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SERVAS DO DEUS BRANCO: IDEAL DE EGO, ESTIGMA E SOFRIMENTO EMOCIONAL DE MULHERES NEGRAS NO PENTECOSTALISMO * Alef Monteiro Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia Universidade Federal do Pará Resumo: O artigo sintetiza parte dos resultados de uma pesquisa sobre a relação entre racismo e pentecostalismo. O objetivo é elucidar o ideal de ego da religião pentecostal e seus impactos na subjetividade e salubridade mental de mulheres negras adeptas da religião. A investigação consistiu em um estudo de caso em uma congregação da Assembleia de Deus no município de Castanhal, Região Metropolitana de Belém. A metodologia empregada foi a observação participante e realização de entrevistas. Os dados coletados foram analisados à luz do diálogo entre interacionismo simbólico, a psicanálise e teorias pós e decolonial. Os resultados apontam que, forjado sob a égide da colonialidade, o pentecostalismo concebe como um ideal de ego a imagem do Deus Branco. A consequência é que, por não se reconhecerem nesse ideal, as mulheres negras têm sua autoestima e salubridade emocional danificada. O uso de “máscaras brancas” e o êxtase religioso se constituem em canais de desvio da descarga emocional oriunda do trauma causado pelo racismo. Palavras-chave: Pentecostalismo. Ideal de Ego. Estigma. Mulheres Negras. Saúde Mental. 1 INTRODUÇÃO Entre os meses de outubro de 2016 a março de 2017, convivi entre os pentecostais da congregação Estrela VII da Igreja Evangélica Assembleia de Deus, no município de Castanhal, Região Metropolitana de Belém. Nesse período frequentei os cultos, outras reuniões e visitei vários membros, ocasiões essas em que pude conversar com eles e entrevistar alguns. A congregação está localizada no recém-criado Bairro Ana Júlia que, até o ano de 2016, era uma invasão no bairro Novo estrela. Nesse ano, depois de negociação com o grupo empresarial dono das terras invadidas, a Prefeitura de Castanhal deu título das propriedades aos moradores. * O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

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SERVAS DO DEUS BRANCO: IDEAL DE EGO, ESTIGMA E SOFRIMENTO

EMOCIONAL DE MULHERES NEGRAS NO PENTECOSTALISMO*

Alef Monteiro Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia

Universidade Federal do Pará

Resumo:

O artigo sintetiza parte dos resultados de uma pesquisa sobre a relação entre racismo e

pentecostalismo. O objetivo é elucidar o ideal de ego da religião pentecostal e seus

impactos na subjetividade e salubridade mental de mulheres negras adeptas da religião.

A investigação consistiu em um estudo de caso em uma congregação da Assembleia de

Deus no município de Castanhal, Região Metropolitana de Belém. A metodologia

empregada foi a observação participante e realização de entrevistas. Os dados coletados

foram analisados à luz do diálogo entre interacionismo simbólico, a psicanálise e teorias

pós e decolonial. Os resultados apontam que, forjado sob a égide da colonialidade, o

pentecostalismo concebe como um ideal de ego a imagem do Deus Branco. A

consequência é que, por não se reconhecerem nesse ideal, as mulheres negras têm sua

autoestima e salubridade emocional danificada. O uso de “máscaras brancas” e o êxtase

religioso se constituem em canais de desvio da descarga emocional oriunda do trauma

causado pelo racismo.

Palavras-chave: Pentecostalismo. Ideal de Ego. Estigma. Mulheres Negras. Saúde

Mental.

1 INTRODUÇÃO

Entre os meses de outubro de 2016 a março de 2017, convivi entre os

pentecostais da congregação Estrela VII da Igreja Evangélica Assembleia de Deus, no

município de Castanhal, Região Metropolitana de Belém. Nesse período frequentei os

cultos, outras reuniões e visitei vários membros, ocasiões essas em que pude conversar

com eles e entrevistar alguns. A congregação está localizada no recém-criado Bairro

Ana Júlia que, até o ano de 2016, era uma invasão no bairro Novo estrela. Nesse ano,

depois de negociação com o grupo empresarial dono das terras invadidas, a Prefeitura

de Castanhal deu título das propriedades aos moradores.

* O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível

Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

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Desde o início da ocupação até o momento de minha pesquisa se completaram

oito anos de assentamento precário. E, mesmo agora, em 2019, nada mudou: nenhuma

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das ruas do bairro é asfaltada, não há coleta e tratamento de esgoto, não há escola ou

posto médico, e o sistema de água e energia havia, em 2016, completado poucos três

anos e meio, não obstante os oito anos da ocupação.

Quanto à cor dos moradores, de acordo com os irmãos, a maior parte das pessoas

que ali moram são “morenas”1 (negras, sejam pretas ou pardas) – isso percebi também

através de minhas andanças pelo local e o “Mapa da Cor” (BRASIL, 2010) também

reforça a plausibilidade de minha percepção. Como consequência desse quadro, a

maioria das pessoas que se congregam na Estrela VII são negras. Segundo a secretária

da congregação, naquele momento a membresia não possuía número oficial (não havia

um controle censitário local, talvez o mesmo existisse apenas no Templo Central),

porém, a expectativa da mesma era 40 membros e, se somados, o número de membros e

congregados, o total deveria ficar por volta de 70 pessoas que rotineiramente

frequentavam a igreja.

O objetivo da minha pesquisa naquele momento era, a partir de uma etnografia,

verificar em que medida e de que maneiras a matriz pentecostal assembleiana, na

situação específica por mim estudada, contribuía ou não com o racismo e sua

reprodução. Para tanto observei o dia a dia da congregação e frequentei a residência de

vários membros com os quais dividi várias xícaras de café. Dos 40 membros, entrevistei

14, dos quais 10 eram negros, e, desses, 6 eram mulheres negras. Dos vários resultados

obtidos, apresento aqui apenas aqueles que dão conta dos efeitos do racismo do

universo simbólico pentecostal à saúde mental das mulheres negras que participaram da

pesquisa enquanto entrevistadas.

Analiso os dados da pesquisa à luz do diálogo entre o interacionismo simbólico

de Goffman (1975), a psicanálise, via Neusa Santos Souza (1983) e Türcke (2013), as

reflexões pós-coloniais de Frantz Fanon (2005 e 2008), e o conceito de colonialidade

desenvolvido pelo Grupo Modernidade / Colonialidade aplicado ao estudo das religiões

(MONTEIRO, 2019).

1 A “morenidade” é uma metáfora da cor utilizada no colorismo brasileiro para esconder, mesmo que

discursivamente, a negritude. Para detalhes, ler Conrado, Campelo e Ribeiro (2015).

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2 A REPRESENTAÇÃO DE DEUS E O IDEAL DE EGO ENTRE OS

PENTECOSTAIS

Foi através da observação dos “usos e costumes”2 que cheguei ao ideal de ego

dos pentecostais. Diferente do que vem acontecendo no restante do país e, também na

sua congênere em Belém do Pará, a Assembleia de Deus em Castanhal permanece ainda

distante das mudanças na identidade pentecostal assembleiana marcadas pelo “nem

terno, nem gravata”3, verificado por Delgado (2008) há uma década. A Assembleia de

Deus castanhalense guarda ainda os “usos e costumes” dos primórdios da igreja. Para as

mulheres isso significa: uso somente de vestidos, saias e blusas de manga; rejeição ao

uso de calça comprida e o uso (agora “exagerado”4) de maquiagem; rejeição ao uso de

brincos; e, o cabelo sempre comprido. Para os homens: uso de calça comprida e camisa,

rejeição ao uso de cabelo cumprido dando preferência a cortes sociais ou em estilo

“militar”; e o não uso de joias em geral, exceto relógios.

Os “usos e costumes” são sempre adaptados individualmente por cada crente.

Nas congregações mais próximas ao centro da cidade, onde a classe média se congrega

e há um maior grau de escolaridade, já há número avantajado daqueles que acham essas

antigas tradições ultrapassadas e não as seguem de maneira rígida. Na congregação

Estrela VII, entretanto, assim como em diversas congregações da periferia, os “usos e

costumes” são observados com maior cuidado. Há uma visível cobrança do grupo que

coage seus participantes a seguir a tradição. Para os assembleianos, nos “usos e

costumes” reside a santidade desejada por Deus.

Indo além do consenso grupal consciente, na buscando dos fundamentos dos

usos e costumes percebi que os pentecostais da Assembleia de Deus possuem muito

nítido em seu consciente coletivo a aparência ideal de “autênticos servo e serva de

Deus” – é esse ideal que sustenta os “usos e costumes”. Inegavelmente, esta aparência

se assenta na própria visão que o grupo possui de Deus e seus anjos. A primeira vez que

2 É o conjunto de preceitos de adorno e indumentária dos assembleianos. Crê-se que esses preceitos estão

baseados na Palavra de Deus (Bíblia) e seus valores, mesmo que de maneira indireta. 3 O termo resume, para o autor, a quebra da identidade assentada na adoção de costumes como o uso de

roupas sociais (frisado pelo terno e gravata) e a proibição do uso de determinadas peças de adorno e

indumentária e consumo de bens culturais antes taxados como “mundanos”, a exemplo de músicas não

gospel. 4 Que já sugere mudança no imaginário social do grupo.

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me deparei com este arquétipo da divindade presente na mentalidade dos pentecostais

eu ainda nem ao menos tinha montado os questionários das entrevistas.

Eu estava apenas frequantando as reuniões da igreja quando em uma tarde, após

a reflexão de um dos textos de Durkheim, fui tomar café na casa de uma irmã do círculo

de oração. No texto de Durkheim (2012, p. 33, grifo meu) estudado por mim antes de

visitar essa irmã, ele afirma:

A propósito de uma religião determinada [...] não somente todas as crenças

essenciais, mas todos os ritos dependem de causas sociais [...] Por

conseguinte, não é surpreendente que os mesmos fatos sejam todos uma

função da natureza da sociedade – sendo a divindade nada mais do que a

sociedade transfigurada [...] os deuses não passam de ideais coletivos

personificados.

Conversa vai, conversa vem, então resolvi “testar” a proposição durkheimiana e

perguntei: “irmã, como a senhora imagina que seja Deus?” a resposta me veio como eu

já desconfiava, resposta esta que mais tarde se confirmou nas entrevistas que fiz para

esta pesquisa: Deus, na mentalidade desta irmã e das outras onze pessoas dentre as

catorze que entrevistei5 é 1) um homem, 2) idoso, de barba grisalha, 3) usa veste alvas e

4) é branco. Como se pode perceber na fala de minhas entrevistadas (todas negras):

“Pra mim, ele é branco, olhos amarelinhos, os cabelos bem longos todos

caracolados, a roupa toda de branco... Pra mim eu imagino ele assim” (Eva6,

28.02.2017).

“Na minha imaginação Deus é bem bonito... ele é velhinho, tem barba, a roupa

é branca [...] sobre a cor da pele? Eu acho que deve ser, assim, meio branca, né

não?!” (Agar, 03.03.2017).

“Bom, a gente costuma sempre ver Deus loiro, dos olhos azuis, né...” 7 (Dinah,

28.02.2017).

5 Depois de saberem o objetivo de minha pesquisa e, tendo clara essa possibilidade, duas pessoas se

recusaram a responder a pergunta que fiz sobre a imaginação que fazem de Deus. 6 Os nomes são fictícios para proteger a identidade das sujeitas da pesquisa. Isso foi uma condição para a

participação das mesmas. Escolhi nomes de mulheres da Bíblia que sofreram algum tipo de violência. 7 É muito importante apresentar mais um dado da fala de Joselina dito a mim depois que terminei de

gravar (ela confessou-me ter vergonha de falar isso durante a entrevista): Joselina imagina Deus não

apenas como homem loiro de olhos azuis, mas, para ela, ele é branco e parece “um galã de novela todo

malhado”.

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“É difícil responder, irmão... A Bíblia diz que Deus é aquilo que o olho nunca

viu... Em Apocalipse diz que ele tem cabelo branco e longo, uma veste branca, a pele

como latão brilhante [...] latão é branco meio prateado, né não?! Então a pele de Deus

deve ser branca meio prateada” (Ester 27.02.2017)

“Fisicamente é muito difícil dizer como ele é [...] só quando a gente chegar na

Glória é que a gente vai saber realmente como ele é [...] as imagens de Jesus nos

desenhos da Escola Dominical é sempre ele de barba, cabelo comprido [...] a pele é

branca” (Maria, 01.03.2017)

“Deus, em termos de aparência... Eu imagino que ele é uma pessoa magnífica,

suprema, acima de todas as coisas [...] Deus não é um ser humano como a gente, ele é

um ser supremo, espiritual [...] Jesus tem cabelos longos, a pele é branca” (Lia,

02.03.2017)

As causas dessa representação do Deus Branco e sua produção no

pentecostalismo (e não necessariamente no cristianismo) eu compreendo via o conceito

de colonialidade, segundo a perspectiva decolonial desenvolvida pelo Grupo

Modernidade Colonialidade, e discuto de modo detalhado, explorando o conteúdo das

entrevistas, em outros textos dos quais um ainda se encontra no prelo (MONTEIRO,

2017 e 2019). Por ora falarei apenas das consequências dessa representação.

Neusa Santos (Souza, 1983, p. 33 e 34), explica que para a estabilidade

emocional “é preciso que haja um modelo a partir do qual o indivíduo possa se construir

– um modelo ideal, perfeito ou quase [...] esse modelo é o Ideal do Ego” citando Freud,

a autora continua “‘há sempre uma sensação de triunfo quando algo no Ego coincide

com o Ideal do Ego. E o sentimento de culpa (bem como de inferioridade) também pode

ser entendido como uma tensão entre o Ego e o Ideal do ego’”, por fim, problematiza:

“E o negro? O negro de quem estamos falando é aquele cujo Ideal de Ego é branco. O

negro que ora tematizamos é aquele que nasce e sobrevive imerso numa ideologia que

lhe é imposta pelo branco como ideal a ser atingido e que endossa a luta para realizar

este modelo”.

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A base do Ideal do Ego no pentecostalismo é Deus. Seja nos cultos, reuniões de

oração e estudos bíblicos a máxima é “temos que ser igual a Deus!”. No imaginário

cristão, Deus encarnado na pessoa de Jesus Cristo é o modelo de vida a ser seguido

(ações, fala, vestimenta, etc.) e mais, um dia, creem os cristãos, todos serão

transformados exatamente como ele é. Os pentecostais creem e buscam seguir isto à

risca, mas como demonstrei anteriormente, o arquétipo que os pentecostais possuem é

do Deus Branco.

Esse arquétipo demanda, por exemplo, uma estética específica que o constitui.

Que estética é essa? A europeia. O pentecostalismo, salvo mudanças recentes em

algumas vertentes, ensina que as “mulheres de Deus” devem possuir cabelos longos,

mas quando afirma isso, o cabelo que simboliza o longo é o cabelo liso típico de

pessoas oriundas de regiões não africanas. Essa ordenança pentecostal embasada em

representações muito específicas contrasta com o fenótipo das mulheres negras. O ideal

de ego dos pentecostais (o Deus Branco) é adaptado para as mulheres. Por conseguintes,

o perfil das “mulheres de Deus”, as “profetizas”, “mulheres de oração”, “servas de

Deus”, é a versão feminina de Deus. Se Deus é um homem branco fenotípica e

culturalmente europeizado, as mulheres de Deus também o são.

3 ESTIGMA E SOFRIMENTO DAS MULHERES NEGRAS NO

PENTECOSTALISMO

Goffman (1975, p. 11) nos lembra que “os gregos, que tinham bastante

conhecimento de recursos visuais, criaram o termo estigma para se referirem a sinais

corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau

sobre o status moral de quem os apresentava”. Esses sinais, afirma o autor, eram feitos

na pele com cortes ou objetos incandescentes. As marcas criadas na pele (os estigmas)

avisavam a todos que o portador era um escravo, traidor ou criminoso. O estigmatizado

era uma pessoa mal vista que deveria ser evitada, sobretudo em lugares públicos e

rituais da comunidade.

Todas as sociedades possuem maneiras de caracterizar os indivíduos que as

compõem, em geral, seus integrantes são divididos entre sujeitos “normais” e os

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desviantes (“anormais”). Essa categorização tem por trás de si processos de dominação

entre os grupos sociais que compõem o meio. Para marcar a condição anômica dos

desviantes e afirmar seu status de superioridade, os grupos dominantes não só criam

estigmas como também constroem identidades sociais para os desviantes a partir da

estigmatização. É preciso lembrar que “um atributo que estigmatiza alguém pode

confirmar a normalidade de outrem” (GOFFMAN, 1975, p. 13).

A mulher negra e o homem negro, na sociedade brasileira e no pentecostalismo

assembleiano são estigmatizados. Como tais, carregam em si os três tipos mais comuns

de estigma registrados por Goffman (Op. Cit.). Ordenadamente são: 1) As abominações

do copo, a saber, aquilo que socialmente é considerado deformidade – em relação aos

negros, os atos de discriminação racial sempre destacam o cabelo crespo, o tom de cor

enegrecido da pele, o nariz largo, os lábios grossos, seios grandes e quadril largo; 2) As

culpas de caráter individual, na boa definição de Goffman, (Op. Cit., p. 14) “percebidas

como vontade fraca, paixões tirânicas ou naturais, crenças falsas e rígidas,

desonestidade, sendo essas inferidas a partir de relatos conhecidos de, por exemplo,

distúrbio mental, prisão, vício, alcoolismo [...]” etc.; 3) estigmas étnico-raciais e até

religioso: esses estigmas contaminam todos os membros de uma raça, etnia, família ou

religião porque são congenitamente repassados.

Distante do ideal de ego do Deus Branco e sua versão adaptada para o público

feminino, a mulher negra é estigmatizada pelo grupo e por si mesma. O resultado é

frustração e dor. Isso é claro na fala das sujeitas da pesquisa:

Vou lhe contar uma coisa que nunca contei pra ninguém... Não suporto ter

cabelo assim [crespo]... Eu sempre quis ter cabelo liso. Me dói ler na

Palavra de Deus [Bíblia] que a mulher deve ter cabelo comprido porque lhe

é honroso e meu cabelo não ficar cumprido. Olho pra umas irmãs da igreja

que tem o cabelo por aqui [Doralice deu três batidas com a mão reta na

cintura] e me bate uma tristeza... Eu nunca vou ter meu cabelo assim grande,

comprido... (Agar, 03.03.2017).

Lágrimas vieram aos olhos de Agar ao me revelar seu desejo e frustração em

nunca poder alcançá-lo. O Ego de Agar, assim como o de milhares de outras mulheres

negras pentecostais, está longe de coincidir com o Ideal de Ego branco e os cabelos lisos

e longos que ele apregoa. Para todas as mulheres perguntei como elas acham que deve

ser o cabelo de uma “mulher de Deus” a resposta foi unânime: longo/comprido. Apesar

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de, quando perguntei, Doralice ter dito que se considera uma “mulher de Deus”, percebo

um aparente conflito entre crer que uma mulher de Deus deve ter cabelo longo e saber –

em suas próprias palavras - que jamais terá um cabelo cumprido chegando até sua

cintura. Esse conflito entre seu Ego e o Ideal de Ego causa em Agar dor, como ela

mesma disse.

O cabelo da mulher negra que é estigma no pentecostalismo faz com que elas

caiam na situação que, segundo Goffman (1975, p. 7) todo individuo estigmatizado

enfrenta: ele “está inabilitado para aceitação plena” – elas nunca serão plenamente

aceitas no modelo pentecostal de “mulheres de Deus” (lembrando que todas as que

entrevistei disseram que o cabelo da “mulher de Deus” deve ser cumprido). A única

saída é esconder o estigma. Perguntei a Agar como ela costuma arrumar o cabelo para ir

à igreja (diferente de outras irmãs, ela não o alisa porque acredita que é pecado). Ela

então me respondeu:

Eu tenho que molhar ele. Por incrível que pareça ele molha viu?! [ela deu

risadas] aí depois que ele ta molhado eu vou passando creme e vou

colocando grampos assim, oh! [com uma mão ela puxava o cabelo para trás

de tal forma que ele ficasse o mais baixo e esticado possível e com a outra

mão ia colocando os grampos na direção da testa à parte de trás da cabeça] ai

vou botando grampo por grampo e fica bem bonitinho. Mas eu faço isso só

dia de domingo. No dia se semana eu só puxo ele pra trás como eu fiz agora

e vou com ele assim mesmo. É que se molhar fica mais bonito.

Agar tenta de todas as formas esconder o volume de seu cabelo crespo – seu

estigma. Quanto menor o volume, mais bonito para ela ele fica. Por isso para ir aos

domingos, dia em que a igreja está cheia, ela o molha. Pelo que eu soube, para sua

técnica funcionar ela mantém sempre o cabelo bem baixo.

Na mesma semana, em uma pregação ouvi ser dito que o cabelo foi dado

naturalmente à mulher em substituição ao véu, por esta razão as mulheres devem ter o

cabelo longo. “Deixar crescer o que foi naturalmente dado por Deus é honroso”.

Imediatamente pensei em Doralice e em todas as mulheres negras presentes naquele dia

na igreja e que ouviam o sermão. “Deixar crescer o que foi naturalmente dado por

Deus” não é honroso para elas, exceto, se o alisarem. Percebi algo implícito: de uma

forma ou de outra, na mentalidade dos pentecostais, o cabelo crespo em sua forma

natural não deve ser bem visto por Deus.

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O racismo no Brasil, por causa da lógica colorista e da ideologia da

miscigenação, é escalonado. Quanto mais próximo do ideal branco, menos violência, e o

contrário é verdade. Em minha pesquisa verifiquei que a violência e o sofrimento das

mulheres negras pentecostais variam em função da sua aproximação ou distanciamento

com o ideal de ego. E é também a partir de suas próprias experiências de aproximação e

distanciamento desse ideal que elas avaliam a presença do racismo no seio religioso e

desconsideram a existência de experiências alhures às suas.

Dinah, mulher negra de pele clara, mas de cabelos bem crespos, diz que “o

problema não é nem tanto a pele, mas o cabelo”. Essa proposição não é válida para

pensar a experiência de Maria – uma adolescente negra de pele preta, com cabelo

bastante encrespado e que possui lábios e nariz que também, pelo seu formato, são alvos

do racismo. Maria por muito tempo foi discriminada por diversos adolescentes do grupo

devido sua aparência (cor e outros traços físicos) e não apenas por causa do cabelo. Ao

conversar comigo disse: “por muito tempo eu sofri por me achar feia, mas isso passou

depois que aprendi que isso era racismo e que eu tenho que me amar porque Deus me

fez assim”.

Exatamente como já consagrou a literatura que discute práticas racistas que tem

como alvo o cabelo de mulheres negras (GOMES, 2019 e TOLENTINO DE PIRES,

2015), os tipos de cabelo crespo implicam mais ou menos violência racial, porém, isso

não ocorre apenas com o cabelo, mas sim com todos os traços de negritude: com o

corpo negro em sua totalidade e com culturas, ou elementos culturais, afrocentrados.

Quanto mais dotada de caracteres de negritude, mais vitimada é a mulher negra no

pentecostalismo e o ambiente religioso não é capaz de impedir esse acirramento, na

verdade, ele até o camufla.

Dinah foi vítima da sexualização que avilta as mulheres negras. Durante o

namoro com seu atual marido – que é branco – suportou vários gracejos violentos ditos

a Mario, acerca de sua sexualidade. Essas agressões vinham tanto de amigos como de

familiares de Mário, estes últimos, da igreja. Segundo Mário, diziam: “vais ficar com a

neguinha mesmo?”, “Êh, se deu bem em?! Vai ter muito bezerro”8. Mesmo o ambiente

8 “Bezerro” é uma espécie de pompoarismo que, no imaginário racista, as mulheres negras seriam

especialistas em realizar.

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religioso não constrangeu os agressores. Sobre esse momento vivido, Dinah confessou:

“eu me senti muito humilhada. Como podiam pensar essas coisas nojentas de mim só

por causa da minha aparência? Se eu não tivesse me refugiado em Deus, eu não teria

continuado com o Mário. Era muita tribulação”. Nessa fala de Dinah está

implicitamente expostos um dos canais de desvio do trauma vivenciado pelas mulheres

negras no pentecostalismo.

4 CANAIS DE DESVIO DO TRAUMA

São dois os principais canais de desvio da descarga emocional oriunda do

trauma causado pelo racismo. O primeiro deles é esconder os estigmas que contrariam a

imagem do Deus Branco. No sentido trabalhado por Frantz Fanon (2008), a mulher

negra pentecostal é forçada a usar “máscaras brancas”, isto é, objetos materiais

(adornos, indumentárias e produtos corporais) e imateriais (linguagem e língua) que

disciplinem seus corpos e ofusquem neles o máximo possível a negritude, caso

contrário, não será reconhecida na comunidade como “crente verdadeira”: as roupas

devem ser em estilo europeu, em tons claros e não estampadas; o cabelo crespo é

alisado ou submetido a tratamentos que diminuam o seu volume, tranças e similares são

proibidos, a linguagem deve ser a da cultura burguesa (branca).

O desejo de usar o cabelo em seu modo natural, grande ou trançado é reprimido.

O corpo não condiz com o ideal de ego desembocando em frustração e traumas. Ficam

então as perguntas: o que impede a autodestruição dessas mulheres? E mai: Por que

essas mulheres continuam a fazer parte de uma religião que lhes é tão danosa

emocionalmente? A resposta nos vem de Türcke (2013) e Fanon (2005).

Türcke (2013) nos mostra que a forma como a religião lida com traumas é baste

peculiar: ela promove uma associação substitutiva. O discurso religioso trata os

sintomas do trauma desviando as pulsões em que eles se sedimentam direcionando-os

para um objeto outro que pode ser tanto real como imaginário. Esse desvio é operado

por teodicéias9 poeticamente tecidas e atualizada nos corpos-mentes dos indivíduos

9 De acordo com Berger (1985), teodicéias são explicações de fenômenos anômicos em termos de

legitimação religiosa que seja de qualquer grau de sofisticação teológica. “uma das funções sociais muito

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através de rituais em que a música, a encenação e o êxtase encontram lugar privilegiado.

Desse modo, o individuo trata os sintomas do trauma sem resolvê-lo em sua raiz. Na

verdade, não raramente ele cai em um círculo vicioso de tratamento dos sintomas e

retroalimentação do trauma.

Em contextos de colonialidade, as religiões de êxtase religioso, como é o

pentecostalismo reproduzem o racismo, mas são capazes de tratar, de modo muito

eficiente, os sintomas do trauma colonial que encontra no racismo seu epicentro. Diz

Fanon (2005, p. 75) sobre os cultos de êxtase em contextos de intensa violência

colonial:

Essa desagregação da personalidade, esses desdobramentos, essas

dissoluções cumprem uma função econômica primordial na estabilidade do

mundo colonizado. Na ida, os homens e mulheres estavam impacientes,

inquietos, com os nervos à flor da pele. Na volta, a calma, a paz, a

imobilidade voltam à aldeia.

As mulheres negras não são destruídas pelo trauma da não correspondência ao

ideal de ego do Deus Branco porque canalizam pela descarga emocional do êxtase

religioso as pulsões destrutivas a objetos outros como o Diabo e seus demônios. As

“máscaras brancas” selam o círculo vicioso reforçando o trauma que demanda mais

êxtase. Porém as “máscaras brancas” também promove uma aproximação com o ideal

de ego inalcançável e aproximação dos demais membros brancos do grupo que, mesmo

parcialmente, conseguem se identificar com as mulheres negras. Essa aproximação,

contudo, é cheia de atritos porque a identificação não é completa, de sorte que o trauma

é constante e de várias direções na vida de mulheres negras que professam o

pentecostalismo em sua versão colonizada.

REFERÊNCIAS

BERGER, P. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São

Paulo: Paulus, 1985.

BRASIL. Distribuição espacial da população segundo cor ou raça – Pretos e pardos

2010. Brasília: IBGE, 2010.

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Page 13: SERVAS DO DEUS BRANCO: IDEAL DE EGO, ESTIGMA E …€¦ · Na congregação Estrela VII, entretanto, assim como em diversas congregações da periferia, os “usos e costumes” são

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Alef Monteiro é Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará onde

atualmente cursa a graduação em Filosofia e o mestrado em Sociologia e Antropologia.

É integrante do Grupo de Estudos Afro-Amazônico (GEAM/UFPA) e tem pesquisado

as religiões e religiosidades afro-amazônicas nos seus mais diversos aspectos. Endereço

eletrônico: [email protected]