavirdemuitolonge.—Adorjádeveserimensa,eduvidoquevocêsobrevivaamaisumaouduasperguntas.Admiromuitosuaresistência,masseusamigosvalemmesmootormento?No mdascontas,elesmorreriamporvocê?

Sherlockprecisouobrigaraspalavrasapassarumadecadavezpelagargantacomprimida.

—Não... importa...o...que... eles... fariam.—Ofegouembuscadear.—Importa...o...que...eu...faço!

—Ah,umhomemdeprincípios.Umararidade...inútil.—Ohomemcalmosuspirou. — Perguntarei de novo, e desta vez sugiro que você me dê uma

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respostaaceitável.OndeAmyusCroweestáagora?—Não...sei!—grunhiuSherlock.Ohomemcalmoergueuamãomaisumavez.AcabeçadeSherlockestava

tão inclinada pelo peso das pedras a seus pés e pela pressão do laço em seupescoçoqueelenãoconseguiaolharparabaixo,masouviuobarulhodeatritodarochanamadeiraquandoosujeitoagachadopegououtrapedradassombras.Quantashaviaali?

Uminstantede silêncio,enquantoohomemprendiaapedraàcordaeemseguida a soltava.A dor súbita do choque foi tão grande que era como se opróprioAmyusCroweestivessepuxandoaspernasdeSherlock.Osbraçosdomenino estavam prestes a serem deslocados do ombro enquanto ele tentavadesesperadamente se segurar à corda para evitar que o peso do corpo fossesustentadopelolaçonopescoço.Mesmoassim,acordaapertavasuagargantacom tanta força que ele mal conseguia respirar. O problema era que eleprecisavapiorarasituaçãoparapoderescapar.

Com o último vestígio de energia que lhe restava, Sherlock rmou amãodireitanacorda,acimadacabeça,eflexionouosmúsculosdobraçocomamaiorforçapossível.Eentãosoltouamãoesquerda.

De repente, o peso inteiro de seu corpo e das três pedras estava sendosustentado pela sua mão direita e seu pescoço. Antes que seus dedosescorregassem pela corda e deixassem o peso todo recair apenas no pescoço,Sherlock baixou amão esquerda e a en ou no bolso da calça. Seus dedos sefecharamemtornodocabodafacadeMatty—ocanivetequeeleusaraparafurarotanquenocurtumedeJoshHarknessecomaqualopróprioSherlockligaraos furosnaparededochalédeAmyusCrowe, formandouma seta.Eletirou a faca do bolso e, comummovimento rápido do pulso, abriu a lâmina.Sentindo—enãovendo—queoshomensqueocercavamseaproximavamparaimpedi-lodefazeroquequerqueelepretendesse,omeninoergueuobraçoetraçouumarconoarcomafaca.

Alâminaatravessouacordalogoacimadesuacabeça.Derepente,olaçoemseupescoço coumenosapertadoeelecaiu,sentindoospulmõesseencheremdearpuroefrescocomoáguadenascente.Aspedrasbateramnoassoalho.EmumafraçãodesegundoospésdeSherlockatingiramaspedras.Opesodelas,somadoaodo seu corpo edoshomensque já estavam juntodele, foidemaisparaamadeiraapodrecida,querachouesepartiu,abrindoumburacopeloqualostrêscaíramatéoandarinferior.

Sherlockcontorceuocorpoaodesabar, recolhendoos joelhosparacair em

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cimadoshomens.Aocair, sentiuamadeiradopisoralarsuapele.Obarulhodos homens atingindo o piso foi como o de uma explosão.Amadeira cedeucomo impactosúbito, fazendo-oscairna terraúmidaabaixo.Assustadospelaluzrepentina,ratosebaratasfugiramparatodososcantos.

Desajeitado, Sherlock puxou a corda no pescoço desesperadamente. O nóafrouxou,eeleconseguiutirá-laporcimadacabeçaejogá-ladelado.

Omeninoalternouoolharentreoshomenseoburacoqueelehaviacriadono andar de cima, mas os sujeitos apenas gemiam e se retorciam de dor, eninguémapareceuemcimadoburacoparaolharparabaixo.

Eleafrouxouonóemtornodospés.Acordaapertada zerasuapeleinchar,e ele descon ava de que o mesmo acontecera no pescoço, mas não seimportava.Estavalivre!

Ele se levantou,mas logo em seguida caiu.Suaspernasnão aguentaramopeso.Elesabia,noentanto,quenãopodia caralinochão,entãotentououtravez.Emaisuma.Eraapenasumaquestãodeforçadevontade,Sherlockdiziaasimesmo.Seucorpofariaoqueelemandava,nãoocontrário.

Na quarta tentativa, as pernas caram mais ou menos rmes, exceto pelotremordosmúsculos.Omeninorespiroufundoecambaleoupelocômodoatéaescada. Nem pensara em fugir da casa. Matty e Rufus estavam lá em cima,indefesosevulneráveis.Eleprecisavaresgatá-los,pormaiorquefosseorisco.

Subiraescadatalveztenhasidoapartemaisdifícil.Seusmúsculosberravamporcausadoesforço,eelequasedesmaiouduasvezes.Quandochegouaotopo,estendeu a faca na frente do corpo e entrou no cômodo onde havia sidotorturado, pronto para lutar, mas o homem calmo havia ido embora.Desaparecera.Sherlocknãoentendeucomoelehavia saído—a janelaestavafechadaeoúnicooutroacessoeraaescadaporondeelehaviaacabadodesubir—,masosujeitofugira.SórestavamRufusStoneeMatty.

Matty continuava encolhido, com a cabeça coberta. Sherlock olhou paraRufus—ensanguentado,mas sorridente—, que apontou com a cabeça paraMatty.

—Cuidedeleantes,rapaz—disse.Suavozsaíacomosesuabocaestivessecheiadecastanhas,oqueSherlocksupunhaseroresultadodasurrarecebida.—Sinto como se tivesse lutado vários rounds com um pugilista sem luvas e,acrediteemmim,jápasseiporessaexperiência,masestoubem.Omeninonãosemexeudesdequefoi jogadoali.Talvezprecisedeajuda.—Elebalançouacabeça em admiração. — Foi uma improvisação incrível aquela, aliás. Se euchegaraoscemanos,oque,apropósito,tenhograndeintençãodefazer,duvido

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quevolteaveralgosemelhante.Sherlock foi até Matty e se ajoelhou. Preocupado com o que poderia

encontrar,estendeuasmãoscomcautelaepuxouosacodecimadacabeçadoamigo.OsolhoscinzentoseazuladosdeMattyoencararam,impressionados.

—Vocêestábem—sussurrouSherlock.—Eusempretôbem.—Acheique...vocênãosemexia,então...Mattysorriu.—Aprendique,emsituaçõescomoesta,omelhorafazeréimitarumporco-

espinho: se encolher todo e esperar as coisas se acalmarem. Se isso não dercerto,entãoimiteumtexugo:ataquetudoloucamente,mordendoearranhandoomáximopossível.

Sherlock o ajudou a se levantar, e os dois libertaram Rufus das amarras.Sherlockestavapreocupadocomaquantidadedesanguenasmãos,norostoenacamisadeRufus,masoviolinistanãoseinquietou.

—Já queipiorcaindodetelhados—disseele—,mastereique caralgumtempo sem tocar violino compizzicato. O que aconteceu com aqueles doisbrutamontes?Elesdevemvoltar?

Sherlockseaproximoucuidadosamentedoburaconochão,cientedequeorestantedopisopoderiadesabaraqualquermomento, eolhouparabaixo.Oshomens continuavam caídos no buraco que o corpo deles havia criado. Elesgemiam,maspareciaquenãosairiamdalitãocedo.

— Estou vendo os dois — respondeu Sherlock —, mas acho que nãoprecisamosnospreocupar.Pelomenosnãoporenquanto.

—Tudobem.Sherlock,minhaadmiraçãoporvocêéinfinita.—Oqueaconteceu,Rufus?—perguntouSherlock.—Perdemosvocêem

Newcastle.Rufusfezumacareta.—Eles estavam nos seguindo desde Farnham— respondeu.—Pelo que

ouvi,encontraramochalédeAmyusCrowevazioedeixaramalguémdevigiaparaocasodeohomemvoltar.Foiaquelecamaradaderabodecavaloesemorelha.

Sherlockfranziuocenho.—Nãoovilá.Eolhequevasculhamosacasatoda.— Ele estava escondido em algum lugar do lado de fora. Havia feito um

buraco na parede e ligado um tubo acústico do chalé até seu esconderijo,passandoporbaixodaterra.Ouviutudoquevocêsdisseram.

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—Umtuboacústico?—perguntouMatty,confuso.—Algocomooqueocomandantedeumnaviousaparaconversarcoma

salademáquinas:umtubodetecidoreforçadoeencerado.Sevocêfalaremumadasentradas,alguémnaoutrapontaouveclaramenteacentenasdemetrosdedistância.

—Quemdiria?—murmurouMatty,masSherlockestavaserecriminando.Ele vira um tubo assim saindo do chalé de Amyus Crowe, mas não dera

importânciaàquilonaocasião.Agora,juroununcamaisignorarqualquercoisaqueparecessedeslocadoouestranho.

—Eleosouviunacasa—continuouRufus—,depoissaiuatrásdevocêseosescutoufalandodeEdimburgo.—Rufusbalançouacabeçaemlamentação.—Depoisdeavisaraseuscompatriotas,sóprecisaramnosseguiratéaestaçãode King’s Cross e pegar o mesmo trem. Decidiram capturar um de nós emNewcastleparadescobrirondeexatamenteAmyusCroweestavaescondidoemEdimburgo, se é que você havia acertado e ele estava de fato na cidade. —Rufusolhouparaasprópriasmãosensanguentadas;tinhaumaexpressãotristeno rosto.—Elesdescobriramqueeunão sabianadaalémdo fatodequeeleestava em algum lugar por aqui, então me mantiveram em silêncio e metrouxeram junto caso pudessemme usar contra vocês. Estávamos nomesmotremquevocês,masolíder,oquefezasperguntas,haviareservadoumacabineinteira,paraquenãofôssemosincomodados,eelesesperaramatéaplataformacarvaziaparadesembarcar.QuandochegamosaEdimburgo,arranjaramum

lugar para montar a base de operações e deram um tempo para que vocêsentrassem em contato com o Sr. Crowe, ou ele com vocês. Hoje de manhãresolveram raptá-los para descobrir se vocês sabiam mais do que eu. E, pelovisto,nãosabem.

—Naverdade—disseSherlock—,sabemossim.—Eleolhouparaojornalno chão, agora uma massa encharcada. Mas não tinha problema: ele haviadecoradoamensagem.—OqueaindanãosabemoséporqueelesestãoatrásdoSr.Crowe.—Sherlock touasmãosdeRufus.—Você... você vaipodervoltaratocarviolino?

— Preocupado com suas aulas? Nada de reembolso, camarada. — Rufusergueuasmãosdiantedorostoetentoudobrarosdedos.Fezumacaretadedor,mas continuou exionando-os.—Osmúsculos e tendões estão intactos.Oscorteseinchaçosvãosararcomotempo.NãovouarriscarnadadePaganinitãocedo,masorestantedorepertórioestáàminhadisposição.

Sherlockolhouemvolta.

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—Oqueaconteceu comohomemque fazia asperguntas?Oque tinha abengalacomumacaveiradourada?

Rufusfranziuatesta.—Elenãopassouporvocê?Acheiquetivessedescidopelaescada.—Nãoovi.—Sherlockselembroudamãodosujeito,iluminadapelaluzda

janela,eacrescentou:—Qualeraoproblemadapeledele?—Ah,vocêpercebeu?—Sherlockassentiu,eRufusexplicou:—Eletinha

tatuagensnocorpointeiro.Rosto,pescoço,mãos,braços...tudo.—Quetipodetatuagens?—perguntouSherlock.—Nomes—respondeuStone.—Nomesdepessoas.Algunsemtintapreta,

outros,emvermelho.Natestahaviaummaiorqueosoutros,emvermelho.—EleergueuoolharparaSherlock.—EraonomedeVirginiaCrowe.

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Capítuloonze

OCORAÇÃODESHERLOCKGELOU,mas,antesquepudesseperguntaraRufusporqueonomedeVirginiaestariaescritonatestadohomemcalmo,omúsicoergueuumasobrancelha,comosesubitamentetivesseacabadodeentenderalgoqueforaditoalgunssegundosantes.

—EntãovocêssabemondeAmyusCroweestá?—Elepublicouumamensagemnojornal—respondeuMatty.—Tavaem

código,masagentedecifrou.Sherlockolhouparaomeninoeergueuumasobrancelhapelo“agente”,mas

Mattyapenasabriuumsorrisoinocente.—Bomtrabalho.—Rufusolhouemvolta.—Precisamossairdaquiantes

quenossoamigovolte.Ostrêsdesceramaescadaeatravessaramocômododotérreo,desviando-se

dosdoisbrutamontesquecontinuavamgemendoeseretorcendodedor.Rufusparoueosencarouporuminstante.Umbrilhoemseusolhossugeria

queelepensavaemretribuirumpoucodadorqueosdoishaviamlhecausado,maselesevirouecontinuouandando.

— Poderíamos interrogá-los — falou, pensativo, como se ainda estivessetentadopelaideia—,maselesparecemdifíceisdedobrar.

— Não sei — disse Matty, acompanhando o olhar dele. — Já parecembastantedobrados.

Rufusosconduziuparaoarlivre.Océuencobertopareciarevestidoporumapelícula metálica, espalhando uma luminosidade sombria sobre a paisagem.Sherlockolhouemvolta,curioso.Presumiraquetivessemsidolevadosparaumacasa,mas,aoveroedifíciodeondesaírameosoutrosqueocercavam,percebeuqueseenganara.Osprédios,umcoladonooutro,eramestreitosetinhamseisandares.Osquarteirõeseramdivididosporbecosapertadosquepareciamtrilhasretas entrepenhascos verticais.Noníveldo térreohaviaportas emaisportas,umaaoladodaoutra,enosandaressuperioreshaviajanelas,dasquaismaisdametade estava sem vidro. Os edifícios pareciam vazios e sem alma, maispróximosdeformigueirosdoquedelugareshabitadosporpessoas.

—Oquesãoessesprédios?—perguntouSherlock.Curiosamente,foiMattyquemrespondeu:—Cortiços—disseele.—Eumelembrodaúltimavezquepasseiporaqui.

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Tememtodocanto.Sãolugaresbaratosondemoragentepobre,masapessoaacaba cando com apenas dois cômodos, empilhados junto dos cômodos deoutras pessoas como se fossem gaiolas de passarinho.Os cômodos são todosiguais: portas iguais, reboco igual, janelas iguais. Quem mora tenta dar umapersonalizada, com cortinas, vasos e coisas assim, mas é que nem botar umpedaçode taparadecorarumcaixoteempilhadocomummontedeoutros.Sómostracomotudoésemgraça.—Mattyfungou.—Echeiraarepolhocozido.

—O lugar parecedeserto—comentouRufus.—Umabasede operaçõesperfeita para nossos captores de além-mar. Como será que eles descobriramisto?

—Quandoeuvimaquiantes—continuouMatty—,ouviumboatodequeasautoridadestavamtentandotiraraspessoasdoscortiços.Parecequequeriamvender o terreno para construir fábricas, mansões ricas ou algo do tipo. Aspessoas com quem eu falei me disseram que as autoridades espalhavam umboatodequeumadoença,comotuberculoseouapeste,tinhaseespalhadopelocortiço.Eleslevavamtodomundoparaumabrigoeentãodemoliamocortiçoeconstruíamoutracoisano terreno.Enissoelesganhavammuitodinheiro.—Mattybaixouotomdevozatéumsussurro.—Ouvique,àsvezes,senãotinhavaganosabrigos,eleslevantavamummuroparafecharosacessosdoscortiçosedeixavamaspessoasládentromorreremdefome,masnãoacreditonisso.

—Oproblema—disseRufus,pensativo—équenãofazemosideiadeondeestamos, não temos como ir embora daqui e não podemos pedir ajuda aninguém.

Sherlockolhouemvolta.Aindatinhanobolsoomapa,masnãoserviriadenada.

—Achoquenoscarregaramatéoprédioapartirdali—disseele,apontandoparaumbecoentredoisedifícios.—Não zeramnenhumacurva, eesseéoúnicocaminhoreto.

—Acarroça jádevetersumido—comentouMatty, sério.—Aquelecaraquetavafazendoasperguntasdeveteridoemboranela.

Rufusbalançouacabeça.—Eletinhaaprópriacarruagem.Foiassimquemetrouxeparacá.Sóelee

umcondutor,queficouesperandoporeledentrodoveículo.—Comoos dois homens quenos sequestraramnoparque ainda estãono

cortiço—concluiuSherlock—,acarroçaaindadeveestarlá.Ostrêsseentreolharamporuminstante,depoisseguiramàspressasparao

becoqueSherlock indicara.Obeco seabriaparauma ruade terrabatidaque

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levavapara longedoscortiços.Dooutro ladodarua,algunscavalosmagrosefracospastavamemumterrenobaldiocobertodemato.SherlocknãoresistiuaoimpulsodecompararacenacomochalédeAmyusCroweemFarnham:umlocalbonitoerústico juntoaumcampoondeSandia,aéguabem-cuidadadeVirginia,pastava feliz.Ali,porém, tudopareciauma inversãosombriadaquelelugarqueeleconhecia:sequênciasdeedifíciosidênticoscomaspectodeprisõescavamjuntodeumafaixadeterrenoáridoondealgunscavalos,quepareciam

irmãosesquecidosdeSandia,haviamsidodeixadosparamorrer.Ao olhar para umadas portas dos cortiços, Sherlock percebeumovimento.

Estreitouosolhos,tentandoveroqueera.Umacortinabalançandoaovento?Umpomboouumagaivotaseacomodandononinho?

Algo branco se mexeu na escuridão depois da porta. Dessa vez, Sherlockpercebeurapidamentequeeraumacaveira.Ascavidadesocularesprofundas,asuperfície careca da cabeça, as proeminências marcadas da face e o sorrisosinistro—outromortooencarava!

A gura recuou para a penumbra antes que Sherlock pudesse chamar aatençãodeMattyouRufusStone.Omeninoobservoua sequênciadeportasdesesperadamente.Seráqueestavamesmoenlouquecendo?Amaioriadasportasestavavazia,mas...sim,ali!Haviaoutra guraesquálidaebrancanassombras,observando-o. Mas a gura recuou para a escuridão assim que percebeu quehaviasidovista.

Aquelascriaturastinhamalgumarelaçãocomosamericanosqueoshaviamcapturadoouseriamalucinações,frutodeumamentefragilizada?

Ele olhou para Matty e viu que o menino também encarava a porta docortiço.Virou-separaSherlock.

—Vocêviuaquilo?—perguntouSherlock,desesperado.Mattyassentiu.— Eram os mortos ambulantes, não eram? Eles estão nos seguindo. Eles

queremagente.—Nãoacreditoquemortospossamandar.—Porquenão?—Vocêjáviucoelhosmortosemaçouguesepeixesmortosembarracasnos

mercados?—Já.Edaí?— Eles nunca se mexem. Jamais. Quando alguém morre, a chama vital

desaparece.Some.Sórestaacarne,eacarnesedecompõe.Animaismortosnãovoltamàvida,entãopessoasmortastambémnão.

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Mattynãopareceuseconvencer.—Nãotenhotempoparadiscutircomvocê—disseele.—Vamos!—gritouRufus.—Precisamossairdaquiantesqueelesvoltem!Haviaumacarroçaparadaàbeiradocaminho,ocavalopresoaumaárvore

mirrada. O animal parecia em condições muito melhores do que os quepastavamdooutroladodarua.

—Aquilo—disseRufus—vainoslevarparacasa...querdizer,seaomenossoubéssemoscomochegarlá.

— Eu decorei o caminho — respondeu Sherlock. — Posso comparar ostemposeinverterascurvas,eassimrefazerarotaatéohotel.

—Masprecisamoscobrirsuacabeçacomumsaco—murmurouMatty.EleolhouparaSherlocke sorriu.—Paraque seja igual à viagempara cá.Senão,vocêtalvezerreotrajeto.

Os meninos subiram na caçamba da carroça, e Rufus se acomodou noassentodo condutor.Ele tentouagitar as rédeas, eo cavalo começoua trotarcomo se alguém tivessedisparadoumaarma.Oanimalnãoparecia gostardeestarpertodoscortiços.

SherlockselevantouatrásdosombrosdeRufus,segurando-seemumatábua,e tentou inverterocaminhoqueeleshaviamfeito.Omeninopresumiuqueacarroça seguia mais ou menos na mesma velocidade, então só precisava selembrar das curvas e do tempo aproximado e inverter a sequência e, claro, adireção. Para cada curva que eles haviam feito à direita saindo do centro dacidadeparaoscortiços,precisariamagorafazerumaàesquerdaparavoltar.

Ele sentia o pescoço latejar, e seus tornozelos estavam em carne viva porcausadacorda.Cadavezquerespirava,sentiaumapertonagarganta,comoseacartilagemtivessesidoempurradaparadentro.Noentanto,piordoqueasdoresfísicaseraasensaçãodeimpotênciaqueotomaraquandoeleestavapenduradono quarto do cortiço. Ele já havia corrido risco de morte antes, mas sempreacreditaraqueseriapossívelfazeralgo,lutardealgumaforma.Atéselembrardafacaquetrazianobolso—dafacadeMatty—,eleestiveracompletamenteàmercêdohomemcalmo.Estiveraasegundosdeumamortelentaedolorosa.

Senãotivesse cadocomafacadeMatty,seseuamigonãotivessefaladoparaeleguardá-la,nãoteriaconseguidoescapar.Estariamorto.

A sobrevivênciapodiadependerde circunstâncias tão triviais comoessa.Aideia o incomodava. Ele olhou para Rufus, que também estava ferido, e seperguntouseeletambémpensavanessaquestão.

Levarammeiahora,eduascurvasnadireçãoerrada,atéchegaremaoparque

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naPrincesStreet.—Certo—disseRufus.—Paraondeagora?SherlockolhouparaMatty.—Vocêquerfalar?—desafiouele.—Afinal,agentedescobriu.—Não.—Mattysorriu.—Podefalar.—Eles estão escondidos em um lugar chamadoCramond. Já procurei no

mapaeseiocaminho.Devemoslevarmaisoumenosumahoraparachegarlá.—Vamoscomeralgumacoisaantes—disseStone—,etomarumbanho.

Nãoseiquantoavocês,masestoufaminto.Depois que eles comeram e se lavaram, Matty surrupiou um cachecol de

algum lugar, e Sherlock o enrolou no pescoço para cobrir as marcas. Então,seguindoasdireçõesde seualuno,Rufusguioua carroçapara forada cidade.Demorouumpoucoatédeixaremascasasparatráseentraremnaregiãorural,edurantemaisoumenosmeiahoraSherlocksentiuapresençadaformaescuradoCastelodeEdimburgoseerguendoacimadeles,empoleiradoemseuimensomonte rochoso. O céu cinzento e pesado re etia o estado de espírito deSherlock. O que havia começado como uma aventura para encontrar seusamigosagoraparecia algomuitomais sombrio edesagradável.Alguémqueriaferir Amyus Crowe, com certeza. A pergunta era: por quê? No entanto,qualquerque fosseomotivo,Sherlockparecia ter indicadoo caminho até elesemquerer.Agora,omáximoquepodiafazererachegaraAmyusCroweantesqueseusinimigosdescobrissemseuparadeiro.

Sherlockolhouparatrásnaestrada.Queriaconferirsehaviaalguémacavalo,ou alguma carroçaou carruagemacompanhando-osde longemas semnuncacarmuitopara trás.Nãoviunada,mas achouqueprecisaria fazer algomais

para identi car um possível perseguidor. Em duas ocasiões, pediu que Rufusguiasseparaforadaestradaeescondesseacarroçaatrásdeumceleiroporvinteminutosenquantoelepróprioobservavaatentamentecadaveículooucavaleiroque passava. Não reconheceu ninguém, e nenhum passante demonstrouconfusãoporterperdidodevistaalgumapessoaqueestivesseseguindo.

Acertaaltura,enquantootrioesperava,Sherlockinclinou-separaRufus.—AcheiquevocêtivessesidocapturadopelaCâmaraParadol,lánotrem—

disseele.—Porquevocêpensou isso?Nãovimosnemouvimosumpiodelesdesde

Moscou... tirando aquela tentativade fazer comque você fossediagnosticadocomoloucoeinternado.

Sherlockfezumacaretaaolembrar.

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—AchoquevioSr.KytenaestaçãodeNewcastle.Eleestavaatrásdeummonte de bagagem, olhando para mim. — O menino hesitou, sentindo umaperto no peito. — Achei que a Câmara Paradol talvez tivesse decidido sevingardealgumaformaportermosestragadoseusplanos.Achoqueelesaindaqueremacertarascontascomigo,ecomvocê.

—Sejacomofor—disseRufus,dandodeombros—,nãovioSr.Kytenaestação.Setivessevisto,teriapegadoaquelabarbaruivaenormeeaenfiadotodapelagoeladele.Umconselho,Sherlock:nuncacon enosruivos,sejahomemoumulher.Elesnasceramparacausarproblemas.

—Virginiaéruiva—comentouSherlock.Rufussevirouparaomeninoeofitoucomumaexpressãodeadvertência.—Nessecaso,meuamigo,vocêtemumproblema.Poucoàvontadecomorumoqueaconversatomara,Sherlockdisselogo:—OquevocêachaqueessaspessoasqueremcomoSr.Crowe?— O mesmo que você parece achar que a Câmara Paradol quer conosco:

vingança.—MasoqueoSr.Crowefezparaeles?—AmyusCrowe é uma fera complicada— respondeuRufus.—Por um

lado, ele é civilizado, justo e muito educado. Por outro... — Ele hesitou. —Digamosassim:achoque,sedescobrirmosmaissobreopassadodoSr.Crowe,talveznãogostemosdetudooqueencontrarmos.

—ElenosdissequefoiumespiãodaUniãocontraosConfederadosdurantea Guerra entre os Estados — protestou Sherlock. — E depois disso foiresponsável por perseguir e capturar criminosos confederados que haviamsaqueadocidadescivisduranteaguerra.

—Sim—reconheceuRufus—,elenosdisseisso.Masnãodetalhoutudooquefezparacapturaressescriminosos,enãofalouquantoseleconseguiulevaràJustiça e quantos acabaram morrendo em tiroteios antes que fossem presos.Lembre-se, Sherlock,AmyusCrowe é um caçador de recompensas.Ele caçahomensemtrocadedinheiro.—Rufussuspirou.—Sóqueagoraparecequeestásendocaçado,enãopordinheiro.Esseshomensqueremdarotroco.

—Vocênãogostadele,nãoé?Rufussorriu.—Ah,deuparaperceber?Não,elenãoéotipodehomemqueeuconvidaria

parasesentaràminhamesaemumataverna,paratomarumacervejaefumarum cachimbo. Acho que não teríamos muito assunto para conversar, masteríamos muitos motivos para discutir. Tenho um enorme respeito pela

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santidadedavidahumana,eacreditoqueoSr.Crowenãoprecisariademuitoincentivoparatiraravidadeoutrohomem.Eopior:elenãogostademúsica.

Sherlock couemsilêncioporummomento,digerindooqueRufusStonedissera. Não encontrou nenhum erro na lógica nem na maneira como eledescrevera Amyus Crowe, mas também não pôde conciliar as palavras durascomo sorriso amigável que já virano rostodoSr.Crowe,nemcoma formacomo o professor o acolhera e cuidara dele. Será que todas as pessoas eramassim—complicadasedifíceisdeseremcompreendidas?Emcasoa rmativo,oquedizerdopróprioRufusStone?OudeMycroft?

Oudelemesmo?Sherlock afastou aquele pensamento. Preferia acreditar que as pessoas

exibiamnasuperfícieumaimagemdoqueeramdeverdade.—QuantosamericanosvocêachaqueestãoaquinaInglaterracaçandooSr.

Crowe?—perguntoueledepoisdeumtempo.— É impossível saber — murmurou Rufus. — Havia três lá no cortiço.

Contandoocondutordacarruagemdolíder,considerandoqueelesejapartedogrupoenãoapenasalguémcontratadoparaodia,sabemosquerestamdois.Oproblemaéquepodehaveroutros,quenãosabemos.

—Tinhadoismecarregando—disseSherlock.—Edoismecarregando—acrescentouMatty.—Entãosãonomínimoquatropessoasaindaàsolta.Oproblemaéque,seo

líder veio para cá comdinheiro, pode contratar qualquer reforço que precisar,pessoas de qualquer nacionalidade. Em qualquer cidade grande nas IlhasBritânicasexistegentedispostaamataraprópriaavóemtrocadeumanoitedebebidaeapostas.—Rufussuspirou.—Émuitagenteruimnomundo,esãoescassasepreciosasaspessoasboasqueasenfrentam.

—Tudobem—disseSherlock.—Umhomembomvalepordezruins.Mattybufou,eRufusoencaroucomumaexpressãocética.—Seomundofuncionasseassim,ascoisasseriammuitomelhores.—Quandoeucrescer—murmurouSherlock—,voufazercomquesejam

melhores.—Quer saber?—disseRufus, comumsorriso estranho.—Achoquevai

mesmo. Tanto você quanto seu irmão, mas de maneiras radicalmentediferentes.

—Mas,aocontráriodeMycroft,nãovoutrabalharparaogoverno.—Porquenão?—perguntouMatty.— Não gosto de receber ordens — respondeu Sherlock, sério. — De

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ninguém.Seiqueàsvezesépreciso,masnãogosto.Quandovoltaramparaaestrada,nãohavianinguémàvista.Aparentemente,

eleshaviamsaídodacidadesemseremseguidos.A paisagem era formada por a oramentos rochosos e porções acidentadas

cobertas de vegetação rasteira. O terreno era tão irregular que os trechosnivelados da estrada duravam apenas alguns minutos, e Rufus precisava sedesviardocaminhoparacontornaralgumaspartesrochosasmaiores.

Cramond cava no litoral: um conjunto de chalés de granito com teto depalha.Osblocosdepedradascasaseramentremeadosporcamadasdemofodeumestranhotomesverdeado;pareciamaglomeraçõesdealgumtipodealgaque,trazida por uma tempestade, proliferara em vez de morrer. O ar cheirava amaresia,egaivotasguinchavamcomobebêsabandonados.

Quandoacarroçacontornouumacolina,Sherlockde repenteviuomar seestendendoabaixodeles.Osoltocavaacristadasondaseasfaziabrilharcomum tom hipnótico, pontos de luz dançando diante de um pano de fundocinzento-esverdeado.As ondasmais próximas da costa quebravam em linhasparalelas de espumabrancaque apareciamde repente, utuavamumpouco evoltavamasumir.

—Bom, aqui éCramond—disseRufusquando eles começaramadescerparaopovoado.—Algumaideiadeaondevamosagora?

—Semprepodemosperguntarsealguémviuumamericanograndãodeternoechapéubrancos—sugeriuMatty.

— Acho que ele deve ter se desfeito das roupas chamativas — comentouSherlock.—Enósdoisjáovimosentraremtavernaseoutroslugaresefazerperguntascomumsotaqueinglêstãobomqueeracomoseeletivessecrescidoaalguns quilômetros de Londres. Não, o Sr. Crowe é um caçador com ahabilidadedeseadaptaraoambientedetalformaquesóépossívelrepararneleseelequiser.Aestaaltura, jádeveestarcomumsotaqueescocês tãoperfeitoqueconvenceriaqualquerumdequenasceuemEdimburgo.

—Entãorepitoapergunta:algumaideiadeaondevamosagora?Sherlockpensouporuminstante.— Sabemos que ele quer quenós o encontremos, porque nos enviou uma

mensagem em código. Então vai deixar um rastro que apenas nós possamosseguir, ou vai presumir que eu consigo descobrir. Não vai car no centro dopovoado,porqueestariamuitoexposto.Pormaisqueelemudeosotaqueeasroupas, não tem como disfarçar a altura. E ele está com Virginia. Então vaiarranjarum lugar isolado, eprovavelmentevai esconderVirginia.—Sherlock

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deixouamente trabalhar livrementenosdiversosparâmetrosdoproblema.—Ele não vai alugar um chalé nas estradas principais que entram e saem dopovoado—murmurou—,porqueseriamgrandesaschancesdequealguémovisse. Ele preferiria algum lugar alto, para que pudesse ver qualquer um seaproximando de longe, e para que tivesse a vantagem do terreno elevado. Sealguém o encontrasse, teria que se aproximar devagar, subindo, enquanto elepoderia jogarpedraseoutrascoisaspelodeclive.—Sherlockfranziuocenho.—Talvez escolha um lugar no alto de uma colina, para que ele e Virginiapossamescaparemqualquerdireçãose forematacados,mas issosigni caquequalquer pessoa hostil poderia vir de qualquer lado, enquanto ele só poderiavigiar uma direção de cada vez, ou duas, se Virginia ajudasse. Não: é maisprovávelqueeletenhaescolhidoalgumlugarpertodotopodeumacolina,masem uma fenda, uma depressão ou algo assim, de modo que qualqueraproximaçãotenhaqueserfeitapelafrente.

—Issorestringeasopções—disseRufus.—Podemosperguntaraalguémseháchalésassimporaqui.

—Temumjeitomelhor—disseMatty.—Como?—Garotosdaminha idade.—Matty apontouparaoprópriopeito como

polegar, para dar ênfase. — Tem garotos como eu em qualquer cidade oupovoado.Elesvãoparatodocantoeveemtudo.Nãotemcomosegurá-los.Ésóacharmos um e darmos uns trocados. Ele vai saber onde o Sr. Crowe táescondido.

— Melhor ainda — acrescentou Sherlock —, o Sr. Crowe provavelmenteestálhespagando.Elesabequeessesmoleques—omeninolançouumolharde desculpas para Matty — vão para todo canto e veem tudo. Vai dar umtrocadoparatodos caremdeolhonocasodealguémdesconhecidoaparecer.Evãoficardeolhoemnóstambém.

Animados por essa estratégia, eles avançaram para o centro do povoado.Sempre que passavam por um garoto sozinho ou em grupo, com cabelobagunçado e roupas sujas, Matty pulava da carroça e ia abordá-lo. Semprevoltavabalançandoacabeça,dizendoquenãoconseguiranada,masSherlockpercebeuque,cadavezqueostrêsseafastavam,ogarotosolitáriooualguémdogrupoiaembora.Todosiammaisoumenosnamesmadireção.

—Devemosseguiralgumdeles?—perguntouRufusdepoisdeumtempo.Acarroçaestavaparadaemumaruadeterrapertodocentrodopovoado.—Não—responderamSherlockeMattyjuntos.

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— Eles devem ter ido avisar algum outro garoto, um mais velho, quecentralizaasmensagens—explicouSherlock.

—EessevaimandaralguémfalarcomoSr.Crowe—acrescentouMatty.—Seagentechegarpertodessegarotomaisvelho,sóvamosconseguir fazercomqueeledênopé,eaívoltaremosàestacazero.

—ConsiderandoaextensãodoserviçodeinteligênciadoSr.Crowe—disseSherlock—,émelhoresperarmosaqui.Quandoelereceberasmensagens,vaimandaralguémaonossoencontro.

Defato,passadoalgumtempo,ummeninosujoedesarrumadoseaproximoudeles.Estavadescalço,ospésquasepretosdesujeira.

—Tarde!—disseRufus,tocandoatesta.—Tenho umas perguntas para fazer a vocês—disse omenino, com um

sotaqueescocêscarregado.—Váemfrente.—Qualéonomedocavalodaguria?—Guria?—perguntouSherlock.—Agarota—explicouMatty.—Virginia.—Ah.—Sherlockfaloumaisalto.—ÉSandia.—Certo.Equaléonomedoseucavalo?Sherlocksorriu.IssoacabaravirandoumapiadaentreeleeVirginia.— Ele cou um bom tempo sem nome, mas no nal batizei-o de

Philadelphia.—Certo—confirmouomenino.—Equaléoseusobrenomedomeio?—Scott—disseSherlock.—SouSherlockScottHolmes.—Vamos láentão.Vou levarvocêsatéondequerem ir.—QuandoRufus

agitou as rédeas para fazer o cavalo andar, omenino acrescentou:—Melhordeixaracarroçaaqui.Vamossubirladeira.

Eleconduziuostrêsporumatrilhaforadaestradaecolinaacima,pulandodepedra em pedra e de montinho em montinho. Sherlock, Matty e Rufusseguiram-nodamelhorformapossível.Atrilhaeraíngreme,eocorpocastigadode Sherlock teve di culdade para acompanhar o ritmo. Depois de algunsminutos, ele ofegava e sentia algo raspar no fundo do peito. Os tornozeloscomeçaramadoernopontoondeacordahaviaapertado,eemdezminutosassgadas se estendiam pelos músculos da panturrilha. Mas ele continuou

andando.Nãotinhaescolha.PercebeuqueRufusestavapenandotambém.A trilha passava diante de vários chalés espalhados pela encosta da colina,

comvistaparaacidadeabaixoeomar.Dequandoemquando,Sherlockolhava

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apaisagemporcimadoombro.Omarpareciaumlençollevementeondulante—cinzentoagora,vistodoalto,enãoverdecomoquandoeleoviraaochegaraopovoado—,eerapossívelveráreasmaisescurasonde,Sherlocksupôs,haviadepressõessúbitasnaareiaabaixodasuperfície.Aáguatocavaaterraaolongode um cais de pedra, onde havia uma série de barcos de pesca ancorados, osmastrosbalançandoao sabordasondas.Demaneirageral, eraumapaisagemextraordinariamente pací ca. Apesar da dor nas pernas e no peito, Sherlocksentiu o aperto no coração relaxar de algum modo. Matty parecia sentir omesmo.

Passaramporumacapeladepedraeumcemitério—opontomaisaltodaáreadopovoado.Depoisdisso,começaramaescalar,pelomatoaltoecardos.Os gritos das gaivotas os acompanhavam. Ao olhar para trás, para o mar,Sherlock percebeu que haviam subido tanto que as gaivotas agora voavamabaixodeles.

Depoisdevinteminutosdeescaladaintensa,chegaramaumpontoondeacolina se elevava à direita e à esquerda. Seguiram então por uma gargantaestreitanomeio,comumacliveligeiro,cercadadepenhascosrochososimensospelosdoislados.Olhandoporcimadoombro,omeninodisse:

—Subidadifícilmaisadiante.Preparem-se.Eletinharazão.Depoisdeunstrintametrosdeacliveconstante,porentreos

penhascos cada vezmais próximos, os quatro chegaram a um trecho onde oterrenoàfrenteeraumasubidaíngremedeunstrêsmetros.Nãoeratãoverticalquantoospenhascosdeambososlados,masaindaassimerabastanteíngreme.Aúnicapossibilidadeeraescalarusandotantoasmãosquantoospés.Quandochegaram ao topo, Sherlock olhou para trás. Ficou impressionado com aaltitude em que estavam. Lá longe viu a linha escura onde o céu cinzentoencontravaooceano,tambémcinzento.

Ocaminhocontinuoucadavezmaisestreitoatéumacurvaabruptaàdireita,demodoqueo naldagarganta—sealgumdiachegassemlá— cavaoculto.Seguiramescalando,exaustosdetantoesforço.

Depois de alguns minutos, Sherlock olhou para trás mais uma vez. Viu abeiradadotrechoqueeleshaviamescaladocomasmãoseospés,mas,foraisso,nãohaviamaisnadaalémdocéu.Adescidaeramuitoíngreme.

En m, quando terminaram de contornar a curva na garganta, viram umchalé isolado. Feita com o mesmo granito cinzento e afetada pelos anos detempestades, a construçãoparecia terbrotadoda colina.Estava encravadaemumafendaemV,ondeagargantaterminavaderepente,eochãoentreacurva

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ea fendaestavacheiodepedrasvariadasquehaviamcaídodospenhascosaolongodosanos.Dosdois lados,paredões rochosos seelevavamatéo topodacolina. Se aquele era o esconderijo de Amyus Crowe, tinha a aprovação deSherlock.Aúnicaviadeacessoeraumasubida,pela frente.Por todaavolta,um paredão rochoso erguia-se pelos lados e por trás. Qualquer pessoa quetentassedescerporaliarriscariaaprópriavida.

Omeninoqueos conduziaparoudiantedas janelas do chalé.Esperou ali,enquantoSherlock,RufuseMattysejuntavamàssuascostas,eentãoumadasjanelas se abriu e se fechou. Um sinal de que eles podiam se aproximar. Derepente,SherlockimaginouAmyusCrowesentadodentrodochalé,apontandoumaarmagrandeparaajanela.Sealguémseaproximassesemesperarparaseridenti cadooureceberosinalparaseguiremfrente,Sherlocknãotinhadúvidadequeeleabririafogo.

Omeninoescocêssevirouefalou:—Ohomemgrandedizquevocêspodementrar.—Obrigado—respondeuSherlock.Porimpulso,eleen ouamãonobolso

e pegou uma moeda. — Agradecemos a ajuda — acrescentou, estendendo amoeda.

Omeninoolhouparaodinheirocomumaexpressãotriste.—Ohomemgrandenospagabem—disseele,mantendoasmãosjuntoao

corpo. — Ele diz que quem aceita dinheiro de dois senhores não merece aconfiançadenenhum.

Sherlockassentiuerecolheuamão.—Bomconselho—disseele.Omeninodesceuacolinaassoviando.—Eagora?—perguntouMatty.— Agora vamos descobrir o que é que está acontecendo — respondeu

Sherlock,indonadireçãodochalé.

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Capítulodoze

PARA SHERLOCK, AQUELES ÚLTIMOS METROS talvez tenham sido os maisdifíceisdesuavida.Elenãosabiaquetipoderecepçãooesperava—seAmyusCrowe cariafelizemvê-lo,seVirginiaestariaaliouescondidaemoutrolugar,e,acimadetudo,seelesvoltariamaFarnhamoudeixariamopaís.Sherlocknãotinhaindíciossuficientesparadeduzir,eissooincomodava.

Chegoulácomocoraçãopulando.Estavafechada.Elebateu.—Podeentrar—disseumavozconhecida.Sherlockempurrouaportaparaabri-laeentrou,seguidodeRufuseMatty.

Levoualgunssegundosparaseusolhosseacostumaremàescuridãodochalé—o que ele supôs ser uma medida intencional. Quando conseguiu enxergardireito, percebeu que Amyus Crowe estava de pé do outro lado do cômodo.Usavaumternoescuroeseguravaumaarma.

—Muitobem—disseCrowe.—Vocêdecifrouas charadas.Sabiaque iaconseguir.

—Nãofoidifícil—disseSherlock,dandodeombros.—Talveznãoparavocê.—Crowe touoscompanheirosdeSherlock.—

JovemSr.Arnatt, bem-vindo aosmeus aposentos temporários.EoSr.Stonetambém.Sintam-seemcasa,todosvocês.Senãoseimportarem,vou carpertoda janela. Não estou esperando mais ninguém, mas nunca se sabe quandoalguém pode aparecer para fazer uma visita. Gostariam de beber algo? Umpoucod’água,talvez?

— Depois dessa trilha — disse Rufus Stone —, uma bebida cairia muitobem.Vocênãoteriacerveja,poracaso?Outalvezsidra?Umajarradesidraseriaperfeitoagora.

Crowesorriu.—Possoverseachoalgodotipoporaqui.—Eleergueuavoz:—Virginia,

jápodesair.Temosvisitas.UmaportaatrásdeCroweseabriu,eVirginiaentrounocômodo.Seucabelo

pareciabrilhar feito fogonapenumbra.Elaolhavaparabaixo, estranhamentetímida,masdepoisdealgunssegundosergueuavistaeencarouSherlock.

E então amenina correu até ele, envolveu seu pescoço comos braços e obeijou.Elehaviasonhadocomessemomento,imaginandocomoseriabeijá-la,masarealidadeeramuitomaisintensadoqueelepensara.Opesodocorpodela

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em seus braços, o calor dos lábios dela colados aos seus, o cheiro do cabelodela...Sherlocksesentiutomadopelaemoção.Suamentenãosabiaoquefazer,maselelogosedeucontadequeocorponãoesperouinstruçõesejáretribuíaobeijo.

Derepenteamenina interrompeuocontato, recuandoumpasso,mas semafastá-lo.Sherlockteriavistoissocomoumgestoderejeição,nãofosseofatode que ela continuava com asmãosnos braços dele.Virginia o encarou comaquelesolhosvioletaprofundos,eSherlockviuqueelaestavaprestesachorar.

—Vocêveioatrásdenós—sussurrouela.—Eutinhaquevir—respondeuele,simplesmente.Aspalavrassaíramdo

nada,imprevistas.—Nãopossoviversemvocê.—Pormaisqueeudetesteinterromperoreencontro—disseAmyusCrowe,

comumavozgrave—,precisamosterumaboaconversa,eacreditoqueoSr.Stonevaiacabarperdendoofôlegoaínaportaseeunãolhederalgoparabeber.Ginnie,façaadelicadezadebuscarbebidasparanossosconvidados.

VirginiaapertouosbraçosdeSherlockporumsegundoeentãoosoltou.Elase afastou, sem interromper o contato visual. Sherlock sentiu que poderia seafogarnaquelesolhos.Eracomoseelaestivesseenviandoumamensagem,masele não sabia qual era. Talvez ela também não soubesse. Talvez o maisimportantefosseaexistênciadeumamensagem,enãoseuconteúdo.

Ameninabaixouosolhos,eSherlocksesentiucomoumamarionetecujascordas tivessem sido cortadas subitamente. Virou-se para olhar o restante docômodoe asoutraspessoas:omundoparecia termudado.Tudoestava igual,masdiferente.Elenãosabiaexplicarmuitobem.

AmyusCroweoencaravacomumaexpressãoestranhanorosto.Ergueuumadesuassobrancelhascheias.

—Paramimbastaumapertodemão,senãoseimportar.Sherlocksorriu.—Ficofelizdesaberquevocêestábem—disseele.—Ficofelizdesaber

quevocêsestãobem.Quandovimosochalévazio,ficamospreocupados.Croweassentiu.— Não tivemos escolha. Ouvi dizer que tinha alguém nas redondezas

procurando por mim e minha menina. Normalmente eu teria ido atrás daspessoas que estavam fazendo as perguntas e faria algumas para elas também,mas,quandoouviadescriçãodossujeitos,decidiquemaisvaliaadiscriçãoqueabravuraedeiofora.

—Elessãotãoperigososassim?—perguntouStone.—Precisodizerqueo

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jovemSherlockaqui lidoumuitobemcomdoisdeles:umcamaradadecabelopretoquepareceterproblemasdeaudiçãoeumamigodelecomcaradebatata.

— Esses são Ned Fillon e Tom Payne. — Crowe pareceu perceber derepente que ainda estava segurando a arma, e a colocou emumamesa a seulado.—Elessãoospeixespequenos.Éohomemparaquemelestrabalhamquemedeixatremendonasbases.

—Achoqueoconhecemos—disseSherlock.—Nãoconseguiverorostodele,masouvisuavoz.Elefalavamuitobaixo.

— Eu o vi — disse Stone —, e queria muito não ter visto. Ele tinhatatuagensnocorpointeiro.Nomesdepessoas.

Ele lançou um olhar rápido para Virginia, mas Crowe balançou a cabeçaligeiramenteparaalertarRufus.ApenasRufuseSherlockperceberam.

—BryceScobell—disseCrowe,comargrave.—Entãoeleestáaqui.—Oamericano suspirou.—Eu estava esperando que ele só tivessemandado seushomensatrásdemim,masachoquefoiotimismodemaisdaminhaparte.EleestátãoloucoatrásdemimqueveioeleprópriodosEstadosUnidos.VocêoviuemFarnham,imagino.

—Receioqueele tenhanos seguidoatéaqui—admitiuSherlock.—AtéEdimburgo.

Mesmo com a iluminação ruim, Sherlock percebeu que o rosto de Crowepareceu carmaispálidoeaindamaisrígidoqueonormal.OssinaiserambemclarosparaSherlock.Seumentorestavacontrolandoalgumaemoçãoforte.Eleestendeu a mão para a arma sobre a mesa e deu uma olhada na direção dajanela,porondepodiaverqualquerumqueseaproximassedochalé.

—Eu esperava—disse o enorme americano, escolhendo as palavras commuito cuidado, como se estivesse pisando em pedras para atravessar um rioperigoso—quevocêfossedisfarçarseurastrobemobastanteparaqueelenãooseguisse.Elesabedestechalé?

—Não.—Éapenasumaquestãodetempo.—Crowebalançouacabeça,irritado.—

Sherlock,comodiabosvocêpôdesertãodescuidadoedeixarqueeleoseguisse?— Ele ouviu Matty e eu conversando sobre Edimburgo antes mesmo de

começarmos a viagem — disse Sherlock, nervoso. —Tinha uma espécie detuboacústiconoseuchalé.

—Ah.—Croweassentiu.—Foiumaatitudemuitoespertadapartedele.—EleraptouRufusnotrem—acrescentouMatty—,edepoisraptounós

dois,masagentefugiu.

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—Vocêsfugiram?—Crowecontorceuorostoefezumacareta.—Duvido.Eleosdeixoufugir.

Mattyficouultrajado.—Sherlockquebrouaspernasdaquelesdoissujeitos...FillonePayne.Crowedeudeombros.—Scobell consideraria issoumpreçobaixo, se assimpudesse segui-los até

aqui.—Eleestavametorturandoparaobterinformações—comentouSherlock.

—Teriasidomuitomaisfácilcontinuarmetorturandoatéqueeufalasse,emvezdeabrirmãodedoisdeseushomens.

AraivadeCrowenãopareceudiminuir,maseleafastouamãodaarma.—Talvez—concordouele.—Vocêstêmcertezadequenãoforamseguidos

atéaqui?—Sim—respondeuSherlockcomfirmeza.— O que esse tal de Scobell tem de tão ruim? — perguntou Matty. —

Tirandoo fatodeque ele gostademachucarpessoas.Temmuitagentenestepaísquegostademachucarpessoas.Nãoentendoporqueeleseriatãopior.

Sherlock assentiu, concordando. As palavras de Matty o lembraram JoshHarkness,ochantagistaparaquemaSra.Eglantinehaviatrabalhado.Harknesseraumafiguraterrível;seriapossívelqueBryceScobellfossepior?

—Eupoderiadarváriosexemplos—respondeuCrowe—,masvoudeixarqueapenasumdêcontadorecado.—Seusolhospareciamnão tarSherlocknemninguémespecí co, e simalgoque só ele enxergava.—Scobell eraumtenente-coroneldoexércitoconfederado.Elenãobatiabemdacabeça,mesmonaquelaépoca.Achoquenãoexisteumapalavraparadescreveroqueeleera,oqueeleé.Elenãoéexatamentemaligno,mastambémnãotememoçõescomoculpa,remorsoouvergonha,comotodosnós.Elenemsentecoisascomoraivaoufelicidade.Parecesóseguirpelavida,emcompletaindiferençaatudo,excetoa própria sobrevivência. Acredita ser ele próprio a coisa mais importante domundoequetodoorestoexisteparafazercomquesuavidasejamelhoremaisfácil.—Crowe soltouum longo suspiro.—Aprimeira vezqueouvi falardeScobell foi quando ele foi enviado para lidar com uma rebelião de tribosindígenas. Tinham aproveitado a confusão da Guerra entre os Estados ecomeçadoaatacarfamílias,colonosouqualquerumqueconseguissemcercarematar.ScobellestavasobocomandodocoronelJohnChivingtonnaépoca,eeleslevaramumatropadaforçadevoluntáriosparaimpedirqueosarapahoeoscheyennerealizassemessesataques.

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Virginiavoltouàsalatrazendoumabandejacomcincocoposeumpratodepanquecasdeaveia.Detãoenvolvidosnahistóriadopaidela,ninguémhaviavistoameninasair.EladeucervejaaCroweeaRufusStone,eentãoentregoucoposd’águaaMattyeSherlock.Todosseserviramdaspanquecas.

—Issofoiháunscinco,seisanos—continuouCrowe.—Chivingtonerapastor, mas sua tolerância pelo próximo não se estendia aos índios. Ele osodiava com uma energia que a maioria dos homens dedica a escorpiões ecachorros sarnentos. Scobell, o subcomandante, não os odiava, mas osconsideravaseresinferioresquenãotinhamlugaremseumundo.Nenhumdosdois o ciais tinha qualquer pensamento solidário. Seguindo as ordens deChivingtoneScobell,ossoldadosatacaramnãosóoscheyenneeosarapaho,mastambémossioux,oscomancheeoskiowa.

Crowe tomou um gole da cerveja. Ninguém quebrou o silêncio tenso quereinavanocômodo.

— Os índios estavam sendo fortemente atacados — continuou ele —, edecidiramquequeriampaz,entãocombinaramdesereunircomasautoridades.Osíndiossaíramdoencontroachandoquetinhamfechadoumacordodepaz,masninguémchegouaassinarnada.Algunsdiasdepois,umcaciquechamadoChaleira Preta acampou com a tribo perto do forte Lyon. Eles não estavamincomodando ninguém... estavam só seguindo os búfalos ao longo do rioArkansas. Eles viviam dos búfalos, sabem... aproveitavam a carne, faziamroupas,usavamagordura,tudo.

Crowe se calou por um instante e olhou pela janela. Estendeu a mão nadireção da arma, mas o que quer que tivesse visto era provavelmente algoinocente — um pássaro, talvez, ou algum animal passando pelas pedras —,porqueoamericanorecolheuamãoevoltouafalar:

— Eles se apresentaram no forte Lyon, tal como tinha sido acertado, emontaramacampamentoemSandCreek,unssessentaquilômetrosaonorte.Oacampamento cava em uma depressão, cercada por colinas baixas. Poucodepois da chegada deles, Chivington e Scobell entraram no forte Lyon edisseramaocomandantedaguarniçãoqueiamatacaratribodeChaleiraPreta.O comandante disse que o cacique já havia se rendido, mas Scobell oconvenceudequeseriaumaoportunidadeperfeitaparaeliminarmaisíndiosdomundo.Elepareciacapazdeteressetipodein uênciasobreaspessoas.Nodiaseguinte,Chivingtonconduziuseussoldados,amaioriabêbada,peloqueouvifalar, e cercou o acampamento. Seguindo a sugestão de Scobell, Chivingtonlevouquatrocanhões.

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Virginia sentou-se ao lado de Sherlock. De alguma forma, sua mãoencontrou a dele.Omenino a apertou, para confortá-la, eVirginia apertou adele.

—Quandoviuastropassereunindoàsuavolta,ChaleiraPretahasteouumabandeirabrancadepazemcimadesuatenda.Semqualqueradvertência,esemconsultarChivington,Scobellordenouoataque.

Crowe se calou por um instante; o silêncio que pairou no cômodo aquelemomentopareciapesadoevivo.

—Foicomoseumatempestadedefogo,morteedestruiçãocaíssedocéuemcimadeles—sussurrouCrowe.—Homens,mulheres,crianças...todosforammassacrados pelos tiros de canhão e de fuzil. Não tiveram chance de sedefender. E quando acabou a munição, Scobell conduziu os homens para oacampamento, e eles mataram todo mundo a coronhadas e facadas. Todomundo.

— Com certeza alguém fez alguma coisa — disse Sherlock, chocado. —Querdizer,ChivingtoneScobellromperamotratadodepaz.

Crowedeuumarisadafria.—Que tratado de paz?Não existia qualquer papel assinado para servir de

referência.—Sherlockabriuabocaparadizeralgomais,masCroweergueuamãopara interrompê-lo.—Umoudoisanosdepois,Chivington foi levadoàcortemarcial e expulso doExército. Scobell desapareceu, e tem fugido desdeentão.

—Mas...crianças?—sussurrouVirginia.—Porquê?Nãofazsentido.—Quandoperguntaram,nacortemarcial,porqueascriançashaviamsido

mortas,Chivingtonrespondeu:“Porqueomalsecortapelaraiz.”Oengraçadoéque aposto que dava para ouvir a voz de Bryce Scobell falando pela boca deChivington.ApostoqueScobelltinhamuitomaisin uênciasobreseusuperiordoqueaspessoaspensavamnaépoca.

—E suponho— disseRufus Stone— que você tenha sido enviado paralevarScobellàJustiça.

— Isso, ou para lhe dar a justiça que eu decidisse — respondeu Crowe,simplesmente. — Recebi a permissão do presidente Andrew Johnson empessoa. — Ele balançou a cabeça. — Quase peguei Scobell três vezes, emlugares diferentes do país. Perdi vários homens bons em trocas de tiros pelocaminho.

—Eoqueaconteceu?—perguntouMatty,semfôlego.Croweoencarou.

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—Deixe-medarumexemplodecomoScobellé—disseele.—Cincinnati,três anos atrás: eu tinha descoberto que Scobell estava hospedado em umapensão.Cercamosolocaleinvadimosoquarto.Elejáhaviafugido,masadonadapensãoestavalá,sentadanacama.Tinhaumabananadedinamiteemumadasmãos e umpalito de fósforo na outra.Quando nos viu, riscou o palito eacendeuadinamite.—Crowefezumapausa,balançandoacabeça.—Quasenãoconseguimossairdoquartoatempo.Aexplosãomatouamulher,éclaro.DepoisdescobrimosqueScobellhaviaraptadoa lhadelaefaladoquematariaameninaseelanãosefizessedearmadilhavivaparanós.Eamulheracreditou.

—Oqueaconteceucomafilha?—perguntouMatty.—Ah,eleasoltou.Jánãoprecisavamaisdamenina.Obviamente,ela cou

semmãe,masScobellnãoseimportavacomisso.SherlockfitouAmyusCrowe.Oamericanoestavaescondendoalgumacoisa.—Porqueelemudoudetática?—perguntouSherlock.—Vocêcomeçou

perseguindoele,masagoraéelequemopersegue.Oqueaconteceu?CroweencarouSherlockcomumaexpressãotranquila.—Vocênãodeixa passar nada, hein, garoto?Tem razão.Aconteceu algo.

Faleiqueperdialgunshomensemtrocasdetiros,armadilhasecoisasdotipo.MasScobelltambémperdeualgo.Eleperdeu...—CrowehesitoueolhouparaVirginia.—Nuncaconteiissoparavocê,Ginnie.Achoquevaimeacharumapessoaruimaoouviroqueestouprestesadizer,masnãotemjeito.Éaverdade,queDeusmeperdoe.

Elerespiroufundo,obviamenteseobrigandoacontinuar.Sherlockpercebeuqueestavaprendendoarespiração,naexpectativa.

—BryceScobelltinhaesposae lho.Nãoacreditoqueeleamassenenhumdosdois.Nãoacreditoqueelesejacapazdeamar.MasachoqueelesforamomaispróximoqueScobellchegoudisso.Talvezestivessemaisparasentimentodeposse...nãosei.Noentanto,oqueaconteceufoiqueencurralamosScobelleseus guarda-costas em uma casa de fazenda em Phoenix. Eles começaram aatirarquandonosviram,eatiramostambém.Doisdemeushomensmorreramnofogocruzado,etambémamulhereo lhodeScobell.Nemimaginávamosqueelesestavamlá.Scobellescapou,comosempre,masnaquelediajurouquemefariapagarpeloqueeuhavia feito.—Crowefezumacareta.—Ummêsdepois, recebi uma mensagem. Era de Scobell. Ele dizia que mataria minhaesposaeminha lha,equeeuseriaobrigadoaverminhafamíliamorrer.Disseexatamente o que ia fazer. Não era... o tipo de coisa que ocorreria a alguémnormal e temente a Deus, mas eu conhecia Scobell... sabia que, quando ele

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en ava uma ideia na cabeça, tornava-a realidade. Com a permissão dopresidenteJohnson,tireiumalicençaevimparacá.

— E agora ele o seguiu — falou Sherlock, quebrando o silêncio que seseguiraàconfissãodeCrowe.

— Como eu disse, quando ele en a uma ideia na cabeça, essa ideia virarealidade.

— Você podia ter pedido ajuda — comentou Rufus Stone. — MycroftHolmes com certeza teria colocado guardas para vigiar seu chalé. Oupoderíamosterrecrutadoalgumaspessoasdacidadeparaajudar.

—Porquantotempo?—perguntouCrowe.—AindaqueoSr.Holmesnosoferecesse guarda-costas dia e noite, não poderiamantê-los para sempre.Emalgum momento eles precisariam ser transferidos para alguma tarefa maisimportante.—Elebalançouacabeça.—BryceScobelléumhomempaciente.Pacienteemuito,muitoesperto.Eleteriaesperadoatéquetodomundo casseentediadoecansado,eentãoatacaria.

—Masvocêjáenfrentououtroshomensperigosos—observouSherlock.Omenino estava confuso.Não entendia por queAmyusCrowenão cara paralutar. Sempre achara que seu mentor fosse o tipo de homem que preferiaenfrentar a di culdade a fugir. Sherlock não disse, mas sentia-se um poucodecepcionado.—EuestavalánostúneisabaixodaestaçãodeWaterlooquandovocê lidou com aquele homem que queria me matar. Você quase quebrou opescoçodele,enãoparecianemumpoucoassustado.OqueesseScobelltemdetãodiferente?

—Sim, eu já enfrentei outros homens perigosos— concordouCrowe.—Algunsdossujeitosmaisfortesecruéisdomundo;masBryceScobelléoutrahistória.—Elesuspirou.—Édifícildescrever,masaquelehomemtemalgo...inumano.Amaioriadaspessoasevitaseferir,evitasemachucar,eissoservedevantagem emuma luta,mas ele não.Ele não se importa.Não digo que nãosinta dor, porque ele sente, só a ignora. Não se importa. E também não selembradador.Sevocêderalgunssocosnorostodeumhomemnormal,chegaummomentoemqueeleseafastaparanãolevaroutro,masScobell...sevocêacertarumprimeirogolpe,elevaise lembrardetersidoatingido,masnãovaiaprendercomador.Elenãotentaevitarogolpeseguinte.Seelecai,levanta-sedenovo,edenovo,edenovo.Elecontinuaatacando,comoumamáquina.—Crowebalançouacabeça.—Seiqueoqueestoufalandonãofazmuitosentido,masenfrentarBryceScobellécomoenfrentaralgumaforçasinistradanatureza.Eleéimplacável.Jáseriaruimosu cienteseelefosseburro,masBryceScobell

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é um dos homens mais inteligentes que conheço. Ele antecipa váriosmovimentos,comoseestivessejogandoxadrez,eatraigentecomoele.

—Nãoentendoosnomestatuadosnapeledele—disseVirginia,derepente.Elahavia cado em silêncio até então.—Porque ele faria isso?Oquequerdizer?

—Éuma xaçãodele—respondeuAmyusCrowe,grave.—Ouvifalarque,quando ele entrou para o exército confederado, tinha apenas três nomestatuadosnobraço.Alguémperguntouoqueeram.Eledissequeeramosnomesdos homens que ele havia matado. — Crowe fez uma pausa e balançou acabeça, triste. — Ele tinha só dezoito anos. Havia mandado gravarem parasempre na pele dele os nomes e as datas. Disse que queria garantir que osnomesjamaisfossemesquecidos.—Crowedeudeombros.—Éclaroquenaguerraagenteraramentesabeonomedoshomensquemata,entãoeledeixouum espaço no corpo e fez o possível para descobrir quem eram e de ondevinhamapartirdoregimentoaquepertenciam.DepoisqueaGuerraentreosEstadosacabou,elegastoumuitodinheirotentandodescobrironomedetodosos soldados da União que haviam morrido em determinados lugares emomentos.Tentouatédescobrironomedosíndiosquehaviamatado.TatuouonomedeChaleiraPretabemnanuca.Éumaobsessãodele.

—Eosnomesemvermelho?—perguntouRufusStone.—Comoseeujánãosoubessearesposta...

Crowe o encarou com uma expressão severa. Sherlock presumiu que oamericano estava dando um aviso tácito para que Rufus não mencionasse onomedeVirginia.

—Sãodepessoasqueelequermatarmasaindanãoconseguiu—respondeuele, devagar.—Planejando o futuro, acho.Está deixando claro que algumaspessoastêmseusdiascontados.Quandoaspessoasmorrem,eletatuaempretoporcima.—Croweolhouparaforamaisumavez.—Ouvidizerqueeletatuoumeunomeemvermelhonoantebraço,bemondeelepossavertodososdias.

RufusStonetinhaocenhofranzido.— Para um homem supostamente inteligente — murmurou ele —, esse

BryceScobellpareceterescorregadofeio.Querdizer,eleestáfugindodevocê,estáfugindodetodoogovernodosEstadosUnidos,e fazquestãodese fazercada vez mais reconhecível. Se fosse eu, tingiria o cabelo de louro e cariaescondido,emvezdetatuarummontedenomesnapele.

— É uma compulsão — explicou Crowe. — O homem não consegue seconter.Eéincríveloqueluvaseumpoucodemaquiagemartísticanorostoe

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nopescoçopodemfazer.—Entãoqualéoplano?—perguntouMatty.—Oqueagentefaz?—Não fazemosnada— respondeuCrowe.—Ginnie e eu vamos sairdo

país. Vamos para outro lugar. Mudar de nome. Mudar nossa aparência omáximopossível.VocêstrêsvãovoltarparaFarnhametentarnosesquecer.

Sherlocksentiuaspalavrasatingirem-nocomosocos.OlhouparaVirginia.—Achoquenãoconseguiremosfazerisso—disseele,baixinho.RufusStonefranziuocenho.—Nãoentendo.PorquevocêdeixoupistasparaqueviéssemosaEdimburgo

senãoquerianossaajuda?Crowefechouosolhosporuminstante.—Porque eu queriame despedir apropriadamente— respondeu ele.—E

porque queria explicar cara a cara por que estava fugindo. Queria que vocêsentendessemadimensãodoque estou enfrentando.Scobell vainosperseguiraténosencontrar.Emesmoqueeutenteviraramesaecaçá-lo,eleéespertodemais.Vaiapagarosrastroseseesconderatéeuparardeprocurar;ou,pior,vaimeatrairparaumaarmadilha.

UmsilênciopreencheuocômodoenquantotodostentavamassimilaroqueCroweestavadizendo.

— Há dois problemas nesse pensamento — disse Sherlock depois de umtempo.

Croweergueuumasobrancelha.—Ahé,é?—Oprimeiro—continuouSherlock,semseabalarpelotomdeCrowe—é

queessehomem,BryceScobell,nãovaiparardepersegui-lo.Seeleéassimtãoesperto e dedicado, vai encontrá-lo onde quer que você esteja, mais cedo oumaistarde.

—Vocêtemrazão—disseRufusStone,assentindocomacabeça.—Eooutroproblema?—perguntouMatty.—Équevocêestátratandoasituaçãocomosefosseumacaçadaqualquer.

—Sherlock couquietoporuminstante,tentandoorganizarospensamentos.— Pelo que você me ensinou, sei que, em uma caçada, devemos tratar aspessoascomoanimais.Seestivercaçandoalguém,devemosobservaroshábitosdelaparatentarpreversuasaçõeseprocurarsinaisdesuapresença,sinaisqueeladeixasemperceber,exatamentecomoosanimaisdeixamrastros.

—Sempreacrediteiqueoserhumanoésóumtipodiferentedeanimal—concordouCrowe—,emuitasvezestireivantagemdessefato.Aondevocêquer

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chegar?—BryceScobellnãoéumanimal.Elevirouamesa.Estátratandovocêcomo

oanimal,estárastreandovocê,eissooassustou.Amaneiracomovocêcostumalidarcomassituaçõesnãovaifuncionar.Ojogoseinverteu.

— Está dizendo que ele é mais esperto que eu? — questionou Crowe,encarandoSherlocksobsuasfartassobrancelhasgrisalhas.

— Sim — respondeu Sherlock, tranquilamente. — Então, se o jogo seinverteu,vamosmudarasregras.SeScobellémelhorquevocêcomocaçador,vamosfazercomqueissonãosejaumacaçada.Seeleémelhorquevocêcomojogador,vamosfazercomqueissonãosejaumjogo.Nãodeixequeeleescolhaaluta.Mudeasregras.

—Émais fácil falardoque fazer,meu jovem—murmurouCrowe,masaexpressãoemseurostosugeriaqueomeninoosurpreendera.

—Seeleestáprocurandovocê—disseSherlock—,entãonãoseesconda.Nãofaçaoqueeleespera.Fiqueexposto.Elevaiseperguntaroquevocêestáfazendo.Vaiacharqueéumaarmadilhaerecuar.

—Edepois?—questionouCrowe.—Depoiselevaicometeralgumerro,eseráasuavezdevirarojogo.Croweassentiudevagar.—Quandoojogoéumacaçadaevocêestáperdendo,mudeasregras.— Quando você está enfrentando alguém mais esperto e mais cruel —

concluiu Sherlock —, cuide para que o jogo não precise ser vencido porespertezaoucrueldade.

Crowesorriueabriuabocaparadizeralgo,masouviu-seumbaquerepentinonotetodochalé.Eleolhouparacima,jácomamãonaarma,eentãovoltouaolharpelajanela.Sherlockseguiuseuolhar.Atrilhaestreitaquedesciaapartirdo chalé estava vazia, deserta, mas o ar tinha algo de diferente. Um cheiro.Algo...queimando.

—Fumaça!—exclamouSherlock.—Sintocheirodefumaça.AmyusCroweavançourapidamenteatéajanela.—Nãotemnadaláfora.Sherlockolhouaportaqueseabriaparaorestantedochalé.Eraimaginação

sua,ouhaviaumalevenévoaali?—ÉScobell—disseele.—Eleateoufogoaochalé!—Mascomo?—gritouRufus.—Ninguémchegouperto!Ecomodiabos

elenosencontrou?—Elesnãoprecisavamchegarperto—respondeuSherlock.—Estánotopo

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dopenhascoacimadochalée jogoualgoemchamasnotetodepalha!Issoépalhaseca...vaiqueimaremsegundos!

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Capítulotreze

—VAMOS!—GRITOUMATTY.—Agenteprecisasairdaqui!SherlocksepreparouparapegaramãodeVirginiaegarantirqueelachegasse

àportaasalvo,masCroweopegoupeloombro.—Scobellvaiestar lá fora,garoto!—berrouele.—Deveestarcomri es.

Vainosmatarumaum,comocoelhos!Porumafraçãodesegundo,Sherlockpensounocoelhodecapitadonochalé

deAmyusCroweemFarnham.Elenãoqueriaacabardomesmojeito.— Não temos escolha — disse Rufus Stone. — Se carmos aqui dentro,

vamosmorrerqueimados.Jáerapossívelescutarofogoseespalhandopelapalha—umsomestalado,

comogravetossendopartidospormãosgigantescas.Afumaçaentravapelaportaaberta.Jáestavadifícilrespirar,eatéenxergar.— Não acho que ele queira nos matar com fogo — disse Sherlock, de

repente.Croweoencarou,intrigado.—Elequersevingardevocê.Umincêndionãobasta,aindamaisse,aovir

osdestroços,elenãotivercomoconfirmarsevocêsequerestavaaqui.—Entãooqueeleestátentandofazer?—perguntouRufusStone,tentando

nãotossir.—Ele quer nos obrigar a sair do chalé.Deve ter homens esperandomais

abaixo.Elesestarãoarmadosenoscapturarãoquandosairmos.—Maséanossaúnicasaída!—gritouMatty.Crowebalançouacabeça.— Não exatamente. Um pouco abaixo, se conseguirmos chegar lá, existe

umatrilhaquesobeopenhascoeseafastadacasa.Édifícildever,masseiondefica.

Stonecobriuabocaetossiu.—Oproblema vai ser alcançar essa trilha—disse ele.—Os homens de

Scobellnãovãodeixarquecheguemosmuitolonge.—Achoquetenhoumaideia.Sherlockcorreuatéaportadafrentedochalé.CroweeRufusestavamlogo

atrás,seguidosporMattyeVirginia.Sherlockabriuaportaderepente.Osoprosúbitodearfrescosugouafumaçaeformouumanuvemenormequealertaria

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imediatamentequalquerobservadorno topodopenhasco rochoso acima—eSherlocktinhacertezadequehaveriaalguémlá.

Havia pedras de todos os tamanhos espalhadas pelo chão por onde elestinham passado antes de entrar no chalé. A uns seis metros de distância, oterreno cavaíngremeedesciaporunstrêsmetros—otrechoqueeleshaviamescaladocomasmãoseospés.OshomensdeScobellseescondiamemalgumlugardepoisdisso,ocultospelodeclivesúbito.

—Ei,meajudem!—gritouSherlock,começandoadeslocarumadaspedrasmaiores.

Quando perceberam o que ele estava fazendo, Rufus e Crowe tambémcorreramparaoutrasduaspedrasaindamaiores.MattyeVirginiasejuntaramaSherlock,tentandofazerarochasemexer.

Sherlockapoiouoombronopedregulhoefezforça.Sentiuagargantaeostornozelospulsaremporcausadasferidasprovocadaspelascordas,masignoroua dor e continuou empurrando. O pedregulho se mexeu sob seu peso,levantando-seligeiramenteeinclinando-separaafrente.

—Conseguimos!—gritouele.Sherlockouviualgopassarchiandojuntoàorelhaesecravarnochãoaseu

lado.Comosusto,soltouapedra,quevoltouacairnoburacoondeestava,comumbaquequedeupara sentirna soladospés.Eleolhouparaoobjetonovo,surpreso. Por um instante achou que fosse um graveto, mas havia penas napontatraseira.Arrancou-odochão.Aextremidadedafrenteerapontuda,comoumaflecha.

Omeninoolhouparacima.NoaltodopenhascoemformadeVquecercavaochalé,eleviuasilhuetadehomenssegurandoobjetosnoformatodecruzes.EstavammirandoemSherlocktalcomofariamcomumrifle.

As armas erambestas. Sherlock nunca havia visto uma,mas conhecia porimagens.Pareciaumarcopequeno,masdeitadodeladoefeitodemetalemvezdemadeira.Disparava setas—queeramumaespéciede echaspequenas—muitorápidasecomforçaparaatravessarumaarmadurademetal.

—Saiamdafrente!—gritouMatty,puxandoSherlocknadireçãodochalé.— Ele não está tentando atirar em nós. Está tentando nos assustar para

fugirmos!—berrou Sherlock, livrando-se deMatty e usando todo o peso docorpoparaempurrarapedra.—Lembre-se,elesnãoqueremnosmatar!

A pedra se deslocou outra vez, inclinando-se para a frente até quase rolarcolinaabaixo.

OqueeraexatamenteoqueSherlockqueria.

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Maissetasdebestaatingiramochãoàsuavolta,maseleasignorou.Deuumúltimoempurrãonopedregulho,comtodasas suas forças.Arocharoloupelagrama—econtinuou rolandodeclive abaixo,ganhandovelocidade,quicandoligeiramentepelosoloirregular.AmyusCrowetambémfezumapedradescer—umaaindamaior,querolavapesadamenteemvezdequicar,criandoumavaladematoeterrapelocaminho.Masdescia—cadavezmaisveloz.

OpedregulhodeRufusStonecomeçouasairdolugar,mas,emvezdeseguiras outras duas na direção da abertura da garganta, desviou-se para o paredãorochosodopenhascoemformadeV.PorummomentoSherlockachouquearochafosseparar,masapenasbateunoparedãoequicou,acertandoduaspedrasmenoresnocaminhoefazendo-asrolartambém.

As pedras grandes e pequenas desapareceram no nal do barranco.Passaram-sealgunssegundosdesilêncio—eentãoSherlockouviuumagritariavindoládebaixo.Imaginouospedregulhosderrubandoa leiradehomensdeBryceScobellcomoumaboladebolicheacertandoospinos,quebrandopernaseesmagandopessoas.Omeninoabriuumsorrisosombrio.

—Mais!—gritouele,namesmahora rmandoasmãosembaixodeoutrapedraepegando-adochão.

A pedra saiu do lugar com facilidade. Ele a ergueu até o ombro e aarremessou.Ela bateu no chão e desceu a colina, rolando até sumir de vista.Matty e Virginia também arremessaram pedras menores, enquanto AmyusCroweeRufusconseguiramdeslocaroutrosdoisimensospedregulhos.

Maisduassetassecravaramnochãoàsuavolta,espalhandoterraparatodosos lados, mas os atiradores haviam percebido que a tática não estavafuncionando.PorummomentoSherlock temeuqueelescomeçassemaatirardiretamenteneles, em vez de acertar o chão, mas pelo visto os homens nãohaviamrecebidoessaordem.Osdisparoscontinuaramdeformaesporádica,masjánãopareciamperigosos.

A essa altura, a gritaria mais abaixo estava histérica. Sherlock não sabiaquantos homens Scobell havia deixado lá, mas, pelo barulho, estavam todosincapacitados ou no mínimo distraídos com a confusão e a dor. Elesprovavelmentehaviam imaginadoumpunhadode fugitivosdesesperados, queseriamcapturadoscomfacilidade,masemvezdissoreceberamumaavalanchedepedras.

—Vamos!—gritouSherlock.Seguido de Crowe, Virginia, Matty e Rufus, o menino disparou ladeira

abaixo,namesmadireçãodaspedras.Odeclivepareciamais íngremedoque

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quandoeleshaviamsubido,eSherlocksentiaquesuavelocidadeestava candodescontrolada. Quase escorregou no mato molhado.Tentou desacelerar, masAmyusCroweveioportrás,semquererempurrando-oparaafrente.

Enquanto eles desciam resvalando pelo barranco, Sherlock viu as outraspartesdaemboscadadeBryceScobell.Haviacincohomensemumadepressãomaisadiante.Quatroestavamferidoseensanguentados.Eraimpossívelsaberagravidadedosferimentos,masdoisdelesestavamprensadospelospedregulhosqueCroweeStonehaviamlançadocolinaabaixo.Oquinto tentavaajudaroscompanheiros, mas parecia não saber para que lado correr. Havia bestasespalhadaspelochãoaoredordeles.

Sherlockpassoucorrendopeloshomensantesmesmodeelesperceberemsuapresença. Ao olhar para trás, viu Crowe e Rufus diminuindo a velocidade,esperandoMatty eVirginia passarem e então voltando a correr, assumindo aretaguarda. Um dos homens de Scobell tateou o chão, tentando pegar umabesta,masCrowechutouaarmaparalongeaopassar.

Elescontinuaramcorrendo,deixandoaemboscadaparatrás.Devezemquandoumasetadisparadadospenhascossecravavanochãoou

ricocheteavanaspedras,masadistânciaeragrandedemaiseoângulo,ruim,eSherlocksabia,simplesmentesabia,queosatiradoresnãoeramumaameaça.

Enquanto corria, o menino se sentia eufórico.Ele havia resgatado AmyusCrowe!

—Ginnie!Sherlock!Aqui!Semparar,Sherlockolhouporcimadoombro.AmyusCroweestavanabase

de uns degraus praticamente imperceptíveis no paredão do penhasco a poucomenos de cinquenta metros de distância do menino. Nem ele nem Virginiaperceberam aquilo ao passar correndo, mas Rufus Stone e Matty já haviamcomeçado a escalar. Aquela devia ser a trilha oculta que Crowe mencionara!Sherlock e Virginia pararam de repente, preparados para se virar e voltar atéCrowe,mas, quando estavamprestes a dar o primeiro passo, três homens deScobellvieramcorrendoladeiraabaixoatrásdoamericano.Suasroupaserostosestavamensanguentados—ostrêstinhamfeitopartedaemboscadaarruinada—,eelespareciamdispostosamatar,quaisquerquetivessemsidoasordensdeScobell.Queriamsevingardoataquedeavalanche.

CroweviuoolhardeSherlockesevirou.Omeninopercebeuosombrosdelecarem tensos no mesmo instante. Crowe virou a cabeça de repente para

SherlockeVirginia,eseusolhosestavamarregalados,umaexpressãodefúriaeterror.Era óbvio que ele havia feito omesmo cálculomental domenino.Os

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homens corriam colina abaixo. Se Sherlock e Virginia tentassem voltar atéCrowe,teriamquesubiraencosta.DeformaalgumaelesoalcançariamantesdoshomensdeScobell.Apesarda admiraçãoe con ançaqueSherlock tinhapeloamigoementor,omeninoduvidavadequeelesozinhodessecontadetrêshomensfuriosos.Aindamaisseesseshomensestivessemarmados.

—Vá!—gritouSherlock.—CuidedeRufuseMatty!EucuidodeVirginia!—Nãoposso!—berrouCrowe.Seurostoestavapálidodepavor.— Vocêprecisa! — respondeu Sherlock. Ele se virou para Virginia, que

alternava o olhar entre o menino e o pai. — Con e em mim... precisamoscontinuardescendo.

Virginiaolhouparaopai.Eleestavacomumaexpressãodesesperada.Depoisdeumtempoquepareceuváriashoras,masquenãodeveterduradomaisdeumsegundo,eleassentiu.

VirginiasevirouecorreuparaSherlock.Croweescalouatrilhaoculta,comumavelocidadeextraordináriaparaumhomemdaqueletamanho.

Amenina agarrou amão de Sherlock e correu com ele, disparando colinaabaixo,paralongedosperseguidores.

Enquantocorriam,Sherlockolhouparatrás.AmyusCrowe,RufuseMattyestavam fora de vista, ocultos pelas pedras. Os perseguidores haviam vistoCrowesubir.Doisforamatrásdele,eoterceirocontinuaradescendo.

Acolinacomeçoua carmenosíngremeàfrentedeSherlockeVirginia.Àesquerda, o menino viu a capela por onde haviam passado ao subir. Logoestariam na cidade. Conseguiriam despistar o perseguidor lá, ou será que jáhaviahomensdeScobellesperandoporeles?

AindaapertandoamãodeSherlock,Virginiapuxou-onadireçãodacapela.—Talvezpossamosnosesconderali—falouela,ofegante.Eles se agacharamatrásdeuma lápide cobertade limoe inclinada emum

ângulo perigoso.Mal havia espaço para os dois. Sherlock teve que car bemperto de Virginia para que eles pudessem caber sem ser vistos. Ele sentiu ohálitodelanopescoço,suarespiraçãoquenteerápida.

Ouviramosomdebotaspisandonaspedrasrapidamentedesaparecer.—Eagora?—perguntouSherlockdepoisdealgunsminutosdesilêncio.— Acho que precisamos reencontrar meu pai, Rufus e Matty. De algum

jeito.Sherlockassentiu.—Certo.

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Elevirouacabeça.Osolhosdelaestavamaapenasumcentímetrodosseus.Sherlockqueriabeijá-la,masapenasdisse:—Vamos.Avegetaçãodeurzee tojodi cultavaa caminhada.OspésdeSherlock se

prendiamnoscaulesotempotodoàmedidaqueelesavançavampelomato.Ossapatos de Virginia eram muito mais práticos, de forma que ele precisou seesforçarparaacompanharoritmodela.

Osdois olhavamos arredores ao avançar, para ver se alguémos alcançara;observavam as construções atrás e omuro baixo do qual se aproximavam aospoucos,mas não haviamais ninguém.Todo o entorno parecia curiosamentedeserto. Sherlock tinha medo de que um vulto surgisse de algum lugar derepente,apontasseparaelesegritasse,masnadaaconteceu.

Opôrdosolprojetavaassombrasdosdoispelaurze,roxosobreroxo.Oarestavafrioecomcheirode ores.Apesardeserquaseinverno,haviaalgumasabelhasvoandomorosas,procurandopólendefloremflor.

—Emquevocêestápensando?Sherlock virou a cabeça. Virginia olhava para ele com uma expressão

intrigada.Elahaviapercebidooarpreocupadodomenino.—Sóestavapensandonasabelhas—explicouele.— Abelhas? — Virginia balançou a cabeça, sem acreditar. — Fomos

separados dos nossos amigos, estamos fugindo de umbando de assassinos, evocêpensaemabelhas?

Sherlockdeudeombros,derepentenadefensiva.—Euentendoasabelhas—disseele.—Elasnãosãocomplicadas.Fazemo

quefazempormotivosóbvios.Sãocomopequenasmáquinas.Fazemsentido.—Evocênãoentendeaspessoas?Elecontinuouandando,demorouumpoucoaresponder.—Porqueissotudoestáacontecendo?—perguntouelederepente.—Foi

porqueBryceScobelldecidiuquenãogostavadosíndiosamericanoseresolveumatá-losemvezdesemudarparaalgumlugarondenãohouvessenenhum?Foiporquemandaramseupaiprendê-loeele couobcecadoemencontrá-lo,semligar para quantas pessoas acabassem morrendo no processo? Foi porqueScobell,por suavez, couobcecadoemsevingardo seupai eo seguiuaté aInglaterra em vez de se esconder em qualquer outro lugar do mundo? Nãoentendo!Seaspessoasagissemdeformalógica,nadadissoestariaacontecendoagora!

—Scobellélouco,deacordocommeupai—disseela,baixinho.—Elenão

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tem nenhuma moral, nenhum escrúpulo. Faz o que for necessário paraconseguiroquequer.

—Deixandoaloucuradelado—ponderouSherlock,contidoepensandonoprópriopai—,essaéaúnicapartequeeuentendoemtodaessahistória.Éumcomportamentomuitológico.

—Sóélógicosevocêforaúnicapessoaaagirassim—comentouela,aindabaixinho.—Setodomundoagissedamesmaformalógica,todoslutariamentresi,acivilizaçãoruiria,ocaosseinstalariaesóosfortessobreviveriam.

Caminharam em silêncio por algum tempo. Sherlock sentia que ela oobservava,masnãotinhanadaadizer.

Derepente,osdois seassustaramquandoalgosemexeusubitamentee fezum barulho apressado,mas era apenas um pássaro saindo de algum abrigo evoando.

Aessaaltura,estavamquasediantedomurodepedraquehaviamvistoantes.Sherlock olhou para trás de novo, acreditando que veria o mesmo cenáriodesertodetodasasoutrasvezes,masagorahaviagentepertodacapela.Daqueladistância,elenãotinhacomosaberseerampessoasdopovoadoouhomensdeScobell,masnãoestavadispostoaarriscar.Antesqueele zessequalquercoisa,Virginiapegouseubraçoeopuxouparaomuro.Eradaalturadacinturadeles;ela pulou por cima com agilidade e sumiu de vista. Sherlock saltou também,indocairaseulado.

Omeninoseajoelhoueespiouporcimadomuro,olhandomaisabaixonacolina.Aindahaviagentepertodacapela.

— Vamos — instou Virginia. — Precisamos continuar em frente.Precisamosencontrarmeupai.

—Tudobem—disseele—,mascomcuidado.Vamosficarforadevista.Os dois seguiram ao longo da sombra do muro, permanecendo abaixados

atrásdaspedrascasoalguémolhassenaqueladireção.Sherlock tentou enxergarmais adiante.Viu umbosque ao longe, após um

trechodeterrenoirregular.— Vamos até lá — disse ele. — Precisamos encontrar abrigo antes do

anoitecer.Apesardetodaatensão,acaminhadaatéasárvoresfoitranquila,atémesmo

entediante. Sherlock estava exausto depois de tudo o que havia acontecidoaqueledia;ameraaçãodepôrumpénafrentedooutrosemparareraumadascoisasmaisaborrecidasqueelejáprecisarafazer.Devezemquandoomeninotropeçava em uma pedra ou en ava o pé em um buraco e quase caía — e

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Virginiaachavagraça.Eleficouatentoparaocasodequalquermovimentoqueindicassequeosdois

haviam sido vistos, mas, fora um ou outro coelho e os pássaros voando,Sherlockviuapenasumveadomajestosoparadoemumaelevaçãodoterreno.Sua galhadaparecia duas pequenas árvores sem folhas.O animal os encarou,impassível,comacabeçainclinadaparaumlado.Quandotevecertezadequeosdois não representavam ameaça, abaixou a cabeça até o chão e começou acomeraurze.

EnquantoSherlockeVirginiaandavam,acordocéupassoudoazulaoaniledoanilaopreto.Asestrelascomeçaramabrilhar:primeiroumaouduas,masdepoisdealgunsminutoseraimpossívelcontartodas.

Pensando no veado e na maneira casual como o animal os ignorara ecomeçara a mastigar a vegetação, Sherlock se deu conta de que estava comfome.Não, estava faminto.Tirando aspanquecasno chalédeAmyusCrowe,elenãocomiadesdeocafédamanhã.

Virginiamordiaolábio.Elatambémpareciaterfome.Quais eram as opções? Tentar perseguir um coelho assim que algum

aparecesse?Omeninotinhapoucaschancesdesucesso.JogarafacadeMatty—queaindaestavaemseubolso—etorcerparaacertaralgum?Sherlocknãosabiamuitobemcomoarremessar facas, embora tivessevistopessoas fazeremisso em feiras. No entanto, ele descon ava de que as facas precisavam sercuidadosamentebalanceadasparaquepudessemgirarcomlevezasemsedesviardocaminho.AdeMattytinhaumcabomuitovolumosoemrelaçãoàlâmina.Sherlocknãoconseguiriamirardireito.

Ele então se lembrou da primeira lição que Amyus Crowe lhe dera, nobosque que cava em torno da mansão Holmes em Hampshire. Crowe lheensinara quais cogumelos eram comestíveis e quais eram venenosos. Seencontrassem alguns bons, eles poderiam se alimentar. Sherlock olhou emvolta. Provavelmente não encontraria nenhum em campo aberto, mas talvezmais perto das árvores achasse alguns fungos crescendo em troncos podrescaídosemmontesdefolhasemdecomposição.

Eleergueuavistaparaverquantofaltavaatéobosque.Asárvoresestavamapoucomenosdeumquilômetrodedistância.

—Veja—disseVirginia.—Podemospassaranoiteali.Sherlockolhounadireção emque ela apontava.Aprincípionão viunada,

masentãopercebeuumapequenaconstruçãodepedraemmeioàsárvores.Porum segundo, pensou que fosse a casa de alguém, mas então notou que era

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pequena demais, sem janelas nem porta. Era uma cabana, construída paraabrigarpastoresdurantetempestades.

—Vocêtemumótimoolho—disseele.—Algumachancedeconseguirmosalgoparacomer?—perguntouVirginia.

—Estoumorrendodefomedepoisdeandartanto.Sherlockpensouporuminstante.Calculouqueseriasegurodeixá-lasozinha

poralgumtempoenquantoiaembuscadecogumelos.Elelhecontouseuplano.Virginiaoencarou,cética.—Cogumelos?Estátentandomeenvenenar?—Confieemmim...seupaiéumbomprofessor.Elaergueuumasobrancelha.—Podeatéser,masvocêtemcertezadequeelesabedoqueestáfalando?—Sótemumjeitodedescobrirmos.— Olhe, que tal eu juntar um pouco de lenha e acender uma fogueira

enquantovocêbuscaoscogumelos?Assimganhamostempo.—Temcertezadequevaificarbem?Temgenteatrásdenós.Elaoencarou,erguendoumasobrancelha.—Seitomarcontademim.Deram uma olhada no interior do abrigo de pedra. Tinha apenas um

cômodo,eoventohaviajogadofolhasnoscantos,maspareciarazoavelmenteseguro. Havia até um pequeno braseiro de lenha, além de umas frigideirasamassadasealgunspratosdemetal.

—Vocêvaidemorar?—perguntouVirginia.Sherlockdeudeombros.—Otempoquefornecessário.Vocêquerjantar,nãoquer?Elasorriu.—Nunca aconteceu de umhomem realmente sair paracaçar o jantarpara

mim,tirandomeupai.Atéqueeugostodaideia.Sherlocknãoconseguiuseconter.— E quanto aconvidá-la para jantar?Alguém já fez isso?Querdizer, sem

contaroSr.Crowe.Elabalançouacabeça.—Não.—Eprepararojantarparavocê?—Não.Elesorriu.—Voltoassimqueder.

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Obosqueoenvolveuempoucosinstantes:troncoslargoscomoocorpodelebrotavamderaízesemaranhadasesubiamemdireçãoaocéu,formandocomosgalhosum tetoqueparecia rendado.Sherlock caminhou sobo luar débil queatravessava essa cobertura. Pequenos gravetos pareciam tatear seu rosto.Filamentos pendurados de musgo — ou talvez níssimas teias de aranha —roçavamsuas faces e sua testa, e eleos afastava constantemente.Umacorujapiou, e de vez em quando Sherlock ouvia um som vago de algo maior —texugos,furões,talvezumououtrocervo—mexendo-sepelavegetaçãorasteira.

Emalgumpontodistante,umgravetosepartiucomosetivessesidopisado.Folhasseagitaram.Teriasidooventoouumapessoa?

Sherlock cou tenso, commedodequeoshomensdeScobellos tivessemencontrado,mas,depoisdepensarumpouco,convenceu-sedequenãoeraisso.Aindaouviaascorujaseosoutrosanimais.SeoshomensdeScobellestivessemporperto,avidaselvagemdolocalestariamuitomaiscautelosa.

AoselembrardocortiçoemEdimburgoedosrostosdehomensmortosqueele havia visto encarando-o de dentro de portas escuras, Sherlock começou asentirumsinaldepâniconopeito.Seráqueerammortosperseguindo-opelaoresta? Estariam eles se aglomerando em torno da entrada do abrigo de

pastoresnaqueleinstante,prestesainvadiraconstruçãoeatacarVirginia?Seucoraçãoseacelerou.Elecomeçouasevirar,preparadoparavoltarcorrendoparasalvá-la, mas se conteve e respirou fundo. Mas que bobagem. Com mãosmentais rmes,elesegurouopâniconopeitoeoforçouparabaixo.Mortosnãoandavam.Não existiam fantasmas. Isso não eralógico. Era apenassuperstição.Amyus Crowe lhe ensinara muito ao longo daquele ano, mas tudo o que omenino aprendera estivera fundamentado pelo ceticismo elementar que faziaparte de sua personalidade. Tudo precisava de um motivo para acontecer.Precisavahaverumacausa.Oqueestavamorto,estavamorto—nãocontinuavasemexendo.Amorteeraaausênciadevida.Oquequerqueeletivessevistonocortiço,oquequerqueeleeMattytivessemvistoemEdimburgo,nãosetratavadegentemorta.

Sentindo-semelhor,Sherlockvoltouaandar.Qualquerquefosseobarulhono bosque, era o vento ou animais correndo. O restante era apenas suaimaginaçãochegandoaconclusõeserradasapartirdeindíciosinsu cientes.Eledecidiu que especular sem informações corretas era uma atividade infrutífera.No futuro, se precisasse chegar a conclusões, faria questão de baseá-las emevidências.

Chegouaumapequenaclareira.Sobo luar,omeninoviuumpunhadode

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cogumelosqueseespalhavapelomaterialemdecomposiçãonochãodafloresta.Aproximou-se e se ajoelhou diante dos fungos.Tinham uma cor alaranjadaviva, e as beiradas eram onduladas como folhas de alface. Sherlock osreconheceucomocantharellus.Arrancoudochãoomáximopossíveleosen ounobolsodocasaco.

Aalgunsmetros,achoualgunsmorchella,comainconfundívelcormarromea estrutura interna semelhante a um favo de mel. Do outro lado da clareira,alguns metros para dentro do bosque, encontrou uma massa dos lamentosbrancosdistintosdoscogumeloshericium,crescendoemumtroncocaído.

Comosbolsoseosbraçoscheios,Sherlockcomeçouavoltarparaoabrigo.Tinha cogumelos su cientes para mantê-los alimentados até de manhã. Seencontrasse um pouco de água, poderia cozinhá-los nas frigideiras. E entãopensou—haveriaalgumaservasaliporpertoparausarcomotempero?

Ele chegou à cabana pensando em como impressionar Virginia com suashabilidadesculinárias.

—Voltei!—avisouemvozbaixa,paraocasodeelaestardormindo.—Etrouxeojantar!

Sherlock entrou no abrigo, ondeVirginia havia acendido uma fogueira nobraseiro.Coma luzdas chamas, viuqueameninaestavaencolhidanochão,dormindo. Ela havia encontrado alguns juncos do lado de fora do abrigo eimprovisadoumtravesseiro.JuntaraalgunstambémparaSherlockeosdeixaraporperto.

Sherlock não sabia bem o que fazer.Talvez pudesse preparar a comida edepoisdespertá-la,masacaminhadapelacolinatinhasidolonga,eelesaindaprecisariam andar mais quando amanhecesse. Seria melhor a menina dormiragora.

EledeixouoscogumelosnochãoesesentouaoladodeVirginia.Algonoarfresco ena longa travessia pelobosque tambémabatera seu apetite.Elesnãomorreriamdefomesepulassemumarefeição.Poderiamcozinharoscogumelosaoamanhecer.

Sherlockobservouorostodela.Adormecida,Virginiapareciamuitorelaxada.Seus lábios formavam um ligeiro sorriso, e Sherlock nunca a vira com umaexpressão tão tranquila. Ela costumava parecer muito atenta, especialmentequandoolhavaparaSherlock,masagoraeracomosetodoorestotivessesidoremovido e ele pudesse ver a verdadeira Virginia. A menina que eledesesperadamentequeriaconhecermelhor.

Sherlock estendeu a mão e afastou uma mecha de cabelo dos olhos dela.

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Virginiasemexeudeleveefezumbarulho,masnãoacordou.Ele a observou por algum tempo, hipnotizado por sua incrível beleza. Era

difícilolharparaelaquandoosdoisestavam juntosà luzdodia,porqueelaoveriaencarando-aeoencarariatambém,ouentãoperguntariaoqueeleestavaolhando,masagoraSherlockpodiaadmirá-laoquantoquisesse.

Por m,elesedeitouaoladodeVirginia,apoiandoacabeçanosjuncosqueela havia preparado. Sentiu o sono envolvê-lo aos poucos. Apesar do perigo,apesar de toda aquela situação, Sherlock estava feliz. Era como se tivesseencontradoolugaraquepertencia.

Osonochegoudeformatãogradualqueelenempercebeuquandodormiu,masacordouderepente.Aluzdosolentravapelaaberturadoabrigo.Sherlockdevia ter se virado durante a noite, porque agora estava voltado para o outrolado,decostasparaVirginia.

Elesevirou,eseucoraçãocongelou.Nãohaviasinaldela.Trêsfigurasesqueléticasbrancasestavamdepénomeio

do cômodo, encarando-o com olhos fundos, enormes e sem pálpebras. Suasmãos seguravam lâminas curvas como as foices que fazendeiros usavam paracolhertrigo.

Sherlocksearrastounadireçãodaporta,desesperado,masbraçosmagrosoagarraramportrás.Osdedosqueseguravamasmangasdeseucasacopareciamgravetos,maseramdurosfeitoossoemachucavamaoapertarseusbraços.

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Capítulocatorze

SHERLOCKSEAGITOUDESESPERADAMENTE,TENTANDOsesoltar,masosdedosdos agressores permaneceram rmes. Um deles apertou uma faca em seupescoço.Alâminaestavasuja,comosetivessepassadoanosenterradanochão.Amensagemeraclara;eleparouderesistir.

As guraso zeramsevirar.Sherlockpercebeu,estremecendodemedo,queasroupasdelesestavamesfarrapadasesujas,comosetivessempassadoumbomtempodentrodosolo.Enterradas.

Abaixaram-seepegaramospésdele, levantando-osemdi culdade.Apesardaaparência,oscaptoreseramfortes.Sherlockfoicarregadoparaforadoabrigocomo um saco de batatas. Ninguém disse nada, mas o menino de repentepercebeuqueouvia as criaturas respirarem.Umadelas chiava como se tivesseasma, enquanto as outras pareciam apenas homens normais carregando algopesado.Sherlockdisseasimesmoquehomensmortosnãoprecisavamrespirar.Aqueles indivíduos não tinhamcheiro demortos.Omenino conhecia o odorrepulsivoeterríveldecarneemdecomposição:jáviraváriosanimaisabatidosnobosque.Pelaaparênciadeseuscaptores,eradeseesperarumfedorabominável,masSherlock sentia apenas cheirode suor.Entãonão erammortos.Aqueleshomens apenaspareciammortos.Masporquê?EoqueeleshaviamfeitocomVirginia?

Sherlock olhou para baixo e viu os próprios braços marcados por aquelasmãos magras. O tecido de seu casaco estava manchado de tinta branca.Maquiagem? Nasmãos? O menino deu um suspiro de alívio. Ele não haviachegadoapensarquefossempessoasmortas,mas coualiviadodecorroboraradedução.Achou que fazia sentido: se a ideia é que as pessoas acreditem quevocê estámorto, é preciso se vestir a caráter.Mãos brancas e rostos brancosindicavamfaltadecirculaçãosanguínea.Seelesfossemvistosapenasdelonge,comoaconteceracomSherlockatéomomento,eraconvincente.

Os sujeitos o levavam colina abaixo, afastando-se deCramond.De cabeçaparabaixoesendosacudido,Sherlockdevezemquandoviarostosderelance.Detãoperto,percebeu,apesardamaquiagembranca,quehaviabarbaporfazernas faces e nos pescoços dos homens. Viu também minúsculos pedaços depapel grudados no rosto deles, para dar a impressão de pele seca e solta, esombreamentosbem-realizados,quefaziamparecerqueoossoestavaexposto.

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Emumdossujeitos,asfacesestavampintadasdeumjeitoque,vistodelonge,pareceriaumacaveirasorridente.Eratudodisfarceementira.Fantasias.

—Digam-meaondeestamosindo!—exigiuSherlock.O“cadáver”àsuadireitaolhouparaeleesorriu.Osdentesestavamsujosde

verde,comosefossemusgo,masatéissoeramaquiagem.—Você vemcomagente—grunhiuo sujeito, como se estivesse falando

comabocacheiadelama.—VaiverLíderdoClãdosMortos.—Vocêsnãoestãomortos—disseSherlock.—Sóestãofingindo.O“cadáver”continuousorrindo.—Temcerteza?—perguntouele.—Apostasuavidanisso?Sherlockficousemresposta.Carregaram-noatravésdeumterrenoacidentadoduranteoquepareceuuma

hora.Ele tentava olhar em volta para ver se encontravaVirginia,mas, se elatambém estivesse sendo carregada, devia estar mais à frente, fora de vista.Tomaraqueelatenhaconseguidoescapar,pensouele.

Depois de algum tempo,Sherlock foi jogadonodorsodeum cavalo. Seusbraçosepernasforamamarradosporumacordapassadaporbaixodabarrigadoanimal,eprenderamocintodomeninonaselaparaqueelenãoescorregassedurante a viagem. Um dos “cadáveres” montou no cavalo, e eles saíram agalope.

Sherlock couenjoadocomoimpactorepetitivodotraseirodocavaloemsuabarrigaeocheirofortedoanimal.Estavasempreprestesacairdasela,eseissoacontecesse, as pernas enormes do cavalo o acertariam diversas vezes atéesmigalharseusossos.Sherlock rmouosmembrosdamelhorformapossível,tentandonãosairdolugar.

Suacabeçabalançavatanto,paracimaeparabaixo,queelenãoconseguiaverpor onde passava. Mas percebia vagamente que havia outros cavalos na suafrente e atrás.EstariaVirginia em algumdeles?Àmedida que o desconfortopiorava,Sherlocktorciaparaqueelanãoestivesse.

Obarulhodoscascosdocavalomudou.Elesnãoestavammaiscavalgandoemchãodeterra;eradepedra.Sherlockouviuecos,comoseestivessecercadodecentenasdecavalos.Estavaemalgumaespéciedepátiodepedra.Oanimaldiminuiuavelocidadeeparou.Sherlockfoiimpelidoparaafrente,bateudeladonapartedetrásdaselaeperdeuoar.

Mãosoagarraram.Umafacacortouascordasqueoprendiamaocavalo.Elefoicarregadodenovo,fracoeenjoadodemaisparasequerlevantaracabeça.Viuapenasparalelepípedoseumououtrotrechodeparededepedra.

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Esombrasirrequietas.Olugarinteiropareciailuminadoportochas.Onde ele estava? O menino pensou na silhueta de granito do Castelo de

Edimburgoacimadacidade.ElescertamentenãohaviamcavalgadoobastanteparavoltaraEdimburgo,nãoé?Seráquehaviaoutroscastelospelaregião?

Sherlock foi carregado por um corredor e para dentro de uma sala. Ouviulatidos e rosnados. Do outro lado do cômodo havia um espaço cercado.Homens olhavam para dentro dessa área com muito interesse, e algunstrocavamdinheiro.Pelosburacosdacerca,Sherlockviudoiscachorrosgrandesbrigando.Elespulavamumnooutro,mordendoorelhasearranhandoolhosepele.Sobaluzbruxuleantedastochas,Sherlockviuquehaviasangueespalhadonochão.Umpoucodaquiloerasanguefresco,mastambémhaviasangueseco.Cachorros — e provavelmente outras criaturas — lutavam ali havia algumtempo.

Omeninofoilevadoparaoutrasala.Nessa,nãohaviaáreacercada—emvezdisso,homensemulheressereuniamemvoltadeumcírculoirregularmarcadocom giz no piso de lajotas. No centro, dois homens cansados ntavam e seencaravam.Estavamsemcamisa,otóraxdeambosbrilhandocomosecobertosdeóleo.Umdeles tinhamarcasdeunhasao longodotorso.Ooutrodeuumpulosúbitoparaafrente.Agachou-se,pegouoadversáriopelacintura,ergueu-onoareojogounochão.Amultidãofoiàloucura,gritandoetorcendo.

Depoisdealgunsinstantes,Sherlockfoilevadoparaforadessasalatambém.No cômodo seguinte, umapassarela corria ao longodas paredes, e no centrohaviaumfossoretangularquepareciaumapiscina.Masnãotinhaágua,eeratodocontornadoporumacercadeplacaslargasdemadeira.Sherlocksentiuumcheirorançoso,bestial.

Algosoltouumrosnado.Omeninopercebeuquehaviaalgumbichopresoalidentro. Era evidente que o animal tinha ouvido os homens carregando omenino,porquesejogounacerca.Asplacasdemadeiraestremeceram.Oqueseráquehaviaalidentro?

Oshomensapertaramopassoparachegaràportadooutroladodocômodo,obviamenteapavoradoscomaquelafera,qualquerqueelafosse.

Sherlockfoilevadoparaumasalagrandeejogadonochão.Ficoucaídoporumtempo,olhandoparacima.Sentiacomoseseusbraçose

pernastivessemcrescidoquasedezcentímetros.Sabiaqueseucorpoestavatodocoberto de hematomas. Considerando a situação, pensou, ele não estava emboascondiçõesparaenfrentarninguém.

Otetoerarevestidodegessobrancoemquadradosdelimitadosporvigasde

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madeira.Pareciaantigoeeraumtantoquanto impressionante,masoscantosestavamcheiosdeteiasdearanha,quependiamcomotraposcinzentos.

Sherlock fechou os olhos e aguçou os ouvidos.Escutou o crepitar de umafogueira—lenharachandocomocalor—eummurmúrionofundoquesoavacomoseumgrupodepessoasestivesseaguardandoalgo—sussurros,risos,péssedeslocando.Osomdeumaplateiaàesperadocomeçodeumaapresentação.Sherlocksentiuocheirodesuoredecomida,emisturadoatudohaviaoodorrançosodoanimalnofossodooutrocômodo.

Depoisdealgumtempo,omeninosesentoueolhouemvolta.Estava em um salão de pedra. Nas paredes, tochas incandescentes

iluminavam tudo com um brilho avermelhado bruxuleante. Entre as tochaspendiampeçasdetapeçariaquepareciampedaçosantigosdetapetescarcomidosportraças.E,emmeioàtapeçariaeàstochas,cabeçasempalhadasdeanimais,montadas em placas semelhantes a escudos. A maioria era de veados comgalhadasgrandes,mastinhatambémalgunslobosdebocaaberta,expondoaspresas,ealgoqueSherlockjurariaserumurso.Talvezdevesse carfelizpornãohavernenhumacabeçahumananaparede.

À sua frente havia um tablado, e sobre o tablado, uma cadeira.Parecia tersido entalhada a partir de um tronco imenso. Na cadeira, estava sentado —esparramado,comoumreinomeiodacorte—umhomemgrandecomoAmyusCrowe,mas, seoamericanocostumavaserumasinfoniadebranco—cabelobranco, roupas brancas, chapéu branco —, esse homem era um concerto depreto.Sua juba,as sobrancelhascheiaseabarbadesgrenhadaeramdacordanoite.Ocasacoxadrezeokiltqueeleusavaeramtambémquasetodospretos,comumaououtra linhabrancaouvermelha.ComoCrowe,eledevia terunscinquentaemuitosousessentaepoucosanos,mas,tambémcomoomentordeSherlock, parecia que o sujeito seria capaz de lutar com vários homens maisjovensaomesmotempoevencer.

Havia diversos homens atrás dele. Pareciam boxeadores ou lutadores —muito musculosos, com nariz achatado e orelhas grossas e retorcidas. Elestambémusavamcasacoekiltdomesmo tecidopretoxadrez.Coresdoclã—nãoeraesseotermoqueMattyhaviausado?Issoindicavaqueaqueleshomensfaziampartedomesmoclã?

OhomemnacadeiraolhouparaSherlockeergueuumasobrancelha.— Então — disse ele, com um sotaque escocês mais pesado que um

pedregulho—,esseéooutrogarotoqueos ianquesestãoprocurando.—Eleergueuamãoefezumgestoparaumdoshomensàssuascostas.—Tragaos

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amigos do jovem. Vamos fazer uma pequena reunião de família antes dainevitáveletrágicaseparação.

Osujeitoassentiuesaiuporumportalemarco.Enquantotodosesperavam,Sherlockaproveitouaoportunidadeparaolharemvolta.Deambososladosdotablado, um grupo variado de pessoas observava Sherlock ou o sujeito nacadeira.Haviahomens,mulheresealgumascrianças,mastodospareciamotipodegentequeganhavaavidadeformadesonesta—olhossérioseatentos,epeleque havia visto muito sol e muita chuva. Eles não usavam o mesmo padrãoxadrez.Suasroupaseramumamisturaderemendosetecidossurrados.Quandoomeninoviaalguémusandoumcasacoquecombinavacomacalça,supunhaquedevia ser por acaso ouporque as peças haviam sido roubadas juntas.Emmeio à multidão aglomerada em torno do tablado, Sherlock percebeu váriosdaquelessujeitosesqueléticosderostobranco.Asoutraspessoasnãopareciamse incomodarcomapresençadeles—nãocomoos freguesesda taverna.Osindivíduos estavam perfeitamente integrados, conversando com oscompanheiros; ninguémos evitava.Eles não agiamda forma comoSherlockvira antes,distantes, como se fossemcadáveres.Omeninonão sabiaporqueestavamvestidosdaquelamaneira,mascomcertezahaviaalgummotivo.

A multidão se alvoroçou, interessada, e todos se viraram na direção daentradaemarco.Segundosdepois,Crowe,Virginia,RufusStoneeMattyforamtrazidosaosempurrões.Elesolharamemvoltaparasesituar.CrowefoidiretoatéSherlockaovê-lonomeiodosalão.

—Garoto—disseCrowe, assentindo enquantoSherlock se levantava.—QuandoviqueelestinhamcapturadoGinnie,imagineiqueteriampegadovocêtambém.

—Sintomuitopornãoterconseguidoprotegê-la—falouSherlock.Crowebalançouaimensacabeça.—Nãohavianadaquevocêpudessefazer—respondeuele.—Essepessoal

éorganizado.Pegaram-nosnoaltodopenhascoenostrouxeramparacá.Sherlockfranziuocenho.—AchoqueelesnãotrabalhamparaBryceScobell—disseele.—Parecem

serdaqui;parecemescoceses.Croweassentiu.—Descon oquesejamumaganguecriminosadosarredoresdeEdimburgo.

Parecequecaímosnasmãosdeles,emboraeunãosaibamuitobemomotivo,nemoquequerem.

Ohomemquehaviaidobuscá-losdeuumpassonadireçãodeCrowe.

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—Nadadeconversa—rosnouele, levantandoamãoparadarumtapanaorelhadeCrowe.

Tranquilo,Crowepegouamãodeleeatorceu,fazendoosujeitogritare cardejoelhos.

—Nãoapreciosertratadocomgrosseria—disseele,baixinho—,ejáestoufartodisso.Ficariagratosevocêpudesseparar.

O sujeito no chão se levantou com di culdade, e dois brutamontes queestavamatrásdohomembarbudonacadeiraavançaramparaCrowe,masolíderlevantouamão.

— Deixem-no, por enquanto. Ele tem coragem. Admiro isso em umhomem. — O sujeito assentiu para Crowe. — Acalme-se, Sr. Crowe. Eupoderiamandartodososmeusrapazesparacimadevocêaomesmotempo,oquecomcertezaseriadivertidodeseassistir.Comovocêestávendo,gostamosde ver boas lutas aqui... e também de fazer apostas. O problema é que vocêcausariaestragosaalgunsdosmeushomens,eprecisodelesparaoutrascoisas.

Croweoencarou.—Vocêestáemvantagememrelaçãoamim,senhor.Sabemeunome,mas

creioquenãofomosapresentados.Ohomemselevantou.EraaindamaisaltodoqueSherlockhaviaimaginado,

eseutóraxeralargocomoumbarrildecerveja.— Meu nome é Gahan Macfarlane, do Clã Macfarlane, e tenho uma

pequenapropostadenegóciosparavocê.Onome “Macfarlane” ecoounamentedeSherlock.Elehaviaouvido esse

nomenãomuitotempoantes.Masonde?Crowesorriu,massuaexpressãonãomostravamuitohumor.—Vocênãomepareceumhomemdenegócios—respondeu.—Estámais

parabrutoebandido.Macfarlaneretribuiuosorriso.— Palavras fortes para um homem em desvantagem numérica. Existem

muitostiposdenegócios,meuamigo,emuitostiposdehomensdenegócios.Nemtodosusamfraqueecartola.

—Entãoquetipodenegócioéasuaáreadeatuação?—Ah,minha cartela de atividades é uma beleza.—Macfarlane passou o

olhar pela corte, ao que todos riram, obedientes. — Digamos apenas quetrabalhocomseguros.

—Seria—respondeuCrowe,grave—,suponho,o tipodeseguroemquecomerciantesdaregiãolhepagamcertaquantiatodasemanaparagarantirque

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nãohaja...acidentes?— Correto — reconheceu Macfarlane. — E você caria surpreso com a

frequência com que acidentes acontecem logo depois de algum comerciantedecidirquejánãopodemaisbancarotipodeseguroqueofereço.Éummundoperigoso.Lojaspegamfogootempotodo,ecomerciantessãoespancadosporbandos de vagabundos sem qualquer motivo. Na minha opinião, ofereço umserviçopúblicoaoprotegê-losdessesperigos.

CrowesevirouparaSherlock.—Extorsão—disseapenas.—Comerciantesesforçadoseinocentespagam

para que esse homem não mande os capangas darem uma surra neles,destruírem as mercadorias ou incendiar as lojas. É um ganha-pão bastantedesonesto.

Macfarlanedeudeombros.—Éanatureza,nuaecrua—disseele.—Todososanimaistêmmedode

alguma coisa, algo que possa matá-los e comê-los. Não é diferente emEdimburgo. As pessoas daqui fogem dos impostos sempre que possível. Oscomerciantes vendem cerveja e pão, mas diluem a bebida com água e põemserragemnopãoparaeconomizarfarinha.Euapareçoepegoaminhaparte.Éavida,meu amigo.—Ele sorriu.—Somos chamadosSaqueadoresNegros—disse,comorgulho.—EsomosconhecidosetemidosdaquiatéGlasgow.

Sherlock se lembrava de ter lido o nome nos jornais de Edimburgo. OsSaqueadoresNegroseramaquelaganguetãotemida.

—Entãodoquevocêtemmedo?—perguntouomenino,ousado.—Quempegaumapartedevocês?

MacfarlanevirouacabeçabarbadaparaSherlock.— Estou no topo da cadeia alimentar por estas bandas, rapazinho —

respondeu ele, sério.—Não tenhomedodeninguém.—Ele voltou a olharparaCrowe.—Esejamosjustos:nãomemetocomprostituição,chantagens,sequestros nem nada disso. Aliás, nada que afete crianças. Deixo isso parabandidosdecategoriasinferiores.Tenhomeuscritérios.—Eledeudeombros.— Às vezes uma ou outra carteira roubada ou casa invadida. Ou de vez emquandoalgunshomensnasdocasdeixamalgumcaixotecairequebrarepegamalgumascoisas.Nãoorganizooscrimes,nemosexecuto,masosladrõesmedãoumaparcelapeloprivilégiodeatuaremmeuterritório.

—Umcriminosocommoral—debochouCrowe.—Quecomovente.—Umcriminosocomumaposturaprática—corrigiu-oMacfarlane.—A

polícia camaisagitadacomsequestros,chantagenseassassinatosdoquecom

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rouboseextorsões.Tentonãochamaraatençãodeles.— Entãoexiste alguém acima de você na cadeia alimentar — comentou

Sherlock.Ohomemfezumacareta.—Atéoursoevitaatiçarovespeiro—retrucou.Interessante,pensouSherlock.Esseeraumpontosensívelparaosujeito.OmeninopassouoolharpelacortedeMacfarlane,todosbandidoseladrões.

E,claro,pelos“cadáveres”espalhadospelamultidão.— Mas por que ngir que você controla pessoas mortas? — continuou

Sherlock.—Quer dizer, está tudomuito bem-feito,muito convincente,masnãoentendoafinalidade.

— Eu governo pelo medo, rapazinho — respondeu Macfarlane. — Aspessoasaceitamserextorquidasporquetêmmedodoquevaiacontecersenãopagarem. Descobri que sou mais temido se todo mundo achar que tenhopoderesqueninguémentende.Àsvezesalguémtentaenfrentarmeushomens,tentafazê-losrecuaroulhesdardinheiro,mascomoameaçarousubornarumcadáver? Se as pessoas acreditarem que posso controlar os mortos, terão ummedomortaldemimecontinuarãomepagando.—Eleriu.—Algunsjánãonos chamam mais de Saqueadores Negros... chamam-nos deRessuscitadoresNegros,poisressuscitamososmortos!

—Massãoapenaspessoasfantasiadasemaquiadasparapareceremcadáveres—observouSherlock.—Ninguémpercebe?

— As pessoas acreditam no que querem acreditar. Edimburgo é um lugarsombrio.Aspessoasdaquiqueremacreditarqueosmortospodemandar.Depoisde Burke e Hare, das partes na cidade que foram enterradas e de todas ashistóriasdefantasmasenvolvendoocastelo,nãotivemuitotrabalho.

— Por mais fascinante que seja — disse Crowe —, não vejo bem o quetemosavercomoseubeloempreendimento.Nãosomosladrõesenãosomoscomerciantes.Oqueexatamenteestamosfazendoaqui?

—Ah—exclamouMacfarlane.—Estaéumaperguntainteressante.Ouvifalar que alguém novo na região estava procurando um grupo. Estavaprocurando um homem grande de cabelo branco e um sotaque estranho queviajava com umamenina de cabelo ruivo vestida com roupas demenino.Naverdade,disseramqueameninatalvezatéestivessedisfarçadademenino,masque ela poderia ser reconhecida pela cor incomum dos olhos.—Ele fez umgesto na direção de Crowe e Virginia. — E aqui estão vocês... um homemgrandedecabelobrancoeumsotaqueestranho,eumameninadeolhosdacor

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da or do tojo. Quando me disseram que vocês tinham sido vistos perto deCramond,decididarumaolhadapessoalmente.Queriaveroquevocêstinhamdetantovalor.

—Valor?—perguntouCrowe.Ele tinha uma expressão grave no rosto. Parecia saber o rumo daquela

conversacheiadelacunas,eSherlocktambémjáimaginava.—Ah,nãocomentei?Dizemqueexisteumarecompensapelohomemepela

menina que descrevi. Vivos, é claro. Falou-se de quinhentas libras. É umaquantiaconsiderávelporestasbandas.Nãohárecompensaseestiveremmortos.Naverdade,falamdeumaameaçaespecí cacasoelessejammortossemquerer.—ElesorriuparaCrowe.—Nãoseiquemvocêssãonemquemirritaram,mastem alguém muito ansioso para encontrá-los. Não que seja importante, maspoderiamedizerporquequeremtantovocês?

CroweencarouMacfarlane.—Todomundotemmedodealgumacoisa—murmurou.Macfarlaneassentiu.—Palavrascorajosas—disseele.—Masvocêestáaquienãoparecemuito

assustador. Mandei uma mensagem ao homem que estava oferecendo arecompensa por sua captura. Ele chegará em breve. E então veremos o queacontece.

—Eosmeninos?—perguntouCrowe,fazendoumgestocomacabeçanadireçãodeSherlockeMatty.—Vocêdissequenuncamachucacrianças.Elesseenvolveramnestahistóriaporacaso.Euagradeceriasepudesseconsiderarapossibilidadede libertá-los.Não existe recompensapor eles, e dou-lheminhapalavradehonradequecausareimenosproblemassevocêossoltar.

Macfarlanerefletiuporuminstante.— É verdade que não sou de aceitar violência contra jovens — disse ele,

pensativo.—Eunãovouembora!—gritouSherlock.Croweorepreendeu:— Você vai se eu mandar, garoto — chiou. — Não sabe do que Bryce

Scobellécapaz.—Mas...Croweergueuamão.—Nãodiscuta.ÉmelhorquesejamossónósdoisenfrentandoScobelldo

que todosos cinco.Eu cariamais tranquilo se soubessequevocê eo jovemMatthew estão em segurança.—Ele se virou paraMacfarlane.—E então?

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Temosumacordo?Macfarlaneoencarouporumtempo.—Porumlado,vocêtemrazão...nãoexistenenhumarecompensaespecí ca

pelosgarotos.Poroutro,elessãosagazes,eachoque,pormaisquevocêdigaquenão,talvezestejamaisdispostoacooperarseeuosdeixaraqui.Então,não,não temos um acordo.Estou com todas as cartas namão e não vejomotivoalgumparamedesfazerdenenhumatãocedo.

Algo ainda pipocava nas profundezas da mente de Sherlock, algo sobre onome“Macfarlane”.Eletentoudarliberdadeparaqueopensamentobrotasse,paraque cassemaisàvista.Algoqueelehaviaouvidoaquelesdias?Não,algoqueelehaviavisto.

—Aqueleassassinato!—disseelederepente,quandoalembrançaemergiudeseuspensamentos.—DeSirBenedictVentham.—Eletentoupensarnasimagensdosjornais:oqueeleleranotremdeFarnhamparaLondreseoqueleranoparquedaPrincesStreet.—Amulherqueprenderam...onomedelaeraMacfarlane,eojornaldiziaquehaviaalgumarelaçãoentreelaeosSaqueadoresNegros.

Foi como se um silêncio de repente cobrisse todo o salão. O rosto deMacfarlanepareceuassumirumaexpressãodefúria.

—Minhairmãzinha—rosnouele.—Queissotenhaacontecidocomela!Elanemtemculpa!Nãofariamalaumamosca!

—Elaéparentedolíderdeumaganguecriminosa—disseCrowe,nervoso.—Suponho que a polícia tenha dado uma olhada na árvore genealógica e ajogadonacadeia.

Macfarlaneselevantou,desceudotabladoefoiatéCrowe.Osdois caramcara a cara, nariz com nariz. Tinham a mesma altura e eram igualmenteenormesecabeludos.AúnicadiferençaeraqueocabelodeGahanMacfarlaneeratodopreto,nãobranco.

—Ela não é culpada de crime algum — disse Macfarlane, bem baixo, aspalavrascaindonosilênciotensodosalãocomopedrasemumapoçaimóveldeágua.—Elasempredetestouesseramoemquecomeceiaatuar.ÉumamoçatementeaDeus,enadajamaismudariaisso.

—Às vezes coisas estranhas acontecem — disse Crowe, também em vozbaixa. — Talvez esse Sir Benedict Ventham a tenha atacado, e ela tenhaprecisadosedefender.

— Ela escreveu para mim. — Macfarlane não piscava. Encarava Crowe,desa ando o americano a continuar procurando motivos para que sua irmã

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pudesse ser culpada. — Jurou para mim, pela Bíblia, que não feznada quepudesse ter resultado namorte dele, e que lamentava isso como lamentava amortedonossoprópriopai.Acreditonela.

—Nessecaso—disseSherlock,alto—,eutenhoumapropostadenegóciosparavocê.

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Capítuloquinze

MACFARLANE FICOU UM BOM TEMPO encarandoCrowe, como se não tivesseouvidoSherlock,atéqueporfimgirouacabeçanadireçãodomenino.

—Continue,rapazinho.Vamosversemeimpressiona.—Seconseguirmoslimparonomedasuairmã,mostrarqueelaéinocente,

vocênosliberta.NãonosentregaaBryceScobell.Sherlockouviuummurmúriodeincredulidadecorrerpelosalão.CrowetambémseviraraparaencararSherlock.Aexpressãotranquila,quase

serena, de Macfarlane contrastava com a dele, que franzia o cenho como setentasse imaginar o que Sherlock pretendia com aquilo. Mas o meninoprecisavareconhecerquetambémnãosabia.

—Deixe-meverseentendi—disseMacfarlane,devagar.—Vocêquer...oquê?Investigaroassassinato?Procuraralgoqueapolíciatenhadeixadopassar?E acha mesmo que consegue reunir provas su cientes para convencer ospoliciaisdequeapequenaAggienãotemculpa?

Sherlockdeudeombros.—Oquevocêtemaperder?Senãoconseguirmosprovarqueelaéinocente,

vocênosentregaaBryceScobellerecebearecompensa.Seconseguirmos,eelaforsolta,vocêrecuperasuairmã.Deumjeitooudeoutro,vocêsaiganhando.

MacfarlanesorriucomoseachassegraçadaconfiançadeSherlock.—Vocêéumpouconovoparaserpolicial,rapaz.AmentedeSherlockvooudevoltaaalgunsmesesantes,quandoseuirmão

Mycroftforaacusadodeassassinato.Apolícianãohaviademonstradointeresseem investigar o crime: eles estavam diante de um suspeito e tinham provassu cientes para condená-lo. Fora Sherlock quem encontrara o verdadeiroassassino.

—Apolíciasóvêoquequerver—respondeuele,amargurado.—Elesveemoqueémaisfácil.Nãomedeixodistrairpeloóbvio.Consigoveroqueelesnãoveem.

Macfarlane o encarou sem falar nada. Sua expressão era uma combinaçãoestranha de desprezo condescendente e fugaz esperança. Algo na voz deSherlockoestavaconvencendo.

— Acredito que você consiga — disse ele, depois de um tempo —, masprecisodealgomais,antesdepermitirquevocêsaiaparainvestigar.Issopode

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serumatentativadefuga.—Nãoquandovocêaindaestácommeusamigos—comentouSherlock.Omeninoolhouemvolta,desesperadoparaencontraralgo—qualquercoisa

—quepudesseserusadoparaconvencerMacfarlanedequeeracapazdefazeroquehaviaprometido.

—Você falouquealgunsdos seushomens trabalhamnasdocas, certo?—perguntou.

Macfarlaneassentiu.—E se eu lhe disser quais deles trabalhamnas docas e quais não? Isso o

convenceria?— Só de olhar para eles? Sem fazer nenhuma pergunta? — Macfarlane

balançouacabeça.—Nãoseicomovocêvaisaberquaissão.— Separe vinte de seus homens— disse Sherlock. — Não me diga nem

mesmoquantosdessestrabalhamnasdocas.Euvoudescobrir.—Vamosdi cultar,então—respondeuMacfarlane.—Vocêtambémnão

pode olhar para asmãos deles, caso esteja contando em encontrarmarcas decordasoualgodotipo.

Sherlockdeudeombros.—Seissoodeixamaisfeliz.MacfarlaneseafastoudeAmyusCrowecomosenemselembrassedequeo

americanoestavaali.Apontouparadiversaspessoasnamultidão.—Você, você e você... para lá, na parede.Dougie, você também.E você,

Fergus...Mãosparatrás,todomundo.EnquantoMacfarlaneescolhiaosvintehomens,RufusStonefezumgesto

paraSherlock.—Temcertezadisso,Sherlock?Vocêconseguefazerisso?— Acho que sim — respondeu o menino. — Não sei se temos escolha.

Precisamosarranjaralgumamoedadebarganhaparaconvencê-loanoslibertar.Sevocêtiveralgumaideiamelhor...

Rufusdeudeombros.—Nãomeocorrenada.—Certo—anunciouMacfarlane.—Vejamosseutruquezinho.Haviavintehomensalinhadosnaparede,todoscomasmãosnascostas.Eles

variavamemidade,desdeumgarotocomoSherlockatéalgunshomensnacasadossessentaanos.Todosestavamcomsujeiraincrustadanopescoçoeatrásdasorelhasetinhamtatuagensazuisgrosseirasnoantebraço.Algunstinhamcabeloaté os ombros, outros tinham rabo de cavalo e outros, ainda, apenas uma

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sombradecabelonacabeça.Sherlockfoiatéapontada la.Emvezdeseaproximareolharorostoeas

roupas de cada um — o que ele descon ava que fosse a expectativa deMacfarlane—,agachou-seeexaminouossapatosdoprimeirohomemomaisatentamente possível. Ouviu risadinhas abafadas vindo da multidão debrutamonteseladrões,masignorou-as.Percorreua laengatinhandonochão,conferindosapatos,botasebarrasdobradasdecalças.

Quando chegou ao m, levantou-se. Os homens na parede estavamesticandoopescoço,olhandoparaelecomfascínio,algunscomdescon ança,enquantoorestantedamultidãoconversavaeapontavaparaSherlock.

—Certo—disseomenino.Elecaminhouaolongoda la,apontandoparacincodosvintehomens.—Você,você,você,vocêe...sim,você.Umpassoàfrente.—OlhouparaMacfarlane,queoobservavafascinado.—Essescincostrabalhamnasdocascomregularidade.Osoutrosquinze,não.

—Vocêtemrazão.Temtodarazão.—Elegesticulouparaqueoshomensvoltassemàplateia.—Comosoube?

—Elestrabalhampertodeáguadomar—respondeuSherlock—,eéissooqueosentrega.Devemsemolharcomaáguadasdocascomalgumafrequência.Jápercebiissoantes.Aáguadomarfazduascoisas.Quandoencharcaocourodossapatoseseca,deixaalgumasmarcasbrancas,ondeosal coudepositadonoprópriocouro.Etambém,quandogotasd’águacaemnasbarrasdobradasdascalças e depois secam, deixam cristais de sal. Esses cinco estão com marcasbrancasnocourodossapatosoucristaisdesalnabarradascalças,ouambos.

—Estouimpressionado—reconheceuMacfarlane.—Vocêpareceserbemesperto, e não posso dizer o mesmo dos policiais que estão investigando oassassinatodoqualminhairmãfoiacusada.Tudobem,então:vouaceitarsuaoferta. Mas devo dizer que você não tem muito tempo. Agora são — eleconferiuorelógio—novehoras,maisoumenos.Tenhoumencontroàsduashorasdestatarde,comoshomensqueestãoatrásdosseusamigosamericanos.Vocêtemcincohoras,nemmais,nemmenos.

SherlockolhouparaAmyusCrowe,eentãoparaorostopálidodeVirginia,depoisparaMatty.Oamigosorriuefezsinaldepositivocomopolegar.

—Seéoquetenho,entãoédessetempoqueeuvouprecisar—respondeuele,sério,torcendoparaqueconseguissedarcontadocombinado.

Macfarlanegesticulouparaumdeseushomens.—Dunlow,vocêestápordentrodasituação.Leveumacarruagemláparaa

frenteagoramesmo.VocêeBroughvãocomogaroto.Levem-noàdelegacia

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primeiro.Seele tentar fugir,vãoatrásdele.Hajaoquehouver, tragam-nodevoltaparacáatéasduas.Entendido?

Oshomensassentiram.—Omordomo da casa de Sir Benedict Ventham é um... cliente meu —

disseMacfarlaneaSherlock.—Digaquevocêestátrabalhandoparamim,eeleo deixará dar uma olhada pela casa, embora eu nem imagine o que você vaiencontraraestaaltura.

—Nemeu—murmurouSherlock.ElecomeçouasaircomBrough,umdoshomensdeMacfarlane,masentãosevirouesorriuparaVirginia.—Vouvoltarpararesgatarvocê.

—Euseiquevai—respondeuela.Brough era um sujeito de trinta e poucos anos, magro e com uma careca

sardenta. Seus lábios eram retorcidos, como se ele estivesse sempre sentindoalgum cheiro desagradável. O homem acompanhou Sherlock pelos cômodospor onde o menino havia sido carregado antes. Enquanto eles passavam, oanimaldentrodofosso,qualquerquefosse,farejavaalgodooutroladodacerca,masnocômodoseguinteoshomensaindalutavam,paradosbempertoumdooutroetrocandogolpeslentos,movendoapenasosbraços.Pareciamexaustosetinham o rosto inchado e cheio de sangue. A rinha de cachorros haviaterminado,eamultidãoemvoltadoringuesedispersava.Aindahaviadinheirotrocandodemãos.

SherlockeBroughsedirigiramparaaportaprincipaleemergiramparaumdiadeluzfracaedesbotadaqueatravessavapesadasnuvensdechuva.Sherlockse viroupara vero edifíciodeondehaviamsaído.Considerandoas lajotasdopiso, as tapeçarias, as cabeças de animais empalhadas e as tochas acesas, omeninoesperavanomínimoumamansãoantiga,talvezatémesmoumcastelo,mas couchocadoaodescobrirqueeraapenasumarmazémdemadeiraenormee indistinto, cercado de outros armazéns. A região parecia deserta.Provavelmente, cavapertodasdocasondeaqueleshomenstrabalhavam.Vistodefora,oarmazémpareciaumedifícioparaguardarsacasdegrãos,enãoabasecentraldeumaganguecriminosa.Maisdisfarces,concluiuele.Qualquercoisapodia ser adaptada para parecer outra, bastando que fosse investida a dosesuficientedeesforço.

Dunlow já os esperava do lado de fora. Era mais velho que Brough, etambémmaisbaixoe largo,masdavaa impressãodequetinhamaismúsculoquegordura.OsdoisconduziramSherlockaumacarruagempreta.

Meiahoradepois,pararamdiantedeumedifíciodepedras cinzentaseum

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telhado comprido de placas de ardósia preta. As janelas tinham grades. NapedraacimadaportaestavaescritoPolíciadeEdimburgoeLothian.

—Éaquiqueairmãdochefeestápresa—disseDunlow.Osomdesuavozeracomoduaspedrasraspandoumanaoutra.Elepareciapoucoàvontadeemestarassimtãopertodeumadelegacia.—Deixe-meentrareversevãodeixarvocêconversarcomela.

—Isso épossível?—perguntouSherlock.—Querdizer,não souparentenem nada, e, mesmo se você disser que sou, eles vão perceber que não souescocêsassimqueeuabriraboca.

— Por estas bandas o pessoal costuma deixar que cidadãos paguem umtrocadoparaobservarcriminososnascelas—respondeuDunlow,sombrio.—Aclassemédiagostadeverospobresnasmãosdapolícia...assimelesdormemmaistranquilosànoite.Voupassarumxelimparaosargentoedizerquevocêélho de um lorde inglês em visita ao país. Ele vai deixar você car uns dez

minutossozinhocomela,semperturbar.—EleviuaexpressãodechoquedeSherlockebufou.—Oquê,vocêachaqueapolíciaémelhorqueosbandidos?Aúnicadiferençaéqueelestêmuniformeeagente,não.

Dunlowentrounadelegaciaevoltoucincominutosdepois.— O guarda na recepção vai levar você às celas — disse ele. — Saia em

quinzeminutos,ouelesvãoquerermaisumxelim.Descon ado, Sherlock entrou na delegacia. O lugar tinha um cheiro

desagradável demofo.De fato, um guarda uniformizado o esperava junto daporta.Suassuíçasacabavamemumbigodefarto.

—Poraqui—disseeledeformaríspida,semolharparaSherlock.—Quinzeminutosparaolharefalarcomela.Semgracinhas,ouviu?

— Sem gracinhas — disse Sherlock, sem saber exatamente com o queacabaradeconcordar.

Elesdesceramumlancededegrausdepedracurvospelodesgastedeváriasgeraçõesdepés.AvisãodascelastrouxeaSherlockalembrançadesagradáveldaocasiãoemquevisitaraMycroftemumadelegaciadeLondres.Eleesperavaqueavisitadehojetivesseumresultadotãopositivoquantoaquela.

Oguardaparoudiantedeumaportaeadestrancoucomumachavegrandepresaemumaroemseucinto.AbriuefezumgestoparaqueSherlockentrasse.

— Quinze minutos — avisou ele. — Ela passa a maior parte do tempochorando,entãoduvidoqueváfazeralgumacoisaidiota,comoatacarvocê,mascomessa laianunca se sabe.Se ela avançar,batanaporta.Estarei esperandoaquifora.

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Sherlockentrou.Aportasefechouàssuascostas,eomeninoouviuachavevirarnafechadura.Estavasozinhocomumaassassinaempotencial.

A assassina empotencial estavadeitada emumcatre demetal quepareciapreso à parede por dobradiças e correntes. A mulher olhou para ele.Tinhaaproximadamente trinta e cinco anos, olhos azuis e cabeloqueparecia palha.Sua cabeça tinhaum formatoque lembravaodo irmão,mas ela eramenor emais delicada. Seu rosto estava sujo e marcado por lágrimas, e as roupas,amarrotadas, como se a mulher tivesse dormido com elas — o queprovavelmenteeraocaso.

—Nãoprecisodeumpadre—disseela.Suavozestavafracamas rme.—AindanãoestouprontaparaficarempazcomDeus.

—Nãosoupadre—respondeuSherlock.—Fuienviadoporseuirmão.—Gahan?—Elaseendireitounacama.Seusolhosdemonstravampânico.

—Elenãopodeseenvolver.Não pode.—Amulherolhouparaaporta,commedodequeoguardaestivesseouvindodoladodefora.—Seapolíciaacharqueeletemalgumacoisaavercomisso,vaipersegui-loportodososcantosdaTerraenãodescansaráatépegá-lo!

—Não sepreocupe—falouSherlock,para tranquilizá-la.—Elenãoestáenvolvido.Eupediparavirvê-la.Querodescobriroqueaconteceu.

— O que aconteceu? — Ela virou o rosto, e seus olhos se encheram delágrimas.—SirBenedictestámorto,eapolíciaachaqueeuomatei,senhor.Foiissooqueaconteceu.

—Evocêomatou?Amulherolhouparaeledenovo,consternada.— Eu não poderia matar Sir Benedict! Eu trabalhava para ele havia vinte

anos.Senhor,eleeracomoumpaiparamim!Omeninoassentiu.—Tudobem.Entãoporqueapolíciaachaquevocêéaassassina?Elaapoiouacabeçanasmãos.—Porquesouacozinheiradele.Querdizer, eraacozinheiradele.Preparava

todas as suas refeições. E ele foi envenenado, ou pelo menos é o que estãodizendo.Então,seelefoienvenenado,devetersidopormim.Éóbvio,nãoé?

—Mascomcertezaoutraspessoastocaramnacomidadele,oualevaram,outiveramalgumacessoaoqueelecomia,não?

Elabalançouacabeça.— Sir Benedict era muito... descon ado. Ele acreditava que seus rivais

queriam destruí-lo. Estava convencido de que, se pudessem, atacariam-no ou

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envenenariam sua comida. A casa estava cheia de guardas para evitar quealguémentrasseouateassefogoemtudo,eelesósaíaacompanhadodeumdosguardas.Todasasportasejanelaseramtrancadasereforçadas,eaúnicapessoaemquemelecon avaparapreparareserviracomidaeraeu.—Eladeuumlevesuspiro.—Àsvezesaquilopareciaumaprisão,emesmoassimeuerafeliz.EutrabalhavaparaSirBenedictfaziamuitotempo,eelesabiaqueeununcafarianadaparamachucá-lo.Alémdisso, ele incluiuno testamentoqueeuherdariaquinhentas libras se ele morresse de causas naturais. O mesmo valia para omordomo, as criadas, o jardineiro e todos os guardas.—Ela fungou.—Elesabiaqueassimninguémomachucariaouentrarianacasausandodesuborno.— Ela fungou mais uma vez. — Não que eu fosse fazer ou deixar de fazerqualquercoisaporcausadedinheiro.

—Entãoasenhorapreparavaacomidadelesozinhaeaservia?Sóasenhora?—Issomesmo—con rmouela.—Eeraeuquemprovidenciavatodosos

alimentostambém.Compravatodosostemperoselegumeseleitenomercadoepegavaacarnenoaçougue.Etambémfaziatodoopãodele.

—Então,seacarneouoslegumesestivessemenvenenados,outrapessoanaregiãotambémteriamorrido,eissonãoaconteceu.

—Éexatamente isso, senhor, e épor issoqueestouaqui agora,na ladaforca.

Sherlock conferiu o relógio. O tempo estava passando. Faltavam apenasalgumashorasatéqueBryceScobellseencontrassecomGahanMacfarlane.

—Evocêsóobtinhaosalimentosnomercadoenosaçougues?—Sim.—Elafezumapausa,hesitante.—Excetoumououtrocoelho.O

jardineirooscapturavacomarmadilhas.Eleostraziaparamim,aindaquentes,eeutiravaastripaseapele.SirBenedictadoravacoelhoaomolhodecremedemostarda...pediaessepratováriasvezesporsemana.—Elafungou,àbeiradaslágrimasdenovo.—Disseramquefoiissooqueomatou.Deramosrestosdojantarparaumcachorro,quemorreutambém.

—Interessante.Aúltimarefeiçãodelefoiumcoelhoaomolhodecremedemostarda?

Elaassentiu.—Evocêpreparoutudosozinha?—Sim.Compreiocremenomercado,assimcomoassementesdemostarda.

Oprópriojardineiropegouocoelho.Aindaestavaquente,entãodavaparasaberqueoanimaltinhaacabadodemorrer.

Sherlock vasculhou o cérebro em busca de mais alguma pergunta. Nada

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apareceu. Ele olhou a mulher sentada naquele banco duro de metal, o rostocobertode lágrimas, umaexpressão sofridamas esperançosa.EladependiadeSherlock para provar sua inocência, assim como Amyus e Virginia Crowe,Matty Arnatt e Rufus Stone. O menino não podia decepcioná-los, mas nãoimaginava como Aggie Macfarlane poderia ser inocente. Se ela dissera averdade, Sherlock não via forma alguma de a refeição ter sido envenenada.Contudo,seAggieMacfarlanefosseculpada,elateriacontadoumahistóriaqueindicasse a possibilidade de outra pessoa ter envenenado a comida, não?Provavelmenteseriacondenadaàforcaporcontadesuahonestidade.

—Precisover a casa—disseele, abatido—,para conferir a cenado...docrime.Seeudescobriralgumacoisa,aviso.

Sherlockdeixoua cela soboolhardamulher,umolhar reavivadoporumanovaesperança.

Ele disse aDunlow eBrough que queria visitar amansão de SirBenedictVentham.Osdoisergueramassobrancelhas,maspartiramsemfalarnada.

A viagem levou outros vinte minutos. Sherlock olhou para o relógio pelomenosumascincovezes,contandotodososminutosesegundos.

Acarruagemsaiudaruaparaumapistaquefaziaumacurvaelevavaaumacasa grande e pouco receptiva. Em vez de parar na frente, porém, o veículopassoudiretoeseguiuporumacessonosfundos.

—Entradadeserviço—explicouDunlow.Elesdescerameforamatéumaportanosfundosdacasa,Dunlownafrente

deSherlockeBroughatrás.Quandoostrêschegaramàporta,elaseabriu.Umhomemaltoemagro,comumbigode no,encarava-os.Usavacalçaslistradasepaletó preto. Sua face esquerda parecia ligeiramente inchada, e Sherlock seperguntouseosujeitoestavacomendoalgoantesdeelesaparecerem.

—OqueemnomedeDeusvocêsdoisestãofazendoaqui?—chiouele.—Jádeiodinheirodestasemanaparaopatrãodevocês.Saiamdaqui!

— Macfarlane quer que este garoto aqui veja o lugar onde Sir Benedictmorreu.

—Issoaquinãoéatração turística—disseohomem.—Nãooferecemosvisitaguiada.

—Apolíciaestánacasa?Omordomobalançouacabeçaemnegativa.—Disseramquejátêmtudodequeprecisam.—Entãonãohámotivoalgumparavocênãonosmostrara salaonde seu

chefemorreueacozinhaondearefeiçãofoipreparada.Ouquerexplicarpara

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meuchefequevocênãoestádispostoafazerisso?OmordomohesitoueencarouSherlock.—Apenasomenino,então,esóporalgunsminutos.Nãomaisqueisso.DunlowolhouparaSherlock.—Issodevebastar—disseomenino.Omordomooconduziupelacasa,passandodaáreadacriadagem,ondeas

paredes precisavamde umanova pintura e o tapete estava desgastado, para aparteprincipaldaresidência,ondeatintaestavaimaculadaeostapeteseramtãoespessosemaciosqueSherlocksentiaestarandandonasnuvens.Omordomoolevouaosalãoprincipal.Haviaumcarrilhãojuntoaumaparede.Otique-taqueeraalto,contandocadasegundo.Omordomovirouparaumladoeentrouemumasaladejantar.Sherlockpercebeuqueelemastigavaalgo.

—FoiaquiqueSirBenedictmorreu—disseomordomo.Elefezumgestocomacabeçanadireçãodapontadamesa.—Estavasentadoali.

Quandoomordomofalou,Sherlocksentiuumcheirodetabacoencheroar.Issoexplicavaabochechainchada—eleestavamascandotabaco.

—Quemtraziaacomida?—perguntouSherlock.Elejátinhaouvidoarespostadacozinheira,masqueriaconferirseelahavia

faladoaverdade.—AggieMacfarlane.—Omordomotorceuoslábios.—Eramuitopróxima

de Sir Benedict. Próxima demais para meu gosto. Ela veio trazendo o pratocomoseestivessetudonormal,massabiaqueacomidaestavaenvenenada.

—Osenhortemcertezadequefoielaquempôsoveneno?Omordomofezumacareta.—Quemmaispoderiaterfeitoisso?Eraumaperguntarazoável,eSherlockestavapensandoomesmo.—Eoprato?—perguntouele.—Ovenenonãopoderiatersidocolocado

diretonoprato?Omordomo pensou antes de falar, e Sherlock percebeu que ele passava o

tabacodeumladoparaooutrodentrodaboca.—Acozinheira recebera instruções explícitasde sempre lavaroprato logo

antes de servir a refeição— respondeu ele após um tempo.—Todomundosabia disso. Não faria sentido colocar veneno no prato. — Ele hesitou,pensando.—Eouvidizerqueapolíciadeuamesmacomidaparaumcachorro,enãoa tiraramdesseprato,masda travessaqueelahaviausadono forno.Ocachorromorreu.Com certeza isso signi ca que o veneno estava na comida,nãonoprato.

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—Sim—disseSherlock,devagar—,mas signi ca tambémqueacomidaestavaenvenenadaantesdeirparaoforno.Porqueenvenenaracomidaedepoisassá-la?Ovenenopoderiaserdestruídopelocalor.Fazmaissentidocolocarovenenodepoisdeservi-lanoprato.

Sherlock sentiu uma pequena agitação de entusiasmono peito.Esse era oprimeiroindícioconcretodequeAggieMacfarlanetalvezfosseinocente.Nãobastariaparalimparonomedela,massugeriaqueSherlockestavanocaminhocerto.

O relógio no saguão fez um barulho de repente, quando o mecanismointerno se mexeu. Sherlock olhou para os ponteiros: ele tinha que estar nocaminhocerto.

—Tenhoqueiràcozinha—disseele.—Venhacomigo.Enquantovoltavamàáreadacriadagem,Sherlockconferiuorelógio.Deze

meiadamanhã.Faltavamduashorasemeia—emeiahoradissoseriaperdidanoretornoaoarmazémdeMacfarlane.Otempoestavaacabando.

AcozinhaerapraticamenteidênticaàdamansãoHolmes:umamesagrandenocentro,manchadapelosanosdeuso,umfogãoenormecomváriasportasdeforno,umaparadorcheiodepratoselouças,umsuportepresonotetodoqualpendiamcorposdefaisõesecoelhos,umagrandepiaquadrada...todosositenstradicionais às artes culinárias. Não havia pratos sujos nem frigideiras comrestosdecomida—ouAggiearrumaraacozinhaenquantopreparavaojantar,ounãoforapresaimediatamente.

Sherlocknãoiadescobrirnadaali.—Ocoelhoqueestavaenvenenado—disseele.—Precisoverondeelefoi

capturado.—Esse—respondeuomordomo,fungando—nãoéomeudepartamento.

Meudomínioéointeriordacasa,nãooexterior.Chamareiojardineiro.—Elefoi até uma porta que dava para a área externa e a abriu. Cuspiu o tabaco,lançando um jato marrom no chão perto da porta, e gritou: — Hendricks!Venha cá! — Então voltou-se para Sherlock. — Hendricks responderá aquaisquer outras perguntas que você tiver. Agora, se me dá licença, precisoprocurarumnovoemprego.

Ele se afastou, deixando Sherlock sozinho. O menino cou ali parado naporta da cozinha, olhando para o jardim bem-cuidado e sentindo o cheirodesagradável do tabaco emanando de onde o mordomo havia cuspido. Ficouligeiramenteenjoadocomocheiro.Nãoentendiaqualeraagraçadotabaco—

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fosseparafumarouparamascar.Eramhábitosasquerosos.Sherlocknãotinhaamenorintençãodeadotarnenhumdosdoisquandocrescesse.

Uma gurasurgiuno naldocaminho,passandoporumabrechanacercaviva.Tinha quarenta e poucos anos, cabelo e barba ligeiramente grisalhos, eusavaumcasacoverde-escuroecalçasgrossasdealgodão.

—Alguémmechamou?Avozdohomemtinhaumsomescocêsmarcado,completamentediferente

dosotaqueestranguladodomordomo.—Sr.Hendricks?— Só Hendricks está bom. — Ele olhou para as roupas de Sherlock. —

Senhor—acrescentou.—Comopossoajudar?Sherlockpensousedeveriatentarexplicarquemeraeoqueestavafazendo,

maslogodecidiudizeraohomemapenasoquequeria.—Ocoelhoquevocêpegou,oúltimoqueAggieMacfarlanepreparoupara

SirBenedict.Precisoverondeelefoicapturado.Hendricksoencarouporummomento.—Tudo bem — disse ele, depois de um tempo. — Melhor vir comigo,

então.Sherlock conferiu o relógio. Aquilo estava demorando demais! Seu tempo

estavacadavezmaiscurto,eavidadeseusamigosestavaemjogo!

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Capítulodezesseis

HENDRICKS SEGUIU PELO CAMINHO E passou pela brecha na cerca viva. Dooutro lado havia um trecho de bosque, ainda nos limites da propriedade. Ohomemprosseguiu,avançandoapassosseguros,semolharparaverseSherlockoacompanhava.

Omeninoconferiuorelógiomaisumavez.Quaseonzehoras,eeleestavaapenascaminhandopelocampo.Nãoiadartempo!

Ojardineiroparoudiantedeumbarrancocobertodegrama.Dooutro ladodobarrancohaviaumadepressãonaturalmaisoumenosredondaesemárvores.Sherlock viu buracos escuros ao longo do barranco — tocas de coelho,presumiu.

Derepente,umalembrança lheocorreu:acabeçadecoelhodentrodatocaemFarnham.Oquederainícioàviagem.Pareciaterpassadotantotempo,masforamapenasalgunsdias.

—Foiaquiquecoloqueiasarmadilhas—disseHendricks.Emvezdeolharpara Sherlock, ele preferiu tar a distância. — Usei uma armadilha de laçoligadaaumcaulecurvado.Ocoelhopassaacabeçadentrodelaeaativa,eocauleapertaolaçoetiraobichinhodochão.Con roasarmadilhasacadaduashoras,maisoumenos.

Omeninoolhouparaondeaarmadilhahaviasidoinstalada,masnãosabiaoqueelapoderiaindicar.Sempensar,foiatéobarrancoonde cavamastocasdecoelho.Abaixou-separaconferiramaispróxima.Nãohaviasinaldosanimais,mas ele viu alguns caules caídos bem na entrada da toca. Por um momentoSherlock supôs que fossem os restos de uma refeição que os coelhos haviamlevadodevoltaparaa toca,masentão sedeucontadequeessanãoeraumaexplicação possível.Ele nunca vira coelhos levarem comida de um lugar paraoutro — sempre comiam onde quer que encontrassem alimento. Sherlockpegouumdoscaules.Emumadasextremidadeshavia oresparecidascomumsinovioleta,eaoutrahaviasidocortada.Aquelasplantastinhamsidopostasalinaentradadatocadepropósito.Masquemfariaisso?

—Você reconhece essa or?—perguntou ele, erguendo o caule para queHendrickspudessever.

—Dedaleira—respondeuojardineiro,olhandoocauleefranzindoocenho.— Tome cuidado com isso, senhor. Chamam de “Campainhas da Morte”.

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Vocêpodemorrersódedarumamordidinhaemumadessasfolhas.Temgentequedizquedáparamorrersóderespirarpertodaplanta,masnãobotomuitafénisso.Venhoandandoporestebosqueháanosenuncativeproblemas.—Elefranziuocenho.—Tambémnãovimuitasdedaleiras.Sãobastante rarasporaqui.

—Porquecoelhoscomeriamplantasvenenosas?—perguntouSherlock.—Animaiscomcertezaevitamplantasvenenosas.—Elerevirouocaulenamão.—Aliás,porquealguémcolocariaumaplantavenenosaemumlugarondeumcoelhovaiacabarachando?

—Dizem—comentouHendricks—queoscoelhossãoimunesàdedaleira.—Eleretorceuorosto,comoseestivessepensandoemalgo.—Nãoseiseissoéverdade,massefor...

— Sefor verdade — disse Sherlock, dando voz aos pensamentos quepasseavamporsuacabeça—,entãoovenenodadedaleirapoderiaseacumularnacarnedocoelho.Issopoderiaenvenenarqualquerumqueocomesse.

Ele ergueu os olhos e trocou um olhar com Hendricks. O jardineiro oencarava, ainda com o cenho franzido em uma expressão grave. Ocorreu aSherlockque,seojardineirotivessesidoapessoaadeixarasdedaleiraspertodatoca,naesperançadequeoscoelhosfossemcomê-laseacumularovenenonocorpo, e se o homem dera o coelho a Aggie Macfarlane sabendo que ela oprepararia para o jantar de Sir Benedict, então ele cometera um assassinatoparticularmente ardiloso.Talvez tentasse impedir que Sherlock contasse paraalguém. O menino cou tenso, preparando-se para se levantar e correr casoHendricksfizessealgummovimentosuspeito.

Mas não — se ele fosse um assassino, por que diria exatamente o queSherlockprecisavasaberparasolucionarocrime?

—Alguémdeixouasdedaleirasaquidepropósito,paraoscoelhoscomerem?—perguntouohomem.—Paraque,seeupegasseumcoelho,acarnedelejáestivesseenvenenada?

Sherlockassentiu.—Quantotempolevariaparaovenenoseacumular?—Umasemana—respondeuHendricks.—Talvezduas.Mas...quem faria

algoassim?Algotãobárbaro?Emvezderesponder,Sherlockolhouochão.Aterraeradura—durademais

parapreservarqualquerpegadadesapatooubota.Elepodiasabercomoocrimehaviasidorealizado,masessainformaçãonãovaliadenadasemsaberquem ocometera.

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Queria olhar mais uma vez o relógio, mas se conteve. Saber quão poucotempofaltavanãooajudariaapensarmaisrápido.

Passandooolharpelobarrancodastocas,procurandoalgo,qualquercoisaquepudesse ser importante, ele de repente percebeu que havia algo estranho nochão.Eramarromesecoesepareciavagamentecomumaminhoca,compridaereta.Sherlockencarouaquiloporalgunsinstantes,perguntando-seporqueumaminhocamortaficariaretadaquelejeito,eentãosedeuconta.

Nãoeraumaminhoca.Era amarcadeixadapor alguémquehavia cuspidoumbocadodetabacoesaliva.

O menino olhou para Hendricks. O jardineiro seguiu seu olhar e tou amarcadetabaco.

—Vocêmascatabaco?—murmurouSherlock.— Nunca adotei o hábito — respondeu ele. — Não masco tabaco e não

fumo.Masseiquemmasca.Sherlockselembroudomordomoedesuabocacheiadetabaco,etambém

dequandoelealegaraqueojardimeobosquenãoeramseudepartamento.Seissofosseverdade,porqueeleforaatéali,tãolongedacasa?

— Você precisa ir à polícia — disse Sherlock. — Diga a eles o queencontrou.

—Oquevocêencontrou—respondeuojardineiro,contrariado.—Eudeviatervistoissotudo,masnãovi.

Sherlockbalançouacabeça.— A polícia não vai me escutar... Sou um garoto; além disso, não sou

escocês. É mais provável que eles acreditem em você. Se quer que AggieMacfarlanesejasolta,precisalhescontartudo.

— Certo. Vou contar. — Um canto de sua boca se curvou para cima. —SempretiveumcarinhoespecialporAggie.Voufazeropossívelparasoltá-la.Masequantoavocê?

Naquelemomento,Sherlockconferiuorelógio.Umaedez.EletinhamenosdeumahoraparavoltareconvencerMacfarlane

dequepoderialimparonomedeAggie.—Precisocorrer—disseele.—Precisochegarlogoaumlugar.Eelecorreu.Correuatéacasa,ondeDunloweBroughoesperavam.Antes

mesmodechegaràcarruagem,jáestavagritando:—Rápido!Precisamosvoltar!Aosubirnacarruagemjáemmovimento,Sherlockolhoumaisumavezpara

amansão.Pensoutervistoomordomoobservando-odeumajanelanotérreo,

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mas a carruagem sacudia muito e ele não pôde ter certeza. Enquanto seafastavam, Sherlock não pôde deixar de pensar na Sra. Eglantine.Todos osempregados responsáveis por administrar residências eram assassinos empotencial?

Ficousegurandoorelógioenquantoacarruagemavançavapelasruas,pistasevielas deEdimburgo. Seu coração estava pulando, e omenino sentia pressãonosouvidosenastêmporas.Queriasaltardacarruagemecorrer,mas issonãoseria lógico.Não adiantarianada.A carruagem já estava indomais rápidodoquesuaspernasseriamcapazesdelevá-lo.

Sherlock detestava esperar. Detestava depender de outras pessoas. Queriafazeralgumacoisa.

Olhoupela janelapelamilésimavez.Muros, janelas,placasepostesde luzpassavamcorrendo,umamassaamorfae indistinta.Sherlock tinhacertezadequeEdimburgo eraum lugarmaravilhoso,masnaquelemomentodetestava acidade.

Quando começou a ver mais armazéns do que casas normais, o meninopercebeuqueestavamchegando.Acarruagemdesacelerouatéparar,eelesaltouecorreunadireçãodoarmazémquehaviavistoantes.AbasedeMacfarlane.

—Garoto—gritouDunlow—,esperepornós!Sherlock disparou a toda pela porta. Os homens que montavam guarda

tentaramsegurá-lo,masomeninoconseguiuseesquivardesuasmãos.Deixouparatrásumrastrodegritosealertasenquantoseguiaemfrentepelasalacomasrinhasdecãesepelaoutraondeosdoishomensestavamlutandoantes.

— Consegui! — gritou ele ao correr para dentro do salão da corte deMacfarlane.ViuAmyusCrowe,paradojuntodeVirginiadeformaprotetora,etambém Rufus Stone e Matty. Os quatro olharam para ele, impressionados,enquanto o menino corria e parava diante do tablado de Macfarlane. —Consegui!—repetiuele.—EuseiquemmatouSirBenedictVentham,enãofoisuairmã!Foiomordomo.Nãoseiporquê,masseiquefoiele.

— Excelente notícia — disse Macfarlane. Sua voz parecia séria, e o bomhumor de antes havia evaporado. — Estou em dívida com você, rapazinho,comohavíamoscombinado.Oproblemaéquenãoestouemposiçãodepagar,evocênãoestáemposiçãodecobrar.

Sherlockestavaapontodeperguntaroqueelequeriadizer,deargumentarqueelestinham rmadoumacordo,masderepentepercebeuqueamaioriadosolhares no salão não estava voltada para ele nem para Macfarlane, mas paraalgumpontoatrásdomenino,nadireçãodaporta.Ele sevirou, já sabendoo

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queveria.Haviadezhomensdispostosao longodaparede,ocultosparaqualquerum

queestivesseforadosalão.NovedelesapontavambestasparaMacfarlaneeseushomens, e também para Sherlock. O décimo estava um passo à frente dosoutros, tranquilo.Tinha uma estatura mais baixa que a média, e seu cabelocuidadosamentepenteadocobria-lheatesta.Suasroupastinhamumcaimentoperfeito. Ele apoiava as mãos em uma bengala preta de madeira, cuja pontaestavanochão,entreseuspés.Opunhodabengalaeraumacaveiradourada.Sherlockpercebeutudoissoemumrelance,massuaatençãose xounorostoenas mãos do sujeito. Não havia um único centímetro quadrado de pele semalgumnometatuado.Deondeestava,Sherlockviu“AlfredWhiting”,“CbBillCottingham”, “Winnie omas” e “Paul Fallows”. Estavam todos em preto,masnatestadele,destacando-seemvermelho,eleleu“VirginiaCrowe”.

—BryceScobell—disseSherlockcalmamente.— Eis que voltamos a nos encontrar — disse Scobell, com sua voz

curiosamente precisa e delicada. — Peço desculpas. Sei que nosso encontroestavamarcadoparamaistarde,maseusimplesmentenãoconseguiesperar.OSr. Crowe e sua linda lha ocupam meus pensamentos, e minha pele, hábastante tempo. — Ele tou Sherlock. Seus olhos eram tão pretos que omenino não distinguia a pupila da íris. — Você me causou problemasconsideráveisontem.Suasaçõesincapacitaramdoisdemeushomens.

Sherlock olhou pela leira de capangas de Scobell, mas não viu ninguémengessadooucomcurativos.

—Ah, vocênãoos verá agora—continuouScobell.Ele tinhaum ligeirosorrisonorosto.—Eumandosacri cá-losquandoelesseferem;comofazemoscomcavalos.

—Entãoporqueosoutroscontinuamtrabalhandoparavocê?—perguntouSherlock.—Seeufosseeles,nãocorreriaorisco.

Enquanto falava, Sherlock observava todo o corpo de Scobell, procurandoalgo—qualquercoisa—quepudesseservirdevantagemsefosseprecisolutar,ouqualquercoisaqueelepudesseusarparain uenciarohomem,masnãohavianada.A guradeScobellnãoofereciapistaalguma.Eracomoseelefosseummanequimambulanteedotadodefala.

— Eles temem o que lhes acontecerá se fugirem, é claro — respondeuScobell—,eeulhesdourecompensassu cientesparaqueoriscovalhaapena.Algoquedescobrisobreossereshumanos:ninguémacreditanaprópriamorte.Sim, as outras pessoas à sua volta podem morrer, mas cada um se acredita

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invencível.AatençãodeSherlocksevoltouparaacaveiradouradanoaltodabengala.

Ascavidadesescurasdosolhospareciamencará-lo.Omeninopensoutervistoalgoemcimadacaveira,umaespéciedefenda,mas,antesqueeleconseguisseidenti car o que era, Scobell levantou a bengala e apontou a extremidadeinferiorparaorostodeSherlock.Ohomemfezumligeiromovimentocomodedoeapertouacavidadeocularesquerdadacaveira,aoqueumalâminaestreitapulou da bengala por essa extremidade. A ponta cou parada no ar, a umcentímetrodoolhodireitodeSherlock.

Omeninosentiuosuorbrotandonatesta.— Infelizmente — disse Scobell, ainda com aquele tom terrivelmente

delicado—,nãotenhotempoparaconversaretrocargentilezas.Estoucomohorário apertado e preciso cumprir uma promessa que z a mim mesmo háanos.Avingança,dizem,éumpratoquesecomefrio,masjáespereitantoqueaminhacongelounoprato.—EleolhouparaCrowe.—Vocêmedeve.Vocêmedevepelamortedeminhamulheremeufilho.

—Deixeosgarotosiremembora,Scobell!—gritouAmyusCrowedecimadotablado.—Elesnãofizeramnadacontravocê.Soueuquemvocêquer.

—Pelocontrário—respondeuScobell.—Elesmecustaramváriosdemeusmelhores homens. Realizarei minha vingança sobre eles mais tarde, masprimeiro cuidarei de sua linda lha, que não será tão linda depois que euterminar.Eentãocuidareidevocê.

GahanMacfarlanedeuumpassoàfrente.—Estaéminhacasa—rosnouele—,evocêéumconvidado.Euéquedou

asordensaqui.Devagar,Scobellapoiouaextremidadedabengalanochão.Eleempurroua

caveiradourada,ealâminaseretraiuparadentro.Sherlockouviuumcliquequandoelatravoualgummecanismodemolasque

voltariaaliberaralâminaquandonecessário.Aatençãodomeninocontinuavaconcentradanafendaemcimadacaveira.Paraqueaquiloservia?

ScobellolhoutranquilamenteparaMacfarlane.—Estoucomtodasascartasnamão—comentouele.—Vocênãofeznada

contramim... ainda não.Mas, se quiser viver para ver o sol se pôr, continueassim.

—Vocênão—rugiuMacfarlane—dáordensnaminha...AntesqueMacfarlaneterminasseafrase,Scobellergueuamãolivre.Umdos

homensatrásdele fezumligeiromovimentocomabestaeapertouogatilho.

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Comumbarulhosúbito,acordafoiliberadaelançouumasetapeloar.Dunlowfoi atingido nomeio do peito.Ele a encarou por um instante, horrorizado, eentãocaiudejoelhos.OlhouparaMacfarlaneetentoudizeralgo,mastomboudeladonopisodelajotas.

—Douordenssemprequeeuquisereondeeuquiser—disseScobell,suavoztranquilacomoseeleestivessecomprandojornal.

Sherlockolhouemvolta,atentoatudoquevia,calculandooquepoderiaserusadoparamudaradinâmicadasituação.Mas,comoshomensdeScobellemvantagem, Sherlock não via escapatória. Em questão deminutos ele perderiaVirginiaeAmyusCrowe.Eminutosdepoisestariamortotambém,juntocomMattyeRufusStone.Eleprecisavafazeralgumacoisa.

Seu olhar encontrou o de Gahan Macfarlane, que o encarava. O escocêsentãoolhouparaasalaanterior,depoisdenovoparaSherlock.Eassentiu.

Oqueeleestavatentandodizer?Sherlock se lembrou do fosso no centro daquela sala, da criatura presa ali

dentro.EraissoqueMacfarlanequeriaindicar?Omeninonãosabiaqualeraacriatura,mas,considerandoarinhadecãesealutadeboxenasoutrassalaseasváriascabeçasempalhadasnasparedesdosalãoondeestavaagora,concluía-sequeMacfarlanegostavadeveranimaisepessoasbrigando.Oqueestavaatrásdaquelas placas de madeira, fosse o que fosse, devia ser grande e assustador.Macfarlanecomcertezafaziaaquiloenfrentarcachorros,outalvezatépessoas,easapostaseramnãosobreapossibilidadedevitóriasobreoanimal,massobrequantotemposeuadversáriolevariaparamorrer.

Sherlockteveumaideia,masprecisariachegarláprimeiro.— Está na hora — disse Scobell. — Os nomes em minha testa e meu

antebraçoestãovermelhoshátempodemais.Éhoradecobri-losdepreto.QuandoScobelldeuumpassoàfrente,Sherlock xouoolharmaisumavez

nacaveiradouradadabengala.Umalâminanaextremidadeinferioreraativadaporumadascavidadesoculares.Masacaveiratinhaduascavidadesoculares...

Sherlockestendeuamãoeenfiouoindicadornacavidadedireitadacaveira.UmalâminaemergiudafendaeatravessouamãodeScobell.Elegritou:um

barulhoestridenteeconsternadoqueparalisoutodomundonosalão,menosopróprioSherlock.EleentãopassouporScobellecorreuparaaportaquelevavaàoutra sala— onde cava a fera, dentro do fosso.Os capangas de Scobell serecuperaram e tentaram mirar enquanto o menino corria, mas ele já haviapassado pela porta quando as setas foram disparadas. Ouviu as setas voarematrás de si, e gritos quando algumas encontraram um alvo. Os homens de

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Scobellestavamatirandounsnosoutrossemquerer.Osalãodeondeelesaíra couumcaos,gritos,berroseobarulhodegente

correndo,masSherlockestavamaispreocupadocomoquehaviaasuafrente:ofosso, quemais parecia uma piscina, contornado pelas placas demadeira quechegavamàalturadacintura.

Acriaturadentrodo fosso rugiu.Sherlockouviupatas egarrasbatendonochãoàmedidaqueaferacorriaparaabeirada.

Elepegouumadasplacaseapuxouparacima.Ligeiramentepresanochão,amadeiraresistiuporuminstante,mas,comaforçadeseudesespero,Sherlockconseguiuarrancá-la.Elenãopodiasedaraoluxodefalhar.Aplacadeviaterunsquatrometrosemeiodecomprimentoeumdelargura,eeratãopesadaquenão foi fácil manuseá-la, mas de alguma forma Sherlock conseguiu virá-la ejogá-la dentro do fosso, demodo a deixar umadas extremidades em cimadabordaaseuspés.

Pronto:umarampaparaqueoanimalpudessesairdalidedentro.Foi aúnica ideiaque lheocorreupara tentar compensar adesvantagemda

situaçãoemqueestava.Comumrugido,umasilhueta imensaseergueudo fossoeparouacimade

Sherlock, estendendo braços peludos para os lados e abrindo garras quepareciamfacas.Eraumurso—umurso-pardo—,edeviamedirunstrêsmetrosda ponta do rabo até o focinho. Seus olhos pareciam vermelhos de fúria eloucura. Só Deus sabia onde Macfarlane conseguira aquele animal.Provavelmenteotinhadesdequeera lhote.Comcertezaoursohaviapassadoanospreso,sendoprovocadoefustigado,obrigadoabrigar,eagoraestavalivre.

OanimalatacouSherlockcomsuaimensapata.Omeninosejogounochãoe rolou por baixo da fera, e os homens restantes de Scobell apareceram pelaportaprocurandoporele.OursoseesqueceudeSherlock.Viuoshomens,eviuasbestas.Lembrou-sedetodaadorquehaviasofrido.

Eatacou.Sherlock rolou pela beirada do poço. Enquanto caía, ouviu os homens de

Scobellgritaremeoursosoltarrugidosapavorantes.Aoatingirofundodofosso,omeninoperdeuofôlegodeumasóvez.Sua

visãoseencheudepontos luminosos.Ele levouumminutoparaserecuperar.Virou-senochãoeselevantoucomcuidado,olhandoemvolta.Ofossotinhaunsquatrometrosemeiodeprofundidade,eoscantosestavamcheiosdeossos.Alguns eram velhos, mas havia outros recentes e ensanguentados. Sherlockpoderiajurarquealgunseramhumanos.

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Elesubiuarampacuidadosamente.OursotinhaentradonosalãoprincipaldeMacfarlane,mashaviacincoouseisdoshomensdeScobellcaídospertodaporta. Pelo estado deles, era difícil determinar quantos homens haviaexatamente.

Comcuidado,omeninopassoupelaporta.A maioria dos homens de Macfarlane fugira. O próprio, no entanto,

continuava ali no tablado, perto do trono, cercado de Rufus Stone, Matty,Amyus Crowe e Virginia.Todos assistiam horrorizados ao que acontecia nocentrodosalão.

OsoutroshomensdeScobelltinhamsidodestroçadospelasgarrasdourso.Era óbvio que eles haviam tentado impedi-lo: as bestas tinham disparado, evárias setas estavam cravadas na pele da fera, mas isso não servira de nada.Tendomatado os capangas, o urso agora se erguia junto aBryce Scobell.Oanimal era quase o dobro do tamanho dele. No rosto de Scobell não haviaqualquertraçodemedo.Tambémnãohaviatraçodedor,apesardosanguequejorravadesuamãodireita,aqueforaatravessadapelalâminadabengala.

—Saiadaminhafrente—disseele,comapenasumtoquede irritaçãonavoz.—Tenhonegóciosatratar.

O urso lhe deu uma patada letal. As garras a adas o acertaram no peito,erguendo-o como se ele fosse um boneco de pano. Ele foi arremessado pelosalãoeatingiuaparede.Sherlockviuocorpodeledeslizaratéochão,quebradoeinerte.Aexpressãoemseurostoeratãotranquilaeindiferente,comosempre,eagorapermaneceriaassimpelaeternidade.

Oursoentãofarejouaspessoasnotablado.Abaixou-seaté carnasquatropatasefoinadireçãodelas.Orosnadoqueemergiadeseupeitoreverberavaportodoopiso.

Sherlock foi atrás do animal. Ele sabia que precisava impedi-lo, mas nãosabiaoquefazer.UmadasbestasqueoshomensdeScobellhaviamderrubadoestavaaseuspés.Nãotinhasidodisparadaainda.Eleseabaixoueapegou.Ocourodourso jáestavacomcincoouseissetas,mastalvezSherlockacertasseemalgumpontovulnerável.Seráqueursostinhampontosvulneráveis?

GahanMacfarlanedeuumpassoàfrente,masAmyusCrowepôsamãoemseu ombro. Macfarlane olhou para o americano e franziu o cenho. Crowepassou por ele e desceu do tablado. Foi em direção ao urso. Matty e RufusStone estavam paralisados. O urso corria na direção de Crowe, rosnando.Sherlock viu Virginia erguer a mão à boca. Sua expressão era de choque, osolhosarregalados.Elaveriaamortedopaiacontecerbemàsuafrente.

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Sherlockergueuabestaemirounanucadoanimal.Talvezeleconseguisseromperamedulaespinhaldourso.Sabiaquetinhapoucaschances,aindamaiscomasmãostremendodaquelejeito.Masprecisavafazeralgo.

OursoseergueunaspatastraseirasaoalcançarCrowe,estendendoaspatasdianteiras e as garras. Levantando o focinho no ar, soltou um rugidoensurdecedor.

EentãoAmyusCrowefezacoisamaisimpressionantequeSherlockjávira.Ele abriu os braços, levantou a cabeça e também rugiu. Sua voz ecoou pelosalão.Comseutórax imensoeseusbraçosepernasmuitomusculosos,elederepente parecia invencível. Era também um urso, mas branco em vez decastanho—umurso-polar,emvezdeurso-pardo.

Oursobaixouacabeçaeolhouparaele.Fungou,desconfiado.— Já dei conta de ursosmaiores que você comumpé nas costas—disse

Crowe,semvacilar.—Volteparao lugardeondeveio,amigo.Vivamaisumdia.

Erainacreditável,masoursodeixoucairocorpo,voltandoa carnasquatropatas.Mesmonessaposição,porém,suacabeçachegavaàalturadeCrowe.Eleofarejouporumbomtempo,depoissevirouesaiucorrendodosalão,voltandoparaofosso.PassouporSherlocksemnemlevantaracabeça.

— Isso sim — disse Macfarlane, quebrando o silêncio — é algo que aspessoas pagariampara ver.Posso lhe oferecer umemprego,Sr.Crowe?Duaslutasporsemana,ordenadoacombinar?

Crowe olhou para Sherlock. Viu a besta ainda nas mãos do menino eassentiu.

—Pareidelutarcomursosfazalgunsanosjá—respondeuele.—Prefiroserprofessor.Éumtrabalhoqueoferecemaisdesafios.

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Capítulodezessete

VOLTARAM PARA CASA NO DIA SEGUINTE. Sherlock passou a maior parte daviagem dormindo. Estava mental e sicamente exausto. Todos os outrospareciampoucodispostosaconversar.NaspoucasocasiõesemqueamentedeSherlock emergia das profundezas do sono, ele via que seus amigos tambémestavam dormindo, lendo jornal ou apenas olhando a paisagem passar pelajanela, comumaexpressãomelancólica.Matty saiu correndodo tremquandochegaram a Newcastle e voltou quando a locomotiva estava prestes a partir,trazendoumsacocheiodepãezinhos.Foiomaioracontecimentodaviagem.

Quando chegaram a Farnham, despediram-se enquanto, em volta deles,passageirosdesembarcavamecarregadorestiravamcaixaseengradadosdotrem.

—Vai carporaqui?—perguntouRufusaCrowe,expressandoadúvidaqueSherlocknãotiveracoragemdeexpressar.

—Nãotemosmotivoparairalugaralgumagora—respondeuCrowe.EleenvolviaosombrosdeVirginiacomobraçoesquerdode formaprotetora.Elapareciapálida.—Nãoprecisamosmaisfugir,enãotemosporquevoltarparanossopaís.—EleolhouparaVirginia,eentãoparaSherlock.—Naverdade,temos bons motivos para car. Desde que o chalé ainda esteja inteiro eninguémotenhaocupado,achoqueaindavamosnosverbastante.

—Acreditoquefaloportodosnós—respondeuStone—quandodigoqueestoufeliz.Avidaseriamuitomenosinteressantesemvocêporperto,emboraeudevareconhecerqueseriatambémmuitomaissegura.

CroweestendeuamãodireitaparaStone.— Vocês nos ajudaram quando precisamos. Para mim, essa é a única

definiçãodeamizadequeimporta.Obrigado.Pegodesurpresa,StoneapertouamãodeCrowe.Fezumacaretaaosentira

pressãodoapertodeCroweemseusdedosaindasensíveis.—Eudiriaquefoiumgrandeprazer,Sr.Crowe,mas,naverdade,nãofoi;e

eudiriaquevocênãodevehesitaremnoschamardenovoquandoprecisardeajuda,masesperosinceramentequedispenseaoportunidade.—Elesorriu,paraindicar que não estava falando sério. — No entanto, independentementedisso...nãotemdequê.

CroweentãoapertouamãodeMatty.—Rapaz,vocêécorajosoeesperto.Comos seus instintos, eocérebrode

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Sherlock,vocêssãoumaduplaimbatível.Obrigado.—Denada,euacho—disseMatty,semgraça.Elenãoestavaacostumadoaelogiosnemaserocentrodasatenções.Crowe se virou paraSherlock.Olhoupara ele por umbom tempo e então

balançouacabeça.— Sherlock, sempre que acho que o conheço, você dá um jeito de me

surpreender. Já não sei mais qual de nós é o aluno e qual é o professor.Descon oqueagorasejaumaparceriaentreiguais,masnãoachoessasituaçãonada desagradável. Não estou velho demais para aprender. — Ele hesitou eengoliuemseco.—Ofatoéque,senãofossevocê,Virginiaeeuestaríamosmortosouaindaemfuga.Estouemdívida,maisdoquepossoexpressar.

Sherlockdesviouoolhar,observandoacenaagitadanoátriodaestação.—Nãogostodemudanças—murmuroueledepoisdeumtempo.—Gosto

quetudonaminhavidapermaneçadomesmojeito,eprecisosaberolugardecadacoisa.Issovaletantoparaobjetosquantoparapessoas.

—Bom,rapaz,vocêsabeondenósestamos.Nãodeixedenosvisitar.Crowetirouobraçodesobreosombrosdafilha,prontoparairparacasa,mas

VirginiaseaproximoudeSherlock.—Obrigada—disseapenas,eobeijounaboca.AntesqueSherlockpudesseterqualquerreaçãoalémde carvermelho,elajá

sehaviaafastadoeagoracaminhavadebraçodadocomopai.Naestação,oapitodotremsoou.Estavaprontoparapartir.—Acho—disseRufusStone,rompendoosilênciopesado—queprecisode

umaboadosederumeumafaixaimpregnadadeunguentoparaosdedos.Ouuma boa dose de unguento e uma faixa impregnada de rum para os dedos.Tantofaz.OrumdastavernasdeFarnhamtemgostodeunguentomesmo.—EleinclinouacabeçaeolhouparaSherlock.—Nãoprecisamosterpressaparavoltarmosàsnossasaulasdeviolino,tudobem?Descon oqueseusdedosserãomuitomaiságeisqueosmeusporalgumtempo,edetestopassarvergonha.

OlhandoparaMatty,Rufusergueuumdedoàtestaefezumasaudação.—Atéapróxima,Sr.Arnatt.Stone saiu andando, alegre. Sherlock cou vendo-o se afastar. O menino

sabiaqueaquelasdespedidasdeviamterlheprovocadoalgumsentimento,masseuslábiosaindaformigavamcomobeijodeVirginia.

—Vejovocêamanhã?—perguntouMatty.—Acho que sim— respondeuSherlock.—Agora só consigo pensar em

dormir,emuito.

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Mattyolhouosengradadosquehaviamsidodescarregadosdotrem.—Pareceque temalgunspetiscosbembonsali—disseele.—Achoque

vouseguiraquelesengradadosporumtempo,sóparaocasodeacontecerumacidenteeumdelessequebrar.

Sherlocksorriu.Mattyera irrefreável.Elesobreviveria,nãoimportavaoqueacontecesse.Naverdade,Sherlocknão cariasurpresose,daliaquinzeouvinteanos,algumMatthewArnattfosseumempresárioextremamentebem-sucedidocomatividadespelopaísinteiro.Maseleaindaroubariasalgadosdebarracasdefeira,sóparanãoperderaprática;dissoSherlocktinhacerteza.

—Aspessoasachamqueexisteumalinhaclaraentreaçõeslegaiseilegais—disseele,baixinho.—Achoque,seaprendialgodesdequevimparaFarnham,foi que essa linhanão existe.Há ummonte de cinza entre o branco de umaponta e o preto da outra. Só precisamos tomar cuidado com o lugar ondepisamos.

— Desde que eu esteja mais perto do lado branco do que do preto,provavelmentevouficarbem—respondeuMatty.

Eleabriuumsorrisoderepente,eentãosevirouesaiucorrendo.Sherlockpermaneceu ali por um instante, esperandoque algo acontecesse.

Nãosabiabemoquepoderiaser,mastinhaa impressãodequeatempestadezeraapenasumabrevepausa,masnãoterminara.Depoisdeumtempo,como

ninguémveiofalarcomelenemhouvequalqueracontecimentodignodenotaàsuavolta,elefoiembora,sentindo-seumtantoesvaziado.

Voltou à mansão Holmes de carona, na carruagem de um fazendeiro quepassava. Saltou diante dos portões e andou pela pista de acesso até a portaprincipal,carregandosuamaladeroupaseartigosdehigiene.

A porta estava destrancada; ele a abriu. A luz do sol invadiu o saguão. Oespaço que durante tantos meses parecera sombrio e ameaçador agora estavacheio de calor e luz. Parecia uma casa totalmente nova. Ele en m seacostumara,ouissoteriaalgoavercomapartidadaSra.Eglantine?Elalevaraconsigoassombraseaescuridão?

Quandoeleentrounosaguão,umafigurasurgiudasaladejantar.—Ah,imaginoquesejaoSr.Sherlock—disseumavoz.Oolhar cansado de Sherlock repousou na forma de umamulher demeia-

idade com cabelo cor de palha preso com uma rede em um coque atrás dacabeça. Seu rosto era gentil, e seus olhos eram castanhos e vivos. Embora amulher estivesse de preto, algo em suas roupas dava a impressão de festas ebailes,nãodefuneraiseenterros.

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—Sim—respondeuele.—Passeialgunsdiasfora.—FoioqueoSr.Holmesdisse.Elemencionouqueosenhorchegariaem

breve.—Elasorriu.—SouaSra.Mulhill,anovagovernanta.Comeceiontem.—Bem-vindaàmansãoHolmes.—Obrigada.Estoumuitoansiosapara trabalhar aqui.—Elaolhoupara a

mala de Sherlock. — Com certeza o senhor tem aí roupas que precisam serlavadas.Sequiserdescansaremalgumlugar,possolevar-lheumabandejacomchá e biscoitos.OSr. e a Sra.Holmesnão se encontramnomomento,masvoltarãoparaojantar.

—Cháebiscoitos—disseele.—Seriaótimo.Sherlockdeixouamalaaoscuidadosdelaefoiatéabiblioteca.Naausência

dotio,aqueleeraolugarondesesentiamaisàvontade.Asaladevisitasserviapara receber convidados, a sala de jantar era para comer, e ele não estavadispostoasubirparaoquarto.

Acomodando-senacadeiradecourodo tio,Sherlock inspirouocheirodoslivrosemanuscritosqueocercavam.Namesa,viuapilhadesermões,cartasea nsqueSherrinfordHolmes lhehaviapedidoparaorganizar antesque JoshHarkness, Gahan Macfarlane e Bryce Scobell invadissem sua vida. Tudopareciamuitodistante,nopassado.

OsermãodiantedeSherlockeraumdosqueelejáhaviaolhado—umtextoemqueumvigárioemalgumlugarnaregiãocentraldaInglaterraatacavaváriasheresias e cismas dentro da Igreja. O olhar de Sherlock encontrou mais oumenos no meio da folha a expressão “Igreja de Jesus Cristo dos Santos dosÚltimosDias”, e então foi como se uma luz se acendesse de repente em suacabeça.

Pratos de ouro. A Sra. Eglantine vinha procurando pratos de ouro porqueouviratioSherrinfordfalarsobre isso.Ela caraobcecadacoma ideiadeque,escondido em algum lugar da casa, havia um conjunto de pratos de ouro —algumtesouro—,masnuncaosencontrara.

Haviaumtesouro,masnãoeraoqueelahaviaimaginado.SherlockrelembrouoquehavialidosobreaIgrejadeJesusCristodosSantos

dosÚltimosDias—tambémconhecidacomoMórmon—nabibliotecadotio.OmovimentocomeçaranaAmérica,unsquarentaanosantes,lideradoporumhomemchamadoJosephSmithJr.Elesediziaempossedeumtextosagradochamado Livro de Mórmon, que a rmava ser um suplemento da Bíblia.Quandoperguntaramdeondeesselivrosagradohaviasaído,Smithalegouque,quando tinha dezessete anos, um anjo chamado Morôni lhe falara que um

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conjunto de escritos antigos, gravados em placas douradas por profetasancestrais,haviasidoenterradoemumacolinapertodeNovaYork.OsescritosfalavamqueDeusconduziraumatribodejudeusdesdeJerusalématéaAméricaseiscentosanosantesdonascimentodeCristo.

Placasdouradas.Sherlocksentiuopeitoseenchercomumavontadederir.ASra.Eglantine

provavelmente ouvira Sherrinford Holmes conversar com tia Anna sobre asplacasdouradasdaIgrejadeJesusCristodosSantosdosÚltimosDias.Teriaelemencionado a palavra “tesouro” também?Teria sido o caso de ele dizer algocomo “Esta carta é um tesouro,minha querida, poisme fornece tudode queprecisoparadefenderqueasplacasdouradasdosmórmonsnuncaexistiram”,eaSra.Eglantine,escutandoportrásdaporta,entender“pratosdourados”echegaraumaconclusãocompletamenteequivocada?Sherlockjamaisteriacomosabersemperguntaraela,eomeninotinhaasinceraesperançadenuncamaisvoltaravê-la,massópodiaserisso.Otesouroqueelahaviaprocuradotãoarduamenteeraumaquimera.Umacompletailusão.

Sherlockdeuoutrarisada.Contariaaotioassimqueelevoltasse,claro,masera improvável que Sherrinford fosse lamentar a notícia de que não haviatesouroalgum.Elenãoseimportavamuitocomosbensmateriais.

Enquanto ria, Sherlock sentiu um cheiro doce. Era um odor familiar,vagamentemedicinal. Ele o conhecia de algum lugar, mas não conseguia selembrardeonde.Porummomento,achouqueaSra.Mulhillhaviavoltadocomabandejadebiscoitosprometida,masnãohaviamaisninguémnabiblioteca.

Sherlock tentou se levantar, mas sua visão começou a car desfocada.Estendeuamãoparaamesa,parase rmar,masnãoaalcançou.Caiuparaafrente,batendoacabeçanomata-borrão,masnãosentiuoimpacto.Nãosentiunadaalémdeumdeliciosoesgotamento.Umanévoaacolhedorasefechouàsuavolta,eeledormiu.

Visões indistintas,comoumacolagemderetratos,preencheramsuamente.Umacarruagempreta.Cordas.Umlençocomumcheirodoceenjoativo.Océu.Umrosto,debarbaruivaeolhosarregalados,queSherlockreconheciamasnãoconseguiaidentificar...

Quandoacordou,tudoestavadiferente.Eleseviucobertoporumemaranhadodecordasgrossasealcatroadas,dentro

de um cômodo pequeno. As paredes, o chão e o teto eram feitos de tábuasgrosseiras. Sua cabeça latejava, e seu estômago estava se revirando. O chãoparecia semexer a seus pés,mas só quando ele tentou afastar as cordas e se

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levantar cou claro que o problema era realmente o cômodo, e não seuequilíbrio.Ochãoestavasemexendo.

Sherlockabriuaportaesaiu,aindasesegurandonobatenteparanãocair.Encontrou-seolhandoparaumconvésdenavio.Paraalémdoguarda-corpo,

viuummarcinzentoencrespadoecheiodeespumabranca.Nãohaviaterraàvista.

UmmarinheiroapareceuaumladoeparouderepenteaoverSherlock.Deuumlongosuspiroesevirouparatrás.

— Chamem o Sr. Larchmont — gritou ele. — Temos um passageiroclandestino!—OhomemsevirouparaSherlockebalançouacabeça.—Vocêescolheuonavioerradoparaviajarescondido,garoto.

—Porquê?—perguntouSherlock.—Aondeestamosindo?— Não é um cruzeiro turístico pelo Mediterrâneo — respondeu o

marinheiro.Elesorriu,revelandoumpunhadodedentesmanchadosdetabaco.—EsteéoGloriaScott,eestamosnavegandorumoàChina!

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Notashistóricas

VOCÊTALVEZACHEQUEPESQUISARparaum livroambientadonamesma ilhaonde moro seria mais fácil do que pesquisar para uma história ambientada,digamos,naAméricaounaRússia.Comcertezaeraoqueeuachavaantesdecomeçar a escrever este livro.O estranho é que a história acabou sendo bemdiferente.

Comecei a pensar em ambientar um livro em Edimburgo quando passeialgunsdiasnacidade.Eu iadarumapalestranoEdinburghFestivaledepoisvisitar algumas escolas e conversar comalunos sobreSherlockHolmes, sobremime sobreporqueeuqueriaescreveressa sériede livros.Estavahospedadoemumhotelpequenonocentrodacidade—bempertodaPrincesStreet,parafalaraverdade—,etodososdias,quandosaíadohotel,olhavaparaadireitaevia a cúpula vulcânica imensa de Castle Rock e o Castelo de Edimburgoempoleiradocomoumanuvemcinzentasólidaacimadacidade.Eraumavisãotão impressionante que não pude deixar de imaginar Sherlock Holmesescalando Castle Rock, arriscando a vida para salvar alguém. Esse alguémprovavelmenteseriaVirginia.

Oqueeudevia ter feito, é claro, era ir à livrariamaispróximae compraromáximopossívelde livros sobreahistóriadeEdimburgo.Masminhamala jáestava muito cheia, e na ocasião eu estava ocupado escrevendo o mistérioanterior do jovem Sherlock Holmes,Gelo negro, então não tinha tempo parapensarnolivroseguinte.Guardeiasimagensepaisagensemumacaixinhacomcadeadodentrodacabeçaparaverdepois.Bemdepois.

Esse “bem depois” chegou mais rápido do que você poderia imaginar.QuandocomeceiaescreverTempestadedefogo,eujáhaviavoltadoaDorset,queépraticamenteolugarmaislongepossíveldeEdimburgosemsairdailha.Aoprocurar inspiração nos arredores, encontrei apenas o livroEdinburgh — AHistoryoftheCity,deMichaelFry(publicadoem2009pelaMacmillan—quetambémpublicouasérieOjovemSherlockHolmesnaInglaterra,oquesigni caque eu provavelmente podia ter pedido para me mandarem um exemplar degraçaemvezdecomprarum).Contudo,esselivromeofereceuumaboanoçãodecomoacidadetinhasedesenvolvidoequetipodegentemoravalá.

A história sobre os ladrões de cadáveres Burke eHare queMatty conta aSherlockquandoosdois estãona taverna emPrincesStreet é cempor cento

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verdadeira.Edimburgoeraumacidadefamosaporsuaescolademedicina,edefatohaviaumaescassezdecorpos.BurkeeHareencontraramasoluçãoperfeitaparaesseproblema:matarpessoasefornecercadáveressobencomendaparaosestudantes de medicina. Burke realmente foi enforcado, e seu corpo foidissecadonomesmolugarondetantasdesuasvítimashaviamacabado,eHaredefatodesapareceuenuncamaisfoivisto.

A outra história queMatty conta a Sherlock—depois, quando eles estãosaindo dos cortiços onde foram interrogados por Bryce Scobell — não éverdadeira,emborasejaumacrençadifundida.

Quandoeuvimaquiantes,ouviumboatodequeasautoridadestavamtentandotiraraspessoasdoscortiços.Parecequequeriamvenderoterrenoparaconstruirfábricas,mansõesricasoualgodotipo.Aspessoascomquemeufaleimedisseramqueasautoridadesespalhavamumboatodequeuma doença, como tuberculose ou a peste, tinha se espalhado pelo cortiço. Eles levavam todomundoparaumabrigo,eentãodemoliamocortiçoeconstruíamoutracoisanoterreno.Enissoelesganhavammuitodinheiro.Ouvique,àsvezes,senãotinhavaganosabrigos,eleslevantavamummuroparafecharosacessosdoscortiçosedeixavamaspessoasládentromorreremdefome,masnãoacreditonisso.

Ocortiço emquestão é chamadoBecodeMaryKing.Construíram tantascoisas em cima dele ao longo dos anos que os becos se tornaram túneissubterrâneos.Épossívelvisitarolugarhojeeouvirhistóriassobreaspessoasqueforampresasaliparamorrerdefome,esobreosfantasmasqueaindaaparecemànoitenoscômodos,masaverdadeémaisprosaica.Muitasvezes,pessoasquecontraíamapesteseisolavamvoluntariamentenaprópriacasaparanãopassaradoença para mais ninguém, e indicavam sua condição colocando bandeirasbrancasnasjanelas.Amigosevizinhoslhesentregavamcomidaesuprimentosaté que elas melhorassem (improvável) ou morressem (muito mais provável).Haviaatémesmolugaresespeciaisforadacidadeondevítimasdapestepodiamseisolardetodomundo.

Curiosamente (ou não), Arthur Conan Doyle nasceu em Edimburgo em1859eestudoumedicinaláentre1876e1881.Umdeseusprofessoreseraumhomem chamado Joseph Bell, e é muito difundida a teoria de que Doyle sebaseouemBellpara criaropersonagemSherlockHolmes (diziamque, sódeolhar, o professor era capaz de diagnosticar não apenas a doença de seuspacientes,mastambémsuapro ssão).Porumbreveinstante,considereiincluiruma aparição de Joseph Bell neste livro, mas decidi não fazê-lo. Teriapermanecidocomoumapiadainterna,enãohaviaqualquermotivosólidopara

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incluí-lo.Apropósito,seriaerradodeminhapartenãomencionarOsecretário italiano

(Record, 2008), romance do escritor americano Caleb Carr sobre SherlockHolmes.AhistóriaéambientadaemgrandepartenosarredoresdeEdimburgo.Carréumescritorexcelente,eépossívelque suaversãodeSherlockHolmesseja a mais próxima da original desde a morte de Arthur Conan Doyle, em1931.

A história que Amyus Crowe conta sobre o coronel John Chivington e oataquepavorosoque ele realizou contra a tribo indígena lideradapelo caciqueChaleira Preta é, lamentavelmente, verdadeira. Cresci assistindo a lmes defaroeste em que os índios americanos (ou peles-vermelhas, como eramconhecidos na época) eram os bandidos e os nobres soldados brancos, osmocinhos.Esses lmeserammentirosos,eaindamesintotraídopelofatodequeHollywoodconvenceutantagentedocontrário.Claro,nãoexistequalquerregistrodequeChivingtontivesseumsubcomandantechamadoBryceScobell,mastambémnãoexisteregistrodequenãotenhatido.

A primeira vez que li sobre o fato bizarro de que coelhos são imunes aovenenodocauleedasfolhasdadedaleirafoinolivro eWordsworthGuidetoPoisons and Antidotes, de Carol Turkington (Wordsworth Editions, 1997).Desde então, pesquisei um pouco mais e descobri que as opiniões sobre oassunto divergem. Talvez sejam corretas, talvez não. De qualquer forma,SherlockHolmesacreditaqueissosejaverdade.

Durante séculos as lutas com ursos foram um “esporte” conhecido naInglaterra,atésetornaremilegaisem1835.Normalmenteeraumursopresoaumaestacasendoatacadoporcachorros.Ouoursomatavaoscachorros,ouoscachorrosmatavamourso.Lutasentreumursoeumapessoaeramraras,masaconteciam.Poralgummotivo(talvezumaabundânciadeursos),aRússiaeramaisconhecidapelasdisputasentrehomenseursos.Minha intençãooriginalera fazer Amyus Crowe encarar um urso emGelo negro, mas não acheinenhuma formade incluir essa cenademodoque zesse sentido.Por algummotivo,fezmaissentidoneste—provavelmenteporqueCrowenãotevemuitoafazeremGelonegro,masemTempestadedefogoeleacabasendopraticamentelevadoaolimite.

AsinformaçõesemrelaçãoàcrençadaIgrejadeMórmondequeapalavradeDeus foi entregue ao profeta Joseph Smith Jr. em 1823 na forma de placasdouradas também são verdadeiras (isto é, a história que descrevo é mais oumenosoqueaIgrejadeMórmona rma—nãoestoudizendoqueahistóriaé

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defatoverdadeira.Issonãocabeamim).Então,Sherlock nalmenteenfrentouamalignaSra.Eglantineeaexpulsou

da residência dosHolmes.Ele também cresceu a ponto de caminhar com asprópriaspernaseresgatarseuirmãoeospaissubstitutos(AmyusCroweeRufusStone), enãodependerdequeeles o resgatem.Qual é apróximaaventuradeSherlock? Bom, de acordo com Arthur Conan Doyle, que escreveu oscinquentaeseiscontosequatroromancessobreumSherlockHolmesadulto,opersonagem era especialista em artes marciais. Fiquei pensando: onde eleaprenderia essas artes marciais? Na China, talvez; ou no Japão. O tempo, eventosecorrentesfavoráveis,dirão.

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Sobreoautor

AndrewLane,queporanosatuoucomoredatordeimprensaespecializadoemtelevisão, é autor de vários romances ambientados no universo de conhecidassériesdaredeBBCinglesa,comoDoctorWho,TorchwoodeRandallandHopkirk(Deceased), além de obras de não cção dedicadas a lmes e personagensfamosos, como James Bond. Vive em Dorset, no sul da Inglaterra, com amulhereo lho,emmeioaumavastacoleçãodelivrossobreSherlockHolmes,acumuladaaolongodevinteanos—oque,agoraelea rma,foiumadespesamaisquejustificada.