7
INAP CURSO: COMUNICAÇÃO VISUAL MATÉRIA: HISTÓRIA DA ARTE 2. AULA_05 SIMBOLISMO. GIBSON, Michael. Simbolismo. [s.l.]: Taschen, 2006. p. 7-28 A Grande Sublevação Eu apresento-lhes “mentalidades” como sistemas de imagens, conceitos de juízos infor- mulados, ordenados variamente nas diferentes classes sociais: sistemas em movimento e, por con- seguinte, objetos de estudo para a história, mas que não se deslocam sempre ao mesmo passo nos diferentes níveis de cultura, e que ordenam o comportamento das pessoas e as conduzem sem da- rem por isso. Georges Duby Menos movimento artístico do que estado mental, o Simbolismo surge cerca de meados do século XIX, com grande influência nas áreas da Europa que associavam dois fatores: um industrialismo avançado e uma população predominantemente cató- lica. Podemos circunscrever o fenômeno simbolista traçando uma linha que liga Glas- gow, Estocolmo, Gdansk, Lódz, Trieste, Florença e Barcelona: a chamada “Europa do vapor”. Jean Moréas confere ao Simbolismo um nome e uma identidade, a 18 de Se- tembro de 1886. Cerca de trinta anos mais tarde, este expirava por entre as vascas da Primeira guerra Mundial. Nessa altura, o Modernismo estava nos píncaros e o Simbolismo em desgraça: alguns artistas simbolistas foram reclassificados como proto-impressionistas ou proto- surrealistas; outros como Khnopff, Hodler, Segantini e Von Stuck, sumariamente despachados para o sótão da história. O Simbolismo foi varrido pelas novas senhas da modernidade. Algumas destas eram movimentos que precederam a Primeira Guerra Mundial: Cubismo, Fauvismo, Expressionismo e Futurismo, tendo emergido outros na sua esteira, como o Dadá e o Surrealismo. A guerra tinha cortado uma faixa às fileiras da ciência, das artes e letras, e a pneumônica espanhola, de 1918, veio completar a soturna colheita. Sobreviventes das trincheiras, como os alemães Otto dix e George Grosz, ficaram com cicatrizes para o resto da vida. A guerra não se limitara a dividir a Europa politicamente como, também, cul- turalmente. Num dos lados, encontravam-se os aliados triunfantes; noutro, os venci- dos – a Alemanha e os despojos do Império Austríaco. A grande expansão da Rússia derivava, sob a influência de outras correntes históricas. É certo que os Dadaístas e surrealistas franceses mantinham certas ligações internacionais, mas a grande rede de especialistas e artistas que tinha coberto a Europa anterior à guerra jazia em ruínas, e só seria parcialmente recuperada nos anos 50. O ideal de beleza, cultivado até aí, tinha sofrido, igualmente, uma transforma- ção radical. Como declarou André Breton, no seu Manifesto Surrealista de 1924: “A beleza será convulsiva – ou deixará de ser.” As graves convulsões da época iam-se refletir na sua arte. Uma razão ainda melhor para o espírito modernista achar os vestí- gios do período anterior meramente inaceitáveis como também incompreensíveis. A Revolução Soviética trouxe para a ribalta muitas idéias novas ou reavivadas: a sua insistência em que se deviam tomar em conta as necessidades das pessoas e criar um mundo onde fossem ressarcidas era tão radical que as pessoas podiam realmente pen- sar que o planeta onde viviam não era o mesmo que os pais haviam conhecido. Nessas circunstâncias, era previsível que os teóricos da arte ficassem perplexos perante os produtos das épocas anteriores. A disposição prevalecente de alienação e cinismo dificilmente levaria a uma apreciação da arte narrativa, e muitas vezes senti- mental, do Simbolismo. Claro que houve artistas e poetas que não puderam esquecer com facilidade o idioma no qual tinham sido criados. Guillaume Apollinaire adorava os poetas e pintores simbolistas; André Breton, o fundador do Surrealismo, continuou a ser um adepto de Gustave Moreau, e Marcel Duchamp, com sua ironia profunda, falava afetuosamente dos trabalhos de Arnold Böcklin. Mas o Modernismo era impla- cável: pouco achava que dizer a favor do Simbolismo, que tendia a banir como uma aberração. Para esta perspectiva, havia um precedente, que já tinha sido sustentado pelos pintores realistas do século XIX: a perspectiva estendia-se até um artista de tendências anarquistas como Camille Pissarro. Mas não se tratava só de um ponto de vista artís- tico: era em grande parte determinado pelas lutas entre os ideais militantes seculares da Terceira República e uma Igreja Católica francesa cada vez mais na defensiva. Porque o realismo foi, no século XIX francês, o idioma dos artistas republica- nos e anticlericais, o estandarte de uma consciência social sintonizada com os “verda- deiros problemas da época”. Aqueles que pintavam motivos imaginários eram conde- nados como reacionários, ou tolerados como sonhadores inocentes, cegos para os assuntos do dia. Este estado de coisas contrastava fortemente com as atitudes inglesas. Ali, o realismo era a linguagem dos piedosos e retos que procuravam, como John Ruskin, render homenagem ao Criador, imitando a Criação tanto quanto possível. A razão para esta diferença está à vista. A Inglaterra é um país protestante, e os dois epítetos mais significativos em relação ao Simbolismo são os que aparecem na

Simbolismo - Michael Gibson

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Simbolismo - Michael Gibson

INAP

CURSO: COMUNICAÇÃO VISUAL

MATÉRIA: HISTÓRIA DA ARTE 2. AULA_05

SIMBOLISMO.

GIBSON, Michael. Simbolismo. [s.l.]: Taschen, 2006. p. 7-28

A Grande Sublevação

Eu apresento-lhes “mentalidades” como sistemas de imagens, conceitos de juízos infor-mulados, ordenados variamente nas diferentes classes sociais: sistemas em movimento e, por con-seguinte, objetos de estudo para a história, mas que não se deslocam sempre ao mesmo passo nos diferentes níveis de cultura, e que ordenam o comportamento das pessoas e as conduzem sem da-rem por isso.

Georges Duby Menos movimento artístico do que estado mental, o Simbolismo surge cerca de

meados do século XIX, com grande influência nas áreas da Europa que associavam dois fatores: um industrialismo avançado e uma população predominantemente cató-lica. Podemos circunscrever o fenômeno simbolista traçando uma linha que liga Glas-gow, Estocolmo, Gdansk, Lódz, Trieste, Florença e Barcelona: a chamada “Europa do vapor”. Jean Moréas confere ao Simbolismo um nome e uma identidade, a 18 de Se-tembro de 1886. Cerca de trinta anos mais tarde, este expirava por entre as vascas da Primeira guerra Mundial.

Nessa altura, o Modernismo estava nos píncaros e o Simbolismo em desgraça: alguns artistas simbolistas foram reclassificados como proto-impressionistas ou proto-surrealistas; outros como Khnopff, Hodler, Segantini e Von Stuck, sumariamente despachados para o sótão da história.

O Simbolismo foi varrido pelas novas senhas da modernidade. Algumas destas eram movimentos que precederam a Primeira Guerra Mundial: Cubismo, Fauvismo, Expressionismo e Futurismo, tendo emergido outros na sua esteira, como o Dadá e o Surrealismo. A guerra tinha cortado uma faixa às fileiras da ciência, das artes e letras, e a pneumônica espanhola, de 1918, veio completar a soturna colheita. Sobreviventes das trincheiras, como os alemães Otto dix e George Grosz, ficaram com cicatrizes para o resto da vida.

A guerra não se limitara a dividir a Europa politicamente como, também, cul-turalmente. Num dos lados, encontravam-se os aliados triunfantes; noutro, os venci-

dos – a Alemanha e os despojos do Império Austríaco. A grande expansão da Rússia derivava, sob a influência de outras correntes históricas. É certo que os Dadaístas e surrealistas franceses mantinham certas ligações internacionais, mas a grande rede de especialistas e artistas que tinha coberto a Europa anterior à guerra jazia em ruínas, e só seria parcialmente recuperada nos anos 50.

O ideal de beleza, cultivado até aí, tinha sofrido, igualmente, uma transforma-ção radical. Como declarou André Breton, no seu Manifesto Surrealista de 1924: “A beleza será convulsiva – ou deixará de ser.” As graves convulsões da época iam-se refletir na sua arte. Uma razão ainda melhor para o espírito modernista achar os vestí-gios do período anterior meramente inaceitáveis como também incompreensíveis. A Revolução Soviética trouxe para a ribalta muitas idéias novas ou reavivadas: a sua insistência em que se deviam tomar em conta as necessidades das pessoas e criar um mundo onde fossem ressarcidas era tão radical que as pessoas podiam realmente pen-sar que o planeta onde viviam não era o mesmo que os pais haviam conhecido.

Nessas circunstâncias, era previsível que os teóricos da arte ficassem perplexos perante os produtos das épocas anteriores. A disposição prevalecente de alienação e cinismo dificilmente levaria a uma apreciação da arte narrativa, e muitas vezes senti-mental, do Simbolismo. Claro que houve artistas e poetas que não puderam esquecer com facilidade o idioma no qual tinham sido criados. Guillaume Apollinaire adorava os poetas e pintores simbolistas; André Breton, o fundador do Surrealismo, continuou a ser um adepto de Gustave Moreau, e Marcel Duchamp, com sua ironia profunda, falava afetuosamente dos trabalhos de Arnold Böcklin. Mas o Modernismo era impla-cável: pouco achava que dizer a favor do Simbolismo, que tendia a banir como uma aberração.

Para esta perspectiva, havia um precedente, que já tinha sido sustentado pelos pintores realistas do século XIX: a perspectiva estendia-se até um artista de tendências anarquistas como Camille Pissarro. Mas não se tratava só de um ponto de vista artís-tico: era em grande parte determinado pelas lutas entre os ideais militantes seculares da Terceira República e uma Igreja Católica francesa cada vez mais na defensiva.

Porque o realismo foi, no século XIX francês, o idioma dos artistas republica-nos e anticlericais, o estandarte de uma consciência social sintonizada com os “verda-deiros problemas da época”. Aqueles que pintavam motivos imaginários eram conde-nados como reacionários, ou tolerados como sonhadores inocentes, cegos para os assuntos do dia. Este estado de coisas contrastava fortemente com as atitudes inglesas. Ali, o realismo era a linguagem dos piedosos e retos que procuravam, como John Ruskin, render homenagem ao Criador, imitando a Criação tanto quanto possível.

A razão para esta diferença está à vista. A Inglaterra é um país protestante, e os dois epítetos mais significativos em relação ao Simbolismo são os que aparecem na

Page 2: Simbolismo - Michael Gibson

segunda frase deste livro: o Simbolismo era um produto da Europa católica e indus-trial. Visto serem categorias fora do vulgar para um trabalho de história da arte, va-mos examiná-las em profundidade.

Vamos começar por observar os elementos de uma mentalidade feudal sobre-vivente na Europa até aos fins do século XIX. Abalado, mas não derrubado pelo ceti-cismo das luzes, o mundo feudal sobrevivera nas zonas rurais. Georges Duby até sugere que o comportamento do campesinato francês se formalizara cada vez mais no decurso do século XIX, à medida que tomara por modelo de viver medieval cortesão. Assim idealizada, a tradição moribunda ganhou novo alento, manifestando-se num labareda de glória. Mas, aqui, temos que adaptar essa metáfora. O fogo alastrara por-que o combustível tinha sido espalhado.

A nova sociedade industrializada tinha um apetite tremendo por mais poder. Atraiu quantidades enormes de homens e mulheres às cidades, constantemente inun-dadas por matérias-primas transportadas por recentes linhas de caminho de ferro. As estatísticas são eloqüentes: durante o período que nos interessa, só ficou no campo uma pessoas em cada sete. Uma em sete emigrava para o Novo Mundo e as colônias; cinco mudavam-se para as cidades. No meio do século, entre 1850 e 1900, deixaram a Europa setenta milhões de pessoas, e ainda mais foram atraídas para as cidades e arredores. A realidade da aldeia tinha estruturado a sua identidade particular e social: nas cidades não havia nenhuma experiência equivalente que conferisse significado e valor à vida. As sociedades católicas pareciam ter sentido essas alterações mais pro-fundamente, talvez porque o Simbolismo formava uma parte maior e mais integrante das suas perspectivas. Talvez também a Reforma, cujas exigências eram das novas classes pragmáticas, financeiras e mercantis, tivesse preparado melhor as mentalida-des protestantes pra este acontecimento. Seja como for, as tormentosas transforma-ções sociais da revolução industrial desencadearam um conflito entre as representa-ções simbólicas tradicionais do mundo e uma nova realidade, baseada em valores completamente diferentes.

As mudanças desencadeadas pela industrialização não foram geralmente bem recebidas nos países católicos. O caso não era apenas a pobreza desesperada que daí resultou: essa era a mesma por todo lado. Mais de 50.000 crianças passariam pelos lares que o Doutor Bernardo fundou para os abandonados de Londres. Mas, nos países católicos, a representação emblemática do mundo foi abalada até o âmago, e, com esta, tudo aquilo que até ali servia para distinguir o bem do mal. “O conceito de de-moníaco”, observou Walter Benjamim, “aparece quando a modernidade se conjuga com o catolicismo”.

Uma metáfora para esta colisão do novo e do velho é o movimento irresistível, lento, da deriva continental. Pensem como a península indiana, com os milênios, om-breou imperceptivelmente com a enorme massa continental asiática. A pressão conse-qüente resultou nas dobras caóticas e imensas dos Himalaias, aqui adotadas para representar um século de perplexidade e transição. Por outro lado, temos a imóvel massa asiática, ou seja, a ordem das representações que tende a mudar devagar – se é que muda – (neste caso, a herança católica da Europa). Por outro lado, ainda, temos um continente à deriva, ou seja, as mudanças na maneira de viver postas em campo pelo desenvolvimento sem precedentes da indústria no século XIX. Mas, afinal de contas, só por si as teorias nunca deitaram abaixo uma sociedade. Os filósofos têm sempre criticado os pontos de vista tradicionais e, contudo, isso nunca evitou a sobre-vivência de uma sociedade profundamente tradicional em áreas rurais. Na verdade, nada mudaria, se calhar, se homens e mulheres, em grupos enormes, não tivessem sido arrancados ao seu ambiente de origem e precipitados em circunstâncias radical-mente diferentes. Foi essa colisão vertiginosa entre representações simbólicas e o dia-a-dia que, finalmente, ergueu a crista dos Himalaias, que outrora tinham sido planícies lisas. Essa colisão é o tema de um quadro, A grande sublevação (Le Grand chambar-dement, fig.01), do simbolista belga Henry de Groux. Representa homens e mulheres, alguns a cavalo, outros a pé, deixando um local de devastação. Em primeiro plano, jaz uma grande cruz partida. O cercado, onde esteve exposta, foi transformado em baldio, como a área circundante, e os habitantes forma impelidos à mudança. Um olhar mais atento revela uma primeira impressão: esta pintura não representa o tipo de êxodo já familiar devido aos dois últimos cataclismos europeus, mas uma “sublevação” pura-mente espiritual. Toda uma sociedade abandona uma terra familiar e amada, e parte para o exílio, para o desconhecido.

Esta constatação melancólica é fulcral à perspectiva simbolista. No fim do sé-culo XIX, enquanto a ciência e o positivismo anunciavam triunfalmente um admirável mundo novo, fundamentado na razão e na tecnologia, certas pessoas começavam a aperceber-se da perda de uma qualidade indefinível que tinham achado no sistema cultural anterior, nos valores e significados traduzidos por aquilo que podíamos cha-mar a sua “ordem emblemática”.

Não é por acidente que um crucifixo partido jaz no âmago do quadro de Henry de Groux. Em toda a sua ambigüidade, a cruz é o símbolo fulcral de uma representa-ção de mundo que aceita mais do que um plano da realidade. Na perspectiva cristã, há um mundo criado da natureza, e uma ordem divina, incriada, que se alça acima dele. (Ou, para adotarmos uma perspectiva mais secular, o real devia ser posto em contraste com aquilo que Guillaume Apollinaire, num lampejo que obteve um sucesso inespe-rado, designou pelo “surreal”.) O positivista, por outro lado, só aceita um nível da

Page 3: Simbolismo - Michael Gibson

realidade: a natureza. Deste ponto de vista, o “outro mundo” não passa de uma ilusão. Ao que alguns se sentiram inclinados a retorquir: “Dizem-nos que o outro mundo é ilusório. Se calhar, é. Mas é aí que escolhemos viver”. Pois é com essa gente que meu livro está preocupado, antes de mais.

Este tipo de resposta pode ser dado por uma estrutura mental religiosa. Ou pode ser motivada por um gosto – perverso, ou outra coisa qualquer – de auto-com-placência solipsista. O “outro mundo” pode ser o mundo do Divino; pode igualmente ser um mundo de deleite artístico, esse mundo paralelo onde o fictício des Esseintes, herói do livro de J. –K. Huysmans À Rebours, e o seu contemporâneo, o genuíno rei da Baviera, Luís II, se procuravam refugiar.

Em qualquer dos casos, reconhecemos um grau de neurose ou loucura. Mas essa não é a questão total. A questão que devemos levantar é esta: as depressões de des Esseintes e as excentricidades de Luís da Baviera eram resultado de algum trans-torno especificamente cultural? Para compreender este problema devemos-lhe intro-duzir um esboço de fundo. A antropologia do século XX apresenta a cultura como uma teia de valores e significados que permite aos homens e mulheres decidirem qual sua posição e como acharem o seu caminho no mundo. Por conseguinte, não é coinci-dência terem sido os mais receptivos ao Simbolismo os que mais deploravam a perda de significado e valor.

“É absolutamente claro”, escreveu o poeta simbolista Gustave Kahn, “que esta gente se desloca apenas em busca de recursos e que a fonte dos sonhos está a secar”. Enquanto a lógica da ciência, indústria e comércio pode ser capaz de satisfazer as necessidades práticas da sociedade e a vontade de poder do indivíduo, a metáfora de Gustave Kahn sugere uma sede que apenas se consegue estancar na fonte dos sonhos. A metáfora do sonho talvez ofereça demasiados reféns ao espírito crítico da época, que era exageradamente propensa a identificar sonhos com o irreal. Não obstante, mesmo aqueles para quem a perspectiva do mundo positivista era uma fonte de insa-tisfação e angústia, tendiam a ser esmagados pela força compulsiva do seu poder viril, opressivo.

Então, parece que nós ainda possuímos, na verdade, algum tipo de chave cultu-ral para a melancolia, não só de uma personalidade imaginária, como de des Essein-ses, mas para as obras de tantos poetas simbolistas menores, embora significativos: Georges Rodenbach, Henri de Régnier, Camille Mauclair, Charles Guérin, Marie Krysinska, Jean Lorrain, Grégoire Le Roy e Pierre Louÿs. O mundo industrial podia ser descrito como um composto de fogo e aço, e os poetas simbolistas, filhos impo-tentes de uma época arrogante, buscavam refúgio na ar e na água:

A água dos velhos canais é cretina e mental Tão soturna entre as cidades mortas...

Uma água tão sem vida, que parece fatal. Por que já tão nua e tão estéril? E que se passa com ela, que, inteiramente entregue à sonolência, aos sonhos amargurados, se tornou não mais do que um traiçoeiro espelho de geada onde a própria lua acha tão penoso viver? O poema de Georges Rodenbch é eloqüente quanto ao modo de depressão e

declínio que caracteriza o estado mental do Simbolismo. Os poetas simbolistas incli-navam-se para evocar a Lua e não o Sol, o Outono e não a Primavera, um canal e não um ribeiro montanhoso, a chuva e não o céu azul. Queixavam-se de mágoa e ennui, de desilusão no amor, de impotência, de fadiga e solidão, e lamentavam o seu nasci-mento num mundo que morria.

A estes leitmotive atribui-se uma expressão cáustica na poesia de Jules Lafor-gue. Também na sua obra, a Lua, a tardinha e o Outono predominam, mas aí, vamos achá-los na companhia de uma graça sibilina:

Tudo vem de um só imperativo categórico, Mas que longo braço o deste, quão remoto o útero! Amor, amor cujos sonhos ascetizas e fornicas: Por que não nos amamos um ao outro por amor de nós mesmos, no nosso cantinho? Infinito, de onde brota a tua fonte? Por que são os vossos sentidos orgulhosos loucos por algo além dos teclados concebidos, acreditam eles em espelhos mais afortunados do que a Palavra, e matam-se? infinito, mostra-nos os nossos papéis! “Infinito, mostra-nos os nossos papéis!” O tom é de um desafio truculento e

característico daqueles que descobrem a relatividade de uma cultura que acreditam, inocentemente, ser o único veículo da verdade absoluta. O Simbolismo estava imbu-ído de uma fortíssima nostalgia por um mundo de significados que se desintegrara no espaço de poucas décadas. É esta a razão para a melancolia e a ansiedade expressas sempre que um artista olha para além da superfície das coisas. Porque se uma suces-são inteira de artistas do Simbolismo ataca alguém como repulsivo e emoliente – pode-se citar Edmond Aman-Jean, Henri Le Sidaner, Lucien Lévy-Dhurmer, Charles Maurin, Edgar Maxence e Alphonse Osbert – é porque resolve ignorar a realidade: preferiam oferecer-se a ilusão reconfortante de perpetuar o que já tinha cessado de existir.

Então, a que pertence o oposto “o símbolo” no coração do Simbolismo? Por agora, a nossa resposta é clara: à “realidade” limitada da época, ao dado, ao profano. Um símbolo, pela sua verdadeira natureza, refere-se a uma realidade ausente. Em

Page 4: Simbolismo - Michael Gibson

matemática significa uma quantidade desconhecida; em religião, poesia ou arte, em-presta substância a uma qualidade desconhecida – um valor que permanece fora do alcance. Num contexto religioso, essa qualidade é desconhecida (ou desconhecível) porque pertence a uma ordem diferente de realidade – uma ordem sobrenatural – e, por conseguinte, pode apenas ser significada por um objeto sagrado. O sagrado, nesta perspectiva, é meramente uma categoria semântica e não se devia confundi-la com o divino: como disse o sábio chinês, não se deve confundir a Lua com o dedo que a aponta. Mas até o irreligioso tem de reconhecer que há coisas às quais não podemos referir diretamente. Precisamos de símbolos para transmitir essas coisas. Isto é ver-dade para as categorias emblemáticas de cultura que não atingiram ainda o limiar da linguagem, mas que vão buscar a sua substância a uma vasta rede de valores implíci-tos que estruturam a hierarquia do mundo para cada consciência individual, mos-trando a posição que ocupa nessa hierarquia. Também isto é verdade para o futuro, que tanto é constituído pelas esperanças, medos e devaneios dos homens, como por condições materiais inevitáveis, que a história impõe. Tantas energias humanas se gastam ao tentar alcançar além do campo estrito do dado, como observa ironicamente Laforgue: “Por que são nossos sentidos orgulhosos/loucos por algo além dos teclados concebidos, acreditam eles em espelhos mais afortunados do que a Palavra, e matam-se? Infinito, mostra-nos os nossos papéis”

Isto é o âmago do conflito entre duas perspectivas do mundo: por um lado, um mundo dado e imutável, favorável ao comércio e à indústria, mas indiferente aos valo-res que emprestam substância e sabor à vida; por outro um mundo dialeticamente relacionado com o modelo transcendente (religioso, visionário ou poético) que espo-reia o indivíduo para a ação, propondo-lhe uma transformação criativa do dado. No século XIX, a civilização ocidental sofreu uma operação cirúrgica que lhe cortou essas duas componentes d nossa relação com o mundo. A partir desse ponto, ao que parece, a realidade já não podia emprestar o seu peso ao sonhador, nem os sonhos conferir asas à realidade. Os dois entraram em guerra.

Dá idéia, então, que a arte simbolista não se limita a tocar em ilusões há muito existentes que a sociedade estava, finalmente, a aprender e ultrapassar. Nem é simples a expressão naïve de algumas incursões hesitantes, primeiras, pelo reino do inconsci-ente, um mundo que em breve ia ser tão cuidadosamente mapeado. Vai muito mais longe do que isso, apontando para o constante estado de deslocação da cultura e para aquilo que o eminente helenista E. R. Dodds designou Poe uma “neurose endógena”. Isso explica por que uma significante parte da arte simbolista reflete um novo descon-forto nas relações homem-mulher. Porque a cultura não confirma somente a identi-dade pessoal de cada indivíduo, também lhe fornece os fundamentos da identidade sexual. E embora essa identidade tenha alicerces fisiológicos, ele é, também, inevita-

velmente uma construção cultural. Uma brecha ou deslocação no corpo da cultura afetará sem dúvida o modo de interação entre homens e mulheres. Aqui é clara a rele-vância da análise da Idade Média, de Georges Duby: “Aparecem fissuras nos pontos de articulação, alargam-se gradualmente, e, por fim, desmantelam o corpo, mas quase sempre surgem para exercer o seu efeito corrosivo apenas insidiosamente. Apesar da ilusão nutrida pelo aparente tumulto de uma agitação meramente superficial, é sempre a longo prazo que as suas reverberações provocam colapsos e estes nunca são mais que vestígios parciais, embora indestrutíveis, que subsistem sempre.”

Por conseguinte, é da natureza da arte simbolista tentar registrar um processo que fora até aí massivo, involuntário e, em larguíssima parte, inconsistente – embora a vontade coletiva e os decretos dos que estavam no poder tenham sempre tido um certo domínio sobre ele. O papel dos símbolos como o cimento tradicional da comunidade tinha sido posto à prova durante catástrofes. Mas, ao remover à força quantidades sem precedentes de homens e mulheres dos campos, e transformando-os em indivíduos atomísticos do proletariado acabado de criar, a Revolução Industrial não se limitou a fazer ajustamentos mais difíceis: modificou a ordem de prioridades. “Primeiro, a co-mida”, como dizem Bertolt Brecht e Kurt Weill na Ópera dos Três Vinténs, “depois a moral”. Para os novos habitantes da cidade, a solidariedade em obter os bens necessá-rios à vida substitui a anterior comunidade de significado.

As classes superiores dispunham de um ócio maior para ponderar a questão da perda de significado trazida pela nova ordem das coisas. O envolvimento na atividade militante podia resultar para um sentido de comunidade entre os empobrecidos; para os ricos perdera-se qualquer sentido de comunidade. O Simbolismo é, por conse-guinte, a impressão negativa de uma idade desaparecida, rica em símbolos, assim como a expressão de anseio e dor perante a perda de um passado cada vez mais idea-lizado. Aqueles que possuíam os meios para o fazer, procuravam consolação das perseguições brutais do mundo bebericando o filtro apaziguador das artes. Mas até esses defrontavam a ansiedade e os pesadelos dos quais ninguém podia, então, esperar isento.

Ele tinha buscado para deleite da mente e deleite dos olhos, algumas palavras sugestivas

que o transportassem a um mundo desconhecido, que lhe desvelassem os traços de novas conjec-turas, que lhe agitassem o sistema nervosos com histerias eruditas, complicando pesadelos, indo-lentes e agonizantes visões.

J.-K. Huysmans, À Rebours Então, a arte simbolista luta para representar algo diferente d realidade física

auto-evidente. Até certo ponto é romântica; muitas vezes é alegórica; quando lhe apetece, assemelha-se ao sonho ou ao fantástico e, uma vez por outra, alcança aquelas

Page 5: Simbolismo - Michael Gibson

zonas remotas delineadas por Freud nas suas explorações do inconsciente. Podem-se procurar-lhe os antecedentes entre figuras como Fuseli (fig.02), Goya (fig.03) ou William Blake (fig.04). Mas as raízes do Simbolismo têm também de ser procuradas no solo fértil do Romantismo – o Romantismo de Novalis, E. T. A. Hoffman e Alfred de Musset ou Victor Hugo. A posição solipsista, tão central à arte simbolista, é pré-figurada pelo Romantismo, até certo ponto. Apesar de tudo, os movimentos são dis-tintos. Enraizado na mentalidade protestante da Alemanha, o Romantismo implicou um elo místico, fervoroso, com a Natureza, encarada como a palavra criada de Deus.

Por outro lado, o Simbolismo nascido da mentalidade católica da França, Bél-gica, Áustria e zonas da Alemanha, já não mostrava a mesma veneração pela natureza. “A natureza, como ele [des Esseintes] costumava dizer, tinha tido os seus dias: a con-formidade vergonhosa das paisagens e céus tinha desgastado, finalmente, a paciente apreciação dos requintados. Em última análise, como ela é insípida, como um especi-alista confinado a um domínio particular; como é mesquinha, como um lojista acu-mulando um artigo com exclusão de qualquer outro; que monótono armazém de pra-dos e árvores, fornecedora de mares e montanhas! Além do mais não existe uma só de suas invenções, supostamente sutis e grandiosas,que esteja para além dos meios de concepção humano; nenhuma floresta de Fontainebleau; nenhum luar que não possa ser reproduzido por uma encenação banhada em luz elétrica; nenhuma queda-de-água que a engenharia hidráulica não possa imitar n perfeição; nenhuma pedra que o pa-pier-marché não possa falsificar; nenhuma flor que tafetá fino e papel delicadamente colorido não possa reproduzir! Não restam dúvidas de que essa sempiterna tagarela, nesta altura, esgotou a admiração indulgente de todos os verdadeiros artistas, e che-gou, certamente, o tempo do artifício lhe tomar o lugar, sempre que possível.”

Estas palavras foram dadas à luz pelo labor metal de Joris-Karl Huysmans em 1893, quase exatamente há um século. Em À Rebours, o cáustico crítico de arte e brilhante romancista guardou como que um relicário as facetas mais espantosas da arte simbolista. A natureza já não ia ser estudada na tentativa de lhe decifrar a divina mensagem. Em compensação, o artista procurava objetos bastante estranhos para emancipar a imaginação do mundo familiar e dar voz à neurose, uma forma de ansie-dade, uma cara, por mais inconsciente que pudesse ser, até aos sonhos mais profun-dos. E não os sonhos de um indivíduo, mas da comunidade como um todo, os sonhos de uma cultura cuja estrutura estava afetada por fissuras subterrâneas. Os murmuran-tes colapsos distantemente audíveis através do edifício ofereciam um discreto ante-gosto do fim do mundo. “Decadência” era a grande questão da era do Simbolismo, “decadência” – o termo que des Esseintes escolhera para caracterizar.

A decadência significava a rejeição do “progresso” como um mal-entendido da verdadeira natureza das coisas. Toda a gente estava a trepar para o carro do progresso;

os decadentes escolheram ficar para trás. Virando-se para o seu íntimo, rejeitou a cultura exotérica da ciência e procurou consolação em perseguições esotéricas. Foi a associação dessa atitude aos ditames da moda que fizeram do dandy a figura simbo-lista par excellence: o “príncipe de um reino imaginário”, nas palavras de Disraeli. E era a necessidade de uma superioridade puramente imaginária que jazia por trás da arrogância, de certo modo histérica, do dandy supremo, o Conde Robert de Montes-quiou (fig.05). Montesquiou foi o modelo tanto para a figura cômica de des Esseintes, como para o trágico Barão de Charlus, em À La recherche Du temps perdu, de Proust.

Por conseguinte, estamos frente a frente com um paradoxo insolúvel. Porque em épocas “normais” – em períodos de tensão social mais fraca -, longe de ser o jar-dim secreto de meia dúzia de almas privilegiadas, o subjacente Simbolismo da cul-tura, que essas figuras solitárias estavam tão ávidas de preservar, constituía o solo comum em que se constituía a coesão da sociedade como um todo.

A arte, desde o princípio dos princípios, foi erigida por símbolos. Só bastante recentemente, em conseqüência de um notório mal-entendido do ideal renascentista, relativo à “imitação da natureza”, se assumiu que a tarefa do artista era reproduzir escrupulosamente o que via. No entanto, para a arte assegurar o nosso interesse, ela tem de se referir a algo mais acima e mais além de si própria e do seu sujeito mani-festo. No auge, até o Impressionismo capta uma parte da realidade quotidiana tão esquiva como a metafísica: o efêmero momento da experiência imediata. Então, o Impressionismo é uma espécie de caso limítrofe, obrigando-se a ser compatível com uma época que – sob os abalos do Positivismo – rejeitava o irreal que não podia ser tocado nem medido.

O idealismo muitíssimo tenso de grande parte da arte simbolista levou à sua rejeição em anos posteriores. A Primeira Guerra Mundial foi um exposé devastador das ilusões contemporâneas, e em obras como a Viagem o fim da noite, de Céline, tirou uma conclusão desesperante. Quase ao mesmo tempo, surgiu a revelação de Freud das raízes ocultas que sustentavam um certo tipo de idealismo: a sublimação. Da mesma forma, o aparelho crítico elaborado por Marx, e largamente aceito por historiadores e pensadores, tem-nos permitido compreender como a ideologia se serve das representações mitopoéticas para consagrar a hierarquia do poder existente.

É bastante fácil ver por que razão a complacência ingênua de grande parte d arte simbolista a deixou exposta a críticas. Mas o tempo passou, as idéias mudaram e estamos agora em posição de lhe deitar uma nova mirada. Os antropólogos do século XX têm mostrado como a fundação simbólica da cultura é indispensável ao bem-estar dos indivíduos e à sobrevivência da sociedade. Só por si, isso pode significar valores que sirvam e forneçam a cada membro da sociedade uma percepção clara da sua identidade sexual. Tais coisas não se encontram ao alcance do raciocínio, mas brotam

Page 6: Simbolismo - Michael Gibson

de uma ordem simbólica, pré-verbal, que a razão não se pode dar ao luxo de ignorar. Nem o Simbolismo deixou também de existir: permanece ativo, neste momento, nas obras de poetas e dramaturgos: um ouvido atento descobrirá vestígios dele mesmo nas peças essencialmente modernas de Samuel Beckett. Também está presente de uma maneira espetacular nos esplendores barrocos de Fellini e Pasolini.

Mais inesperados são os traços do Simbolismo em O Grande Vidro (fig.06) que parece, à primeira vista, ser tudo o que o Simbolismo não é. Formalmente tão seco como uma cópia heliográfica, expressa um ponto de vista irônico, para não dizer cínico, das relações sexuais. Mas, tanto na construção como no aspecto, revela afini-dades com as grandes machines simbolistas de Gustave Moreau, o fundador do Sim-bolismo Francês. Na verdade, a ironia nunca foi incompatível com o Simbolismo. Os trabalhos acadêmicos e sentimentais predominam, mas a poesia do simbolismo Fran-ces conta, entre os seus expoentes, não meramente Jules Laforque, já citado, mas também Alfred Jarry. O dandismo e a singularidade de Jarry fazem de si um autentico simbolista: na sua oeuvre encontramos uma transição para o modernismo de Du-champ.

De fato foi entre os artistas do Simbolismo que apareceu primeiro uma noção de autonomia absoluta da arte. A afirmação teve uma ressonância particular numa sociedade que, em geral, esperava que a arte fosse “edificante”. O Modernismo apo-derou-se dessa doutrina e exigiu que a arte, como a matemática, fosse reconhecida como um reino separado, sem relação com o contexto em que aparecia. Contudo, em vários aspectos, é visível que existe uma continuidade real entre a arte daquela época e a da nossa. Se não conseguirmos perceber isto, talvez seja por acreditarmos que o Modernismo marcou uma ruptura radical e definitiva com o passado. Mas isto é ainda um outro mito: o mito que fundou o próprio Modernismo.

Fig.01 Henry de Groux: A grande sublevação, c. 1893. Óleo sobre tela, 76 x 98 cm. Coleção particular, Paris.

FIG.02 Henry Fuseli: O pesadelo, 1781. Óleo sobre tela, 127 x 102 cm. The Detroit Institute of Arts, Detroit.

Page 7: Simbolismo - Michael Gibson

FIG.03 Francisco de Goya: O colosso, 1802-1812. Óleo sobre tela. 116 x 105 cm. Museo Del Prado, Madrid.

FIG.04 Willian Blake: O grande dragão vermelho e a mulher vestida de sol, c. 1806-1809. Aquarela, 34,3 x 42 cm. Brooklyn Museum, Brooklyn (N.Y.).

FIG.05 Giovanni Boldini: O conde Robert de Montesquiou, 1897. Óleo sobre tela, 200 x 100 cm. Musée d’Orsay, Paris.

FIG.06 Marcel Duchamp: A noiva desnudada pelos seus próprios convidados solteiros (O Grande Vidro), 1915-1923. Várias substâncias sobre vidro, 272,5 x 175,8 cm. Philadelphia Museum of Art, Filadélfia.