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Shakespeare em Quixeramobim O Ceará vai à escolapt.braudel.org.br/publicacoes/braudel-papers/downloads/portugues/... · Vanessa agora trabalha como vendedora em uma loja de suprimentos

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Documento do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial Associado Fundao Armando Alvares Penteado - N. 50 2016

Shakespeare em Quixeramobim

O Cear vai escola

1. O nibus escolar

O Cear est empenhado numa das mais ambiciosas re-formas do ensino pblico na Amrica Latina. A crena no desenvolvimento humano e no valor do esforo me levou a visitar salas de aula e a entrevistar alunos, professores e gestores em todos os nveis do sistema de ensino, impres-sionado pelo surgimento de tantas pessoas talentosas, res-pondendo a oportunidades e metas claramente definidas. Ainda persistem incertezas, sujeitas s influncias polticas que determinaro o futuro desses esforos. No entanto, jovens resilientes j realizam novas conquistas. No futu-ro, muito vai depender da sua garra e persistncia. Neste ensaio vamos analisar as contingncias, cheias de desafios, que vo precisar de tempo, esforo e pacincia para serem superadas.

O Cear uma terra de plancies infrteis e vales resse-cados, animados s vezes por sbitas pancadas de chuva, aliviando brevemente o calor para logo secar de novo. A caatinga, coberta de arbustos secos, se ergue s antigas co-linas de granito do escudo pr-cambriano. O solo cido, formado por rochas cristalinas de origem vulcnica, des-gastado pela eroso e pelo sol intenso, por fortes pancadas de chuva e por sculos de pastagem para gado. Manchas frteis isoladas ainda resistem, onde em tempos passados crescia o algodo de fibra longa, que chegou a inspirar,

h pouco mais de um sculo, um surto de construo de ferrovias, at que ataques da praga do bicudo dizimaram as colheitas. O Cear uma terra de adversidade que, mais uma vez, seu povo procura superar. Passa por seu quinto ano consecutivo de seca, com falta dgua em vrias cida-des.

Abrigadas entre as colinas, beira de rios sazonais, h cidades e vilas. As cidades esto crescendo. So vilarejos que, comeando como postos isolados de troca, tornaram-se refgios das secas, da servido e dos bandidos, at final-mente consolidar sua vida poltica sob a influncia instvel do governo federal. Aps duas dcadas de governo militar (1964-1985), surgiu no Cear uma nova coalizo de foras polticas, acompanhando o renascimento da democracia e o abate da inflao crnica, que impulsionou esse Estado pobre e atrasado para uma nova era de modernizao. Um dos principais impulsos dessa modernizao a luta para avanar na escala e qualidade da educao.

* * *

Norman Gall

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Norman Gall diretor executivo do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial e editor de Braudel Papers. Fotos de Norman Gall.

Pesquisa patrocinada pela Fundao Ita Social e apoiada pela Secretaria da Educao do Cear

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O velho nibus escolar, barulhento e chacoalhante, inicia seu trajeto antes do amanhecer na vila de Paus Brancos, per-correndo estradas de terra para levar os alunos pelos 41 km at a cidade histri-ca de Quixeramobim.Quixeramobim fica no corao do serto, corruptela da pala-vra deserto, cunhada pelos colonizadores portugueses nos sculos 16 e 17, hoje chamado oficialmente de semirido, na classificao que descreve a ondulante re-gio que cobre a maior parte do Nordeste. As colinas de granito abarcam inmeras cavernas, escondendo imagens de animais e caadores, pintadas h milhares de anos por povos pr-histricos.

O barulho do ni-bus velho proclama um triunfo na sua coleta de cerca de 70 alunos de Paus Brancos e das vilas ao longo do caminho. Quando che-ga a Quixeramobim, deixa os estudantes na nova Escola Estadual de Ensino Profissiona-lizante Dr. Jos Alves da Silveira, uma obra-prima de arquitetura, que virou pro-jeto-padro. A Secretaria da Educao (SEDUC) replicou o projeto em 57 escolas profissionais do ensino mdio em pequenos e grandes municpios em todo o Cear como um smbolo para mostrar aos nove milhes de cearenses que a educao os levar a conquistar novos nveis de progresso e civilizao. Nas cidades do serto, as novas escolas se tornaram foco de orgulho cvico. Mais ainda, 48 escolas que j existiam foram adaptadas para atender os novos padres de ensino. Todas dispem de laboratrios bem equipados, 12 salas de aula com ar-condicionado, auditrios e bibliotecas que se alinham ao longo de corredo-res com cartazes e murais que exor-tam responsabilidade, protagonismo, aprendizagem, perseverana, conquistas, confiana. O currculo abrange tanto as matrias acadmicas tradicionais como cursos tcnicos, alm de est-gios de meio perodo em empresas

e hospitais. Os alunos se organizam ainda em pequenos grupos para ler e discutir clssicos da literatura mundial nos Crculos de Leitura, organizados e guiados pelo Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial.

Entre os estudantes esperando o nibus estava Vanessa Carmo, de 17 anos, que vibrava com entusiasmo quando anuncia que quer se tornar arquiteta. Sua famlia mudou-se para Paus Brancos h cinco anos, fugindo da violncia de Fortaleza, quando o pai perdeu o emprego. Tivemos sorte, porque meus pais tinham um peque-no negcio em casa, fazendo bolsas e

sandlias, disse Vanes-sa. Minha me cos-turava as bolsas e meu pai cortava e colava o couro para as sandlias, que ia vender na rua. Vanessa estudou em cinco diferentes esco-las de Fortaleza, todas longe de casa. Minha me teve sempre de esperar durante noites inteiras do lado de

fora das escolas para matricular a mim e minha irm. Meu pai ento decidiu que Fortaleza estava ficando uma cidade perigosa, e que seria me-lhor para todos nos mudarmos para Paus Brancos, onde temos parentes, e a vida mais fcil. Mame e papai agora trabalham em casa, fazendo al-mofadas e estofando sofs e cadeiras. Meu pai tambm faz pequenos servios de eletricista. Minha irm e eu estu-damos em perodo integral, das 7 da manh s 5 da tarde, na nova escola profissional de Quixeramobim, que me transformou numa Vanessa diferente. Acompanho aulas de construo, para me preparar para estudar arquitetura. Eu j lia revistas de arquitetura quan-do ainda estava no ensino fundamental e desenhava projetos e plantas para a nossa casa. J sabia bem o que queria como profisso, e comecei a pesquisar universidades e bolsas de estudo.

Passar num vestibular s um dos desafios enfrentados por estudantes am-

Vanessa Carmo, Quixeramobim

Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial

Associado Fundao Armando Alvares Penteado (FAAP)

Rua Cear, 2 01243-010So Paulo, SP

Tel.: 11 3824-9633e-mail: [email protected]

www.braudel.org.br

Copyright 2016 Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial

Braudel Papers publicado pelo Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial

ISSN: 1981-6502

Editor: Norman GallDesigner: Givanilson L. Ges

Assistentes de pesquisa: Felipe Lini e Nicolas Tavares

Conselho Diretor: Presidente: Rubens RicuperoPresidente: Eduardo Jos Bernini

Membros: Alex Bialer, Felipe Salto, Geraldo Coen, Gilberto Natalini, Idel Metzger, Jayme Garfinkel, John Henry Schulz, Jos Goldemberg, Luiz Eduardo Assis, Marcos Lisboa, Narcio Menezes, Peter T. Knight, Roberto Macedo e Roberto Teixeira da Costa.

Diretor executivo: Norman GallDiretor adjunto: Lourival SantAnnaAdministradora: Margarida Osrio Guimares

Patrocinadores:

Armnio Fraga Neto

BASF

Bradesco

Escola Beit Yaacov

Fundao Ita Social

Futurebrand

Ita

Jayme Garfinkel

O Estado de S. Paulo

Unilever

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biciosos. Vanessa ficou em sexto lugar no exame de admisso para o curso de arquitetura, mas no podia pagar a taxa de matrcula. Aps se formar no ensino mdio, ela entrou num concurso para um emprego na farmcia do novo hospital regional que o gover-no estadual estava construindo, o que lhe permitiria pagar as despesas universitrias. Mas o hospital ainda no abriu, pela falta dgua causada por quatro anos de seca. Vanessa agora trabalha como vendedora em uma loja de suprimentos mdicos em Quixeramobim, para onde vai diariamente de nibus escolar de Paus Brancos, enquanto estuda administrao em um curso distncia via internet.

Acontecem esforos heroicos, na maioria desconhe-cidos, alguns bem-sucedidos. Srgio Goes pilota uma moto 48 km por dia, ida e volta, por estradas de terra perigosas, saindo de sua casa na Vila Mel antes do amanhecer para estudar na escola profissional da cidade de Jucs. Um professor da sua vila falou a Srgio sobre a nova escola. Visitei a escola de Jucs enquanto trabalhava em uma construo, disse Sr-gio. Decidi na hora que era l que eu queria estu-dar e fui aceito. Srgio persistiu no curso apesar de um ensino fundamental fraco, precisando de aulas intensivas de reforo. difcil chegar quando chove, porque as estradas viram lama, conta ele.H 500 famlias na nossa vila. Eu sou o nico que vai a essa escola. Teve gente que me disse que eu no ia conseguir, que eu nem teria capacidade, mas minha me me estimulou. Depois quero estudar medicina. O corpo humano me fascina. No me interessam fama ou dinheiro. Quero ajudar as pessoas. O prefeito de Jucs, nascido na Vila Mel, achou um lugar na cida-de para hospedar Srgio e os outros alunos da roa.

Ruan Martins, 16 anos, sobe no nibus escolar de Paus Brancos na vila de So Miguel. Ele recebeu uma Bblia de presente do professor de catecismo. Aps l-la, de capa a capa, ele entrou na igreja pentecostal Assembleia de Deus. Ruan diz que sua famlia e os amigos eram contra sua ideia de estudar na escola profissionalizante de Quixeramobim. Porm ele insistia em estudar engenharia e, mais tarde, ir para uma universidade no exterior, com uma bolsa do programa do governo Cincia sem Fronteiras. Minha famlia insistia que eu ficasse em So Miguel, mas eu via que eles estavam estagnados, sem progredir na vida, diz Ruan. Passei todo o 9 ano estudando para entrar na escola profissional. Tudo o que eu queria era deixar a minha velha escola, onde faltavam laboratrios, uma biblioteca boa, com instrutores de esportes improvisando como professores de cincias. Os professores ensinavam pouco porque sabiam pouco. Nunca entendi porque pessoas to pouco preparadas escolhem trabalhar com educao. Eles usavam jogos

e brincadeiras s para manter a garotada ocupada. As crianas e jovens conversam o tempo todo na classe e nem prestam ateno nas aulas. Alis, a maioria deles nem quer estar na escola. So os pais que obrigam, para receber o dinheiro do Bolsa Famlia.

Josimar Saraiva, 49 anos, diretora da nova escola profissional de Quixeramobim, nasceu em Paus Brancos antes da chegada dos nibus escolares, quando ainda faltava energia eltrica e transporte pblico para ligar a vila cidade. Quando no chovia, era fome. Os lavradores entraram nas frentes de trabalho, organizados pelo governo, abrindo estradas e audes. Em 2016 Ruan foi aprovado no vestibular para entrar na prestigiosa Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Josimar cresceu numa casa de taipa. A luz eltrica chegou apenas em 1976. O primeiro transporte pblico para ir a Quixeramobim foi um caminho pau de arara, que comeou a rodar em 1985. Hoje h um servio de nibus regular para a cidade. H alguns meses a prefeitura de Quixeramobim instalou uma antena de Wi-Fi em Paus Brancos.

Vivi naquela casa de taipa durante 17 anos e varria o cho de terra da casa todos os dias, lembra Josimar. Meu pai caminhava, com baldes presos s costas, para trazer gua de uma nascente no sop da montanha prxima. Trabalhei no nosso pedao de terra com meus pais. Era muito curiosa: aprendi a ler quando tinha trs anos e comecei a estudar no primeiro ano primrio um ano depois, mas a professora me mandou de volta para casa logo no primeiro dia, porque eu estava vestida de vermelho e ela achou que eu devia ser comunista.Voltei no ano seguinte, mas a professora ficou brava comigo porque eu j sabia tudo o que ela estava ensinando. Ento ela me promoveu para o segundo ano, onde a professora era mais simptica. Terminei o terceiro ano em 1972, e o repeti por mais dois anos, porque eu queria ficar na escola e no havia quarto ano em Paus Brancos. Tive de esperar quatro anos para poder cursar o quarto ano, quando o Sindicato dos Trabalhadores Rurais criou uma nova escola. Meu padrinho era professor. Me deu livros que li naqueles anos, enquanto ganhava um dinheirinho costurando, fazendo bordados e croch. Em 1983, quando fiz 18 anos, eu pude fazer o quinto ano por um curso de TV que passava em outra vila, a seis quilmetros da nossa. Eu ia a p, saindo na madrugada. Dois anos mais tarde, comecei a trabalhar como professora, aps completar o ensino mdio por TV. Da, passei no curso de admisso para a universidade e fui estudar pedagogia, trabalhando ao mesmo tempo para prefei-tura.Trabalhei de bibliotecria. Assim pude ler todos os livros da biblioteca.

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2. Tecnologia do intelecto

A capacidade para ler e escrever textos coloca uma questo existencial no serto do Cear e em muitas ou-tras regies do Brasil. Qual seria o objetivo de alfabetizar a populao de cidades como Quixeramobim, onde no h jornais, livrarias, nem mesmo uma banca de revistas? O antroplogo Jack Goody chamou a difuso da alfabetiza-o ao longo dos sculos de uma mudana radical na tec-nologia do intelecto. Ler no uma atividade que ocorre naturalmente mente humana. Aprendemos a ler com um esforo concentrado no decorrer do tempo. Mas a leitura proporciona ao crebro a capacidade de lembrar e organi-zar informaes e experincias, compartilhadas por indiv-duos e comunidades de gerao para gerao, ampliando a escala e complexidade da atividade humana.

Ganhando mais impulso na dcada passada, os esforos para vencer o analfabetismo das populaes do Cear en-volvem o compromisso de que toda criana deve aprender a ler e escrever nos dois primeiros anos do ensino funda-mental. O PAIC do Cear (Programa de Alfabetizao na Idade Certa) foi adotado como poltica nacional pelo go-verno federal. O analfabetismo uma praga antiga nas es-colas pblicas brasileiras. Uma pesquisa nacional de 2009 mostrou que quase dois teros dos alunos do 5 ano ainda no sabiam ler. No Cear, a pesquisa de 2004 realizada em 48 municpios do estado, descobriu que 39% dos 8 mil alunos do 3 ano no sabiam ler, enquanto apenas 15% entendiam o que liam. Segundo a SEDUC do Cear, a porcentagem de municpios que mostram um ndice de leitura adequado dos estudantes subiu de 27% em 2007 para 99% em 2010. Um progresso assim poderia ser mi-lagroso, se verdadeiro, mas nossa pesquisa de campo cria dvidas. Os resultados oscilam muito, com sucessos espe-

taculares em algumas escolas, enquanto outras ficam atrs. Ainda assim, a maioria segue na direo certa. Os avanos so reais.

Um mensageiro desta fora misteriosa Maurcio Ho-landa Maia, 52 anos, um migrante que emergiu do ser-to, passando por muitos anos de esforo e aprendizagem, para se tornar Secretrio Municipal da Educao em So-bral (2002-2004) e, desde 2014, Secretrio da Educao do Estado do Cear. Nasceu num campo de construo do DNOCS (Departamento Nacional de Obras contra as Secas), que por mais de um sculo construiu a maioria das barragens e audes do Nordeste. Em sua carreira passou por muitos empregos, tornando-se, aps um longo per-odo, um protagonista na inovao da educao pblica. Precisamos fazer mais, diz Maurcio. Precisamos forta-lecer o currculo dos primeiros anos do ensino fundamen-tal, especialmente em cincia. Precisamos expandir o papel dos estudantes como protagonistas no ensino mdio, com maior acesso s universidades, com mais participao pol-tica nas suas comunidades. Precisamos criar uma escola de governana para treinar lderes. Tambm precisamos for-talecer o ensino e o aprendizado da sexta at a nona srie do ensino fundamental, que so muito fracos por todo o Brasil.

O Cear se tornou uma liderana nacional ao transfe-rir a responsabilidade, pelas escolas primrias, do governo estadual para os municpios. A municipalizao do ensino fundamental cresce no Brasil desde os anos 70. Em 2009, 77% das escolas do Cear j eram administradas pelos municpios, contra 56% de escolas em todo o Brasil. No suporte a esses esforos, novas equipes de assessoria e ad-ministrao operam, no Cear por meio de 20 CREDEs

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(Centros Regionais de Desenvolvimento da Educao), para reforar os sistemas locais. Os municpios recebem suporte financeiro e tcnico para aperfeioar o ensino e o aprendizado, passando por frequentes testes e avaliaes. Os municpios que mais melhoram o desempenho de suas escolas so premiados com mais dinheiro do governo es-tadual.

As novas escolas de ensino mdio profissional so uma inovao. Ainda que s 45 mil dos 380 mil alunos do ensi-no mdio no Cear estudem nas novas escola profissionais, esto abrindo novos caminhos. Muitos alunos do primeiro ano, vindos de escolas de baixo desem-penho, precisam de aulas de reforo em leitura, escrita e matemtica, para que es-tejam aptos a cumprir as tarefas do curso. As escolas selecionam os professores por meio de exames e entrevistas que mos-tram a personalidade e o domnio de sua matria do ensino. Os professores rece-bem salrios mais altos do que o padro, por um dia escolar mais longo, que vai das 7h da manh s 5 da tarde. As outras escolas pblicas funcionam em perodos de quatro horas para duas turmas de alu-nos uma das 7 s 11 da manh, outra da 1 s 5 horas da tarde. Desse tempo, menos de duas horas dirias so de-dicadas instruo em classe.Trs quartos dos alunos das escolas profissionais pblicas vm de escolas municipais; os demais se originam das escolas particulares de baixo custo numerosas nas comunidades pobres do Brasil inteiro e de muitos outros pases em desenvolvimento. O foco das novas escolas o aprendizado e a expanso dos horizontes dos jovens. As novas escolas do ensino mdio profissional representam uma conquista que agora enfrenta desafios de continuidade e de consolidao institucional, para atingir padres mais elevados de ensino e aprendizagem.

Em 2007, o governo federal lanou um novo progra-ma, o Brasil Profissionalizado, apoiando os estados a ex-pandir as redes de educao tcnica, disse Andra Arajo Rocha, que supervisionou a criao do novo sistema esco-lar no ensino mdio. No Cear, no tivemos programas escolares desse tipo. Poucos modelos serviam para ns. En-contrar professores que garantissem qualidade era, e ainda , o maior desafio, especialmente nos cursos vocacionais nos pequenos municpios. Surgiram cimes nas equipes das escolas regulares, devido as verbas e a ateno dada s novas escolas, criando diferenas enormes e um desafio para ns em produzir resultados.

As escolas profissionais cearenses de ensino mdio pare-cem, em certos aspectos, s Pequenas Escolas de Escolha criadas em 2001 pela Cidade de Nova York. Ambas ensi-nam cerca de 400 alunos em cada escola, com taxas de for-mao muito mais altas do que as escolas regulares. Tanto as escolas do Cear como as de Nova York estimulam os

alunos a entrar nas universidades. O tamanho reduzido das turmas permite aos professores conhecer bem cada aluno, e possibilita diretoria monitorar a qualidade do ensino. As escolas de Nova York escolhem os alunos por sorteio, enquanto no Cear so selecionados segundo as notas no ensino fundamental. Enquanto no Cear as escolas dis-pem de novos prdios espetaculares, as pequenas escolas de Nova Iorque esto instaladas em um s andar, ou parte de um andar, de velhos edifcios que abrigavam at 3 mil alunos. Enquanto o custo por aluno nas pequenas escolas de Nova York e do Cear maior que nas escolas regulares,

o custo por aluno formado menor, por-que formam mais estudantes.

Bandeiras e faixas nas ruas Num evangelismo educacional, os alu-

nos das regies rurais so encorajados, e at pressionados, a prestar os exames para entrar na universidade. O nmero de formados nas escolas pblicas do Cear que passaram no ENEM (Exame Nacio-nal do Ensino Mdio) subiu de 700 em 2011 para 2.520 em 2013. Em 2014, os cearenses ficaram em segundo lugar, entre

os estados, em notas no ENEM. Com notas altas, cen-tenas de cearenses entraram nas universidades federais de estados vizinhos, morando em residncias universitrias, pagas pelo governo federal. Em muitas cidades pequenas do serto, bandeiras e faixas nas ruas festejam com nomes e fotos dos aprovados. As rdios locais anunciam os vence-dores com orgulho. Por que tanto entusiasmo? a falta de outras oportunidades, diz Aline Jac, lder estudantil do municpio de Iguatu, que agora estuda Direito com uma bolsa na Universidade Catlica de So Paulo. Ou voc entra na universidade ou volta para a roa, diz ela, ou entra na massa de jovens que trabalham por baixos salrios nas fbricas de calados e roupas em pequenas ci-dades do serto.

Apesar das novas oportunidades na educao, os es-tudantes lutam contra tendncias adversas. Enquanto as matrculas em universidades dobraram na ltima dcada, somente um em cada sete estudantes chega a se formar. Apesar da criao de 18 novas universidades federais no Brasil, com novos cursos universitrios nas pequenas cida-des do serto cearense, faltam bibliotecas em muitas des-sas, que enfrentam greves de funcionrios e faltas frequen-tes de professores, deixando os alunos sem aula.

Nos recentes anos, a infraestrutura escolar no Cear teve um desenvolvimento excepcional. As escolas rurais sem gua encanada, banheiros e energia eltrica desapareceram do serto. A maioria delas tem, agora, conexo rede de internet, laboratrios de informtica e equipamento au-diovisual. Em Quixeramobim, a vila de Paus Brancos ga-nhou uma nova escola primria de projeto inovador, para

Maurcio Holanda Maia, Secretrio da Educao

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substituir a antiga onde, h muitos anos, Josimar Saraiva estudou apenas at o terceiro ano.

Uma escola de ensino mdio foi aberta este ano na vila vizinha de So Miguel, com um anfiteatro de estilo grego. Sua jovem diretora, Francisca Edna Carlos, comeou a le-cionar em uma escola rural quando tinha apenas 14 anos de idade. Eu dava aula no primeiro ano, ensinando as crianas a ler e escrever, contou Edna. Eu tinha crianas de diferentes idades e diferentes nveis de aprendizado fa-zendo exerccios diferentes. Vrios dos mais velhos tiveram de repetir o ano mais de uma vez. Havia at um surdo-mu-do na classe, com quem eu no conseguia me comunicar de jeito nenhum. Seus amigos, que o entendiam melhor, avisavam quando ele queria ir ao banheiro. Era uma tarefa dura para uma professora de 14 anos, mas eu me apaixonei por ensinar. Educao redeno. Quase todos os meus alunos so filhos da roa. Precisamos in-cutir neles o desejo de ir alm das suas limitaes.

Em toda a Amrica Latina, a tarefa de organizar e financiar essas iniciativas con-tinua a ser um grande desafio, parecido com a descrio feita h meio sculo pelo historiador da Amrica Latina Frank Tan-nenbaum, da Universidade Columbia.

O governo precisa fundar, construir, alugar ou se apropriar de escolas para os 50% - ou mais - das populaes que no dispem delas. Precisa, tambm, encontrar, educar e convocar, a fim de dobrar, o nmero de professores hoje existentes e contrat-los, inscrevendo-os nas folhas de paga-mento. Precisa ainda imprimir o dobro de livros e cader-nos e fabricar o dobro de lpis e lousas. Precisa dobrar o nmero de inspetores escolares, bibliotecrios, funcionrios, supervisores, e escolas de treinamento de professores. E tem de fazer isso, e muito mais, com a maior urgncia.

Ildevan Alencar, secretrio-executivo da SEDUC, en-carou o desafio de melhorar a infraestrutura das escolas cearenses. Ele agora dirige o Fundo Nacional para o De-senvolvimento Educacional (FNDE) em Braslia, que ten-ta melhorar a infraestrutura das escolas de todos os muni-cpios e estados. Ildevan descreve o seu trabalho no Cear:

Eu era um auditor-fiscal emprestado do Tesouro Estadual desde 2007. Supervisiono a construo e reforma das esco-las, a compra de equipamentos, de carteiras a bebedouros, e a contratao de empresas particulares para os servios de segurana e de lanchonetes. Muito disso envolve dinheiro do governo federal. Em anos mais recentes, gastamos dez vezes mais que em pocas anteriores. No passado, tnhamos ape-nas trs engenheiros para cuidar de 700 escolas, enquanto agora empregamos 39. Quero ver o trabalho sendo feito.

Assim, instalei cmeras de segurana em cada projeto de construo. As imagens so transmitidas diretamente para o meu laptop, em tempo real. Tambm instruo meu pessoal, ao ir para um projeto, a me enviar fotos a cada 15 dias. Temos 184 municpios no Cear, incluindo 300 distritos rurais. Quando comeamos, em 2007, encontramos uma escola no distrito rural de Santa Quitria, que funcionava em uma delegacia. Outras funcionavam em uma clnica de sade pblica e numa casa paroquial. Agora temos algu-mas escolas rurais at mais bonitas do que as das cidades.

A SEDUC est empenhada em trs linhas de ao. A pri-meira o ensino mdio, onde o governo estadual opera 668 escolas, com 500 mil alunos. A segunda a cooperao com os municpios no ensino fundamental. Antes de 2007, essa cooperao se resumia ao apoio fsico, como no servio de

nibus. Mas esse apoio se expandiu muito, para sustentar e aconselhar o PAIC, para que todas as crianas soubessem ler e escrever ao final do segundo ano. E a terceira linha de ao envolve as escolas profissionais de ensino mdio realizao totalmente nova.

Nosso projeto era criar um novo tipo de construes para as escolas profissionais. En-contramos um projeto arquitetnico esque-mtico, jamais realizado, para uma escola tcnica no estado do Rio Grande do Nor-te. Conseguimos permisso do MEC para

adaptar o projeto para uso no Cear. O MEC pagou a construo de 20 dessas novas escolas, e o nosso governo do estado construiu mais 32 com nosso prprio dinheiro. O MEC ficou to satisfeito com o resultado que financiou a construo de mais 24 escolas profissionais. Batizou o projeto oficialmente como Padro MEC para aplicao em todo o Brasil. Mas apenas trs dessas escolas foram constru-das em outros estados.

O nibus escolar vai a Paus Brancos todas as manhs graas ao programa do governo federal Caminhos da Es-cola, que desde 2007 doou 12 mil nibus, 674 barcos e 6.400 bicicletas para transporte de alunos rurais em trs quartos dos 5.570 municpios brasileiros. Este um dos vrios programas federais para construo de escolas, me-renda escolar, horas extras de aula e ensino para crianas com necessidades especiais, e pagamento para salrios e treinamento de professores. Em outro programa federal, alunos graduados por escolas pblicas qualificadas rece-bem bolsas de estudo para cursar universidades particula-res. Na dcada passada, o custo para o governo federal com esses programas, em termos reais, aumentou cinco vezes.

Apesar dessas iniciativas, muitas delas novas, o desem-penho das escolas e alunos brasileiros continua em geral baixo. Eles enfrentam problemas de escala, desorganiza-

Josimar Saraiva, diretora

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o e motivao, com as responsabilidades dispersas entre os nveis de governo local, estadual e federal, o que deixa as autoridades polticas indecisas ao se depararem com a questo se a finalidade principal do ensino pblico seria ensinar crianas ou dar trabalho para adultos. Ainda as-sim, a vergonha e a ansiedade provocadas pelos fracassos do Brasil no ensino pblico levaram os governantes a pro-messas exorbitantes. Prometeram aplicar na educao os lucros provenientes das descobertas de jazidas gigantescas de petrleo, sob as guas profundas do Atlntico Sul. Os polticos tambm falavam em aumentar os investimentos nas escolas e universidades para 10% do PIB, nvel poucas vezes alcanado na histria mundial do desenvolvimento da educao. No entanto, a Petrobrs foi quebrada por um dos maiores escndalos de corrupo dos tempos moder-nos, com sua produo estagnada e bilhes de dlares rou-bados por polticos e construtoras. Mergulhado agora em uma grave crise fiscal, o Brasil est cortando os gastos com a educao. Os fundos federais no so transferidos, for-ando os municpios a encurtar o ano escolar, demitir pro-fessores e negligenciar a manuteno e reparos nas escolas.

As escolas municipais formam o ncleo do sistema de ensino pblico, absorvendo 55% das matrculas primrias, com o ensino mdio designado pela Constituio como esfera dos estados. Especial-mente nos municpios menores, os prefeitos e vereadores exploram as es-colas como fonte principal de apadri-nhamento poltico com a contratao de professores, zeladores, seguranas e pessoal de limpeza e da merenda.

Esse foi o desafio de Antnio Amaury Ori Fernandes, 60 anos, at recentemente secretrio municipal de educa-o de Quixeramobim. Amaury professor universitrio com doutorado em criao animal pela Universidade Esta-dual de Oklahoma. Foi nomeado pelo prefeito para man-ter a paz entre polticos que brigam por acesso ao ora-mento da educao. Ns temos trs problemas bsicos, contou Amaury. O primeiro a presso poltica dos vere-adores, que querem indicar pessoas no qualificadas como diretores das escolas. O segundo o oramento. Gasta-mos 45 milhes de reais anualmente para manter 15 mil alunos e mil professores em 80 escolas municipais, num gasto mdio de 3 mil reais por aluno. Dois teros desse di-nheiro vem do governo federal, pagando o salrio de todos os professores, alm de 8 milhes de reais gastos com os nibus e os 6 milhes para merenda dos alunos. O terceiro problema que no podemos fechar escolas quase vazias porque as matrculas caram pela metade, por causa das migraes e quedas nas taxas de nascimentos. Temos 30 es-colas em 15 colnias de reforma agrria com menos de 50 alunos em cada uma, ocupando uma ou duas salas de aula. Tentamos transferi-los para escolas maiores, com melhor

infraestrutura e melhor ensino, mas as famlias resistem, dizendo que ter uma escola d prestgio comunidade. O PAIC mostra pouco progresso e precisa ser aperfeioado. As novas escolas profissionais so bonitas, mas vamos ver o que acontece com elas depois das prximas eleies.

As escolas de Quixeramobim esto na mdia nas avalia-es estadual e nacional, segundo os testes padronizados, ficando no tero superior entre todos os municpios brasi-leiros na recente avaliao de oportunidades educacionais. Nas dcadas recentes, a pobreza extrema reduziu muito. A parcela que vivia com renda mensal inferior a R$140 caiu de 82% da populao de Quixeramobim em 1991 para 38% em 2010, graas principalmente s transferncias fi-nanceiras do governo federal. Tambm o apoio federal na educao permitiu que a porcentagem de adultos que ter-minaram o ensino fundamental subisse de 11% em 1991 para 40% em 2010, enquanto o nmero de jovens de 18 a 20 anos que terminaram o ensino mdio aumentou de apenas 2% em 1991 para 35% em 2010.

Uma das surpresas nas eleies para presidente e gover-nadores de outubro de 2014 foi a vitria da chapa apoiada pelo governador anterior, Cid Gomes (2007-14), enge-

nheiro civil e um dos poucos lderes brasileiros de sua gerao a levantar a bandeira da reforma da educao como sua principal causa. Como prefeito de Sobral (1997-2004), Cid realizou uma das reformas de escolas municipais de maior sucesso do pas. Durante seus oito anos como gover-nador, aplicou a mesma estratgia de reforma no estado, encerrando seus

dois mandatos com aprovao de 80%.Impedido pela Constituio de concorrer a um terceiro

mandato, Cid criou alianas para eleger seu sucessor, esco-lhido a dedo. Apoiado por uma coalizo de 18 partidos, o candidato de Cid, Camilo Santana, jovem e pouco co-nhecido legislador estadual, veio de um ltimo lugar nas pesquisas para vencer por larga maioria nas cidades onde o estado havia construdo as novas escolas profissionali-zantes. A candidata a vice-governadora, Izolda Cela, foi a secretria de educao de Cid. A presidente Dilma Rous-seff conquistou a reeleio por estreita margem, graas grande votao no Nordeste, incluindo 81% dos votos em Quixeramobim e 77% no Cear, ajudada pelos aumentos nas transferncias financeiras para pessoas e governos locais nos anos recentes. A renda per capita no Cear continua abaixo do salrio mnimo nacional, que, nos ltimos anos, subiu muito mais depressa do que a inflao e o crescimen-to econmico. O perfil de educao do eleitorado conta sua prpria histria: 64% dos eleitores do Cear e 58% do total do Cear jamais terminaram o ensino fundamental. Ainda assim, entre os adultos jovens de 18 a 29 anos, o nvel de escolaridade no Cear praticamente dobrou, che-

Ptria Educadora:sete ministros da Educao

em cinco anos

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gando a 9,4 anos nas duas dcadas passadas, mdia que engloba uma variedade de iniciativas e experincias.

Nos ltimos cinco anos, a poltica perturbada hos-pedou sete ministros da Educao. Cid Gomes foi, por pouco tempo, ministro da Educao no novo governo de Dilma Rousseff, que foi reeleita em 2014. Cid foi nomeado em reconhecimento por seu apoio a campa-nha de Dilma e pelo prestgio conquistado com suas reformas escolares como prefeito de Sobral e como go-vernador do Cear. No seu discurso de posse, Dilma proclamou que o Brasil se tornaria uma Ptria Educa-dora, com o desenvolvimento da educao a principal bandeira poltica dos prximos anos. Junto com o resto da populao, Cid ficou surpreso com o anncio da Ptria Educadora. Ele sabia que o governo federal estava sem dinheiro, graas a gastana que atingiu seu auge em 2014. No entanto, Cid mergulhou em seu novo cargo, cheio de planos, mas ele durou apenas 10 se-manas que terminaram num espetculo de controvrsia e recriminao.

Cid um fumante compulsivo, de pavio curto, dado a surtos de ironia cida. Cid provocou sua demisso como ministro da Educao ao dizer, numa reunio em Belm do Par, que a Cmara dos Deputados em Braslia abriga cerca de 300 a 400 achacadores. O presidente da Cmara, Eduardo Cunha, cobrou o in-sulto, repetido por Cid numa sesso dos Deputados, exigindo presidente Dilma a demisso de Cid, que Cunha anunciou durante a sesso enquanto Cid con-tinuava trocando insultos com Cunha. A sada de Cid deixou a Ptria Educadoraem frangalhos, apesar de continuar como pea central da propaganda oficial.

Antes de sua sada, Cid aumentou o salrio dos professores, seguindo o Plano Nacional de Educao aprovado pelo Congresso. Ele tambm props um exa-me nacional de certificao de professores, apesar da oposio dos sindicatos s avaliaes. Desde que os estados e municpios tm problemas organizando testes

de qualificao, periodicamente o ministrio da edu-cao pode fazer isso por eles em grande escala numa base voluntria, autorizando estados e municpios a usar estas avaliaes como um registro nacional de profes-sores competentes, diz Cid. Proponho tambm um teste de qualificao nacional para diretores, que seria mais barato, j que existem 2,1 milhes de professores no Brasil mas poucos diretores.

Cid props utilizar internet para realizar o ENEM, que serve de vestibular para entrar em muitas univer-sidades. O ENEM examina cinco reas: escrita, lin-guagens, matemtica, cincias da natureza e cincias humanas, diz Cid. Se ns tivssemos um banco de dados de perguntas para estas reas, exceto para a escrita, checada e aprovada por painis de peritos, isso poderia se tornar uma estrutura para a preparao do estudante para o ENEM. Este seria o primeiro passo. O segundo seria, ao invs de organizar uma mobilizao em grande escala para dar o mesmo exame na mesma hora em todo o Brasil, poderamos criar salas seguras para provas com computadores onde os estudantes poderiam fazer o ENEM sem limite de tempo. Como as perguntas viriam aleatoriamente de um banco de dados, o estudante e a pessoa sentada ao seu lado fariam provas diferentes.

Durante o ano de 2015, as promessas extravagan-tes sobre educao sofreram choques de realidade, com drsticos cortes de oramento em meio desordem fis-cal, escndalos de corrupo e o aumento da inflao e do desemprego. Cid e Dilma foram culpados pelo excesso de criatividade na contabilidade pblica. As autoridades de educao do Cear lutaram para pagar os salrios dos professores, dependendo das transfern-cias federais reduzidas. Esta confuso testa a vontade deles para melhorar a qualidade da educao bsica. O papel fundamental do governo federal no desenvol-vimento e sustentao do ensino pblico e privado no Brasil, em todos seus nveis, ser examinado numa edi-o futura de Braudel Papers.

3. Shakespeare em Quixeramobim

O povoado de Quixeramobim surgiu h cerca de 300 anos, no cruzamento de caminhos de rebanhos que se-guiam os leitos de rios sazonais at chegar a vilas da costa que produziam charque que era enviado s distantes fa-zendas de cana e minas de ouro que, naqueles dias, im-pulsionavam o desenvolvimento econmico do Brasil. Os caminhos do gado acabaram transformados em rotas para trens de mulas, espalhando pelo serto diversos negcios que apressaram a criao de comunidades. Pousadas, ta-bernas, lojas rsticas e capelinhas cresceram ao longo des-ses caminhos, especialmente nos cruzamentos, criando os incipientes ncleos da vida urbana.

Quixeramobim, hoje, um municpio em expanso, com uma populao de 77 mil habitantes, metade dos quais vivem em locais urbanos. Jegues e motocicletas se cruzam nas ruas caladas de pedras, onde se alinham rvo-res de accia. Postos de gasolina, motis, bares e cantinas, lojas para a venda de material de construo e suprimentos para as fazendas enchem os dois lados da estrada dando acesso a cidade. No faz muito tempo, o Cear era co-nhecido como terra de anes, porque o povo era desnu-trido, lembra o prefeito Cirilo Pimenta. Agora, seis mil habitantes do municpio recebem aposentadorias, 3.500 so empregados pblicos e 11 mil famlias recebem men-

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salmente os pagamentos do programa Bolsa-Famlia. Pra-ticamente todos os alunos de escolas pblicas no Cear so de famlias de baixa renda, o que as qualifica para receber esse auxlio.

At a chegada da crise poltico-fiscal, Quixeramobim e outras cidades do serto gozaram de uma prosperidade sem precedentes, com nveis recorde de emprego, concen-trados na faixa de empregos de baixa qualificao, na rea do governo, de servio, varejo, e nas fbricas de roupas e sapatos, isentas de impostos. O salrio mnimo brasileiro duplicou, em termos reais, des-de 1999, e o gasto per capita de cada famlia aumentou 18% de 2003 a 2009. Taxas decrescen-tes de natalidade e a amplia-o do ensino para os jovens tambm ajudaram a reduzir a desigualdade. Mesmo as fam-lias mais pobres esto gastando mais, em telefones celulares, remdios, produtos de beleza, aparelhos domsticos e moto-cicletas, graas a uma expanso do crdito no pas, que come-ou a encolher nos ltimos meses de 2014. A ampliao da educao gerou quase 20% do aumento dos salrios para os trabalhadores das famlias mais pobres, observou Narcio Menezes Filho, analista de polticas sociais. A maior criao de empregos foi na rea dos que recebiam at dois salrios mnimos por ms. Para criar empregos de maior qualificao, precisamos melho-rar a qualidade da educao, a fim de que as empresas pos-sam inovar e depender menos dos favores do governo. As dvidas sobre uma continuidade do fluxo de dinheiro do governo federal para as cidades do serto nos atuais nveis gera um sentimento de fragilidade nas pessoas, apesar dos claros sinais de melhoramento econmico.

Nos tempos antigos, Quixeramobim foi uma das pou-cas vilas do serto com uma escola primria. Em 1845, s 30 escolas de ensino fundamental funcionaram no Cear, com apenas 1.332 alunos. Um desses alunos de Quixera-mobim era Antonio Vicente Mendes Maciel (1830-97), que mais tarde ficou famoso como o pregador itinerante Antonio Conselheiro, lder de milhares de sertanejos que criaram uma Nova Jerusalm, em Canudos, no serto da Bahia. Com receio de uma revolta popular, o governo da nova Repblica enviou o exrcito para massacrar Antonio Conselheiro e seus fiis, em 1897, aps trs tentativas fra-cassadas de conquistar Canudos, cuja populao cada vez maior de devotos estava causando falta de mo de obra na Bahia. Essa histria foi contada no livro Os Sertes, de Euclides da Cunha, engenheiro militar que foi reprter da guerra de Canudos, fazendo de Antonio Conselheiro

um heri-mrtir da literatura brasileira numa histria con-tada e recontada em romances, contos, poemas e filmes. Quixeramobim reforou seu legado histrico nos anos re-centes, celebrando a epopeia de Conselheiro num festival anual. Numa rua comercial da cidade, surge o esqueleto do monumento ao heri local, com as paredes decoradas com baixos relevos ilustrando cenas de Canudos. Disputas polticas locais e falta de verba deixaram o memorial de Antonio Conselheiro inacabado.

O esprito de William Shakespeare, silencioso e invisvel, entrou na velha casa do Conse-lheiro na praa de Quixeramo-bim. Os alunos da nova escola profissional sentam no cho da casa, formando um Crculo de Leitura para ler em voz alta uma traduo em portugus de Macbeth. Depois eles assistiram ao filme de Orson Welles, de 1948, e a seguir um DVD da pera de Verdi. Os alunos en-cenaram a pea no auditrio da escola, vestidos com trajes me-dievais improvisados. Mais tar-de, falaram de um projeto mais ambicioso uma adaptao de Macbeth em cenas e trajes que

narrariam as guerras de cls do serto. Na adaptao, o Rei Duncan seria o prefeito da cidade, mandando at ser as-sassinado. Os nobres seriam os fazendeiros, e os soldados, os capangas. As feiticeiras surgiriam dos arbustos secos e torcidos da caatinga, em vez de sair da nvoa gelada das plancies da Esccia, para gritar suas profecias enganosas.

A questo da legitimidade poltica impregna todas as tragdias de Shakespeare, assim como os conflitos no Ce-ar. As guerras de cls do Cear so de um gnero que Shakespeare conhecia bem e narrou em Macbeth, Jlio Csar e Rei Lear, e nas histrias da Guerra das Rosas, seis sculos antes na Inglaterra, entre os cls de York e Lan-caster. Na Verona de Romeu e Julieta, bem como em ou-tras cidades italianas da Renascena, as brigas entre cls rivais eram to brutais e sanguinrias que as autoridades municipais cediam poderes de governo a nobres de outras cidades um podest, que em geral governava por apenas seis meses, acompanhado por quatro juzes e 24 cavaleiros que ele trazia. Para preservar sua imparcialidade entre as faces rivais, o podest era proibido de comer ou beber na companhia de cidados locais.

Os frgeis municpios do serto no podem se dar ao luxo de contratar um podest. Precisavam confiar nas duas foras policiais estaduais, que raramente cooperavam entre si. A Polcia Militar deve manter a ordem pblica, enquan-to a Polcia Civil faz investigaes. E a rivalidade entre as duas foras policiais to acirrada que os governadores fre-

Retrato em xilogravura de Antonio Conselheiro

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quentemente nomeiam seu prprio podest, um delegado da Polcia Federal vindo de fora do Estado, encarregado de manter a ordem e conseguir cooperao entre as duas polcias.

A violncia aumentou no serto medida em que se-cas sucessivas reduziam os rebanhos e donos de terras mo-bilizavam seus bandos de pees e jagunos em disputas envolvendo rivalidades polticas, roubo de gado, conflitos sobre terras, acesso gua e defesa da honra familiar. Cam-poneses sem terra andavam sem rumo, pedindo comida, trabalho ou um lugar para morar. No meio dessa confuso, bandidagem e movimentos religiosos milenrios emergi-ram como foras poderosas, chefiados por assaltantes e pregadores legendrios.

Na ltima dcada, o nmero de assassinatos a bala no Cear cresceu quase quatro vezes, com dois teros das vti-mas sendo homens jovens entre 15 e 29 anos. Esse auge de matanas fez do Cear o segundo estado mais violento do Brasil, com 45 homicdios por 100 mil habitantes, cinco vezes maior que a taxa mundial de homicdios, estimada pela Organizao Mundial de Sade em 8,8 por 100 mil pessoas.

Cidades grandes com altas taxas de homicdio so sem-pre mais pobres em ensino e aprendizagem, com dificul-dades na gesto da escala de seus desafios. A rea metro-politana de Juazeiro do Norte (populao: 450 mil) um emprio de turismo religioso e de comrcio, com alta ren-da per capita, criadouro da violncia e dos escndalos de corrupo, com baixos nveis de aprendizagem nas esco-las. O exemplo mais flagrante dessa distoro Fortaleza, com 2,6 milhes de habitantes e desigualdades extremas de renda pessoal. O desempenho de Fortaleza no campo da educao est entre os 40% mais baixos de todos os municpios brasileiros. O nmero de assassinatos triplicou

desde 2004, elevando a taxa de homicdios para 79 por 100 mil, quase todos por arma de fogo, a mais alta entre as grandes cidades brasileiras.

Os padres de violncia no serto so desiguais. Alguns municpios so tranquilos, enquanto outros so cronica-mente traumticos, sofrendo conflitos polticos e ativida-des de gangues criminosas. Uma reportagem de Leonncio Nossa, do jornal O Estado de S. Paulo, documentou 1.133 assassinatos polticos no Brasil de 1979 a 2012, a maio-ria deles (638) no Nordeste, crescendo nos anos recentes, com picos durante as campanhas eleitorais municipais. Os municpios so as unidades bsicas da poltica, movidos a favores e coero, especialmente nas comunidades mais pobres que pouco produzem alm de votos. As autoridades federais e estaduais mostram pouco interesse em controlar a violncia nesses municpios, cujos prefeitos desempe-nham importantes papis nas redes de alianas polticas.

O aumento dos homicdios no Cear, e no Nordeste em geral, choca com a tendncia que, ao longo dos sculos, re-duziu a violncia civil nas sociedades complexas. Nos 800 anos passados, os homicdios na Europa Ocidental, por exemplo, caram de 80 por cada 100 mil habitantes mais do que em El Salvador e na Venezuela de hoje , para os nveis atuais, mais civilizados, cerca de uma ou duas mor-tes por 100 mil.

As lies de Shakespeare sobre legitimidade pol-tica e violncia so relevantes ao futuro da educao no Cear, que depende da melhoria da ordem pbli-ca. Embora os governos estaduais do Cear tenham investido na educao, o problema da violncia foi negligenciado. A educao precisa de mais estabilida-de institucional para se desenvolver, ampliando os n-veis de confiana e produtividade. Este o desafio para os prximos anos.

Se chamam Gaivotas. Os participantes nos Crculos de Leitura vm de todo o Cear. Vm desde Camocim e Forta-leza no litoral, das serras de So Benedito e dos sertes de Crates, Quixeramobim e Juazeiro do Norte. Alunos do ensi-no mdio se identificam com o personagem Ferno Capelo Gaivota. Transmitem para outros jovens a paixo para saber mais com a leitura dos clssicos.

Muitas gaivotas aprendem a voar mais alto nas esco-las pblicas do Cear. Nos Crculos de Leitura, seguimos a gaivota-hroi da histria de Richard Bach: Ferno Capelo Gaivota. Nasceu num bando de aves que viviam de restos. Banido por voar alto demais, ele volta para ensinar tudo o que aprendeu. A histria de Ferno se tornou o texto favo-rito dos Crculos de Leitura no Cear, em que os alunos em

grupos leem em voz alta, numa discusso animada por am-bio, curiosidade e pacincia, na qual estudantes de alto potencial se revelam nas pequenas cidades do serto. Os Crculos de Leitura tentam superar nas escolas o que o fil-sofo Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educao, chama de a maldio da falta de curiosidade, diligncia e zelo, que limita o futuro de muitos jovens.

Uma inovao. Original e simplesComo explica o embaixador Rubens Ricupero, ex-ministro

da Fazenda do Brasil e presidente do Instituto Braudel, os Crculos de Leitura so uma inovao na educao, tanto original como simples, envolvendo os jovens no como indi-vduos, mas como comunidade, transmitindo conhecimento

As Gaivotas do CearMaria Aparecida Lamas

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do jeito mais antigo, atravs de histrias e textos lidos em voz alta; no qualquer texto, mas sim os clssicos. Eles no so apenas para especialistas, mas para todos ns. No so difceis, mas simples e ricos em sabedoria, e a melhor lei-tura para os jovens no isoladamente, mas em pequenos grupos, ouvindo, perguntando e discutindo o significado dos trechos, prestando ateno aos gestos e entonaes, apren-dendo a respeitar um ao outro e ajudar a eles mesmos se reinventarem.

Fruto de uma parceria inicialmente firmada entre a Se-cretaria de Educao do Estado do Cear (SEDUC) e o Insti-tuto Fernand Braudel, o Programa Crculos de Leitura est presente no Estado do Cear desde 2012.

O Crculos de Leitura foi criado por Catalina Pags, fil-sofa e psicanalista. Nos grupos, os jovens so apresentados literatura universal, ao mesmo tempo em que so prepa-rados para repassar esse conhecimento para outros jovens. De uma forma espontnea e prazerosa os jovens descobrem o gosto pela leitura, discutindo e refletindo em grupo. Nesse exerccio de pensar e dialogar, a partir da leitura de grandes obras, so desenvolvidos valores que apontam para uma viso solidria, responsvel e transformadora, e assim so descobertos, entre os participantes, jovens com perfil para se tornarem futuras lideranas.

Leem juntos a Odisseia, peas de Shakespeare como Otelo e Romeu e Julieta, os contos e romances de Dickens, Dostoivsky e Garca Mrquez, alm de Machado de Assis, Guimares Rosa e Graciliano Ramos.

Bianca Melo, aluna da Escola Profissional Rita Matos Luna, de Jucs, fala sobre seu trabalho como multiplicadora: No grupo, todos leem e ficam vontade para falar, o que no acontece muito na sala de aula. Nos grupos criamos um vnculo muito forte entre ns e com os livros. Todos se ou-vem e respeitam a opinio dos outros.

O programa comeou em 21 escolas de tempo integral em 2012. No final de 2013, quando acompanhava uma formao intensiva com jovens e professores, o secretrio Maurcio Holanda, da Educao, foi abordado por um gru-po de multiplicadores que lhe expuseram o desejo de levar os Crculos de Leitura tambm para as escolas regulares. Os jovens falavam entusiasmados sobre a sua vivncia nos Cr-culos. Contaram dos avanos alcanados na leitura e escrita, fortalecendo a autoestima. Diziam que os Crculos precisam ser levados tambm as escolas regulares.

A partir de 2014, as escolas profissionalizantes veteranas escolheram um colgio regular prximo para multiplicar os Crculos, e 15 escolas regulares foram incorporadas. Ofere-ceu aos jovens mais uma oportunidade de desenvolverem o protagonismo e o potencial de liderana. Os Gaivotas cres-cerem em nmeros e habilidades. Hoje atuam em 52 esco-las, em 34 cidades, com 7 mil alunos participando. Os jovens do Cear tm vencido as barreiras econmicas e geogrficas e esto escrevendo uma pgina nova na histria da evolu-o social.

Como coordenadora pedaggica, acompanho os jovens veteranos, formando as equipes que iniciam e monito-ram os Crculos em novas escolas. Vamos at cidades mais afastadas onde o acesso difcil. s vezes, chegamos a fi-car mais de 3 horas esperando por um transporte, em um

ponto sem abrigo para o sol. Mas vale a pena. Descobrimos jovens de alto potencial que encontram nos Crculos apoio para desenvolverem suas habilidades. Recebo mensagens via Whatsapp, Facebook e email, de Gaivotas contando que ingressaram na universidade. Querem continuar atuando nos Crculos voluntariamente para ajudarem outros jovens a realizarem seus sonhos. Vrios desses jovens nascerem na roa. Sero os primeiros em suas famlias a completar o en-sino mdio e superior.

Livya Wana Duarte, ex-aluna da EEEP Adolfo Ferrei-ra Lima, de Redeno, uma das formadoras voluntrias. Wana saa de casa toda manh s 4h30 na traseira de um caminho para a escola. Nos Crculos, deixei minha timidez para atrs ao tornar multiplicadora. Melhorei minha escrita e leitura, o que me ajudou a obter uma nota mais alta no vestibular. Ela cursa Engenharia de Energias na Unilab, uma universidade afro-brasileira criada recentemente. Sempre que pode, Wana participa das formaes regionais dos Cr-culos de Leitura, viajando para outras cidades do serto, treinando novos estudantes para serem multiplicadores.

Jos Hiago, ex aluno da EEEP Virglio Tvora no Crato, agora cursa enfermagem na Universidade Regional do Ca-riri. Tambm atua como formador voluntrio dos Crculos. Participou de um intenso calendrio de formaes regionais e conta: Em 2015, durante quatro semanas, fizemos 15 for-maes, em regies diversas, em cidades do serto, como Tabuleiro do Norte, Barbalha, Jaguaribe, na regio serrana, como Bela Cruz e So Benedito, e na metrpole de Fortaleza. As formaes duraram trs dias, na prpria escola. Apenas dois tcnicos do Instituto Braudel participaram. O restante, eram oito multiplicadores. Todos aproveitaram suas frias ou recesso acadmico para contribuir com os Crculos.

Assim o povo aprendeA partir de 2014, o trabalho dos Crculos de Leitura foi

reforado com o apoio da Fundao Ita Social para for-mar professores na metodologia. Participam de formaes intensivas em que leem clssicos da literatura, assistem a filmes e discutem em profundidade os temas e os contextos histricos e culturais das obras, alm de aprender e prati-car a metodologia. Participam no apenas professores, mas tambm diretores e tcnicos das coordenadorias regionais de ensino. A diretora Antonia Cyra Arrais, da EEEP Governa-dor Virglio Tvora, afirmou: Os Crculos nos ajudam mui-to. Com eles, os jovens aprendem a se responsabilizar por si e pelo outro. E muito bom que a gente possa ter cada vez mais professores preparados para levar essa metodolo-gia para outras escolas, para que elas possam se beneficiar como ns nos beneficiamos l na Vrglio Tvora. E para ns um orgulho muito grande ver jovens que alm de terem ingressado na universidade com destaque, esto aqui hoje como formadores de outros jovens e professores.

Assim o povo aprende. Assim as limitaes do isolamen-to e a pobreza so vencidas. Assim atingimos um novo pata-mar na qualidade da vida e de nossas instituies.

Maria Aparecida Lamas coordenadora dos Crculos de Leitura.

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4. Comeando em Sobral

O municpio de Sobral (populao: 200 mil), no ex-tremo norte do Cear, est realizando uma reforma da educao primria nas duas ltimas dcadas que serviu de modelo para outras comunidades. A estratgia e os m-todos desenvolvidos em Sobral so aplicados na reforma em nvel estadual no Cear, com os mesmos quadros de liderana. Em 2015, Sobral se classificou em primeiro lugar em oportunidades educacionais entre todos os municpios brasileiros.

Como Quixeramobim, Sobral surgiu como vila no cru-zamento de trilhas de gado, nos sculos de colonizao. Diferente de outras comunidades do serto, em Sobral sur-giram fabricas e ligaes ferrovirias, com o algodo j pro-cessado sendo enviado para o porto vizinho de Camocim. A arquitetura estilo belle poque dessa poca de prosperidade sobrevive no centro da cidade. No entanto, a pobreza e a ignorncia acompanharam o crescimento da cidade. A renda per capita de 60% da populao consistia em menos da metade do salrio mnimo. Em 1996, 83% dos alunos em Sobral, estavam pelo menos dois anos atrs da srie escolar certa para a idade, mostrando a repetio endmi-ca de ano e as deficincias no ensino, comuns na educao pblica brasileira. Mas, nos anos recentes, Sobral mos-trou o que uma rede escolar municipal motivada e bem administrada poderia conquistar.

Uma famlia de sucesso polticoO sucesso da reforma escolar em Sobral dependia da

concentrao do poder municipal numa famlia de sucesso poltico. Dois ancestrais de Cid Gomes foram prefeitos de Sobral no sculo 19. O pai de Cid, Jos Euclides Ferreira Gomes tambm foi prefeito de Sobral (1977-83), e no-meou sua esposa Maria Jos, professora, como secretria da Educao, uma prtica comum nos pequenos municpios. Duas dcadas depois, seu filho, Cid Gomes, aos 33 anos, venceu a eleio para prefeito de Sobral em 1996, com 64% dos votos, sucedendo a um prefeito afastado por corrupo. Ciro Gomes, irmo mais velho de Cid, iniciou sua carreira poltica no partido conservador que apoiava o regime mi-litar, migrando depois consecutivamente para sete partidos diversos, junto com irmos mais jovens, enquanto servia como prefeito de Fortaleza (1989-90), governador do Cea-r (1991-94), ministro das Finanas do Brasil (1994), e mi-nistro da Integrao Nacional (2003-2006), concorrendo duas vezes presidncia em 1998 e 2002. Recentemente, Ciro foi secretrio da Sade no governo estadual do irmo. Ivo Gomes, 48, o irmo mais moo, estudou em Harvard antes de servir como secretrio da Educao em Sobral,

quando Cid era prefeito, e depois, chefe de gabinete de Cid no governo estadual, e secretrio municipal da Educao de Fortaleza. A cooperao entre os irmos lhes proporcionou altos ndices de aprovao nas pesquisas de opinio pblica, e ressentimento dos polticos rivais. Mas, apesar disso, eles puderam fazer algumas das mais importantes reformas no ensino j vistas no Brasil, mobilizando uma rara combina-o de persistncia e profissionalismo.

Julio Csar da Costa Alexandre, atual secretrio de Edu-cao de Sobral, fala em uma Mo Invisvel na gesto escolar, variando do provrbio do filsofo Adam Smith (1723-1790) sobre a eficincia dos mercados. Segundo Julio, essa Mo Invisvel unifica uma rede de desafios, in-centivos e cooperao que cria um senso de propsito e solidariedade nas escolas e outras instituies. A Mo In-visvel o desafio, diz ele. a cultura que se desenvolve na escola. A fora motora dessa cultura a vontade, que as crianas podem aprender a ter. Essa cultura envolve auto-nomia nas escolas, para que os diretores possam economi-

zar em despesas de rotina para poder comprar uma fotocopiadora, para que os alunos tenham materiais de ensino mais variados e interessantes, para con-tratar tutores que ajudem crianas com dificuldades de aprendizado.

Como em muitas pequenas cidades brasileiras, a politicagem governava as escolas municipais de Sobral, sem padres de desempenho. As escolas ti-

nham cerca de 25 mil alunos, alm de cinco mil crianas em creches e pr-escola. Os prefeitos nomearam parentes para postos chave na rede escolar, refletindo uma falta de confiana e de capital humano dentro do sistema polti-co. Cid nomeou a prima Ada Pimentel como secretria da educao, em seu primeiro mandato de prefeito (1997-2000), trocando-a pelo irmo mais moo, Ivo, no segundo mandato (2001-04).

Criamos um novo sistema escolar nesse primeiro man-dato, diz Ivo, que se tornou o principal assessor de Cid durante o tempo em que ele foi prefeito de Sobral e, depois, governador do Cear. A infraestrutura fsica das escolas estava em runas. Construmos novas escolas e reformamos outras, com novos equipamentos para todas. Criamos um sistema de mrito na contratao de novos professores e di-retores, com exames, entrevistas e observao em grupos fo-cais. Aumentamos os salrios dos professores no programa federal Fundef (Fundo de Manuteno e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorizao do Magistrio).

Apesar de todas essas melhorias, o analfabetismo conti-nuava endmico nas escolas de Sobral. Em dezembro de 2000, testamos todos os alunos e ficamos chocados, contou

Em Sobral, combinaram persistncia

e profissionalismo

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Ivo. Descobrimos que 40% das crianas, do primeiro ao nono ano, ainda no sabiam ler. Para enfrentar esse desafio, formulamos duas tarefas. A Tarefa Um era cortar o fluxo do analfabetismo, criando uma fora-tarefa que garantisse que todas as crianas estariam aptas a ler na segunda srie. A Tarefa Dois era separar as crianas das sries superiores que sabiam ler das que ainda no sabiam, criando cursos intensivos para os atrasados at que soubessem ler ao nvel esperado para sua idade. Eliminar esse dficit levou trs ou quatro anos, mas hoje no h mais analfabetismo escolar em Sobral.

Sobral tinha 96 escolas municipais primrias, 67 delas na rea rural. Muitas escolas rurais eram mal equipadas, com poucos alunos, fracas em gesto e ensino, sem super-viso. As 40 escolas menores tinham apenas 5% do total de alunos. Com um processo de nucleao, o nmero de escolas caiu de 96 para 38, com o transporte por nibus das crianas das reas mais distantes para escolas mais centrais, que desfrutam de melhores instalaes, ensino e gesto. Inicialmente, a nucleao das escolas encarou resistncia nas comunidades. As principais razes para isso foram a re-duo do nmero de empregos de diretores e vice-diretores, e a necessidade de transportar crianas diariamente para outras localidades.

Consolidar a alfabetizao num sistema escolar fracassa-do um desafio que exige garra, profissionalismo e humil-dade durante vrios anos. Essas qualidades que motivaram os educadores a reconhecer que precisavam de ajuda de fora para projetar e implementar uma estratgia abrangendo v-rias tarefas: (1) desenvolver novos materiais de ensino, (2) treinar e motivar professores e supervisores em aplicar novas prticas e rotinas em classe, e (3) avaliar os resultados com cuidado, em toda a rede, em cada escola, em cada sala de aula e com cada aluno. Realizar uma estratgia com esse nvel de profundidade e detalhe exige um novo sistema de gesto escolar, e novos mtodos de reconhecimento e recompensa aos professores produzindo os melhores re-sultados. Poucos sistemas escolares no mundo conseguem realizar reformas, e mant-las por muito tempo, com esse grau de cuidado e intensidade.

Em 1997, Sobral entrou com outros 16 municpios no Acelera Brasil, um programa do Instituto Ayrton Senna, para reduzir a repetncia crnica de ano. Mais tarde, entrou no Escola Campeo, outro programa Ayrton Senna, para melhorar a gesto escolar. Ajudado por consultores lidera-dos por Edgar Linhares e Joo Batista Arajo e Oliveira, Sobral desenvolveu lies e avaliaes cuidadosamente es-truturadas e prescritas, dentro de duas estratgias bsicas: reforo dos mtodos de ensino e da gesto escolar. A rotina de aulas reconheceu que a concentrao da maioria das crianas de sete anos numa tarefa se limita normalmente a s 15 minutos.

O calendrio de ensino engloba uma sucesso de uni-dades temticas, cada durando 15 dias. Os professores dos

primeiros anos participam de uma sesso de oito horas por ms para treinarem tcnicas de alfabetizao. As escolas go-zam de autonomia na gesto, com responsabilidade pelos resultados. Os professores do 1 ano que conseguiam alfa-betizar 75% dos alunos ganham um bnus de R$100. Os alunos ainda analfabetos nos 2 a 4 anos formam classes separadas para ensino intensivo de leitura. Seis meses desse ensino especial eram insuficientes para muitos alunos lerem no nvel esperado de sua srie. Eles ficam mais tempo nas classes especiais at conseguir melhores resultados. Gradu-almente, o nmero dessas crianas foi caindo, de 4.051 em 2001 para 3.048 em 2003 e 961 em 2004.

Sobral instalou um sistema para testar cada alu-no semestralmente. Alunos especialmente treinados de uma universidade local testavam cada criana na leitura em voz alta com pargrafos, sentenas, palavras e slabas. Os testes eram gravados em fitas-cassete e enviados para equipes de avaliadores, que analisavam tambm os testes escritos.

Os testes e avaliaes externas mudaram a cultura das escolas. Os professores costumavam dizer que a grande maioria das crianas sabe ler, aps passar a maior parte da aula escrevendo na lousa para as crianas copiarem. Quando as avaliaes mostraram dificuldades, coordena-dores pedaggicos marcavam visitas as aulas para observar e, mais tarde, discutir com os professores como melhorar. Superintendentes visitam cada escola duas vezes por ms, para verificar ausncias, os planos de ensino, a limpeza e a merenda. Na escola primria Carlos Jereissati, encontrei um professor e um aluno, sentados no corredor, repassando lies de leitura. O senhor vai ver isso em todas as escolas, me disse o secretrio Jlio Csar, e no porque mandamos faz-lo: esto eles mesmos construindo esse sistema, porque querem que as crianas aprendam. E quando as crianas no aprendem, conversamos com os professores. Os apoiamos e monitoramos. esta a Mo Invisvel que nos permite economizar e dispender menos na correo do errado, a fim de investir mais na melhoria do ensino.

Portanto, a Mo Invisvel no to invisvel assim, graas a uma motivao resoluta, e estruturao e superviso do esforo coletivo. Esse progresso ainda deixa grandes espaos a preencher, mas tambm essas falhas esto diminuindo. O desempenho nos testes padronizados nos quatro anos passados alcanou um nvel muito acima das mdias do Cear e do Brasil. Esse sucesso foi elogiado por fundaes e agncias internacionais, famintas para celebrar histrias de xito no ensino pblico. Mas os avanos tambm cha-maram ateno para o que ainda precisa ser feito. A poltica educacional de Sobral foi adotada por todo o estado do Cear e pelo governo federal. Outras comunidades pode-ro repetir as conquistas de Sobral somente com esforos claramente definidos e persistentes ao longo do tempo. Nesse sentido, Sobral ainda no o Cear, e o Cear no o Brasil. Os problemas de magnitudes e cultura poltica ainda nos desafiam.

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5. O que aprenderam

No havia esforo sistemtico at os anos 90 para medir e entender os nveis de aprendizagem nas escolas brasilei-ras. Em 1992, aps o surgimento de uma nova gerao de lderes democrticos, a Secretaria da Educao do Cear comeou a testar uma amostra de 14.000 jovens das quar-tas e oitavas sries em 156 escolas de Fortaleza. Este esfor-o se expandiu gradualmente at se tornar um dos mais antigos sistemas de avaliao no Brasil, conhecido como SPAECE (Sistema Permanente de Avaliao da Educao Bsica do Cear), que agora avalia os jovens em todas as es-colas estaduais e municipais. O resultado inicial decepcio-nou. Os resultados do SPAECE em 2003 e 2004 estavam abaixo das expectativas e no refletem os investimentos pblicos na educao bsica, escreveu Sofia Lerche Vieira, ex-secretria de Educao (2003-2006). Foi uma inova-o com forte potencial para reverter a cultura do fracasso escolar. O trabalho de socializao dos indicadores envolve uma pedagogia de disseminao. Nada foi feito com inten-o punitiva, mas sim para mostrar as dimenses dos pro-blemas do ensino e do aprendizado, assim como mostrar as zonas de excelncia.

Com a disseminao global das tecnologias de infor-mao, os sistemas escolares desenvolveram instrumentos sofisticados para avaliar o aprendizado em grande escala. Na Amrica Latina, 13 repblicas adotaram exames pa-dronizados entre 1990 e 1998. Nas duas dcadas iniciais dos exames SPAECE, o nmero de estados brasileiros com seus prprios sistemas de avaliao cresceu de dois para 20, provocando muitos debates sobre sua qualidade e impac-to. Os resultados mundialmente divulgados do Programa

Internacional de Avaliao dos Alunos (PISA) da OCDE reforam as crticas aos sistemas escolares. Os latino-ame-ricanos ficaram entre os piores em desempenho entre os estudantes de 15 anos dos 65 pases testados em leitura, cincia e matemtica. Em exames recentes do PISA, os brasileiros ocupam o 55 lugar em leitura e 58 lugar em matemtica e cincia.

Desde 2007, o Cear expandiu o SPAECE como fonte de informaes pblicas sobre aprendizagem nas escolas estaduais e municipais. Os testes mostram que as escolas tm uma montanha ngreme para superar.

O programa PAIC alcanou grandes avanos em leitura nos primeiros dois anos do ensino fundamental. Os alunos da segunda srie das escolas municipais saram da ltima categoria (analfabetismo) em 2007 para um nvel interme-dirio em 2011, e caram para o nvel inferior apenas em 2012, ainda que oito das 20 regies tenham subido para o nvel intermedirio. O progresso continuou nas quintas sries de escolas municipais, assim como o aprendizado de portugus e matemtica subiu do ltimo nvel para o n-vel intermedirio. A porcentagem de alunos nos ltimos degraus da escada do aprendizado caiu drasticamente nos cinco anos de 2008 a 2012, diminuindo de 80% a 34% em matemtica e de 60% a 32% em portugus. Todavia, comeando na 9 srie, o aprendizado parecia parar, com a protuberncia naquelas categorias mais baixas crescendo para 61% em portugus e para 76% em matemtica, re-forando nossas prprias impresses com observaes em sala de aula.

De acordo com o diretor de uma grande escola de en-

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sino fundamental na cidade costeira de Camocim, 70% dos alunos da segunda srie ainda no sabem ler, assim como muitos da sexta at a nona srie. Falta-nos um mto-do para avali-los com preciso. Deficincias na estratgia de educao e nos contedos de sala de aula se tornam endmicos da sexta at a nona srie, onde at agora inicia-tivas de reforma foram negligenciadas. A estagnao nos resultados de testes continua no ltimo ano do ensino m-dio, com as ltimas categorias de ensino abrangendo dois teros dos alunos em portugus e 77% em matemtica.

Altas taxas de fracasso contribuem para o abandono, junto com a baixa qualidade do ensino e do contedo de matrias das escolas regulares do ensino mdio, em contraste s novas escolas profissionais. No Cear, dois quintos das escolas secundrias estaduais tiveram taxas de abandono de 46% em mdia. O Banco Mundial relatou em 2012 que 20% dos estudantes em escolas brasileiras repeti-ram de ano, a pior mdia de repetncia na Amrica Latina.

Oficialmente, as escolas brasileiras de-veriam ter 200 dias letivos ao ano. Porm, o nmero diminui devido a ausncias fre-quentes dos professores. Se ausentam das aulas por licena mdica, por assuntos pessoais ou treinamentos externos, alm de quando as escolas mandam os alunos de volta para casa para permitir que os professores executem tarefas burocrti-cas. Num estudo detalhado sobre o ensino praticado em salas de aula em pases latino-americanos, o Banco Mun-dial concluiu que os sistemas escolares no esto focados na questo do tempo de instruo. Atualmente, os pro-fessores brasileiros usam apenas 64% do tempo de aula ensinando, contra uma referncia mundial de 85%, re-conhecendo que esta mdia esconde uma ampla gama de qualidade e tempo de ensino dentro dos distritos escolares e das escolas individuais. A mdia de tempo desperdia-do em 200 dias letivos mostra que os alunos perdem 20 dias de aula, observaram os pesquisadores. Mais que a metade dessas perdas ocorrem porque os professores esto fisicamente ausentes, chegam atrasados, saem mais cedo ou fazem outras coisas durante a aula.

Os problemas de administrao persistem. Alessandra Dalmssio Sanches, 34, nova diretora da Escola de Ensino Fundamental Irm Simas, na periferia de Fortaleza, luta para manter os professores nas salas. Faltam professores porque alguns esto fazendo mestrado, se aposentaram ou pegam atestado mdico para faltar, diz Alessandra. Nos-sa escola tem trs turnos. Nesta tarde temos 12 salas cheias de alunos, duas delas sem professores. De manh tivemos quatro salas do mesmo jeito. A Secretaria da Educao Municipal eliminou o cargo de vice-diretor em escolas pe-quenas. Ento eu entro nas salas de aula para ensinar assim

como os coordenadores, que supostamente deveriam pla-nejar e supervisionar a prtica docente. De trs cozinheiras que temos, duas faltaram hoje. Eu fao a contabilidade da escola, recebo as encomendas, me reno com os pais para falar sobre as brigas entre alunos. Estou na escola em dois dos trs perodos, manh e tarde ou tarde e noite. Quando no estou na escola pela manh, as ausncias dos professores aumentam. Eu gosto de desafios, mas estes so difceis.

O programa de alfabetizao do PAIC enfrenta desa-fios nas primeiras sries do ensino fundamental em cida-des como Quixel (populao: 15.000) uma das menores comunidades emancipadas para se tornar municpio in-dependente no processo de democratizao dos anos 80 e 90. Visitei Quixel para assistir a um treinamento para

professores municipais com as aulas sus-pensas no dia. O evento consistiu numa srie de discursos polticos entediantes para professores e outros funcionrios que ocupam a arquibancada da quadra de esportes. Quando eu disse para um coordenador regional que estes encontros parecem uma perda de tempo, ele disse que os professores preferem ouvir discur-sos polticos a darem aulas. Em todo o Brasil, as autoridades de educao tiram os professores das aulas para treinamento em massa, sem qualquer acompanhamen-to posterior ou efeito prtico.

Apesar de ser municpio pequeno, Quixel apresenta nas suas escolas uma mdia em testes prxima mdia do estado e maior que da capital, Fortaleza. Entretanto, a politicagem local retarda o processo de ensino e aprendiza-gem. Treinamos os professores e visitamos as salas de aula para ver se o que aprenderam est sendo aplicado, diz Ide-lcia Cndida, 42, que supervisiona o programa de alfabe-tizao do PAIC em Quixel. Monitoramos a leitura e a escrita mensalmente, avaliando o progresso de cada aluno e junto aos professores. Os resultados dos testes mostram que existe um bloqueio no aprendizado aps a terceira s-rie que aparece nos resultados da quinta srie. Em peque-nos municpios como o nosso, a direo das escolas muda a cada quatro anos aps eleies locais, com muitas mano-bras polticas. Novos professores vm sem experincia em ensinar crianas a ler e escrever. Muitos s deram aula para as oitavas e nonas sries. Ento camos novamente. Aps progredir at 2010, camos em 2011 e 2012, com apenas 48% de nossos alunos capazes de ler e escrever em 2012.

Jos Luiz Lopes, supervisor do PAIC e ex-secretrio da Educao do municpio de Ors, confirma essa viso: A fragilidade no ensino da alfabetizao fica na alocao de professores sem capacidade para trabalhar individualmente com as crianas, assim optando por exerccios em massa. O grande problema est na tenta-

Alessandra Dalmssio Sanches, diretora, Fortaleza

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tiva de ensinar vrios nveis na mesma sala. Uma coisa til feita pelo governador foi colocar os resultados dos testes em cdigos de cores. Assim todo mundo sabe que vermelho significa fracasso e que verde escuro excelncia, ficando claro como vai a escola. H ainda muitos conflitos com os prefeitos sobre nomeaes de

professores. Ainda no conseguimos a continuidade dos esforos. De um ano para outro, ou frequentemente dentro do mesmo ano escolar, h mudanas abruptas com trocas de diretores e professores. Precisamos visitar continuamente as salas de aula para ver como acontece o ensino.

6. Educao e democracia

O desenvolvimento da educao pblica no Cear, como no resto da Amrica Latina, tem sido uma longa luta com resultados mistos e lentos, unido ao avano da de-mocracia, acordando esperanas persistentes de progresso econmico e redeno social. A escolaridade cresceu junto ao voto popular nos pases ocidentais e no Brasil, entre outras repblicas da Amrica Latina.

A expanso mundial da educao pblica atingiu seu clmax nas ltimas dcadas do sculo 20. At os anos 50, muitas crianas europias comeavam a trabalhar aps ter-minar o curso primrio. O ensino secundrio era, sobre-tudo, para as classes mdia e alta. Nos ltimos 50 anos a Amrica Latina aumentou maciamente suas matrculas escolares,numa escala que os pases ricos demoraram dois sculos para atingir.

A difuso dos direitos democrticos do votar uma das principais razes pelas quais algumas naes avanaram na rea educacional e outras ficaram para trs, observou Pe-ter Lindert em seu estudo Growing Public: Social Spending and Economic Growth since de Eighteenth Century. Os pa-ses pobres atrasaram cerca de um sculo frente aos pases ricos em sua escolarizao. Lindert afirmou que as dife-renas na escolarizao bsica constituem uma das chaves das desigualdades de renda globais. E acrescentou que a taxa de retorno social dos anos adicionais do ensino pri-mrio muito mais alta hoje no Terceiro Mundo do que qualquer retorno ao ensino superior nos mesmos pases, ou as taxas de retorno em qualquer nvel de escolarizao nos pases de alta renda.

Nos ltimos dois sculos os avanos na educao em todo o mundo acompanharam os aumentos da renda per capita, os declnios em mortalidade, a melhor nutrio, a concentrao de populaes em cidades e grandes centros urbanos, o fortalecimento do papel social e econmico das mulheres e a difuso dos meios de comunicao em massa, tanto impressos como eletrnicos. No Brasil, os anos de es-cola aumentaram desde 1 ano em mdia em 1920, para 3,8 anos em 1970, dobrando para 7,5 anos em 2010. A renda real per capita cresceu dez vezes desde 1900 e a populao 12 vezes. Mas o Produto Interno Bruto (PIB) per capita ficou entre um quarto e um quinto dos nveis dos pases ricos, como ficou no sculo anterior, apontando problemas importantes de produtividade na educao.

A educao moderna precisa ser til para florescer. As

escolas do Cear seguem um caminho j percorrido pelos pases avanados h mais de um sculo. Eugen Weber des-creveu este processo em sua obra Peasants into Frenchmen: The Modernization of Rural France, 1870-1914:

As pessoas iam escola no porque lhes era oferecida ou imposta, mas porque era til.... Foram as circunstncias vigentes que tornaram as instalaes adequadas e os pro-fessores mais acessveis; que propiciaram as estradas para as crianas irem escola; e que, sobretudo, tornaram a escola importante e produtiva, uma vez que o que ela oferecia fazia sentido em termos das mudanas de valores e percep-es.

Como nas escolas rurais do Cear nos anos 80 e 90, na Frana, no final do sculo 19, a sala de aula estava praticamente em runas, segundo Weber e tanto o pro-fessor como os alunos ignoravam o material do ensino. A capacidade de traar letras ou pronunci-las superava sua capacidade de compreenso. Boa parte da populaao rural falava apenas dialetos locais e mal entendia o fran-cs. As matrculas escolares multiplicaram rapidamente aps a Terceira Repblica que tornou obrigatrio o en-sino primrio em 1882. No entanto, a Frana em 1950 contava com apenas 32.000 alunos formados em escola secundria,enquanto na Itlia s 5% concluram.

A Rssia emancipou seus servos em 1861, quase trs d-cadas antes da abolio no Brasil. Nas quatro dcadas antes da Primeira Guerra Mundial, o nmero de escolas prim-rias na Rssia quintuplicou, em grande medida sob admi-nistrao local, e a alfabetizao disparou. Como no Cear hoje, o desenvolvimento da educao na Rssia Czarista acompanhou os avanos na liberdade e condies mate-riais. Segundo o historiador Jeffey Brooks em When Russia Learned to Read, novos utenslios, ferramentas e equipa-mentos surgiram entre as classes mais pobres em toda a Rssia, adquiridos por gente que procurava uma vida me-lhor. As novidades incluam arados de ferro, telhados de zinco, foges feitos de tijolos, vestidos e sapatos feitos em fbricas. Uma exploso da literatura popular curtia temas religiosos, romances e aventuras.

Na virada do sculo 20, eventos como o massacre de Ca-nudos em 1897 e a Revoluo Mexicana em 1910, inspira-ram movimentos voltados para a educao das populaes

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analfabetas na Amrica Latina.Redimir o ndio, educar as massas, foi o slogan da Revoluo Mexicana proclamado por Jos Vasconcelos, que fundou o Departamento Federal de Educao em 1921 e enviou misses culturais para as comunidades indgenas. Os eventos no Mxico deram im-pulso aos movimentos indigenistas no Peru e Bolvia. Em seu clssico Sete Ensaios sobre a Realidade Peruana(1928), Jos Carlos Maritegui, dolo do marxismo peruano que escreveu muito sobre educao, retratou na poca uma re-alidade similar s escolas no Cear:

O problema do analfabetismo fica intacto. O Estado era incapaz de criar escolas em todo o territrio nacional. A diferena entre o tamanho da tarefa e os recursos disponveis enorme. Faltam professores para o modesto programa de educao popular previsto no oramento. Menos de 20% dos professores so formados em escola normal [...] A car-reira do professor de escola primria, sujeito aos insultos e contaminao dos donos de terras e os caciques polticos, miservel, sem nenhuma estabilidade.

Sucessivas constituies brasileiras proclamaram a edu-cao como direito humano bsico. Embora 132 pases consagrem a educao como direito constitucional, os estudiosos acham que estas garantias legais pouco valem na pratica. As autoridades educacionais no Cear tentam vencer a cultura do fracasso escolar, que pouco exigia das escolas, dos professores e dos alunos. Para pesquisadores do Banco Mundial, a relao entre anos de escola e o cresci-mento econmico cai a quase zero quando introduzida a qualidade da educao, medida pelas notas mdias em testes internacionais padronizados. a qualidade da educa-o que pesa nos benefcios econmicos da escolarizao.

Nos primeiros anos da Primeira Repblica (1889-1930), o Estado do Cear matriculou apenas 7,3% das crianas em idade escolar, menos do que na Rssia Cza-rista, porm muito mais do que na China e ndia na po-ca. Os alunos na escola primria no Brasil aumentaram de dois milhes em 1982 para 35 milhes em 2001, recuando para 30 milhes em 2012 devido queda da natalidade. Em 1932 havia apenas 56.208 alunos matriculados nos cursos secundrios no Brasil inteiro, crescendo para mais de oito milhes em 2012.

Tudo comeou precariamente. Em 1845, um liceu p-blico foi aberto em Fortaleza para alunos do secundrio. Vinte anos depois havia somente 207 alunos, dos quais 140 assistiam s aulas e apenas 10 foram aprovados nos cursos. At 1888, pouco antes da queda do Imperador Pe-dro II e a Proclamao da Repblica, o nmero de escolas primrias e alunos haviam multiplicado quase sete vezes. No entanto, alguns dados foram inflados e muitas escolas funcionavam em casas de professores com poucos alunos comparecendo.

No incio da dcada de 30, o governo federal comeou a transferir recursos para as escolas municipais e estaduais, nutrindo o clientelismo poltico que cresceu rapidamente aps o fim do regime militar em 1985. medida que as transferncias federais cresceram, o nmero de municpios proliferou de 1.574 em 1940 para 5.563 hoje. Em 1987, o ministrio da Educao concluiu que apenas metade dos recursos enviados para o Nordeste chegavam s salas de aula. No Cear, dados oficiais indicavam que um nmero muito maior de pessoas recebia merenda escolar do que o nmero efetivo de alunos.

As matrculas escolares no Cear mais que triplicaram nas duas dcadas aps 1945. O nmero de escolas multi-

Ex-presidente do Mxico Lzaro Crdenas (1934-40) em uma escola rural, nas montanhas do estado de Oaxaca, 1967

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plicou quase cinco vezes. Mas 60% das crianas em idade escolar ficaram fora das salas de aula. O nmero de matri-culados cresceu 50% at 372.000, apenas no perodo entre 1962 e 1966, ajudado pela USAID, propiciando um forte aumento de funcionrios, muitos contratados por indica-o poltica. Entre 1978 e 1984, o nmero de professores no Cear cresceu 80%, provocando denncias de excesso de contrataes. No obstante muitas escolas continua-vam sem professores. O regime militar criou um sistema de universidades federais, no modelo das universidades es-taduais dos Estados Unidos, o que quadruplicou o nmero de vagas disponveis para estudantes.

No confronto com dificuldades, as longas lutas pro-duziram alguns educadores excepcionais. Elival Pereira, 40, nasceu na roa do municpio de Jucs, o mais novo de nove filhos. Foi diretor das novas escolas profissiona-lizantes de Jucs e Iguatu. Conclui a quinta srie com 15 anos de idade e a nona com 18, disse. Ingressei na universidade aos 22, aps estar lecionando h quatro anos. Dava aulas oito horas por dia e durante cinco anos viajava todas as noites num pau de arara para estudar num curso de extenso em literatura na universidade pblica. Foi um desafio e um estmulo para mim. Quando voc deve alcan-ar alguma coisa na vida, isto j fica claro quando criana. Quando era pequeno gostava de estudar. Brincava de pro-fessor, apesar de ser difcil estudar porque haviam poucas escolas na dcada de 80. Comecei a lecionar quando ain-da frequentava o ensino mdio. Simplesmente imitava os professores mais velhos. Foi difcil porque muitos alunos tinham minha idade, alguns at mais velhos. Muitos no me levaram a srio nas aulas de matemtica, cincia e geo-grafia. Mas acabamos nos acostumando uns com os outros e fui convidado para dar aula em outras escolas.

Em meados da dcada de 90, o governo federal ampliou as aulas pela televiso, o Tele Ensino, que operou como ex-perimento desde os anos 1970. Por falta de outras opes, Elival Pereira e Josimar Saraiva, hoje diretora da escola profissional de Quixeramobim, aproveitaram a oportuni-dade. Estudei o primrio pelo Tele Ensino e depois ensi-nei no Tele Ensino, disse Elival. No Tele Ensino dei aulas de tudo. Depois de assistirmos aula pela TV eu iniciava uma discusso. O grande problema era quando o sinal caia durante um temporal. Mais tarde o ministrio gravou as lies e nos enviava videocassetes. Gostava do Tele Ensino quando aluno. As lies eram cuidadosamente cronome-tradas. Depois haviam discusses, com as quais aprendi muito. Como professor acho que contribui para o Tele Ensino. Trabalhar com TV no foi difcil. O problema era o contedo. Eu era formado em literatura, mas tinha de dar aulas de matemtica e fsica. Estudei muito para dar aulas em que alunos aprendessem. Ficamos limitados pe-los livros de estudo na sala de aula no quanto poderamos criar. Precisamos de algo mais profundo, como os Crculos de Leitura, que refora o trabalho da escola. Quando voc

desafia o aluno, mesmo que reconhea suas limitaes, ele sentir que vai progredir. Ele diz para si mesmo: O pro-fessor acredita em mim. Acredita que consigo ler isto, que consigo falar sobre isto na aula, que consigo escrever a res-peito de tudo isso.

O novo ndice de Oportunidades da Educao Brasilei-ra (IOBE) cataloga quatro municpios do serto do Cear entre os dez primeiros dos 5.570 municpios do Brasil. Desenvolvido por Reynaldo Fernandes, ex-presidente do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educa-cionais), o novo ndice de oportunidades da educao sin-tetiza dados de testes padronizados, fatias de alunos ma-triculados e promovidos desde a pr-escola at o ensino mdio, horas passadas em aula, durao da permanncia e experincia dos diretores e nvel educacional de pais e professores.

O lder entre todos os municpios brasileiros foi Sobral, que nas duas ltimas dcadas tem desfrutado de uma esta-bilidade poltica e atuou como pioneiro na reforma do en-sino. Os trs outros municpios do Cear nos dez primei-ros do ranking so pequenas cidades com baixa renda per capita: Groairas (10.487 habitantes), Porteiras (15.010) e Brejo Santo (48.056). Trs outras cidades do Cear foram includas entre as 100 primeiras no ranking do IOBE. Tentamos relacionar os rankings do IOBE de todos os 184 municpios do Cear de acordo com seu tamanho, renda per capita, taxas de homicdio e posies no ndice de Desenvolvimento Humano (IDH) das Naes Unidas. Encontramos uma grande diversidade de experincias e pouca relao destes indicadores, colocando a excelncia educacional como fora de srie.

O que conclumos desta anlise que existe uma for-te influncia de equipes de educadores, excepcionalmente dedicados, em escolas e secretarias locais, na conquista de resultados positivos na aprendizagem em pequenos mu-nicpios, implementando mtodos, objetivos e incentivos desenvolvidos pela Secretaria Estadual da Educao.

As deficincias institucionais e a pobreza impedem que a maioria dos municpios menores arrecadem impostos lo-cais. O que faz a diferena na educao a capacidade dos municpios administrarem os recursos que recebem, especialmente os fundos transferidos pelo governo federal, independentemente da arrecadao local de impostos, diz Cidinha Lamas, coordenadora dos Crculos de Leitura, do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial em 30 municpios cearenses. Muitos municpios pequenos, como Groairas e Porteiras, tm um desempenho muito melhor do que outros maiores.

Sobram muitas anomalias. Brejo Santo, no serto sul do Estado, ocupa o 10 lugar no ranking do IOEB, com uma longa histria de lutas entre cls e muitos homic-dios (39 para cada 100.000 habitantes). O que faz a di-ferena parece ser a liderana e o trabalho em equipe dos educadores. Coloquei a educao no centro das minhas

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prioridades polticas por causa do seu impacto em outros setores da vida local, afirmou o prefeito Guilherme Sam-paio Landim, mdico que recebeu um prmio por elevar o ndice de aprendizagem em leitura e matemtica nas es-colas locais para o dobro da mdia nacional. Brejo Santo, juntamente com outros municpios cearenses, registrou grandes avanos sociais desde 1990, quase dobrando sua classificao no IDH, com progresso na longevidade, ren-da e educao. A porcentagem de adultos que concluram o ensino fundamental aumentou de 17% em 1991 para 46% em 2010, ao passo que o porcentual de jovens na faixa dos 18 a 20 anos que con-cluram o ensino mdio pulou de 7% para 36%. Ainda assim fica um grande dficit tanto na abrangncia como na qualidade do ensino.

Outra anomalia Tabuleiro do Nor-te (30.000 habitantes), numa regio de solo arenoso, um emprio caminhonei-ro com altssimo ndice de homicdios (75/100.000). As gangues locais clonam cartes de crdito e traficam crack. Alto-falantes monta-dos em carros circulam pelas ruas elogiando as qualidades das prostitutas adolescentes, muitas delas forasteiras re-cm-chegadas, enquanto as meninas aguardam nas para-das de caminhes, motis e alcovas discretas na principal rodovia que liga Fortaleza ao sul do Brasil. A juza local fugiu aps receber ameaas de morte e no foi substitu-da. As taxas de formao nas escolas continuam baixas, porque h poucas oportunidades de emprego que justi-fiquem o aprendizado. Muitos jovens deixam a cidade para buscar trabalho. Mas h avanos. Tabuleiro fica aci-

ma da mdia no ndice IOEB entre municpios do Cear e no plano nacional est nos 25% mais alto. Enquanto no passado poucos dos nossos alun