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SEVERINOS E IRACEMAS: UMA LEITURA DO BRASIL ATUAL EM FOTOS DE SEBASTIÃO SALGADO E CANÇÕES DE CHICO BUARQUE Juiz de Fora 2006 RESUMO Leitura do projeto Terra, livro e CD publicados em 1997, cuja autoria envolveu o fotógrafo Sebastião Salgado, o escritor José Saramago e o compositor Chico Buarque, com o objetivo de se verificar como a produção cultural e midiática pode apresentar propostas coletivas e utópicas que se contrapõem ao individualismo na sociedade contemporânea. A leitura do projeto , livro e CD publicados em 1997, cuja autoria envolveu o fotógrafo Sebastião Salgado, o escritor José Saramago e o compositor Chico Buarque, que transformaram a publicação em bandeira de luta do MST, revertendo parte da renda para o movimento, é Palavras-chave: Mots-clèf: Terra cultura contemporânea, identidade nacional, Brasil, MST. culture contemporaine, identité nationale, Brésil, MST. * * * RESUMÉ Lecture du projet Terra, livre de photos de Sebastião Salgado, publié en 1997, avec un CD de Chico Buarque et le préface de josé saramago, avec le bout de comprendre comment la productiont de la culture et de la media peut apporter des propos collectifs et utopiques, qui font oposition a l'individualisme dans la societé contemporaine. Temos a base dupla e presente – a floresta e a escola. A raça crédula e dualista e a geometria, a álgebra e a química logo depois da mamadeira e do chá de erva-doce. Um misto de "dorme nenê que o bicho vem pegá" e de equações. (Oswald de Andrade: Manifesto Pau-Brasil) produtiva para se verificar com quais nuances a produção cultural 103 Alexandre Graça Faria (UFJF)

SEVERINOS E IRACEMAS: UMA LEITURA DO BRASIL ATUAL … 10/06... · RESUMO Leitura do projeto Terra, livro e CD publicados em 1997, cuja autoria envolveu o fotógrafo Sebastião Salgado,

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SEVERINOS E IRACEMAS: UMALEITURA DO BRASIL ATUAL EMFOTOS DE SEBASTIÃO SALGADOE CANÇÕES DE CHICO BUARQUE

Ju i z de Fora 2006

RESUMOLeitura do projeto Terra, livro e CD publicados em 1997, cujaautoria envolveu o fotógrafo Sebastião Salgado, o escritor JoséSaramago e o compositor Chico Buarque, com o objetivo de severificar como a produção cultural e midiática pode apresentarpropostas coletivas e utópicas que se contrapõem aoindividualismo na sociedade contemporânea.

A leitura do projeto , livro e CD publicados em1997, cuja autoria envolveu o fotógrafo Sebastião Salgado, oescritor José Saramago e o compositor Chico Buarque, quetransformaram a publicação em bandeira de luta do MST,revertendo parte da renda para o movimento, é

Palavras-chave:

Mots-clèf:

Terra

cultura contemporânea, identidade nacional,Brasil, MST.

culture contemporaine, identité nationale, Brésil,MST.

* * *

RESUMÉLecture du projet Terra, livre de photos de Sebastião Salgado,publié en 1997, avec un CD de Chico Buarque et le préface dejosé saramago, avec le bout de comprendre comment laproductiont de la culture et de la media peut apporter despropos collectifs et utopiques, qui font oposition al'individualisme dans la societé contemporaine.

Temos a base dupla e presente – a floresta e a escola. A raçacrédula e dualista e a geometria, a álgebra e a química logodepois da mamadeira e do chá de erva-doce. Um misto de"dorme nenê que o bicho vem pegá" e de equações.(Oswald de Andrade: Manifesto Pau-Brasil)

produtiva parase verificar com quais nuances a produção cultural

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contemporânea também pode apresentar propostas coletivas eutópicas que parecem relativizar a tendência ao individualismoda sociedade dita pós-moderna. Neste sentido, é significativo osautores terem tomado como tema o MST, movimento coletivoque permaneceu, no país, como principal foco de resistênciapolítica, talvez o único movimento social que conseguiu manterseus ideais de luta e suas conquistas estabilizadas em tempospós-utópicos.

A abordagem que ora se empreende faz parte doprojeto de pesquisa “Representações identitárias do Brasilcontemporâneo”, que atualmente desenvolvemos na UFJF.Pretende, então, contribuir para o mapeamento destasrepresentações previsto naquela pesquisa. Além disso, buscacompreender o projeto , tomando-o, a princípio, comoestratégia de popularização, através de outras linguagens esuportes, de leituras do Brasil que se reafirmam desde a décadade 30 do século XX, das quais artistas como Chico Buarque eSebastião Salgado são herdeiros e com as quais José Saramagodemonstra profunda afinidade em obras como, por exemplo,

. Dentre estas leituras do Brasil, faremosbreves apropriações de Casa-grande e senzala (1933), deGilberto Freire, (1936), de Sérgio Buarque deHollanda, e (1946), de Josué de Castro.

Ainda, antes de propriamente se iniciar, vale anotarque apresentará alguma utilidade, ao longo desta análise, oconceito de virtual, conforme desenvolvido por Pierre Lévy,segundo o qual a virtualização é a passagem à problemática, odeslocamento para a questão, manifestando-se comoheterogênese, devir outro, e se opondo sobretudo à idéia dealienação (LÉVY, 2001, p. 25). Esta opção teórica parte dahipótese de que os discursos identitários manifestam-seincondicionalmente como busca, indagação e, como tal,tendem a conduzir à alteridade, ou são heterogênicos, naconcepção do pensador francês.

Nesse sentido, propõe-se avaliar em que medida oprojeto , além do fato de ser tributário de uma leituracrítica da sociedade brasileira já cristalizada, representaacréscimo nesta tradição crítica. O presente texto, então,começa por apontar alguns aspectos desta tradição crítica, emconfronto com o texto de José Saramago, que serve de

Terra

Levantado do Chão

Raízes do BrasilGeografia da fome

Terra

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introdução ao livro de fotospublicado por Sebastião Salgado.Em seguida propõe a leitura de quatro das fotos contidas nestevolume, a partir de pressupostos teóricos apresentados porRoland Barthes em seu ensaio . No momentoseguinte, o artigo aborda duas canções de Chico Buarque, dasquatro que integram o CD encartado no livro de fotos,quando de seu lançamento, e ainda outra, “Iracema”, nãoincluída no projeto, mas com o qual guarda proximidades queinteressam à análise. Finalmente, através da noção deheterotopia, como alternativa à de utopia, será encaminhauma conclusão para a abordagem empreendida.

* * *A permanência de conflitos agrários, dos quais o de

Eldorado dos Carajás é apenas uma das indesejáveislembranças; apenas confirmavam que nada (ou muito pouco)se fazia (e ainda não se faz) em relação à Reforma Agráriabrasileira. A posse da terra no Brasil como forma de poderpolítico remonta à colonização lusitana. Sergio Buarque deHolanda faz ver que a tradição agrícola colonial, intimamenteligada aos mecanismos de dominação política, deixa marcasprofundas que até hoje se fazem sentir, visto que constituiu umadas bases para a formação do Estado Nacional:

O historiador demonstra, ao desenvolver sua teoria dohomem cordial, como o processo de urbanização atraiu ainfluência do patrimonialismo rural, deixando pouco nítidas asfronteiras entre o público e o privado:

A câmara clara

Na Monarquia eram ainda os fazendeiros escravocratas eeram filhos de fazendeiros, educados nas profissões liberais,quem monopolizava a política, elegendo-se ou fazendoeleger seus candidatos, dominando os parlamentos, osministérios, em geral todas as posições de mando, efundando a estabilidade das instituições nesse incontestadodomínio.[HOLANDA, 1995, p. 73]

No Brasil, pode-se dizer que só excepcionalmente tivemosum sistema administrativo e um corpo de funcionáriospuramente dedicados a interesses objetivos e fundadosnesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar,ao longo de nossa história, o predomínio constante das

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vontades particulares que encontram seu ambientepróprio em círculos fechados e pouco acessíveis a umaordenação impessoal. [HOLANDA, 1995, p. 146]

precisam de terra e não a têm, terra que para eles écondição de vida, vida que já não poderá esperar mais.Entretanto, a polícia absolve-se a si mesma e condenaaqueles a quem assassinou. [in: SALGADO, 1997,introdução]

o mandonismo tem sempre encontrado vítimas emquem exercer-se com requintes às vezes sádicos (...) Anossa tradição revolucionária, iberal, demagógica é,

A influência dos ruralistas nas instâncias do poder emBrasília ainda é notória. A reforma agrária não se realizaplenamente, mas nunca deixa de funcionar como plataformaeleitoral em qualquer pleito a cargos públicos. No texto queintroduz o volume , José Saramago aproveita-se desseaspecto, revelando subliminarmente a ausência de uma leiabstrata que se faça cumprir no Brasil, e denuncia: José Sarneyprometera assentar 1.400.000 famílias, mas não chegou aatender 10% desta cota; Collor de Melo não fez umassentamento sequer, dos 500.000 que prometera; durante omandato de Itamar Franco assentaram-se 20.000 famílias, das500.000 prometidas; finalmente, a promessa de FernandoHenrique Cardoso (280.000 assentamentos), parecia-lhe muitomodesta, pois, caso fosse cumprida, demandaria 70 anos paraatender as quase 5.000.000 de famílias que, conclui o escritor,

Se por um lado este tipo de dominação encontrafundamento na infiltração dos interesses privados no espaçopúblico; por outro, o que garante, em última instância, suapermanência é a força bruta, a milícia armada a serviço doEstado, neste caso o estado particular da classeeconomicamente dominante. A ação violenta do Estadoreverbera, ainda, a tradição colonial e escravocrata que semanifestava, segundo leitura de Gilberto Freyre, como sadismodo senhor e masoquismo do escravo. O sociólogo entende quetal relação está ligada à formação econômica da sociedadepatriarcal e enxerga seu alcance, para além da esfera sexual efamiliar, nas relações sociais e políticas:

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Terra

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antes aparente e limitada limitada a focos de fácilprofilaxia política: no íntimo, o grosso do que se podechamar “povo brasileiro” ainda goza é a pressão sobreele de um governo másculo e corajosamenteautocrático. Mesmo sinceras expressões individuais demística revolucionária, de messianismo, de identificaçãodo redentor com a massa a redimir pelo sacrifício da vidaou da liberdade pessoal, sente-se o laivo ou o resíduomasoquista: menos a vontade de reformar ou corrigirdeterminados vícios de organização política oueconômica, que o puro gosto de sofrer, de ser vítima oude sacrificar-se. [FREYRE, 1998, p. 51]

É difícil defenderSó com palavras a vida

Gilberto Freyre aponta como equilíbrio da vida políticabrasileira a dicotomia entre as místicas da Ordem e daLiberdade, da Autoridade e da Democracia, reconhecendo-aarquetipicamente na relação entre senhores e escravos edesdobrando-a na oposição entre a cultura européia e a afro-ameríndia. Nesse sentido, reconhece a “fusão harmoniosa detradições antagônicas” [IDEM, p. 52], como um ponto deflexibilidade na formação social brasileira.

Tais discursos – o de Gilberto Freyre e o de SérgioBuarque – permitiram, durante grande parte do século XX, areflexão de uma imagem bastante nítida de Brasil híbrido ecordial. Mas, da mesma forma que representaram avanços noprocesso da compreensão crítica da realidade nacional,sobretudo se contrapostos às idéias deterministas do séculoanterior, tais discursos se cristalizaram e passaram a ser usados,muitas vezes, de forma mecanicista, obliterando mais do querevelando a realidade brasileira. Seu uso, desta forma, tende anegar a heterogênese e serve à alienação. (LÉVY, 2001, p. 25)Diante de extermínios e chacinas que, a despeito de serempassíveis de um leitura simbólica das relações sociais, ceifam avida de brasileiros social ou etnicamente banidos docompartilhamento da brasilidade, é difícil defender, compalavras, qualquer noção que se aproxime da de um hibridismopacífico ou cordial. Sintomaticamente, José Saramago abre oprefácio de terra com a seguinte epígrafe retirada de João Cabralde Melo Neto:

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(ainda mais quando ela éesta que se vê, Severina)

Então, Deus compreendeu que nunca tivera, verdadeira-mente, no mundo que julgara ser seu, o lugar de majestadeque havia imaginado, que tudo fora, afinal, uma ilusão, quetambém ele tinha sido vítima de enganos, como aqueles deque se estavam queixando as mulheres, os homens e ascrianças, e, humilhado, retirou-se para a eternidade. Apenúltima imagem que ainda viu foi a de espingardasapontadas à multidão, o penúltimo som que ainda ouviu foi odos disparos, mas na última imagem já havia corpossangrando, e o último som estava cheio de gritos e lágrimas.[SARAMAGO, 1997]

Saramago apresenta um texto destoante da visão queencontra equilíbrio na diversidade ao deixar nítida sua posiçãoideológica, recusando a idéia de um messianismo místico, demártires, como aquele que Freyre relaciona com a tradiçãonacional. O romancista português desenvolve uma espécie deparábola, segundo a qual Deus volta à terra para redimir-sediante de um grupo de homens, mulheres e criançasdesprovidos de trabalho, submetidos aos senhores da terra, e seoferece como Justiça, Direito e Caridade, mas é seguidamenterecusado pelos mortais, que afirmam já terem uma justiça quenão os atende, um direito que não os conhece e não aceitam acaridade, pois querem uma justiça que se cumpra e um direitoque os respeite. Vale, aqui, citar textualmente a reação docriador:

Em seguida, Saramago passa à descrição da chacina deEldorado dos Carajás, episódio ocorrido em 17 de abril de 1996,quando dezenove integrantes do MST foram assassinadosdurante manifestação em que bloquearam a rodovia PA-150,em Eldorado dos Carajás (PA); ainda alude a outra chacina,ocorrida oito meses antes, quando dez manifestantes do mesmomovimento, que acampavam na Fazenda Santa Elina, emRondônia, foram mortos por policiais militares e assassinosprofissionais contratados pelos fazendeiros locais. O romancistaportuguês acusa os desmandos da Polícia Militar e dasautoridades brasileiras; denuncia as contradições sobre asgrandes áreas improdutivas do Brasil; e, finalmente, conclui

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desestabilizando um dos principais ícones do messianismocristão e símbolo turístico e religioso do Brasil, especialmente doRio de Janeiro:

Esta imagem final une-se aos versos de João Cabral deMelo Neto e redimensiona o texto de Saramago: além de umadenúncia poética sobre a violência do governo brasileiro contraos sem-terra, não deixa de ser um texto de apresentação para asfotos de Sebastião Salgado: embora não as cite explicitamente,Saramago as apresenta como formas de defender, sem palavras,a vida. Os painéis em lugar do Cristo pretendem transformar osigno lingüístico em imagem, ou melhor, com o humanismotípico daquele Jesus , aestátua ausente do Corcovado representa a Justiça e o Direito,também ausentes.

* * *

Num sistema político e social cujas ações muitas vezesseriam capazes de esgotar palavras em análises e discursosverbais (e análises de discursos...), a fotografia ofereceu-se, nocaso da chacina de Eldorado dos Carajás, como linguagemsuplementar, cujo impacto foi politicamente explorado peloMST em diversas exposições pelo país.

Se fosse criado um sistema que permitisseaferir o grau de poder de atualização das diferentes linguagens, afotografia se colocaria num lugar bem anterior ao do discursoverbal. A relação imediata que a foto estabelece com o referentetende a torna-la, para o espectador menos crítico, o próprioreferente. Entre uma descrição verbal e a figura por ela evocadahá a imaginação. A fotografia dispensa a imaginação: ela é aimagem e se não o fosse pouco lhe restaria. Roland Barthesdemonstra esta condição essencial da fotografia, imanência da

O Cristo do Corcovado desapareceu, levou-o Deusquando se retirou para a eternidade, por que não tinhaservido de nada pô-lo ali. Agora, no lugar dele, fala-seem colocar quatro enormes painéis virados às quatrodireções do Brasil e do mundo, e todos, em grandesletras, dizendo o mesmo: UM DIREITO QUE RESPEITE,UMA JUSTIÇA QUE CUMPRA. [ IBIDEM]

d´O evangelho segundo Jesus Cristo

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realidade contingente que registra e transporta:

Não se pode crer, no entanto, que a linguagemfotográfica não esteja sujeita às complexidades do jogomimético. Há no referente que se expõe ao espectador umaopção ideológica e técnica (inclusive de pós-produção) dofotógrafo. Se há um nível documental da fotografia, há outro quea iguala às demais formas de representação da realidade,sujeitando-a a valores e interpretações variáveis (tanto dofotógrafo quanto do espectador), que desestabilizam seuaspecto documental. Desestabilizam, mas não o inviabilizam.Eis a ambigüidade desta linguagem: funciona como ícone, namedida em que estabelece uma relação de semelhança com oreferente, mas não deixa de ser índice, “prova, constataçãodocumental de que o objeto, o “assunto representado”, tangívelou intangível, de fato existiu, ocorreu” [KOSSOY, 2000, p. 33].

Há, ainda, que se ressaltar que a leitura da fotografianão pode ser dissociada da construção textual que a cerca. Alegenda é a orientação ideológica que se quer imprimir àimagem. Neste mundo que, desde o princípio, é o verbo,construir uma legenda é, sem dúvida nenhuma, dotar de sentidouma imagem. A legenda dá a ver o que o autor não quer queescape ao espectador. Por outro lado, há as fotos que vão além

A fotografia pertence a esta classe de objetos folheados, ondenão é possível separar as duas folhas sem as destruir: o vidro ea paisagem, e, porque não, o Bem e o Mal, o desejo e seuobjeto – dualidades que é possível conceber mas nãoperceber (...) Esta fatalidade (não há foto sem alguma coisa oualguém) arrasta a Fotografia para a desordem imensa dosobjetos do mundo: por que escolher (fotografar) umdeterminado objeto, um determinado instante, em vez deoutro? A Fotografia é inclassificável porque não há qualquerrazão para marcar esta ou aquela das suas ocorrências; elagostaria, talvez, de se tornar tão espessa, tão segura, tão nobrecomo um signo, o que lhe permitiria alçar a dignidade deuma língua; mas, para existir signo, é necessário haver marca;privadas de um princípio de marcação, as fotos são signosque não se fixam bem, que se alteram como leite. Seja o quefor que ela dê a ver e qualquer que seja a sua maneira, umafoto é sempre invisível: não é ela que nós vemos. [BARTHES,1981, p. 21]

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das legendas, o próprio objeto fala, tornando-o perigoso esubversivo, como conclui Barthes, ao contar um episódio sobreo fotógrafo húngaro André Kertész:

Em , Barthes concebe duas categoriaspara abordagem de uma foto o , conjunto deinformações compartilhadas no espaço cultural entre o autor(fotógrafo) e o espectador, a partir das quais é possível abordar aobra segundo seus valores sociais, políticos, ideológicos etc e o

, elemento que pode ser entendido como aquilo quefala na foto, desestabilizando o acordo cultural estabelecidopelo . O que está diante dos olhos do espectador é umaescolha, um recorte do que se revelava diante do fotógrafo nomomento do disparo. A paisagem vista a olho nu também podedotar-se de e . Dessa forma, fazer uma fotoque fale consistiria em fotografar que pudessem aflorar daimagem e picar o espectador. Kertész, , toma o

da paisagem dos arranha-céus nova-iorquinos comocentro de atenção: uma nuvem perdida, sob o cinza urbano; otítulo confirma a intenção.

Voltando ao projeto em estudo, as fotos que maisimpressionam a um primeiro passar de olhos pelas páginas dovolume são aquelas que têm a morte como referente.Sebastião Salgado fotografa a morte consumada ou prometida.As imagens denunciam a violência do Estado praticada não só deforma explícita – os manifestantes assassinados, mas tambémimplícita – a fome, a desnutrição, o trabalho aviltante. Taisaspectos pertencem ao . Podem ser aprofundadosatravés da leitura das legendas colocadas ao fim do volume, bemcomo através do conhecimento do contexto sócio-político queas envolve e do engajamento com o MST. Mas o que fala em taisfotos?

Morte e fotografia andam juntas. Fixar um tema vivo

Os redatores de Life recusaram as fotos de Kertészquando ele chegou aos Estados Unidos, em 1937,porque, segundo afirmavam, suas imagens “falavamdemasiado”; elas faziam refletir, sugeriam um sentido–um sentido diferente da palavra. No fundo, a Fotografiaé subversiva não quando assusta, perturba ou atéestigmatiza, mas quando é pensativa [BARTHES, 1981,p. 61]

Câmara clara

(figura 1)

Terra

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diante da objetiva em uma eterna imagem, cristalizada, éembalsamá-lo. Porém, nas imagens em que a morte se tornaobjeto, inverte-se o sinal da equação. Nas fotos de Salgado, oque sobressai é a vida. O que fere o espectador que ascontempla para além do primeiro passar de olhos, oque o convida à reflexão, é a vida:

Esse paradoxo da vida obtida através da entronizaçãoda morte também desloca o tempo contido na fotografia. Não setrata de um passado cristalizado quimicamente sobre o filme,mas a tentativa de presentificar a morte como acontecimentoprevisto e indesejado. Ao primeiro olhar repugnam as imagensdos cadáveres. Os esquifes ( ) chamam o olhar para ovazio central da cena; denunciam a chacina pela quantidade eganham identidade na multidão que os rodeia. Noutra fotoganham movimento.( ) A foto dos corpos sendotransferidos para o cemitério contrasta a inércia da morte com omovimento da rodovia. O momento do disparo do obturadoraguarda que um ônibus cruze com o caminhão, indo em sentidocontrário; ironicamente, a inscrição na lateral do coletivopromete: Cidade Nova. Se os corpos seguem para um velhodestino, os vivos rumam em sentido contrário, promessa utópicade um devir melhor. Ao fundo, os faróis dos veículos que vêm namesma direção, iluminam o féretro, olhos abertos sobre osdespojos dos vencidos a salvaguardar um caminho seguro:

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Na fotografia, a presença da coisa (num determinadomomento passado) nunca é metafórica; e, no que respeitaaos seres animados, a sua vida também não, salvo sefotografarmos cadáveres. Neste caso, se a fotografia se tornahorrível, é porque certifica, por assim dizer, que o cadáverestá vivo, enquanto cadáver: é a imagem viva de uma coisamorta. [BARTHES, 1981, p. 112]

Segundo a crença popular do Nordeste, quando morremanjinhos, ainda não acostumados com as coisas da vida equase sem conhecer as coisas de Deus, é preciso que osseus olhos sejam mantidos bem abertos para que possamencontrar com mais facilidade o caminho do céu. Pois,com os olhos fechados, os anjinhos errariam cegamentepelo limbo, sem nunca encontrar a morada do Senhor.[SALGADO, 1997]

figura 2

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Esta passagem é a legenda para a foto de uma criançamorta. ( ) Os olhos abertos são o que vêm aocentro do . É uma criança morta: não deixam dúvidas ocontorno do caixão, as mãos que rezam, as flores em torno, acruz sobre a cabeça. Mas e os olhos abertos, para onde olhariam?Alheios à lente da objetiva, que tenta cristalizar aquelemomento, talvez estejam confirmando que há outra vidapossível, para a qual a morte não é senão metáfora: transição,passagem, liberdade. Ninguém olha para a morte, dizemaqueles olhos abertos, mas todos matam por atos e omissões,gestos e palavras, fotos e leituras.

O acusa uma dupla indigência brasileira – a dopovo e a das ações políticas. Morre-se de fome no Brasil, mas asações político-intelectuais, muitas vezes, permanecem alheias,indigentes, num silêncio que, conforme denunciou Josué deCastro, é “premeditado pela própria alma da cultura”:

A insistência do tema ”criança” nas fotos de SebastiãoSalgado delata, além do olhar para o futuro, que ostentaesperança, construção, liberdade, utopia, a busca do instintoprimário, de que a razão não dá conta; neste sentido pode-seentender que se propõe uma oposição à morte. Uma delas, emespecial – “escola em assentamento” – ( ) desperta aatenção do espectador: uma menina, sentada numa carteiraescolar de uma sala de aula vazia, escreve em um caderno deespiral. A caneta, na mão direita, excessivamente grande para asmãos miúdas e os braços magros, destaca-se, aponta para ocaderno onde a menina supostamente escreve, mas a mãoesquerda oculta o detalhe do ato. Ela levanta os olhos para a

figura 4

figura 5

punctumstudium

studium

Foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e deordem política e econômica de nossa chamada civilizaçãoocidental que tornaram a fome um tema proibido, ou pelomenos, pouco aconselhável de ser abordado publicamente.O fundamento moral que deu origem a esta espécie deinterdição baseia-se no fato de que o fenômeno da fome,tanto a fome de alimentos como a fome sexual, é um instintoprimário e por isso um tanto chocante para uma cultura comoa nossa, que procura por todos os meios impor o predomínioda razão sobre o dos instintos na conduta humana. [CASTRO,1995, p.28].

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objetiva e no momento do disparo inicia um sorriso. Aambigüidade de uma escrita que pode ser mera pose, e de umsorriso que não se realiza por inteiro, à Mona Lisa, sugere odestino da menina que desafia da vida que tem pela frente, ecom seus rudimentares meios de produção – a caneta, ocaderno velho – encara tecnologia moderna – a máquinafotográfica – que a sonda como a um objeto, mas não será capazde revelar-lhe o mistério, a vida, o futuro.

A utopia reconhece que a morte não está no presente,mas no futuro. A melhor legenda para esta idéia que ressalta dasfotos de Sebastião Salgado talvez esteja na letra da canção“Assentamento”, de Chico Buarque, composta para o MST, apartir das imagens do fotógrafo. Abrindo e encerrando a cançãocom uma citação de Guimarães Rosa, o compositor idealiza areconciliação do homem com a terra e enxerga a possibilidadede uma nação ampla, justa e fértil:

Este último verso é um refrão que ratifica uma idéiapresente na primeira estrofe: a cidade não mora mais em mim:

Uma das partes em que as fotos do livro estãodivididas enfoca a migração para as cidades, velho problemabrasileiro, resultante da crise social e política da área rural. Aohomenagear o MST, Chico Buarque concebe um movimentomigratório em sentido oposto àquele cujas mazelas são

Terra

Quando eu morrerCansado de guerraMorro de bemCom a minha terra:Cana, caqui,Inhame, abóboraOnde só vento se semeava outroraAmplidão, nação, sertão sem fimOh Manuel, MiguilimVamos embora. [BUARQUE, 1997]

Zanza daquiZanza pra acoláFim de feira, periferia aforaA cidade não mora mais em mimFrancisco, SerafimVamos embora. [BUARQUE, 1997]

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retratadas por Sebastião Salgado, a desorientação dos homensestá nas cidades: a expressividade fonética do verbo zanzarrealça esta idéia. Na verdade, o migrante dificilmente habitará acidade, que se apresenta como uma imposição do destino: fugirda morte. A cidade se impõe e desgarra seus pés da terra, queaqui é compreendida metaforicamente como o sistema agrárioiníquo que expele o homem do campo para o centro. Aorecuperar a terra ou se reconciliar com ela, o sujeito conseguelibertar-se da cidade.

Tal reconciliação com a terra só é possível no planoutópico, numa morte futura, diferente daquela, dos versos deJoão Cabral de Melo Neto, que o mesmo compositor musicouno início da carreira, a cova, com palmos medida, de bomtamanho para um defunto parco, terra dada à qual não se abre aboca. A imagem mais produtiva do sentido oposto que a letra dacanção “Assentamento” estabelece para o fluxo migratório estápresente na segunda estrofe:

Ver o capimVer o baobáVamos ver a campina quando floraA piracema, rios contravimBinho, Bel, Bia, QuimVamos embora. [BUARQUE, 1997]

Nadando contra a corrente do fluxo migratório, oscolonos assentados empreendem metaforicamente umapiracema. A força para isso está no movimento social coletivo,numa verdadeira luta de famílias brasileiras pela terra, comdireito a martírios, messianismos, e explorações políticas nointerior do próprio movimento, sem dúvida, mas que, quandoassentadas, muitas delas se organizam em cooperativas deprodução que acendem a esperança de um Brasil justo epossível. A este propósito é significativo mencionar doisdocumentários realizados por Tetê Moraes,(1987) e (1996). Os doisfilmes, em conjunto, compõem um expressivo retrato namedida em que o segundo mapeia os destinos dos integrantesdo movimento retratado no primeiro. Sintomaticamente, estamesma canção de Chico Buarque é a trilha sonora do segundofilme.

Terra para RoseO sonho de rose, 10 anos depois

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No entanto, na seqüência das canções do CD Terra,logo após “Assentamento”, há uma regravação de “Brejo daCruz”, canção originalmente lançada em 1984, cuja letra éconstruída através de instantâneos da vida urbana brasileira, emque migrantes zanzam pela cidade, assumindo diversasprofissões subalternas e subempregos (formas mil), funcionandocomo casais, urdidores do mosaico de modos de vida arcaicosque colorem os grandes centros urbanos brasileiros. Porém, natentativa de ganhar em pequenas partidas a vida severina,esquecem os projetos e a esperança que nutriam em sua cidadenatal (no título da canção, o município paraibano é tomadometonimicamente):

Longe do que poderia ser associado a uma alimentaçãoprânica. Esta luz é a dos olhos que enxergam um futuro nacidade. Colocada imediatamente depois de “Assentamento”,“Brejo da Cruz” contradiz a primeira canção e as duas juntascompõem um panorama de imagens do Brasil que vão sendozapeadas na mediada em que as faixas se sucedem. Ambas

[...]Uns vendem fumoTem uns que viram JesusMuito sanfoneiroCego tocando bluesUns têm saudadeE dançam maracatusUns atiram pedraOutros passeiam nus[...]São jardineirosGuardas noturnos, casaisSão passageirosBombeiros e babás[...]São faxineirosBalançam nas construçõesSão bilheteirasBaleiros e garçonsJá nem se lembramQue existe um Brejo da CruzQue eram criançasE que comiam luz. [BUARQUE, 1997]

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apontam para realidades distintas que, em última análise,refletem os processos exclusão social. Da cidade para o campo,do campo para a cidade, os deslocamentos se dão como reflexosda exclusão social, retratada, sobretudo, através do desajusteentre o homem e o meio, num processo de ocupação que se dámais por adaptação ou mimetismo, como sobrevivência, para,somente em seguida desdobrar-se como cultura.

As outras canções do CD não enfocam mais o fluxomigratório anotado nas duas primeiras. A clave da crônicarealista das duas primeiras canções, marcada inclusive por ritmosbem populares, próximos do baião (sobretudo em “Brejo daCruz”, que ganha um andamento mais quente e agressivo doque o de sua gravação original), é substituída pelo compassomais suave e onírico das duas seguintes. , asegunda canção composta especialmente para o projeto (eterceira do CD), apresenta música de Milton Nascimento e letrade Chico Buarque, na qual fica evidente a referência ao romancede Saramago: toma como mote a imagem da vida que se levantado chão e produz uma série de indagações, numa ironia críticasobre o absurdo da condição de um lavrador sem terra.“Fantasia”, a última canção do CD, gravada originalmente no LP

(1980), coroa a perspectiva utópica do projeto através daproposta da canção capaz de salvar o homem da dor e dosuplício de estar submisso à vida, a fantasia de tomar a vida nasmãos e acreditar no humano trabalho de transformação, sem noentanto abandonar a consciência dos limites da elaboraçãopoética, numa explícita referência a Fernando Pessoa:

* * *

Fora do projeto , mas inserida no CD de carreiraem que o compositor regravou “Assentamento”, interessa,especialmente, outra canção que retoma o tema dos fluxosmigratórios, problematizando ainda mais as noções de centro eperiferia. Trata-se de , lançada no CD ,de 1998:

Levantados do chão

Vida

Terra

Iracema voou As Cidades

E se de repenteA gente não sentisseA dor que a gente fingeE sente [BUARQUE, 1997]

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Iracema voou para a AméricaLeva roupa de lã e anda lépidaVê um filme de quando em vezNão domina o idioma inglêsLava chão numa casa de cháTem saído ao luar com um mímicoAmbiciona estudar canto líricoNão dá mole pra políciaSe puder vai ficando por láTem saudades do CearáMas não muitaUns dias afoitaMe liga a cobrarÉ Iracema da América. [BUARQUE, 1999]

A explícita retomada de uma personagem símbolo donacionalismo romântico de José de Alencar, indica intenção deo compositor inserir seus versos na tradição literária que secaracteriza pela fundação de imagens do Brasil. O famosoanagrama descoberto por Afrânio Peixoto (Iracema / América) éagora retomado, mas o sentido é distinto: América aparece noprimeiro verso como a metonímia pretensiosa dosestadunidenses e é a terra onde Iracema vai zanzar. Não sedesgarrou da terra (=campo), mas da própria nação: expatriou-se. A gradação com que as imagens dos versos da primeiraestrofe se deslocam surpreende o ouvinte/leitor: a viagemcomeça a ser apresentada como passeio, lazer -roupas de lã,anda lépida – mas nega-se paulatinamente até o clímax, queressalta o contraste entre dois mundos de significadoscompletamente opostos, mas de significantes que se imbricam,se aliteram: chão e chá. O requinte da casa de chá é a América,onde Iracema não pode negar suas raízes, sua condiçãoperiférica, o Ceará: lava chão.

Porém, diferentemente dos alucinados que cruzam oscéus do Brasil, em “Brejos da Cruz”, a América representa paraIracema, assim como para todos os migrantes que lá estão nailegalidade, uma perspectiva economicamente mais positiva: asfunções são as mesmas, porém a remuneração é melhor (umdireito que respeita? – para se retomar a pergunta de Saramago).A despeito da horda de brasileiros que seguem este fluxomigratório, representados na canção por Iracema, a América,

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para ela não é utopia, pois não há projeto coletivo, mas, pelocontrário, o “arrisca tudo” de quem não enxerga perspectivas noBrasil.

Para propor direções estratégicas na compreensão dosatuais fluxos humanos, fotografados e cantados pelos novosintérpretes do Brasil, recorre-se à noção de heterotopia, a partirda idealização de uma Pasargada 2, do sociólogo BoaventuraSantos. Se tais deslocamentos não são suficientes para agregarum povo e engendrar plenamente uma perspectiva utópica, nãodeixam de apontar para a possibilidade de trânsito, naprecariedade do momento presente, onde se reconhece umperíodo de transição paradigmática:

Este deslocamento do centro para a periferia, que não éexplicitamente o de Iracema, subjaz nos versos da canção e éacentuado pela construção musical. A segunda estrofe continuaa descrever o périplo anti-heróico da personagem: naimpossibilidade de comunicar-se em inglês, recorre a duaslinguagens universais – a do corpo e a da música: namora ummímico e sonha estudar canto lírico. A malandragem que lhe étraço de identidade se revela, inclusive, pela mudança doregistro verbal: não dá mole pra polícia. Leva também para aAmérica, um tipo de sentimento que, segundo a mitologialingüística só se expressa em português: em vez da nostalgia, dador da perda, a saudade mas não muita, fugaz e passageira, dequem pode, no mundo globalizado pela rapidez dos meios decomunicação, ligar a cobrar. Na gravação original (CD

, 1998), da primeira vez que é cantada, a letraacompanha-se apenas por violão; a seqüência de acordes criatensão e expectativa, como se faltasse um repouso harmônico,que só virá com o verso final, seguido do piano e de umavocalização em falsete do cantor. Este último verso é o único da

Em vez de invenção de um lugar totalmente outro, umadeslocação radical dentro de um mesmo lugar: o nosso. Adeslocação da ortopia para a heterotopia, do centro para amargem. O objetivo dessa deslocação é tornar possível umavisão telescópica do centro e, do mesmo passo, uma visãomicroscópica do que ele exclui para poder ser centro. Trata-se também de viver a fronteira da sociabilidade como formade sociabilidade. (SANTOS, 2000, p. 325)

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canção que dá voz à personagem; o discurso direto e oselementos musicais colaboram para produzir umaressemantização do signo América: afoita, me liga a cobrar: “éIracema da América”. Acabada a tensão provocada pelaharmonia, a personagem se encontra e a preposição “de” torna-se ambígua. Indica simultaneamente origem e pertencimento.Origem da chamada telefônica e de Iracema, e neste segundocaso, Iracema é de uma única América, lá e cá, globalizada.

Vera Follain Figueiredo acrescenta, num artigo em querevisita com o olhar contemporâneo os mitos românticos danacionalidade, que a Iracema de hoje, representada na cançãode Chico Buarque, já poderia estar contida na de ontem, a doromance de Alencar:

Iracema, a de Chico Buarque, é a prima pobre quehabita a América, uma antiga utopia, que ao longo de suarealização experimentou a divisão iníqua de suas riquezas,dividiu-se entre os do norte e nosotros, mas que hoje vai tendosuas fronteiras redesenhadas, e a América fica ainda maisdistante do sonho utópico de igualdade. Iracemas voam para aAmérica e novos severinos tentam o caminho contrário ao doêxodo rural, enquanto os grandes centros urbanos brasileirosameaçam explodir a em criminalidade e violência. Arepresentação de tais deslocamentos, além de falar da vocaçãoao nomadismo e ao individualismo, que alguns críticos apontamna pós-modernidade, são úteis por permitirem o mapeamentodas nossas heterotopias. Antes de saber aonde podemos chegar,indaguemo-nos sobre como nos deslocamos.

É curioso notar, por exemplo, que no Brasil, estachamada condição pós-moderna, não abole rígidos paradigmassocialistas como os do MST. Esta complexidade tempo-espacial,

Cabe perguntar [...] se esta, ao trair o segredo da Jurema, osegredo do sonho de sua tribo, sob o olhar nostálgico mascondescendente de Alencar, não teria dado o primeiro passopara se tornar estrangeira em sua própria terra, não teriacomeçado a exper iênc ia do desenca ixe , dodesenraizamento, necessária 'a marcha expansiva da culturaocidental, que veio a se completar com a mundialização dacultura e a globalização do mercado nos tempos atuais.[2000, p. 100]

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continua sendo inconciliável pelas posturas políticastecnocráticas e neo-liberais. Hoje, dez anos após a chacina deEldorado dos Carajás e quatro anos após o início do governo deLuiz Inácio Lula da Silva, os impasses sobre a apropriação daterrano Brasil continuam os mesmos. Notícias de invasões do MST oude ações armadas a mando dos latifundiários não deixaram dese estampar nas páginas dos jornais nos últimos anos, revelandoque ainda é tensa a questão agrária no Brasil.

Finalmente, entendemos que somente com acompreensão destas questões pelo viés da cultura,paralelamente ao conhecimento econômico e social quetradicionalmente formulam as leituras dos problemasbrasileiros, é que se pode chegar à compreensão dos espaços emque se fundem nuances mais subjetivas e contraditórias danação. O projeto Terra, objeto dos comentários que até agoratraçamos, é exemplo de como se pode manter viva a conexãoentre produção da cultura urbana – no caso a fotografia, amúsica popular – e a afirmação de valores ideológicos queproblematizam a relação de pertencimento entre o homembrasileiro e o seu lugar. Na perspectiva fotografada por SebastiãoSalgado e cantada por Chico Buarque, a Reforma Agrária não éapenas uma iniciativa socialista na contra-mão do mundoglobalizado, das agroindústrias e dos alimentos transgênicos,mas uma necessária reconciliação do Brasil consigo mesmo,através da qual poderá consolidar-se a certeza de que é o povoquem deve forjar seu Estado e governar-se.

Pelo que concluímos até aqui, essa noção depertencimento vai se construindo num lugar fronteiriço, duplo,semovente, diferentemente do que indica a lógica cartesiana eracionalista das ciências econômicas. O modelo urbano comoprincípio de modernidade, de desenvolvimento e de consumo,é apenas uma das faces do povo que constrói esta nação. Nacidade, perdido, Severino zanza daqui, zanza pra acolá,desenraizado, repete a história dos filhos da terra que aperderam. Na cidade, encontrando-se, Iracema fica entre lá ecá, canta mais uma canção do exílio. No mapeamento dessesdeslocamentos, não há dúvida de que nossa heterotopia é umentre-lugar. Resta-nos aprender a ocupá-lo.

Escola em assentamento pode ser um bom caminhopara este aprendizado, parece ser a forma de levar à frente

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antigo projeto de um visionário modernista, que citamos naepígrafe desse texto.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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A utopia antropofágica

A câmara clara.

Narrando a nação.

As cidades.

Terra.

Geografia da fome.

Alceu:

Casa grande e senzala.

Raízes do Brasil.

Realidades e ficções na trama fotográfica.

O que é o virtual?

Terra.

Pela mão de Alice:

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ANEXOSFigura 1

Foto de André Kertész - Nova Iorque, 1937Nuage Perdu,

Figura 2Sebastião Salgado: Velório das vítimas da chacina de

Eldorado dos Carajás

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Figura 3Sebastião Salgado: Chacina de Eldorado dos Carajás

Figura 4Sebastião Salgado. , 1983.Ceará

Figura 5Sebastião Salgado: . Sergipe, 1996.Escola em assentamento