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CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E DE CARTOGRAFIA ANTIGA SÉRIE SEPARATAS 155 AS MODALIDADES DE NAVEGAÇÃO E DE PREPARAÇÃO DA VIAGEM NAS NAVIGAZIONI DE ALVISE DA CA' DA MOSTO POR ALESSANDRA MAURO INSTITUTO DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA TROPICAL LISBOA . 198^"

SÉRIE SEPARATAS 155 - iict.pt · mas de certeza do século xv; texto estampado contido em Paesi nuovamente retrovati et ... quella esser poco minore dell'antedetta bocca del fiume

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CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA E DE CARTOGRAFIA ANTIGA

SÉRIE SEPARATAS

155

AS MODALIDADES DE NAVEGAÇÃO E DE PREPARAÇÃO

DA VIAGEM NAS NAVIGAZIONI

DE ALVISE DA CA' DA MOSTO

POR

ALESSANDRA MAURO

INSTITUTO DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA TROPICAL

L I S B O A . 1 9 8 ^ "

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Separata da

Revista da Universidade de Coimbra

Vol. XXXII —Ano 1985 —pág. 63-66

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AS MODALIDADES DE NAVEGAÇÃOE DE PREPARAÇÃO DA VIAGEM NAS NAVIGAZIONI

DE ALVISE DA CA' DA MOSTO

ALESSANDRA MAURO

De 1454 a 1456, Alvise da Ca' da Mosto, nobre mercador veneziano,efectuou duas viagens ao longo da costa da Guine.

No relato destas viagens, que conhecemos com o título de Navigazioni (1)e que nos aparece incluído, numa das quatro versões conhecidas, na colectâ-nea Delle Navigazioni et Viaggi de Giovanni Battista Ramusio, publicada emVeneza a partir de 1550(2), encontramos algumas interessantes informa-ções relativas, quer às modalidades de organização da expedição, que levouo veneziano as costas da Guiné, quer ao tipo de navegação utilizada.

Esta minha comunicação pretende ser só uma rápida análise em buscadaquelas informações que, embora esporádicas no conjunto do texto, semanifestam todavia úteis para melhor entender a 'mecânica' da viagemultramarina, empreendida pelo nobre veneziano, ao serviço do InfanteD. Henrique.

Álvise da Ca' da Mosto, em viagem para Flandres, durante uma para-gem em «Cabo San Vincenzo (3), é contactado por dois 'embaixadores' doInfante D. Henrique.

Os dois —• António Gonzales e Patrizio de Conti (4) — convencem-no amudar o seu rumo, da Flandres para a costa ocidental da África, aliciando-o

(1) Usarei convencionalmente o título Navigazioni, embora as fontes apresentemtítulos ligeiramente diferentes.

(2) Texto estampado, contido no primeiro volume da colectânea Delle Navigazioniet Viaggi, de Giovanni Battista Ramusio, editado pela primeira vez em Veneza em 1550e impresso na tipografia Giunti. O texto é precedido pelo «Discorso sopra il libro deiMesser Alvise da Ca' da Mosto gentil huomo venetiano» e ocupa as pp. 105-121. Estápresente em todas as sucessivas edições. As outras versões das Navigazioni são: Ms. contidona Biblioteca Marciana de Veneza, (Mss. It. VI 454-10701), ainda não datado com exactidão,mas de certeza do século xv; texto estampado contido em Paesi nuovamente retrovati etNovo Mondo da Alberico Vesputio fiorentino intitulato, editado em Vicenza em 1507 na tipo-grafia de Giovanni Maria da Ca' Zeno; Ms. contido na Biblioteca Marciana de Veneza(Mss. It. VI 208-5881), datado ao 1520.

(3) Para as citações, servir-me-ei da recente edição da obra ramusiana Navigazionie Viaggi, aos cuidados de Maricá Milanesi, Torino, Einaudi, 1978-80, vol. I, pp. 469-542.As páginas que serão anotadas ao pé das citações devem, assim, referir-se a tal edição (A).

(4) Veja-se, a este propósito, Le navigazioni atlantiche dei veneziano Alvise da Mosto,aos cuidados de Tullia Gasparrini Leporace, Roma, Istituto Poligrafico dello Stato, Libreriadello Stato (II nuovo Ramusio V), MCMLXVI, p. 268.

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com promessas de «cose meravigliose» e afirmando que «quelli che eranostati in quelle parti avavano fatto fra quella nuova gente di grossi guadagni,perche di un soldo ne facevano dieci.» (A,477)

Os dois mensageiros de D. Henrique informam-no, também, sobre oprocedimento normal usado em Portugal para preparar uma expedição.

Para quem, como Alvise, não possui uma grande disponibilidade finan-ceira, existem duas possibilidades de viajar parcialmente auxiliados porPortugal.

[chi vi voleva andare] che armasse Ia caravella a sue spese e mettevi Ia mercanzia,e poi di ritorno saria obbligato a pagar per dretto e costume ai prefato signore il quartod'ogni cosa ch'egli riportasse, e le altre parti fossero sue; o che veramente il dettosignore armaria lui Ia caravella a chi volesse andarvi a tutte sue spese, solamente quellovi mettesse Ia mercanzia, e poi ai ritorno partissero per meta tutto quello che si trazessede' detti luoghi, e che in caso che non si trazesse alcuna cosa, che Ia spesa fusse fattaa suo danno. (A,476)

As condições apresentadas parecem, talvez, demasiado onerosas paraAlvise que, como ele próprio reconhece, não tinha consigo muito dinheiro.

Os mensageiros, de facto, para vencerem as últimas hesitações de Ca' daMosto, apressaram-se a insistir na grande consideração que o Infante tinhapelos venezianos, conhecidos por serem entendidos em «speciarie» e como,para D. Henrique, a presença de Alvise «Faveria gratíssimo e fariali granfavore». (A,477)

O veneziano, atraído pela possibilidade de novos e proveitosos comércios,aceitou o convite do príncipe português.

Alvise escolherá, então, para a sua viagem, a segunda modalidade:entregou todas as mercadorias, destinadas aos mercados do ocidente, a umparente, comprou «sopra dette galee» o que poderia ser-lhe útil para a suanova viagem e ficou em terra, deixando os navios continuar a viagem comdestino a Flandres.

Após «molti e molti giorni» D. Henrique «mi fece armare una caravellanuova, di portata di circa botte novanta, delia quale era patrone uno VincenteDies, natural di Lagus.» (5) (A,478)

A situação alterou-se completamente no ano seguinte quando, regres-sando a Portugal com o nobre genovês Antoniotto Usodimare e ambos deci-didos a continuar a procura de novas terras, são eles que vão equipar cadaum a sua caravela, às quais o Infante juntaria uma outra:

Onde 1'anno sequente il predetto gentiluomo genovese ed io, d'accordo un'altra volta,armammo due caravelle per voler cercare questa fiumara. E avendo sentito il preno-minato signor infante (senza licenza dei quale non potevamo andare) che noi avevamofatta questa deliberazióne, molto li piacque e volse armare una sua caravella che venissein nostra compagnia. Di che fattone presti d'ogni cosa necessária, partimmo dal

(5) Le navigazioni atlàntiche..., cit. ibidem.

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A Preparação de Alvise da CcC da Mosto 65

luoco chiamato Lagus, ch'è appresso il Capo San Vincenzo, nel principio del mesedi maggio con vento prospero, e tenimmo la volta delle Canarie e in pochi giorni vigiungemmo. (A,523)

Notamos, uma vez mais, o cuidado com que Alvise da Ca' da Mostoredige os seus relatos de viagem, não trascurando qualquer informação.

Os dados referentes à preparação e ao equipamento das naus são tãopormenorizados que fornecem aos futuros leitores-navegadores venezianosuma visão de conjunto excepcionalmente exaustiva.

Estas informações, aliadas às notas sobre as praças comerciais mais favorá-veis, às referências sobre os lugares e os homens da costa ocidental da África,poderiam ser um precioso guia. para todos aqueles que decidissem voltara percorrer o mesmo itinerário de Ca' da Mosto, considerando, na base doónus suportado por Alvise, a utilidade de recorrerem à protecção portuguesa.

No que diz respeito às anotações sobre a navegação, estas são esporádi-cas, no conjunto da narração de Alvise.

A navegação é sempre diurna e, se possível, costeira. Ca' da Mostoespecifica, mais do que uma vez, que se trata de uma característica de navega-ção portuguesa: um método muito cauteloso, justificado pelas incógnitasque uma viagem por mares desconhecidos podia apresentar:

II navigar nostro per questa costa e per avanti sempre è stato di giorno, mettendo ognisera ancora a sol posto in dieci over dodici passa d'acqua, lontani da terra quattroo cinque miglia; e a sol levado facevamo vela tenendo sempre un uomo da alto e duoiuomini a prova della caravella, per vedere se il rompeva il mare in alcun luogo, perdiscoprir alcun scoglio. (A,526)

A mentalidade mercantil, directa em oderna, própria de Alvise, prontoa enriquecer com pormenores quase técnicos a descrição da sua viagem,permite-nos, como vemos nos excertos, avaliar não só as distâncias, comotambém os tempos de navegação, os tempos mortos e até mesmo a organiza-ção da vida a bordo.

Esta prática de navegação sofre umas leves modificações quando a expe-dição tem que se aventurar em rios ignotos, dos quais não se conhece a pro-fundidade e dos quais se temem possíveis incursões de eventuais povoaçõesguerreiras ali existentes. Nestes casos manda-se à frente a nau mais pequena,«a scandagliare il fondo» e, se a profundidade do rio se demonstrar suficiente,«si tirasse indrieto e sorgesse facendone alcuni segnali.» (A,517)

E ainda

Per la qual cosa noi continuamente tenivamo duoi uomini a prova e uno su l'arborealto, per discoprire scogli over altre secche, navigando solamente il dì con assai pochevele e con grande risguardo, e di notte mettendo ancora, andando l'una caravelladrieto l'altra secondo ne toccava per sorte ogni giorno, perché cadauno di noi ariavoluto che '1 compagno fosse andato avanti, ma tutto facevamo per sorte, toccandoun giorno a uno e un giorno all'altro. (A,532)

A colocação dianteira nem sempre é bem aceite, apesar de —• devemosprecisá-lo — a nau pequena que precedia as outras, em exploração, ser a

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mais dotada de armas, com a intenção, porém, não de atacar mas sim de estarpronta a defender-se na eventualidade de um ataque.

Avançava-se, portanto, tentando enfrentar o 'desconhecido' com os peri-gos que podia apresentar —• entre os quais o medo do próprio desconhecido —com cautela e prudência, desconfiando até da exuberância da vegetaçãoafricana.

Vejamos neste trecho como é cauteloso e prudente o avançar ao longodum rio, neste caso um afluente do Gambia:

E così navigando per quella costa sempre a vista di terra duoi giorni, il terzo scoprimmola bocca d'un fiume di assai ragionevole grandezza, [...] e più avanti andando, versosera avemmo vista d'un piccolo colfo, che quasi mostrava al modo della bocca d'unfiume: di che, per essere tardi, mettemmo ferro. • E la mattina seguente, farcendo velae incolfandosi noi alquanto discoprimmo la bocca d'un altro fiume, parendomi, secondoil giudicio mio, quella esser poco minore dell'antedetta bocca del fiume Gambra;e da una parte e dall'altra del detto fiume si vedeva gran copia di bellissimi arborialti e verdi, onde se accostammo e qui sorgemmo. E parlando insieme determinammodi andare armar due delle nostre barche, e con li nostri turcimanni mandar in terra asaper nuova del paese e del nome di questa fiumara, e sapere chi era il signore di questeparti: e così facemmo. (A,533)

Reparamos, uma vez mais, na prudência, no cauto «giudicio mio», aoqual segue um «parlare insieme» para decidir o que se há-de fazer e, final-mente, a exploração das «due delle nostre barche» armadas.

Embora Alvise da Ca' da Mosto e a sua equipagem portuguesa pro-cedessem sempre cuidadosamente, encontramos, nas páginas da Naviga-zione II, um episódio de batalha naval, ou melhor, de escaramuça marítima,entre as caravelas de Alvise e as «almadie» de um povo hostil encontradona foz do rio Gâmbia.

Os indígenas tentaram atacar, com as suas lanças envenenadas, a caravelade exploração —• a mais pequena, como dissemos —• mas as manobras doscapitães das outras naves conseguiram, num breve lapso de tempo, defendê-la,apesar da maior leveza, e logo rapidez, das «almadie»:

Onde vedendo questi Negri guastarsi e perire, quasi tutte le almadie d'accordo simisero per poppe delle caravella piccola, dando a quella gran battaglia, perché eranopochi uomini e mal in punto d'arme. E io vedendo questo, feci cargar vela soprail detto navilio piccolo, e giugendo a quello il tirassimo in mezzo di noi altri duoinavilii più grandi, discargando bombarde e balestre: la qual cosa vedendo, i Negrisi slargarono da noi. E noi, incatenando tutte tre le caravelle insieme, sorgemmoun'ancora e con bonaccia tutte tre si tenivano sopra quella. (A,520)

A vitória pertenceu aos europeus que conseguiram, com as suas «bom-barde», não só matar «gran quantità di Negri» mas também estonteá-los coma vista e o fragor das armas de fogo.

A superioridade naval e técnica, aliada à experiência e à prudência doscapitães e da equipagem, permitiram às embarcações do nosso viajante Alviseda Ca' da Mosto vencer, uma vez mais, os perigos que se escondiam na incó-gnita das viagens africanas.

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