132
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS INSTITUTO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM ADMINISTRAÇÃO SIMBOLOGIA DE OBJETOS DECORATIVOS: Uma interpretação em Antropologia do Consumo CARLOS AUGUSTO SEPTÍMIO DE CARVALHO Mestrado em Administração Orientador: Prof. Everardo P. Guimarães Rocha Rio de Janeiro Maio de 1997

SIMBOLOGIA DE OBJETOS DECORATIVOS

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Estudo sobre antropologia

Citation preview

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    CENTRO DE CINCIAS JURDICAS E ECONMICAS

    INSTITUTO DE PS-GRADUAO E PESQUISA EM ADMINISTRAO

    SIMBOLOGIA DE OBJETOS DECORATIVOS:

    Uma interpretao em Antropologia do Consumo

    CARLOS AUGUSTO SEPTMIO DE CARVALHO

    Mestrado em Administrao

    Orientador: Prof. Everardo P. Guimares Rocha

    Rio de Janeiro

    Maio de 1997

  • ii

    SIMBOLOGIA DE OBJETOS DECORATIVOS:

    Uma interpretao em Antropologia do Consumo

    Carlos Augusto Septmio de Carvalho

    Dissertao submetida ao Corpo Docente do Instituto de Ps-Graduao e Pesquisa em

    Administrao - COPPEAD da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos

    requisitos necessrios para a obteno do grau de mestre em Cincias (M.Sc.).

    Aprovada por:

    ____________________________________ Presidente da Banca

    Prof. Everardo P. Guimares Rocha, PhD.

    ____________________________________

    Profa. Anna Maria Campos, DPA.

    ____________________________________

    Profa. ngela Maria da Rocha, PhD.

    Rio de Janeiro

    Maio de 1997

  • iii

    Carvalho, Carlos Augusto Septmio de.

    Simbologia de objetos decorativos - Uma interpre-

    tao em Antropologia do Consumo / Carlos Augusto

    Septmio de Carvalho. Rio de Janeiro: COPPEAD,

    1997.

    ix, 124p. il.

    Dissertao - Universidade Federal do Rio de

    Janeiro, COPPEAD.

    1. Marketing. 2. Antropologia.

    3. Tese (Mestr. - COPPEAD/UFRJ). I . Ttulo

  • iv

    Gostaria de agradecer o inestimvel engajamento e ateno do meu orientador Everardo.

    E minha esposa, Dayra, pelo apoio e pacincia.

  • v

    RESUMO DA TESE APRESENTADA COPPEAD/UFRJ COMO PARTE DOS

    REQUISITOS NECESSRIOS PARA A OBTENO DO GRAU DE MESTRE EM

    CINCIAS (M.Sc.).

    SIMBOLOGIA DE OBJETOS DECORATIVOS:

    Uma interpretao em Antropologia do Consumo

    CARLOS AUGUSTO SEPTMIO DE CARVALHO

    Maio de 1997

    Orientador: Prof. Everardo P. Guimares Rocha

    Programa: Administrao

    Esta dissertao tem por objetivo explorar e discutir o que a Antropologia oferece para o

    desenvolvimento do estudo do Comportamento do Consumidor. As possibilidades da

    Antropologia podem ser exploradas tanto nos seus aspectos tericos, de interpretao de

    fenmenos, quanto metodolgicos, de gerao de novos conhecimentos.

    Em termos tericos, este trabalho primeiramente aborda as bases epistemolgicas desta

    Antropologia, atravs da investigao do paradigma interpretativista em contraponto ao

    paradigma positivista, e explicita a Antropologia como um empreendimento cientfico

    autnomo. Numa segunda etapa, so apresentadas algumas importantes contribuies

    tericas da Antropologia para o estudo do consumo enquanto um fenmeno social. Esta

    abordagem interpretativista privilegia a simbologia contida nos discursos dos atores sociais

    e busca entender as suas motivaes a partir da interpretao de temas que emergem destes

    discursos.

    Em termos metodolgicos, depois da reviso de algumas etnografias em Comportamento

    do Consumidor, uma pesquisa demonstra a contribuio da Antropologia interpretativista

    ao conhecimento do consumo de decorao de casais classe mdia, jovens, sem filhos,

    onde so analisados temas simblicos emergentes dos seus discursos.

  • vi

    ABSTRACT OF THESIS PRESENTED TO COPPEAD/UFRJ AS PARTIAL

    FULFILLMENT FOR THE DEGREE OF MASTER OF SCIENCES (M.Sc.).

    SIMBOLOGIA DE OBJETOS DECORATIVOS:

    Uma interpretao em Antropologia do Consumo

    CARLOS AUGUSTO SEPTMIO DE CARVALHO

    May 1997

    Chairman: Prof. Everardo P. Guimares Rocha

    Department: Administrao

    This dissertation has as objective the discussion and inquire into Anthropologys

    potentialities to the development of the consumer behavior study. These potentialities

    arouse both from its theory, in its ability of interpreting social and cultural phenomena,

    and from its methodology, when it allows for new knowledge generation.

    This work also explores the epistemological bases of the interpretive paradigm, put against

    the positivist paradigm, and presents some important contributions from Anthropology to

    the study of consumption as a social phenomenum. The interpretive approach privileges

    the symbology contained in the social actors discourse, and seeks to understand their

    motivations based on the interpretation of themes emerging from these discourses.

    Regarding methodology, a research presents the interpretive anthropology contributions to

    the knowledge of consumption of decorative objects of newly-married young couples

    without kids, research in which symbolic themes that emerged from their discourses are

    analyzed.

  • vii

    LISTA DE ILUSTRAES

    Quadros

    Quadro 1: Resumo das abordagens positivistas e interpretativistas.................................... 10

    Quadro 2: Resumo das diferenas entre as pesquisas qualitativa e quantitativa................. 17

    Quadro 3: Comparao entre o pensamento selvagem e o pensamento burgus ................ 55

    Quadro 4: Categorias sociais e alimentao........................................................................ 73

    Quadro 5: Classes sociais e alimentao ............................................................................. 73

    Quadro 6: Atributos culturais e loci de refeio............................................................... 74

    Grficos

    Grfico 1: O modelo lgico-empirista do mtodo cientfico.............................................. 25

    Grfico 2: O modelo falsificacionista do mtodo cientfico .............................................. 26

  • viii

    SUMRIO

    1 Introduo 1

    2 As Bases Epistemolgicas do Interpretativismo 5

    2.1 Definio de paradigma 6

    2.2 Suposies filosficas dos dois paradigmas 9

    2.2.1 Suposies ontolgicas - a natureza da realidade 11

    2.2.2 Suposies axiolgicas - objetivo cognitivo 12

    2.2.3 Suposies epistemolgicas 13

    2.3 O empreendimento cientfico 21

    2.3.1 O mtodo cientfico positivista 23

    2.3.2 O mtodo cientfico relativista 27

    2.4 Concluso 29

    3 Antropologia e Consumo 30

    3.1 Teoria e prtica antropolgica 30

    3.1.1 O conceito interpretativista de cultura 32

    3.1.2 A descrio etnogrfica 34

    3.1.3 O extico e o familiar 38

    3.2 Como a Antropologia v o consumo 40

    3.2.1 Os objetos na realidade da vida quotidiana 41

    3.2.2 Categorias culturais e ritual 44

    3.2.3 Os objetos e os papis sociais 46

    3.2.4 Processo de significao 51

    3.2.5 Estratgias de posicionamento social 56

    3.2.6 Complementaridade entre bens 60

    3.3 Concluso 66

    4 Pesquisas etnogrficas em Comportamento do Consumidor 68

    4.1 A mitologia dos alimentos 70

    4.2 Etnografia de uma loja de presentes 75

    4.3 Etnografia de uma feira-livre 79

    4.4 Cirurgia plstica 82

    4.5 O dia de Ao de Graas 86

  • ix

    4.6 Pra-quedismo 90

    4.7 Concluso 94

    5 Uma pesquisa etnogrfica: casais e objetos decorativos 95

    5.1 Metodologia 96

    5.2 O grupo estudado 97

    5.3 Temas 99

    5.4 Concluses 113

    6 Eplogo e sugestes de pesquisas futuras 114

    7 Bibliografia 117

    8 Anexo 123

  • 1

    1 Introduo

    Um dos processos mais importantes que existem de substancializao das categorias

    culturais por intermdio da cultura material representada pelos objetos e artefatos

    existentes na sociedade. Os objetos contribuem para a construo de um mundo inteligvel,

    e portanto constitudo culturalmente, por serem um registro sensvel e por conferirem aos

    significados culturais uma concretude que de outra forma talvez fosse inatingvel.

    Assim, entender o simbolismo dos objetos entender as categorias culturais que norteiam

    a sociedade, e pelo raciocnio inverso, possvel entender as categorias culturais pela

    compreenso dos objetos como seus significantes.

    Este trabalho tem o objetivo de revelar o potencial da contribuio da Antropologia

    (especificamente da escola chamada interpretativista) ao estudo do Comportamento do

    Consumidor, atravs da utilizao de seu arsenal terico de anlise simblica. Esta

    contribuio aqui materializada por uma pesquisa que objetivou aprofundar o

    entendimento do consumo de objetos de decorao por parte de um dado segmento de

    consumidores. Esta pesquisa foi composta de entrevistas no-estruturadas, onde foi

    possvel interpretar o discurso dos pesquisados e assim revelar o simbolismo dos objetos

    de casa em suas vidas.

    No Captulo 2, feita uma reviso bibliogrfica do debate existente na disciplina de

    Marketing sobre o paradigma interpretativista em contraponto ao paradigma lgico-

    positivista ainda dominante.

    Paradigmas podem ser definidos como um conjunto de suposies metodolgicas,

    metafsicas, e ideolgicas com os quais os cientistas se orientam para estudar os

    fenmenos naturais e sociais (Anderson, 1986).

    O paradigma lgico-positivista entende que o estudo dos fenmenos sociais devem replicar

    o mais fielmente possvel os mtodos das cincias naturais, pois entende que os fenmenos

    scio-culturais no diferem fundamentalmente dos fenmenos fsicos ou qumicos. Assim,

    este paradigma busca retirar a subjetividade implcita na coleta de dados destes fenmenos

  • 2

    sociais e emprestar um rigor cientfico s cincias sociais atravs da formulao de

    hipteses a priori que sero comprovadas ou no nas pesquisas.

    O paradigma interpretativista, ao invs, considera que o estudo do ser humano deve no

    fugir da subjetividade explcita na apreenso da realidade social, e pelo contrrio, utiliz-la

    como mtodo vlido de compreenso dos processos e fenmenos sociais. Este paradigma

    entende que o ser humano basicamente um construtor de smbolos, e a partir desta

    constatao, o estudo dos fenmenos scio-culturais deve levar em conta a "interpretao"

    das "teias de significados" que compe a cultura que define o empreendimento humano.

    O Captulo 3 dividido em duas partes: a primeira discute as premissas fundamentais do

    interpretativismo e a segunda mostra a sua contribuio ao estudo da cultura material em

    sociedades modernas e portanto, ao estudo do Comportamento do Consumidor, sempre

    numa perspectiva eminentemente simblica.

    Na primeira parte se mostra que esta escola de pensamento, dentro da Antropologia,

    procura focalizar nos seus estudos os cdigos culturais e os sistemas simblicos da

    sociedade. O interpretativismo entende que estes sistemas simblicos ajudam a organizar

    para o indivduo-membro a natureza e os acontecimentos humanos, de tal forma que a

    cultura acaba por se tornar uma espcie de mapa do comportamento dos indivduos em

    sociedade e at mesmo em relao natureza.

    Para estudar estes cdigos culturais e sistemas simblicos preciso lanar mo da

    "descrio etnogrfica", que se utiliza da "descrio densa" (Geertz, 1989), que a

    interpretao precisa das intenes dos atores sociais a partir da anlise de seus discursos,

    escolhendo as estruturas de significao e determinando sua base social e sua importncia.

    Na segunda parte do Captulo 3 analisada como a Antropologia interpretativista tem

    contribudo para o entendimento dos fenmenos simblicos associados cultural material

    e portanto ao consumo, pois o entendimento deste ltimo s faz sentido se primeiro

    entendida a funo dos objetos no contexto da interao humana. Para isto necessrio

    compreender como as pessoas usam os objetos como transmissores de "mensagens", ou

    seja, como os objetos servem de carreadores de sentido (e assim servindo de smbolos),

    para outras pessoas no seu relacionamento. Esta anlise feita em diversos nveis.

  • 3

    No primeiro nvel, se analisa a importncia dos objetos na interao face-a-face, dentro da

    realidade da vida quotidiana. Eles funcionam como incorporadores de emoes e outros

    aspectos da subjetividade humana, de forma a organizar a interao interpessoal, e assim

    viabilizar a transmisso de estados subjetivos de um sujeito a outro. Esta organizao

    facilita muito a prpria interao, pois esta, sendo intersubjetiva, apresenta muitas

    variaes e o intercmbio de significados subjetivos extremamente complexo.

    Num segundo nvel de anlise, discutida a utilizao dos objetos como acessrios de

    rituais. Rituais podem ser definidos como "convenes que estabelecem definies

    pblicas visveis" (Douglas & Isherwood, 1980, p. 65). O indivduo usa o ritual para

    organizar sua compreenso dos eventos, atravs da representao simblica de

    determinadas categorias culturais, que podem ser definidas como a representao das

    segmentaes bsicas pelas quais uma cultura distingue o mundo circundante, criando um

    sistema de distines que organizam a interpretao do mundo fenomenal (McCracken,

    1988). Assim, os rituais ajudaro a compartimentalizar e a categorizar o espao-tempo

    circundante, de forma a torn-lo inteligvel e "administrvel".

    A seguir, partindo de outro quadro conceitual, analisada a participao dos objetos na

    composio dos papis sociais. Estes so impostos diretamente aos atores sociais pela

    sociedade por meio de expectativas socialmente definidas. A obrigatoriedade da utilizao

    destes objetos advm da sua imposio por estas expectativas. Assim, a definio da

    situao socialmente esperada por todos os agentes envolvidos impe comportamentos e

    objetos adequados. Assim, um dado lugar social no so coisas materiais que so possudas

    e exibidas, so um padro de conduta adequada, e que envolve a utilizao de objetos

    complementares e estimuladores da ao (Goffman, 1985).

    Num quarto nvel de anlise, explicitada como, numa sociedade moderna, os objetos

    servem como diferenciadores dos seus membros pela organizao destes objetos num

    sistema-cdigo coerente. Esta organizao ocorre pela diferenciao sistematizada das

    qualidades objetivas dos bens (Sahlins, 1979) que leva a uma diferenciao de seus

    possuidores. Esta sistematizao semelhante ao totemismo existente nas sociedades

    primitivas, pelo qual estas sociedades traam paralelos entre os fenmenos da natureza e

    os grupos sociais, e assim singularizam estes ltimos em contraponto aos outros grupos. O

  • 4

    operador totmico que permite esta diferenciao existe na forma de criao publicitria

    (Rocha, 1990).

    Depois, coerente com os nveis de anlise anteriores, mas numa perspectiva mais ampla,

    possvel identificar o consumo como uma estratgia de diferenciar um dado grupo atravs

    de consumo de bens a ele especficos. No caso da estratgia de diferenciao mais bvia e

    conhecida, as classes superiores usam o consumo de bens caros como instrumento de

    excluso dos que nelas tentam penetrar. No outro lado da mesma moeda possvel

    reconhecer uma estratgia de imitao, que ocorre no momento em que um grupo social

    almeja os atributos de outro grupo. No entanto, esta estratgia de imitao no se processa

    pela apropriao incondicional de todos os smbolos de um grupo, mas por um processo de

    assimilao que preserva alguns dos smbolos ou estilos do grupo apropriador.

    Finalmente, ao trmino da segunda parte deste captulo, analisada a complementaridade e

    consistncia existente entre todos os bens adquiridos e utilizados pelo consumidor.

    McCracken (1988) chamou de "efeito Diderot" a esta "fora" coercitiva que mantm esta

    unio. A idia aqui tentar estabelecer em bases tericas as motivaes relacionadas a

    uma certa consistncia no padro de consumo, o que leva a uma identificao de harmonia

    entre os bens, motivada por consideraes simblicas. Este conceito muito semelhante ao

    conceito de estilo de vida, apesar de almejar uma consistncia terica muito maior do

    que este ltimo.

    No Captulo 4, dentro de uma reviso bibliogrfica, so feitos comentrios acerca das mais

    representativas pesquisas etnogrficas realizadas no domnio do Comportamento do

    Consumidor. Foram escolhidas para anlise estudos que tm em comum o fato de valorizar

    o discurso dos atores sociais. Alm disso, coerente com o paradigma interpretativista,

    todos buscam interpretaes dos temas que emergem durante a pesquisa. Comum tambm

    a todos os trabalhos o forte embasamento terico da Antropologia na interpretao dos

    discursos.

    No Captulo 5 feita uma pesquisa qualitativa de base interpretativa, buscando temas

    acerca do simbolismo inerente aos objetos de decorao em um grupo de consumidores

    composto de casais classe-mdia sem filhos. A inteno deste captulo oferecer um

  • 5

    roteiro bsico de uma pesquisa etnogrfica. Finalmente, no captulo 6 so oferecidas

    algumas sugestes para pesquisas futuras no campo da Antropologia do Consumo.

    2 As Bases Epistemolgicas do Interpretativismo

    Para se discutir a contribuio do mtodo antropolgico interpretativista ao estudo do

    Comportamento do Consumidor, necessrio entender primeiramente as suas bases

    epistemolgicas, e isto por duas razes. Primeiro, e mais importante, porque todo mtodo

    cientfico est inextrincavelmente ligado a uma dada crena na natureza da realidade e no

    tipo de conhecimento obtenvel; e segundo, os paradigmas do mtodo antropolgico vo de

    encontro aos paradigmas ainda dominantes no Marketing, e convm tornar claros os seus

    pontos de divergncia.

    Assim, o objetivo deste captulo ser abordar como o paradigma interpretativista

    contraposto ao paradigma positivista na disciplina do Marketing e como estes dois

    paradigmas impactam cada um a seu modo o empreendimento cientfico, desde os diversos

    mtodos de apreender a realidade at seus modelos explicativos.

    Retomando o acima comentado, que o paradigma positivista ainda influencia grandemente

    a gerao de conhecimento no Marketing, expe Hirschman (1986; p. 237):

    "Mesmo que o pensamento de Marketing tenha subsequentemente evoludo

    pelo institucionalismo, funcionalismo e comportamentalismo como sucessivas

    bases ideolgicas, ele manteve-se leal aos mtodos positivistas e metafsica

    originrios das cincias fsicas. Empiricismo, realismo e quantificacionismo

    continuaram sendo as normas que guiam o Marketing enquanto cincia, mesmo

    que a conceitualizao dos fenmenos mercadolgicos evoluiu at reconhecer

    a importncia do contexto situacional, da subjetividade da percepo e da

    natureza construda da realidade humana."

    Apesar da enorme evoluo do Marketing enquanto corpo de conhecimento nas ltimas

    dcadas, a proposio de novas teorias tem sido limitada, pois ele tem se ressentido da

    extrema nfase dada criao e teste de hipteses visando a constituio de leis

    generalizantes explicativas dos fenmenos de Marketing.

  • 6

    No entanto, de dez anos para c alguns acadmicos tm comeado a apontar as deficincias

    do paradigma lgico-empirista, ainda dominante na pesquisa de Marketing (conforme

    Anexo), de acordo com as ltimas contribuies da histria e da sociologia da cincia. Em

    alguns artigos (Anderson, 1983; Deshpande, 1983; Peter & Olson, 1983) proposto o

    estabelecimento de outro paradigma no estudo dos fenmenos de interesse do Marketing.

    Baseando-se nos trabalhos de Kuhn, Feyerabend e outros, eles sugerem que o modo como

    o conhecimento gerado e difundido fundamentalmente um empreendimento subjetivo e

    social, e relativo a cada viso de mundo compartilhado por dada comunidade cientfica.

    Dentro deste quadro, alguns autores (Hirschman, 1986; Holbrook & O'Shaughnessy, 1988;

    Hudson & Ozanne, 1988) propem uma nova perspectiva pesquisa de comportamento do

    consumidor. Eles sugerem que o pesquisador deve buscar no fugir desta subjetividade

    explcita na apreenso da realidade social, e pelo contrrio, utiliz-la como mtodo vlido

    de compreenso dos processos e fenmenos sociais. Assim, a subjetividade deve ser

    reforada, e a "interpretao" das "teias de significados" deve ser valorizada.

    2.1 Definio de paradigma

    Para entender as diferenas de abordagem entre o paradigma ainda dominante e o

    interpretativismo proposto importante estabelecer o que um paradigma ou filosofia

    cientfica. Segundo Hirschman (op. cit., p. 238),

    "Filosofias cientficas (...) so baseadas em um conjunto de suposies

    primrias (axiomas) que so aceitas baseadas na f; ou seja, elas so baseadas

    em crenas acerca da natureza da realidade, cuja verdade ou falsidade no

    esto sujeitas a qualquer teste emprico".

    Estas crenas vo atuar como "estratgias" para entender os fenmenos sociais e so

    asseres acerca de valores e no acerca de fatos. As teorias, proposies e hipteses de

    uma cincia esto embasados em macroestruturas chamadas de "paradigmas" ou "reas de

    pesquisa". Elas podem ser assim definidas (Anderson, 1986, p. 159):

    "Estas macroestruturas so (...) uma srie de compromissos empricos,

    metafsicos, ontolgicos, metodolgicos, axiolgicos e ideolgicos feitos por

  • 7

    indivduos que escolhem estudar fenmenos sociais e naturais de uma

    perspectiva particular".

    A introduo do conceito de "paradigma" no discurso da filosofia da cincia deve-se a

    Kuhn (1989). Segundo ele, um paradigma cientfico se compe de uma srie de:

    (1) Generalizaes simblicas;

    (2) Partes metafsicas;

    (3) Valores;

    (4) Modelos exemplares.

    Estes componentes do paradigma permitem a uma dada comunidade cientfica identificar

    quais problemas so de sua alada, como tentar resolv-los, e com que critrios julgar as

    explicaes geradas no seio do meio cientfico.

    Ainda segundo Kuhn, as "generalizaes simblicas" seriam as expresses formais ou

    facilmente formalizveis unanimemente utilizadas pelos membros da comunidade

    cientfica. Elas funcionam em parte como leis e em parte como definies dos smbolos os

    quais elas empregam. Assim, elas seriam a base conceitual e definidora dos aspectos da

    realidade que so o objeto de estudo da cincia.

    As "partes metafsicas de um paradigma" seriam definidas como os compromissos

    coletivos da comunidade cientfica com crenas em determinados modelos. Estes seriam

    definidos pela sua utilidade: eles forneceriam comunidade as analogias ou metforas

    preferidas ou permissveis. Segundo Kuhn (1989, p.229),

    "...[os modelos] auxiliam a determinar o que ser aceito como uma explicao

    ou como uma soluo de quebra-cabea, e inversamente, ajudam a estabelecer

    a lista dos quebra-cabeas no-solucionados e a avaliar a importncia de cada

    um deles".

    Os valores so critrios, s vezes com grande variabilidade entre indivduos, que so

    utilizados mais comumente para a avaliao da pertinncia e da relevncia das teorias.

  • 8

    Basicamente, estes valores seriam: capacidade de formular e resolver quebra-cabeas;

    simplicidade; coerncia interna; e compatibilidade com outras teorias correntes.

    Por fim, os "modelos exemplares", que so o mais importante componente de um

    paradigma. Um "modelo exemplar" seria um exemplo de resoluo bem sucedida de

    problemas cientficos anteriores, utilizados pelo grupo para a resoluo de um novo

    problema, atravs da sua "modelagem" de acordo com as solues anteriores. Eles

    serviriam como um "enquadramento" da realidade observada de forma a permitir o

    entendimento do problema como tal e a sua possvel resoluo. Este "enquadramento"

    fruto do aprendizado da prtica cientfica, e se baseia na percepo de uma "relao de

    semelhana" entre situaes objetivas, mais do que na assimilao de leis e regras

    cientficas.

    Em resumo, um paradigma inclui uma srie de teorias que dependem em parte das crenas

    metafsicas compartilhadas pela comunidade cientfica. Em termos mais prticos, estas

    suposies filosficas acerca da natureza da realidade e do conhecimento iro influenciar:

    (1) o significado dos termos da linguagem utilizada na rea de pesquisa; (2) os cnones do

    controle e design experimental; (3) padres de avaliao da adequao de uma teoria; (4) a

    relevncia da informao para o conjunto de teorias; (5) questes e problemas que estas

    teorias vo tentar resolver (Hunt, 1991, p. 325). Exemplos de paradigmas nas cincias

    naturais seriam a mecnica newtoniana, a teoria evolutiva de Darwin e a teoria quntica.

    Nas cincias humanas poderiam ser considerados paradigmas a psicoanlise freudiana e a

    teoria econmica marxista.

    Ademais, a produo do conhecimento cientfico deve ser visto como um processo

    sociolgico (Anderson, 1983). Assim,

    "Crenas cientficas so funo de fatores culturais, polticos, sociais e

    ideolgicos tanto quanto quaisquer outras crenas dos membros de uma

    sociedade". (Anderson, 1983, p. 24)

    A "realidade" um empreendimento social construdo que influencia as aes e atitudes

    dos membros de dada sociedade, e ela relativa viso de mundo de cada cultura ou

  • 9

    sociedade (Berger & Luckmann, 1991). Isto no diferente para os membros de dada

    comunidade cientfica. Segundo Anderson (1988, p. 156),

    "A cincia um empreendimento cultural e histrico, e seu conhecimento

    gerado podem ser afetados tanto por fatores sociolgicos quanto por

    consideraes puramente "cognitivas" ou empricas. (...) Fatores sociais e

    cognitivos esto inextricavelmente ligados em toda cincia simplesmente por

    que ela uma atividade humana e cultural".

    A relao entre conhecimento e sua base social dialtica e vai depender de vrios fatores,

    tais como interesses sociais em jogo, grau de requinte terico do conhecimento em questo

    e importncia social deste conhecimento (Berger & Luckmann, 1991, p. 161).

    2.2 Suposies filosficas dos dois paradigmas

    Nesta seo se tentar estabelecer como as suposies filosficas de dada rea de pesquisa

    acerca da natureza da realidade e do conhecimento influenciam a constituio de seus

    mtodos (Hudson & Ozanne, 1988). A grosso modo, sob o nome de "positivismo" so

    includas todas as correntes que consideram que a realidade pode vir a ser percebida de

    forma objetiva e sem vises cognitivos. Podem ser includos sob este termo o empirismo

    lgico, o neo-empirismo e o positivismo lgico. O paradigma interpretativista inclui

    pesquisas denominadas "etnogrficas", "hermenuticas", "interativas" e

    "fenomenolgicas". Segundo Hudson e Ozanne, estes tipos de pesquisa so

    interpretativistas no sentido de que buscam um entendimento dos eventos sociais e

    culturais baseados nas perspectivas e experincias das pessoas sendo estudadas. Alm

    disso, se baseiam tambm no fato de que o entendimento da realidade social tem de ser

    feita sempre atravs da "interpretao" das relaes simblicas construdas pelos

    participantes.

    A diferena fundamental entre o interpretativismo e o positivismo o fato de o ltimo

    considerar mtodo e conhecimento cientfico o mesmo tanto para as cincias naturais

    quanto para as cincias do homem. Assim, o positivista toma a realidade psicolgica e

    social do homem como apreensvel da mesma forma que a realidade fsica, qumica ou

    biolgica. J o interpretativista encara o estudo do homem como necessariamente

  • 10

    diferenciado, pelos desafios especficos oferecidos por um objeto de estudo capaz de criar

    smbolos (Hudson & Ozanne, 1988). Holbrook e O'Shaughnessy (1988, p. 400) abordam

    com clareza a necessidade da interpretao no estudo do comportamento do consumidor:

    "O reconhecimento de que as pessoas em geral e os consumidores humanos em

    particular diferem de tomos e molculas na sua infindvel busca por sentido

    impe a necessidade da interpretao na nossa tentativa de explicar os

    significados inseridos no comportamento do consumidor".

    Dentro da linha de raciocnio apresentada, o estudo do homem em sociedade deve levar em

    conta esta especificidade. Se o homem se utiliza de smbolos que o ajudam a interpretar e

    agir sobre o mundo, nada mais oportuno que tentar estudar como so estes smbolos e

    como eles influenciam e modificam o comportamento humano. Mas para isto necessrio

    um esforo interpretativo, j que as teias de significados criadas pelas vrias culturas nem

    sempre so dadas explcita ou conscientemente. Um esforo de "garimpagem" de sentidos

    e significados ter de ser empreendido, e este esforo a interpretao.

    Quadro 1

    RESUMO DAS ABORDAGENS POSITIVISTAS E INTERPRETATIVISTAS

    Suposies Positivista Interpretativista

    Ontolgicas:

    Natureza da realidade

    Objetiva e tangvel,

    nica, fragmentvel,

    divisvel

    Construda socialmente,

    mltipla, holstica,

    contextual

    Axiolgicas:

    Objetivo cognitivo

    Explanao via

    subordinao a leis gerais;

    predio

    "Entendimento" baseado na

    Verstehen

    Epistemolgicas:

    Viso de causalidade

    Causas reais existem Formao mltipla e

    simultnea

    Adaptado de Hudson e Ozanne (1988, p. 509)

  • 11

    2.2.1 Suposies ontolgicas - a natureza da realidade

    O paradigma positivista pretende que a realidade pode ser objetivamente apreendida

    atravs do comportamento externo dos agentes sociais, e que ela nica e muitas vezes

    independente das percepes subjetivas destes agentes. Na verdade, poucos positivistas

    ainda advogam a irrelevncia dos estados subjetivos do indivduo, no entanto quase todos

    consideram que estes estados s so relevantes quando suas consequncias so

    empiricamente observveis, ou seja, quando estes estados subjetivos se vem

    transformados em aes objetivas. Como sustentam Hudson e Ozanne (1988, p. 509),

    "[Para os positivistas] o mundo social, como o mundo fsico, tambm existe

    independentemente das percepes individuais como um estrutura real, concreta e

    imutvel".

    Alm disso, o termo utilizado pelos positivistas para designar as cincias humanas e

    sociais, "cincias do comportamento", ajuda a entender a importncia dada ao estudo do

    homem grandemente baseada nas suas aes e seus comportamentos.

    J para o interpretativismo, a realidade social no pode ser apreendida sem se entender

    como esto constitudos os estados subjetivos dos agentes sociais. A realidade construda

    socialmente, e para entender como os fenmenos sociais ocorrem fundamental entender

    qual a percepo da realidade pelos participantes, j que esta Weltanschauung que ir

    balizar suas aes e atitudes. No entanto, no existe apenas uma viso de mundo, sendo a

    realidade socialmente construda, "na medida em que todo conhecimento humano

    desenvolve-se, transmite-se e mantm-se em situaes sociais" (Berger & Luckmann,

    1991, p. 14). Assim a cada viso de mundo corresponde uma realidade, existindo assim

    mltiplas realidades.

    Ademais, estas realidades socialmente construdas esto sempre se modificando, e um

    conjunto expressivo de fatores est sempre influenciando os fenmenos estudados. Assim,

    a realidade em vista deve ser estudada dentro de um contexto global, e no possvel

    fragment-la para facilitar o seu entendimento, pois

    "O contexto onde um comportamento ou evento surge influencia o significado

    do fenmeno; ento, a realidade deve ser vista holisticamente e partes desta

  • 12

    realidade no podem ser separadas de seu ambiente natural e estudado em

    isolamento" (Ozanne & Hudson, 1989, p. 2).

    Portanto, o interpretativismo considera que todos os fatores agindo em dado fato social so

    relevantes, e assim uma anlise excludente pecaria sempre por reducionismo.

    2.2.2 Suposies axiolgicas - objetivo cognitivo

    O objetivo cognitivo explcito do credo positivista a explanao dos fenmenos sociais, a

    qual levaria predio. "Explanao" em termos positivistas pode ser definida como a

    demonstrao de associaes sistemticas de variveis existentes num dado fenmeno

    (Hudson & Ozanne, 1988, p. 510). Hunt (1991, p. 79), por exemplo, a partir de argumentos

    estritamente lgicos, afirma que toda explanao potencialmente uma predio e vice-

    versa. Ele vai alm e declara que toda teoria social que no capaz de realizar predies

    no contribui relevantemente ao entendimento cientfico.

    Para o "positivismo", a explanao e a predio somente so possveis atravs de leis

    generalizantes que tentam representar a realidade (considerada nica) da maneira mais

    vlida possvel. Estas leis "universais" somente so possveis pela construo de

    generalizaes - hipteses ou proposies - que so refinadas e reestruturadas atravs de

    sistemtica corroborao e confirmao emprica em leis mais "gerais". As leis devem ser

    nomolgicas: no-casusticas, no-acidentais, no-especficas (Hunt, 1991).

    Finalmente, dado que a realidade nica e que se pode identificar causas e efeitos de

    maneira inequvoca, a predio claramente possvel, pois as leis so deterministas - ou

    estatsticas - e universais.

    No entanto, diferentemente das cincias da natureza, existe uma incerteza muito grande em

    relao ao grau de previsibilidade das teorias em cincias sociais. Os filsofos da cincia

    lgico-empiristas consideram a deduo como o raciocnio lgico mais rigoroso a ser

    utilizado na previso terica de fenmenos, pois na deduo a concluso deriva

    necessariamente das premissas. Contudo, nem as cincias exatas so capazes de serem to

    rigorosas, pois elas se baseiam tambm na explicao indutiva e na explicao

    probabilstica.

  • 13

    Por outro lado, o interpretativista entende que a constituio de leis gerais e

    descontextualizadas, baseadas em relaes de causas e efeitos explicitamente

    determinadas, tarefa impossvel, por causa da extrema complexidade e das rpidas

    mudanas que caracterizam os processos sociais. O objetivo de toda cincia social deve ser

    a de "entender" e ou "antecipar" o comportamento, e no prediz-lo (Hudson & Ozanne,

    1988, p. 510). Este "entendimento" possvel atravs da interpretao dos significados

    apreendidos pelos sujeitos a partir de um dado processo social. Ademais, alguns

    interpretativistas consideram que o objetivo ltimo de toda produo de conhecimento

    aperfeioar o discurso sobre a realidade social, mais do que buscar uma lenta acumulao

    de conhecimentos objetivos sobre dada realidade.

    A produo terica de um interpretativista localizada em um contexto espacial e temporal

    bem definido, em que o estudo de processos sociais complexos so aprofundados o

    mximo possvel. Por isto, o potencial de generalizao das pesquisas interpretativistas

    limitado - mas no impossvel. Distinto do positivista, o interpretativista no escolhe um

    contexto de estudo para reforar o grau de explanao e generalidade de uma teoria. Ele o

    escolhe pela relevncia do estudo dentro do contexto de sua disciplina, como por exemplo,

    quebra-cabeas tericos no resolvidos, ou at mesmo por interesse pessoal.

    2.2.3 Suposies epistemolgicas

    Viso de causalidade

    Talvez o conceito de causalidade seja o que permita melhor visualizar as radicais

    diferenas entre os paradigmas. A causalidade a base primeira de todo o esforo

    cientfico positivista, e sua discusso permite esclarecer o quo distantes esto as crenas

    de ambos paradigmas sobre a natureza da realidade. A descrio das diferenas entre os

    dois enfoques por Hirschman (1986, p. 240) (onde o "interpretativista" chamado

    "humanista"), reveladora:

    "O pesquisador positivista provavelmente tem do fenmeno um esquema a

    priori composto de elementos discretos (i.e., variveis) que esto encaixados

    numa rede causal. Este esquema mental leva o cientista positivista a designar

    certos elementos como causa e outros como efeitos e a se concentrar em

    identificar as conexes precisas entre eles. (...) Em contraste, o investigador

  • 14

    humanista constri uma conceptualizao mental a priori muito diferente. O

    fenmeno provavelmente encarado como uma extensa e indistinta massa cuja

    textura, fontes de coeso e contedo o pesquisador quer aprender. (...) O que o

    pesquisador humanista deseja compreender e interpretar esta 'massa', abarcar

    seus significados em sua inteireza".

    A viso de causalidade defendida pelo positivismo melhor definida apresentando alguns

    critrios de validao de explanaes cientficas, pois as explanaes, para serem vlidas,

    devem obrigatoriamente ser causais, segundo quatro critrios (Hunt, 1991, p. 87):

    "sequencialidade temporal: o fator A que explica causalmente B deve ocorrer

    antes no tempo;

    variao associativa: se A causa B, ento mudanas no nvel ou na presena de

    A devem ser sistematicamente associados com mudanas no nvel ou presena

    de B;

    associaes no-esprias: Se A causa B, ento nenhum fator Z introduzido na

    explanao pode fazer com que desaparea a associao sistemtica entre A e

    B;

    suporte terico: novas teorias devem ser compatveis com teorias j existentes

    sobre assuntos semelhantes ou correlatos".

    Os trs primeiros critrios implicam uma particular viso sobre a natureza das relaes

    entre os diversos fatores implicados em qualquer contexto social. Supe-se que as relaes

    entre fatores sejam sempre causais e diacrnicas, ou seja, por definio a causa sempre

    precede temporalmente o efeito; implica-se que toda relao de causa e efeito tenha um

    componente quantitativo, ou seja, que se possa medir matematicamente o "grau de

    causalidade" de uma relao; e finalmente, que possa se separar com clareza as diversas

    relaes e processos existentes num fenmeno social. Notadamente esta ltima implicao

    extremamente polmica nas cincias sociais. Ela tem como consequncia a utilizao de

  • 15

    pesquisas experimentais que sistematicamente excluem ou controlam fatores que possam

    influenciar na medio da correlao entre os fatores (variveis dependentes e

    independentes) considerados relevantes a priori.

    J para um interpretativista qualquer contexto de estudo to complexo e dinmico que

    dificilmente as relaes podem ser identificadas como de causa e efeito. Os fatores

    interagem entre si e se modificam simultaneamente, e no possvel precisar o que causa

    e o que efeito, muito menos acusar uma possvel sequencialidade temporal. Por isto as

    "experincias" que controlam e monitoram rigidamente as variveis so reducionistas e

    no conseguem dar conta de todos os fatores relevantes interagindo num dado processo

    social. Tambm a quantificao pouco valorizada pelo interpretativista, pois ele sempre

    busca entender uma "teia" de relaes e smbolos dados socialmente, e no quantificar a

    influncia de um fator sobre o outro.

    Metodologia

    O que ser chamado de metodologia aqui diz respeito aos procedimentos operacionais e

    prticos para a consecuo de uma pesquisa cientfica. Estes mtodos se ocupam da

    observao e medida, formao de conceitos e hipteses, e realizao de experimentos.

    Num continuum de operacionalidade eles seriam o "meio caminho" entre as tcnicas e os

    mtodos cientficos gerais. As tcnicas so procedimentos de mensurao de dados

    empricos tais como questionrios e os mtodos cientficos gerais so procedimentos que, a

    partir de princpios lgicos ou metafsicos, se dedicam a efetuar generalizaes a partir da

    coleta de dados, da criao de conceitos, do teste de hipteses, e posteriormente da

    elaborao de explanaes cientficas.

    Antes de qualquer discusso sobre metodologia conveniente esclarecer a diferena entre

    "interpretativo", "qualitativo" e "etnogrfico". "Interpretativo" sempre se refere ao

    paradigma sob o qual vrias correntes de pesquisa se abrigam. "Qualitativo" se refere ao

    conjunto de abordagens metodolgicas praticadas dentro - e fora - do paradigma

    interpretativista, dentre as quais podem ser citados estudos de caso, estudos de entrevistas

    intensivas, anlise de discurso e etnografia. "Etnogrfico" se refere a uma abordagem

    metodolgica bsica nascida na Antropologia por causa da necessidade de se entender

  • 16

    valores e modos de pensar de culturas diversas da nossa, e que tem atualmente encontrado

    aplicaes em nossa prpria sociedade.

    A anlise da metodologia preferencial de cada paradigma ser feita partindo de duas

    dimenses, dada a complexidade do assunto e suas quase interminveis variaes e

    correlaes. A primeira dimenso diz respeito utilizao de dados quantitativos e de

    dados qualitativos e a segunda dimenso relativa aos "mtodos especficos" (Gil, 1987)

    mais utilizados em pesquisa social.

    Pesquisa qualitativa e quantitativa

    Dados quantitativos podem ser definidos como dados em forma de nmeros, sejam eles

    escalas numricas ou estatsticas. Os dados qualitativos seriam aqueles dados apresentados

    na forma de descries e narraes.

    Cada paradigma tem um mtodo privilegiado em suas pesquisas. No caso do eixo

    quantitativo-qualitativo, o mtodo por excelncia utilizado pelo interpretativista a

    pesquisa qualitativa. J o positivista se utiliza mais do mtodo quantitativo. importante

    deixar claro que o uso do mtodo no exclusivo, e tanto o positivista quanto o

    interpretativista se utilizam da pesquisa qualitativa (Gil, 1987; Selltiz et alii, 1975; Miles

    & Huberman, 1984; Kerlinger, 1973). A diferena que o positivista se utiliza largamente

    do mtodo hipottico-dedutivo para a verificao de hipteses dentro da pesquisa

    qualitativa, ou mais comumente, utiliza esta como pesquisa exploratria limitada de futuras

    pesquisas quantitativas de larga escala. O Quadro abaixo resume as principais distines

    entre as duas pesquisas.

  • 17

    Quadro 2

    RESUMO DAS DIFERENAS ENTRE AS PESQUISAS QUALITATIVA E QUANTITATIVA

    Pesquisa Qualitativa Pesquisa Quantitativa

    Interessada em entender o comportamento

    humano a partir do quadro de referncia do

    ator.

    Busca os fatos ou causas dos fenmenos

    sociais sem propor interpretao subjetiva.

    Abordagem fenomenolgica. Abordagem lgico-positivista.

    Pesquisador busca a subjetividade e a

    perspectiva interna; prximo aos dados.

    Pesquisador busca a objetividade e a

    perspectiva externa; distanciado dos dados.

    Fundamentada (grounded); orientada para

    descoberta; exploratria; expansionista;

    descritiva; indutiva.

    No fundamentada (ungrounded);

    orientada para a verificao; confirmatria;

    reducionista; inferencial; hipottico-

    dedutiva.

    Medidas observacionais naturalistas, no

    controladas.

    Medidas obstrusivas, controladas.

    Fenmenos enquanto processos. Fenmenos enquanto resultados.

    Validade crtica; dados "reais", "ricos" e

    "profundos".

    Confiabilidade crtica; dados replicveis.

    Holstica, tenta a sntese. Particularista, tenta a anlise.

    Adaptado de Deshpande (1983).

    A pesquisa qualitativa se baseia fundamentalmente numa Verstehen das motivaes e

    valores dos indivduos engajados nos fenmenos sociais, e procura entender as motivaes

    subjetivas dos agentes sociais, sem se deter necessariamente em comportamentos

    diretamente analisveis.

  • 18

    Os dados obtenveis em pesquisas qualitativas tm algumas caractersticas diferenciais que

    as tornam especialmente mais ricas que os dados obtenveis por meio de pesquisas

    quantitativas (Miles & Huberman, 1984). Dados qualitativos so fonte de descries ricas

    e bem embasadas, que fornecem explicaes contextualizadas, assim relevando o sistema

    tambm em seus aspectos espaciais e temporais. A sua utilizao tambm permite achados

    no-esperados (serendipitous findings) e novas integraes tericas; e auxilia aos

    pesquisadores a ir alm de pr-concepes iniciais. Segundo os mesmos autores, as

    palavras, base de todo dado qualitativo, principalmente quando construdo na forma de

    histrias ou incidentes, possuem um "sabor" vvido e concreto que bem mais convincente

    para o leitor - acadmico ou profissional - que pginas e pginas de nmeros impessoais.

    As pesquisas quantitativas so utilizadas fundamentalmente pelos positivistas. Isto ocorre

    pois sua definio de mtodo cientfico considera como de extrema importncia a

    possibilidade de verificao e replicao das pesquisas, e estes dois critrios encontram sua

    maior sofisticao formal na pesquisa quantitativa.

    A pesquisa quantitativa procura encontrar relaes numricas de causa e efeito - atravs de

    variveis dependentes e independentes - entre os fenmenos baseando-se em equaes e

    estatsticas, muitas vezes se restringindo a fatores externamente analisveis, em busca de

    objetividade na observao dos fenmenos.

    Ademais, sendo fundadas na confirmao e na verificao, e portanto limitadas na gerao

    de novas teorias (Glaser & Strauss, 1977), se preocupam basicamente com testes de

    hipteses anteriormente construdas e com metodologias que possam ser replicveis.

    Assim, este tipo de pesquisa em geral se baseia no mtodo hipottico-dedutivo e

    fundamentalmente reducionista, enquadrando os fatos sociais em esquemas que eliminam

    alguns fenmenos da anlise em prol de um maior rigor estatstico ou metodolgico. Por

    isso, comum neste tipo de pesquisa a constituio de sistemas ideais, em que a anlise da

    complexa realidade social simplificada para que se possa construir modelos lgicos

    restritos que s do conta de alguns aspectos do fenmeno em estudo.

    Mtodos especficos

    Mtodos especficos so os meios tcnicos que fornecem a orientao necessria

    realizao da pesquisa social, sobretudo obteno, processamento e validao dos dados

  • 19

    pertinentes problemtica estudada (Gil, 1987). No entanto, para evitar confuso com

    "tcnica", mtodo especfico aqui definido como um conjunto de procedimentos

    suficientemente gerais para permitir o desenvolvimento de uma investigao cientfica.

    Podem ser identificados cinco mtodos especficos utilizados comumente na pesquisa em

    cincias do homem (op. cit., p. 34): o experimental, o estatstico, o comparativo, o

    observacional e o clnico. O ltimo no interessa aqui por ser utilizado quase que somente

    pela Psicologia.

    O mtodo experimental definido pela identificao das variveis independente e

    dependente e excluso do ambiente de pesquisa ou controle de todos os outros fatores

    considerados irrelevantes (Hunt, 1991). o mtodo especfico por excelncia dos

    empiristas lgicos, pela clara importncia da causalidade no seu design, e considerado

    insuficiente pelos interpretativistas por impedir a apropriada contextualizao dos

    fenmenos sociais.

    O mtodo estatstico eminentemente quantitativo, e fundamenta-se na aplicao da teoria

    de probabilidades na construo de leis probabilsticas que sero posteriormente testadas.

    Com a utilizao de testes estatsticos possvel determinar, em termos numricos, a

    probabilidade de acerto de determinada proposio, bem como a margem de erro de um

    valor obtido. Tambm muito utilizado pelos empiristas lgicos.

    O mtodo comparativo procura cotejar diferentes fenmenos ou fatos sociais com a

    inteno de ressaltar suas diferenas e similaridades. Permite o estudo comparativo de

    grupamentos sociais separados no espao e tempo. Assim, possvel comparar diferentes

    culturas ou diferentes padres de comportamento familiar na mesma cultura. No se

    preocupa fundamentalmente com a acurcia da coleta de dados, e sim na construo de

    "categorias conceituais" (Glaser & Strauss, 1977) que permitam uma generalizao dos

    conceitos obtidos em um contexto para outros. um mtodo baseado fortemente na

    induo, e pouco aceito pelos positivistas, por no se basear em critrios lgico-dedutivos

    de verificao.

    O mtodo observacional pode ser caracterizado pelo fato de se "dirigir, fundamentalmente,

    para a descrio e compreenso do comportamento [social], tal como ocorre naturalmente"

    (Selltiz et alii, 1975, p. 265). Ele busca prioritariamente examinar com mincia o

  • 20

    comportamento dos atores sociais em que o principal instrumento de coleta de dados o

    prprio pesquisador interagindo com os atores. Podem ser identificados dois tipos de

    observao, a sistemtica e a assistemtica. A fundamental diferena entre ambos a

    planificao antes da pesquisa de que aspectos da realidade social a ser estudada sero

    observados.

    Os mtodos baseados na observao sistemtica buscam a descrio criteriosa e induzida

    de dado fenmeno, atentando para determinados aspectos j definidos antes do incio da

    pesquisa. Assim, feito de antemo um plano que ir direcionar a realizao e o registro

    apenas das observaes pertinentes aos interesses do pesquisador. Pelo seu carter

    estruturado e pela pr-definio de aspectos relevantes, so muito utilizados pelos

    pesquisadores qualitativos lgico-empiristas (Miles & Huberman, 1984). A pr-

    determinao de alguns objetos de estudo dentro de um "ambiente" de pesquisa o torna

    apropriado tanto para situaes de pesquisa de campo quanto em experimentos

    laboratoriais. Apesar de o pesquisador no poder prever o curso dos acontecimentos ou ter

    pouco ou nenhum controle do que pode ocorrer, ele pode estabelecer antecipadamente que

    tipos de comportamento devem ser observados para responder indagao da pesquisa.

    Da deriva que o registro dos comportamentos tambm feito de forma mais ou menos

    estruturada, por exemplo, atravs de cartes e formulrios. O contedo do que pode ser

    observado se encontra limitado, de modo a se manter dentro do escopo estabelecido

    anteriormente. Sendo assim, hipteses podem ser testadas e relaes causais reveladas,

    pois o mtodo da observao sistemtica permite realar alguns fatores em detrimentos de

    outros.

    O mtodo de observao assistemtica encompassa uma srie de mtodos originrios da

    prtica etnogrfica em Antropologia. Ele se define a grosso modo por duas caractersticas:

    a no-definio a priori de aspectos comportamentais a serem estudados; e a interao

    intensa do pesquisador com os atores sociais.

    A primeira caracterstica implica na observao de todos os aspectos comportamentais

    possveis, que em geral deriva para uma "focalizao" em aspectos mais especficos, de

    acordo com a prpria dinmica de observao empreendida pelo pesquisador. Obviamente

    existem critrios para a observao assistemtica, j que nem todos os aspectos podem ser

    apreendidos. Os registros em geral so feitos sob a forma de dirios e notas de campo, em

  • 21

    que todos os acontecimentos so descritos extensamente e buscando a maior fidelidade

    possvel aos fatos vistos e ouvidos.

    A observao assistemtica s vezes pode tomar a forma de "observao participante", em

    que o pesquisador se torna um membro engajado na comunidade ou no grupo em estudo,

    ao contrrio da "observao no-participante", em que o pesquisador se limita a observar e

    conversar com os informantes.

    2.3 O empreendimento cientfico

    A inteno desta seo mostrar como cada paradigma percebe o empreendimento

    cientfico. Isto tem ligao direta com a maneira como o conhecimento criado, validado e

    transmitido dentro de uma comunidade cientfica.

    Em geral o positivista se baseia numa concepo de cincia absolutista ou realista, e o

    interpretativista se baseia numa concepo relativista (Anderson, 1986). Obviamente

    existem muitas correntes dentro de cada credo, e que muitas vezes esto em contradio

    entre si. A inteno aqui , a partir do que cada paradigma considera mtodo cientfico,

    estabelecer os critrios de validade do conhecimento de cada um, dentro das linhas gerais

    de crenas mais comuns de cada paradigma.

    O positivista em geral valoriza o mtodo cientfico das cincias naturais como o nico

    mtodo cientfico que cria e valida o conhecimento cientfico. A validade do conhecimento

    est fundado numa justificao metodolgica que passa pelo rigor lgico de suas

    proposies acerca da realidade emprica. Ademais, cientistas com uma orientao

    positivista geralmente possuem um ponto de vista realista. Com isto quer-se dizer que eles

    partilham da crena de que existe um mundo exterior passvel de aproximao atravs de

    observaes empricas(Peter & Olson, 1983). Portanto,

    "Teorias so tratadas como afirmaes gerais acerca do mundo real. O objetivo

    [da cincia] desenvolver teorias crescentemente mais prximas de serem

    afirmaes verdadeiras acerca da realidade" (Peter & Olson, 1983, p. 120).

    A busca de conhecimento dentro do paradigma positivista se baseia no fato de que

    possvel construir-se leis gerais, que seriam constitudas por um lento acmulo de

  • 22

    evidncias empricas gradualmente aperfeioadoras destas leis, at que um dia se chegaria

    a uma teoria explicativa nica e definitiva (Anderson, 1986, p. 157). Para o positivista, o

    conceito de verdade fundamental na avaliao da relevncia do conhecimento gerado.

    Uma teoria ou proposio pouco ou muito verdadeira se ela se aproxima pouco ou muito

    da realidade, dentro dos padres de validade considerados cientficos.

    Ao contrrio do positivismo, o interpretativismo entende que o conhecimento cientfico

    relativo, por entender que a realidade, inclusive a cientfica, socialmente construda

    (Berger & Luckmann, 1991). Sendo a cincia um empreendimento social como qualquer

    outro em que membros de uma comunidade interagem, as crenas acerca de dada realidade

    tambm social e cognitivamente influenciada.

    Pesquisadores com uma orientao relativista concebem a possibilidade de diversas

    percepes da realidade, cada uma das quais relativas a um contexto ou a um quadro de

    referncia especficos. De acordo com esta viso, os cientistas "constroem" as realidades

    pelo desenvolvimento de uma concordncia social no seio da comunidade cientfica acerca

    dos significados de suas teorias e de suas observaes empricas (Peter & Olson, 1983, p.

    120). Para o relativismo a discusso sobre a existncia de uma realidade nica

    irrelevante. Como sustenta Anderson (1986, p. 157):

    "O relativista crtico no tem nenhum disputa com a noo metafsica de que

    possa haver uma nica realidade social e natural, mas ele ou ela resiste

    afirmao de que a cincia capaz de revelar ou at de convergir para esta

    realidade".

    O importante fato de que no existe um nico mtodo cientfico privilegiado para

    apreenso desta realidade.

    A perspectiva relativista da cincia cr que as percepes diretas dos pesquisadores no

    so objetivas e sim influenciadas por uma multitude de fatores, que incluem experincias

    anteriores e treinamento. Desta forma, pesquisadores de diferentes comunidades

    cientficas, que "vivem, em certo sentido, em mundos diferentes" (Kuhn, 1989, p. 239),

    diante dos mesmos dados, podem a vir a designar diferentes sentidos para o mesmo

    fenmeno, e formular diferentes teorias para explic-lo. Consequentemente, o relativismo

  • 23

    entende que todos os significados, inclusive as definies tcnicas, so subjetivamente

    determinados e devem ser sempre entendidos no contexto de criao da teoria.

    Portanto, na anlise das pretenses de conhecimento cientfico, necessrio...

    "... saber o modo de produo da teoria, os critrios pelos quais ela julgada,

    os compromissos ideolgicos e valorativos que informam sua construo e as

    crenas metafsicas que subscrevem seu programa de pesquisa" (Anderson,

    1986, p. 156).

    Desta maneira, existe um tipo de "incomensurabilidade fraca" entre paradigmas, ou seja,

    teorias interpretativas no devem ser julgadas a partir de critrios de validao positivistas

    ou vice-versa, pois j que suas crenas metafsicas so opostas, forosamente suas

    proposies sero consideradas invlidas (Anderson, 1986).

    O critrio de avaliao da importncia cientfica de uma teoria deve passar pela sua

    utilidade para a comunidade cientfica e para sociedade. Dentro da comunidade, a utilidade

    da teoria pode ser avaliada pela capacidade de gerar novos conceitos que oferecem

    explicaes mais precisas ou mais interessantes; ou fornecer uma base para gerao de

    novas idias e novas teorias. Em termos sociais, a utilidade de uma teoria deve ser medida

    pela sua capacidade de gerar bem-estar para a coletividade (Peter & Olson, 1983).

    2.3.1 O mtodo cientfico positivista

    Segundo o paradigma positivista, a teoria pode ser definida (Kerlinger, 1973, p. 9) como:

    "... um conjunto de constructos (conceitos), definies e proposies

    interrelacionadas que apresentam uma viso sistemtica de fenmenos atravs

    da especificao de relaes entre variveis, com a inteno de explicar e

    predizer os fenmenos".

    Torna-se claro a partir desta definio o quanto as compreenses metafsicas acerca da

    natureza dos fenmenos influencia a prpria definio de "teoria". A "especificao de

    relaes entre as variveis" seria a constituio de leis e pressupe a viso de causalidade

    explicitada na seo anterior. Leis baseadas em hipteses, definidas como uma afirmaes

  • 24

    conjeturais sobre duas ou mais variveis, e fruto de uma investigao cientfica definida

    como "...uma investigao sistemtica, controlada, emprica e crtica de proposies

    hipotticas sobre as relaes presumidas entre fenmenos naturais" (op. cit., p. 11).

    O mtodo cientfico tal como entendido por este paradigma perpassado por conceitos

    que reforam a sua filosofia metafsica e excluem outras definies possveis (e

    provavelmente to vlidas quanto) do empreendimento cientfico. E tambm se torna clara

    a disposio de se colocar as cincias sociais dentro de um quadro terico unificador das

    cincias, tendo as cincias naturais como modelo a ser seguido.

    Modelos explicativos positivistas

    Os modelos explicativos positivistas tm em comum o fato de se estruturarem em

    premissas (ou condies) que, relacionadas com uma ou mais leis, derivam logicamente

    em uma explicao. Estas leis podem ser universais e determinsticas ou probabilsticas.

    As leis de forma estritamente universal tomam a forma de condicionais universalmente

    generalizados e so o prottipo dos outros tipo de leis (Hunt, 1991, p.139). Seriam leis do

    tipo "se, ento":

    "- Toda a vez que A ocorre, ento B ocorre;

    - Todo A B;

    - Para todo x, se x um exemplo de A, ento x um exemplo de B".

    Estas leis so consideradas somente prottipos, pois explicaes baseadas nestas leis

    pressupe um determinismo que hoje em dia no mais admitido nem nas cincias

    naturais. Para suprir esta deficincia, foram desenvolvidos outros tipos (modelos) de

    explicao baseados em leis. Eles seriam o dedutivo-estatstico, o indutivo-estatstico e o

    hipottico-dedutivo (Hunt, 1991). Os dois primeiros modelos se baseiam respectivamente

    na induo e na deduo para a constituio de leis probabilsticas indeterminadas. O

    modelo hipottico-dedutivo o mais relevante para o entendimento dos modelos

    explicativos positivistas. Ele baseado na constituio de um conjunto de postulados ou

    hipteses a partir de observao dos fenmenos de interesse; destes postulados so

    deduzidos logicamente consequncias observveis que so submetidas a teste emprico

  • 25

    para sua verificao; da as hipteses so refutadas ou corroboradas. Este mtodo tem duas

    derivaes, a lgico-empirista e a falsificacionista (Anderson, 1983).

    A derivao lgico-empirista, diferentemente das correntes antecessoras, considera que a

    realidade nunca poder ser apreendida em toda a sua intereza, apesar de se inscrever na

    corrente que considera as leis universais a explicao ltima dos fenmenos sociais. Isto

    porque todas as leis "ditas" universais so em ltima instncia indues, e no conseguem

    jamais representar a realidade total. Assim, o empirista lgico toma o objetivo da cincia

    como o de tentar produzir explicaes cada vez mais aperfeioadas, cada vez mais

    prximas da realidade, atravs de um processo de "confirmao gradualmente crescente"

    (Anderson, 1983). Admitida esta impossibilidade de conhecer a realidade total, o

    positivismo constituiu vrios mtodos probabilsticos (e quantificados) que reduziram o

    determinismo inerente frmula lgica de leis explicativas universais, mas que no

    resolvem satisfatoriamente o problema da induo.

    Alm desta constatao, foi apresentado um mtodo de justificao terica que busca

    resolver o problema da "evoluo" das teorias rumo a uma explicao cada vez mais

    aperfeioada, que a derivao falsificacionista. O "falsificacionismo" (Popper, 1993)

    prega que uma teoria sempre formulada para resolver determinados problemas cientficos

    e as consequncias lgicas (dedutivamente inferidas) desta teoria devem ser submetidas a

    testes empricos pela comunidade cientfica ("teste intersubjetivo"). Se os testes refutarem

    as consequncias lgicas, ento a teoria tambm refutada. Se a teoria no for refutada, ela

    "corroborada", at surgir alguma observao para a qual a teoria no oferece explicao,

    quando ento novo problema apresentado. A qualidade deste mtodo o de admitir o

    carter provisrio das teorias e a importncia da subjetividade da comunidade cientfica na

    formao dessas teorias. No entanto, as observaes e testes empricos ainda so

    considerados fundamentais para o "progresso da cincia" (Anderson, 1983).

    Grfico 1

  • 26

    O MODELO LGICO-EMPIRISTA DO MTODO CIENTFICO experinciasperceptuais

    imagens daestrutura domundo real

    modelo ou teoriaapriorstico

    hipteses

    testes empricos

    tentativamenteaceita

    modelo ou teoria apriorstico

    confirmado

    no confirmado

    feedback negativo

    Fonte: Anderson (1983)

    Grfico 2

    O MODELO FALSIFICACIONISTA DO MTODO CIENTFICO

    teorias existentes

    consistente

    gera outra teoria

    hipteses

    tentativamente aceita nova teoria

    no

    falsificado

    experincias

    ? aceita teoria existente

    rejeita nova teoria

    no falsificado

    perceptuais

    sim

    testes empricos

    Fonte: Anderson (1983)

  • 27

    Contexto de descoberta e contexto de justificao

    O contexto da descoberta aquele contexto em que so formuladas as hipteses e

    proposies cientficas. Para sua formulao podem concorrer vrios acontecimentos

    casuais como sonhos ou insights, ou mais sistemticos, como um processo indutivo ou

    dedutivo. Para os "positivistas", este o campo privilegiado para os mtodos heursticos de

    surgimento de hipteses, e onde a pesquisa qualitativa tem sua participao franqueada ao

    legtimo empreendimento cientfico, tal como o entendem os positivistas.

    Hunt (1991, p. 21), por exemplo, concede que uma Verstehen do sistema de valores dos

    atores sociais possvel e at apropriada no contexto da descoberta, mas s se torna

    cincia quando as generalizaes passam por testes empricos e so articuladas em leis

    gerais. Esta segunda etapa, de teste e organizao em leis, ocorre no contexto de

    justificao, o qual define propriamente o mtodo cientfico. Em outras palavras, a

    formulao de uma hiptese pertence ao contexto da descoberta e nada impede que para

    isto seja utilizada uma Verstehen das motivaes e valores dos atores sociais, assim como

    so vlidos o sonho e a intuio; no entanto, esta hiptese somente ganha status cientfico

    quando a deduo de suas implicaes passa por algum teste emprico.

    Deshpande (1983) tambm defende uma "triangulao" entre a pesquisa qualitativa e a

    quantitativa. A primeira se destacaria pela capacidade de gerar novas hipteses que seriam

    testadas atravs dos procedimentos de confirmao e verificao mais sofisticados da

    pesquisa quantitativa. A pesquisa qualitativa se destacaria pela maior validade de suas

    proposies, enquanto a pesquisa quantitativa se destacaria pela maior confiabilidade de

    seus dados. A pesquisa qualitativa teria por exemplo bastante utilidade nas descries

    exploratrias, no processo de coleta de dados e em levantamentos primrios de amostras.

    2.3.2 O mtodo cientfico relativista

    O conceito de teoria neste paradigma distinto do que utilizado no paradigma positivista.

    Ao invs de relacionar um conjunto de afirmaes e leis empiricamente generalizadas, as

    teorias devem procurar explicar os fenmenos, mesmo que no tenham relao aparente

    com os fatos diretamente observveis.

  • 28

    As teorias so generalizaes de observaes, mas diferem das generalizaes empricas

    pois estas apenas rotulam as regularidades observadas, enquanto as generalizaes tericas

    explicam porque estas regularidades ocorrem. A distino entre teoria e lei esta:

    constroem-se ou delineiam-se teorias, mas descobrem-se leis da natureza (Kaplan &

    Manners, 1975).

    As leis esto muito relacionadas com as observaes, e sustentam-se a depender de "testes

    intersubjetivos" as confirmarem ou no. J as teorias envolvem sempre termos abstratos e

    que so referidos a fatos no-observveis. Nas cincias sociais as teorias incluem termos

    como coeso social, anomia, classe, smbolos etc. Estes termos denotam processos,

    arranjos, padres, estados emocionais ou "estados do sistema", sendo que nenhum destes

    termos est necessariamente sujeito observao simples e direta.

    Ademais, o processo de formao de qualquer teoria em cincias sociais tem aspectos

    diferenciadores que o distingue do processo em cincias naturais, fruto da especificidade

    do objeto de estudo e do carter social do empreendimento cientfico. Assim, Kaplan e

    Manners (1975) distinguem quatro caractersticas que diferenciam o projeto cientfico das

    cincias do homem:

    Historicidade - Todos os fenmenos naturais tm uma dimenso temporal, mas os

    processos fsicos por exemplo so recorrentes num espao de tempo enorme. J as teorias

    sociais do conta de fenmenos e relaes que se modificam rapidamente no decorrer do

    tempo.

    Sistemas Abertos - cientistas sociais no podem ter controle sobre todas as variveis

    relevantes para dado fenmeno cultural, ao contrrio das condies ptimas de controle de

    variveis num laboratrio fsico, por exemplo.

    Problemas Sociais - Os cientistas sociais so pressionados pela sociedade ou por si

    mesmos a estudar fenmenos de importncia para a sociedade. Estes fenmenos podem ser

    complexos e plenos de variveis, havendo por trs uma cobrana por parte da sociedade

    em termos de apresentao de solues.

    Ideologia - As teorias no so avaliadas apenas em termos de lgica e rigor cientfico, mas

    tambm em termos ideolgicos. Assim, no raro teorias so atacadas ou defendidas no

  • 29

    pelo seu valor explicativo, mas em termos de implicaes morais ou polticas. Portanto,

    fatores extra-cientficos possuem importante papel na aceitao ou rejeio de teorias.

    O modelo explicativo de padro

    O modelo no qual se inserem os esforos explicativos do interpretativismo o "modelo de

    padro". Diferentemente dos modelos positivistas, este modelo somente empregado pelas

    cincias do homem. Este tipo de modelo possui componentes que procuram configurar o

    fenmeno como uma rede de relaes entre determinados fatores. Cada teoria descritiva de

    determinado fenmeno provavelmente enfatizar um ou outro fator como mais estratgico

    ou crucial, mas todas construiro uma configurao ou modelo de fatores interligados

    (Kaplan & Manners, 1975).

    De acordo com o modelo padro, algo explicado quando est to relacionado com um

    conjunto de outros elementos, que juntos compem um sistema unificado. A compreenso

    de algo ocorre quando ele identificado como parte especfica de um todo organizado.

    Assim, o desconhecido identificado a algo conhecido no por propriedades locais, mas

    em termos de sua posio em uma rede de relaes (Kaplan, 1975).

    Interpretativismo e contexto de justificao e de descoberta

    O interpretativista no identifica, como o positivista, um contexto de criao de

    proposies e outro de validao ou justificao, ambos estanques e diferenciados. O

    processo de justificao e de descoberta nico, pois a formulao de uma teoria vista

    como um processo contnuo e deve estar estritamente ligado aos fatos nos quais se baseia.

    Este o conceito de "teoria fundamentada" (grounded theory) (Glaser & Strauss, 1977), no

    qual o contexto de descoberta se confunde com o de justificao, pois a teoria vista como

    um processo incessante de aperfeioamento de proposies baseadas em fatos sempre

    novos.

    2.4 Concluso

    Apesar da penetrao que o interpretativismo j obteve nas cincias sociais, notadamente

    na Antropologia, o Marketing, que tanto se utilizou destas cincias para a formulao de

    suas teorias, no tem sido capaz de incorporar esta evoluo. Este captulo tenta justamente

    analisar os princpios deste novo paradigma de busca e validao de conhecimento. Haja

  • 30

    vista a dominncia do paradigma positivista, natural que esta anlise tenha sido

    comparativa, pois o surgimento de um novo paradigma sempre se d em contraposio ao

    j estabelecido.

    O paradigma interpretativista se distancia do modelo de mtodo cientfico oferecido pelas

    cincias naturais ao estudo dos fenmenos sociais, medida que entende que seu objeto de

    estudo, o ser humano, sujeito capaz de produzir smbolos, e que estes mesmos smbolos

    norteiam seu comportamento e sua cosmoviso. Assim, a utilizao de mtodos cientficos

    das cincias da natureza - estruturados em relaes causais e em testes de hipteses,

    esbarram na falta de contextualizao dos fatos sociais e no do suficiente valor

    interpretao do fato social a partir dos prprios atores.

    Partindo desta base epistemolgica, no prximo captulo mostrado o que a teoria e

    prtica antropolgica tm de especfico, e num segundo momento, quais so as

    contribuies tericas que a Antropologia oferece para o conhecimento do consumo e da

    cultura material nas sociedades modernas.

    3 Antropologia e Consumo

    3.1 Teoria e prtica antropolgica

    Depois de definidas no captulo anterior as bases epistemolgicas nas quais se estabelece o

    interpretativismo, este captulo procura explicitar os seus fundamentos enquanto mtodo

    antropolgico, e tambm mostrar a sua contribuio ao estudo da cultura material em

    sociedades modernas.

    O mtodo antropolgico aqui discutido se baseia numa das vrias interpretaes possveis

    do fenmeno cultural. A Antropologia se caracteriza pela sua base pluralista e que sempre

    est num processo de autoquestionamento e autocrtica (DaMatta, 1987). Assim, em seu

    seio podem conviver vrias definies de cultura, muitas vezes baseadas em contribuies

    de outras cincias como a economia, a psicanlise, a psicologia, a lingustica, etc. No

    entanto, para definir a especificidade do interpretativismo, fundamental explicitar o que

    ele entende como "cultura".

  • 31

    O interpretativismo procura focalizar nos seus estudos os cdigos culturais e sistemas

    simblicos de dada sociedade, a partir dos quais todas as outras manifestaes objetivas

    (comportamentos, valores, etc.) derivam. O que singulariza qualquer cultura uma viso

    de mundo caracterstica, baseada em categorias de pensamento que ajudam a organizar

    para o indivduo-membro os acontecimentos humanos e naturais comuns a toda

    humanidade, tais como procriao, nascimento, morte, fenmenos da natureza, etc., de

    forma a que o mundo se mostre dotado de algum sentido e tenha um mnimo de coerncia

    e harmonia em suas manifestaes.

    A gnese da cultura provm de uma necessidade biolgica, pois a instabilidade orgnica

    inerente ao ser humano o obriga a ordenar e estabilizar sua conduta e sua atividade sobre a

    natureza (Geertz, 1989).

    Completando este raciocnio, Berger e Luckmann (1991, p. 75) argumentam que:

    "O organismo humano no possui os meios biolgicos necessrios para dar

    estabilidade conduta humana. A existncia humana, se retornasse a seus

    recursos orgnicos exclusivamente, seria a existncia numa espcie de caos".

    O homem um animal incompleto e inacabado, que precisa da cultura para se completar.

    A idia subjacente aqui que a cultura serve no apenas para garantir a continuidade do

    grupo social, mas a prpria sobrevivncia do homem.

    Ademais, a cultura uma criao do esprito humano que procura sistematizar e

    determinar os diversos eventos relacionados com o ser humano de forma a organizar sua

    experincia. Esta organizao s existe no momento em que o homem atribui sentido aos

    fatos da natureza e s experincias e fenmenos humanos.

    O homem um animal produtor de sentido. Dotar de sentido a realidade circundante faz

    com que seja possvel entend-la num todo coerente, no qual todos os fatos biolgicos ou

    sociais da vida quotidiana se tornam inteligveis dentro de um contexto de significados

    mais complexo e mais abrangente, o chamado "universo simblico" (Berger & Luckmann,

    1991). Isto permite viabilizar a existncia do homem e, por extenso, do grupo social ao

    qual pertence, no momento em que as normas de conduta e comportamento so sempre

    baseadas em valores constitudos dentro do universo simblico de cada grupo.

  • 32

    Portanto, a cultura acaba por se tornar uma espcie de mapa do comportamento dos

    indivduos em sociedade e at mesmo em relao natureza.

    "A Cultura, distintivo das sociedades humanas, como um mapa que orienta o

    comportamento dos indivduos em sua vida social. Puramente convencional,

    esse mapa no se confunde com o territrio: uma representao abstrata dele,

    submetida a uma lgica que permite decifr-lo" (Rodrigues, 1983, p. 11).

    Assim, a sociedade pode ser entendida como uma construo do pensamento, uma entidade

    provida de sentido e significao. E sendo a vida coletiva feita de representaes, ou seja,

    das figuraes mentais de seus componentes, para o seu conhecimento necessria uma

    teoria social do conhecimento (op. cit., p. 11).

    3.1.1 O conceito interpretativista de cultura

    Provavelmente, uma das maneiras mais diretas de se expor com preciso o iderio de uma

    corrente antropolgica atravs de sua definio de cultura, pois esta definio encerra em

    si explicitamente os conceitos e a perspectiva pela qual o fenmeno cultural ser abordado.

    Talvez a concepo de cultura que melhor representa o interpretativismo a de Clifford

    Geertz (1989). O conceito de cultura defendido por ele essencialmente semitico. Geertz

    acredita que o homem um animal amarrado a teias de significado que ele mesmo teceu, e

    a cultura so essas teias. Segundo ele (op. cit., p. 24), a cultura opera como:

    " (...) sistemas entrelaados de signos interpretveis, (...) a cultura no um

    poder, algo ao qual podem ser atribudos casualmente os acontecimentos

    sociais, os comportamentos, as instituies ou os processos; ela um contexto,

    algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligvel - isto ,

    descritos com densidade".

    Indo alm, pode-se dizer que a vida social pode ser entendida como um sistema cujos

    componentes s existem para significar; e as relaes entre eles tambm so produtoras de

    significao (Rodrigues, 1983); estes sistemas de significaes vo ser orientadores de

    todo comportamento social. Afirmar-se-ia que possvel olhar para "as relaes do homem

  • 33

    com a natureza como se fossem fenmenos comunicacionais e significacionais"

    (Rodrigues, 1989, p. 116).

    Mais radicalmente, Edmund Leach (1978, p. 16) acredita que ...

    "Todas as vrias dimenses no verbais da cultura, como estilos de vesturio,

    cenrios de um vilarejo, arquitetura, mveis, comida, cozinha, msica, gestos

    fsicos, postura, etc., esto organizadas em conjuntos padronizados a fim de

    incorporarem a informao codificada de uma maneira anloga aos sons,

    palavras e frases de uma lngua natural. (...) Falar sobre as regras gramaticais

    que governam ao uso de roupas to significativo quanto falar sobre as regras

    gramaticais que governam os discursos".

    Ou seja, ele acredita que possvel apreender as diversas realidades da cultura a partir da

    lingustica, interpretando as manifestaes objetivas de uma sociedade sempre a partir da

    perspectiva de que so um cdigo a ser decifrado, e que possuem a sua prpria gramtica e

    sintaxe.

    Concluindo, esta antropologia procura interpretar os smbolos que permitem a um

    determinado grupo ou sociedade tornar o mundo inteligvel e criar parmetros de ao

    sobre este mundo.

    Assim, fica claro que, para melhor entender a riqueza da proposta interpretativista e a sua

    busca de significados, importante tambm definir o que "smbolo" e quais so as suas

    implicaes para o estudo do social. Para Geertz (1989, p.105), o smbolo ...

    "...qualquer objeto, ato, acontecimento, qualidade ou relao que serve como

    vnculo a uma concepo - a concepo o significado do smbolo. (...) [Os

    smbolos] so formulaes tangveis de noes, abstraes da experincia

    fixada em formas perceptveis, incorporaes concretas de idias, atitudes,

    julgamentos, saudades ou crenas".

    Estes elementos carreadores de significado (os significantes) so formas perceptveis aos

    sentidos de noes ou abstraes, so incorporaes concretas de idias, atitudes,

  • 34

    julgamentos, etc. e por isto se tornam uma preciosa fonte de informao sobre os

    elementos no-concretos da realidade social de dada cultura. Uma cincia que se ocupe do

    simblico estudar fenmenos to observveis quanto qualquer outro fenmeno. Com isto

    se escapa de tentar estudar obscuros processos psicolgicos internos mente humana,

    iluminando-os. Os atos culturais, a construo, apreenso e utilizao de formas

    simblicas, so acontecimentos sociais como quaisquer outros; so to pblicos quanto o

    casamento e to observveis como a agricultura(op. cit., p. 106).

    Desta forma, partindo da idia que toda produo humana dotada de significao,

    possvel ultrapassar a idia de "produo material", contraposta a idia de "produo

    espiritual". Dentro desta linha de raciocnio, argumenta Rodrigues (1989, p. 117) que ...

    "...matria-prima, pessoas, transaes, produtos etc. poderiam ser vistos como

    signos, isto , como comportando relaes entre significantes e significados,

    uns e outros sem existncia autnoma, pois exatamente da aproximao deles

    que um signo se constitui. Apresentando uma dupla superfcie, a do sensvel

    (significante) e a do inteligvel (significado), no signo a oposio entre o

    material e o no-material se dissolve, uma vez que no so possveis imagens

    mentais (idias, conceitos, significados) sem representaes materiais

    (significantes), nem seriam concebveis significantes aos quais fosse

    impossvel atribuir significados".

    E todas as "coisas" existentes numa sociedade so significantes, pois nunca so coisas em

    si, elas sempre so algo para algum. So ncleos nos quais se condensam relaes

    simblicas. Nelas sempre estaro contidos saberes tcnicos, padres estticos e morais,

    investimentos emocionais, etc. (op. cit., p. 117). Localizar e estudar o smbolo, que

    perceptvel, permite penetrar no universo dos significados que compe o sistema simblico

    de dada cultura.

    3.1.2 A descrio etnogrfica

    Segundo Geertz (1989, p. 31), as caractersticas que definem a descrio etnogrfica so:

    (1) ela interpretativa; (2) o que ela interpreta o fluxo do discurso social; (3) ela

    microscpica; (4) a interpretao envolvida consiste em fixar o discurso em formas

  • 35

    pesquisveis. E acrescentando mais uma, (5) ela busca a apreenso da totalidade das

    relaes e comportamentos em estudo.

    Entender a etnografia entender o que representa a anlise antropolgica como forma de

    conhecimento. Hoje em dia, no so mais as tcnicas de coletas de dados que definem o

    que a prtica de antropologia. O que a define o tipo de esforo intelectual,

    interpretativo, que ela representa: a elaborao de uma "descrio densa", contraposta

    "descrio superficial".

    A "descrio superficial" seria a descrio "objetiva" dos fatos, sem atentar para os valores

    sociais e os cdigos de significao implcitos na ao social. A "descrio densa" seria a

    interpretao precisa das intenes dos atores sociais. "O objeto da etnografia estaria entre

    a "descrio superficial" e a "descrio densa": uma hierarquia estratificada de estruturas

    significantes em termos das quais...[as categorias e/ou os fenmenos culturais]... so

    produzidos, percebidos e interpretados, e sem as quais eles de fato no existiriam" (op.cit.;

    p.17).

    A sua anlise se revela no a de uma cincia experimental em busca de leis, mas a de uma

    cincia interpretativa em busca de significado. Fazer uma anlise antropolgica escolher

    entre as estruturas de significao e determinar sua base social e sua importncia. O

    etngrafo tem de trazer sentido a uma "multiplicidade de estruturas conceptuais

    complexas", irregulares, implcitas e contraditrias, primeiro apreendendo-as e depois

    apresentando-as. Como bem define Geertz (1989, p. 20):

    "Fazer etnografia como tentar ler um manuscrito estranho, desbotado, cheio

    de elipses e incoerncias, emendas suspeitas e comentrios tendenciosos,

    escrito no com os sinais convencionais do som, mas com exemplos

    transitrios de comportamento modelado".

    Desta maneira se aclara a segunda caracterstica da descrio etnogrfica: somente atravs

    da interpretao do discurso dos atores sociais envolvidos possvel perceber toda a

    riqueza da teia de significados, pois o discurso o campo privilegiado da explicitao dos

    smbolos. Por sua imensa variedade e complexidade, "a linguagem capaz de se tornar o

  • 36

    repositrio de grandes acumulaes de significados e experincias" e de permitir sua

    transmisso (Berger & Luckmann, 1991, p. 57).

    A terceira caracterstica da etnografia que ela microscpica: o campo de estudo, apesar

    de levar em conta uma infinidade de fatos sociais tais como rituais, regras de

    comportamento, mitos, lendas, etc., bem delimitado espacial e temporalmente. A

    etnografia privilegia pequenos agrupamentos como tribos, no caso da antropologia de

    sociedades primitivas, ou subgrupos sociais, no caso da antropologia de sociedades

    industrializadas.

    A Antropologia busca um aprofundamento do entendimento da simbologia destes fatos

    sociais, mas numa perspectiva do pequeno, do particular, dentro do que Laplantine (1988)

    chama de "abordagem microssociolgica". Contrapondo esta perspectiva das ditas

    cincias sociais tradicionais, ele sustenta que isto representa o deslocamento radical do

    foco de estudos para o infinitamente pequeno, do que considerado muitas vezes

    secundrio nos comportamentos sociais. Como argumenta Malinowski (1990), existem

    fenmenos sociais que mostram claramente ao observador externo como os valores e

    instituies sociais so quotidianamente percebidos e, mais importante, vivenciados pelos

    membros da sociedade em estudo, tornando-se uma importante fonte de entendimento da

    vivncia individual das categorias de pensamento mais amplas que definem uma cultura.

    "(..) h uma srie de fenmenos de grande importncia que no podem ser

    registrados atravs de perguntas, ou em documentos quantitativos, mas devem

    ser observados em sua plena realidade. Denominemo-los os imponderveis da

    vida real. Entre eles se incluem coisas como a rotina de um dia de trabalho, os

    detalhes do cuidado com o corpo, da maneira de comer e preparar as refeies;

    o tom das conversas e da vida social ao redor das casas da aldeia; a existncia

    de grandes amizades e hostilidades e de simpatias e antipatias passageiras entre

    as pessoas; a maneira sutil, mas inquestionvel, em que as vaidades e ambies

    pessoais se refletem no comportamento do indivduo e nas reaes emocionais

    dos que os rodeiam" Malinowski (1990, p. 55).

    No entanto, a busca da interpretao somente ser levada a cabo com sucesso se a

    interpretao abarcar o todo das estruturas de significao, pois como j definida

  • 37

    anteriormente, a cultura um sistema entrelaado de signos interpretavis, e um

    significado s adquire sentido quando em relao com outro.

    Como afirma Laplantine (1988, p. 156):

    "(...) toda abordagem que consistir em isolar experimentalmente objetos no

    cabe no modo de conhecimento prprio da Antropologia, pois o que esta

    pretende estudar o prprio contexto no qual se situam esses objetos, a rede

    densa das interaes que estas constituem com a totalidade social em

    movimento".

    Por fim, a etnografia s faz sentido se ela fixa a sua interpretao numa forma pesquisvel,

    pois a antropologia uma cincia, e como tal inerente que seu saber possa ser fixado e

    transmitido, de forma que suas concluses e inferncias possam ser divulgadas e

    assimiladas pelo seu corpo terico.

    Por tudo acima exposto, pode-se dizer que a prtica antropolgica pode ser definida pelo

    esforo de interpretao de redes de significaes implcitas ou explcitas que so

    apresentadas ao etngrafo no seu trabalho de campo, e no apenas na escrita de seu dirio

    e na sua atividade de coleta de material. O seu objeto de estudo claramente delimitado, e

    a sua abordagem, a de imerso no universo simblico dos atores envolvidos. A sua

    ambio fazer com que o trabalho de campo permita o surgimento de novos conceitos

    teis e de novos questionamentos.

    Canclini (1996, p. 92) oferece uma definio do trabalho do antroplogo que ajuda a

    concluir todo o exposto acima:

    "O antroplogo se parece menos com o detetive do que com o psicanalista. (...)

    O antroplogo (...) interroga o que os atos significam para os sujeitos que os

    vivem, porque sabe que o significado (j no a verdade) dos fatos no est

    contido neles, mas sim no processo pelo qual os sujeitos os constituem e os

    sofrem, os transform