Silva, g. Velhos e Novos Mitos Do Rural Brasileiro

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graziano da silva

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  • VELHOS E N OVOS M ITOS DO R URAL BRASILEIRO

    ESTUDOS AVANADOS 15 (43), 2001 37

    E FORMA MUITO sinttica podemos dizer que nossas pesquisas no mbitodo Projeto Rurbano (1) nas suas fases I e II (2) contriburam para derrubaralguns velhos mitos sobre o mundo rural brasileiro, mas que, infelizmente,

    podem estar servindo para criar outros novos.

    Apresentaremos a seguir o que julgamos ser as principais concluses obti-das pela pesquisa at o momento e um listado do que estamos nos propondo a pes-quisar na fase III, iniciada em maio de 2001 e que se prolongar ate 2003.

    Os velhos mitos

    O rural sinnimo de atraso

    Mostramos que o rural no se ope ao urbano enquanto smbolo da moder-nidade. H no rural brasileiro ainda muito do atraso, da violncia, por razes emparte histricas, relacionadas com a forma como foi feita a nossa colonizao, ba-seada em grandes propriedades com trabalho escravo.

    Mas h tambm a emergncia de um novo rural, composto tanto peloagribusiness quanto por novos sujeitos sociais: alguns neo-rurais, que exploramos nichos de mercados das novas atividades agrcolas (criao de escargot, plantase animais exticos etc.); moradores de condomnios rurais de alto padro; lotea-mentos clandestinos que abrigam muitos empregados domsticos e aposentados,que no conseguem sobreviver na cidade com o salrio mnimo que recebem;milhes de agricultores familiares e pluriativos, empregados agrcolas e no-agr-colas; e ainda milhes de sem-sem, excludos e desorganizados, que alm de noterem terra, tambm no tm emprego, no tm casa, no tm sade, no tmeducao e nem mesmo pertencem a uma organizao como o MST para poderemexpressar suas reivindicaes.

    Infelizmente essa categoria dos sem-sem vem crescendo rapidamente,em especial a partir da segunda metade dos anos 90. Os dados da PNAD de 1999permitem uma aproximao desse contingente de pobres rurais: so quase trsmilhes de famlias (ou 15 milhes de pessoas) sobrevivendo com uma renda dis-ponvel per capita de US$ 1 ou menos por dia (R$ 34,60 mensais ao cmbio desetembro/99) (3).

    Velhos e novos mitosdo rural brasileiroJOS GRAZIANO DA SILVA

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    Mais de metade dessas famlias de pobres rurais tem suas rendas provenien-tes exclusivamente de atividades agrcolas: so famlias por conta prpria (30% dototal) com reas de terras insuficientes e/ou com condio de acesso terra precria(parceiros, posseiros, cessionrios) ou famlias de empregados agrcolas (25%), agrande maioria sem carteira assinada.

    Um tero dessas famlias de pobres rurais moram em domiclios sem luzeltrica, quase 90% no tem gua canalizada, nem esgoto ou fossa sptica. Emquase metade dessas famlias mais pobres, o chefe ou pessoa de referncia nuncafreqentou a escola ou no completou a primeira srie do primeiro grau, podendoser considerado como analfabeto.

    Mas, infelizmente, nada disso privilgio do velho rural atrasado: das4,3 milhes de famlias pobres residentes em reas no-metropolitanas (pequenase mdias cidades), 70% no tm tambm rede coletora de esgoto ou fossa sptica,quase 30% no possui gua encanada, embora menos de 5% no tenha luz eltricano domiclio. Em um tero delas o chefe de famlia tambm pode ser consideradoanalfabeto. Fica patente apenas a diferena entre rural e urbano no que diz respeitoao acesso energia eltrica, que atualmente constitui um dos servios bsicosfundamentais, sem o qual fica difcil falar em modernidade. Infelizmente, essadiferena se explica em grande parte pela possibilidade dos pobres urbanos faze-rem ligaes clandestinas (gatos).

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    O rural predominantemente agrcola

    Mostramos que um nmero crescente de pessoas que residem em reas ru-rais esto hoje ocupadas em atividades no-agrcolas. Os dados da PNAD de1999 tambm mostram que dos quase 15 milhes de pessoas economicamenteativas no meio rural brasileiro (exceto a regio Norte), quase um tero ou seja4,6 mi-lhes de trabalhadores estava trabalhando em ocupaes rurais no-agrcolas (ORNA): como serventes de pedreiro, motoristas, caseiros, emprega-das domsticas etc. Mais importante que isso, as ocupaes no-agrcolas cresce-ram na dcada dos 90 a uma taxa de 3,7% ao ano mais que o dobro da taxa decrescimento populacional do pas (ver tabela 1). Enquanto isso, o emprego agr-cola, em funo da mecanizao das atividades de colheita dos nossos principaisprodutos, vem caindo cada vez mais rapidamente, a uma taxa de -1,7% ao ano.Nossas projees indicam que a continuar nesse ritmo, no ano 2014 a maioriados residentes rurais do pas estaro ocupados nessas atividades no-agrcolas.Em alguns estados, como So Paulo, isso j est ocorrendo atualmente.

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    Outro dado que confirma a importncia dessas atividades que a soma dosrendimentos no-agrcolas das pessoas residentes nos espaos rurais superou em1998 e 1999 os rendimentos provenientes exclusivamente das atividades agrcolas,segundo as PNADs. Ou seja, embora se saiba que as rendas agrcolas declaradasnas PNADs esto fortemente subestimadas, os rendimentos no-agrcolas dosresidentes em espaos rurais no Brasil superam os rendimentos agrcolas totaisdesde 1998 (ver grfico 1).

    O xodo rural inexorvel

    As estatsticas mais recentes do Brasil rural revelam um paradoxo que inte-ressa a toda sociedade: o emprego de natureza agrcola definha em praticamentetodo o pas, mas a populao residente no campo voltou a crescer; ou pelo menosparou de cair. Esses sinais trocados sugerem que a dinmica agrcola, emborafundamental, j no determina sozinha os rumos da demografia no campo. Essenovo cenrio explicado em parte pelo incremento do emprego no-agrcola nocampo. Ao mesmo tempo, aumentou a massa de desempregados, inativos eaposentados que mantm residncia rural (ver grfico 2). Se verdade que aindapersiste algum xodo, especialmente na regio Sul, ele j no tem fora paracondicionar esse novo padro emergente de recuperao das reas rurais da maioriadas regies do pas.

    Os dados das PNADs mostram que a populao rural chegou ao fundo dopoo em 1996 (ano de contagem populacional), com 31,6 milhes de pessoas(4); a partir de ento vem se recuperando, tendo atingido 32,6 milhes em 1999,ou seja, quase um milho de pessoas a mais, significando uma taxa de crescimento

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    anual da populao rural de 1,1% ao ano, muito prximo do crescimento da po-pulao total de 1,3% a.a. no mesmo perodo. No Nordeste, as duas taxas seigualaram (1,1% a.a.) e em So Paulo, o crescimento da populao rural foi odobro do total (3% a.a. contra 1,5% a.a.), indicando uma verdadeira volta aoscampos que no se confunde com uma volta s atividades agrcolas, at porqueparte significativa dessa populao passou a residir em reas rurais prximas sgrandes cidades do interior e da capital do estado. Na regio Sul, no entanto, apopulao rural ainda mostra sinais de queda, especialmente naquelas reas quedenominamos de rural agropecurio ou rural profundo.

    perigoso porm alimentar iluses de que o mercado, por si s, tenhaimplementado um novo dinamismo sustentvel no campo brasileiro. Mostramosque o inevitvel o xodo agrcola o qual todavia pode ser, ao menos parcialmente,compensado com o crescimento da ORNA. Se a isso juntarmos os inativos(principalmente aposentados) que buscam as reas rurais como local de residncia,pode ser factvel uma poltica de conter o significativo xodo rural ainda existenteem determinadas regies do pas, como o Sul.

    O desenvolvimento agrcolaleva ao desenvolvimento rural

    Mostramos que as ocupaes agrcolas so as que geram menor renda; eque o nmero de famlias agrcolas est diminuindo, pois elas no conseguemsobreviver apenas de rendas agrcolas. Nem mesmo o nmero das famliaspluriativas, nas quais seus membros combinam atividades agrcolas e no-agrcolas,

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    vem aumentando. Dada a queda da renda proveniente das atividades agropecurias,as famlias rurais brasileiras esto se tornando cada vez mais no-agrcolas, garantidosua sobrevivncia mediante transferencias sociais (aposentadorias e penses ) eem ocupaes no-agrcolas.

    Infelizmente no se pode comparar os rendimentos do perodo anterior aoPlano Real em funo das distores introduzidas pelas mudanas monetriasocorridas na primeira metade dos anos 90. Mas os dados que dispomos para operodo 1995-99, inteiramente sob vigncia do Plano Real, apontam que para asfamlias rurais de conta-prpria agrcolas e pluriativas, a nica parcela da rendafamiliar per capita que cresceu significativamente no perodo foi aquela provenientedas transferncias sociais (+6,7% e +4,9% a.a., respectivamente). A frao da rendaproveniente das atividades agrcolas (que representa 3/4 ou mais da renda totaldessas famlias) caiu tanto para as famlias rurais de conta-prpria agrcola (-4,2%a.a.) quanto para as pluriativas (-5,3% a.a.). Para agravar ainda mais o quadro, asrendas no-agrcolas s cresceram para as famlias rurais de conta-prpria no-agrcola, permanecendo estagnadas para as pluriativas.

    Em resumo, as famlias agrcolas e pluriativas ficaram mais pobres na segundametade dos anos 90. E a queda das suas rendas per capita s no foi maior pelacompensao crescente das transferncias sociais de aposentadoria e penses. por essa razo que as famlias rurais esto se tornando crescentemente no-agrcolas.

    A gesto das pequenas e mdiaspropriedades rurais familiar

    Mostramos que esto crescendo as pequenas glebas (em geral com menosde 2 ha, tamanho do menor mdulo rural) que tm a funo muito mais de umaresidncia rural que de um estabelecimento agropecurio produtivo. E que a gestodas pequenas e mdias propriedades agropecurias est se individualizando, ficandoo pai e/ou um dos filhos encarregado das atividades, enquanto os demais membrosda famlia procuram outras formas de insero produtiva, em geral fora da proprie-dade. Tambm uma parte cada vez maior das atividades agropecurias antesrealizadas no interior das propriedades esto sendo hoje contratadas externamentemediante servios de terceiros, independentemente do tamanho das exploraes.Ou seja, quem dirige os estabelecimentos agropecurios hoje no mais a famliacomo um todo, mas um (ou alguns ) de seus membros, o que coloca por terra aidia de uma diviso social do trabalho assentada na disponibilidade de membrosda famlia, distinta de uma diviso do trabalho capitalista.

    A famlia rural tpica no se rene mais em torno da explorao agropecuria.O patrimnio familiar a ser preservado inclui as terras e, acima de tudo, a casados pais que se transforma numa espcie de base territorial, acolhendo os parentesprximos em algumas ocasies festivas e tornando-se cada vez mais um ponto de

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    refgio nas crises, especialmente do desemprego, alm de permanecer como alter-nativa de retorno para a velhice. Alm disso, a gesto familiar inclui agora outrosnegcios no-agrcolas como parte de sua estratgia de sobrevivncia (maioriados casos) ou mesmo de acumulao. Em outras palavras, o centro das atividadesda famlia deixou de ser a agricultura porque a famlia deixou de ser agrcola e setornou pluriativa ou no-agrcola, embora permanea residindo no campo.

    Os novos mitos

    ORNA a soluo para o desemprego

    Uma anlise desagregada das principais ocupaes exercidas pelas pessoasresidentes em reas rurais no perodo 1992-99 aponta que quase todas as ocupaesagropecurias mostraram uma forte reduo, especialmente aquelas mais genricascomo trabalhador rural e empregado agrcola, que agregam os trabalhadorescom menor grau de qualificao: cerca de um milho de pessoas ocupadas a menosem 1999 em comparao a 1992.

    Ao contrrio, quase todas as ocupaes rurais no-agrcolas apresentaramsignificativo crescimento no mesmo perodo, acumulando cerca de 1,1 milhode pessoas a mais em 1999, como que compensando a queda das ocupaesagrcolas. Destacam-se aqui, tambm, aquelas atividades pouco diferenciadas comoos empregados em servios domsticos, ajudantes de pedreiro e prestadores deservios diversos, que somados perfazem um tero dos empregos rurais no-agrcolas gerados no perodo.

    Nossos trabalhos tm demonstrado que as atividades agrcolas continuamsendo a nica alternativa para uma parte significativa da populao rural, especial-mente dos mais pobres. A parcela da fora de trabalho agrcola que vai se tornandoexcedente pelo progresso tecnolgico e pela reestruturao produtiva (substituiode cultivos, por exemplo) no encontra automaticamente ocupaes no-agrcolasnas quais se engajar. E isso se deve fundamentalmente inadequao dos atributospessoais dos trabalhadores agrcolas que so dispensados (homens e mulheres demeia idade sem qualificao profissional e sem escolaridade formal) para exerceremas ORNAs disponveis.

    A maior parte das ocupaes rurais no-agrcolas no Brasil, embora propi-ciem uma renda geralmente maior que as agrcolas e no sejam to penosas comoestas, so tambm trabalhos precrios e de baixa qualificao. So basicamenteservios pessoais derivados da alta concentrao da renda existente no Brasil eno da modernizao das atividades agrcolas, nem da prestao de serviosvoltados ao lazer e preservao ambiental e muito menos de atividades no-agrcolas produtivas do tipo agroindstria ou construo civil. No -toa queencontramos em todas as regies do pas um forte crescimento do empregodomstico de pessoas residindo na zona rural. O emprego domstico desempenha

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    hoje, para as mulheres, o papel da construo civil nas dcadas passadas para oshomens: a porta de entrada na cidade por propiciar, alm de um rendimentofixo, tambm um local de moradia. Especialmente para as mulheres rurais maisjovens, esta parece ter sido uma das poucas formas de insero no mercado detrabalho nos anos 90, dadas as restries crescentes sua insero na fora detrabalho agrcola.

    ORNA pode ser o motordo desenvolvimento nas regies atrasadas

    Uma das mais importantes contribuies do Projeto Rurbano foi mostrarque as novas dinmicas em termos de gerao de emprego e renda no meio ruralbrasileiro tm origem urbana, ou seja, so impulsadas por demandas no-agrcolasdas populaes urbanas, como o caso das dinmicas imobilirias por residncia nocampo e dos servios ligados ao lazer (turismo rural, preservao ambiental etc.).

    Mostramos, tambm, que as ORNAs tm maior dinamismo justamentenaquelas reas rurais que tm uma agricultura desenvolvida e/ou esto mais prxi-mas de grandes concentraes urbanas. Ou seja, nas regies mais atrasadas, noh emprego agrcola e muito menos ocupaes no-agrcolas. Assim, no halternativa seno polticas compensatrias tais como as de renda mnima e deprevidncia social ativas, por exemplo. Alm disso, h uma certa reverso cclica produo de subsistncia nessas regies mais atrasadas.

    o que parece estar ocorrendo no Nordeste: as ocupaes agrcolas quevinham caindo, voltaram a crescer em 1999, em parte devido ao fim da seca queassolou a regio nos ltimos anos. A PNDA registrou a mais 450 mil pessoasocupadas nas reas rurais em 1999 em relao ao ano anterior, a grande maioriadas quais em atividades agrcolas no-remuneradas; e uma pequena reduo daORNA, situao similar ao que j havia acontecido entre 1993 e 1995. E essa re-tomada da produo de subsistncia financiada em grande parte pelas transfe-rncias socais de renda (sendo a principal delas a proveniente da aposentadoriarural) e pelo trabalho da mulher dos pequenos produtores que se tornam empre-gadas domsticas nas cidades da regio e respondem por parte significativa dasrendas monetrias das famlias de empregados rurais no Nordeste.

    Em resumo, a falta de desenvolvimento rural na grande maioria das regiesatrasadas do pas se deve fundamentalmente falta de desenvolvimento dasatividades no-agrcolas.

    A reforma agrria no mais vivelMostramos que a agricultura no mais a melhor forma de reinsero pro-

    dutiva das famlias rurais sem terra, especialmente em funo do baixo nvel derenda gerado pelas as atividades tradicionais do setor. Pequenas reas destinadas

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    a produzir apenas arroz-feijo, assim como outros produtos agrcolas tradicionais,especialmente gros, realmente no so mais viveis. Mas, felizmente, as atividadesagrcolas tradicionais tambm no so mais as nicas alternativas hoje disponveispara a gerao de ocupao e renda para as famlias rurais. Assim, possvel, ecada vez mais necessria, uma reforma agraria que crie novas formas de inseroprodutiva para as famlias rurais, seja nas novas atividades agrcolas, seja nasORNAs. Por exemplo, na agroindstria domstica, que lhes permita agregar valor sua produo agropecuria, como tambm nos nichos de mercado propiciadospelas novas atividades agrcolas a que nos referimos anteriormente, ou at mesmona prestao de servios pessoais ou auxiliares de produo.

    O novo rural no precisa de regulao pblica

    Mostramos que o novo rural no composto somente de amenidades,para usar uma expresso muito em moda nos pases desenvolvidos. Como j dis-semos, no Brasil, a maior parte das ORNAs, por exemplo, no passam de trabalhosprecrios, tambm de baixa remunerao Mostramos tambm que o crescimentodos desempregados no meio rural superou a taxa dos 10% ao ano no perodo1992-99, apenas uma parte disso se devendo ao retorno temporrio dos filhosque haviam migrado anteriormente para as cidades e voltam casa dos pais atque encontrem outro trabalho. E h acima de tudo milhes de sem-sem para en-grossar o xodo rural assim que o crescimento industrial gerar novas oportunidadesde trabalho nas cidades, porque so mnimas as condies de educao, sade,habitao etc. de que dispem localmente.

    O trao comum entre o novo e o velho rural a sua heterogeneidade, o queimpede a generalizao de situaes locais especficas. H novas formas de poluioe destruio da natureza associadas tanto s novas atividades agrcolas quanto sno-agrcolas. Mesmo nos condomnios rurais habitados por famlias de altasrendas, o tratamento do lixo e o esgotamento sanitrio so muito precrios nagrande maioria dos casos. Da mesma maneira, embora at mesmo a empregadadomstica ganhe melhor que o bia-fria, o maior nvel de renda monetria propi-ciado pelas ORNAs nem sempre significa uma melhoria nas condies de vida etrabalho das famlias rurais no-agrcolas, especialmente quando isso implica aperda ao acesso terra e possibilidade de se combinar as rendas no-agrcolascom atividades de subsistncia .

    A emergncia das novas funes (principalmente lazer e moradia) para orural, somada perda da regulao setorial (via polticas agrcolas e agrrias)resultante do esvaziamento do Estado nacional, deixou espaos que demandamnovas formas de regulao pblicas e privadas. o caso exemplar das prefeiturasbatendo-se contra a proliferao desordenada dos condomnios rurais que nopassam, no fundo, de novas formas de loteamentos clandestinos, que acabamdemandando servios como luz, gua, coleta de lixo etc.; ou dos pesquepagues,

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    que tm de se submeter fiscalizao do Servio de Sade, do IBAMA e doINCRA, que possuem legislaes contraditrias para enquadramentos de umamesma atividade; ou ento das novas reservas florestais fora da propriedade, queno so reconhecidas legalmente, embora tenham muito maior valor ecolgicodo que a manuteno de pequenas reas descontnuas no interior das pequenas emdias propriedades rurais. Esses so apenas alguns exemplos gritantes de queprecisamos de uma nova institucionalidade para o novo rural brasileiro, sem oqu corremos o risco de v-lo envelhecer prematuramente.

    O desenvolvimento localleva automaticamente ao desenvolvimento

    O novo enfoque do desenvolvimento local sustentvel tem o inegvel mritode permitir a superao das j arcaicas dicotomias urbano/rural e agrcola/no-agrcola. Como sabemos hoje, o rural, longe de ser apenas um espao diferenciadopela relao com a terra e mais amplamente com a natureza e o meio ambiente est profundamente relacionado ao urbano que lhe contguo. Tambm podemosdizer que as atividades agrcolas so profundamente transformadas pelas atividadesno-agrcolas, de modo que no se pode falar na agricultura moderna deste finalde sculo XX sem mencionar mquinas, fertilizantes, defensivos e toda as demaisatividades no-agrcolas que lhe do suporte.

    Nossos trabalhos mostraram que a busca do desenvolvimento da agriculturamediante uma abordagem eminentemente setorial no suficiente para levar aodesenvolvimento de uma regio. Mostraram tambm que a falta de organizaosocial especialmente da sociedade civil tem se caracterizado como uma barreirato ou mais forte que a misria das populaes rurais, especialmente no momentoem que a globalizao revaloriza os espaos locais como arenas de participaopoltica, econmica e social para os grupos organizados.

    O enfoque do desenvolvimento local pressupe que haja um mnimo de orga-nizao social para que os diferentes sujeitos sociais possam ser os reais protago-nistas dos processos de transformao de seus lugares. Mas essa organizao nemsempre existe em nvel local; e quando existe, est restrita queles velhos atoressociais responsveis, em ltima instncia, pelo prprio subdesenvolvimento do local.

    Nesse sentido podemos dizer que o desenvolvimento local sustentvel precisaser tambm entendido como desenvolvimento poltico no sentido de permitiruma melhor representao dos diversos atores, especialmente daqueles segmentosmajoritrios e que quase sempre so excludos do processo pelas elites locais.

    No caso brasileiro, por exemplo, as aes voltadas exclusivamente para odesenvolvimento agrcola, se bem tivessem logrado invejvel modernizao dabase tecno-produtiva em alguma regies do Centro-Sul do pas, no se fizeramacompanhar pelo to esperado desenvolvimento rural. Uma das principais razes

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    para tanto foi a de privilegiar as dimenses tecnolgicas e econmicas do processode desenvolvimento rural, relegando a segundo plano as mudanas sociais epolticas como, por exemplo, a organizao sindical dos trabalhadores rurais semterra e dos pequenos produtores. Com a globalizao, as disparidades hoje exis-tentes em nosso pas, seja em termos regionais, seja em relao agriculturafamiliar vis--vis o agrobusiness, tendem a se acentuar ainda mais.

    fundamental mencionar que o escopo desses atores no se restringe aosprodutores agrcolas familiares ou no por maior que seja a diferenciaodeles. Devem ser considerados tambm os sujeitos urbanos que habitam o meiorural ou que simplesmente o tem como uma referncia quase idlica de uma novarelao com a Natureza. Isso porque um outro componente, cada vez mais impor-tante no fortalecimento dos espaos locais, tem sido as exigncias e preocupaescrescentes com a gesto e a conservao dos recursos naturais. Aqui tambm aorganizao dos atores sociais pode impulsionar a participao e a implementaode planos de desenvolvimento local voltados aos seus interesses, apesar de haverainda muitas restries quanto s formas de participao e representao, no sdevido sua pouca mobilizao mas tambm dificuldade de se ter todos ossegmentos sociais devidamente representados, diante da presena de impedimentose vises operacionais vinculados s estruturas institucionais vigentes em nvel lo-cal e dominao das decises pelos grupos mais fortes.

    O que falta pesquisarIniciamos em maio de 2001 o que denominamos de Fase III do Projeto

    Rurbano, com os objetivos de:

    identificar os principais condicionantes de distribuio da renda das pessoase das famlias rurais e/ou agrcolas, tais como o grau e a intensidade dapluriatividade na agropecuria brasileira, a distribuio da terra segundo aposio da ocupao dos membros dos domiclios, o efeito das diferentesformas de acesso terra (proprietrio, parceiro, arrendatrio e conta-prpria)sobre os rendimentos das famlias, as diferentes formas de ocupao dosmembros das famlias segundo sexo, grau de escolaridade, as caractersticasdos domiclios e sua disponibilidade de bens e servios essenciais etc.;

    pesquisar a importncia do trabalho domstico como alternativa de ocupaoe renda das famlias rurais, isolando essa categoria de trabalhadores comouma nova posio na ocupao e um outro tipo especfico de atividade;

    pesquisar a importncia da agroindstria e da indstria rural como geradorasde emprego e renda no meio rural, em particular no estado de So Paulo eem Minas Gerais, que tm um dos maiores parques agroindustriais do pas;

    caracterizar as famlias rurais e/ou agrcolas com aposentados e/ou desocupa-dos, com o objetivo de propor uma poltica previdenciria ativa para asregies desfavorecidas do meio rural brasileiro;

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    caracterizar as famlias sem-terra em relao a renda e ocupao de seusmembros em nvel de grandes regies e principais unidades da Federao,visando delimitar o que se poderia chamar o ncleo duro (core) da pobrezarural com o objetivo de subsidiar a poltica nacional de assentamentos rurais.

    Alm de tais temas, que decorrem das concluses e resultados preliminaresj obtidos, na Fase III do Projeto Rurbano pretende-se realizar alguns estudos decaso com vistas a:

    identificar as possveis causas da subestimao das rendas variveis nas PNADs,em particular das rendas agrcolas;

    aprofundar as dinmicas de gerao de ocupaes no-agrcolas identificadasem nvel de Brasil para algumas regies especficas que se destacaram nasanlises anteriores (turismo no Nordeste; chcaras de recreio no Sudesteetc.);

    investigar a questo da identidade das famlias rurais pluriativas e/ou no-agrcolas frente aos novos sujeitos sociais do novo mundo rural, entre elescaseiros, moradores de condomnios fechados, aposentados etc.;

    aprofundar o tema das relaes entre o desenvolvimento local e poder localdestacando a competncia nos diferentes nveis de ao do poder pblico (mu-nicipal, estadual e federal), bem como quais seriam as principais formas deinterveno pblica e privada sobre as reas;

    avaliar o impacto ambiental e scio-econmico das novas atividades desenvol-vidas no meio rural, introduzindo a questo da legislao ambiental, traba-lhista e a necessidade de um cdigo do uso do solo, da gua e de outrosrecursos naturais para a gesto do territrio rurbano;

    aprofundar o tema das polticas pblicas para o novo rural brasileiro, comnfase na poltica de turismo rural como alternativa de gerao de novasoportunidades de negcios e ocupaes no meio rural.

    Para cumprir os objetivos descritos foram delineados 20 subprojetos depesquisa, oito teses de doutoramento, sete dissertaes de mestrado, alm devrios projetos de iniciao cientfica. Nosso projeto de pesquisa envolve atual-mente 45 pessoas entre professores universitrios, profissionais liberais de vriasorigens e estudantes de graduao e ps-graduao, distribudos por 20 instituiesde pesquisa em 11 estados do pas, 25 delas com ttulo de doutor ou superior.

    Alm de estudos de caso, pretendemos, em 2002, iniciar a anlise dos dadosdo Censo Demogrfico de 2000, que nos possibilitaro um tratamento territo-rial inferior ao corte metro/no-metro permitido pelas PNADs, como, porexemplo, micro-regies, bacias hidrogrficas e at mesmo municpios.

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    O rural est profundamente relacionado ao urbano que lhe contguo.

    Marcio Capovilla/Abril Imagens

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    Notas

    1 Projeto temtico denominado Caracterizao do Novo Rural Brasileiro, 1981-95 queconta com financiamento parcial da FAPESP e PRONEX-CNPq, que pretende analisaras principais transformaes ocorridas no meio rural em 11 unidades da Federao(PI, RN, AL,BA, MG, RJ, SP, PR, SC, RS e DF). Consulte nossa homepage na internet(http://www.eco.unicamp.br/projetos/rurbano.html).

    2 Na fase I foram explorados basicamente os tipos de ocupaes das pessoas residentesnas reas rurais; na fase II, as rendas das famlias agrcolas, pluriativas e no-agrcolasresidentes nas reas rurais. As principais publicaes esto disponveis na nossa homepagee numa coletnea de quatro volumes organizada por C. Campanhola & J. Grazianoda Silva, O novo rural brasileiro: uma anlise nacional e regional. Jaguarina, Embrapa-Meio Ambiente/IE-Unicamp, 2000.

    3 Imputando-se o valor do autoconsumo agrcola e descontando-se os pagamentos dealuguel e da prestao da casa prpria, quando fosse o caso, essa metodologia adotadapelo Banco Mundial foi desenvolvida por M. Takagi; J. Graziano da Silva & M. DelGrossi, Pobreza e fome: em busca de uma metodologia para quantificao do fenmenono Brasil. Campinas, Instituto de Economia/Unicamp (texto para discusso 101,www.eco.unicamp.br/publicacoes).

    4 Infelizmente so cada vez maiores as indicaes de que os dados da contagempopulacional esto fortemente subestimados. No caso das reas rurais do interior deSo Paulo, por exemplo, a subestimao fica evidente ao se constatar uma elevaogeneralizada nas taxas de crescimento populacional entre 1996 e 2000 aps teremmostrado fortes quedas entre 1991 e 1996. Como a contagem de 1996 foi realizadaem conjunto com o Censo Agropecurio de 1995-96 e h uma outra pesquisa para asreas rurais paulistas no mesmo perodo (LUPA), possvel evidenciar as regies maisafetadas.

    Jos Graziano da Silva professor titular de Economia Agrcola da Unicamp, bolsista doCNPq e consultor da Fundao Seade ([email protected]).