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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS CURSO DE DOUTORADO EM FILOSOFIA SIMONDON E O HUMANISMO TÉCNICO Professor Orientador: Aquiles Côrtes Guimarães Aluno: Sávio Ramos Laterce Rio de Janeiro 2009

SIMONDON E O HUMANISMO TÉCNICO - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp090130.pdf · INTRODUÇÃO Esta tese tem como objetivo apresentar a perspectiva totalmente renovada

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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

CURSO DE DOUTORADO EM FILOSOFIA

SIMONDON E O HUMANISMO TÉCNICO

Professor Orientador: Aquiles Côrtes Guimarães

Aluno: Sávio Ramos Laterce

Rio de Janeiro

2009

Livros Grátis

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- 2 -

SIMONDON E O HUMANISMO TÉCNICO

Sávio Ramos Laterce

Tese de doutoramento submetida ao corpo docente do Departamento de Pós-Graduação em

Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – IFCS – da Universidade Federal do

Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção de grau de doutor

em filosofia.

Aprovada por:

_______________________________

Prof. Dr. Aquiles Côrtes Guimarães

_______________________________

Prof. Dr. Fernando Fragozo

______________________________

Prof. Dr. Luiz Alberto Oliveira

_______________________________

Prof. Dra. Liliana da Escóssia

_______________________________

Prof. Dr. Fernando Rodrigues

Rio de Janeiro

2009

- 3 -

Laterce, Sávio Ramos

Simondon e o humanismo técnico/Sávio Ramos Laterce. Rio de

Janeiro: UFRJ/IFCS, 2009.

214p.

Tese – Universidade Federal do Rio de Janeiro, IFCS.

1.Simondon. 2.Filosofia da técnica. 3. Humanismo (Dout. – IFCS-

UFRJ)

- 4 -

No começo é a relação.

Gaston Bachelard

- 5 -

A Theo, que inspirou esse texto e

que alegra minha vida há quase 5 anos.

- 6 -

AGRADECIMENTOS

Sem a participação de algumas pessoas esse trabalho não teria condições de ser

desenvolvido. Antes de tudo, agradeço à minha companheira Nina pela compreensão de

dias e dias sem poder me dedicar à nossa vida comum. Lembro também da revisão

extremamente competente, que vai muito além das palavras e da língua portuguesa, da

minha amiga Maysa. No campo da philia, não posso esquecer das conversas precisas e

esclarecedoras do professor Luiz Alberto Oliveira e dos amigos Bartô Kapp, Sílvia Costa,

Richard Fonseca, Érica Leonardo, Johnny Alvarez e Rejane Moreira. Pela leitura atenta e

olhar cuidadoso em cada palavra, minha dívida com o amigo Iran Salomão é impagável.

Quero lembrar aqui com carinho do meu orientador Aquiles Côrtes Guimarães pela

paciência demonstradas com todos os meus descaminhos e pela confiança de me conceder

muita liberdade na exploração dos temas e autores. Em função da bolsa de doutorado

recebida, que tornou possível a tranqüilidade para deixar essa tese nascer, sou grato a

CAPES.

- 7 -

RESUMO

Simondon promoveu uma importante reformulação do conceito de humanismo, ligando-o à

técnica. Outros pensadores, como os sofistas e Galileu, a nosso ver, também produziram

essa aliança. É o que iremos apresentar nos primeiros momentos da tese. Em seguida,

traremos a visão original do humanismo técnico de Simondon. Ao longo da tese, estará

presente a idéia-chave do filósofo, a individuação, que será apresentada em suas diversas

facetas. Daremos ênfase particular, por motivos óbvios, à individuação técnica.

Palavras-chave: Simondon, filosofia, humanismo, individuação técnica

- 8 -

ABSTRACT

Simondon has remodelled the concept of humanism, making reference to the tecnique.

Other scientists, such as the sophists and Galileo, have contributed to this new vision of

humanism, as we try to prove in this research. This study will present Simondon's original

ideas of technical humanism. His key-notion, the individuation, is explained in rich details

in this research. The phocus will be on the technical individuation.

key words: Simondon, philosophy, humanism, technical individuation.

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SUMÁRIO

Introdução _________________________________________ p. 11

Prólogo _________________________________________ p. 16

UNIDADE I – O humanismo técnico antropológico

1. Histórico do humanismo técnico ______________________ p. 20

O humanismo pré-socrático ____________________________ p. 20

O humanismo técnico do século V a.C. ___________________ p. 23

O humanismo técnico na modernidade ___________________ p. 30

O humanismo técnico moderno na política ________________ p.35

2. O antiaristotelismo de Galileu e a nova relação entre natureza

e artifício no alvorecer da ciência moderna _________________ p. 51

Uma nova física______________________________________ p. 52

A condenação do artifício _______________________________p. 54

A matematização moderna do mundo _____________________ p. 57

A questão do movimento ________________________________ p. 61

Giordano Bruno e os infinitos mundos _____________________ p. 64

O realismo científico de Galileu __________________________ p. 65

Um cientista que une teoria e prática ______________________ p. 72

A luta contra uma ciência do senso comum _________________ p. 74

UNIDADE II – O humanismo técnico não-antropológico de Simondon

Idéia de relação em Simondon:

uma herança velada e transmutada_______________________ p. 80

- 10 -

O humanismo de Simondon ____________________________ p. 91

O ser e o ser técnico em Simondon _______________________ p. 98

Diferentes níveis de individuação ________________________ p. 101

Crítica ao princípio de individuação aristotélico_____________ p. 104

Nem estável, nem instável ______________________________ p. 109

Individuação biológica em Simondon _____________________ p. 117

Contradição e paradoxo no amor e na vida_________________ p. 122

Indivíduo e meio associado______________________________ p. 130

A individuação física e a abertura para a técnica _____________ p. 132

Entropia e teoria da informação__________________________ p. 138

Uma união de dois mundos: a entropia informacional_________ p. 146

Novos sentidos para as máquinas_________________________ p. 155

Duas ilusões: o homem como escravizador

ou escravo das máquinas_______________________________ p. 159

Cultura, técnica e enciclopedismo_________________________ p. 163

O técnico como filósofo da técnica_________________________ p. 172

Técnica e alienação____________________________________ p. 179

Objetos concretos e abstratos_____________________________ p. 187

Concretização técnica e aproximação com a natureza__________ p. 193

Evolução genética dos objetos técnicos × demandas psicossociais_ p. 199

Conclusão___________________________________________ p. 205

Bibliografia _________________________________________ p. 207

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INTRODUÇÃO

Esta tese tem como objetivo apresentar a perspectiva totalmente renovada da noção

de humanismo que percebemos na filosofia de Gilbert Simondon. Essa renovação é o que

está sendo nomeado aqui de humanismo técnico. Em linhas gerais, seu projeto é o de

indicar que os objetos técnicos são criações humanas coletivas, sendo cada uma delas uma

síntese de memória, de informação e de aquisição de formas a ser investigada e decifrada.

Isso significa que esses objetos se impregnam dos afetos humanos que os criaram.

Exatamente por isso, eles não se esgotam no presente, mas têm um passado a ser

desvendado e um futuro a ser inventado. Nas reflexões de Simondon, eles são nomeados de

indivíduos, têm jeito de ser e história, como fica explícito já no título da obra que é eixo

central da investigação que desejamos realizar: Du mode d’existence des objets techniques.1

Mas para conseguirmos destacar a originalidade da sua abordagem, entendemos que

será necessária uma recuperação histórica da idéia de humanismo, que para nós é um

consistente e mutante conceito filosófico. Em função disso, será preciso definir

constantemente sobre qual dos muitos humanismos existentes estaremos tratando em cada

momento. Apesar de ter sua criação datada de 1538, a noção teve uma larga utilização

retrospectiva, sendo inclusive remetida aos gregos e medievais. O que aconteceu é que ela

foi absorvida e teorizada pelas mais diferentes correntes, inclusive antagônicas, de

pensamento. Com isso, tornou-se imprecisa, vaga, amorfa. Ferrater Mora destaca que essa

abrangência se dá porque o humanismo pode ser resumido “como tendência filosófica na

qual se ressalta algum „ideal humano‟”. E completa: “Como os „ideais humanos‟,

proliferaram-se os humanismos.” (FERRATER MORA, 2000, p. 1396). Em nome da

1 A obra ainda não tem tradução para a língua portuguesa.

- 12 -

precisão, tão decisiva quando estamos no campo das idéias singulares de um filósofo,

iremos sempre referenciar que pensador está por trás de cada viés humanista proposto.

A impossibilidade de um só humanismo fica patente pelo contraste dos seus

partidários. De um lado está Protágoras, na Atenas do século V a.C., sofista descrente do

poder dos deuses e da natureza nas decisões políticas humanas. De outro, bem mais tarde,

todo o pensamento cristão, que desejou dar ao homem, com o pressuposto da vontade do

Criador, um lugar diferenciado e superior em relação aos outros seres vivos, por sermos

feitos à imagem e semelhança Dele. Em regra geral, humanismo seria uma posição de

domínio que o homem ocupa em relação ao que o rodeia, seja em relação às mais diversas

áreas do conhecimento, seja em decisões éticas e políticas. Porém o que temos nas defesas

humanistas anteriores são duas centralidades, dois humanismos em franca

incompatibilidade. Esses são apenas dois casos; há muitos outros, alguns deles com níveis

semelhantes de distanciamento.

A seleção dos modelos humanistas a serem trabalhados por nós foi feita a partir de

um critério, que é resposta a essa pergunta: em que raros momentos históricos podem ser

localizadas alianças entre humanismo e técnica? Acreditamos que, sem essa determinação

prévia, essa pesquisa não seria realizável. Essa é a nossa justificativa para, por exemplo,

não atravessar as vastas paisagens medievais. Nosso plano, em um primeiro momento, é

definir dois modelos de humanismo, ambos ligados especificamente à técnica. A partir da

exposição desse panorama, pensamos que haverá referência suficiente para destacar desse

pano de fundo a grande originalidade que percebemos no humanismo técnico de Simondon.

Começaremos obviamente pela Grécia, lugar onde a idéia de humanismo foi

gestada. Palavras de Werner Jaeger orientam essa nossa aproximação inicial: “O princípio

espiritual dos gregos não é o individualismo, mas o „humanismo‟, para usar a palavra no

- 13 -

seu sentido clássico e originário. Humanismo vem de humanitas (...) ao lado da concepção

vulgar e primitiva de humanitário, que não nos interessa aqui, um sentido mais nobre e

rigoroso. Significou a educação do homem de acordo com a verdadeira forma humana,

como o seu autêntico ser.” (JAEGER, 1995, p. 12). Esse sentido originário de humanismo

se manifesta de modo explícito na arte grega, pois a sua referência capital, manifesta em

particular na escultura, é a figuração do próprio homem. É visível ainda na noção primeira

de cultura, como saber que se dá em múltiplas áreas (colocaríamos a sofística como

representantes dessa tendência), que se revela como a real possibilidade para o homem

conduzir-se por conta própria na vida, autonomia que os iluministas franceses do século

XVIII atribuem ao conhecimento enciclopédico e que Kant afirma ser uma das condições

para se atingir a maioridade e o pensar por si mesmo. Essa orientação originária grega

segue com o decorrer da história: “Não há movimento humanista (...) que de uma forma ou

de outra não deite suas raízes no pensamento grego.” (NOGARE, 1985, p. 25).

Abrimos o cenário, no primeiro capítulo, tendo como atores principais aqueles que,

em função da ira platônica contra a técnica persuasiva e a difusão de opiniões, foram alvo

até hoje de todos os tipos de preconceito e leituras parciais: os sofistas. Ao longo do século

V a.C., a palavra tinha um sentido positivo. Sofista era alguém que detinha conhecimentos

em setores variados e que poderia tratar sobre os mais diversos temas de interesse público.

Era um novo tipo de sábio, de caráter prático e urbano (algo que hoje se assemelharia a um

professor), diferente do modelo anterior do sábio religioso, que representa a palavra divina

e é encarnado por profetas, adivinhos, xamãs etc. A partir de Platão, o significado

reconfigurou-se. Sofista passou a ser aquele que detém um falso saber e que ensina a seus

discípulos as táticas para conquistar uma platéia sem a mínima consistência intelectual. É

essa visão que permanece quase unânime no senso comum até mesmo entre os

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pesquisadores, o que nos dá uma idéia da força extraordinária do pensamento platônico.

Nossa intenção é conseguir visualizar os sofistas, ou pelo menos uma parte deles, para além

da visão única de Platão e mostrar como alguns se revelaram como defensores da liberdade

de expressão, inauguradores radicais da idéia de centralidade humana no Cosmos e também

como estimuladores do movimento político que representou a maior manifestação de

liberdade do mundo antigo: a democracia grega.

Depois disso, será o momento de trazer outras duas circunstâncias históricas em que

a posição humana em relação ao ambiente que o rodeia foi de decisivo destaque: o

Renascimento e a Revolução Científica. Esses momentos do humanismo moderno foram

distintos do antigo. Os sofistas, pelo menos Protágoras e Górgias, os que mais nos

interessam aqui, viraram as costas para a natureza, ignorando-a, e concentraram-se na

cidade e na produção artificial ligada à linguagem e à política. Já o artista, o filósofo e o

cientista moderno, que em alguns casos estão concentrados na mesma pessoa, praticam o

humanismo de outro modo: a técnica agora se reflete na produção de instrumentos que se

prestam a avaliação, verificação e, principalmente, domínio dos fenômenos naturais. A

idéia agora é dominar a natureza para modificá-la e a precisão da análise vem desses

artifícios. É esse aspecto intervencionista e criador que enobrece uma existência humana

entre os modernos. Nossos personagens principais nessa passagem serão Leonardo e

Galileu, que nos parecem exemplares no sentido de privilegiar a invenção autônoma de

objetos artísticos e científicos, a comprovação experimental da natureza e o artificialismo

da matemática sobre o antigo estatuto medieval do dogma e da contemplação apoiados em

conceitos aristotélicos.

Após isso, no terceiro capítulo da tese, vamos apresentar o sentido de humanismo

técnico de Simondon. Ao contrário dessas duas tendências, que tem o homem como núcleo

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de produção de qualquer conhecimento, esse pensador vai escapar ao antropocentrismo. Os

objetos técnicos têm uma história e uma existência próprias, são caixas pretas que precisam

ser conhecidas para que novos objetos surjam. Eles são, portanto, matéria fundamental para

a sua própria evolução, não sendo a condução exclusivamente humana. A técnica produz

homens e os homens produzem a técnica em regime de igualdade: os resultados são

conjugações relacionais objeto/homem/objeto e homem/objeto/homem que produzem

sínteses singulares. O ponto de partida, em Simondon, é que, para além dos radicalismos

tecnófilos ou tecnófobos, é preciso cogitar a possibilidade de que os objetos técnicos

servem para a expansão da liberdade humana, o que é uma legítima preocupação

humanista.

A inserção das máquinas em uma possível dimensão criativa e, em múltiplos casos,

libertadora para a humanidade é uma grande colaboração filosófica desse pensador. O

homem seria visto aí como um intercessor, responsável pela transmissão evolutiva que

pode acontecer entre uma máquina e sua próxima versão. Elas são vistas pelo autor como

sistemas abertos, ou seja, estão aptas a receber permanentemente novas informações

fornecidas pelo homem. Não devem ser vistas isoladamente ou apenas no presente, mas

como pertencentes a séries que remetem ao passado e apontam para o futuro em regime de

mutação contínua. Como diz Bernard Stiegler: “O que é interessante não é o indivíduo

técnico que são esta máquina ou aquele objeto, mas o processo de individuação que aparece

por meio da série de objetos técnicos.” (STIEGLER, apud SCHEPS, 1996, p. 174). Uma

pergunta então abriria a possibilidade de saída ao pessimismo majoritário de nossa época

em relação às técnicas, o que Dominique Lecourt chama em sua obra mais recente,

Humano pós humano, de catastrofismo: Por que as materializações posteriores não podem

ser mais humanitárias que as anteriores?

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Vamos defender, como hipótese inicial e genérica, que, em Simondon, existe

humanismo sem que haja necessidade de um antropocentrismo. O problema central então

não é louvar ou recusar a técnica, mas se perguntar o que deve-se fazer com ela,

principalmente em um mundo onde a tecnologia está inevitavelmente presente na vida de

todos. É pensando nisso que acreditamos ser o pensamento de Simondon absolutamente

essencial para refletirmos sobre um panorama que ele não chegou a vivenciar: o mundo

tecnocientífico e biotecnológico contemporâneo, onde uma nova humanidade, e todos os

desafios filosóficos atrelados a isso, está em vias de ser composta em conjugação com as

invenções técnicas.

PRÓLOGO

UM CONSAGRADO PRECONCEITO FILOSÓFICO À TÉCNICA

Ao longo da história da filosofia, clássica e medieval particularmente, sempre foi

feita uma grande separação entre pensamento e técnica. É só lembrarmos o papel inferior

que Platão concedia aos trabalhadores manuais, os artesãos, em sua República. Pensar e

agir eram não só incompatíveis, como a própria condição para pensar vinha exatamente da

inação. O governante da sua pólis, a melhor possível no plano da materialidade, era o

filósofo, aquele que nunca desempenha qualquer ação prática. Mesmo tendo a noção clara

de que tekhné tinha um sentido nobre entre os gregos, ela jamais deixava de estar ligada a

algum tipo de atividade, de realização material. Era entendida como habilidade, excelência

em elaborar ou preparar algo, seja um sapato, um discurso, um campo de trigo etc. Essa

característica ativa, por si só, já a tornava para Platão muito inferior a episteme, ciência que

se realiza em um nível exclusivamente mental, ou seja, contemplativo. Esse entendimento

- 17 -

do que seja ciência perdura até que sejam dados os primeiros passos da modernidade no

final do período medieval.

A idéia platônica de contemplação, que é o modo como se filosofa (as Formas são

alcançáveis pela visão), sugere a imobilidade, na medida em que contemplar é admirar,

sem intervir, algo que necessariamente é maior e mais importante que nós. Por isso, o

contato com o verdadeiro real será feito com nossos olhos superiores, os da alma, nunca

com os do corpo. Nada que está sendo contemplado deve ser alterado, pois há uma

perfeição inerente no alvo da contemplação. A verdade está lá fora e no alto, indica o

realismo do pensador grego. Aquele que observa está necessariamente em uma condição

inferior em relação ao observado. O verbo que Platão usa é theorein, significando a

visualização de algo elevado e imaterial que só se torna possível quando a alma está em um

altíssimo nível de pureza e já nos livramos tanto quanto é possível do que é próprio do

corpo. Logicamente é desse significado originário que depreendemos a nossa compreensão

atual da palavra “teoria”. A exceção dessa tendência é perceptível entre sofistas como

Protágoras e Górgias, que ao mesmo tempo que não se dedicam a elaborar teorias,

defendem visões filosóficas na prática e valorizam as técnicas aplicadas à linguagem e à

política.

É relativamente simples perceber que o valor do contemplativo e do imóvel, que

vem da metafísica grega, teve um ajuste preciso aos padrões de pensamento medievais.

Afinal de contas, temos que lembrar como a idéia de Deus se apresenta no cristianismo.

Antes de tudo, Ele, por ser eterno e perfeito, é o próprio repouso absoluto. Depois, o modo

como o cristão se aproxima d‟Ele se dá por via da busca de cessação dos movimentos e das

paixões corporais e também pelo desenvolvimento da alma, o componente de eternidade

que existe em nós e que nos dá a chance de habitar o plano divino. Se na Grécia a alma era

- 18 -

sede da razão, agora é também meio de salvação e conquista da vida eterna. Não se

depreende daí que Deus possa ser contemplado em um face-a-face (Ele pode ser ouvido e

também fala, mas não é visto, pelo menos para a grande maioria dos que tentam estabelecer

contato), mas a atitude cristã é de preparar o espírito para contemplar os sinais enviados por

Ele. Um bom exemplo disso está na importância do silêncio e no incentivo à serenidade

entre os representantes religiosos. Paralelamente a isso, há um permanente estímulo à

intocabilidade e à não-intervenção naquilo que é compreendido como natureza. Esta, que se

revela, desde o Gênesis bíblico, como a grande obra realizada por Deus no começo dos

tempos, está aí para ser apenas admirada, nunca modificada. É exatamente por isso que o

antípoda de Deus, o diabo, traz inerente a si atribuições ligadas ao artificialismo,2 à

contranatureza: sedutor, alterador da matéria, contador de mentiras, corruptor da ordem,

estimulador das paixões e ações violentas etc.

É esse quadro mental que se modifica com o despertar da modernidade. A série de

conflitantes visões de mundo que se inaugurou nos séculos finais da Idade Média, e que se

seguiu por pelo menos dois séculos, colocou justamente em lados opostos as idéias de vida

contemplativa e de vida ativa. A idéia de “quem sabe faz”, que é quase incontestavelmente

para nós hoje uma expressão percebida de maneira positiva, só poderia fazer sentido em um

âmbito moderno (mesmo que aconteça ainda dentro do que se nomeia Idade Média), jamais

antes. O que parece é que passou a ser percebido, em um modelo de pensamento de herança

platônica, um desvínculo que se passa no interior da reflexão filosófica, pois historicamente

ele nunca aconteceu, entre técnica e produção de idéias. Exatamente por isso essa tese quer

promover o resgate de uma associação histórica entre esses dois campos.

2 Entendemos aqui como a produção de objetos com condução exclusivamente humana, ou seja, que não são

encontrados na natureza.

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HISTÓRICO DO HUMANISMO TÉCNICO

O humanismo pré-socrático

Para iniciar qualquer histórico sobre o humanismo, por mais breve que ele se

pretenda, é preciso começar recorrendo aos gregos e ao nascimento do livre pensamento

filosófico no século VI a.C. É no cruzamento de Oriente e Ocidente, nas ilhas jônias, que, a

partir de tentativas humanas de entender os processos naturais, a idéia de um novo e

importante papel do homem diante do mundo que o rodeia passa a ter sentido pela primeira

vez, pelo menos até onde podemos desvendar desse universo nebuloso anterior aos relatos

escritos. É preciso não esquecer, como insistiu o grande helenista Erik Havelock em boa

parte da sua obra, que a filosofia começou absolutamente independente da linguagem

textual.

Foi em regime oral que a especulação sobre possíveis e espontâneas regularidades

no mundo natural ganhou sentido, constituindo o começo comum da filosofia e da ciência.

Estamos no ambiente de Tales de Mileto e uma grande ousadia está pronta para ser

empreendida, até onde sabemos, pela primeira vez pela humanidade. É o modo de ver que

se altera radicalmente. O que desaparece é uma hierarquia deuses/homens que eliminava

qualquer possibilidade de um discurso especulativo humano, diferença de poder que

aparece de modo explícito na tragédia grega. Os deuses, habituais comandantes das

diferentes áreas da natureza, deixam esses postos e ela ganha autonomia, passando a ser

causa e efeito dos seus próprios fenômenos. Não estamos absolutamente cometendo a

heresia de sugerir que o sagrado tenha se esvaído do meio natural. O maniqueísmo entre

sagrado/profano, religioso/ateu, que existe para nós, não é cogitado na Grécia Clássica.

- 20 -

A idéia de théos, anterior e mais ampla que a visão ontológica de Deus cultivada na

cultura judaico-cristã, se liga também à acepção muito mais geral de divino. Diz W. K.

Guthrie: “(...) theos, a palavra grega que temos presente quando falamos do deus de Platão

tem primordialmente um valor predicativo (...) Nesse estado de espírito e com essa

sensibilidade para perceber o caráter sobrehumano de muitas das coisas que nos ocorrem

(...) um poeta grego escreveria versos como este: „o reconhecimento entre amigos é theos‟.”

(GUTHRIE, 1994, pp. 17-8) Sem estar limitada a entidades antropomorfizadas, a

sacralidade está entranhada em tudo o que existe. Tales chegaria a pronunciar a frase

“Mesmo os seres inanimados podem estar „vivos‟; o mundo está cheio de deuses”,

indicando que tudo na natureza traz o atributo de divino. Podemos inclusive afirmar que um

animismo ou um panteísmo estão aí presentes, na medida em que esse potencial energético

religioso, que não deixa de ser vital a partir desse ponto de vista, se espraia por todos os

corpos, alcançando por exemplo as pedras. Mais uma vez Tales é comentado, desta vez da

perspectiva de Aristóteles: “Parece também que Tales, a avaliar pelo que se conta,

considerava a alma como algo de cinético, se é que ele disse que a pedra [de Magnésia]

possui alma pelo fato de deslocar o ferro.” (KIRK, 1994, p. 93).

A questão é que se não há mais seres superiores guiando os fenômenos naturais, o

homem tem um espaço aberto para lançar suas concepções próprias dos acontecimentos. É

assim que um eclipse não é mais, por exemplo, a mão de um deus colocada na frente do sol

ou da lua, mas passa a ser fruto de constâncias naturais de movimentos cósmicos

autônomos, sendo, exatamente por isso, humanamente explicáveis. Usa-se para isso, entre

outros artifícios criados por homens, os números matemáticos. Se, no Egito, a matemática

era usada com o fim prático e religioso de construir uma pirâmide, a tumba de um só

homem, na Grécia, esse estudo vai se voltar para o conhecimento livre e desinteressado dos

- 21 -

céus. O próprio Tales, entre outras habilidades, era matemático e astrônomo. Desse

movimento de esquadrinhamento celeste, que privilegiou as estabilidades e repetições,

nasceu a ciência, que nesse momento está completamente imbricada à filosofia.

O que mais nos interessa nessa nova condição é que seguimos de uma natureza

controlada por entidades com superpoderes para a proposição de soluções integralmente

humanas das ocorrências. Não temos mais a voz do deus, por si mesma incontestável,

dizendo como um acontecimento se dá. Surge uma visão individual, mas que se pretende

universal, apoiada em raciocínios humanos e causas imanentes. Aparece também nesse

raiar filosófico inicial uma multiplicidade de análises naturais em choque, o que demonstra

que a polêmica, o combate de idéias, diferentemente do discurso mítico, é componente

constituinte da filosofia desde os primeiros passos. Uma situação interessante se anuncia: o

homem agora tenta explicar o que antes era uma certeza de caráter irrevogável. Não

podemos deixar de ver nessa manifestação de coragem o despertar de um humanismo. Não

é ainda a ocupação humana de um papel central em relação ao mundo, que é a consideração

clássica do que seja humanismo, mas revela-se sem dúvida como uma inédita condição de

importância dada à razão humana. Se não é o humanismo de cores fortes do século V, como

veremos em seguida, já é, no mínimo, o que poderia ser chamado de um humanismo

moderado. Não podemos esquecer que essa renovação do pensamento aconteceu somente

na Grécia e que os impérios em torno continuavam com sua tradição de hierarquia de poder

com vínculos estritamente religiosos. Um homem só fazia diferença entre os outros nesses

locais pela sua maior proximidade com a esfera divina. Por isso, aquilo que diziam os

profetas, os adivinhos e os xamãs tinha força de verdade.

- 22 -

O humanismo técnico do século V a.C.

Um momento mais decisivo na trajetória do humanismo enfatizado por nós acontece

no século V a.C., em Atenas, já que aí a liberdade de expressão e a democracia atingiram

um esplendor singular entre as cidades gregas. Nossos personagens agora serão os sofistas,

particularmente aquele que é considerado seu primeiro grande representante: Protágoras.

Ao falar especificamente deste humanismo, o conceito ganha cores mais fortes, pois no

âmbito da pólis, o campo das decisões sobre o futuro cabe única e exclusivamente à

dimensão humana. Os sofistas são aqueles que anunciam, talvez pela primeira vez, que seja

impossível afirmar com plena convicção se os deuses existem ou não existem. Ou, em

sentido mais geral, que sobre o invisível e o misterioso nada se pode dizer, não se pode

opinar. Dessa forma, estão definindo o campo possível do que pode ser conhecido pelo

homem. Pois se os deuses não se deixam afirmar, resta o humano. E completam que, de

todo modo, mesmo que os deuses existam, não têm poder de intervir de maneira direta nas

situações vividas por certa comunidade ou nas decisões referentes à vida pública. Diz

Gilbert Romeyer tratando de Protágoras: “(...) prepara assim por negação de todo recurso

ao absoluto, um humanismo radical.” (DHERBEY, 2002, p. 16). São os homens em

conjunto que decidem por si mesmos como se processará o futuro.

Com uma audácia extrema, que poderíamos chamar de um agnosticismo avant la

lettre, os sofistas chegam a especular que os deuses podem habitar apenas nossas mentes ou

que sua missão principal é a de atender a carências sociais, sendo seres imaginados, não

reais. O ceticismo reinante no pensamento sofista vai levar a um ponto culminante a noção

de autonomia humana, na medida em que as convicções do sujeito vêm dos seus

pensamentos e percepções. O que interessa nesse momento é o que cada homem, com a

competência advinda de um conhecimento adquirido com esforço, pode fazer. Os novos

- 23 -

tempos anunciam a idéia de que os cidadãos são iguais e rivais, não sendo mais decisiva,

como antes, a questão sangüínea, critério típico do regime monárquico anterior,

aristocrático-religioso. Na democracia, a avaliação é por competência. Todos que têm

direitos políticos em Atenas, cerca de 20% da população ou 6 mil pessoas, são colocados

agora supostamente na condição de pretendentes. É nessa conjuntura igualitária que a

especialidade sofística, ensinar a melhor forma de pronunciar um discurso em defesa de

uma idéia, ganha relevo. Eles tornam-se fundamentais, pois fornecem técnicas para o

acesso ao poder, que na Atenas do século V é pavimentado pela expressividade oral.

Por terem trazido para a educação grega a importância da aquisição de saberes

variados e a maneira de transmiti-los, em disciplinas como oratória, retórica e gramática, os

sofistas ficaram conhecidos como os enciclopedistas da Grécia e o período nomeado como

Iluminismo Grego. É a partir deles, portanto, que podemos falar do que foi também

tremendamente estimulado na Renascença e no Iluminismo do século XVIII que hoje é

conhecido como cultura geral. A referência aqui não é a um saber superficial em diferentes

temas, como pode ser entendida essa expressão hoje. O modelo é a figura multifacetada de

Leonardo da Vinci para a sua época, ou seja, um amplo e profundo conhecimento de

diversas áreas, sem uma separação em especialidades, fenômeno típico do mundo industrial

e cada vez mais acentuado contemporaneamente. Não é coincidência que esses dois

períodos sejam também considerados humanistas, no sentido de posicionar o homem como

referência central do saber. É esse humanismo que vamos privilegiar no primeiro momento

dessa tese.

Argumenta-se que os sofistas não eram filósofos. Partindo de um certo

entendimento do que seja filosofia, isso está correto, pois não foram homens que teorizaram

sistematicamente, elaboraram tratados ou anunciaram publicamente conceitos e visões

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gerais sobre o Cosmos ou as ações humanas. Como remanescentes na pólis da tradição oral

iniciada com os pensadores pré-socráticos, efetivam as novidades de suas idéias na ação

política. É menos especulação e mais prática. O que há de inovador se apresenta em praça

pública, no calor dos posicionamentos contraditórios em debate. É por isso que, mesmo

sem uma intenção clara, suas práticas no campo da linguagem e da política incitaram

questionamentos que são filosóficos por excelência: o que é o real? E a verdade? Qual é o

papel do homem em relação ao que o rodeia? Que relação pode existir entre verdade e

palavra?, tema que aliás atravessa toda a filosofia grega posterior. Podemos com

tranqüilidade dizer que os primeiros passos em filosofia política estão sendo dados por eles.

Também é possível afirmar com segurança que grande parte da problemática conceitual e

da reforma educativa proposta posteriormente por Sócrates e Platão tem total dependência

com as defesas sofísticas.

Há inclusive autores que teorizam que essas duas filosofias seriam impossíveis sem

os sofistas. Com eles, os dados deixam, como antes, de existir por si e o homem passa a só

confiar naquilo que ele mesmo tiver proposto, valorado e aprovado, ou seja, a dimensão do

verdadeiro ganha planos terrenos e relativos. Em sua vertente absoluta, a verdade é

simplesmente descartada. A realidade passa a absorver intrinsecamente a contradição e a

multiplicidade. No campo jurídico, por exemplo, a única lei que conta é a criada pelo

homem e apoiada pela comunidade. Como diz G. B. Kerferd em O movimento sofista,

sobre a verdade em sentido único: “(...) opiniões contrárias são igualmente legítimas, a

verdade se torna uma armadilha enganadora, as tentativas de alcançá-la, loucura.”

(KERFERD, 2003, p. 26). A verdade é relativa a quem a pronuncia e a crença em algo se

dá no âmbito do provisório. Uma das técnicas argumentativas, retóricas, trata do que

Protágoras nomeia de antilogia. O ponto de partida é que sobre qualquer assunto há mais de

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um modo de se posicionar. Isso faz com que dois discursos possam ser coerentes e

incompatíveis ao mesmo tempo. Uma noção de combate, agón, é inerente à cultura grega.

Se antes o cenário era o próprio campo de batalha, com lanças e escudos, agora houve uma

transferência para o âmbito opinativo e lingüístico.

Isso faz com que todo orador digno desse nome seja capaz de elaborar um discurso

de defesa e de ataque sobre o mesmo tema. Estamos falando especificamente de estratégia.

Não é que não exista um ponto de vista defendido em relação a algo, mas, pelo contrário,

você defende melhor algo se conhecer os argumentos daqueles que pensam o oposto. Como

as verdades aparecem, sempre em caráter provisório, no calor dos discursos, opinião e

verdade não se distinguem. Não por coincidência uma noção de tempo que surge aí é a da

kairós, expressão normalmente traduzida por momento oportuno, pois dependendo da

situação que se apresenta e da expectativa da audiência será dada a importância adequada

ao que você está defendendo ou atacando. Isso quer dizer que os argumentos devem variar

de acordo as circunstâncias.

Existe uma autêntica revolução de costumes em andamento na Grécia. Há todo um

estímulo para que o valor dos homens seja definido não mais pela referência sangüínea,

mas pela capacidade individual. E ao falar disso na Grécia desse período, falamos ao

mesmo tempo de facilidade de se expressar. É nesse sentido que os sofistas, que são

literalmente professores de oratória e de argumentação (retórica), tornam-se peças

fundamentais na formação educacional complementar, que acaba por constituir uma nova e

necessária paidéia. A tradição educativa anterior condicionava como objetivo a preparação

dos homens para a guerra. Esses novos educadores são causa e conseqüência da abertura

política que está acontecendo em Atenas. Aproveitam-se dos novos tempos democráticos e,

ao mesmo tempo, os estimulam.

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Quando nos perguntarmos porque os sofistas afluíram a Atenas nesse período,

vemos claramente como houve uma forte conjugação de interesses: “Não foi por acaso que

sofistas de todo canto do mundo grego vieram para Atenas (...) Primeiro porque Atenas

oferecia excelentes oportunidades para um sofista ganhar muito dinheiro e, segundo, em

nível mais elevado, porque, sob muitos aspectos, ela estava em processo de se tornar um

verdadeiro centro intelectual e artístico em toda a Grécia.” (idem, p. 38). Atenas, muito em

função do comando político de Péricles, conquistou a maior liberdade de expressão que o

mundo antigo já conheceu. Em nenhum outro local, à época e por muitos séculos, tantos

homens tinham a oportunidade de se candidatar ao cargo máximo de poder. Toda essa

revolução de hábitos estimulada pela sofística trazia reações adversas. Os sofistas “atraíam

o entusiasmo e o ódio que regularmente advém àqueles que estão envolvidos num processo

de fundamental mudança social.” (idem, pp. 43-4).

Não é possível falar dos sofistas sem apontar um dos seus grandes representantes:

Protágoras. Em particular, um ponto que nos interessa é a idéia do homem-medida. A sua

frase mais conhecida é esclarecedora: “O homem é a medida de todas as coisas, das que são

como são e das que não são como não são.” A frase traz ao mesmo tempo a questão do

homem como pólo definidor do que é e do que não é, abrindo um ponto central de

discordância em relação à noção que vem de Parmênides e de todo o eleatismo de que a

verdade existe, é absoluta e externa ao homem. Isso não quer dizer que Protágoras

desconsidere o problema da verdade. O que ele está dizendo é que ela agora é relativa às

produções mentais humanas, ou seja, ela é múltipla e variável. Ele não está dizendo que ela

é individual ou absolutamente fluida. O que está sendo dito, ao nosso ver, é que a postura

do livre pensador é a de abertura a novas reflexões, ou melhor, à aquisição de novas

verdades, conforme essas últimas pareçam mais coerentes e adequadas que as anteriores.

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Por não haver lugar a chegar, não há problema em mudar o modo de enxergar o

mundo que nos envolve. Protágoras também não está levando o relativismo a extremos,

indicando que as verdades são referentes a cada indivíduo isoladamente. Sim, as

proposições são individuais, mas não se esgotam com ele, já que política propriamente dita

acontece no âmbito coletivo. É exatamente por isso que vemos uma possibilidade de falar

em ética sofística quando lidamos com Protágoras. Ela pode ser exercida quando um sofista

escolhe seus alunos ou quando os estimula a produzir discursos mais consistentes

sustentados por idéias que eles já possuíam. Há uma falsa e muito comum associação entre

o ato de persuadir e o de enganar.

Podemos afirmar hoje que grandes sofistas, Protágoras certamente incluído entre

eles, por inaugurar a dimensão política no palco da reflexão filosófica, foram os primeiros a

questionar como o homem deve agir em relação ao conjunto dos outros homens. Não é

preciso ir longe para lembrar que a resposta à pergunta “como devo agir?”, serve de base a

qualquer debate ético. Sua proposta de formar políticos, logicamente sem levar em conta as

interpretações muito tendenciosas de Platão, era unir o que eles já pensavam, que vinha da

educação de base na Grécia com as novas exigências que o advento da pólis democrática

demandam. No momento anterior, que Homero simboliza exemplarmente, havia uma

concentração no preparo para a Guerra considerada suficiente. Agora as armas são outras.

São técnicas lingüísticas ligadas à oratória, gramática e retórica que serviriam para produzir

um discurso bem-sucedido. Os sofistas tornam-se essenciais porque passam a oferecer esse

complemento pedagógico ligado à linguagem, algo que se revela absolutamente prioritário

em ambientes onde o poder passa a ser alcançado por meio do saber e da expressão oral.

A idéia aí seria unir conhecimento e discurso bem articulado, reflexão e

técnica em um sistema. Mas mais que tudo isso, esses primeiros sofistas ajudaram a

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promover uma amplitude inigualável para a liberdade de expressão, que se revela como

humanista. Durante esse período áureo da democracia grega, também conhecido como

Iluminismo Grego, que virou referência de liberdade política para todo o Ocidente, formou-

se um conjunto que uniu um grande avanço nas técnicas da linguagem com os estímulos

políticos de autonomia e liberdade. Simondon traça um vínculo entre a promoção

humanista e o que costuma-se chamar de primeira sofística: “(...) no tempo dos Sofistas e

do Discurso Panegírico, a linguagem, concebida como depositária do saber aparecia como

o fundamento de uma „perpétua panegiria‟ da humanidade.” (SIMONDON, apud

CHATELÊT, 1994, p. 270).

Mas essa fase durou pouco, mais propriamente 30 anos, quando o espírito libertário

ligado à palavra virou a lei do mais forte, e a palavra democrática fez a passagem para a

palavra tirânica. É nessa segunda sofística, que muitos autores não diferenciam da primeira,

que o horizonte ético vai perder o sentido, pois vai haver uma concentração definitiva nos

indivíduos isolados. O exemplo de sofista do período será Trasímaco. A retórica aí visará

explicitamente interesses próprios e egoístas. O sucesso do discurso será o primeiro e único

objetivo de quem o pronuncia, deixando de haver qualquer tipo de consideração das

conseqüências, algo que tem importância decisiva quando falamos de ética. Podemos

afirmar que, em termos genéricos, ética e egoísmo não podem andar juntos. A união

anterior entre palavra e pensamento se dissolve. Uma ação ética logicamente parte do

indivíduo, mas inevitavelmente vai além dele, repercute positivamente na vida de outros

indivíduos, o que chamamos normalmente de bem comum. Um sistema homem-mundo se

produz. É exatamente isso que tínhamos na primeira sofística e deixamos de ter na segunda.

A riqueza da união linguagem e conhecimento fica transformada em uma mera oratória

vazia, como se pudéssemos pronunciar um texto favorável à pena de morte durante o dia e

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contrário a ela durante a noite. Esse interesse egoísta conduz a um fechamento e a um

automatismo, ou seja, a uma exclusão da reflexão que só produz retrocesso para o conjunto

dos homens, que se configura nesse caso literalmente como um anti-humanismo.

Isso vale para aplicações técnicas em campos tão diferentes quanto a linguagem ou

as máquinas. Os próprios frutos de períodos humanistas têm que ser permanentemente

revistos. Diz o próprio Simondon: “Parece existir uma lei singular do devir do pensamento

humano, segundo a qual toda invenção ética, técnica, científica que é inicialmente um meio

de liberação e de redescoberta do homem, transforma-se, pela evolução histórica em um

instrumento que se volta contra o seu próprio fim e submetendo o homem, limitando-o.”

(SIMONDON, 1989, pp. 102-2). Isso significa que a busca humanista é um processo

incessante.

O humanismo técnico na modernidade

Nossa localização agora é, particularmente, a cidade-Estado de Florença no século

XV d.C. Depois da Atenas do século V a.C., só aí é possível falar de uma retomada da

visão humanista privilegiada nessa tese. O período histórico nomeado como Renascimento,

termo tremendamente parcial cunhado por quem teve interesses muito diretos em

menosprezar o período medieval, é claramente determinado por um retorno à tradição

greco-romana, em particular a Cícero e aos estudos da língua e autores clássicos (latinos e

gregos) recomendados por ele.

O que uma denominação como Renascimento quer esconder é uma real dívida que

esse momento histórico teve com o passado medieval recente. De nossa parte,

reconhecemos a parcialidade da denominação e, principalmente, a continuidade dos dois

períodos históricos, mas pela relevância que estamos dando às técnicas, nossa ênfase será

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dada às distinções com a Idade Média e às aproximações com a cultura clássica, além do

aspecto original próprio à época, ligado à valorização do indivíduo e da criatividade

inerente a ele. Quanto a essa originalidade, disse Burckhardt em uma citação famosa do seu

clássico A cultura do Renascimento na Itália:

“Na Idade Média (...) o homem reconhecia-se a si próprio apenas enquanto raça, povo, partido, corporação,

família ou sob qualquer das demais formas de coletivo. Na Itália, pela primeira vez, tal véu dispersa-se ao

vento; desperta ali uma contemplação e um tratamento objetivo do Estado e de todas as coisas deste mundo.

Paralelamente a isso, no entanto, ergue-se também, na plenitude de seus poderes, o subjetivo: o homem torna-

se um indivíduo espiritual e se reconhece enquanto tal.” (BURCKHARDT, 2003, p. 111).

Não podemos perder de vista que o universo medieval, ou quase todo ele, revelou-se

como um momento de condenação de toda e qualquer criação humana. Já a cultura

renascentista, ligada definitivamente às invenções, às belas-artes e às letras, existe uma

nítida revalorização da técnica em defesa da liberdade humana. Com o novo depósito de

confiança na inventividade, o homem muda seu papel frente à natureza. Temos que lembrar

que o homem só saiu ao mar aberto, local milenarmente associado à loucura, com todos os

seus perigos, tanto míticos quanto reais, apoiado exclusivamente em um artifício humano

próprio da época: a bússola. Deus se mantém como o Criador por excelência,o que não

impede a humanidade de exercer a função de Co-Criadora no que se refere à natureza. Isso

fica patente na obra Criação, de Michelângelo, que ocupa o alto da capela Sistina e mostra

o dedo do Criador, que está em altura ligeiramente superior, quase que tocando no de Adão,

indicando que a chama criativa é transmissível de um para o outro.

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É preciso contemplar o mundo natural, mas também modificá-lo. E o que vem dos

antigos? No retorno aos ideais clássicos promovidos pelo Renascimento está dado o passo

para falarmos de humanismo, pois, de acordo com os renascentistas, a humanidade se

realizou em sua forma mais perfeita nesse momento da Antigüidade, em Atenas e em

Roma. Foi nesses locais que a história humana conseguiu assegurar ao homem, pela

primeira vez, um lugar privilegiado e uma expressão amadurecida. Em função disso, esse

tempo clássico ficou conhecido como “época áurea”. Temos que lembrar que a própria

cidade de Florença, palco fundamental do Renascimento, teve como inspiração física,

política e filosófica a autonomia da pólis grega, em particular a Atenas democrática do

século V a.C. Podemos pensar que a condição de importância dada ao homem vem dos

antigos, enquanto a técnica, no sentido de intervenção e modificação da natureza, surge

como acréscimo originalmente renascentista. Burckhardt ressalta esse aspecto

complementar do ontem e do hoje na constituição desse novo homem: “Do humanista, por

sua vez, exige-se a mais ampla versatilidade, na medida em que já há tempos seu saber

filológico não deve (...) servir meramente ao conhecimento objetivo da Antigüidade

clássica, mas também ser aplicável no cotidiano da vida real. Assim, paralelamente a seus

estudos sobre Plínio, por exemplo, ele reúne um museu de história natural.” (idem, p. 116).

Além das artes, o humanismo do século XV também esteve ligado visceralmente ao

problema da linguagem e à posição do homem como intérprete de tudo o que lê e ouve. Daí

vinha a sua liberdade. Vemos aí uma clara relação entre os renascentistas e os sofistas. O

próprio ideal educativo grego de interação de saberes, chamado de humanitas e paidéia, é

grandemente retomado, inclusive em disciplinas como ética, política, dialética, retórica e

gramática. É essa formação ampla que eleva a humanidade ao ponto que ela pode alcançar

em suas reais aptidões, diferenciando-a dos animais. Um dos modos de realizar esse retorno

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à Antigüidade foi empreender de modo sistemático traduções de obras do período clássico

greco-romano, envolvendo autores como Platão, Aristóteles, Epicuro, Cícero etc. Essas

iniciativas buscam a retomada das idéias desses autores em sua autenticidade, ou seja, sem

recorrer a avaliações alheias e deformantes. Era usual na Idéia Média que a visão de Platão

e Aristóteles fosse tomada como definitiva, quase um dogma. Na esteira desse processo,

alia-se o valor do homem e da ordem cronológica dos eventos: “É com o humanismo que

surge pela primeira vez a exigência do reconhecimento da dimensão histórica dos

acontecimentos.” (ABBAGNANO, 1984, p. 10). Junto a isso virá também como

conseqüência a importância dada às fontes fidedignas e ao estudo da língua: “Sem

investigação filológica não há propriamente humanismo.” (idem, p. 11). É desse modo que

os renascentistas vão acreditar que a verdade é filha do tempo, o que dá aos modernos um

ar cético e os faz acreditar que podem ir mais longe no saber que os antigos foram. A

verdade, agora, é filha do tempo e não da eternidade. Esse posicionamento de respeito ao

passado e confiança no presente fica explícito na famosa frase de Newton: “Se enxerguei

além dos outros, é por que estava no ombro de gigantes.”

O ouvir-falar, tão satisfatório no período medieval, é substituído por uma avaliação

pessoal que inclusive fica demonstrada pela própria noção de perspectiva na arte, em que

uma visão original e individual de uma situação é o que deve ser retratado. A posição

pessoal do autor e do artista agora é o que interessa. A íntima relação entre história e arte na

Renascença pode ser demonstrada do seguinte modo: “A descoberta da perspectiva

histórica está para o tempo, como a descoberta da perspectiva visual está para o espaço.”

(idem, p. 12). Surge a noção de ponto de vista, não havendo um só e verdadeiro modo de

ver algo. Relativizam-se os modos de entendimento. Outra demonstração disso vem com a

própria noção de ensaio, na acepção de seu criador, Montaigne, muito ligada a um juízo

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subjetivo sobre um certo assunto, o que deixa implícito que outras visões, para além

daquela que está sendo defendida, são possíveis.

Individualmente cada um tem que realizar uma restauração histórica. O próprio

Montaigne dirá que não se deve rigidamente “ter doutrinas filosóficas, mas filosofar sobre

todos os assuntos e coisas humanas”. A filosofia passa a ser uma experimentação interior e

a autonomia só viria com o saber: “O verdadeiro homem é aquele que se desdobrou no

sábio, ou seja, na consciência que adquiriu de si próprio e do mundo.” (idem, p. 37). A

simbologia mítica que representa esse homem é de Prometeu, o deus que roubou o fogo

(saber) dos deuses e o doou aos homens. Em ordem contrária, o homem ignorante é aquele

que não pertence a si próprio, aquele que não alcança a condição humana em sua plenitude.

Essa inovação renascentista de culto à personalidade humana daria a esse período a

alcunha de moderno: “A importância que o mundo moderno atribui à personalidade

humana é o resultado de um propósito atingido pela primeira vez pelo humanismo

renascentista.” (idem, p. 12). Promove-se uma liberdade de investigação individual contra a

persistente reverência à tradição. O que se entende é que o mundo foi feito por Deus, mas

para ser usufruído e governado pelo homem. Burckhardt considera que a existência de

tiranias, próprias das cidades italianas dos séculos XIV e XV, só foi possível quando se

instalou um regime político totalmente laico, onde se afirmavam um valor ao

individualismo e um culto à personalidade. Vamos falar de um planejamento da própria

existência, no qual a felicidade e a salvação ultraterrenas não significam o esquecimento da

vida terrena e, pelo contrário, dependem diretamente das ações individuais. O refúgio dos

mosteiros passa a ser algo mal-visto e a atenção tem que ser dada à conexão entre vida

pública e bem comum: “(...) o homem que se refugia na solidão é um egoísta que se esquiva

ao cumprimento da obrigação de trabalhar pelo bem dos seus semelhantes.” (idem, p. 34). É

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nesse sentido que se pode falar de uma valorização da vida ativa, tanto na política quanto

na ciência. Para detalhar um pouco melhor essas duas faces da modernidade, traremos dois

perfis capitais de cada um desses ambientes: primeiro Maquiavel e depois Galileu.

O humanismo técnico moderno na política

Maquiavel é inseparável da política renascentista. Como pensador integralmente

ligado ao seu tempo e como idealizador da política como técnica e construção de imagem,

está a nosso ver intimamente ligado à proposta dessa tese. Algumas perguntas vão nortear

esse texto: Maquiavel pode se destacar do maquiavélico? Será possível visualizar ações

éticas por trás do amoralismo de Maquiavel?

Sobre o pensador florentino paira uma grande mitificação. Muitas visões distorcidas

e exageradas pairam sobre ele. O próprio adjetivo criado sob sua inspiração, maquiavélico,

ganhou várias acepções negativas: falsidade, astúcia, traição, má-fé e maldade

despropositada. Tudo isso é fruto, a nosso ver, de preconceito, desconhecimento ou leituras

superficiais e apressadas de seus escritos. Tentaremos também desfazer outra visão

distorcida: a de que o filósofo italiano proporia uma tirania anômica, em que toda lei criada

dependa apenas das vontades pessoais e volúveis do tirano. É preciso estabelecer

diferenciações entre o culto à personalidade, próprio do Renascimento e do qual Maquiavel

é franco partidário, da sua suposta defesa de tiranias, que efetivamente nunca aconteceu.

Maquiavel: a favor do Estado e contra a tirania

Essa suposta orientação para o despotismo é por diversas vezes contrariada em sua

obra, pois esse modelo de governante é apontado como aquele que coloca seus caprichos

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individuais e egoístas como prioridade e não o triunfo do Estado e o bem-estar dos seus

súditos, personalismo que se revela como um claro desvirtuamento do papel de quem

exerce o poder. Maquiavel, que é o inaugurador do que viemos a chamar de ciência

política, aspira todo o tempo à formação de um Estado de Direito, com relações sociais

harmoniosas, instituições fortalecidas e leis estáveis. Um príncipe que tivesse essa sede

excessiva de poder concentrada em si e não no conjunto da comunidade, no lugar de honra,

segurança, serenidade e glória, colheria, pelo menos a longo prazo, infâmia, perigo e

inquietação.

Seu comando, na medida em que governa sempre apoiado no medo e na crueldade

descontrolada, não possui a mínima estabilidade, pois suas ações desrespeitosas,

desmedidas e irracionais acabam atraindo o sentimento que leva à sua queda: o ódio. Ele

deve ser evitado acima de tudo, pois desperta violências que nenhuma muralha consegue

conter. O pensador florentino vai afirmar que a melhor fortaleza para um soberano é, senão

a estima, pelo menos o respeito do seu povo. É por não conquistar nem uma nem o outro

que as tiranias fracassam rapidamente. Esse insucesso constante já é suficiente para

desclassificá-las como um regime de governo adequado. Maquiavel defende a eficiência, a

harmonia, o sucesso e a duração de um Estado acima de tudo. O governante, portanto, não é

um ditador, mas um instaurador de regras e segurança, um fundador do Estado. Assim, ao

contrário do que muitos pensam, não temos aqui uma filosofia política que defenda o uso

puro e simples da força, mas uma aplicação planejada da força.

Os tiranos são aqueles que a utilizam sem o cálculo, o que os faz praticar excessos

sem usar de estratégia e sem ter finalidades. Eles sobem ao poder, mas não se mantêm lá.

Podemos dizer que o caos político que se abate sobre Florença em fins do século XV se

deve a uma seqüência de tiranias que sobe e desce ao poder na cidade. É nesse ambiente

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movediço e inseguro que o pensador italiano nasceu e cresceu: “Nesse cenário conturbado

no qual a maior parte dos governantes não conseguia se manter no poder por um período

superior a dois meses, Maquiavel passou sua infância e adolescência.” (SADEK, apud

WEFFORT, 2006, p. 15). Esses eventos geraram uma espécie de trauma em nosso autor, o

que o levava a considerar o acesso tirânico ao governo como ilegítimo: “Na Itália do

Renascimento reina uma grande confusão. A tirania impera em pequenos principados,

governados despoticamente por casas reinantes sem tradição dinástica ou de direitos

contestáveis. A ilegitimidade do poder gera situações de crise e instabilidade permanente

(...)” (MAQUIAVEL, apud MARTINS, 1996, p. 6).

Maquiavel: filho do seu tempo

Vamos nos concentrar nesse texto na avaliação de sua obra mais conhecida O

príncipe. Para uma boa compreensão dessa obra de Maquiavel é preciso avaliar esse

contexto histórico extremamente turbulento em que ela foi produzida. Só desse modo o

pensamento do autor pode ser interpretado como um plano de sobrevivência, um manual

técnico de conduta do soberano, em particular o recém-chegado ao poder. O livro deve ser

visto como um trabalho de consultoria política feito sob medida para uma família florentina

conhecida pela influência política, religiosa (dois de seus integrantes foram papas, quando

política e religião ainda mal se separavam) e pelo patrocínio de grandes artistas da

Renascença: os Médicis. Não podemos esquecer que até em termos econômicos a crise

atinge as cidades italianas. Se antes da queda de Constantinopla, em 1453, elas controlavam

o principal centro de distribuição e comércio de mercadorias do mundo medieval, o mar

Mediterrâneo, após isso e com a descoberta do caminho para as Índias, a primazia

comercial muda de mãos, passando a Portugal e Espanha.

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As reviravoltas políticas eram tantas nesse momento que em muitos casos dormia-se

amigo e acordava-se inimigo, algo que o próprio Maquiavel vivenciou diretamente.

Estamos em 1512 e ele, como secretário da Segunda Chancelaria de Florença, sob o

comando de Savonarola (governante de Florença e opositor dos Médicis), cuida, desde

1498, dos assuntos ligados à segurança interna e externa da cidade. Ele também foi

responsável pela composição de um exército autônomo de Florença, algo que o autor

considerava fundamental para a manutenção e ampliação de um reino. De acordo com suas

idéias, a possibilidade de um Estado perder parte ou integralmente seus domínios era

enorme quando, no lugar de forças próprias, contava-se com o apoio de mercenários ou

com alianças com milícias estrangeiras. Esses tipos de acordo eram sempre frágeis e

inclinados, como mudanças do vento, a traições do dia para a noite. Nesse momento

histórico, quando acontecia um conflito contra os espanhóis, ao planejar ações que não se

revelaram bem-sucedidas, Maquiavel acaba criando a situação ideal para um golpe de

Estado promovido pelos Médicis. É o fim do regime republicano, do qual o filósofo era e

será partidário em toda a sua existência. Mas a condição para a existência da República

obedece a certas normas: tem que haver uma relativa harmonia institucional e equilíbrio de

forças entre os cidadãos.

Quando isso não existe, como na Florença da época em que escreve O príncipe, a

melhor opção é a monarquia. Isso quer dizer que a escolha do melhor regime de governo

não depende de convicções íntimas e prévias de quem comanda, mas da situação concreta.

Com a subida dos Médicis ao poder, Maquiavel é destituído, preso, torturado e exilado a

uma casa de campo afastada de Florença. Isso significa completa exclusão do poder. Um

aspecto curioso é que todos os seus escritos teóricos são elaborados durante esse

afastamento forçado que dura seis anos, sendo O príncipe o primeiro deles. É, portanto, no

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meio dessa crise externa e interna que sua obra é produzida. Como em tantos outros

momentos da história da filosofia, é mais uma vez a conjunção de circunstâncias caóticas,

nesse caso do autor e do seu tempo, que propicia o nascimento de idéias originais,

justificando a noção de que pensar não é absolutamente um ato natural, mas sempre

violento.

A escrita do livro, que se dá ao longo de 1513, teria a intenção subliminar de

recuperar o prestígio e o cargo perdidos. Isso já fica patente na própria escolha de dedicar a

obra a Lourenço de Médicis. Acreditando ou não no que está dizendo, o autor afirma que só

esse membro da família poderia realizar o desejo, esse sim certamente autêntico, de ver a

Itália unificada. Nosso autor quer alterar a estrutura política, saindo da forma de cidades-

Estado que ele considerava ultrapassada, para o Estado-Nação moderno, com poder

centralizado e dirigido por leis originárias exclusivamente de vontades humanas. Segundo

Maquiavel, a fragilidade da Itália diante das potências estrangeiras, em particular quando

comparada à grande organização francesa, é diretamente proporcional à sua fragmentação

em diversos centros de poder, à sua fragilidade militar, à multiplicidade de tiranias, à

desunião das cidades e às muitas guerras entre elas. Quanto a esse aspecto, resume Carlos

Estevam Martins: “A Itália é assim desarmada política, militar e institucionalmente pelo

anacronismo da organização das cidades-Estado e pela ausência de uma liderança central

incontrastável.” (idem. p. 8)

A importância decisiva da história

Mas como realizar essa difícil unificação italiana? Um primeiro passo é recorrer à

história. Mais precisamente, retornar ao período áureo dos primeiros anos da república livre

romana, onde Tito Lívio, que vai merecer uma obra dedicada só a ele, seria um dos grandes

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líderes. Essa viagem ao passado, que traz de volta algo de puro e forte que tudo que está no

início possui, tem uma missão: encontrar bons exemplos de uma Itália ordenada e coesa.

Esse regresso histórico às origens da prática política e militar romana é um dos elos de

ligação de Maquiavel com o Renascimento, movimento conhecido pelo louvor ao passado

greco-latino. Podemos dizer que nosso pensador italiano representa na política o que

Leonardo da Vinci foi na ciência e na arte. O engenheiro-artista, símbolo maior do espírito

renascentista, vai dizer, tal como Maquiavel teria dito, que a experiência jamais engana e

que o erro é fruto do raciocínio especulativo. Por isso o retorno a tempos remotos não pode

ser aleatório ou idealizado, mas, pelo contrário, ter objetividade. Isso significa que a coleta

de informações, vivências, ensinamentos e orientações dos governantes gregos, romanos ou

até persas deve ser selecionada de modo tal a nos fornecer dados para uma melhor

compreensão e alteração do nosso próprio tempo. A sabedoria de um soberano, ligada

agora diretamente a uma aplicação prática, está no transporte da referência histórica para o

presente. Toda teoria só pode ter sentido se for transformada em ação direta.

Sobre a importância desses estudos, diz Marcel Lamy: “A história fornece exemplos

e contra-exemplos a quem sabe interrogá-la, e vem prolongar e diversificar a experiência.”

(HUISMAN, apud LAMY, 2001, p. 656) Sem esse critério seletivo a história torna-se

vazia: vira mitificação de heróis ou ilusão ufanista. Essa volta no tempo tem ainda outro

alvo: perceber o que é cíclico e invariável no fluxo histórico. Maquiavel vai afirmar que a

história se repete em suas linhas mestras e cabe ao político reconhecer quando essa

repetição está acontecendo, tendo assim a referência anterior como base para a sua ação.

Ele vai dizer que a espécie humana, movida constantemente por ambições e interesses, é

invariável em todas as épocas. Porém há casos em que a ocasião que se apresenta é

radicalmente nova. Diante disso, o empreendedorismo, a iniciativa e criatividade do

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governante devem ser postos em ação. Ele terá aí que criar as soluções por conta própria. A

história não resolve os problemas, apenas ajuda com referência em boa parte das situações.

Mas o que faz da Roma Clássica republicana o grande modelo? Foi lá, de acordo com o

autor, que foram produzidos os marcos universais de liderança, ação política e sociedade

em equilíbrio.

Essa avaliação dos grandes líderes e do seu tempo constitui uma fonte que vai

ajudar a encontrar o governante que Maquiavel almeja para a Itália do século XVI. É por

essa volta ao passado em sentido explicativo e objetivo que faz o autor ser chamado de

historicista. A intenção ampla de escrever O príncipe pode ser expressa assim: “Incumbe ao

político, segundo Maquiavel, uma tarefa imediata, a única realizável nas circunstâncias

históricas do tempo: fazer surgir um príncipe unificador e reorganizador da nação italiana.”

(ABBAGNANO, 1984, p. 57) Marcílio Marques Moreira percebe aí um desejo visionário

de formar uma só Itália: “Ele se dirige aos Médicis que acabam de retomar o poder em

Florença; mas tem em vista o chefe que assumisse a tarefa de unificar a Itália sob uma

mesma bandeira, de libertá-la das invasões estrangeiras e de pôr fim às rivalidades

fratricidas.” (MOREIRA, apud MAQUIAVEL, 1999, p. 11)

E qual é o motivo dessa obra, escrita há tantos séculos e com interesses tão

específicos, ter-se tornado um clássico e ser tão lida até hoje em todo o mundo? Ela

conseguiu a raríssima mágica do particular tocar o universal. O que Maquiavel disse é

contemporâneo à sua época e a todas as épocas, fazendo uma pergunta de caráter atemporal

que se dispôs a responder ao longo do livro: o que um político deve fazer para manter-se no

poder? Se transpusermos para a nossa realidade do século XXI, mudando o que deve ser

mudado, O príncipe é leitura fundamental para quem administra uma empresa, para quem

fala em público, para quem educa crianças etc. Isto é, é útil para todos, já que trata da

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relação de poder, no nível macro dos Estados e no micro, entre os homens, algo referente a

todos os tempos e ao que nenhum de nós pode escapar.

A opção pelo realismo e a recusa do idealismo

O príncipe é uma obra capital, talvez inaugural, do chamado realismo político, cujo

princípio básico é que, ao avaliar uma sociedade, devo me apoiar em como as coisas são ou

estão, não como elas deveriam ser. Essa última postura é típica do idealismo, corrente

filosófica que defende a criação de modelos perfeitos de situação política a ser perseguidos.

O exemplo máximo dessa tendência é a República de Platão, mas que terá em um

contemporâneo do filósofo italiano, Thomas Morus, que escreveu A utopia, um herdeiro

tardio. Maquiavel tem um ponto de partida definitivo: é preciso seguir a verità effetiva

(verdade efetiva) dos acontecimentos e deixar de lado o aspecto imaginativo, ou seja, é

necessário perceber o que se deve fazer e não o que deveria ser feito. No campo político, a

pureza de intenções e a elaboração de planos ideais é capaz dos mais altos crimes. Todo

privilégio deve ser dado à razão pragmática. O monarca, inicialmente, precisa fazer uma

avaliação minuciosa do ambiente no qual está inserido e, em seguida, agir conforme as

circunstâncias, fazendo com que exista o mínimo possível de riscos de ser destronado por

seu povo ou por forças estrangeiras. O sentido de prudência, que na Grécia e na Idade

Média era ligado à obediência de leis naturais ou divinas, vai mudar de aspecto e se

concentrar no que estabelece o príncipe, consistindo “em saber reconhecer a natureza dos

inconvenientes, aceitando como bom o que é menos mau.” (MAQUIAVEL, 1999, p. 130).

Ser prudente agora é evitar divisões e revoltas internas e promover expansões territoriais.

É desse modo que podemos dizer que Maquiavel é amoral, pois em alguns

momentos será uma exigência que o líder do governo aja contra o que era considerado

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previamente virtuoso: a fé, a caridade, a bondade e a religião. A crueldade, por exemplo,

que seria condenada de antemão como vício pelos antigos, é virtude se for utilizada no

estrito limite da necessidade e como única possibilidade naquele momento de condução ao

maior bem-estar possível dos súditos. Isso significa que nessa ótica ser cruel pode ser ético,

se um bem maior do conjunto do povo for o objetivo. Será esse o novo parâmetro. Em via

contrária à moderação aristotélica e sua clara preferência pelo justo meio (meio-termo

estabelecido entre excessos e faltas, de onde viria a famosa idéia da balança da justiça),

Maquiavel diz que a pior alternativa de ação para um príncipe é a decisão através de meias

medidas. Como a atitude é sempre condicionada pelo cálculo, pela estratégia e pela

oportunidade, em muitos momentos será inevitável ser radical. Isso é nítido nas próprias

palavras do pensador: “(...) é preciso tratar bem os homens ou aniquilá-los.” (idem, p. 40)

As únicas ações que podem ser alvo de repreensão são aquelas que colaboram para a

destruição e não para a reparação do que é público.

Essa frieza de análise é nova. O pensador é o primeiro a expor de modo tão cru o

jogo pesado que é a política. Todo o tradicional moralismo piedoso, sujeito a leis eternas e

próprio da Idade Média, está sendo dinamitado. Um governante, por exemplo, não deve

jamais se comprometer com uma noção prévia de Bem.

Aquele que não estiver preparado para enfrentar os difíceis momentos que o poder

exige precisa se manter afastado dos poderes públicos. A existência só pode ser calma,

tranqüila e agradável no nível individual ou familiar. Na linha filosófica adotada por

Maquiavel, originalmente o homem não é bondoso ou maldoso, mas o político, que não

pode jamais ser crédulo ou ingênuo, deve estar sempre esperando o pior dos homens, pois

só assim ele se prepara adeqüadamente para as situações inusitadas. Só assim ele cria as

“fortalezas” que determinam a sua permanência. Essa atitude defensiva é fundamental

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porque a maior parte dos homens é volúvel. Diz Marcel Lamy: “Quando Maquiavel diz que

os homens são maus, só quer dizer inconstantes, enganadores e submetidos a interesses

egoístas e imediatos.” (LAMY, apud HUISMAN, 2001, p. 658). É nesse sentido que temos

que entender a famosa frase de Maquiavel que é melhor ser temido que amado. A questão é

que fazendo-se temer o líder detém o controle sobre as situações. Já alternativa a priori de

ser objeto de afeto dos súditos, passa a existir uma aceitação e dependência alheias, o que

em política deve ser evitado a todo custo. As paixões são sempre perigosas. De acordo com

o autor de O príncipe, os homens respeitam muito mais por temor que por amor, sendo esta

uma das características imutáveis da humanidade. Se o primeiro sentimento tem a

propriedade de resistir ao tempo, o segundo se desmancha no ar na primeira mudança de

ventos.

Virtù X Fortuna

O que vale para os homens também vale obviamente para os Estados. As alianças

que estes últimos fazem entre si são, em geral, parciais, provisórias. A sugestão é

invariável: dependa o mínimo possível das decisões humanas. É com o fim de minimizar os

perigos de ser surpreendido que Maquiavel recomenda que não sejam feitas associações

com Estados muito poderosos. Preparar-se bem para enfrentar as surpresas da fortuna (o

acaso, o imprevisível) é um tema recorrente em O príncipe. Maquiavel vai dizer que

metade dos acontecimentos em nossa vida tem uma dependência direta de acontecimentos

inesperados e a outra metade vem de uma intervenção própria. Não devemos ficar parados,

mas usar nossa razão para, com capacidade de previsão, tirar o quanto pudermos a

influência do inesperado. Diz ele: “Comparo a sorte a um rio impetuoso (...) Todos fogem

diante de sua fúria [mas] quando as águas correm quietamente é possível construir defesas

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contra elas (...)” (MAQUIAVEL, 1999, p. 139). É esse príncipe que evita a sorte, que não

hesita e que é bondoso ou maldoso de acordo com cada caso que Maquiavel descreve como

mais capaz de governar e talvez constituir novos modelos para a história.

O que esse político possui é o que será chamado por nosso autor de virtù, palavra

que tem origem na Roma Clássica e que, por isso mesmo, diverge de qualquer associação

com o conceito de virtude cristã. Virtù é virtude que equivale ao sucesso. Seu sentido

explica-se por uma combinação de múltiplas qualidades: firmeza de caráter, coragem

militar, habilidade no cálculo, capacidade de sedução e inflexibilidade. Resumindo, é tudo

que um general precisa para comandar seus exércitos de modo vitorioso na guerra. Isso

significa que um governante deve possuir em períodos de paz a mesma atenção, cuidado e

competência de um general em guerra. Ou mais, talvez Maquiavel esteja dizendo que o

ambiente político não deixa jamais de ser um cenário, potencial pelo menos, de conflito.

Contrário ao pressuposto medieval de existência de um Bem e um Mal universais e eternos

determinados pela vontade de Deus, o autor vai nos falar de um bem e um mal fundados

pelo ocupante do poder. Se os primeiros passos da separação entre Estado e Igreja foram

dados no século XIII, três séculos depois temos a evidência radical dessa tendência: a

divindade ou o conjunto da sua obra, a natureza, não tem nenhuma participação no

andamento político-jurídico de uma cidade. Assuntos políticos e religiosos devem estar

completamente separados e a última palavra sempre caberá ao poder civil. Isso fica claro

quando, no momento de avaliar a Igreja, Maquiavel o faz considerando sua influência no

sentido estritamente temporal. Como não há nada de natural nas relações humanas, a

coerção e a gestão de um grupamento humano é de total responsabilidade do líder.

Se no pensamento antigo e medieval a natureza era sábia e fator de inspiração

permanente para as ações e legislações humanas, a posição moderna, que Maquiavel

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encarna exemplarmente no campo político, é outra. A idéia agora é que a interferência

humana sobre o que é natural tornou-se uma exigência fundamental para uma vida mais

harmônica no âmbito privado e público. Uma outra confusão recorrente em relação a

Maquiavel é acreditar que ele foi defensor do ateísmo. Em diversas passagens, o filósofo

deixa claro que Deus existe, mas arranjou propositalmente o mundo de modo tal que um

complemento à sua obra tivesse que ser feito pelos homens. Só há justiça a partir de uma

intervenção humana, ou seja, com boa educação que gera boas instituições e boas leis. Se

antes só Ele criava, agora há uma co-criação a ser desempenhada pela humanidade. O

espírito renascentista, expresso no alto da capela Sistina, em que Deus transmite o espírito

criativo a Adão (Deus está em um plano levemente superior e o dedo de Um quase toca o

do outro), perpassa todo o pensamento de Maquiavel. O homem não é mais apenas

espectador dos fenômenos, mas também ator, e ele se aproxima do divino na medida em

que traz ao mundo novidades nos universos material ou mental.

O homem é mais uma vez medida de todas as coisas

Duas habilidades são fundamentais em política nesse novo momento: a astúcia e o

oportunismo. Um bom político precisa aproveitar o momento oportuno de intervenção

(idéia de kayrós defendida pelos sofistas no século V a.C.). De acordo com o autor, o

grande líder percebe e age nesse instante favorável, sendo esta a sua única dívida com o

acaso: “Examinando sua vida e seus feitos veremos que nada deveram à sorte, a não ser

oportunidade – matéria que moldaram de forma própria. Sem essa oportunidade, seus

valores não teriam sido aproveitados; sem estes, a oportunidade teria sido vã.” (idem, p.

54). Essa postura ativa, e não contemplativa, deixa clara mais uma profunda ligação de

Maquiavel com o Renascimento: o antropocentrismo, doutrina filosófica que posiciona a

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humanidade como criadora de todos os valores morais, científicos e artísticos. O ser

humano é o centro de referência de qualquer saber que é produzido e é também quem

atribui o valor que cada ação ou objeto humano possui. Retomando palavras atribuídas ao

sofista Protágoras da Atenas democrática do século V a.C., o homem em Maquiavel

também é a “medida de todas as coisas”.

Logicamente esse posicionamento engloba os âmbitos jurídico e político. Maquiavel

diz que o homem deve entender que qualquer resolução normativa só pode acontecer

no interior de uma comunidade de homens. As leis vêm exclusivamente da esfera humana e

cada sociedade é responsável pela própria existência equilibrada ou caótica. A partir dessa

linha de raciocínio, o ato que institui o Estado é o de um legislador que define o certo e o

errado. Portanto, em Maquiavel o único direito válido é o artificialmente criado pelo

homem, o positivo (do latim positum, posto, colocado). Seu sentido de justo mais uma vez

denota essa tendência. Carlos Estevam Martins resume o conceito para o nosso autor: “Por

justiça entende um conjunto de boas instituições, mantenedoras da ordem e da estabilidade

sociais, bases sobre as quais possam ser construídas as virtudes cívicas.” (MARTINS, apud

MAQUIAVEL, 1996, p. 11)

Vamos pensar que o próprio andamento dos acontecimentos levava a uma

necessidade de presença legislativa humana. O crescimento econômico e o

desenvolvimento urbano, visíveis particularmente na Florença do século XV, tornaram

indispensável a existência de leis civis que regulassem as relações comerciais e sociais. É

como se estivéssemos dizendo que os homens nessa conjuntura eram levados a se

preocupar mais consigo mesmos, pois a Igreja ou a Bíblia não tinham respostas satisfatórias

para dar conta dos novos problemas e as novas interações sociais que se apresentavam.

Com essa nova conduta, que podemos chamar de inauguradora da filosofia e do Estado

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modernos, sairemos de um ambiente extremamente hierarquizado onde o nascimento

definia o destino de cada pessoa, para um outro momento em que a competência e

eficiência individuais passam a ser privilegiadas. Um valor do novo, do movimento e da

mudança são incorporados ao campo do pensamento. Vamos lembrar que até mesmo aquilo

que define o índice de riqueza no plano econômico passa de algo fixo, a terra, para algo

móvel, a moeda circulante. Maquiavel vai afirmar que mesmo um príncipe que chega ao

poder por via hereditária não possui as garantias de antes. Nesses novos tempos, ele será

obrigado a mostrar que merece ocupar a posição de liderança. No lugar do privilégio do

sangue e da família, tipicamente medievais, uma espécie de relação contratual se

estabelece. Um monarca só permanece no poder se tiver sucesso no interior dos seus

domínios com seu povo e seu exército e, quanto ao exterior, se estiver bem preparado para

invadir e bem resguardado para não ser invadido.

A essência está na aparência

Maquiavel torna explícito, talvez de modo inédito, que política é uma questão de

aparência, de imagem, e não de essência. Ser e parecer, que durante tantos séculos (mais

precisamente, desde a Grécia Clássica) estiveram separados na história da filosofia,

compõem agora um conceito só. O privilégio é todo direcionado ao modo como um político

aparenta governar. Maquiavel reafirma isso quando diz que se um governante tiver algo

desagradável a realizar que faça isso sumária e rapidamente, pois um desgaste de imagem

certamente virá daí. Pelo contrário, se sua ação tomar a direção de algo humanitário ou que

será bem visto por todos, que a conduza aos poucos e em etapas e que reverta para si toda a

repercussão pública (hoje diríamos publicidade ou marketing pessoal) proveniente dela

durante seu período de execução. Mas todas essas iniciativas só fazem sentido se a

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felicidade do seu povo for o interesse final do príncipe. É só assim que a famosa frase “os

fins justificam os meios” pode ser entendida como o pensador italiano efetivamente a

pensou. É assim que pensamos defender um humanismo pouco convencional nas idéias do

pensador florentino. No nosso modo de entender é por toda essa visão renovadora do que é

fazer política que foi feita a associação entre as idéias de Maquiavel e tudo o que é

maquiavélico.

No próximo item enfocaremos o humanismo técnico no ambiente científico. Para

isso, analisaremos um pensador que, a nosso ver, é modelo moderno em ciência: Galileu

Galilei.

O ANTIARISTOTELISMO DE GALILEU E A NOVA RELAÇÃO ENTRE NATUREZA

E ARTIFÍCIO NO ALVORECER DA CIÊNCIA MODERNA

Nossa idéia para esta etapa do trabalho é tentar investigar que novo tipo de

humanismo pôde ser pensado a partir do momento em que uma reformulação do conceito

de natureza foi empreendida no nascimento da ciência moderna no século XVII.

Tentaremos dar conta de algumas perguntas.

Que papel inédito os filósofos-cientistas, esses novos atores do pensamento, em

particular no nosso caso a figura de Galileu Galilei, deram ao homem, que agora se revela

pela primeira vez no papel de dominador do meio natural? Que novo tipo de humanismo se

extrairia como singular a esse período? Não há como negar que há um humanismo

medieval. Só que essa mentalidade posicionava o homem abaixo da natureza, pois esta

representava a totalidade da criação divina, sua obra prima. O valor privilegiado do humano

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aparecia no contraste com as outras espécies animais e vegetais, na medida em que foi feito

à imagem e semelhança de Deus, detém uma alma distinta e passível de salvação. O

humanismo técnico de Galileu colidirá exatamente contra esse de ordem metafísica e

origem medieval. Que aspecto absolutamente transformador tiveram a instrumentalização

da ciência e a introdução da matemática e do cálculo no mundo físico (que podemos

apontar como modos de artificialismo e de afirmação do homem sobre o mundo natural),

combinações que promoveram pela primeira vez a intimidade entre o céu e a terra, um

valor equilibrado entre a teoria e a prática? Algo de muito decisivo eclodiu no século XVII

e promoveu uma renovação completa da visão de mundo e do próprio significado de

ciência que se tinha até então. Tentar expor alguns aspectos dessa autêntica revolução é o

que pretendemos aqui e, diretamente ligado a isso, mostrar que novo papel é sugerido para

a humanidade na nascente revaloração que se estabelece entre natureza e artifício.

Uma nova física

A escolha de Galileu tem uma razão particular. Nós o consideramos paradigma do

cientista moderno, já que ele é o primeiro a propor uma independência entre ciência e

teologia, dizendo que a Bíblia não pode ser o parâmetro para o estabelecimento de verdades

científicas. Deus, com sua razão infinita e como o maior dos matemáticos, criou a natureza

de modo tal que pudesse ser decodificada matematicamente pelo homem. Esse ponto de

vista é uma espécie de bandeira da independência científica: o mistério de uma natureza

matematizada é o único mistério a ser levado em conta pelo cientista. Podemos dizer que

Galileu recupera o espírito desbravador de Tales. Ele foi quem, supostamente pela primeira

vez, experimentou o mundo natural sem levar em conta as pressuposições míticas

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anteriores. É esse ceticismo que suspende as certezas anteriores que marca, a nosso ver, o

primeiro momento do humanismo grego e também o de Galileu.

Estamos partindo do pressuposto que ao longo de todo o período medieval, por inspiração

da filosofia grega de base empirista (o ponto de partida para qualquer conhecimento é a

passagem necessária pelos sentidos) de Aristóteles, uma supremacia da natureza sobre o

homem era claramente estabelecida. Cabia a ele nesse momento apenas descobrir, com a

ajuda da razão (a luz natural doada por Deus a nós), o que era inerente à ordem natural. O

papel do homem de ciência nessa época era desvendar o que já estava lá, nunca inventar

algo, pois não havia a menor necessidade de que isso acontecesse. Ir contra as idéias

aristotélicas é, em muitos casos, praticar uma heresia passível de graves punições. O louvor

a Aristóteles e o entendimento de sua filosofia como verdade imutável se estendem pelo

século XVII adentro, estando presentes no lema dos jesuítas: “em lugar e em momento

algum deixarás de aceitar Aristóteles”. Foi esse dogmatismo que gerou o chamado

raciocínio instrumentalista, pois até seria possível discordar das teses cosmológicas do

pensador grego ex suppositione, como hipótese, desde que as observações anteriores e as

regras de entendimento da natureza fossem preservadas. Ser instrumentalista significa não

ser realista: (...) as hipóteses astronômicas não têm (...) alcance real; não podem nem

pretendem fornecer as causas dos movimentos celestes. Devem apenas fornecer os cálculos

que concordam com as observações.” (MARICONDA, VASCONCELOS, 2006, p. 100). O

trecho de uma carta do cardeal Bellarmino, o maior teólogo jesuíta da época, ao padre

Antonio Foscarini, um defensor das novas idéias, resume essa postura: “Digo que me

parece que o Sr. e o Sr. Galileu agiriam prudentemente contentando-se em falar ex

suppositione e não absolutamente, como sempre acreditei que tenha falado Copérnico.”

(idem, p. 99).

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Os padres da Sociedade de Jesus foram os principais ideólogos do momento talvez

mais forte de conservadorismo da Igreja, a Contra-Reforma. Eles foram também os mais

bem preparados inimigos de Galileu. A idéia de criar instrumentos para dominar a natureza

ou para colocar à prova o que meus sentidos percebem, algo que para nós seria uma espécie

de resumo da atividade científica no nosso modo contemporâneo de entendimento (e que

nasce ou, no mínimo, se desenvolve com Galileu), era impensável nesse momento. A

natureza é em si perfeita ou pelo menos tão aperfeiçoada quanto Deus quer que ela seja. A

técnica ou a prática, entendidas aqui como fabricadoras de objetos advindos diretamente do

engenho, de artifícios humanos, são sempre consideradas como algo menor do que tudo

aquilo que é natural. Menor, quando não pecaminoso.

A condenação do artifício

Na simbologia da Idade Média, o diabo é aquele que representa o inventor por

excelência, o habilidoso dominador do reino do fogo (elemento que desde a Grécia e seu

deus Prometeu esteve associado ao domínio técnico), o rei das artimanhas e da farsa, o pai

daquilo é antinatural. Em suma, é aquele que traz ao mundo o que o mundo não tinha e,

segundo o pensamento da época, não precisava trazer, o mestre dos artifícios. A sodomia,

por exemplo, prática que sempre foi associada a possessões demoníacas e que levou muita

gente para a fogueira durante a Inquisição, era um pecado considerado gravíssimo pelo fato

de ser contrário à natureza. O que está sendo dito aqui é que durante todo o período

medieval o que é bom, belo e verdadeiro tem suas fontes enraizadas na natureza, ao

contrário do que é artificial, que tem analogias com o jogo, a estratégia, a ilusão e a

mentira. A figura demoníaca manterá por sinal uma forte ligação com outro mito grego, o

de Hermes, que na Grécia representava a idéia de mensageiro com o mundo dos mortos, o

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Hades. Esse deus também será protetor dos comerciantes, que o liga diretamente ao

artificialismo, tanto no aspecto da circulação da moeda quanto no ato de convencimento

usado nas vendas de produtos e idéias. O que essa entidade mítica do diabo tem a nos dizer

é que ao longo da Idade Média a atividade fabricadora e a transformadora são altamente

condenáveis. O que o homem pode chegar a fazer é incomparável com a grandiosidade

intrínseca à natureza. Não é preciso criar nada, pois Deus é o único Criador. Prova disso é

que as palavras “novo” e “invenção” nem sequer existiam. Se individualmente somos a

criatura mais perfeita trazida à luz por Deus, o conjunto de toda a obra divina, resumida no

mundo natural, está muito acima de tudo o que podemos fazer.

Um assunto paralelo, mas relacionado a esse, se reflete no contraste entre trabalho

intelectual e manual, que mais uma vez nos remete à Grécia Antiga, mas penetra de um

modo mais profundo no ideário medieval, com total privilégio para o primeiro e nítido

desprezo ao segundo. Em sociedades aristocráticas (a democracia grega era aristocrática no

sentido que queremos dar aqui), trabalhar com as mãos é para os escravos ou servos, seres

naturalmente mais propensos a se dedicar à parte física dos apetites, às ações mundanas e às

vontades baixas e instintivas, em detrimento do cultivo do ócio contemplativo, intelectual.

É preciso lembrar que quem ocupa os altos cargos da cidade ideal de Platão são aqueles que

pensam mais e agem menos. Na Grécia, o trabalho que usa as mãos está ligado ao

movimento e à mudança, ou seja, ao devir, algo necessariamente menor do que o ato de

pensar e conhecer as essências que se liga a uma inação. Assim, só usa o corpo, a matéria,

quem não tem condições de usar a cabeça, o espírito. No caso medieval, talvez o demérito

por tudo que é realizado manualmente seja ainda mais nítido. O nobre se diferencia do

servo e do vassalo justamente pelo fato de não se dedicar a nenhum tipo de trabalho ou

ação prática. Suas mãos precisam ser irretocavelmente lisas e as suas atividades devem ser

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dedicadas aos jogos, às festas e às artes. Além disso, a essência única, Deus, é o próprio

retrato inspirador da imobilidade para todos os homens. De um modo ou de outro, o ponto a

se atingir que se direciona à verdade, mesmo sem jamais atingi-la é o mesmo: o repouso.

Está envolvida nesse panorama a íntima ligação entre as criações técnicas e o uso

das habilidades manuais, vindo daí um desprestígio de ambas. Os olhos, como disse

Aristóteles, seguem sendo, inclusive muitos séculos depois, os espelhos da alma. As mãos,

poderíamos dizer, são os do corpo. Nem é preciso dizer que o teórico está ligado aos olhos

e o prático às mãos. O empirismo de Aristóteles não tinha qualquer vínculo com a

confecção de objetos que se efetivassem em qualquer aspecto prático, ou seja, não

motivava em nenhum instante o aparecimento de uma ciência experimental. A mera

observação desinteressada é suficiente para desencadear o processo de conhecimento. É

certo que essa ação empírica não será suficiente para se fazer ciência (episteme), pois será

necessária a entrada em cena do intelecto racional, organizando e aprimorando aquilo que

foi experienciado. De todo modo, é marcante a confiança que Aristóteles deposita na visão

natural. Mesmo sendo empirista e um admirador dos fenômenos físicos, para Aristóteles a

verdade não pode ser extraída da simples vivência com os particulares, mas terá que ser

abstraída pela razão, a partir do desvelamento da essência geral escondida por trás das

características individuais. Não deixa de ser surpreendente que o grande difusor da

metodologia científica do Ocidente recomende uma completa abstenção da presença

humana no sentido de intervir na natureza. O avanço da ciência ser fruto direto do

progresso instrumental e de cientistas que colocam a mão na massa, posicionamento hoje

considerado óbvio, só deu seus primeiros passos na Renascença e alcançou sua maturidade

no nascimento integrado da filosofia e da ciência modernas no século XVII. E quando

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condicionamos o progresso ao aprimoramento instrumental, estamos logicamente

valorizando o que é feito pelo homem.

Sabemos também, a partir das idéias aristotélicas, amplamente seguidas na Alta

Idade Média, que só se conhece algo verdadeiramente quando esse algo pode ser ensinado.

É exatamente esse aspecto de transmissão do conhecimento que estaria vetado segundo esse

regime de pensamento ao saber prático e técnico. Segundo uma antiga tradição da Idade

Média, a arte humana, entendida à maneira grega como habilidade ou excelência (teckné)

em certa atividade, era simia naturae, literalmente macaca da natureza. Se atingir a sua

perfeição é impraticável, copiá-la, nesse caso, é tudo o que é possível. Cabe ao homem cair

de joelhos diante dessa exterioridade monumental que só está abaixo do próprio Criador,

sendo sua obra-prima. São Tomás deixa isso muito claro em seus textos jurídicos ao

escalonar leis naturais e leis humanas, tendo as primeiras um nível de aproximação com a

verdade e com Deus muito maior do que as outras. A idéia tão banalizada no senso comum

de que arte (entendida aí não só no aspecto estético, mas também como produção humana

de artefatos, habilidade, teckné) imita a vida é proveniente desse raciocínio. O que nos

interessa pesquisar nesse momento é que novo modelo de ciência pôde começar a ser

verificado a partir da nova posição de domínio e posse do ambiente externo que o homem

passou a ocupar.

A matematização do mundo

Caminhamos, ao longo de alguns séculos, da base medieval de princípio

contemplativo na observação dos fenômenos naturais, celestes em especial (que tinham por

trás de si a marca da eternidade e da perfeição divinas), para a nova determinação moderna

de comprovação instrumental, artificial, de todos eles. A atitude moderna traz consigo um

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ceticismo, no sentido de que não se acredita mais em teses anteriores pelo simples fato de

que são verdadeiras há muitos séculos. O que a tradição afirma terá que passar pelos testes

da comprovação experimental regulada matematicamente. Passamos de uma ciência que

contempla, observa placidamente sem intervir, para uma outra de caráter ativo e

modificador. Saímos da pura e simples visualização com olhos naturais para o uso de

aparelhos óticos e a colocação em xeque daquilo que se vê à primeira vista. Na introdução à

edição brasileira de Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo, Pablo Rubén

Mariconda resume o pensamento de Galileu, indicando que ele esboça as bases do

pensamento mecanicista do estudo do funcionamento da visão: “(...) as observações

telescópicas servem para corrigir as observações feitas a olho nu”. (MARICONDA, apud

GALILEI, 2004, p. 18). Fazer ciência agora é substituir um olho natural por um olho

técnico.

É nessa trilha que Koyré percebe a diferença entre experiência e experimentação.

Esta última, no caso, sempre lança mão de invenções humanas para a investigação

científica, exigindo como condição fundamental que a teoria comande a prática. Só será

experimentação se uma hipótese teórica se impuser à percepção sensível, à pura e simples

experiência. Torna-se ingênuo e superficial apenas observar o ambiente natural, pois é

mantida aí uma identidade que pode ser enganosa entre realidade e aparência. Os

instrumentos produzidos por mãos humanas são agora um fator essencial para a

comprovação de qualquer teoria, revelando-se também como uma peça fundamental na

construção de uma verdade científica. É essa nova valoração dos objetos artificiais, que

entendemos como aqueles que são elaborados pela mente humana, que pensamos ser uma

característica diferenciadora da ciência moderna e do humanismo de caráter técnico que a

acompanha. O raciocínio científico não exclui mais a sua aplicação. Parafraseando Koyré,

- 56 -

seguimos de uma técnica de adaptação, com resultados previamente assegurados, própria

da Idade Média, para uma técnica de exploração típica da modernidade. Para compreender

essas distintas abordagens, tentaremos colocar em confronto os entendimentos do que seja

o movimento para Aristóteles e para Galileu, dois personagens emblemáticos da ciência

antiga e da nova respectivamente.

Entre os medievais, com o apoio da física aristotélica, está presente a idéia de que o

deslocamento de um corpo depende de algo alheio a ele, um outro corpo que faria o papel

de causa motor, este se encontrando em um estado hierarquicamente mais próximo do

ideal, ou seja, do repouso. Essa perfeição natural atingiria seu ápice na figura imóvel do

Primeiro Motor, o Deus aristotélico, a causa incausada que move todas as coisas sem se

mover, que dá um limite final a qualquer alteração e que, ao mesmo tempo, é a luz de fundo

que guia e ordena todas as variações. O movimento, que é uma condição violenta e

contranatural, teria que cessar em algum momento. O modo que Aristóteles encontrou para

resolver isso foi inventando uma forma pura e imóvel que fizesse o papel de pêndulo do

Cosmos. Além de sustentáculo, Ele é o que podemos chamar de ímã do mundo, inspiração

cósmica que faz com que as coisas realizem a sua natureza, se não acontecerem

deformações motivadas pela combinação da matéria com o tempo. O princípio dogmático

presente na obra aristotélica, seguido estritamente ao longo da Idade Média, pode ser

explicado pelo caráter determinista do resultado final (em ato) poder ser previsto desde o

começo (em potência).

Com essa finalidade universal, o mundo ganha uma unidade, um fechamento, uma

objetivação, enfim, uma hierarquia última que comanda, mesmo totalmente desprovida de

vontade ou de qualquer antropomorfismo, a destinação de tudo o que se move. É assim que

efetivamente podemos falar de um Cosmo, uma esfera limitada (para o grego tudo o que é

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racional tem bordas, a própria forma fazendo o papel de delimitadora espacial) que define

um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar. É óbvio que essa idéia de comando

pleno foi, com alguns retoques, como por exemplo a saída de causa final para causa inicial,

uma decisiva influência na composição filosófica do Deus cristão. O cristianismo precisava

de uma base filosófica para se afirmar e Aristóteles colaborou muito para isso, em

particular a partir da invasão árabe na península Ibérica no século VIII. Antes disso, outra

filosofia grega imperava absoluta na Idade Média: a platônica. A questão é que os árabes,

ao contrário do que ocorria no Ocidente, vinham estudando Aristóteles ininterruptamente

havia muitos séculos. Mais precisamente desde a assombrosa expansão guerreira realizada

por Alexandre, o Grande, da Macedônia, no século III a.C. Em virtude da sua forte ligação

com tudo o que dizia respeito à Grécia, em particular com o mesmo Aristóteles, de quem

foi aluno por alguns anos, na medida em que ocupava um novo território, Alexandre exigia

que se desse nesse local uma assimilação da cultura grega. Assim, as idéias de Aristóteles

entraram e não mais saíram das especulações filosóficas árabes, que tem Avicena e

Averróis como os dois representantes mais conhecidos. É o retorno do pensamento

aristotélico ao Ocidente na Alta Idade Média que ocupará nosso cenário agora.

O movimento para Aristóteles ocupa uma posição ontológica inferior ao repouso.

Tanto é que o tipo mais próximo deste último é justamente o circular uniforme dos astros,

pois se movem de modo constante e retornam sempre ao ponto inicial, fechando o círculo.

Por maior que fosse o naturalismo e o interesse terreno de Aristóteles, há inevitavelmente

dois mundos: o do céu, incorruptível e regulado pela ordem, constância e regularidade das

causas e efeitos e o da terra, sujeito às variâncias da matéria e à imprecisão, por exemplo,

de dias que variam temporalmente, ficando, por exemplo, mais longos ou mais curtos de

acordo com as estações.

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Além disso, os corpos celestes são constituídos de um elemento natural

diferenciado: o éter, que podemos ainda entender como matéria, mas em versão tão sutil

que quase toca a perfeição imaterial. É assim que os dois mundos se diferenciam. O

superior, chamado de supralunar, e o inferior, o sublunar, que será composto pela mistura

dos quatro elementos básicos: água, fogo, terra e ar. Essas matérias-primas, formadoras de

todos os corpos terrenos, estão combinadas embaixo e a quinta essência, etérea, está em

cima e compõe os astros. Por estar sozinho nesse patamar superior e por ser o que há de

mais próximo da imaterialidade, o éter promove a diferença de qualidade, de natureza, entre

as duas realidades. O movimento dos corpos terrestres se daria em linha reta e sem qualquer

ordem e regularidade, enquanto o celeste seria circular. Precisamos atentar para o fato de

que o círculo é uma obsessão no pensamento grego. Para começar, é a figura geométrica

mais perfeita na matemática. É também a estrutura circular que distribui os cidadãos gregos

na ágora, praça pública que ocupa o ponto central da pólis e que é uma espécie de marco da

democracia grega. É ainda pela noção de circularidade que se compreende a passagem do

tempo. A cada determinado período, tudo se repete do mesmo modo com tudo que existe

nesse mundo. É o chamado eterno retorno, que, independente do nascimento da filosofia,

estava presente nos mitos arcaicos, não só gregos, como nos de muitos povos orientais, cujo

passado religioso se perde na profundidade das eras.

A questão do movimento

Voltando a Aristóteles, quanto mais sujeito ao movimento (e movimento significa

mudança) algo está, menor a sua importância e maior a sua distância da condição idealizada

de imobilidade. Nesse sistema de mundo, um corpo, em função da sua materialidade, não

pode se mover espontânea e autonomamente. O mundo ficaria sujeito demais aos delírios

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de alterações desordenadas, ao devir. Tudo o que se move, segundo ele, precisa ter uma

base fixa para lhe dar sustentação, do mesmo modo como a matéria e suas diversidades e

modificações temporais precisam de uma forma genérica como um solo firme. O que

devém tem uma dívida com o que nunca devém, com a Forma. É ela que orienta, como uma

inspetora, os caminhos selvagens e imprevisíveis que a matéria tomaria se fosse deixada a

si mesma. É em função dela que temos abacates nascendo de abacateiros e não bananas ou

caquis. Do mesmo modo como os muitos tipos de tigre existentes precisam de uma forma

tigre. O particular precisa do universal, a matéria precisa da forma. Mesmo que o ser se

diga de várias maneiras, como afirma Aristóteles, a imposição necessária é que haja o ser.

O movimento é sempre equivalente a um processo de alteração, a uma situação

aberrante que tenderia naturalmente à calmaria, a um encaminhamento para o repouso, este

sim um estado, uma condição estável. Ao mover-se, o corpo está sofrendo uma espécie de

violência, pois está deslocado do seu lugar natural, lugar que é definido pela porção

majoritária de um dos quatro elementos em determinado corpo. Se, por exemplo, for o ar, o

meio aéreo será para aquele ser individual o ambiente que a natureza definiu para ele. Até

mesmo a justificação da Terra estar no centro do mundo, tese aristotélica que justificará

todo o pensamento medieval, é dada pelo seu caráter pesado, o que talvez nos dê uma

indicação do próprio nome dado ao planeta. É possível pensar inclusive que tudo o que for

provido mais por terra do que por outros elementos, tende mais facilmente ao repouso.

Para verificar como o deslocamento é uma espécie de contrariedade à condição natural do

corpo (só o que é imperfeito se move), temos o famoso exemplo da pedra que, ao ser

jogada para o alto, realiza uma movimentação antinatural, conquistando apenas

momentaneamente o ar, um elemento que não é o seu. A natureza da pedra, em função do

seu peso, a conduz de volta à terra. Desse modo, a tendência é que ela rapidamente retorne

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ao seu local próprio, assim que termine a motivação exterior. Cessando essa causa externa,

digamos assim artificial, retorna-se à natureza, ou em outras palavras, à situação de

imobilidade terrena peculiar à pedra. É necessário explicar a intervenção de uma força, que

equivale a uma corrupção, para dar conta do movimento (Galileu diz que uma força é

necessária para promover uma aceleração, não um movimento). O repouso em Aristóteles é

tão óbvio que dispensa explicações. A matéria, pelo menos a do mundo sublunar, pelo seu

caráter mutante e variado não pode ser medida em números. Daí a Filosofia da Natureza, a

física aristotélica, em contraste com a prática que vai surgir junto com a modernidade, ser

efetivamente antimatemática. A compreensão física do mundo terreno pode ser vaga, pois

ela se baseia na imprecisão mesma da percepção sensível. É exatamente essa idéia do

movimento como uma privação provisória ou uma condição prévia e inferior do ser que

desaparece no alvorecer da ciência moderna. O movimento pode ser produzido pela própria

coisa, por quem a observa ou por ambos. Galileu colocará o movimento e o repouso no

mesmo nível ontológico. Aliás, surge com ele a idéia de relatividade nos dois casos. Um

determinado corpo estará em movimento ou em repouso dependendo das suas relações

circunstanciais em relação a outros corpos: “(...) só podemos dizer que um corpo está em

movimento, se o considerarmos relativamente a um corpo em repouso – isto é, ao qual falte

aquele movimento – tomado como ponto de origem do sistema de referência. Portanto,

movimento e repouso são conceitos complementares: um só pode ser definido por

referência ao outro.” (MARICONDA, VASCONCELOS, 2006, p.140). Eu estou em

repouso em relação à mesa na qual escrevo, pois eu e ela somos passageiros do movimento

realizado pela Terra, o que faz esse movimento planetário ser inexistente para nós. Mas, por

outro lado, estou em movimento em relação a Júpiter, pela razão de ser habitante da Terra e

acompanhar sua rotação em torno de si e sua translação em torno do Sol, enquanto Júpiter

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teria seus próprios movimentos independentes. Surge assim a noção de referencial, pois o

conhecimento de algo passa a ter uma íntima ligação com a localização do observador e

com o seu ângulo de visão. Ao mudar o ponto de vista, podemos alterar completamente a

compreensão de um fenômeno. A idéia de relatividade terá como um dos seus efeitos o que

ficará conhecido como movimento participado: “O movimento da Terra fica totalmente

imperceptível para nós, habitantes e participantes desse movimento.” (idem, p. 133). O que

explica a sensação de imobilidade que percebemos, que será um grande argumento dos

aristotélicos contra Galileu, é que tudo o que habita o planeta é componente invariante de

todos os movimentos terrestres. O próprio Galileu explica: “(...) o movimento entanto é

movimento e como movimento opera, enquanto tem relação com coisas que carecem dele;

mas entre as coisas que participam igualmente nada opera e é como se ele não fosse.”

(GALILEI, 2004, p. 196). A nova teoria da mobilidade é uma alternativa às situações

radicais defendidas por Aristóteles: ou o corpo está em movimento absoluto motivado

exteriormente ou em repouso absoluto, condição adequada a sua natureza. Isso se dá

porque, de acordo com essa visão renovada, não existem mais lugares naturais que

necessariamente devam ser ocupados.

Giordano Bruno e os infinitos mundos

Um contemporâneo de Galileu, Giordano Bruno, o primeiro pensador a ter a

ousadia de defender a idéia de um universo infinito, curiosamente sem ter qualquer ligação

direta como operador da nascente ciência moderna ou da matemática, dizia que nele todos

os lugares são naturais. O argumento de Bruno era exclusivamente filosófico e ele contesta

Aristóteles de dentro, sendo, como os maiores defensores do pensador grego, também um

teólogo: se Deus é um Ser com infinitos poderes, o que o impediria de criar um Universo

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infinito e com um número também infinito de mundos. Tais idéias revelavam-se perigosas

demais para toda a estrutura de Cosmos fechado entendida como uma verdade dogmática

na Idade Média. Todo o edifício teórico medieval depende da manutenção de certas

hierarquias interdependentes: a Terra deve ser o centro de um mundo limitado, a Igreja

católica ser o centro da Terra e o homem ser o centro de outras espécies vivas. Sem esses

círculos concêntricos, a Idade Média não se sustenta. Na verdade, a época de Bruno, a

mesma de Galileu, era um período de forte ortodoxia religiosa, a chamada Contra-Reforma,

pois a Igreja Católica vinha perdendo espaço nos últimos séculos com uma série de ataques:

o retorno da vida urbana, a criação das universidades, a volta da circulação das moedas, a

Reforma Protestante e a série de visões divergentes (que se apresentam na constituição de

seitas, como a dos franciscanos e beneditinos) no interior mesmo do catolicismo. Isso

levava a manifestações de intolerância e forte repressão a qualquer iniciativa que

supostamente ameaçasse o poder católico. Giordano Bruno está negando veementemente

uma ordem tida como inquestionável em um momento ainda mais conservador da já

tradicionalmente conservadora Igreja Católica. O resultado é que esse pensador é incitado a

negar suas teses, e, por isso não acontecer, é queimado pelo Santo Ofício em 1600.

O realismo científico de Galileu

Retornando a Galileu, surge com ele, mesmo que isso não tenha sido afirmado de

modo explícito, a importante questão da inércia, que pela primeira vez dá plena autonomia

ao movimento. Resumidamente, a teoria revolucionária diz que se um corpo está em

repouso tenderá a continuar nesse estado, assim como, se está em movimento, continuará

nessa condição se não houver qualquer interferência externa contrária a ele, persistindo por

si e em si. Para nós hoje isso é absolutamente corriqueiro, mas para um contemporâneo de

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Galileu, acostumado a pensar aristotelicamente, imaginar que um corpo possa seguir

indefinidamente em movimento (uma potência que não conduza a um ato) soa não só como

estranho, mas talvez como insano. Temos que lembrar que é intrínseca ao lugar natural em

Aristóteles a condição da imobilidade e que o objetivo e fim de todo movimento é o

repouso. Não era esse apenas o pensamento majoritário da época. Dizer algo diferente

equivale a uma heresia, o que nos dá em larga medida a noção de que teorias que tornaram-

se óbvias para nós foram largamente combatidas em períodos anteriores. O óbvio

simplesmente não existe, ele é criado.

Mas era possível defender teorias diferentes das defendidas pela Igreja. Mas só se

podia falar disso por hipótese, ex suppositione, nunca realisticamente, o que foi o problema

de Galileu. Sua intenção sempre foi clara: demonstrar que a matemática e os instrumentos

combinados com a observação são capazes de me revelar o mundo tal qual ele é, sendo a

palavra final não a de Aristóteles, algum Doutor da Igreja ou da Bíblia, mas a do cientista,

sem certezas prévias e no calor das pesquisas. O outro raciocínio, que ganhou o nome de

instrumentalista, tinha como missão usar os artifícios matemáticos apenas para adaptar às

teses aristotélicas e às Sagradas Escrituras. Era o que habitualmente se chamava de salvar

as aparências (aparência e realidade uniam-se no empirismo aristotélico): “Costuma-se

chamar essa posição de instrumentalista, porque, em sentido estrito, as hipóteses são

consideradas meros instrumentos convenientes para a representação dos fenômenos.”

(MARICONDA, VASCONCELOS, 2006, p. 98). Os cálculos astronômicos devem

concordar com as observações, sendo a astronomia “uma ciência matemática cujas

hipóteses não têm alcance real, sendo meros instrumentos de cálculo.” (idem, p. 100).

A afirmação de um novo paradigma científico se dá sempre com muitos conflitos e

muitas vezes com algumas mortes, como vimos com Giordano Bruno. Aconteceria o

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mesmo com Galileu, se ele não tivesse voltado atrás para renegar a tese heliocêntrica

copernicana, que colocava abaixo o poderosíssimo pilar geocêntrico (a Terra ocupa a

posição central do mundo) do pensamento católico e afirmar que não a Terra, mas o Sol

ocupava o centro do Cosmo. Koyré marca bem essa luta hercúlea quando diz que Galileu

teve de reformar nosso próprio intelecto, fornecer-lhe uma série de novos conceitos,

elaborar uma nova idéia de natureza, uma nova concepção de ciência, vale dizer, uma nova

filosofia. Por isso, além de um grande cientista, ele pode ser considerado um grande

filósofo, pois trouxe uma visão de mundo que o homem ainda não tinha tido até então e

suas concepções metodológicas marcaram profundamente o que entendemos hoje como

ciência. A matéria, diferentemente das considerações platônicas e aristotélicas, passa a ser

objeto único do conhecimento científico.

Galileu encarna de modo exemplar a postura moderna: duvidar de tudo o que

disseram os antigos antes de crer. A descoberta de uma verdade, agora, necessita de uma

comprovação material. Com ele, não há mais diferentes leis regulando o mundo supralunar

e o sublunar. Finda-se qualquer prevalência do céu sobre a terra, qualquer hierarquia de

dois mundos regulados por estatutos diferentes. Portanto, temos a partir daí literalmente um

Universo. Que leis são essas? Leis matemáticas. Deus criou um mundo cifrado que só

poderá ser descoberto por aqueles que conseguirem desvendar seus segredos numéricos. O

acesso à natureza deixou de ser, digamos assim, um processo natural, facilmente acessível a

todos os homens. Agora só alcançarão a verdade escondida na natureza os poucos homens

que conseguem combinar raciocínio científico-matemático e aplicação técnica; em outras

palavras, que, ao mesmo tempo, calculam e manipulam instrumentos para investigar o

ambiente externo. Esse mundo obscuro se coloca em confronto direto com aquele ligado à

percepção sensível e ao empirismo (“todo saber começa pelos sentidos”) aristotélicos. É

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justamente esse último que está deixando de ser tomado como fonte para a investigação

científica. A ligação que Galileu pretende estabelecer remete à união entre teoria e prática

desenvolvida pelo “ideal renascentista de união do conhecimento teórico dos matemáticos

com o conhecimento prático dos técnicos.” (idem, p. 34). A experimentação tem que ser

controlada e o controle é realizado pelo cálculo matemático. É desse berço da chamada

matemática aplicada, que se remete a Euclides e Arquimedes, que virá uma das novas

ciências inventadas por Galileu: a mecânica ou ciência da resistência dos materiais. Temos

então uma nova maneira de considerar o valor da experimentação. É nesse sentido que

nosso pensador, ao mesmo tempo que discorda de Aristóteles, faz o mesmo com o método

experimental de Francis Bacon. Vamos abrir então um pequeno parêntese para situar em

linhas gerais a filosofia deste último, ela mesma trazendo também, em um sentido

completamente distinto, um forte viés antiaristotélico.

Desde o primeiro momento, a idéia de Bacon foi recolocar a ciência em novas

bases, privilegiando nitidamente a prática em detrimento da teoria, promovendo uma

reviravolta completa em relação aos padrões de investigação científica que vinham sendo

praticados até então. Em vez do lema medieval “Não vá além”, Bacon mantém uma

profunda confiança no progresso e na razão humanas. Um empirismo é inerente a essa nova

orientação. Aquilo que meus sentidos captam é o único ponto de partida seguro para

qualquer ciência. No passado, a filosofia perdeu o seu rumo na direção da abstração ao

privilegiar o método dedutivo, em que se deveria conhecer inicialmente o que há de mais

geral para em seguida poder atuar no particular. O método anunciado por Bacon é a via

contrária: a indução. O cientista deve ir do particular para o geral, partindo de vivências

corriqueiras e complexificando suas noções com o avançar do trabalho. O nome de uma das

obras capitais de Bacon revela suas intenções: Novum Organon, uma clara referência ao

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Organon (em grego, instrumento), de Aristóteles, indicando que era preciso uma nova

abordagem científica, agora técnica, um novo modo de fazer filosofia, mais adequado a um

mundo à medida do homem que estava sendo anunciado.

Uma frase famosa de Bacon que revela claramente esse humanismo é “o homem é

deus para o homem”. O empirismo de Aristóteles era para ele apenas uma capa superficial.

Para o pensador grego, a empiria teria que virar episteme, a experiência teria que se

transformar em essência, a concretude teria que se transformar em abstração. A importância

que tinha a indução nos primórdios da investigação aristotélica se perdia em seguida nas

deduções, generalizações finais, que é o que prevalecia, pois Aristóteles era um pensador

finalista. Já Bacon acredita que devemos permanecer todo o tempo envolvidos com os fatos

materiais sujeitos ao experimento. O que Bacon metodologicamente chama de indução é

insuficiente para Galileu. Para este último, a experiência precisa ser dirigida por

pressupostos teóricos. Sem isso, ela é apenas uma coleção de fatos, de opiniões coletadas

do senso comum. Diz Galileu: “Por mais que acumule exemplos, terei sempre apenas uma

maior quantidade de particulares, mas todos igualmente desconhecidos”. (ROVIGHI

VANNI, 1999, p. 53). O movimento é regido por números e Galileu é o primeiro a

descobrir isso. Koyré resume esse novo entendimento no nível ontológico: “(...) os corpos

que se movem em linha reta num espaço vazio infinito não são corpos reais que se

deslocam num espaço real, mas corpos matemáticos que se deslocam num espaço

matemático”. (KOYRÉ, 1991, p. 166). Se para Aristóteles o corpo não poderia ser retirado

do seu ambiente, já que está qualitativamente, por essência, ligado a ele, para Galileu esse

mesmo corpo é um conjunto de dimensões – largura, altura, profundidade – que pode ser

isolado da sua suposta localização natural e investigado separadamente. Não há mais na

natureza qualquer tipo de lugar privilegiado ou predeterminado. Talvez tenhamos aí o berço

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originário de uma simulação laboratorial da ciência, algo impensável antes do advento da

modernidade.

Galileu estabelece ainda uma distinção importante entre qualidades primárias e

secundárias de um corpo físico. As primeiras e mais decisivas são a forma, figura, número

contato e movimento; as segundas são as cores, sons, sabores, odores etc. A diferença

envolve diretamente o que pode ser calculado, o que nos faz seguir do espaço físico

qualitativamente diferenciado para o espaço geométrico homogêneo: “As distinções entre

qualidades primárias e secundárias visam, assim, à eliminação das qualidades subjetivas e

reduzem a natureza a termos quantitativos, isto é, passíveis de tratamento matemático e de

determinação experimental.” (MARICONDA, VASCONCELOS, 2006, p. 113). Aquilo

que Aristóteles entendia como categorias, Galileu colocará no nível impreciso da percepção

subjetiva. Esses aspectos qualitativos só interessam se tiverem um status objetivo, em

outras palavras, “quando participam necessariamente do conceito de corpo físico, existindo

neste como elemento racional e quantitativo passível de tratamento matemático”.

(MARICONDA, apud GALILEI, p. 54) O pensador italiano está alheio a qualquer

transcendência. O mundo é entendido de modo mecanicista: é feito de matéria e

movimento. Com isso, o valor do que é material muda completamente, pois ao contrário

das concepções platônico-aristotélicas, agora, ao examinar os corpos, podemos produzir

demonstrações objetivas, inalteráveis e de altíssimo rigor.

Na nova metodologia científica de Galileu, teoria e prática se unem de modo

absolutamente complementar. A experiência é orientada diretamente pelos pressupostos

teóricos, mas a prova, a conclusão científica não deixa de ser dependente da experiência,

pois aí fecha-se o processo. É nesse sentido que a intervenção humana, a artificialização do

processo de desvelamento da natureza, é uma peculiaridade do momento em que vive

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Galileu, tendo nele um personagem privilegiado para perceber esse novo modo de produção

da verdade. O homem sai da condição de simples criatura divina para assumir um papel de

inventor de objetos, de co-criador do mundo. De acordo com essa idéia, Deus não fez um

mundo acabado e definitivo, mas uma obra aberta a ser permanentemente completada por

mãos e mentes humanas. É nesse sentido que a ciência moderna se caracteriza por ser

instrumental.

Ao combinar uma grande capacidade operacional com uma espetacular formação

matemática, que resume a noção moderna de técnica, Galileu tornou-se um poderoso

inventor: a bomba d‟água, o termoscópio (antecessor dos nossos termômetros), o compasso

geométrico-militar e, mais tarde, como veremos em seguida, quando ele tiver voltado seu

interesse para os movimentos celestes, o telescópio. Ele tocou também em teses

milenarmente consagradas, como a lei da queda dos corpos. Segundo dizem, lançou, da

Torre di Pisa, uma esfera de cortiça e outra de chumbo da mesma altura, comprovando que

elas chegam no chão ao mesmo tempo. A velocidade de chegada ao solo não depende,

portanto, como dizia Aristóteles, do peso do corpo. O que disse Galileu é facilmente

comprovável por qualquer criança hoje. Uma segunda criação interessante é o cronômetro

de água, muito anterior a qualquer outro cronômetro, onde a idéia era estabelecer as

proporções regulares entre temporalidades e pesos da água que caem de uma certa altura

em um balde por um orifício.

Outra conquista importante trazida pelas suas teses acontece na combinação entre

técnica e arte da guerra, tradição proveniente da Renascença. Segundo ele defende, de

modo inédito, a trajetória dos projéteis desenvolve uma movimentação em forma de

parábola. Isso é constatado sempre que observamos o grau de angulação de qualquer lança-

mísseis atual. É claro que há toda uma possibilidade de problematizar as implicações éticas

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das descobertas de Galileu, mas temos que pensar que sua luta foi pela afirmação de uma

ciência desvinculada de dogmas e afastada da interferência direta de homens religiosos, o

que levando em conta o momento histórico, demarca, a nosso ver, uma atitude libertária. É

a Bíblia que se deve adequar à ciência e não o contrário e a comprovação científica será

superior a qualquer princípio de autoridade, seja de um Doutor da Igreja ou do Filósofo,

como Aristóteles torna-se conhecido nos séculos finais da Idade Média.

Um cientista que une teoria e prática

Nosso pensador italiano também parecia ver como decisivo o trabalho de divulgação

científica, para usar uma expressão de nossos dias, fazendo uma opção clara por trazer a

linguagem científica para um nível de compreensão possível ao homem comum: “(...) o

desejo de alcançar, em suas obras publicadas, o maior público possível pode ter sido a

causa de Galileu simplificar a exposição de experimentos (...)” (MARICONDA,

VASCONCELOS, 2006, p. 51). A própria escolha do modo dialógico em dois de seus mais

importantes livros deixa isso claro. Fica exposto nessa prática, a nosso ver, um intenso

vínculo humanista, pois a tradição de expandir o número de leitores de obras científicas e

literárias vem, ainda com um certo elitismo, da Renascença e segue em uma corrente

ampliadora que desemboca no projeto da Enciclopédia. A pretensão aí era concentrar em

um mesmo livro, que contava com a participação dos maiores especialistas em cada área,

todo o saber humano e, mais que tudo, disponibilizá-lo ao homem comum. Na medida em

que os homens são percebidos como iguais, concepção definidora do humanismo moderno,

o conhecimento não deve permanecer em castelos e mosteiros, mas estar acessível a todo

aquele que queira conhecer mais do que conhece. É a partir desse posicionamento que

tivemos o século XVIII como o século que definiu cultura, no sentido de formação ampla

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em tudo que diz respeito ao homem (em relação a si e ao mundo), que temos hoje. Kant

mostra que o resultado dessa aquisição é a liberdade: “Num ser racional, cultura é a

capacidade de escolher os seus fins em geral (e portanto de ser livre). Por isso, só a cultura

pode ser o fim último que a natureza tem condições de apresentar ao gênero humano.”

(ABBAGNANO, 1998, p. 226). Nesse momento ser culto “não significava dominar apenas

as artes liberais da tradição clássica mas conhecer em certa medida a matemática, a física,

as ciências naturais, além das disciplinas históricas e filológicas. O conceito de cultura

passou a significar “enciclopedismo”, isto é, conhecimento geral e sintetizado de todos os

domínios do saber. O nosso pensador está no meio desse caminho entre a Renascença e o

Iluminismo e, de acordo com o que pretendemos demonstrar, é integrante importante dessa

história humanista.

A capacidade criativa de Galileu também se volta para os céus. É o momento em

que da mecânica ele se volta para a astronomia. A partir de informações esparsas de

artesãos, produz um instrumento ótico, o perspicillum, que poderíamos entender como o

ancestral do telescópio. É interessante pensar que a técnica de produção de lentes já estava

bastante desenvolvida na sua época, mas ninguém antes tinha pensado em compor um

objeto com lentes para mirar os astros. Foi o ponto de partida teórico de Galileu de que

existia uma uniformidade material entre o Céu e a Terra que fez com que ele quisesse

conferir isso na prática. Ou seja, foi a teoria que o levou a inventar meios práticos para

comprová-la. O que esse momento de nascimento da modernidade tem de muito original e

o que nos levou a elaborar um trabalho sobre a presença de um humanismo técnico em

Galileu é que a prova científica tornou-se absolutamente necessária na perspectiva

científica moderna e esta prova recebe a sua legitimação através de sofisticados objetos

criados por homens. O olho natural ficou nu e passou a ser visto como insuficiente para a

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percepção de certos fenômenos. A verdade agora necessitava do artificialismo da

vestimenta técnica. O que se tem ao fim desse processo é muitas vezes uma visão

completamente distinta e às vezes contrária à opinião, esta última embasada somente nos

sentidos, do senso comum. Padre Mersenne resume esta importância do aparato técnico:

“(...) conhecemos as verdadeiras razões daquelas coisas que podemos construir com as

mãos ou com o intelecto.” (ROSSI, 2001, p. 251). Podemos dizer que a própria autonomia

buscada por Galileu para a ciência, no que diz respeito a fenômenos naturais, em relação a

qualquer forma de autoridade exterior a ela, seja teológica ou aristotélica, só será possível

com a ajuda da instrumentalização. Koyré inclusive estabelece uma diferença entre

utensílio, que tem um uso exclusivamente prático, e o instrumento que serve à teoria, ou

seja, à ciência. O curioso é que pode se tratar do mesmo objeto, uma luneta por exemplo,

sendo decisivo o uso que se faz dele.

A luta contra uma ciência do senso comum

O que a primeira impressão nos diz é que a Terra está parada e que o Sol gira em

torno dela. Segundo Alexandre Koyré, só um aspecto teórico, não empírico mas

matemático e instrumental, poderá promover alterações dessa premissa sensível. São leis de

natureza teórica que vão determinar o comportamento espacial e temporal dos corpos

materiais. Foram exatamente estas leis que tornaram possível a revolução científica do

século XVII. Galileu vai dizer que a boa física é feita a priori. O que Koyré conclui é que o

senso comum, a experiência cotidiana, estão do lado de Aristóteles, o que torna

extremamente difícil a missão de vários pensadores modernos anteriores a Galileu, e

logicamente ele próprio, para afirmar suas idéias novas. Entre eles, estão Copérnico, Kepler

e Giordano Bruno. Segundo Koyré, a luta mais inglória para a afirmação de uma nova

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teoria científica é contra o senso comum. Tal era o poder dogmático de Aristóteles, que

perdurou por toda a Idade Média e ainda estava presente dois séculos depois do que é

considerado o seu fim, que os homens nem sequer se arriscavam a experimentar algo que

pudesse ir de encontro à física aristotélica.

Aristotélicos contemporâneos a Galileu chegavam a se negar a observar os céus

com qualquer instrumento ótico ou argumentavam que o próprio instrumento produzia

ilusões de ótica. Temos que lembrar que o discurso de autoridade (por exemplo, o que o

Papa pronuncia é uma verdade definitiva) era peça chave do pensamento escolástico e

contra-reformista. Uma certa teoria científica tinha ali o papel de salvar as aparências, em

suma, de confirmar, mesmo usando hipóteses e cálculos matemáticos, uma verdade prévia.

Foi na superação desse dogmatismo e na suspensão de qualquer certeza anterior que

podemos perceber o nível de coragem de um pensador como Galileu. O relato da sua

observação com o perspicillum presente na obra A mensagem das estrelas é emblemático

na quebra de vários preceitos supostamente inquestionáveis até então. O primeiro deles é

que a Lua não é mais aquele astro alvo e impecável como vinha sendo visto por muitos

séculos. Encantado com as próprias descobertas, diz Galileu: “(...) qualquer um pode dar-se

conta com a certeza dos sentidos que a Lua não é coberta por uma superfície lisa e polida,

mas áspera e desigual, do mesmo modo que a Terra”. (GALILEI, 1987, p. 36). Não é à toa

que a prática da ciência moderna tornou-se conhecida como desencantadora do mundo. A

lua de Galileu definitivamente não é a lua dos poetas. A nova postura do cientista é de

duvidar do passado, do princípio de autoridade e, conseqüentemente, das Sagradas

Escrituras. Isso proporcionaria a autonomia científica: (...) a ciência deve decidir livremente

as suas questões internas sem as influências dos padrões externos de decisão representados,

à época, pela Filosofia natural aristotélica.” (MARICONDA, VASCONCELOS, 2006, pp.

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101-2). Agora é a Bíblia que deve se adequar à ciência e não o contrário e a matemática

deve se sobrepor à teologia.

Pode ser que não se tenha em um primeiro impacto a dimensão revolucionária de

um posicionamento como esse, pois não existe nada mais banal do que isso para nós hoje.

Mas grandes idéias não são óbvias, tornam-se óbvias. Dizer que a Lua tem depressões,

vales, montanhas e um solo acidentado, ou seja, que tudo o que existe lá é similar ao que

existe aqui, é, à época, ruir com toda uma visão de mundo que vem de longa data. Em

outras palavras, ele está dizendo que a matéria presente na esfera celeste é exatamente a

mesma da terrestre. O que está sendo dinamitado aqui com a combinação de teoria e

desenvolvimento instrumental é a separação entre o Céu e a Terra (em que existia uma

diferença de qualidade entre o mundo supra-lunar e o sub-lunar) como duas realidades

regidas por leis e elementos naturais distintos. Junto com isso, vem abaixo também a

milenar perfeição e incorruptibilidade dos astros, dois princípios capitais da filosofia

aristotélica e, por decorrência, da filosofia medieval. A Lua até então era uma esfera lisa,

uniforme e exatíssima, tal como aparece aos olhos naturais humanos. Em suma, é toda a

visão aristotélica do mundo físico que influenciou corações e mentes ao longo de 21

séculos que está sofrendo um poderoso ataque. A partir da observação telescópica das

manchas solares e das crateras lunares, “o princípio cosmológico aristotélico da

incorruptibilidade, imutabilidade e inalterabilidade do mundo celeste está

irremediavelmente refutado.” (idem, p. 84).

Um outro momento importante para se perceber o avanço contra Aristóteles é na

questão do movimento. Com Galileu, ele ganha um novo estatuto, sendo criada inclusive

uma ciência autônoma para estudá-lo: a Dinâmica. De acordo com o seu princípio, um

corpo não precisa necessariamente de corpos alheios a si para se movimentar. Essa

- 74 -

capacidade é inerente aos próprios corpos. O movimento, de modo inédito, passa a ser visto

como causa do próprio movimento. Aliás, a idéia de máquina só faz sentido se entendermos

que os corpos ou objetos podem realizar acionamentos ou deslocamentos independentes

uns dos outros, algo que não era possível dentro do sistema teórico aristotélico e medieval.

O relógio nos dá um bom exemplo disso. Ele talvez seja o símbolo mais marcante da nova

mentalidade moderna e do novo papel fabricador do homem diante da natureza. Com ele,

podemos perceber que a partir de agora, pela primeira vez, o domínio do tempo pertence a

um âmbito humano, não mais ao divino, como vinha sendo pensado até então. Não

podemos esquecer, como nos diz Jacques Le Goff no livro “A bolsa e a vida”, a

perseguição sofrida pelos judeus ao longo de todo o período medieval por prática da usura,

que tinha ali a acepção de emprestar dinheiro a juros. O caráter grave dessa atividade,

considerada um pecado dos mais abomináveis, explica-se na medida em que era

compreendida como uma tentativa humana de dominar a temporalidade e fazer uso próprio

dela. O que era deixado de lado é ser Deus o único e absoluto Senhor do Tempo. Só esse

aspecto já nos esclarece como o relógio seria algo completamente impensável nesse

momento histórico.

Outra noção peculiar aos modernos e, particularmente a Galileu, se dá na ligação

entre saber e fazer como algo concernente ao homem, know-how como nós chamaríamos

em nossos dias. “Quem sabe faz” é sem dúvida alguma um emblema que só faz sentido em

um regime de idéias próprio do mundo moderno. É preciso recordar que foi com a

confiança em um instrumento absolutamente artificial, a bússola, que o homem enfrentou

mares nunca antes navegados, locais que até aquele momento estavam associados à

manifestação da loucura e dominados por monstros pavorosos e abismos colossais ao fim

do horizonte. A confiança na ciência e no que o homem pode realizar, uma espécie de novo

- 75 -

ato de fé, o fez superar esses fantasmas. Essa tradição anterior a Galileu abriu caminho para

a conquista de outros continentes. Já ele propriamente abriu caminho para o entendimento

da conquista celeste e para a matematização do mundo físico.

É curioso pensar que, foi a partir de uma grande confiança no homem e na sua

capacidade de criação técnica, que esse arranjo antropocêntrico do Cosmos foi sendo

dilapidado. Segundo o raciocínio medieval, Deus fez o mundo de modo tal que a Terra

estivesse no centro do Universo e o homem estivesse no centro da Terra como a criatura

divina feita à Sua imagem e semelhança. É possível pensar, inclusive, que há uma tradição

do pensamento cristão que defende um humanismo, apoiado na idéia de que o homem seria

a espécie central na natureza e a única com alma inteligente. Logicamente todas as

recorrências que fizemos e que vamos fazer ao humanismo seguirão caminhos

completamente distintos desse viés religioso.

Galileu, por sinal, está contestando esse tipo de humanismo, que é um dos pilares

que alicerça o sistema medieval. Outro é a finitude do mundo. Surge daí uma questão: que

grande grau de importância teria o homem em um Universo acentrado e de grandezas

infinitas, ou pelo menos indeterminadas como preferia dizer Galileu depois do que

aconteceu a Giordano Bruno? Uma pergunta possível e arrasadora para as pretensões

antropocêntricas de importância do homem seria: diante desse novo cenário, será que não

existiriam seres mais capazes que nós localizados em algum outro ponto desse universo

agora assustadoramente grande e que, claro, também são obras de Deus? Mas apesar dessas

demolições antropocêntricas que contestam a importância humana diante da grandeza do

Universo, Galileu, seguindo a orientação mecanicista, vai visualizar os objetos, a matéria

como morta, o que divide sujeito ativo/objeto passivo, mantendo nesse sentido uma ligação

com o humanismo tradicional, ou seja, com uma centralidade humana em relação às

- 76 -

certezas. Portanto em um certo aspecto, o de afirmação humana sobre o que lhe é externo,

Galileu permanece como um defensor da postura antropocêntrica.

Para essa nova visão, a técnica humana, o modo diferente com que passou a se

entender a produção de instrumentos científicos, foi absolutamente decisiva. O que se exige

agora é que o real seja estabelecido pela superação da visão natural (o olho que fica nu) e

do senso comum pelo recurso a instrumentos técnicos artificiais e à matemática aplicada,

estando esta a partir desse momento combinada à física. Esses, junto com a razão humana,

serão agora os avalistas e os construtores da verdade científica, verdade que trouxe, sem

dúvida, mitificações (uma nova visão do que seja a verdade), mas que ao mesmo tempo

significou naquele instante a conquista de novas liberdades.

A partir de agora, vamos avaliar uma outra possibilidade de humanismo técnico,

tentando trazer a visão de Simondon, que acreditamos ser bem distinta das posições

apresentadas até o momento.

- 77 -

SIMONDON E A INDIVIDUAÇÃO: DO BIOLÓGICO AO TÉCNICO

Idéia de relação em Simondon: uma herança velada e transmutada

A filosofia de Simondon é impensável sem o rompimento do vínculo substancialista

sujeito-objeto e a afirmação da relação como central ao processo de constituição dos

indivíduos. Essa reversão conceitual com o modelo majoritário da filosofia no Ocidente foi

inaugurada pela chamada filosofia da diferença, a nosso ver, a partir de David Hume, e

depois continuada por Nietzsche, Marx, Bergson e, mais recentemente, está presente nas

idéias de Foucault e Deleuze. Com todas as distinções que esses pensadores mantêm entre

si, a contraposição comum referente ao substancialismo é que ele ocultaria a relação

originária que promove a eclosão dos seres. Para essa esteira de pensadores, entre os quais

incluímos Simondon, vale o que diz Bachelard referindo-se à teoria da relatividade em

primeira frase de sua obra: “No começo é a relação”. Obviamente, essa relação não se dará

entre termos isolados e completos, como seria a que se dá entre a forma e a matéria

aristotélicas, mas por componentes em devir, o que traz um aspecto permanente de

imprevisibilidade aos resultados.

Toda filosofia tem um ponto de partida, uma hipótese que se torna o seu pilar. A de

Simondon é a noção relacional. Os indivíduos não serão mais vistos como “termos”,

“essencialidades”, mas como “ações”. Há neles, em particular nos vivos, um algo mais.

Simondon dirá “mais que um”, um pré-individual que tornará possível uma continuidade

das variações ou individuações. Não temos mais a fixidez de substantivos, mas a

transitoriedade de verbos no infinitivo. A visão é a de uma individualidade que detêm em si

uma reserva energética. Diz Pascal Chabot sobre o autor: “Ele não encara as coisas em

termos de forma e matéria, mas em termos de energia e estrutura” (CHABOT, 2002, p. 7).

- 78 -

A preocupação de Simondon é com o desenvolvimento do indivíduo e suas relações entre

si: sejam pessoas, objetos, o meio ou consigo mesmo. Potencialidades pré-individuais

atuam nesses diferentes níveis produzindo individuações diversas. Essa opção conceitual

pela relação se mostrará efetiva indistintamente nos níveis orgânicos e inorgânicos. O

humanismo técnico de Simondon, que procuraremos defender como foco central nessa

etapa da tese, parte do princípio de que a criação e a utilização dos objetos técnicos a todo

momento interfere na produção de subjetividades (que se refere a indivíduos construídos na

medida de suas experiências e ao longo de toda a vida, toda essa variedade ocupando o

mesmo corpo) e vice-versa. Nós agiríamos sobre os objetos e somos, ao mesmo tempo, o

resultado dessa atividade.

Vemos aí uma grande originalidade em nosso pensador, pois é muito rara uma

perspectiva humanista que envolva a área técnica sem que isso comprometa um domínio

integral humano nos processos inventivos, ou seja, um antropocentrismo. Consideramos

que essa diferenciação conceitual compõe o centro nervoso do nosso trabalho. A visão

antropocêntrica, a nosso ver, possui um aspecto individualista, egocêntrico, no sentido de

voltar-se para uma interioridade, para um sujeito fechado em si mesmo, que tem um nome,

assina suas obras e detém um controle sobre os usos e efeitos dos objetos que cria. Um

comentador de Simondon, Didier Debaise, dirá que essa linha de pensamento é partidária

de uma “ontologia implícita”. A individualidade encontra-se, assim, absolutamente distinta

de uma realidade exterior, que será vista como um corpo estranho, quando não inimigo;

algo que, no campo dos objetos, está ali para ser pensado por um cérebro humano e

dominado por suas mãos. Essa foi a linha humanista que tivemos até aqui nessa tese.

Acreditamos que Simondon vai nos propor outra. Seu humanismo, a partir da noção de que

os indivíduos mantêm sempre uma abertura relacional, volta-se necessariamente para a

- 79 -

dimensão do outro e de si, onde as fronteiras do interior e do exterior são ultrapassadas.

Não falaremos de somas, diminuições ou exclusões, mas de fusões. A distinção entre essas

duas realidades, dentro e fora, que a filosofia tradicional manteve como dialeticamente

contrárias, em nosso autor é relativa. A partir do momento em que entendemos que o

indivíduo se modifica com o fluxo do tempo, ele torna-se capaz de absorção permanente e o

que é “exterior a ele pode tornar-se interior.” (COMBÉS, 1999, p. 37)

Mas, ao defender esse posicionamento positivo e construtivo da diferenciação,

Simondon demonstra a linhagem de pensamento da qual faz parte. É isso que faz com que

consideremos importante enaltecer alguns indícios dessa herança, revelada pelo autor

apenas nas entrelinhas. Por questões de método e para tornar possível sua realização em

poucas páginas, vamos priorizar o inaugurador da tradição que identifica os indivíduos ao

conjunto das suas relações, o filósofo escocês David Hume.

Para falar de individuação, de indivíduos abertos a variações contínuas, é preciso

pensar que nessa abertura faz-se necessária uma mescla entre termos, uma visão processual

que dissolva individualidades supostamente fechadas. A junção traz qualidades e resultados

novos e imprevisíveis. É aí, precisamente, que vemos uma fonte humeana na filosofia de

Simondon. Para a composição de um padrão científico aos moldes da modernidade é

perfeitamente conveniente a idéia de um sujeito refratário e isolado do mundo externo,

como defenderia a tradição que alinha, apesar das grandes distinções inerentes a cada

filosofia, pensadores como Descartes, Galileu e Kant. Temos nesse caso, de modo

paradigmático, uma esfera subjetiva animada, qualitativa, metafísica, em suma, racional,

manipulando uma objetividade quantitativa, física, desprovida de vida. No racionalismo

moderno, particularmente o cartesiano, é fundamental que o mundo comece a existir na

medida em que um homem o perceba e a este caiba o papel de desconfiar de modo total da

- 80 -

sua concretude. Diferentemente da tendência aristotélico-tomista, em que há uma essência

verdadeira no que é exterior ao homem, temos o inverso no idealismo moderno. O sujeito é

centro de referência de todo e qualquer conhecimento. As capacidades mentais internas são

usadas para revelar o que há de verdadeiro, no ambiente externo e, com isso, chegar a fatos

demonstráveis inquestionavelmente. Por mais que tudo varie, permanece essa estrutura

interna, essa substancialidade, como sede da razão e ponto invariável de equilíbrio estável.

Qualquer diferença está englobada e é submissa a essa identidade última. A supremacia é

do interior sobre o exterior.

Foi essa premissa antropológica e antropocêntrica que nos deu uma prerrogativa de

sermos os senhores absolutos da natureza, gerando, por exemplo, a inacreditável destruição

do ambiente natural desde o nascimento da ciência moderna, no século XVII. A noção de

ecologia como conservacionismo ambiental, nascida no século XX, é, sem dúvida, marca

do nosso tempo e um claro sinal de alerta em relação ao otimismo racionalista setecentista,

que acreditou em um avanço sem limites da ciência, premissa que permaneceu inabalável

até fins da Primeira Guerra Mundial e seu saldo, inédito na história, de 14 milhões de

mortos. Um psicólogo inglês do século XX, Christopher Lasch (1990), chegou a afirmar

que a ecologia só nasceu pelo medo de desaparecermos de uma hora para outra pela

devastação desenfreada do meio ambiente que produzimos. Em outras palavras, não

estaríamos pensando nas plantas, nos animais ou nas gerações futuras, mas apenas em

nossa própria preservação humana.

Em algum momento veio a crise: será que os avanços científicos são benéficos de

modo irrestrito para a humanidade, como pensavam filósofos como Descartes? Que nível

de controle pode ter o homem sobre as ocorrências naturais? Como podemos falar de

evolução científica se isso desencadeou armamentos que produziram nas duas guerras

- 81 -

mundiais os maiores genocídios humanos já vistos na história? A partir dessas perguntas,

filosóficas por excelência, questiona-se a arrogância da razão ocidental e, como vimos no

capítulo anterior, um certo humanismo ligado à ela. O combate a essa pretensão

racionalista, inspirado pela linhagem filosófica da qual participa Simondon, se volta nesse

momento para uma de suas bases mais importantes: o sujeito. Podemos dizer que o

movimento conhecido como crise da razão (que acaba revelando-se como uma crise do eu,

do sujeito), que é vivido pela filosofia até hoje, inicia-se com essas dúvidas. Quando elas

apareceram? É nesse momento que nos deparamos com a filosofia de Hume.

Em sua construção de idéias, a visão de um sujeito controlador e com um intelecto

separado do mundo material sofre fortes abalos. Percebe-se claramente em Hume o

nascimento de uma filosofia que privilegia não a identidade (com expressões variáveis na

história do pensamento, mas sempre presente desde Parmênides), mas a diferença. Para

entendermos a grande reorientação do pensamento racionalista grego, medieval e moderno

(mais especificamente, cartesiano), é preciso perceber que o foco não é o ponto final e

imóvel, mas o processo. O princípio é relacional e não finalista. Nessa linha de pensamento

não há indivíduo plenamente formado, pois os vínculos que estabelecemos com coisas e

pessoas não cessam de me transformar enquanto estou vivo. O indivíduo é uma obra em

construção, é uma “expressão criativa do mundo” como diria Whitehead, e não o objetivo

final de uma forma realizada, como afirmaria Aristóteles. Não há possibilidade de haver um

sujeito único, mas vamos falar de um sem-número de sujeitos (ou melhor, subjetividades,

em um sentido foucaultiano) que vão sendo compostos em uma mesma existência através

dos vínculos estabelecidos com outros corpos até aquele momento. Vamos nos

reconstruindo na medida em que nos relacionamos. O acúmulo das minhas vivências

acrescenta camadas de indivíduos e não perdemos nada do passado. Sujeitos variados

- 82 -

virtuais habitam cada um de nós e os utilizamos em diferentes circunstâncias, enquanto

continuamos produzindo outros nas novas relações que estabelecemos. Não “somos”

alguma coisa, mas “estamos” alguma coisa. A idéia de individuação de Simondon nos dá

exatamente essa mesma direção de permanente produção de indivíduos a partir de um

mesmo ser, onde a permanência de tendências heterogêneas e conflitantes gera uma crise

freqüente de si consigo. Nosso filósofo francês nomeará isso de polarização.

Um aspecto curioso é que Aristóteles também possui um conceito próprio de

relação, e mais uma vez ele será contraponto, nesse caso, tanto a Simondon quanto a Hume.

De início, o pensador macedônio estabelece uma cisão entre termo e relação. Não é à toa

que a expressão “termo” significa etimologicamente nome e fim, o que se adequa de modo

duplo ao que Aristóteles entende por substância. Em regime inverso a essa parte

importante, decisiva e concludente do ser, a relação é entendida apenas como uma das

categorias, a que especifica quantidade e qualidade de algo ou alguém. Ela não tem

existência autônoma, mas é uma modalidade de existência de um sujeito, ou seja, algo

acessório que tão-somente caracteriza e não define essencialmente o indivíduo. Temos,

portanto, o ponto fixo substancial e a variação, própria ao aspecto relacional, sempre

inferior, adjetiva, acidental. Como já vimos, o que está em movimento tem condição

ontológica menor do que aquilo que é fixo. O próprio Aristóteles diz: “A relação não pode

ser concebida sem alguma outra coisa que lhe sirva de sujeito.” (ARISTÓTELES,

Metafísica, 1088a, 25, in DEBAISE, 2002, p. 55). Enquanto Aristóteles nos fala do ser em

relação, Simondon nos traz um ser que se constitui através da relação. Não é mais o

privilégio do fim, do fixo e da lógica formal, mas da operação: “Situação que confere às

relações uma carga de ser que excede e ultrapassa a ordem do conhecimento e das

significações estritamente lógicas.” (GARELLI, apud SIMONDON, 2005b, p. 14).

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Voltando a Hume para estabelecer o contraste, ele vai dizer que aquilo que sou em

um certo momento da vida é a soma de tudo que experimentei. Somos uma coleção de

impressões, percepções e idéias, sempre mutantes. Ou seja, seríamos uma profusão de

sujeitos, cada um deles compondo-se, descompondo-se e recompondo-se em novas

relações. É um sistema em contínuo movimento de reorganização, refazendo-se

permanentemente nas suas interações com o meio externo. Isso produz subjetividades

díspares com o passar do tempo. Mas, em termos perceptivos, temos certas ilusões

projetivas. Estamos constantemente tentando antecipar nossas reações futuras a partir de

experiências passadas. Depositamos, de acordo com Hume, alto grau de confiança em

previsões, que muitas vezes revelam-se castelos de cartas, já que só a própria circunstância

determinará suas conseqüências. Ao contrário da tradição filosófica que privilegia a

identidade e que se concentra na origem ou na finalidade de existências individuais, em

Hume (e em Simondon), ao contrário, o foco é no meio, na operação e recriação

permanente dos indivíduos. De acordo com Hume, uma repetição de hábitos cria auto-

imagens construídas. É comum, apoiados em ocorrências que se repetiram várias vezes,

afirmarmos expressões do tipo: “eu sou uma pessoa que nunca vai reagir a um assalto”,

como se isso fosse algo certo e permanente. Afirmamos padrões de comportamento

próprios, chegamos até a chamar isso de personalidade, perdendo a noção de que, na

ocorrência do acontecimento, tudo pode ser diferente do que foi previsto. O filósofo

escocês poderia, a exemplo de Heráclito, ter afirmado: “Espere o inesperado”.

Em função da profusão de sujeitos que nos habita, somos levados a agir de modo

diferenciado e até contraditório com diferentes pessoas que conhecemos. Uma soma

provisória de hábitos seria “a raiz constitutiva do sujeito e, em sua raiz, o sujeito é a síntese

momentânea do tempo, a síntese do presente e do passado em vista do porvir.” (DELEUZE,

- 84 -

2001, p. 103). Sendo assim, é só alterar vivências para termos novos sujeitos. Como então

falar de um eu? Hume explica a formação do sujeito único, que ele considera como mais

uma ilusão inventada por nós:

“Se alguma impressão dá origem à idéia de eu, essa impressão tem de continuar invariavelmente a mesma, ao

longo de todo o nosso curso de nossas vidas – pois é dessa maneira que o eu supostamente existe. Mas não há

qualquer impressão constante e invariável. Dor, prazer, tristeza e alegria, paixões e sensações sucedem-se

umas às outras, e nunca existem ao mesmo tempo. Portanto, a idéia de eu não pode ser derivada de nenhuma

dessas impressões, ou de nenhuma outra. Conseqüentemente, não existe tal idéia.” (HUME, 2000, p. 284).

O que usualmente chamamos de verdade, Hume vai dizer que é apenas uma

expectativa que mantenho com relação a mim mesmo e com o que me rodeia. Só o próprio

acontecimento se dando (o se faisant, na expressão de Bergson) definirá de que maneira

vamos reagir ou algo vai se dar, sendo isso imprevisível de antemão. Em função dessas

pretensões, quando algo não ocorre de acordo com o esperado, pronunciamos frases como:

“mas sempre foi assim” ou “eu não esperava isso de você”. Também não nos reconhecemos

em nossas ações e construímos, por exemplo, essas frases: “como fui capaz disso?” ou

“você tem certeza de que era eu mesmo?”.

O filósofo escocês afirma que essa previsibilidade, que nomeamos como racional, é

passional. Primeiro queremos fazer algo, depois descobrimos motivações racionais para

justificar essa escolha. A razão não seria, como pensaram Aristóteles e Descartes, um

aspecto essencial, constituinte do homem. Em Hume, a paixão desempenha esse papel. Ela

sempre vem antes, é mais forte do que a racionalidade e precisamos dela para seguir

vivendo. Entramos em prédios, andamos em aviões ou cruzamos pontes sem cogitar a

possibilidade de que um acidente possa acontecer. O que aguardamos, sem sombra de

- 85 -

dúvida, de modo inconsciente, é: se não aconteceu até hoje, porque aconteceria justamente

comigo? Esse tom provocativo contra os racionalismos extremados é para nos dizer que

não haveria verdades definitivas, mas probabilidades. Nossas ações são apoiadas em

crenças, não em certezas. O que esperamos ser uma permanência, uma estabilidade, é

apenas uma possibilidade maior ou menor de certas relações se darem. Essa associação de

idéias que se faz regular é o que Hume chama de conjunção constante.

É daí que passamos a estabelecer uma união, construída e não essencial, entre causa

e efeito: “(...) lembramo-nos de ter visto aquela espécie de objeto que denominamos chama,

e de ter sentido aquela espécie de sensação que denominamos calor. Sem mais cerimônias

chamamos a primeira de causa e à segunda de efeito(...)”(idem, p. 116). A eternidade

pretendida para o nexo causal torna-se então apenas provável. O ponto radical é atingido

pelo pensador quando ele pergunta se podemos ter certeza de que o Sol nascerá amanhã.

Isso é uma verdade científica? Não, para ele é um acontecimento que muito provavelmente

ocorrerá, pois está nascendo diariamente há bilhões de anos, mas isso não implica de modo

prévio que continue a acontecer no dia seguinte. Uma catástrofe cósmica pode destruir o

Sol e não teremos nada a fazer quanto a isso. Mas, em nossa arrogância, achamos que

sempre teremos tudo sob controle. O meio externo simplesmente repetiria as relações

anteriores e esperadas. Isso faz de nós “crentes” que acreditam ser capazes de possuir

verdades plenas.

Hume também afirma que as relações são exteriores aos seus termos. A mera soma

matemática não é exata em toda e qualquer situação. Do vínculo entre homens ou deles

com outros animais e objetos, teremos como resultado mais do que a soma aritmética dos

elementos que se apresentaram de início. Todos saem diferentes das experiências que

vivenciam. Mas, mesmo dando privilégio à relação, na medida em que esta é colocada

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como fator de constituição dos seres, em Hume os termos continuam sendo levados em

conta. Em Simondon, a relação ganhará um sentido de plenitude ainda maior, pois nem

sequer será preciso utilizar a palavra “termo”, já que ser e relação não serão mais distintos,

mas passarão a compor uma e mesma realidade. O empirismo inglês, apesar da influência

explícita no pensamento de Simondon, tratará somente do aspecto exterior das relações. A

questão é que não nos diferenciamos apenas de outros e por meio de outros, mas também

de nós mesmos. O aspecto relacional também vai se direcionar para a dimensão do

pensamento, da vida afetiva, campo que Kant chamou de transcendental. Nosso autor, por

seu lado, denominará esse âmbito das relações internas de psiquismo, que seria a atividade

de um ser que “para resolver sua própria problemática é obrigado a intervir em si mesmo

como elemento do problema.” (SIMONDON, apud COMBÈS, 1999, p. 32). A distinção

com a visão kantiana é que em Simondon não temos a permanência do sujeito substancial

(sede do transcendental), essencial na teoria do conhecimento de caráter idealista do

filósofo alemão. As duas influências se combinam: de Hume virá a colocação da relação

em um papel de protagonista na composição dos seres e, de Kant, a noção de transcendental

que, sem a centralidade subjetiva, ganha incrível semelhança com a força criativa que

Simondon percebe na natureza e que nomeia de pré-individual. A proximidade filosófica

passa a se dar então com Bergson e sua noção de diferença interna, conceito que terá

aplicações válidas tanto no plano biológico como no psíquico: “(...) o que difere não é mais

o que difere de outra coisa, mas o que difere de si.” (DELEUZE, 1999, p. 103). Curar-se de

uma doença ou tomar uma decisão são dois modos de recomposição do indivíduo que se

alternam no vivo em ritmo de continuidade, sempre com o intuito de resolver problemas.

Com isso, nenhuma separação dualista mente/corpo, por exemplo, pode ser vislumbrada. O

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estrutural e o noético são duas instâncias de variabilidade intimamente unidos no ser, dois

momentos da individuação.

Voltando aos pontos comuns entre Simondon e Hume, se a pergunta cartesiana era:

“Como pode algo dar-se a um sujeito?”, a de Hume é outra: “Como se constitui um sujeito

a partir das vinculações que ele estabelece?”. A questão é como se inventa um sujeito em

cada situação que ele experimenta. O eu, que agora deixa de ser uma estabilidade, uma

mônada, torna-se uma produção provisória e singular do tempo. O que é privilegiado nessa

visão não é a generalidade de um indivíduo ou de um sujeito, mas a singularidade plena que

constitui cada ser singular, pois só eu possuo aquela coleção de vivências, o que será a base

individual para novos saltos transformadores. A subjetividade é prática, móvel e nasce de

uma permanente interação entre objeto e sujeito. Simondon e Hume partilham

integralmente desse modo de entender a diferença como um contínuo movimento

afirmativo do ser. É dessa maneira que percebemos um vínculo subentendido, já que não

abertamente pronunciado, entre esses pensadores. Muriel Combès revela o que seria a visão

comum a ambos, usando as próprias palavras do pensador francês: “(...) a relação não pode

jamais ser concebida como relação entre preexistentes, mas como regime recíproco de troca

de informação e de causalidade em um sistema que se individua.” (SIMONDON, apud

COMBÈS, 1999, p. 81). O que acreditamos ser original em Simondon, além do

transcendentalismo assubjetivo de que falamos, e que será um ponto decisivo nesse

trabalho, é que o autor realizará uma transposição do conceito de relação para pensar tipos

de constituição individuais inusitadas, inclusive as que se localizam no âmbito psíquico e

nos vínculos homem/objeto, invenção/ técnica. É importante ressaltar que um objeto

técnico entrará na vasta acepção de indivíduo trazida por nosso pensador. Passaremos a ver

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agora alguns conceitos originais de nosso filósofo que consideramos fundamentais para

uma compreensão do seu humanismo técnico.

O humanismo de Simondon

Após esse panorama histórico e conceitual do encontro entre humanismo e técnica e

dessa breve apresentação da inspiração humeana da idéia de relação em Simondon, é hora

de tentarmos expor a renovadora visão do pensador francês ligada às questões humanistas.

O que se associa classicamente a essas idéias, que procuramos apresentar nos capítulos

anteriores, é um papel central do homem diante do mundo que o envolve. Temos duas

situações: um homem que ou ignora a natureza, como os sofistas, ou se entende como seu

dominador através da instrumentalização, a exemplo de Galileu.

Esse tipo de humanismo (que não abandona um comando humano em relação ao

meio externo, um antropocentrismo, mesmo que velado) ganhará contornos radicais no

individualismo cartesiano, em sua distinção dualista entre um sujeito controlador de um

lado e objetos controlados de outro, uma pura alma (mente) qualitativamente pensante em

uma ponta e uma matéria inerte, despotencializada e desprovida de qualidade na outra.

Sobre isso, com inspiração em Simondon, diz Peter Pál Pelbart: “O humanismo clássico

concedeu um privilégio excessivo ao indivíduo já constituído, em detrimento do processo

de individuação.” (PELBART, apud CADERNOS DE SUBJETIVIDADE, 2003, p. 113). É

nesse sentido que fizemos questão de apontar como o humanismo de Simondon está

vinculado à fonte relacional de Hume, abertamente anti-cartesiana, e não a racionalismos

extremos, verdades eternas e centralidades do sujeito. O ponto-de-vista é operativo, é

interior às circunstâncias que se apresentam. Quando falamos de relação, temos uma

conjugação de elementos, uma perda dos limites da individualidade que não pára de se

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modificar, que traz resultados inesperados e que inviabiliza os equilíbrios estáveis e as

identidades fechadas defendidas pela perspectiva humanista tradicional. Temos simbioses e

não sujeições.

Simondon não só não compartilha dessa visão antropocêntrica, como a considera

escravizadora e finalista. Avaliando criticamente sob esta ótica cartesiana, que imagina uma

natureza como serva da humanidade, ele diz sobre a vinculação entre homem e máquina:

“A máquina é somente um meio; o fim é a conquista da natureza, a domesticação da

natureza: a máquina é uma escrava que serve para fazer novos escravos.” (SIMONDON,

1989, p. 127). Todo dualismo deve ser combatido, particularmente esse que se dá “entre

[o] ato de conhecimento intelectual, abstrato, e [os] objetos inertes sobre os quais se aplica

o ato cognitivo.” (GARELLI, apud SIMONDON, 2005b, p.14). A proposta do autor escapa

a qualquer separação radical entre vivo/bruto, defendida por exemplo pelo vitalismo de

Cuvier, que vai perceber uma qualidade especial aos corpos vivos, um princípio de

vitalidade externo à matéria que explicaria, por exemplo, o “rubor das mulheres diante do

ser amado”. Acontecimentos como esses, considerados inexplicáveis pela simples

constituição físico-química dos corpos, serão base para a fundação da biologia, a partir do

próprio Cuvier, no começo do século XIX. Também não percebemos a visão contrária,

estritamente mecanicista, em nosso autor, pois a pura e simples junção das partes materiais

não fornece o todo daquele indivíduo. O mecanicismo seria incapaz de dar conta da

virtualidade da memória, por exemplo, até mesmo em objetos técnicos. Segundo

Simondon, na criação técnica o que há é uma simbiose, uma troca de energia entre o

homem e suas invenções. Por serem fruto de elaborações humanas, os objetos guardam

uma humanidade escondida. Em contrapartida, um transbordamento vital segue em fluxo

contínuo do homem às suas obras. Ao tratar desse potencial criativo, John Hart fala de uma

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“fonte somática” (claramente não percebendo distinções entre corpo e mente), que ele já

reconhece nos australantropos: “(...) as maravilhosas pedras polidas, que representam para

nós as concepções da humanidade mais antiga, são inicialmente emanações do corpo.”

(HART, apud SIMONDON, 1989, p. XII)

A palavra emanação merece nossa atenção. Remetida originalmente a Plotino, vai

ganhar uma transposição técnica nas palavras de John Hart. Como ligar Plotino e

Simondon? Em função de o primeiro dizer que nós humanos e todos os outros integrantes

da natureza participamos parcialmente do Princípio criador integral, Deus, todos os seres

naturais acabam, pela sua ligação original, indo além de si e também criando. É um

transbordamento criativo divino (uma emanatio) que traz os seres à vida, o que faz com que

algo dessa fonte originária permaneça com cada um deles: “(...) Todos os seres, enquanto

permanecem, produzem necessariamente em torno de si e de sua substância uma realidade

que tende para o exterior e provém de sua atualidade presente (...) algo emana deles e em

torno deles, uma realidade de que usufruem todos os que estão próximos (...)” (PLOTINO,

apud ABBAGNANO, 1998, p. 310). Essa transferência emanadora tem mão dupla: iria do

homem aos objetos criados por ele e vice-versa. Assim seria possível defender a presença

de uma emanação técnica em Simondon, que nos parece a proposta implícita desse

comentador.

Nosso autor dirá que as composições técnicas são feitas de matéria, forma e energia.

Os objetos seriam estruturações de uma energia potencial humana entranhada neles e que

pode e deve ser continuada por outros homens. Isso nos dá a possibilidade de começar a

perceber um contingente de vitalidade e de evolução nas máquinas. Com isso, rejeita-se a

convicção histórica e muito disseminada na filosofia, tanto em sua linhagem mecanicista

quanto vitalista, de que os objetos técnicos são passivos, mortos, estando sempre

- 91 -

completamente inertes e à mercê dos homens. Foi essa condição energética, trazida pelas

conceituações termodinâmicas, que a física antiga e a clássica não conheceram, que vai

ajudar a produzir, como veremos, um novo modo de visualizar o indivíduo em nosso autor.

No humanismo de Simondon, que estamos nomeando de humanismo técnico, não

há qualquer hierarquia entre homens e coisas. Não há atividade e superioridade dos

primeiros e conseqüente passividade e inferioridade dos segundos. O contato, para ser

criativo, deve ser de companheirismo e igualdade. A causalidade é recíproca: os objetos nos

modificam, nós os modificamos. Não há nada que lembre idealismos, isolamentos

egocêntricos. Não há gênios isolados, como ilhas, mas toda invenção técnica, além de ser

coletiva, conta com a historicidade inerente a cada objeto. Cada um pertence a uma família,

possuindo uma linhagem genética, uma genealogia. É nesse sentido que o uso estrito da

expressão “inanimado” perde o seu sentido e podemos atribuir ao autor uma renovação do

fisicalismo. Isso significa que nem todas as elaborações psíquicas e naturais vão poder se

resumir a processos físicos. A física, ou melhor, a física clássica, não poderá ser parâmetro

para todos os acontecimentos na natureza, como foi a pretensão dos lógicos fisicalistas do

Círculo de Viena. A presença da energia e de história humana na produção dos seres dá a

eles um contingente de vida e memória que escapa às meras dimensões geométricas e

materiais. A mera divisão da matéria em partes, que fazia parte da proposta daqueles

lógicos, não dá conta dos acontecimentos, seja na produção de seres vivos, brutos ou

técnicos. Algo de humano e de intangível permanece nas criações humanas. O objeto não se

separa da inventividade presente nele. John Hart afirma que algo de eterno permanece

ligado a cada um deles, extrapolando-se à resposta a uma necessidade útil ou o atendimento

a uma função que se revela como exigência inicial a ser usualmente cobrada de um objeto.

Sobre esse aspecto, nos diz Muriel Combès: “Se bem que inventado (o que o distingue de

- 92 -

um ser vivo), e justamente porque inventado por um vivo capaz de se auto-condicionar, o

ser técnico é dotado de uma certa autonomia.” (COMBÈS, 1999, p. 96). Um humanismo

anômalo, alheio à antropologia, é extraído daí. Sobre isso, a autora francesa continua: “(...)

temos uma proposição de filosofia que poderíamos dizer humanista, mas de um humanismo

que se constrói na ruína da antropologia e sobre a renúncia da idéia de uma natureza ou de

uma essência humana.” (idem, p. 84). Aparentemente de modo paradoxal, teríamos a defesa

de um humanismo sem homem, segundo o qual o problema é como este ser humano pode ir

além de si mesmo, o que ele pode vir a ser em suas alterações vitais, técnicas, mentais e

coletivas. Essa questão não poderia ser mais relevante para o nosso momento presente, já

que a humanidade, através da técnica, está prestes a construir uma outra ou uma pós-

humanidade.

A noção de indivíduo, no contexto simondoniano, será completamente transmutada

em sua raiz etimológica. Originalmente significa indiviso, ou seja, com tendência ao

fechamento sobre si, à não integração com outros corpos. Simondon amplia e reorienta esse

conceito. Indivíduo, para esse autor, pode ser o homem, o protozoário, o cristal, a máquina

ou até uma idéia. Mais que isso: cada um deles permanece individuando-se ao longo de sua

existência. Esse processo contínuo de transmutação do indivíduo será chamado de

individuação, que é, sem dúvida, o conceito solar desse pensador, em relação ao qual todos

os outros são satélites. É também o substrato de toda a sua filosofia, aquilo a que ele se

dedicou a vida inteira. Bergson nos dirá que a compreensão do pensamento de um autor se

dá pela visão simples desse único conceito que é resultado de todo o seu esforço filosófico,

mas diz também que só chegamos lá ao final de um grande esforço.

Esse ponto de concentração, que é devedor de muita complexidade anterior, é

chamado intuição:

- 93 -

“(...) um contato freqüente com o pensamento do mestre pode nos conduzir, por uma impregnação gradual a

um sentimento totalmente diferente (...) na medida em que nós procuramos nos instalar no pensamento do

filósofo no lugar de dar voltas, nós vemos sua doutrina se transfigurar. Inicialmente a complicação diminui.

Depois as partes entram umas nas outras. Enfim, tudo se concentra em um ponto único (...) simples,

infinitamente simples.” (BERGSON, 1993, p. 118-9).

Em outro momento, Bergson define a intuição desse modo: “(...) significa então

inicialmente consciência, mas consciência imediata, visão que a custo se distingue do

objeto visto, conhecimento que é contato e mesmo coincidência.” (idem, p. 27).

Inevitavelmente decorrente dessa idéia de individuação (a “intuição simondoniana”, de

acordo com a conceituação de Bergson), surge uma nova ontologia, ou ontogênese (para

sairmos da idéia de indivíduo aristotélica), para usar uma noção própria ao nosso pensador

e que sugere uma criação continuada, inclusive no plano dos seres técnicos. Presente,

passado e futuro se misturam e unem o que é interior e exterior ao indivíduo, pois a

individuação que envolve o vivo “libera um tempo que condensa o passado no lado de

dentro, faz acontecer o futuro no lado de fora e os confronta no limite do presente vivente.”

(DELEUZE, 1988, p. 127). O título da obra de Simondon - central para a defesa que

queremos nessa tese – “Sobre o modo de existência dos objetos técnicos”, já deixa claro

que o autor percebe aí a presença de uma categoria especial de seres que merece ser

estudada. O papel de excelência para o homem seria o de injetar energia e informação para

liberar, orientar e canalizar a melhor formação possível de mediações técnicas. E a utopia

possível: tornar a vida humana melhor. No estabelecimento dessas adesões singulares entre

homens e máquinas, levando em conta uma postura ética, está o passo decisivo para

pensarmos um humanismo técnico. O momento agora é de examinarmos, com um pouco

- 94 -

mais de atenção, a noção renovada de ser que é anunciada pelo conceito de individuação

defendido por Simondon.

O ser e o ser técnico em Simondon

Mas qual seria, em linhas gerais, a diferença entre os modos ontológico clássico e o

desse autor de compreensão do que seja o Ser? A marca distintiva anterior concentra o

surgimento dos indivíduos em um ponto de partida, prévio ou final, mas sempre eterno, a

exemplo da Forma em Aristóteles ou do Átomo em Epicuro e Lucrécio. O entendimento de

Simondon é que a emergência ontológica se dá de modo genético, relacional e imprevisível.

Além disso, esses dois sistemas de pensamento deixam escapar a questão energética

envolvida na tomada de forma. De acordo com o autor, é preciso abolir todo e qualquer a

priori ou a posteriori e concentrar-se em um a praesenti. É o que separa a existência de um

princípio de individuação, que busca a constituição de uma identidade prévia com causas já

individuadas e de resultados esperados, da operação de individuação, que segue o

imprevisível devir do ser. Os conceitos de devir e ser, classicamente pensados como

separados, estarão juntos na incessante variabilidade de todas as coisas. Para além da

condição atual, portanto, o indivíduo apresenta um potencial virtual de transformação que

também faria parte dele. A união do que ele é e do que pode vir a ser, Simondon chamará

de ser. Uma ontologia apoiada na idéia de substância, de um ponto fixo que dá consistência

às variações (a Forma e o Átomo são exemplos), não fará sentido nessa nova visão. O ser é

transicional, o devir está incorporado ao ser sob a forma de energia. Foi esse acréscimo

energético, que só veio com a física termodinâmica, que propiciou ao nosso filósofo uma

reformulação ontológica completa. É o indivíduo mais as suas individuações que será

chamado de ser.

- 95 -

Na ontogênese, que será a ontologia simondoniana, parte-se dessa mobilidade e a

diferenciação acontece através de e não a partir de. Assim, só podemos falar em

individualidade se ela for compreendida como móvel, pertencente a um processo de

transformação que não pára de acontecer. Para confirmar esse aspecto transitório, diz o

autor: “O indivíduo não é um ser, mas um ato.” (SIMONDON, 1995, p. 189). Essa nova

postura inverte o nivelamento consagrado na filosofia, desde a Grécia, que sempre

considerou o indivíduo constituído maior que a individuação, ou seja, privilegia o

andamento em moto continuo de auto-composição e não o fim ou início desse processo.

Para indicar explicitamente sua proposta de renovação, Simondon afirma logo nas

primeiras páginas de sua obra inaugural, O indivíduo e sua gênese físico-biológica, que é

preciso “conhecer o indivíduo pela individuação e não a individuação a partir do

indivíduo.” (SIMONDON, 2005b, p. 14).

Ao falarmos de individuação, é preciso ter como ponto de vista o interior de uma

operação, um estado ricamente potencializado no qual as variações estão acontecendo, não

havendo limites individuais completamente determinados nem resultados que possam ser

antecipados. Isso quer dizer que novos indivíduos estão sendo produzidos no mesmo

indivíduo. Este é apenas um momento da individuação, o que Simondon chamará de “fase”.

Quanto a essa produção temporal em fluxo, Levinás teria uma bela fórmula: “O tempo é o

não-definitivo do definitivo.” (LEVINÁS, apud MICOUD in ROUX, 2002, p. 192). A

perspectiva é de fusão de realidades díspares, de associações. O que não se esperava que

pudesse estar unido, acaba por estar. É essa junção heterogênea, tensa e harmônica ao

mesmo tempo, que entendemos como relação. Um ato perceptivo seria um exemplo: o que

vê o olho esquerdo se une diferencialmente ao que vê o direito e o resultado surpreendente

é a percepção. Atingir a Forma não é, então, anular as tensões, como diria Aristóteles, mas

- 96 -

torná-las provisoriamente compatíveis. Os indivíduos seriam resultados parciais provisórios

que guardam consigo uma reserva energética potencial que lhes proporciona uma

multiplicidade de individuações futuras.

No âmbito da individuação técnica, no qual os objetos também serão entendidos

como seres, o autor tem uma proposta clara: sua intenção é reincorporar os objetos à

dimensão a que eles pertenceriam originalmente em sua escala histórica. Daí a necessidade

de educação, que virá da aquisição de uma cultura técnica, segundo a qual existirão homens

que compreendam claramente o sentido evolutivo das criações técnicas. Esse é o homem

que será chamado de técnico, contrariando a noção comum atual de técnico, como

indivíduo de aprendizado apenas empírico e de atuação única e exclusiva no campo prático.

Em Simondon, essa figura vai se remeter diretamente ao significado primeiro da palavra

engenheiro, o que nos faz lembrar os precursores da união entre a matemática e o mundo

físico, a matemática aplicada: Arquimedes e Galileu. Sua área de atuação necessita de uma

nova área de estudos, que terá o papel de dar sentido ao uso, entender a interioridade dos

sistemas de funcionamento e refletir cientificamente sobre as máquinas e as operações

técnicas, a mecanologia. Sobre a definição precisa dessa ciência aos olhos de Simondon,

diz Bernard Stiegler: “(...) a matéria que funciona não é objeto da física, mas da

mecanologia, uma ciência que estuda os processos evolutivos dos objetos técnicos

industriais.” (STIEGLER, apud SCHEPS, 1996, p. 74). Ciência e técnica não se separam,

mas se complementam. A primeira entraria com a parte diretamente ligada à produção

teórica de conceitos e a segunda com toda a parte prática, experimental, de produção de

objetos. Vistas em geral como separadas, quando não como inimigas, terão aqui um

momento privilegiado de união. O técnico inclusive tem a capacidade de reunir os dois

- 97 -

mundos. Posteriormente tocaremos de modo mais detido nessa relação ciência/técnica e

definiremos de modo mais nítido a figura do técnico.

A originalidade de Simondon se destaca, antes de tudo, pela sua perspectiva neutra,

nem otimista nem pessimista em relação às elaborações técnicas. O resultado, positivo ou

negativo, dependeria da condução humana. Isso é um forte avanço, pois a história da

filosofia é plena de preconceitos contra as produções materiais, a começar por Platão e

incluindo as orientações de pensamento ditas humanistas (estamos nos remetendo em

particular ao humanismo cristão). Essa postura tem reflexos contemporâneos. Quando

vemos em indústrias a permanência da divisão entre planejadores e operários temos a

atualização desse preconceito. O que está por trás disso é o princípio de que quem idealiza

não produz e vice-versa. Em Simondon, existe a possibilidade aberta de um vínculo mais

harmônico entre a humanidade e os avanços da técnica associada à ciência, uma reflexão

que se revela absolutamente urgente em uma realidade de avanços técnicos velozes e

assustadores dos tempos que vivemos. Um aspecto muito interessante na abordagem de

Simondon é que as noções de indivíduo e individuação são pensadas para além da fronteira

do vivo, alcançando também o mundo físico, técnico, social e mental.

Diferentes níveis de individuação

Ao falar de indivíduo ou individuação,podemos ter a falsa impressão inicial de que

nosso autor está produzindo uma antropologia ou uma tese biológica. Isso é desmentido em

vários momentos. O conceito de individuação atingirá diferentes domínios, como a matéria

dita bruta, a vida, a sociedade, a percepção e os objetos técnicos, alcançando

respectivamente diferentes regimes: o físico, o biológico, o coletivo, o psíquico e o técnico.

Por fim, remetendo-se à própria filosofia e ao seu movimento criativo permanente, o autor

- 98 -

posiciona o campo de idéias como mais uma das modalidades da individuação. Como o

pré-individual é uma fonte ilimitada, todos os processos criativos são individuantes. Toda a

natureza se integra: “(...) ele [Simondon] admite que todos os passos evolutivos, desde a

materialização de elétrons até a invenção tecnocientífica, passando pela aparição da vida

sobre a terra, as etapas do desenvolvimento humano embrionário no seio maternal, os da

aprendizagem de andar pela criança e a operação cognitiva pela qual o filósofo extrai o

processo individuante são passos „individuantes‟(...)” (LARGEAULT, apud CHATELÊT,

1994, p. 38). Os problemas que não são resolvidos em um âmbito são repassados para

outro. Seria, por exemplo, uma incompletude biológica, uma impossibilidade do organismo

de resolver toda a nossa conjuntura problemática, que levaria à experiência mental e

técnica. Em Simondon, um livro ou uma faca são compreendidos como indivíduos em

regime de devir. Um aspecto curioso é que, apesar de recusar uma centralidade humana,

acreditamos que seja possível falar de uma perspectiva humanista em sua filosofia. A

renovação da ontologia levaria a uma renovação do próprio humanismo. É preciso dizer

que acreditamos integralmente na hipótese - ponto de partida dessa tese de doutoramento -

de que é possível ser humanista sem ser antropocêntrico e percebemos isso nas reflexões de

Simondon.

Ele vai promover uma completa reformulação da conceituação tradicional de

humanismo, que vem da pólis dos sofistas e passa pela Revolução Científica e pelo

Iluminismo, atribuindo ao homem a condição de protagonista diante do mundo que o

envolve. Temos nesses períodos históricos um homem que se coloca como dominador da

natureza a partir das suas produções instrumentais. Isso significa que, de um lado, está o

homem e, de outro, separado dele, o ambiente que o rodeia e o qual ele deve dominar. Se a

primeira forte manifestação desse posicionamento filosófico é grega e ligada à linguagem,

- 99 -

em um período que alcança os séculos VI e V a.C., o ápice desse processo será atingido nos

séculos XVII e XVIII. Ao contrário de todos esses outros posicionamentos anteriores, o que

temos em Simondon é um outro humanismo. É essa alteridade que será a tese geral que

procuraremos defender no restante desse trabalho.

No decorrer das próximas páginas nos concentraremos especificamente sob a vereda

que parte do biológico e segue ao técnico, esse último nosso foco decisivo. Em nome de

uma seqüência que acreditamos lógica, começaremos a definir a individuação biológica e,

depois, trataremos, de modo mais alongado, da individuação técnica. Na verdade, não é um

bom caminho nos isolarmos nos problemas técnicos e nos esquivarmos dos outros modos

de individuação, pois não há nenhuma separação definitiva entre eles. Ao contrário, um

modelo de individuação passa a atuar no limite atingido pelo estágio anterior. É o que

Simondon nomeará como mudança de fase por saturação. Alterações não vêm de

incapacidades, como diria Aristóteles, mas de amplificações em efeito cascata. Quando não

se dão em um campo, partem para outro onde haja menos rigidez. O que existe, portanto,

são diferentes níveis de individuação, cada um com a sua singularidade própria. E se os

indivíduos podem ter mais ou menos capacidade de seguir se individuando, temos que

pensar que existe aquilo que Simondon nomeia de pré-individual pleno, sem fases, que

abastece e distribui esses contingentes energéticos individualmente, o pré-individual

menor, de cada indivíduo.

É nessa via contínua e ramificada que tentaremos não nos perder a seguir. Tal como

fizemos em capítulo anterior com Galileu, o contraponto nesse momento, pelo menos ao

início, também será a filosofia de Aristóteles, que aparentemente se apresenta como

passagem obrigatória de debate e território de conflito em relação a toda renovação

empreendida pelo pensamento moderno e, em certas passagens, até mesmo contemporâneo.

- 100 -

O debate com Aristóteles não é algo colocado de modo subliminar em sua obra. Ele abre

seu livro L´individu et sa genèse physico-biologique, que seria uma primeira parte de sua

tese de doutoramento, com uma crítica direta à visão aristotélica sobre o indivíduo e a

individuação.

Na reformulação do conceito empreendida pelo filósofo francês, temos consciência

clara da contraposição que foi feita também ao atomismo grego, naquilo que nele se

assemelha ao hilemorfismo aristotélico, ou seja, a pressuposição de que haja uma causa

primeira e de que o indivíduo seja algo pré-definido de antemão. É comum a ambas

ontologias perderem o processo e permanecerem com os extremos. Em nosso

desenvolvimento, preferimos, por estratégia prévia e arbitrária, em vista de uma maior

coerência com o restante do trabalho, nos concentrar na crítica à conceituação aristotélica.

Nossa hipótese inicial é que está nesse novo entendimento da relação

indivíduo/individuação a chave para a reformulação do humanismo que acreditamos

constituir-se como um dos grandes momentos criativos da filosofia do século XX.

Crítica ao princípio de individuação aristotélico

A individuação, tal como foi pensada por Aristóteles, sempre produziu uma aliança

que se revela ao mesmo tempo como profunda divergência. Todo indivíduo, vivo ou não, é

um composto de forma e matéria, com permanente predomínio da primeira sobre a

segunda. O indivíduo, resultado do processo de individuação, é uma união, mas de

componentes qualitativa e hierarquicamente diferenciados. A matéria está ali com uma

função determinada e menor: adaptar-se a estruturas prévias. O comando do processo, a

parte disciplinadora, cabe ao aspecto formal, que se define como a estabilidade eterna do

que é. Se chamamos cavalo por esse nome, é porque há uma característica comum que une

- 101 -

todos os cavalos e que nunca vai se alterar. O que temos então são moldes imateriais,

perenes e perfeitos, aos quais uma certa porção de matéria simplesmente se adequa.

Isso significa que a organização e a regularidade da natureza, cujo desvelamento é o

que se denomina como ciência até hoje, dependem, portanto, única e exclusivamente, do

conhecimento referente à forma. É ela que ao mesmo tempo é inerente a cada indivíduo e

também comum a todos aqueles que pertencem ao mesmo gênero. À matéria está destinado

o mero papel de serviçal. É essa hierarquia dualista que propicia uma racionalidade, uma

coerência intrínseca à chamada ordem natural, que faz com que, por exemplo, de

jabuticabeiras nasçam jabuticabas e não caquis ou mangas. A forma é entendida assim

como princípio de individuação, algo anterior e determinante na constituição dos

indivíduos. É ela que produz um isolamento das individualidades, faz com que elas sejam o

que são e que resistam ao que não são. Essa visão aristotélica trouxe a idéia de que as

espécies (formas) biológicas são imutáveis. Para termos noção da força descomunal dessa

idéia, temos que recordar que foi apenas no século XIX, com muito tormento e polêmica no

nível mental e social, que Wallace e Darwin colocaram uma espontaneidade mutante na

natureza, aparecendo assim a possibilidade do surgimento de novas espécies que, aliás, não

deixam também de ser formas, apesar de, agora, mutáveis. Por um certo viés, o pensamento

biológico continua aristotélico.

A condição inferior da matéria para Aristóteles é determinada pela sua condição

variante, sendo a variação, portanto, sinônimo de imperfeição. Quando um indivíduo nasce

sem um braço, essa é uma deficiência que só pode ser advinda da materialidade, pois a sede

do erro só pode ser encontrada nela, ou seja, em uma inevitável inconstância ligada à

transformação que se processa nessa dimensão superficial. O que está sendo dito aí é que

tudo o que está em movimento, ocupa uma condição antinatural, um estado violento, como

- 102 -

diria o pensador macedônio. Lembremos que mudança tem um sentido de corrupção em sua

ontologia. Além disso, do ponto de vista aristotélico, a individuação é um processo de

mudança que só tem sentido se conduzir a um fim orientado, pré-programado e superior: o

indivíduo pleno, a forma realizada. Como pensador finalista, irá fazer dessa individualidade

o objeto definitivo e pleno da individuação. Assim, para ele, o indivíduo, entendido como

ponto fixo de chegada, é maior que a individuação. Se a ordem natural das coisas for

realizada, o que é potência, que tem no aristotelismo um sentido de potencialidade (a

condição latente de um potro virar um cavalo no futuro, por exemplo), irá se realizar em ato

(o cavalo adulto no presente). Em Aristóteles, está definido pela natureza que aquilo que

está em movimento (individuando-se) esteja encaminhando-se naturalmente para a situação

de repouso (individualidade plena). As variações que temos, após esse último estágio ser

atingindo, o que equivale à tomada de forma, é o desgaste que conduz à extinção da

matéria, à morte.

Simondon foge a essa dicotomia hierarquizada de Aristóteles. Aliás, toda e qualquer

forma de hierarquia perderá o sentido em sua proposta filosófica. Sua idéia de individuação

passa por uma interdependência entre indivíduo e meio. O que está fora interage com o que

está dentro e vice-versa em regime permanente, não havendo qualquer orientação ou

objetivação planejada antecipadamente nas mudanças que um indivíduo vivo experimenta

ao longo de sua existência. Com essa nova perspectiva desaparece de uma só vez qualquer

tipo de domínio, termo elementar anterior ou condição de possibilidade que oriente ou

determine o processo: “Nesse sentido, a operação de individuação é contemporânea do

indivíduo que funda, ela é, por assim dizer, o ser do indivíduo.” (FONSECA, 2003, p. 43).

Privilegiando o movimento e a diferenciação, Simondon substituirá o princípio de

individuação pela operação de individuação. Aliás, o que está sendo questionado é se a

- 103 -

individuação tem um princípio. Fica estabelecida, portanto, a distinção entre um

pensamento processual, no qual a mobilidade vale por si, e um pensamento essencialista,

em que o movimento é sempre servo de pontos rígidos. O ser em Simondon é muito mais

que o indivíduo. Não teremos mais em Simondon o ser enquanto um, fechado em si,

igualando-se à individualidade, como afirmaria a ontologia tradicional, mas o que ele

chamará de ser enquanto ser, que é o ser somando-se a tudo que foi e ao que pode vir a ser,

ou seja, em regime de devir. O que ele conceituará como ser é uma combinação do par

indivíduo/meio. Os problemas que o meio oferece, somado ao que próprio indivíduo pode

vir a ser, promovem as contínuas individuações. A riqueza do ser combina estrutura

individual e operação individuante, implicando que “as estruturas devem ser conhecidas

pelas operações que as dinamizam e não o inverso” (COMBÈS, 1999, p. 22). Voltamos ao

conceito relacional, em que se pensa “o ser através da multiplicidade de relações onde ele

se individua.” (idem, p. 22).

Como todas as dicotomias serão extintas (o que faz Simondon desacreditar da

validade do raciocínio de oposição entre pares motivado pela dialética), ser, nessa

perspectiva, inclui o devir. Aliás, a associação conflitante entre ser e devir, base da

ontologia tradicional, só é válida se o ponto de partida for uma doutrina que privilegie o

modelo fixo, a exemplo da forma aristotélica. Variação e permanência não se distinguem.

Diante dessa visão, o indivíduo não é alguma coisa de modo definitivo, ele está sendo. Não

há, como na tradição aristotélica, fragilidade no entendimento da mudança, mas pelo

contrário, um fortalecimento, uma condição mesma de seguir existindo. A todo tempo,

seres vivos recebem e fornecem informações (para nosso pensador forma é informação) e a

mensagem recebida mantém sempre um caráter heterogêneo em relação àquela que sai.

Simondon incorpora nessa idéia certas teorias ligadas à cibernética, que não traçam linhas

- 104 -

de separação entre homens e máquinas ou homens entre si. Tais teorias não colocam o

receptor dos dados como algo passivo. Abordaremos essas noções informacionais com mais

cuidado posteriormente. Por enquanto, podemos dizer que essa absorção informativa faz as

formas perderem seus contornos estanques e ganharem fluidez nos vínculos com os outros

seres e consigo mesmos. O indivíduo é realidade relativa, não é o todo do ser, mas apenas

um dos seus momentos, na medida em que este último continua atualizando, ao longo da

existência, suas potencialidades. Simondon resume a união ser/devir: “(...) é possível supor

que o devir é uma dimensão do ser, que corresponde a uma capacidade que o ser tem de se

defasar em relação a si mesmo, de se resolver defasando-se.” (SIMONDON, 2005, p. 25).

Sem uma finalidade determinada, a individuação perpetua-se.

No vivo, sempre é possível uma realimentação do sistema, aquilo que ficou

conhecido como feedback. Agora, diferentemente de Aristóteles, eles se compõem de modo

constante enquanto há vida. Isso mais uma vez se esclarece quando pensamos que

simultaneamente o indivíduo cria o meio e o meio cria o indivíduo. É o que pode ser

chamado de individuar-se. Temos uma união micro-macro, como no exemplo da

fotossíntese, quando o nível infra-molecular do vegetal entra em contato direto com o

macrocósmico do Sol. Essa substituição conceitual também resume o igualitarismo que é

pensado para as partes envolvidas no processo. Fica claro que não há um determinismo do

dentro sobre o fora, nem o contrário. Forma e matéria também não estão mais

desvinculadas, não havendo, portanto, a histórica vinculação de senhora de um lado e a

escrava do outro. Ambas estão simultaneamente em presença, em choque. Estrutura e

operação são pensadas como simultâneas e não há uma sem a outra. Não haverá privilégio

do começo ou do fim, mas da transitividade da mediação, do constituir-se, do fazer-se. A

noção ampliada de ser leva também à necessidade de revisões de conceitos como sujeito e

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objeto. No humanismo de Simondon, diferentemente do humanismo tradicional que vimos

anteriormente, não temos a atividade e preponderância do primeiro face à inferioridade

passiva do segundo. Sujeitos constituem-se, sujeitos constituem objetos e objetos

constituem sujeitos.

Nem estável, nem instável

Uma relação tensa é mantida em caráter integral todo o tempo, sendo a mudança

incessante a crise que, em caráter paradoxal, garante a estabilidade dos indivíduos. Ou

melhor, a metaestabilidade. Esse conceito, que Simondon traz, entre outros, da física

termodinâmica, merece algumas palavras. Um processo metaestável de mudança acontece

longe da condição de equilíbrio e do alcance de qualquer estabilidade definitiva, o que não

quer dizer que se caia integralmente na instabilidade. Mais uma vez um não é dito aos

dualismos. Não é mudar ou manter, pensados separadamente e em oposição, mas mudar

para se manter. Haverá equilíbrio, mas na alteração. Em vez de homogeneidade, o

indivíduo mantém uma carga de incompatibilidade no que se refere a si mesmo. Uma

condição tensa é essencial à vida. Se ele não possui incompatibilidades internas está morto.

Isso levará Muriel Combès a dizer que toda individualidade vai além de si, é “mais que

um”, mais que a unidade e mais que a identidade. O indivíduo está sempre sendo colocado

em situações que o desafiam e o superam.

É esse panorama crítico que faz com que as existências sejam algo em permanente

construção. As individuações existem na tentativa de resolução de problemas que seguem

acontecendo enquanto o indivíduo existe. Essas variações permanentes acontecem por que

há mais, sobresaturação ou sobrefusão nas palavras de Simondon, nunca menos. Em uma

postura filosófica como essa, jamais um movimento de mudança poderia ser explicado por

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falta ou imperfeição. Essa negatividade da variação é percebida, como vimos, na tradição

aristotélica, entretanto, mesmo que de modo sutil, ela também está presente na noção de

adaptação darwinista, em que temos a alteração como uma situação intermediária que

acontece entre uma identidade e outra, ou seja, ainda são os pontos fixos que interessam.

Darwin chega a falar de sub-espécie, algo entendido como inferior à espécie constituída,

para demonstrar o aspecto menor da mutação. Mesmo defendendo, ao contrário de

Aristóteles, que as formas (espécies) variam ao longo do tempo, a noção adaptativa busca,

como um objetivo, a chegada a uma estabilidade, a acomodação a uma exterioridade.

Além disso, essa perspectiva não dá relevância aos atos criativos implícitos nas

resoluções de problemas. As variações são casuais, pois indivíduo e meio estão separados.

Essa situação apresenta dois caminhos para os seres vivos: ou acontece adequação a um

contexto dado ou resta a extinção. Essa passividade adaptativa do indivíduo não existe na

filosofia de Simondon: “(...) o organismo vivo, longe de ser o produto ou joguete da

evolução, é o agente.” (LARGEAULT, apud CHATELÊT, 1994, p. 40). O próprio autor se

manifesta quanto a isso, mais uma vez partindo do princípio relacional: “A noção de

adaptação é mal formada para o vivo, na medida em que ela supõe a existência de termos

como precedendo a relação.” (SIMONDON, 2005b, p. 212). A característica que marca o

ser vivo é sua capacidade de participar da própria evolução, de colaborar na invenção de

estruturas novas para si. É sujeito e objeto das suas individuações. A questão da dicotomia

estabilidade/instabilidade, método típico do pensamento dialético, que envolve termos

separados em choque, é que essa divisão sempre leva em conta uma cessação de processos

e um isolamento de termos. Seria como querer optar por um devir sem ser ou por um ser

sem devir. É querer Dioniso sem Apolo ou Apolo sem Dioniso, para indicarmos o ponto

central da problematização trazida por Nietzsche para a composição da obra de arte entre os

- 107 -

gregos em O nascimento da tragédia. O que há é uma crise que é inerente ao processo

(interna e não externa) e que gera harmonia entre os princípios de manutenção e variação.

Eles agem simultaneamente. :

“(...) o contínuo desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco, da mesma

maneira como a procriação depende da dualidade entre os sexos, em que a luta é incessante e onde intervêm

periódicas reconciliações (...) ambos os impulsos tão diversos, tão diversos, caminham lado a lado, na maioria

das vezes em discórdia aberta e incitando-se muitas vezes a produções sempre novas (...) através de um

miraculoso ato metafísico da „vontade‟ helênica apareceram emparelhados um com o outro, e nesse

emparelhamento tanto a obra de arte dionisíaca quanto a apolínea geraram a tragédia ática.” (NIETZSCHE,

2003, p. 27).

O estável em caráter integral (escolha unilateral pelo ser em sentido clássico)

eliminaria a possibilidade de mudança, não permitindo a entrada de qualquer informação

nova e a total instabilidade (escolha unilateral pelo devir) não permitiria a existência de

nenhuma configuração durável. Toda escolha radical de qualquer um dos lados seria

ilusória e não acompanharia os movimentos próprios da existência. Daí vem a opção pela

metaestabilidade, que promove a convivência do indivíduo com o pré-individual que

também o compõe. O que ele é e o que ele vai ser se misturam. Um exemplo simples e

cotidiano que inviabilizaria de uma vez os dois extremos é o de uma ponte de concreto

(uma ponte também é um indivíduo para Simondon), que para se preservar inteira exige

uma maleabilidade de movimento de acordo com a intensidade dos ventos e de expansão e

contração estrutural, proporcionalmente ao calor ou ao frio. Ela deve ser sólida, mas não

pode ser rígida. Sem essas versatilidades de razoável mobilidade (o que à primeira vista nos

impressiona já que estamos acostumados a perceber esses objetos como absolutamente

- 108 -

sólidos e compactos), a ponte simplesmente se quebraria. Isso significa que até o que

consideramos mais fixo e imóvel precisa, para se manter, atualizar potencialidades, mesmo

que mínimas, de alteração de acordo com desafios (problemas) que são colocados pelo

ambiente externo. Há, até mesmo nesse caso, um devir, muito aprisionado, mas presente.

Esse exemplo entraria no que Simondon classifica como individuação física. Podemos

dizer que, para esse tipo de ser, com potencial mínimo de variabilidade, onde as

circunstâncias de alteração são meros encaixes diante de desafios colocados externamente,

a idéia de adaptação se adequa muito bem.

Se isso vale para a rigidez do concreto, o que não será a metaestabilidade para nós,

criaturas de característica eminentemente plástica, com poder de auto-produção

(autopoiesis) e suscetíveis a recriações de caráter recorrente? Os indivíduos estão colocados

em um frágil equilíbrio a meio caminho entre o estável e o instável: “O indivíduo seria

pensado, portanto, como um sistema em equilíbrio instável, ou seja, um regime capaz de

ganhar novas configurações sem contudo se desfazer, um sistema onde novas formas

emergem e, no entanto, pela própria instabilidade do sistema essas mesmas formas podem

dar lugar a outras.” (FONSECA, 2003, p. 43). Saímos assim da idéia consagrada

milenarmente na filosofia do Ser substancial, que aponta diretamente para um imobilismo.

Essa ânsia de repouso, que se iniciou entre os eleatas pré-socráticos, e que ainda hoje nos

ronda todo o tempo, teria seu paradigma absoluto e próximo a nós na moral cristã, mais

especificamente na plenitude imóvel representada por Deus. Se a vida for pensada como

mobilidade positiva e criadora, podemos ver nessa prática religiosa - a partir das reflexões

demolidoras de Nietzsche - um culto à morte: “O cristianismo foi desde o início, essencial e

basicamente, asco e fastio da vida na vida, que apenas se disfarçava, apenas se ocultava,

apenas se enfeitava sob a crença em „outra‟ e „melhor‟ vida. O ódio ao „mundo‟, a maldição

- 109 -

dos afetos, o medo à beleza e à sensualidade, um lado-de-lá inventado para difamar melhor

o lado-de-cá, no fundo um anseio pelo nada, pelo fim, pelo repouso (...)”(NIETZSCHE,

2003, p. 19).

Pode-se argumentar que não vivemos mais exclusivamente essa realidade que

privilegia a imobilidade. Há uma outra tendência que ocupa o pólo oposto, dando forte

ênfase ao materialismo e à velocidade. O que passa a ser valorizado nesse regime de idéias

é a mobilidade desregrada e sem limites. Se antes o modelo único era ser sem devir (Deus),

agora também teríamos devir sem ser (homem permanentemente ansioso). O estímulo é a

velocidades cada vez mais intensas que não deixariam nada se manter, como se a profecia

de Marx de que tudo que é sólido se desmancha no ar pudesse se concretizar em toda e

qualquer situação. Isso também seria claramente perceptível no aspecto simbolicamente

positivo - promovido pela publicidade e pelo marketing - que ganha qualquer novidade,

seja no consumo de produtos, seja nas relações sociais. O novo passa a ser pensado como

benéfico apenas pelo fato de deter uma diferença qualquer, independentemente da sua

relevância.

Essa outra ponta extrema está ligada a uma expectativa social, a um modismo, pois

existe um culto contemporâneo (iniciado sem dúvida pelo pensamento moderno) à

agilidade e à juventude, pois permanecer tornou-se equivalente a envelhecer, o que nessa

perspectiva contemporânea teria o sentido de decair, seguir para a morte. Se antes, com a

idéia clássica de Ser (que mostrou claramente sua força até a virada do século XVIII para o

XIX), teríamos uma celebração à eternidade, viveríamos agora a religião do novo, do risco

e das emoções fortes, cujo mito indica que devemos começar sempre tudo do zero. Apaga-

se a memória e enterra-se todo e qualquer passado. O que acontece é que os dois

radicalismos se apresentam a nós, nenhum deles conseguindo, segundo Simondon, explicar

- 110 -

as transmutações. Isso nos leva a pensar que um ser fechado ou absolutamente aberto (onde

nem seria possível a qualquer individualidade se compor) são termos pontos opostos de

uma mesma ilusão. Sem os dois princípios, o ser e o devir fundindo-se, atuando

conjuntamente, não podemos explicar as transformações individuais reais: “(...) seja um

substancialismo absoluto, seja um dinamismo absoluto não deixa lugar à relação no interior

do ser individual.” (SIMONDON, apud LARGEAULT in CHATELÊT, 1994, p. 31).

O ser, no espectro da ontogênese, será metaestável e repensado em devir, como

transdutivo, que é “o modo de unidade do ser através (...) de suas múltiplas individuações”.

(COMBÈS, 1999, p. 15). Ele não é mais visto como “uma unidade de identidade que é a do

estado estável no qual nenhuma transformação é possível; o ser possui uma unidade

transdutiva”. (SIMONDON, 1995, p. 29). Não teremos que optar pela indução ou dedução

(a transdução é uma recusa de ambas e a afirmação de uma terceira via), pelo empirismo ou

racionalismo, mas nos posicionaremos no espaço intermediário. Na atividade transdutiva,

em ritmo de propagação, cada estrutura criada serve de princípio de constituição para a

região seguinte. Podemos perceber isso em uma individuação mental, quando uma

invenção serve de base para a outra. As alterações, portanto, são descontínuas, o devir

manifestando-se em saltos. O ser é um “nó comunicativo” que abriga tendências opostas,

sendo uma mediação entre um mundo cósmico, maior que ele, e seus próprios componentes

moleculares, menores que ele. É nesse sentido que ele é mais e menos que a unidade. Esse

reposicionamento conceitual elaborado por Simondon seria necessário devido à falência de

um sistema de pensamento que enfatiza a importância da estabilidade. Em nossa realidade

física, de paradigma energético, esse requisito não é mais decisivo. Com isso, o modo

tradicional de refletir sobre os problemas ontológicos não dá mais conta do real que se

- 111 -

apresenta aos nossos olhos. A lógica, por exemplo, que só trabalha com seres individuados,

não serve de parâmetro às reflexões de Simondon.

Podemos acrescentar que hoje, a impossibilidade de defender um essencialismo dos

seres radicaliza-se quando pensamos nas transformações possíveis que os avanços da

ciência podem proporcionar, no aspecto de interferência genética, em relação à própria

idéia de humanidade. Exemplos díspares que nos vêm à cabeça e que mostram essas

assustadoras capacidades são a clonagem animal, a seleção sexual de descendentes e a

recriação de órgãos em laboratório. Parece que o último bastião possível para justificar um

substancialismo (formas isoladas em sua própria imutabilidade) cai quando passa a existir

uma efetiva manipulação no nível do gene. Mas o outro lado, que defende um princípio de

mudança, no qual nada se mantém, também é ilusório. É uma fachada que atende a

expectativas sociais. Inclusive no próprio raciocínio biológico, percebemos várias e

intensas ligações com os parâmetros aristotélicos de pensamento. Para permanecermos com

um item, fiquemos com a idéia de que uma condição de repouso atingida é sempre a

finalidade de qualquer mobilidade anterior. Aristóteles não foi o inventor do privilégio do

estável sobre o móvel, mas o principal disseminador dessa idéia no interior do campo

científico. Essa idéia avançou por toda a Idade Média, perseverou em grande parte do

raciocínio científico moderno e apresenta um grande número de cultuadores ainda em

nossos dias. Isso faz do pensador macedônio, senão o maior, um dos grandes arquitetos do

pensamento ocidental e de um modelo de ciência que ainda hoje está muito presente.

Precisamos lembrar a importância ainda vigente das noções aristotélicas de gênero e

espécie no pensamento biológico, mesmo com todas as mudanças recentes acontecidas

nessa área desde Darwin e Mendel.

- 112 -

É paradoxal que, apesar dos modismos ligados à mobilidade em nossos dias,

continuemos a pensar aristotelicamente mesmo ser ter lido uma linha da sua obra. Suas

idéias chegam a nós como ondas invisíveis que a cultura transporta. A herança está

concentrada na idéia de que para tudo que se movimenta é preciso que exista algo fixo que

sustente esse movimento. A tese vale para todo o conjunto da obra aristotélica e para os

seus dualismos: forma/matéria, ato/potência, necessidade/ contingência, sendo os primeiros

elementos fixos a condição para a existência dos segundos, móveis. A imagem imediata

que nos chega é a do pêndulo, onde temos claramente um apoio imóvel guiando e

direcionando as ações. A questão é que a filosofia aristotélica tinha a exigência de uma

imobilidade definitiva. É assim que chegamos à idéia de Deus em Aristóteles, conceito

também nomeado de Motor Imóvel. É Ele o repouso definitivo que equilibra o mundo,

dirige os movimentos naturais e propicia todas as realizações, fazendo a passagem das

potencialidades a atos. Não esqueçamos que, para o filósofo, movimento é sinônimo de

imperfeição. Sendo Finalidade Absoluta, direção de todas as mudanças, tudo tende a Ele,

mas nada o alcança. Por analogia, a imagem que se pode ter é a de um ímã de proporções

cósmicas, um atrator universal, um pêndulo dos pêndulos.

Os eventos acontecem sem qualquer intervenção direta Dele no processo de

mudança e movimento. Não há necessidade, pois Ele é um inspirador, à maneira de um

puro conceito, desprovido de atividade, desejos e vontades. O próprio uso da expressão

“Ele” é problemática, já que não há nem sombra de personalismo na idéia aristotélica de

Deus. Sendo perfeito, não tem nada a realizar, não precisando querer algo exterior a si

mesmo, o que implicaria já um deslocamento. Inclusive, é essa sua condição de completa

impassibilidade que proporciona a movimentação alheia, pois, para os gregos que seguem a

via parmenídica de pensamento (Aristóteles se inclui aí), a imobilidade é prerrogativa

- 113 -

necessária para a perfeição. A supremacia da ação sobre a passividade é própria da reflexão

filosófica a partir da modernidade. Com as devidas exceções, na Antiguidade grega ou na

Idade Média, acontecia o inverso. Para darmos um exemplo, qualquer filhote só chega à

idade adulta um dia em função dessa atração que faz a imperfeição se aproximar da

perfeição - que é Deus - sem jamais atingi-la. O ser chega apenas a esse repouso relativo,

que é a forma realizada, em que o animal adulto mantém, por um certo período (nossa parte

material se desgasta e nos leva à morte), a sua plenitude vital. Essa é a seqüência da ordem

natural.

Individuação biológica em Simondon

Em Simondon, ao contrário, não há paralisação de movimentos. É isso que faz, de

acordo com o autor, a rigidez da condição estável ser fruto de uma visão pouco

aprofundada do problema. O repouso, nessa visão, seria condição ilusória, fabricada por

uma certa percepção humana. Seguindo a mesma rota, Whitehead diz que o indivíduo é

uma “concreção efêmera”, uma mônada fluida, ou seja, um “ser transicional” enquanto está

vivo. Na medida em que é “expressão momentânea da criatividade do mundo” e,

completaríamos, de si mesmo, só chegaria à estabilidade ao morrer. Simondon partilha

dessa idéia: “Só a morte seria a resolução de todos os problemas; e a morte não é solução

de nenhum problema.” (LARGEAULT, apud CHATELÊT, 1994, p. 27). O filósofo francês

vê essa morte como falência energética. Encerra-se em certo momento a capacidade de

continuar realizando potenciais, à maneira de indivíduos físicos que já não possuem mais

nenhuma alteração construtiva quando interagem com a realidade exterior. O tijolo que

ganha a condição sólida (e definitiva) é um exemplo de sistema morto que, a partir desse

instante, sofrerá apenas ações de desgaste com a passagem do tempo. Podemos pensar que

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a noção de adaptação, como simples adequação passiva do indivíduo às determinações

exteriores, sejam próprias desse estado que os corpos físicos ou os ex-vivos experimentam.

Em outras palavras, só o equilíbrio estável é adaptativo.

Quanto ao vivo, se pensarmos que cada ação sua é uma tentativa de descobrir

compatibilidades, a resolução, sempre parcial, dos problemas não cessa de acontecer

enquanto há vida. O indivíduo, portanto, é pensado em equilíbrio metaestável e só consegue

manter-se ao preço de individuações sucessivas, onde a solução de um problema leva ao

enfrentamento de outro. Mas como explicar então o fim inexorável, mesmo com essa

possibilidade de reversão da morte e da entropia? Temos que pensar que a manutenção vital

tem seu preço. E também lembrar que o pré-individual em cada ser vivo é limitado, e a

morte, em um prazo mais ou menos longo, é conseqüência inevitável. Viver é lutar contra

forças que querem nos desintegrar. Mas o nosso sucesso nessa luta gera resíduos

(Simondon nomeia de escória) em sucessão, não-absorvíveis pelo organismo, que podemos

chamar de tóxicos. A própria diferença entre a capacidade maior de regeneração de feridas,

o restabelecimento mais rápido da cura de doenças e a melhor condição física quando

comparamos jovens e velhos seria determinada por esse acúmulo que, por fim, nos destrói.

Isso significa que em sistemas vivos o que restaura também acaba por matar. Mais uma

vez, paradoxalmente, recriar-se é morrer. A cada sucesso, um passo é dado para a derrota

final e inevitável. A condição de estabilidade, que é mortal desse ponto de vista, o alcança

paulatinamente a cada individuação. Uma carga nociva, uma energia morta, que não se

integra harmoniosamente ao corpo, acrescenta-se a ele de modo contínuo. Diz Simondon:

“O indivíduo ganha pouco a pouco elementos de equilíbrio estável que o carregam e o

impedem de ir na direção de novas individuações.” (SIMONDON, 2005b, p. 215). É

interessante pensar, por outro lado, que o reabastecimento constante de informações em

- 115 -

pessoas mais velhas produz um alongamento da lucidez e uma permanência da memória.

Pesquisas recentes apontam uma vinculação entre hábito de leitura e menor probabilidade

de desenvolvimento de doenças como Alzheimer.

Essa visão da oposição Vida/Morte nos recorda mais uma vez a negação dos

dualismos proposta por Simondon. Para entender os processos de mudança, é preciso então

reverter a tendência de separar definitivamente quente/frio, doce/amargo, bom/mau etc. e

fazer um esforço para produzir a interpenetração necessária existente entre as duas partes.

Como diz nosso autor, esses opostos são duas grandezas que inicialmente não se

comunicam, mas que ao serem colocadas em contato, acabam estabelecendo vínculos

imprevistos, originais. Essa postura de pensamento, que liga Simondon aos pré-socráticos

(Heráclito, em particular), será vista com mais detalhe no sub-item a seguir. Um aspecto

interessante é que aquilo que vale para a individuação biológica, valerá também para as

criações humanas, para as individuações técnicas. Em ambos os casos, temos invenção,

diferenciações que não são de natureza, no sentido essencialista, mas de nível: “(...) a

diferença entre a invenção natural e a invenção técnica é que o vivo, ele mesmo, é parte da

solução do problema, enquanto o inventor permanece exterior à máquina.” (LARGEAULT,

apud CHATELÊT, 1994, p. 25). Não podemos esquecer que o mesmo ser, em especial no

caso da complexidade humana, é passível de várias camadas distintas de individuação.

Tanto não há separação estrita entre as partes envolvidas nas individuações, que a

própria divisão clássica indivíduo biológico/meio é desmontada. O meio equivaleria ao pré-

individual presente ao indivíduo: “É porque o vivo é um ser individual que traz com ele o

seu meio associado que o vivo pode inventar.” (SIMONDON, 1989, p. 58). Extraímos daí

uma diferença do vivo para o não-vivo: as máquinas só são capazes de manter a sua

individuação, não de ampliá-la por si mesmas, enquanto o ser vivo é não só capaz de

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conservar como aumentar o conteúdo próprio ou externo de informação. Ele existe e

persiste no presente, constituindo continuamente o futuro. A individuação viva se preenche

por dentro, mas se projeta também para fora: “O indivíduo vivo é capaz tanto de relação

para o interior de si mesmo cuja ilustração seria a regeneração, como a gênese interna

quanto relações que se exercem para o exterior, como a reprodução.” (COMBÈS, 1999, p.

43). Não podemos esquecer que esse sentido externo, no caso humano, pode se dar em

termos de fabricação de idéias e objetos, ou seja, individuações psíquicas e técnicas,

respectivamente.

O vivo transforma desordem em reordenação por ser autônomo em relação aos

dados que recebe e aos que possui. É isso que o torna autofabricador no sentido evolutivo

ou autopoiético, na expressão dos biólogos Maturana e Varela. Isso significa que a

individuação e possível progresso das máquinas dependem diretamente da incompletude da

individuação vital dos homens. Individuações técnicas não acontecem sem a nossa

participação. Há um movimento transdutivo que passa do biológico ao técnico. Mas isso

não quer dizer que a via não seja de mão dupla. Se a corrente energética fluísse apenas do

homem para os objetos, Simondon estaria reproduzindo o modelo moderno de Descartes e

Galileu, a nosso ver, marcadamente antropocêntrico. Na orientação simondoniana, não há

usos totalmente previsíveis para as máquinas criadas e, logicamente, nos alteramos com os

vínculos que estabelecemos com elas. Os criadores emitem e recebem “vida” dos objetos

que criam. Essa vivacidade humana transmitida para os objetos técnicos adere a eles como

memória, fazendo deles um composto histórico, um conjunto de invenções humanas. Essa

singularidade produziria uma diferença entre a individuação técnica e a pura e simples

individuação física, já que para os seres físicos o passado é radicalmente passado.

- 117 -

Mais contemporaneamente, temos também que lembrar que há recursos

tecnológicos que são inoculados em nossos corpos e deixam muito fragilizada essa relação

exterior/interior, pois esses inventos modificam nossos corpos, nossas atitudes, nosso modo

de pensar etc. Podemos dizer que, na esteira do pensamento moderno, os inventores

mantinham uma distância, até mesmo física, dos objetos que criavam. O idealismo

cartesiano de separação eu-mundo aparece como um exemplo definitivo dessa postura

mental. Hoje, a partir das biotecnologias, com a produção de próteses internas, produção

laboratorial de órgãos, tratamentos genéticos de doenças, retardamento do envelhecimento,

torna-se necessário pensar de outro modo. O dualismo artificial/natural, tão decisivo em

padrões de orientação cartesiana, torna-se sem sentido hoje. Como estamos falando de uma

incorporação de elementos com grau de rejeição zero ou muito próximo a zero pelo

organismo (se um fígado for reconstruído “artificialmente” a partir da célula-tronco de um

indivíduo, ele será o “mesmo” fígado novamente). O que seria pensado em parâmetros

anteriores como artifício, simplesmente se indiferencia harmoniosamente nos corpos,

tornando-se “natural”. Nessa perspectiva particular da intervenção genética, diz Dominique

Lecourt: “As pesquisas sobre célula-tronco [células anteriores à especialização funcional

orgânica, ou seja, capazes de produzir qualquer novo órgão do corpo], aplicando a técnica

de clonagem aos primeiros estágios da divisão celular do óvulo fecundado, prometem a

chegada de uma medicina dita regenerativa (...)”. Com isso, “(...) anuncia-se também assim

a era dos transplantes humanos sem risco de rejeição.” (LECOURT, 2005, p. 26). Esse

processo de perfeita aderência ao corpo também pode ser externo. As malhas de piscina,

inspiradas em peles de tubarão, que diminuem muito o atrito dos nadadores com a água e os

faz flutuar mais, é um exemplo patente disso. Interessante é que Simondon nos dá

condições de pensar esses problemas contemporâneos sem ter tido a oportunidade de

- 118 -

conviver diretamente com eles. Isso, a nosso ver, o coloca em um patamar visionário, típico

dos grandes filósofos, sendo um produtor extemporâneo de conceitos que “aponta flechas

para o futuro”, como diz Nietzsche.

Contradição e paradoxo no amor e na vida

A oposição de forças, inerente aos processos de diferenciação, está ligada

conceitualmente a paradoxos, não a contradições. Esses dois substantivos, que no uso

cotidiano e nos dicionários têm o mesmo significado, divergem nas teorias de Simondon,

mais uma vez inspiradas na física contemporânea. Falemos um pouco mais sobre isso.

A contradição quer estabelecer separações definitivas, lados opostos apartados, com

termos isolados ou até mesmo inconciliáveis, como seria o caso das manifestações de

preconceito racial, entre brancos e negros, neonazistas e homossexuais, ou religiosa, entre

judeus e muçulmanos, xiitas e sunitas etc. Por sua vez, o paradoxo nos fala de uma dupla e

simultânea influência e fusão de opostos. Os aspectos díspares estão integralmente

presentes, mesmo considerando sempre que apenas um possa se expressar, ganhar

visibilidade. O que acontece é que um se atualiza enquanto o outro permanece virtual, o

que não indica de modo algum uma fraqueza da virtualidade, como legitima em geral o

senso comum. Quando pensamos no mundo dos computadores, fica claro que virtual é

entendido como uma condição apagada, distante e menor em relação ao atual que assume

na linguagem cotidiana a mesma significação de real.

A ação que se realiza é a de baixar um arquivo da Internet ou do correio eletrônico.

Se no momento anterior, ainda na virtualidade, ele é abstrato, longínquo, conquista

realidade plena a partir do instante em que se torna palpável, manipulável no presente por

mim. Isso nos faz lembrar imediatamente a dupla conceitual Ato/Potência de Aristóteles,

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segundo a qual o que é importante é o que se finaliza em ato, o que se atualiza, o que deixa

de ser apenas capacidade e se realiza de modo efetivo. Por mais distante que possa parecer

inicialmente, existe uma sutil conexão entre o universo da informática e as idéias

aristotélicas. Atual e virtual são pensados então em termos de contradição. Se formos

estabelecer uma relação de importância, em um aspecto mais amplo, que levaria em conta o

conjunto de todos os pares de opostos, iremos ver que a riqueza está no virtual, já que

aquilo que chega a se materializar pode ser visto, em outro ângulo, como apenas uma das

faces do virtual. É aí que aportamos no paradoxo. As realidades em oposição são

contemporâneas. Uma aparece e a outra permanece oculta, mas presente. Existe ainda uma

interdependência dos dois componentes. Aqui um não vive sem o outro, um se explica pelo

outro e as posições do que é atual e virtual podem se inverter em caráter imediato,

justamente pela radical distância e permanente presença de ambos. Que tempo é necessário

para se ir do amor ao ódio? Além de nenhum, uma decepção potencializará o último na

proporção da intensidade do primeiro.

Um dos pontos marcantes das relações afetivas do mundo contemporâneo é que as

pessoas, como aponta Bauman, apesar da sua imensa necessidade de escapar da solidão,

para se salvaguardar do sofrimento, estão estabelecendo vínculos cada vez mais

diversificados e fugazes, ou seja, frágeis. O que se deseja é a mais alta intensidade sem

qualquer intimidade. O envolvimento não pode ser adiado, pois esse é um sacrifício

inaceitável em nossa sociedade contemporânea, mas não pode trazer consigo compromissos

futuros. O domínio racional da situação não pode ser perdido, pois o risco e a chance de

frustração passam a ser incalculáveis. Parte-se do princípio ilusório que podemos controlar,

no campo afetivo, os acontecimentos futuros ou que a experiência traria o conhecimento. A

suposta solução passa por reduções da carga emotiva. Menos possibilidade de ódio e,

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conseqüentemente, menos de amor, para dizer em outras palavras, menos vida. A intenção

é tirar do amor o seu coeficiente de incerteza e adotar o princípio do cálculo e do

investimento econômico para avaliar as relações. Com isso, a palavra perde a grandeza do

seu significado: “Noites avulsas de sexo são referidas pelo codinome „fazer amor‟.”

(BAUMAN, 2004, p. 19). Pessoas são colocadas no mesmo nível dos objetos: “Você pede

menos, aceita menos e, assim, a hipoteca a resgatar fica menor.” (idem, p. 46).

Tenta-se de toda maneira evitar os aspectos paradoxais, a luta diária e a ausência de

sossego inerentes ao próprio vínculo emocional. É o que autor chama de amor líquido. De

acordo com a ótica afetiva dos nossos dias: “(...) é possível buscar „relacionamentos de

bolso‟, do tipo de que „se pode dispor quando necessário‟ e depois tornar a guardar (...) No

todo, o que aprendem é que o compromisso, em particular o compromisso a longo prazo, é

a maior armadilha a ser evitada no esforço por ´relacionar-se`.” (idem, p. 10). A idéia é

“manter-se sóbrio”, como diz Bauman. Nada de amor à primeira vista ou arroubos

apaixonados, mas a disponibilidade de quem está prestes a abandonar o barco se a parceria

deixa de ser conveniente. Para muitas pessoas em nossos dias, é justamente no instante em

que suas relações vão tomando bases sólidas que é chegada a hora de encerrá-las, já que

junto com o sentimento mais profundo vem também uma incômoda responsabilização pelo

outro, a possibilidade maior de sofrimento e o conseqüente perigo da perda da liberdade.

Pensa-se em evitar as altas cargas energéticas amorosas para evitar riscos de decepção.

É assim que caminha a tendência individualista de nossos dias. Na liquidez

contemporânea tudo é ligado a uma satisfação rápida, instantânea, pois só o que é de curta

duração é facilmente descartável. As pessoas viram mercadorias e a lógica do consumo

toma conta de todas as áreas da existência. Viramos aquilo que Bauman chamará de homo

consumens: “É assim que numa cultura consumista como a nossa (...) favorece o produto

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pronto para uso imediato, o prazer passageiro, a satisfação instantânea, resultados que não

exijam esforços, receitas testadas, garantias de seguro total e devolução do dinheiro.”

(idem, p. 21). É nessa tentativa, no caso contraditória, de controlar o incontrolável e de

fugir desesperadamente da solidão e das emoções fortes ao mesmo tempo, que erguemos

trincheiras na vã esperança de viver melhor. Vida e risco estão atavicamente ligados. Eros e

Tanatos continuarão a ser opostos complementares, gêmeos siameses. Os radicalismos da

escravização de si ou de possessão do outro estão sempre à espreita para se manifestar. Mas

se a saudável luta por saúde da relação for mantida, temos uma ética amorosa em que um

cuida do outro.

Falemos mais do paradoxo. Nossa fonte primária são os gregos. Quando pensamos

na medicina grega clássica de Hipócrates, essa questão do conflito dos opostos ressurge de

modo intenso. Essa é, entre muitas outras, mais uma herança deixada pelo pensamento

oriental na filosofia grega nascente. Na idéia grega da saúde, originária dos chineses, somos

regulados por quatro forças divididas duas a duas, quente e frio de um lado, seco e úmido

do outro. É um choque de forças, onde o combate permanente e a participação integral das

duas em oposição é condição primária para a manutenção do equilíbrio orgânico. Caímos

doentes, inclusive no amor, quando uma delas excede ou tem relaxada a sua condição

natural, pois nesse instante o par passa a estar em uma condição de desequilíbrio. Houve

um afrouxamento e a luta entre as duplas perdeu seu status de potências iguais e opostas. O

mesmo princípio de tensão que definia a divisão de poderes entre os cidadãos na pólis (só

há democracia se houver igualdade e rivalidade) valia para a interioridade do corpo. É

muito curiosa essa constante associação grega entre as estruturas do corpo e da cidade,

como se as mesmas leis regulassem um e outro e como se o indivíduo fosse constituído

organicamente pela sua terra natal. O político e o biológico eram inseparáveis. Lembremos

- 122 -

que na divisão funcional e hierárquica que Platão realiza em “A República”, ele liga o

artesão ao baixo ventre, o guerreiro ao tronco forte e corajoso e a cabeça ao filósofo-rei.

Podemos também entender melhor, a partir daí, porque cada grego é visto muito mais como

filho de uma cidade do que de um pai e uma mãe e também o fato de o exílio ser tomado

como uma das mais terríveis infâmias a que se pode submeter um condenado, algo que é

facilmente visível nas figuras de Édipo e Sócrates.

Voltando à questão da doença como cessação provisória de um conflito (a definitiva

é a morte do organismo, visão muito próxima a de Simondon, quando se refere ao fim da

metaestabilidade), a febre, por exemplo, seria uma vitória temporária do quente sobre o

frio. A cura será conquistada quando o corpo conseguir restabelecer o equilíbrio,

(metaestável) como uma lei de compensações, um retorno à justa medida, muito próprio do

pensamento grego clássico desde o Cosmos pré-socrático até a ética aristotélica. Esse

conceito aparece em facetas tão diferentes quanto a noção de justiça de Anaximandro e a

visão médica de Álcmeon: “Álcmeon de Crotona, que também pertencia ao círculo

pitagórico, ao definir o binômio saúde-doença, referiu-se a potências (dynamis) opostas que

misturadas de forma equilibrada no interior do corpo humano, conferem a este o estado de

saúde.” (FRIAS, 2005, p. 25). Em linguagem científica contemporânea, que se remete à

teoria cibernética, o que temos são novas informações introjetadas no sistema, no caso o

corpo, que o reorganizam e restabelecem o equilíbrio, a condição sã.

Esse problema da tensão e do paradoxo nos remete mais uma vez à Grécia, ao

lembrarmos do conceito de harmonia de contrários de Heráclito. Poderíamos enumerar,

inspirados nele, alguns pares capitais, como a fome e a saciedade, a guerra e a paz, o doce e

o amargo, a vida e a morte e, como vimos, a saúde e a doença. A manutenção do Cosmos

depende dessa alternância de princípios, que se revela no conceito de devir do pensador

- 123 -

pré-socrático. Este pode ser definido brevissimamente como “transformação incessante de

todas as coisas”. Diz ele em seu fragmento 51: “Estes [os ignorantes] não compreendem

que o diferente concorda com ele mesmo: harmonia de contrários, como a harmonia do

arco e da lira”. Esse conceito costuma ser simbolizado com a famosa metáfora do rio,

atribuída ao pensador pré-socrático, que diz que não se pode mergulhar duas vezes no

mesmo rio, pois, no segundo mergulho, nem as águas nem quem mergulha serão os

mesmos. Isso nos leva à idéia de que os atributos estão a todo tempo transmutando-se em

seus contrários, sendo essas inúmeras passagens justamente a garantia da permanência. Não

por acaso é concedida também a ele a autoria da frase “A guerra é o pai de todas as coisas”,

sendo a única explicação para a permanente criação na natureza, esse combate que nunca

finda. Só há saída do equilíbrio ou desarmonia quando a disputa acaba, quando cessa a

realimentação. É a falência do sistema. Heráclito e Simondon estão unidos ao afirmar,

paradoxalmente, que o único aspecto imutável no Cosmos é a mudança. O próprio pensador

francês anuncia o ponto de vinculação no entendimento da vida: “(...) devemos lembrar que

os pré-socráticos conceberam a complementaridade de uma maneira diferente, como dupla

de contrários, nascimento e morte, descida e subida, caminho para o alto e caminho para

baixo. Para eles, a morte de um ser é condição do nascimento de outro (...)” (SIMONDON,

2005b, p. 503).

Toda essa problemática trazida pelos pré-socráticos nos fornece elementos que

alimentam a reflexão de Simondon sobre o indivíduo biológico e também no que se refere

a ele em sua interação com as máquinas. Quando nosso pensador substitui o princípio de

individuação pela operação de individuação, ou seja, troca o estável pelo móvel, temos um

processo genético, em que permanentes reelaborações vão sendo promovidas nos e pelos

indivíduos. Enquanto há vida, há alteração. Daí torna-se possível falar em ontogênese, ou

- 124 -

seja, o devir ligado ao ser e o ser ligado ao devir. Ao contrário de Aristóteles, a realidade

potencial, ligada aqui à individuação, é tremendamente ampla e rica em possibilidades que

apontam o futuro ao passo que o puro e simples estado atual do indivíduo é uma abstração,

pois concentra-no no presente e em uma condição hipotética de acabamento e paralisação,

que não chega a acontecer se há vida, já que as potencialidades virtuais estão

permanentemente abastecendo e enriquecendo esse suposto aqui e agora.

O indivíduo não é algo dado desde o início. Não há essencialidade a realizar. Ele

está em constituição (através de múltiplas individuações) ao longo de toda a existência. O

que alguns autores, como Bergson e Pierre Levy, nomeiam como virtual, Simondon

chamará de pré-individual ou potencial. É isso que faz com que seres vivos sejam por toda

a vida não apenas produto da individuação, mas “teatro” de individuação. O pré-individual

é a fonte irradiadora. Todos temos uma reserva de devir, potenciais a desenvolver: o que

chegamos a ser ou fazer é uma pequeníssima parte do que podemos chegar a ser ou fazer.

Acontece um grande alargamento do sentido de ontologia. Será substituída a noção de ser

enquanto um, indivíduo fechado em si mesmo de raiz aristotélica, pela de ser enquanto ser,

a soma do indivíduo atual mais a porção pré-individual que o compõe.

A visão de Aristóteles de potencialidade é bem diferente dessa. Para ele, por

exemplo, quando somos crianças temos apenas a potência de ser racionais, pois àquela

altura somos apenas adultos em potencial, sendo mais instinto que inteligência. Em suma, o

que temos são homens inacabados. Se tudo correr bem, o que é será exatamente igual ao

que já estava definido de modo latente desde o início. No mundo aristotélico, o que se

espera é que não haja surpresas. Isso é o que significa a realização da Forma. Não se leva

em conta o valor intrínseco do presente, mas o seu resultado definido previamente a partir

de experiências passadas que se repetem. É isso que faz Aristóteles ver o passar do tempo

- 125 -

como uma possível perda, já que seria a instância proporcionadora do imprevisto, do

acidental, da casualidade, ou seja, de tudo aquilo que pode desviar o indivíduo da sua

tendência intrínseca, natural, essencial. O avanço temporal, muitas vezes nomeado por ele

como corrupção, pode apenas atrapalhar os planos. O futuro não pode ser criador, apenas

desarticulador.

Assim, não é por acaso que, para Aristotéles, é no tempo e no seu parceiro de todas

as horas, o movimento, que são produzidos os aspectos irrelevantes dos indivíduos, os

acidentes, as idiossincrasias, ou seja, o que deve ser descartado no caminho de conhecer

algo cientificamente. De acordo com a conceituação aristotélica tudo o que é particular aos

indivíduos não está na ordem da necessidade, ou seja, pode ser diferente do que é, estando

em claro descompasso com o que é verdadeiro. Isso explica a sua menor importância. É

acidental aquilo que não é essencial, ou seja, aquilo que não caracterizaria o homem como

homem, o tigre como tigre.

Indivíduo e meio associado

É essa estrutura de pensamento que Simondon inverte. De acordo com ele, o futuro

do indivíduo é imponderável, já que virtual. Ao contrário da concepção negativa de

Aristóteles, aqui o tempo é positivo, construtor de realidades impassíveis de previsão.

Como não há ponto de chegada, forma a ser realizada ou essência a ser atingida, o porvir

chega como soma, não como possível diminuição, despotencialização. O ato construtivo é

da própria relação. A individuação se dá em uma íntima associação do indivíduo com o

meio, os dois se unindo para resolver uma situação, um problema que se manifesta. Para

sermos mais fiéis ao autor, o conceito nomeado por Simondon para essa união dentro/fora é

meio associado. De acordo com esse conceito, não se poderia imaginar, por exemplo, a

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criação de um objeto sem levar em conta o entorno cultural a que ele pertence e o grande

número de criadores que possui. É assim que podemos pensar que o corpo e o modo de ser

de um mineiro produz a mina e é produzido por ela. Mineiro e mina compõem um só

conjunto, um só sistema. É nesse sentido que o resultado, sempre provisório, da

individuação não tem nada de acidental, mas ao contrário é de uma precisão absoluta.

Cada nova individuação é a solução sob medida de um desafio que só vale para

aquele caso. Por isso o resultado da soma indivíduo/meio não só é imprevisível, como

também não tem nada de casual e produz inclusive associações entre natureza e técnica: “O

meio associado é mediador da relação entre os elementos técnicos fabricados e os

elementos naturais no seio dos quais funciona o ser técnico.” (SIMONDON, 1989, p. 57).

O meio não existe portanto nem antes nem depois do objeto, mas é contemporâneo a ele.

Também não é superior ou inferior ao indivíduo, mas se equipara, se funde com ele. O

homem cria o meio e ao mesmo tempo é condicionado por ele. Nesse regime produtivo do

tempo e desprovido dos vícios hierárquicos e deterministas entre o que está dentro ou fora,

Simondon vai dizer que as soluções vêm do que ele chama de causalidade recorrente ou

recíproca. Existe nesse posicionamento a superação da visão tradicional de que ou bem o

mundo se adapta a nós ou nós a ele. O que temos é uma composição em que aquilo que

aparece é fruto de uma união singular e indistinguível entre ser, vivo ou técnico, e mundo.

De acordo com o filósofo francês, jamais um ou outro estão integralmente dados.

Ambos são providos de cargas pré-individuais, ou seja, são multiplicidades virtuais que se

reúnem simultânea e permanentemente produzindo atualizações sempre inesperadas.

Indivíduo e meio estruturam-se ao mesmo tempo. A soma de ambos é o que nosso autor

nomeará como ser. Ao ouvirmos da parte de geneticistas que todas as nossas células, à

exceção das neuronais, se renovam em um período de cinco anos, podemos conceber que

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nos tornamos outra pessoa no sentido propriamente biológico durante esse intervalo. Se é

assim no que diz respeito ao plano estritamente corporal, o que não será possível conceber

de diferenciação no campo mental, psíquico, espiritual? Mas existe um tipo de individuação

anterior e mais radical que essa: a que ocorre na ordem física. Será essa a nossa passagem

necessária para que se possa fazer a ligação entre mundo físico, vida e técnica.

A individuação física e a abertura para a técnica

Quando fala da fabricação de tijolos, paradigma para a individuação no plano físico,

Simondon indica que até a sua completa solidificação é mantida uma presença pré-

individual, muito limitada, mas real, que só se encerra definitivamente quando o processo

de modelagem termina e temos um tijolo pronto, formatado e seco. Isso significa que

podemos considerar que exista um componente de virtualidade, logicamente restrito e

breve, até mesmo em corpos chamados brutos. Uma operação de individuação curta, mas

real, tem lugar aos momentos que antecedem a constituição de um indivíduo pronto.

Até o seu enrijecimento completo, a argila não é passivamente indeterminada e

inerte, ou seja, morta - visão da matéria em uma tradição antiga (aristotélica) e moderna/

mecanicista de pensamento (cartesiana e galileliana) - mas ativamente plástica. Antes da

estruturação última são mantidas possibilidades diversas de atualização. O conteúdo não é,

ou ainda não é, escravo definitivo da formatação e o que existe provisoriamente é uma

disputa do molde com uma materialidade ainda fluida. Desse encontro ou confronto sairá o

aspecto final a ser possuído pelo tijolo. O caminho vai da modelagem, onde se presencia

um movimento e um inacabamento (vestígios de vitalidade), à moldagem, que é quando se

atinge a forma final e rígida. Essa riqueza pré-individual, presente antes da conclusão do

processo, torna inadequada a idéia aristotélica de que a forma comanda solitariamente o

- 128 -

processo de constituição dos indivíduos. O papel do molde é delimitar, conter os avanços

hipoteticamente irrestritos que a matéria pode alcançar.

Simondon argumenta que a parte positiva do processo vem da materialidade. Por

duas razões: a primeira é porque ela traz em si condições intrínsecas naturais para a

composição de certos formatos, deixando-se modelar em determinados níveis, e a outra é

em função de haver uma transmissão energética que se dá entre o trabalhador e o seu objeto

de trabalho. A matéria será, por isso, o vetor de energia e abriga em si as possibilidades de

conquistar uma forma dada. Exemplifiquemos com o mesmo tijolo. A qualidade da terra e o

cuidado do artesão na preparação dos elementos, que farão parte desse objeto, são pontos

essenciais para se atingir um padrão final adequado: seco, sem rachaduras e sem

pulverização. Inversamente, quem preparou o molde não perdeu de vista em momento

algum o processo de fabricação que se dará neste espaço. Suas intenções e sua memória

estão incluídas na preparação dessa estrutura. Pode-se ter a impressão de que o molde

exerceria nesse contexto um papel de pura negatividade. Porém, temos que lembrar que

sem uma canalização de energia não é possível constituir um sistema, ou seja, existir um

indivíduo. Quando falamos de existências, seja em dimensões vivas ou técnicas, há um

convívio necessário do caos com a ordem. Divergindo mais uma vez de Aristóteles,

Simondon nos diz que matéria e forma são inseparáveis, uma está inserida na outra, tanto

na natureza quanto na elaboração humana.

Duas operações técnicas se deram antes, as que produziram a argila e o molde

separadamente, antes de ambos se unirem. São realidades heterogêneas que, juntas,

produzem uma realidade intermediária. Esse encontro será definido, por nosso autor, como

comunicação interativa. É óbvio que no momento em que a solidificação se conclui,

passamos a ter uma dimensão física que cessou terminantemente de se alterar. Esse é o

- 129 -

momento em que as forças de ação da argila e de reação do molde são iguais e em vias

opostas. Alcança-se um equilíbrio estável que, como já vimos, é sinônimo de morte. A

condição líquida do barro é o que lhe dá condições de prosseguir as individuações. O tijolo,

agora desprovido de fluidez, é semelhante a uma pedra, ou seja, algo que perdeu por

completo a capacidade de seguir se transformando, é uma “singularidade parasita”.

A solidez equivale a um encerramento do futuro, ou pelo menos de um futuro que

detenha algum grau de imprevisibilidade. Não é à toa que podemos estabelecer uma

relação, não só metafórica, do envelhecimento com um enrijecimento, com uma oxidação,

ou seja, com uma solidificação. A capacidade de refazer-se, manter-se jovem, própria do

que é vivo, que os biólogos chamam neotenia, está ligada a uma condição de mobilidade

típica do que é fluido. A distinção entre o vivo e o não-vivo é marcada pela diferença entre

modular-se e moldar-se: “Moldar é modular de maneira definitiva, modular é moldar de

maneira contínua e perfeitamente variável.” (SIMONDON, 2005b, p. 47). Se em um tijolo,

a operação se dá de uma só vez e em um nível espacial, no vivo o movimento de

reconstrução é seqüenciado, temporal, onde uma ação realizada é princípio de outra ação a

se realizar. Podemos dizer, então, que um ser vivo, ao morrer, atingiria uma espacialização

e, tal como um tijolo, a sua moldagem derradeira, a sua petrificação. Na medida em que a

rigidez é atingida, temos um indivíduo acabado. Podemos dizer que morremos de um

excesso de eu, de uma individualização extrema e isoladora. Esse é o momento em que

novas individuações não são mais viáveis. As potencialidades acabaram. Atingiu-se a

homeostase ou falência energética. As únicas alterações futuras serão negativas, ligadas a

desgaste, desestruturação e decomposição. Independentemente disso, pensar esse processo

na via da individuação, ou seja, da valorização da diferença, é pensar que não existem dois

tijolos estritamente iguais. A relação entre o molde e a argila será única em cada

- 130 -

composição individual e não se repete jamais. A metáfora do rio de Heráclito vale até

mesmo para o universo de elaboração dos tijolos.

A partir dessas noções, abre-se a perspectiva para se refletir sobre o aspecto pré-

individual presente nas invenções humanas. É essa participação, inclusive, que garante um

permanentemente abastecimento de pré-individualidade no âmbito dos objetos técnicos. A

modulação, presente apenas por alguns instantes nos objetos físicos, pode ser constante se a

criatividade humana continuar se aplicando em regime coletivo a eles. Há uma vitalidade

que ultrapassa os homens e atinge suas criações. Como estamos falando de energia e troca

de informações e não de substâncias ou termos, temos a possibilidade de pensar em

transmissão, contágio entre um corpo e outro. Existe para o nosso pensador, tal como se

entende para os seres vivos, em particular desde Darwin, uma continuidade histórica, uma

linhagem evolutiva própria de um certo conjunto de inventos técnicos. Simondon, ao

separar os objetos de sua pura e simples função mecânica, ou seja, do seu isolamento

inorgânico, aponta sua possibilidade evolutiva, filogenética e hereditária. São compostas

relações familiares, porém pouco comportadas. Como diz Yves Deforge: “Os objetos

técnicos (e não os mecanismos) constituem famílias cuja característica é de ter a mesma

função (servir a mesma coisa), mas as famílias são disparatadas, porque o mesmo efeito

pode ser obtido por meios muito diferentes.” (DEFORGE, apud CHATELÊT, 1994, pp.

180-1). Com um raciocínio muito particular, Simondon transfere a noção ontogenética,

normalmente limitada apenas às conceituações biológicas, para a dimensão dos objetos

técnicos. São seres com toda a complexidade inerente a eles. Uma máquina, para ser

compreendida, necessita da integração de vários campos de saber distintos. Uma estrada

(classificada como máquina, a exemplo de uma ponte), para ser efetivamente conhecida,

exige informações em engenharia, geografia, ecologia, história, física, meteorologia etc.

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Em Simondon os objetos ganham a espessura de indivíduos, são entidades temporais que

têm ancestralidade, presença atual e posteridade.

Essa interdisciplinaridade talvez seja fruto de uma forte influência da cibernética e

da teoria da informação sobre sua obra. Esse problema será examinado mais tarde. A

cibernética e a teoria da informação lançam suas teias de noções para campos tão distintos

quanto a física, a economia, a comunicação, a biologia e o processo de cognição. A ciência

no século XX passou a lidar com situações de complexidade tal que a clássica tradição de

ligação linear entre causa e efeito não dava mais conta. Nesse novo contexto, temos para

um mesmo efeito a incidência simultânea de várias causas. Mas o começo dessa orientação

de pensamento na física, de acordo com o pai da cibernética, Norbert Wiener, foi com

Gibbs e a entropia termodinâmica. Foi a partir daí que a certeza newtoniana de que

verdades definitivas possam ser conquistadas no mundo físico sofreu grandes abalos. Algo

de “irracional”, probabilístico e casual, que já chegara à biologia com Darwin, acabou se

incorporando ao mundo físico. Idéias como contingência, caos, estatística e

irreversibilidade, impensáveis na ciência moderna clássica, alcançaram essa área e lhe

deram um aspecto de incerteza que ela negara.

Diz Wiener sobre esse novo momento em que os físicos incorporam noções

estatísticas: “Os novos estatistas (...) rejeitaram a suposição de que sistemas com a mesma

energia total pudessem ser distinguidos com nitidez, indefinidamente, e descritos para

sempre a partir das mesmas leis causais.” (WIENER, 1990, p. 10). As soluções dadas

tornaram-se mais humildes, pois não são mais universais, mas apenas prováveis e válidas

para um certo grupo específico de situações. A física deixa de cuidar do que irá sempre

acontecer para ter atenção ao que acontecerá com esmagadora probabilidade. Não se fala de

um mundo compacto, absoluto, simétrico, puro, homogêneo e com leis eternas, como o de

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Newton, mas de acontecimentos similares e comparáveis, todos sujeitos a uma direção

privilegiada de um tempo que não retorna. Na realização de um trabalho, uma parte da

energia acaba sendo revertida em calor e é isso que a física termodinâmica vai querer

calcular. Saindo dos céus ideais teóricos de um tempo absoluto e reversível de Newton e

convivendo com os fenômenos e a temporalidade de mão única do passado para o futuro, a

ciência física torna-se histórica, passando a haver um papel humano na sua elaboração.

Ciência, cultura e sociedade ganham uma aproximação. Prigogine resume esse novo

entendimento que coloca tudo que há na natureza em deriva: “A existência de uma flecha

do tempo comum aos sistemas físicos e aos homens talvez seja o fato que melhor exprime a

unidade do Universo.” (PASTERNAK, 1992, p. 43).

O caminho da cibernética foi seqüenciado ao da termodinâmica e tinha pontos

comuns com a termodinâmica, como, por exemplo, a ausência de certezas finais na

natureza. Ambas também concordam que o equilíbrio, tão valorizado no passado científico

recente, significa agora inexistência do ser. Houve também, por parte da cibernética, uma

ampliação do entendimento dos indivíduos como sistema, no qual cada componente deve

interferir diretamente no bom funcionamento de outro. Daí vem a noção de rede e a

possibilidade de integração, na teoria e na prática, de várias máquinas. Outro grande ganho

foi na interdisciplinaridade. Só a interpenetração de vários saberes pode oferecer soluções

compatíveis com os problemas que a ciência e a sociedade contemporânea se colocam. A

amplitude é enorme. Possuindo o mérito (que depois veremos que também pode ser

demérito) de não fazer distinções entre estruturas vivas e não-vivas, lida com situações tão

díspares quanto a avaliação de redes neuronais, o controle da trajetória dos satélites, a

previsão de safras agrícolas, a ecologia das populações, os mecanismos de aprendizagem

- 133 -

etc. Se lembrarmos da generalizada informatização de todas as áreas do mundo

contemporâneo, teremos idéia da relevância da sua fonte, que é a cibernética.

O resultado geral, trazido por essas duas novas ciências, foi, na linha da tradição

humanista e enciclopedista, desfazer uma suposta separação definitiva entre os campos de

saber. Os grandes problemas que atingiram o século XX, a ecologia seria um exemplo, não

têm soluções possíveis sem uma grande colaboração envolvendo cruzamentos

interdisciplinares. Veremos agora de um modo mais cuidadoso as conceituações que

Simondon toma emprestado da termodinâmica e o que ele retira da cibernética e da teoria

da informação, o que gera a sua tendência de interpretação do mundo físico e vivo.

Esperamos demonstrar também, com outros detalhes, as diferenças fundamentais entre a

termodinâmica e a cibernética, já que o nosso autor toma emprestado conceitos das duas.

Entropia e teoria da informação

Na tentativa de fugir dos binômios animado/inanimado, natural/artificial, Simondon

recorre a noções da cibernética. Ele reconhece nessa ciência o grande mérito de deixar de

lado as separações radicais entre esses mundos. É certo que essa linha de pensamento

tendeu muitas vezes, até pelas suas inovações, a um reducionismo mecanicista e a um

automatismo exagerado. Nosso autor fará uma seleção conceitual e permanecerá com o que

ele considera mais inventivo nessa ciência para continuar refletindo sobre suas próprias

questões. Uma assimilação que se revelará como fundamental é a noção de feedback, a

retroalimentação de informações que reabastece e repotencializa um sistema, como que

rejuvenescendo-o, sempre em acordo com o ambiente externo. Wiener a define assim: “(...)

capacidade de ajustar a conduta futura em função do desempenho pretérito.” (WIENER,

1990, p. 33).

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Um aspecto importante ligado a essa idéia é a versatilidade. Ela nos ajuda a pensar o

que se passa nos e entre os corpos vivos e também as relações homem/máquina e até

máquina/máquina. O problema é que, diversamente de Simondon, Wiener desconsidera um

comando humano das relações e promove uma analogia plena do mundo humano e

maquínico, onde sinapses e os dispositivos comutadores se equivalem. O que ele visualiza,

de modo excessivo para Simondon, é uma atitude de livre escolha da máquina automática

pela presença da memória: “Tanto na máquina quanto no nervo há um dispositivo

específico para fazer com que as decisões futuras dependam das passadas.” (idem, p. 34).

Simondon acredita na existência de duas memórias bem distintas quando falamos de

homens e autômatos. O que Wiener faz, de acordo com o nosso filósofo francês, é

superpor, sem critério, capacidades heterogêneas. As máquinas são capazes de absorver

gigantescas quantidades de informação, mas de modo desordenado e desconectado

(lembremos que nossos arquivos no computador não se comunicam a partir de si mesmos).

Por sua vez, nossas lembranças são seletivas, organizadas e interligadas, pois a

característica marcante do vivo é o passado se integrar ao presente e projetar-se sobre o

futuro. É aí que estabelece uma diferença de natureza e não só de grau entre o nervo e o

dispositivo maquinal.

Nosso pensador aponta essa intensa heterogeneidade e anuncia, já naquele

momento, uma dificuldade que se presencia até hoje e talvez se presencie em todas as

épocas: a impossibilidade de ação espontânea em máquinas. Um exemplo são as traduções

automáticas realizadas por computadores, em particular de poesia. Por serem ao pé-da-letra

e insensíveis às delicadezas de significado de cada palavra, muitas vezes degeneram

totalmente o sentido original. A proposta simondoniana não é de isolar ou unir radicalmente

homens e máquinas, mas de harmonizar as peculiaridades, afirmando que uma operação

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técnica complexa necessita de ambas. Caminhando na contra mão dos partidários do

automatismo cibernético, diz que as máquinas mais avançadas – aquelas que apresentam

auto-regulação e pertencem a conjuntos técnicos (diversas máquinas ligadas e

interdependentes umas às outras) – são justamente as que mais precisam da participação

humana. Esses entusiastas tecnológicos teriam esquecido que essas alternativas amplas de

operação foram humanamente infundidas e que, por si, as máquinas tendem ao isolamento.

Cabe aos homens a responsabilidade de perceber as possibilidades de ligação entre os

diversos indivíduos técnicos, colocando-os em comunicação. Simondon resume esse

posicionamento: “É o homem que conhece os esquemas internos de funcionamento e os

organiza entre si. As máquinas, ao contrário, ignoram as soluções gerais, não podem

resolver problemas gerais.” (SIMONDON, 1989, p. 126). Mas, mesmo com todas as

divergências de pensamento, Simondon concorda com o ponto central da teoria cibernética:

o processo de reassimilação de intervenções externas oferece saídas organizativas, mesmo

que sejam inevitavelmente temporárias, à entropia, o que vale para o vivo e para o não-

vivo.

Esse último conceito merece mais algumas palavras. Conhecida como segunda lei

da termodinâmica e significando evolução em grego, o princípio entrópico indica que uma

desconstituição inexorável e um desaquecimento progressivo transformam sistemas

isolados organizados em desorganizados em regime contínuo e crescente. A orientação

determinista é que a desordem tome o lugar da ordem com o passar do tempo. Em termos

de cálculos na física, a entropia, que sempre aumenta, é a medida numérica dessa

desordenação, da dissipação calorífica. O que se pretende é precisar o coeficiente de

desperdício de energia, o resíduo térmico que não chega a se transformar em trabalho

mecânico. O processo de resfriamento universal, já que corpos aquecidos estão sempre

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transmitindo calor aos menos aquecidos, leva a situações caóticas insustentáveis e

irreversíveis, o chamado horizonte entrópico, ou seja, à morte energética. Isabelle Stengers

diz sobre os princípios gerais da entropia: “(...) é a „perda‟, então, que deve tornar-se o

sujeito principal dessa experiência porque é em termos de perda que o ciclo ideal define os

processos naturais (...) toda transformação energética resulta em uma dissipação sem

retorno de energia [grifo da autora].” (STENGERS, 1997, p. 56). Lembremos que esse

paradigma físico será pensado em outros modelos de individuação para Simondon.

Apesar de ajudar Simondon a pensar, trazendo também vários conceitos importantes

que serão retrabalhados em sua filosofia (potencial energético, metaestabilidade etc.), não

podemos esquecer que a visão entrópica de desgaste irreversível estará em desacordo com a

orientação filosófica, intimamente ligada ao devir, do nosso autor. Há uma espécie de

resignação presente nessa idéia, um tempo negativo que tudo deteriora e conduz a um

fatalismo com o avanço das horas. Pensar que a dimensão temporal não possa ser

construtiva e criadora, mas apenas destrutiva, é um total absurdo para Simondon. É óbvio

que todos os elementos individuais que compõem o universo vão se desfazer. Mas a

natureza, em seu conjunto, permanece em suas diversificações exuberantes e soluções

surpreendentes. Pois, se não há dúvida de que o fim chegará para todos os corpos, existem

sempre reversões locais e provisórias. Essa especificidade o próprio Wiener percebeu na

vida e em sua continuidade mas, aí reside o problema, transportava o mesmo raciocínio às

máquinas: “Todavia enquanto o universo como um todo (...) tende a deteriorar-se, existem

enclaves locais cuja direção parece ser o oposto a do universo em geral e nos quais há uma

tendência limitada e temporária ao crescimento da organização. A vida encontra seu habitat

em alguns desses enclaves.” (WIENER, 1990, p. 14). Esse aspecto reversível da entropia

tornou-se conhecido como negentropia. Vem daí a escolha de Simondon por se aproximar

- 137 -

de certas conceituações cibernéticas, como as idéias de feedback e informação, pois elas

possibilitam pensar essas reorganizações momentâneas que retiram os sistemas individuais

de um isolamento que seria mortal para eles.

Um outro ponto importante para distinguir a termodinâmica e a cibernética é

perceber claramente que elas pertencem a momentos históricos divergentes. A primeira

cuida do controle de perdas de energia em estruturas mecânicas, preocupações ligadas ao

que é próprio do período posterior à Revolução Industrial. Esse é um marco temporal que

Simondon considera decisivo, pois anuncia uma fase de liberação humana, já que determina

a transferência do homem como força mecânica para a máquina. Sai da condição de

“máquina” para a de condutor da máquina. Os símbolos do período, o carvão e o trem,

ligam-se diretamente a estruturas mecânicas do mundo termodinâmico e que transmutavam

energia térmica em trabalho. Sua importância é manifesta até na literatura do século XIX,

quando eles conquistam o estatuto de protagonistas em romances, como Germinal e A

besta humana, de Émile Zola. Já a teoria da informação nasce para dar conta de

circunstâncias surgidas no decorrer do século XX. Seu paradigma é outro. Sua esfera de

atuação é a dos sistemas de comunicação e seu foco mais direto é a qualidade do envio e

recepção de sinais e sua compreensão. Para explicitar a diferença: “Em nosso século [XX],

porém, surgiram outros engenhos onde esta medida de rendimento [energético] é

insignificante (...) Quando se vai enviar uma mensagem – por meio do correio ou de um

cabo telefônico –, importa menos a quantidade de energia empenhada no processo e mais a

qualidade da transmissão.” (BENNATON, 1985, p. 125).

O problema dos dispêndios de energia não se faz prioritário no âmbito das novas

máquinas, as dos meios informáticos e de comunicação. O seu gigantismo (o rendimento é

proporcional à dimensão dos motores e instalações), símbolo da termodinâmica, perde a

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relevância e, contrariamente, entramos na fase da diminuição dos dispositivos, tendência

iniciada nos anos 50 do século XX e mantida de modo crescente até os nossos dias. A

potência tornou-se inversamente proporcional ao porte físico. Nosso filósofo antevê essa

crescente reorientação dos tipos de máquina: “É possível que uma das causas da tendência à

redução das dimensões observada depois de 1946, resida na descoberta deste imperativo

das técnicas de informação: construir indivíduos técnicos e, sobretudo, elementos de menor

dimensão, porque eles são mais perfeitos, têm um melhor rendimento de informação.”

(SIMONDON, 1989, p. 133). As grandes dimensões levam, quanto à informação, a um

aumento do tempo de transmissão, o que é, na verdade, um retardo, uma grave deficiência

nesse novo contexto que tem a velocidade como um valor essencial. Simondon percebe

inclusive uma incompatibilidade entre os âmbitos energético e informacional. O aumento

de uma leva em geral a uma perda da outra: “As características de rendimento dos canais de

informação não são características energéticas e muitas vezes um bom rendimento em

informação caminha junto com um mau rendimento energético.” (idem, p.132).

Michel Serres vê essa virada em seu sentido radical nos anos 60 do século XX: “(...)

durante os anos 60, a humanidade passou bruscamente dos meios e forças de produção às

redes de comunicação.” (SERRES, 2003, p. 27). De acordo com Serres, foi quando saímos

da esfera industrial, cujo símbolo divino seria Prometeu e o fogo gerador do trabalho, para

a pós-industrial, onde Hermes, deus que conduz mensagens e que realiza trocas e

traduções, passou a ter a supremacia. Além disso, é ele também o deus enciclopédico da

interação entre saberes díspares, uma divindade mestiça que cuida das “relações

flutuantes”, como diz Serres. Diante desse privilégio do meio e não dos começos ou fins,

esse autor afirma que se a divindade fosse representada no campo lingüístico, seria

- 139 -

simbolizada por preposições conectadoras, que ocupam intervalos entre as coisas, e não

substantivos independentes, auto-suficientes e encerrados em si, à maneira de termos.

A perspectiva nessa nova ambientação é de que novas informações produzem

rearranjos, contraefetuações inesperadas. Essas novidades alteram todo o futuro do sistema.

É nesse ponto que pode ser superada, pelo menos em pontos determinados e provisórios, a

inevitabilidade da “morte térmica”. Do ponto de vista cibernético não haveria fatalismo

generalizado, caminho reto para a desconstituição em todos os níveis. Poderíamos alegar

que a recomposição informativa só teria validade para corpos vivos, como seria facilmente

visível na cura de uma gripe, por exemplo. De modo inovador, Simondon projeta o

raciocínio também para o que não é vivo. As máquinas escapam à decomposição inexorável

do tempo, na medida em que são retroalimentadas pela inventividade informativa humana.

Esse momento em que o homem torna-se o mediador comunicativo da máquina, vivendo

entre elas, Simondon vai chamar de vida técnica. As máquinas, ao contrário do exagero de

Wiener, em si mesmas são fechadas, são “mônadas de automatismo”, mas os homens têm a

possibilidade de injetar vitalidade e promover a criação de novas funções e também a

interrelação entre elas. Em suma, eles são capazes de transmitir o vivo presente neles àquilo

que fabricam. Um indeterminismo e uma fluidez atingem, portanto, este universo que

normalmente é visto como inanimado. O humano e suas produções podem ser também

pensados como retentores de informação, conservadores de energia, como indica a primeira

lei da termodinâmica, o que sugere que nosso autor realmente bebe antropofagicamente nas

duas fontes.

Como a interligação espontânea entre as máquinas é, ou pelo menos ainda é, uma

quimera de ficção científica, cabe ao homem promover as interações. Isso significa que a

existência de novas individuações maquínicas e a conexão entre indivíduos técnicos jamais

- 140 -

podem prescindir da presença humana. Esse progresso individual e o agenciamento coletivo

das máquinas produzirão uma vitalidade excêntrica: “Há algo de vivo em um conjunto

técnico e a função integradora da vida só pode ser assegurada por seres humanos.”

(SIMONDON, 1989, p. 125). Em linguagem cibernética, novas entradas (inputs) humanas

gerariam novas saídas (outputs) maquínicas e vice-versa. Como podemos perceber,

Simondon aproxima-se da cibernética, mas sem jamais prescindir de uma postura crítica.

Concordaria plenamente com Wiener quando este define suas diferenças com a

termodinâmica: do mesmo modo que a entropia é uma medida de desorganização, a

informação é uma medida de organização. Mas discordaria das utopias de liberdade

maquinal imaginadas pelo autor de Cibernética e sociedade, além de deixar claro que só o

vivo é permanentemente contemporâneo a si mesmo, enquanto as máquinas são puro

passado.

As soluções biológicas (sempre passíveis de combinação com as soluções técnicas,

o que acontece em escala exponencialmente crescente em nossos dias) que se apresentam

são constantes e inesperadas e as individuações são permanentes. À heterogeneidade dos

indivíduos em relação a si mesmos, que é fonte alimentadora dos processos de

individuação, Simondon dá o nome de disparição, tradução aproximada para a expressão

que ele cria e chama de disparation. Todo indivíduo mantém uma crise em si mesmo, pois

está sempre em construção, sendo disparatado. O mais famoso aforismo atribuído a

Heráclito resume essa idéia paradoxal: “Descemos e não descemos o mesmo rio, nós somos

e não somos” (REALE, 1993, p. 64, v.I). As novas informações trazem novas

problematizações. Os seres simultaneamente se organizam e se desorganizam. E tal como

um prédio em construção, os andares inferiores fornecem a base para os superiores. Esse

movimento constituinte próprio da vida (que tem os cristais como modelo primeiro) pode

- 141 -

ser transferido para as máquinas. São indivíduos humanos abertos produzindo inventos

abertos. As tensões aí não são anuladas, mas compatibilizadas temporariamente durante um

período de tempo. Entre os séculos XIX e XX, novas máquinas tiveram que produzir novos

entendimentos: com isso, passamos do modelo de indivíduos fechados que perdem energia

da termodinâmica para o de seres que trocam informações na cibernética. Podemos pensar

que Simondon teve necessidade de fazer, com as suas próprias teses, essa passagem de um

pensamento científico para o outro, apesar das intensas vinculações termodinâmicas

presentes em seu trabalho.

Uma união de dois mundos: a entropia informacional

Ao falarmos de informação, no sentido que estamos aplicando aqui, vamos à base

da cibernética. É ela que vai possibilitar uma nova orientação para essa expressão, o que vai

possibilitar desde a existência de interações genéticas até o nascimento dos recentes

computadores. Informação, usualmente ligada apenas ao campo das trocas verbais e sociais,

agora será entendida como parte elementar da composição de um sistema, seja ele humano

ou não. O foco muda, pois é a intermediação que interessa. A famosíssima frase de

Marshall McLuhan, “o meio é a mensagem”, é símbolo desses novos tempos. Décio

Pignatari completa: “(...) não há informação fora de um sistema qualquer de sinais e fora de

um veículo ou meio apto a transmitir esses sinais.” (PIGNATARI, 1970, p. 13). A

preocupação será o quanto uma estrutura por si mesma tem capacidade de fornecer

mensagens, signos. Por isso, as aplicações serão múltiplas. Em suas visualizações no

campo lógico, biológico, industrial ou lingüístico, deixamos de levar em conta as pesadas

verdades únicas e absolutas, caras ao discurso científico por muitos séculos, para introduzir

- 142 -

a leveza dos relativismos, das validades locais e provisórias. A idéia de incerteza passou a

ser constituinte essencial da produção científica.

Passamos a lidar, como nas especulações do mercado financeiro, com uma nova

gama de conceitos: probabilidade, risco, variável estocástica (que, apoiada em novas

concepções matemáticas, se relaciona à introdução do acaso na musicalidade serial, o que

demonstra a extensão interdisciplinar dessas novas reflexões), valor estatístico,

criptografias etc. Quando lidamos com informação, não se trata de verdadeiro ou falso. O

foco está na eficácia, ou seja, em como podemos aumentar as chances de uma certa

mensagem ser compreendida. É por isso que é só na medida em que se diminui o número

de alternativas que existe a chance de aumentar o nível informativo. Pois quanto mais

amplas forem as possibilidades, maior a entropia, ou seja, maior a desordem, a

imprevisibilidade e a desconstituição do conjunto com o passar do tempo. O aumento

entrópico significa uma maior dificuldade em controlar os eventos, que é o que queremos

evitar quando lidamos com o funcionamento de máquinas, por exemplo. É desse modo que

podemos afirmar que a informação é organizadora. Comunicar ou informar, portanto, no

sentido que Simondon intenciona, é resistir à desconstituição da segunda lei

termodinâmica. Especificamente aí, estão envolvidos os universos dos objetos e dos seres

vivos: “O organismo se opõe ao caos, à desintegração, à morte, como a mensagem ao

ruído.” (idem, p. 13). Ordem e desordem, compreensão e ruído se associam. Mas, como já

dissemos, a manutenção da “juventude” dos objetos depende diretamente da intervenção

humana.

Só há possibilidade de controle e comunicabilidade, portanto, se houver restrições,

limites. Conseguimos manter uma conversa com outra pessoa porque os meios de

expressão em uma língua são finitos. Se criássemos palavras a cada relação mantida com as

- 143 -

coisas (lembremos de Borges e sua possibilidade de significados variáveis a cada ato

comunicativo, o que nos levaria a uma nova Babel), cairíamos em um caos lingüístico

completo e qualquer compreensão seria inviável. O significado dos termos é uma

constância necessária, mesmo considerando que tudo seja provisório. Como diz Umberto

Eco, em sua Obra aberta, falando sobre esse novo sentido de informação, criado por

Shannon e Weaver, engenheiros que visavam aprimorar a transmissão de ondas sonoras

para uma companhia telefônica: “Para a teoria da informação, conta o número de

alternativas necessárias para definir o evento sem ambigüidades.” (ECO, 1971, p. 101). Um

aspecto interessante é que essa teoria, que nasceu voltada para uma quantificação do nível

comunicacional adquirido, vai permitir múltiplas aplicações excêntricas. A da cibernética,

do mundo dos computadores, será uma. E, curiosamente, a da arte será outra. Se a

preocupação dos engenheiros era com a forma, com o canal comunicativo (onde o grau de

previsibilidade dos cabos telefônicos é fundamental), se transferirmos isso para o ambiente

da mensagem, a novidade passa também a ser fundamental: a arte. Para haver informação

contamos com os dois mundos: o regular e o irregular, ser e devir. Limitação e surpresa têm

que estar unidos em um ato cognitivo: “(...) quanto mais provável uma mensagem, menor a

informação que ela carrega” e, por outro lado, “as mensagens só possuem alguma

informação quando é possível ao invés delas, a ocorrência de outras.” (BENNATON, 1985,

p. 126).

No plano da criação, que inclui logicamente o ambígüo, pode-se conceber um

caminho que interligue possíveis evoluções, sejam biológicas, técnicas ou lingüísticas

(inclusive a estética) por meio da noção informacional. Para que isso ocorra é necessário

que haja desorganização ao inserirmos elementos estranhos. Desarranjar a ordem anterior é

condição determinante para o surgimento de uma nova ordem. Uma recriação depende,

- 144 -

portanto, de uma “desarrumação” e estranhamento produzido por novos elementos

incorporados ao sistema. Simondon nomeará esse processo, que aconteceria em todos os

diferentes níveis de individuação, de defasagem. Esse desordenamento temporário, que

enseja uma reconstrução, é o que define a chamada entropia informacional, um tipo de

entropia bastante distinto da entropia física. Entropia, que continua sendo evolução, agora é

crescimento informativo. No lugar do isolamento de sistemas fechados que, por sua

excessiva organização, tendem ao desgaste e à transposição de energia em mão única, a

entropia informacional lida com conjuntos abertos a intercâmbios com o meio externo. Ao

contrário daquela de tipo físico, essa nova entropia é o que reaquece e realimenta o sistema

e ela “é maior, quanto maior for o grau de liberdade franqueado ao emissor na composição

de suas mensagens.” (idem, p. 129). Pensamos que essa segunda aplicação da entropia, que

une termodinâmica, cibernética e teoria da informação, está perfeitamente adequada ao que

Simondon quer de cada uma dessas diferentes teorias. A energia e a irreversibilidade do

tempo da primeira, o feedback da segunda e o novo entendimento do que seja informação

da terceira. É assim que se torna despropositado falar de desordens. Troquemos por

reordenações. Existe uma saída para a condição inevitável de negatividade do futuro que a

termodinâmica nomeava como flecha do tempo. Essa teoria pode ser perfeitamente válida

para o mundo físico composto de sistemas isolados (que não recebe e emite informações

com o ambiente externo, que teria o tijolo após a modelagem como exemplo), mas só aí.

Não são esses compostos solitários que nosso autor prioriza. Daí a sua urgência de

promover uma simbiose de conceitos. Ele quer associar-se a uma outra visão que combine

energia, fluxo temporal e criação, pois é a inserção de informações em estruturas abertas

que produzirá a possibilidade de conquistas evolutivas, que é o que Simondon quer pensar,

sem distinções, em um ser vivo ou em um objeto técnico.

- 145 -

Temos uma analogia possível aqui com a imagem criada por Foucault (inspirado em

Nietzsche), na qual se pensa metaforicamente um instrumento que combine martelo e

cinzel, a destruição sendo acompanhada passo a passo por uma construção. Cada um não

pronunciado a uma ação ou a uma idéia, também é um sim que afirma outra ação e outra

idéia. A condição que deve ser desejada pelo homem do futuro, para Nietzsche, é construir

a sua vida à maneira de uma obra de arte. É aí que se dá a simultaneidade pensada entre

ética e estética, reunião que deveria acontecer em cada ato decisório. A pergunta que une

essas duas realidades remete à noção de eterno retorno, de Nietzsche: se o tempo fosse

cíclico e pudesse retornar eternamente a essa situação presente, você continuaria a fazer o

que está fazendo agora? Na reinterpretação de Foucault (o que o filósofo alemão pensa

como retorno do mesmo acontecimento, ele pensará como o da diferença), essa volta

temporal tem Heráclito, e não Parmênides, como inspiração. Não temos o círculo como

imagem geométrica, mas a espiral, que deixa exposta a abertura para novas entradas

(informações no sentido da individuação simondoniana). A passagem do tempo pode,

assim, criar possibilidades de existência com maior vitalidade, na medida em que nos

livramos de pensamentos menos potentes para outros mais libertadores. Uma idéia será

aqui compreendida como uma mistura de energia e informação. Pode ser concebida a partir

dessa visão uma individuação constante do próprio pensamento.

O que isso tem a nos dizer é que sempre que for possível a aquisição de novos dados

no campo biológico, da arte, da técnica, e, como vimos, da ética, teremos uma possibilidade

de superação do previsível, do necessário e do determinismo entrópico físico. Não há uma

escolha entre estabilidade e mudança, entre o que é sólido e volátil. Temos a união de

ambos. Novas ocorrências são gestadas continuamente. A indeterminação é tão decisiva

quanto a determinação. O que Umberto Eco diz, no plano da arte, poderia valer

- 146 -

perfeitamente para os diversos níveis de individuação em Simondon: entre “a proposição de

uma pluralidade de mundos e o caos indiferenciado, desprovido de qualquer possibilidade

de fruição estética, a distância é curta: somente uma dialética pendular pode salvar o

compositor de obras abertas.” (ECO, 1971, p. 129). Em Simondon, os seres vivos, a vida

psíquica, a ação política, os objetos técnicos e, até os indivíduos físicos - em momentos

anteriores à total solidificação - entram nessa dimensão de obras abertas. O que explica essa

abertura é a capacidade de absorção de dados externos, troca de informações e resolução de

problemas. A trinca informação, estranhamento e imprevisibilidade é um conjunto

interativo para a fuga do banal. É o momento em que aquilo que é normalmente percebido

como desorganização acaba trazendo maior amplitude comunicativa. O físico Ilya

Prigogine se ligará a essa noção de entropia informacional e assim criar o que ele nomeia

como “ordem por flutuações” ou “dinâmica do não-equilíbrio”. Passa a haver um privilégio

na física para o tempo, para a história e para a incerteza, ou seja, a ciência reincorpora a

cultura. Teria havido um pré-universo, chamado por ele de vazio quântico, que continha

partículas potenciais (que tem o mesmo sentido energético usado por Simondon) criadoras,

pelas suas flutuações, do universo em que estamos. Segundo Prigogine, esses mesmos

conceitos nos possibilitam refletir sobre as singularidades vitais. Vida e matéria perdem

qualquer distinção de natureza, pois o que se apresenta é um aumento de complexidade:

“No equilíbrio tudo é simples e estável. Longe do equilíbrio, o complexo e o instável

podem aparecer. A grande objeção era que a vida era complicada demais para ser explicada

pela física e pela química. Essa objeção cai a partir do momento em que, longe do

equilíbrio, você tem a possibilidade de estruturas complexas.” (PRIGOGINE, 2002, p. 36).

Em Prigogine, a flecha do tempo termodinâmica é criadora, produtiva.

- 147 -

Podemos entender nessa via da teoria da informação uma possibilidade de otimismo

de Simondon em relação às novas máquinas, particularmente os computadores, pela sua

capacidade de acumular e processar informação, são capazes de corrigir seu próprio

comportamento por tentativa, erro e correção. Nosso autor nota antecipadamente (mesmo

com a incipiência das versões computacionais dos anos de 1950) que estamos lidando com

máquinas que são capazes de realizar certas operações lógicas e (indo nesse caso bem além

de McLuhan), que são muito mais do que extensões de nossos músculos e sentidos. Se o

abastecimento informativo humano dessas máquinas for bem conduzido, podemos ampliar

a liberdade para a realização de outras ações, mais inventivas. Temos precisamente nesse

contexto uma possibilidade de vislumbre humanista na técnica. Mas não se pode esconder

um risco sempre à espreita: a mesma máquina que tem potência de libertar, pode também

aprisionar e diminuir as capacidades humanas. Todo o problema da liberação ou do

encarceramento a ser produzido por objetos técnicos está definitivamente concentrado no

uso que os homens farão delas. O automatismo generalizado pode gerar delírios, como

acreditar que reverter a natureza seja perfeitamente possível. O chamado trans-humanismo,

corrente de pensamento contemporâneo que se anuncia como herdeira da cibernética,

argumenta que o homem, a exemplo de uma mercadoria, é um produto em obsolescência a

ser ultrapassado pelas conquistas digitais criadas pela própria humanidade. Mantendo uma

separação radical entre natureza e artifício, quer reviver, com as tecnologias disponíveis

hoje, a pretensão científica cartesiana de tornar o homem “mestre e possuidor da natureza”.

A síntese da proposta trans-humanista é usar meios tecnológicos para suprimir a dor, a

infelicidade e, sua grande ilusão, a morte.

Voltando aos cruzamentos possíveis entre a teoria estética contemporânea e as

idéias de Simondon, nos deparamos com a noção de informal. Sendo a inclusão de

- 148 -

movimento e a quebra da forma e da figuração trazida pela arte moderna e contemporânea,

ocorrem associações possíveis com o rompimento do modelo aristotélico na arte e na

biologia. Em função das suas distintas camadas de leituras, a obra de arte do nosso tempo

só se completa (ou seja, individua-se) em associação com quem a observa. Para

exemplificar isso, é só lembrarmos que ao relermos ou revermos grandes obras de arte em

diferentes momentos de nossa vida teremos compreensões completamente distintas delas. É

isso inclusive que a define como aberta. A intertextualidade encaixa-se com a cibernética,

na medida em que as informações que trago de outros livros, realimentam e enriquecem a

segunda leitura com visões renovadas. Como a modernidade traz fortes rompimentos com a

tradição lógica de causa e efeito, não há mais permissão para existência de

leitores/espectadores passivos. Dentro de cada obra há múltiplos e paradoxais caminhos e

todos aqueles que entrarem em relação com ela serão obrigados a sair da zona de conforto e

forçados a escolher uma via interpretativa entre várias. Com isso, o espectador compõe sua

visão no contato que vai mantendo com o objeto artístico. Em certos cenários da arte

contemporânea, o espectador chega, inclusive, a ser parte integrante da obra.

Não são mais fornecidas todas as informações, como em um romance ou filme

policial de estilo clássico de caráter realista, mas permanecem reticências que serão

completadas por quem os vê ou lê. O fruidor, a partir desse momento, é um co-autor, um

intérprete diante de uma encruzilhada de direções, pois está agora diante de um conjunto de

alternativas sígnicas, uma tão válida quanto a outra. Passa a haver, desde a arte moderna,

uma intenção explícita de fazer com que a riqueza de sentidos nasça junto com a

ambigüidade da mensagem. Se na arte tradicional é fácil predizer a sucessão e a

superposição dos temas, isso não acontece mais na arte de vanguarda (denominação dada

por Umberto Eco) quando a imprevisibilidade é múltipla. Sim, múltipla, mas não infinita,

- 149 -

pois nesse segundo caso cairíamos na cilada de ter todas as possibilidades de compreensão

e, por isso mesmo, não termos nenhuma, sendo o caos incompreensível de que já falamos.

É nesse sentido que podemos associar tudo isso com a idéia simondoniana segundo a qual a

individuação é maior que o indivíduo. O texto a seguir é de Eco, tratando desse novo papel

hermenêutico na arte, mas poderia perfeitamente ser de Simondon, trazendo a individuação

técnica e o papel inventivo dos homens que produzem os objetos: “Daí a possibilidade (...)

de escolher as próprias direções e coligações, as perspectivas privilegiadas por eleição e de

entrever, no fundo da configuração individual, as outras individuações possíveis, que se

excluem, mas coexistem, em uma contínua exclusão-implicação recíproca.” (ECO, 1971, p.

154). Acaso e controle são, portanto, completamente interdependentes na criação artística

ou técnica, o que nos leva a concluir que determinismo e indeterminismo, ser e devir, mais

uma vez mostram suas interações e marcam a rejeição de Simondon aos dualismos.

Em termos de realimentação informativa, podemos interligar uma multiplicidade de

eventos: o aparecimento de novas espécies na natureza, um novo sentido conotativo para

velhas palavras dado por um poeta ou um novo objeto técnico que amplie a liberdade

humana. Umberto Eco e Gilbert Simondon estão unidos, mesmo em campos teóricos

particulares, pela teoria da informação.

Novos sentidos para as máquinas

Pensada como reunião de informações (sujeita a permanentes redimensionamentos)

de variados campos de saber, a máquina é concomitantemente técnica, social, estética,

econômica e - antevendo o que vivemos hoje, diz Simondon, - também ecológica. Algo que

nunca foi cogitado como maquínico, agora torna-se possível nesse redimensionamento:

casas, estradas, catedrais etc. Isso é motivado pelo fato de que agora todos esses são

- 150 -

indivíduos técnicos, cada um com uma história própria que acompanha a trajetória da

humanidade e frutos diretos de toda uma produção coletiva, cultural. É esse significado

renovado da individualidade, que torna impossível entender a criação técnica sem as

devidas conexões culturais e as inventividades humanas próprias a ela, que se constitui

como um dos pontos altos de reformulação promovida pela filosofia de Simondon. É que a

produção técnica se alia à própria natureza, desfazendo qualquer dualismo natural/artificial.

O natural que permanece em nós, e que permite aos objetos ter algo de humano, ganhará

também o nome de pré-individual. Isso significa que quanto mais um objeto incorpora a

natureza, mais aberto a alterações ele é. É um além do homem que pode gerar um além das

máquinas.

Essa é uma herança que o próprio autor, em uma entrevista de rádio em 1971,

atribui a Jacques Laffite, tido como precursor da linhagem de idéias que modifica

completamente o entendimento do que pode ser uma máquina ou as profundas distinções

que pode haver entre elas: “Laffite detectou o fato de que as leis de funcionamento de um

regulador não são as mesmas que as de um motor. Ele conclui (...) que alguém pode tratar o

equilíbrio dos pontos ou equilíbrio das estradas como se isto fosse de um certo modo

articulado e que as máquinas estáticas são máquinas como as outras. Assim não é

necessário que as pessoas chamem um objeto de „máquina‟ para que ele seja realmente uma

máquina” (HART, apud SIMONDON, 1989, p. 183). É esse raciocínio que torna possível

uma classificação “zoológica” dos objetos técnicos, na qual, a exemplo da biologia,

teríamos linhagens parentais e acompanhamentos evolutivos. Provém dessa visão mais

ampla da criação de objetos e da inspiração cibernética a substituição, na obra de

Simondon, dos termos “objeto” ou “máquina” por “sistema” ou “estrutura”. Se os primeiros

remetem a um isolamento, os outros são sempre fruto de integrações de sub-conjuntos que

- 151 -

mantêm, ao mesmo tempo, harmonia e diferenciação entre si. As máquinas, inclusive, são

percebidas à maneira de organismos. A própria troca de energia depende da junção de

elementos disparatados em um certo nível. Didier Debaise resume a idéia simondoniana de

sistema: “(...) relação entre elementos heterogêneos, produzindo uma organização

imanente, pela tensão dos elementos, um liame, e criando, por essa mesma

heterogeneidade, uma energia potencial.” (DEBAISE, apud CHABOT, 2002, p. 60).

Nesse ponto de vista integrador, em estado de tensão, percebemos como aflora a

idéia de um humanismo técnico. É a experimentação direta combinada com a imaginação

humana e a flexibilidade de cada material que constitui novos objetos e estes podem

colaborar para a melhoria das condições de existência do homem. Simondon, de modo

visionário, notou que esse caminhar das máquinas no sentido informático precisava de uma

nova orientação conceitual, já que uma ampliação do automatismo poderia promover um

deslocamento do trabalho humano para atividades mais criativas. Diante dessa perspectiva,

toda invenção técnica é o estabelecimento de uma troca de informações, sem qualquer

hierarquia entre sujeito e objeto, que altera um e outro, além do meio que os abriga. Essas

reorientações generalizadas e permanentes, além de imprevisíveis, são também novas

individuações na ampla redifinição que Simondon propõe. Mas não é essa a visão

generalizada que a história da filosofia mantém em relação à técnica. A possibilidade de

unir humanismo e criação de objetos luta contra fortes radicalismos, tendo ninguém menos

que Platão como oponente.

O que se percebe como uma tendência que se mantém, mesmo que sutilmente hoje,

no pensamento ocidental desde a Grécia Clássica é que não é valorosa a reflexão sobre

objetos técnicos. Simondon compara o tratamento dado aos escravos com a consideração

filosófica sobre os objetos técnicos: “Do mesmo modo como o escravo era rejeitado para

- 152 -

fora da cidade, as ocupações servis e os objetos técnicos que lhe correspondiam eram

banidos do universo do discurso, do pensamento refletido, da cultura.” (SIMONDON,

1989, p. 86). Assim como esse preconceito endereçado à técnica está presente entre os

gregos, ele é perceptível, como vimos na primeira parte dessa tese, também no mundo

medieval. É só no Renascimento que se torna perceptível uma mudança de visão, sendo

Leonardo da Vinci o personagem modelo do artesão-artista-cientista, já que ele é o símbolo

notório de uma aliança inédita de teoria e prática, apoiada na idéia, intrínseca à

modernidade, de que quem sabe faz por si mesmo. Os objetos ganham dignidade e

reincorporam-se assim às produções culturais humanas. Não basta mais projetar uma ponte

apenas no plano mental, mas é preciso sujar as mãos e erguê-la materialmente por conta

própria. O espaço que simboliza esse casamento no alvorecer da modernidade é o ateliê,

uma espécie de laboratório ao mesmo tempo científico, filosófico e artístico. Simondon

indica essa mudança de mentalidade e uma conseqüente nova consideração filosófica sobre

a técnica: “A Renascença consagrou as técnicas artesanais lhes fornecendo a luz da

racionalidade.” (idem, p. 87). O projeto renascentista é um primeiro momento que o

filósofo utiliza para mostrar uma valorização particular que as técnicas vão conquistar e que

faz parte do grande projeto de sua análise da técnica aliada integralmente à cultura. Pascal

Chabot diz sobre nosso autor: “Ele elabora uma teoria da gênese do objeto e de sua

influência sobre a civilização.” (CHABOT, 2002, p. 7). Isso nos leva a pensar que o

humanismo renascentista inclui também um humanismo técnico.

As criações técnicas sujeitas à evolução não são completamente individuadas, pois

isso sugeriria algo finalizado, isolado em si, o que, segundo Simondon, tem baixa carga

pré-individual, pouca energia potencial, para usar palavras do autor. É a participação

humana no processo criativo dos objetos que permite a integração deste com outros objetos.

- 153 -

Isso vale também para uma interligação entre os homens, pois qualquer descoberta técnica

remete a outras anteriores, o que demonstra que ela não vem do trabalho solitário de um só

autor, mas é fundamentalmente coletiva. Um aspecto novo presente nessa teoria é que

existe uma passagem de vitalidade (que não deixa de ser energia) dos inventores para as

invenções e dos homens entre si, o que garantiria inclusive a duração, o uso variado e a

transformação ao longo do tempo de certos objetos. Esses aderem à sua materialidade uma

concentração de memória e de informação, ou seja, viram signos. Como diz Liliane da

Escóssia, a partir das idéias de Michel Serres e Simondon: “A idéia tanto em um quanto em

outro é a de que os objetos técnicos são portadores de sentido que emitem, transportam e

veiculam informações.” (ESCÓSSIA, 1997, p. 31). Essa orientação só reforça ainda mais a

inseparabilidade entre cultura e técnica que Simondon quer apontar.

Duas ilusões: o homem como escravizador ou escravo das máquinas

Há uma influência mútua nas fronteiras entre o vivo e o técnico. Mas duas ilusões,

que nascem de alianças forçadas, devem ser evitadas. Uma vem da modernidade filosófico-

científica, particularmente com a figura de Descartes, em que o homem aparece como

senhor absoluto da natureza (o humanismo de Galileu que apontamos na primeira parte da

tese está encaixado nesse movimento), onde temos uma inteligência viva se afirmando

sobre a matéria bruta e plenamente moldável aos seus desejos, especulações e

manipulações. O sujeito está aqui e o objeto está lá. A máquina, como um escravo, é coisa

morta que existe para servir. Ao falhar, causa ira. Ela não tem dignidade para ser

compreendida. Esse modelo revela-se como uma extensão da visão desprestigiada de Platão

em relação à matéria e às criações humanas. E isso persiste, de algum modo, ainda hoje.

- 154 -

A outra tendência, sem dúvida mais delirante, leva em conta o medo da humanidade

vir a ser dominada por máquinas. O inorgânico ganharia vida, como o monstro de

Frankenstein, e abateria-se com grande revolta sobre toda a humanidade. Esse mito, que

apresenta a criatura eliminando o criador, muito peculiar à modernidade, que quer retirar o

poder de Deus e dá-lo ao homem, aparece também de modo explícito em O médico e o

monstro, de Robert Louis Stevenson. A mensagem incutida na obra é que o homem

elaborou técnicas que liberam forças, inclusive vitais, incapazes de ser controladas. A

orientação pessimista - e tremendamente explorada na ficção científica - é a de que o

homem possa em caráter literal ser um dia escravizado por suas criações técnicas. De todo

modo, uma humanidade escravizadora ou escravizada por máquinas são dois modelos

ligados a uma incompreensão de base, sendo dois pontos extremistas que Simondon deseja

rechaçar a todo custo.

É preciso realmente escolher entre dominação e pavor nessa relação com as

técnicas? Por que um vínculo hierarquizado, ditatorial, e não solidário? Por que uma

servidão de parte a parte e não a possibilidade de uma união, de philia? Uma relação de

parceria seria inclusive muito mais produtiva, pois haveria uma busca permanente de

aprimoramento de parte a parte e novos e surpreendentes usos para as máquinas com o

decorrer do tempo, além da chance, por que não?, de uma vida melhor para o homem. É

refletindo de modo isento sobre esses problemas que Simondon traz uma visão diferente da

qual se acostumou o senso comum. O ponto de partida restritivo é a idéia de que as

máquinas tendem à perfeição na medida em que ganham uma identidade única, destinando-

se terminantemente a uma só função. De acordo com essa mentalidade, o bom objeto

técnico é aquele que está pronto a ser explorado e obedece a comandos a qualquer hora,

além de encontrar-se definitivamente pronto, acabado e definido, ou seja, fechado em si

- 155 -

mesmo. Seria, assim, a ultraespecialização, ou hipertelia nas palavras do autor, a melhor

direção possível. No interior desse modo de pensar, está um medo delirante. Para não

sermos dominados pelas máquinas, que as dominemos primeiro.

O que Simondon nos apresenta é uma caminho completamente inverso a esse. A

evolução técnica só seria possível com máquinas de uso múltiplo, abertas, e com

capacidade de diferenciação das suas aplicabilidades no futuro. O processo de

aprimoramento de idéias, que pode atravessar séculos e resulta na elaboração de objetos, só

é possível se houver uma união solidária dos homens entre si e deles com mundo material.

Esse caráter de versatilidade funcional dos objetos só seria possível se esse mesmo vínculo

de camaradagem fizesse parte do interior dos objetos, promovendo uma divisão interna de

funções e especialização complementares e sempre abertas a novas possibilidades dos sub-

conjuntos, inclusive com partes fixas e fortes e outras que equivalem a um canteiro de obras

em construção. É isso que torna a sua ação integrada em teia e transfere uma importância

decisiva ao conhecimento e a criatividade humana no convívio com os objetos: “A

participação em rede é o porquê o objeto técnico permanece sempre contemporâneo a sua

utilização, sempre novo (...) é preciso que o objeto tenha limiares de funcionamento

reconhecidos, medidos, normalizados, para que ele possa ser dividido em partes

permanentes e em partes voluntariamente frágeis, submissas à substituição.” (SIMONDON,

Revue Philosophique, p. 356).

Simondon indica que a evolução dos objetos técnicos nunca viria da cabeça criativa

de um único indivíduo, mas, ao contrário, é uma produção coletiva, entre os homens e deles

com os objetos. A figura do gênio solitário, remanescente do pensamento cartesiano, não é

valorizada por nosso autor, revelando-se como mais um ícone da mitologia filosófica

moderna. Se temos personagens destacados que se eternizam, a razão disso é que estes

- 156 -

souberam sintetizar os múltiplos saberes de uma época e combiná-los com a sua

inventividade peculiar. O que seria de Newton sem Nicolau de Cusa, Giordano Bruno,

Copérnico, Kepler, Huygens, Leibniz, Galileu e a incrível série de aventureiros anônimos

do pensamento que ajudaram a constituir a nova visão da física e do cosmos no século

XVII. Cada um deles é uma mistura de fases e defasagens. Não são estados, são etapas de

investigação. O mais decisivo não é a perpetuação do nome de indivíduos isolados ou

invenções que possam ser consideradas estritamente pessoais. Todo ídolo vira uma espécie

de instituição social, passa a ser referência para honrarias, cargos, ou seja, exterioridades

em relação ao seu trabalho. Sua vida particular passa a servir de modelo positivo ou

negativo para outras existências. Prioriza-se a vida pessoal e apagam-se as idéias.

Que interessa à humanidade saber que Lewis Carrol era pedófilo ou que Foucault

era homossexual? Biografias fazem parte de uma moda editorial que chegou tardiamente na

modernidade. Quase sem exceções, estão atrás do pequeno ou do grande deslize moral de

uma figura pública de destaque. O que parece acontecer aí é que o leitor busca, pelo menos

por alguns segundos, a obtenção de uma suposta igualdade ou superioridade em relação ao

biografado. Mas mesmo nas histórias pessoais elogiativas, que se revelam muitas vezes

menos comerciais que as depreciativas por conterem menos escândalos, a informação que

ganha importância continua sendo a mais íntima e demasiada humana possível. Ou seja, a

que mais revela dos hábitos sociais compartilhados e a que menos destaca a grandeza

daquele pensamento. Tira-se o foco da singularidade das invenções, que é o que ficará em

caráter definitivo para o restante da humanidade, concentrado-o nas peculiaridades de

bastidores. Idolatrias são agrados sociais, que existem para oferecer barreiras à criatividade

humana e a circulação de conceitos renovadoras. A tendência do pensador que se rende a

esse tipo de demanda é a paralisação do seu impulso criativo. Atender a essas

- 157 -

recomendações exteriores significa, em grande parte das vezes, perder a singularidade do

próprio trabalho.

Simondon distingue produções culturais, que podem ter caráter universal, e

preocupações, sempre locais, provincianas e particulares. Contrariando esse tipo de

prestação de contas com o público e pensando no giro de informação que pode impulsionar

a ampliação da grandeza humana, ele abre a possibilidade de se falar de progresso citando o

tipo de conteúdo presente na Enciclopédia: “(...) todo homem que possui a obra é capaz de

construir a máquina descrita ou de fazer avançar pela invenção o estado atingido pela

técnica nesse domínio e de fazer começar sua pesquisa do ponto onde chegaram os homens

que o antecederam”. (SIMONDON, 1989, p. 93). Separar as informações que nos

engrandecem das que nos denigrem, as que nos libertam em vez de aprisionar, em um

mundo cada vez mais infestado de lixos noticiosos, é um grande desafio ético

contemporâneo. A relação entre técnica e acesso universal à cultura foi uma conquista do

enciclopedismo e está na hora de detalhá-lo um pouco melhor.

Cultura, técnica e enciclopedismo

Simondon apresenta uma clara admiração pelo racionalismo do século XVIII, em

particular os enciclopedistas e suas idéias de cultura. Temos, segundo o filósofo francês,

pela primeira vez um acesso ao conhecimento que extrapola de modo definitivo as

corporações, que ultrapassa saberes fechados, reservados a uma pequena casta de homens,

ou seja, de algum modo esotéricos, iniciáticos. Todo saber encastelado, que ligamos

diretamente às tradições monásticas medievais, passa a ser condenado. Não é que os

mistérios da natureza deixem de existir, mas que, ao contrário, sejam revelados à luz do dia

para todo humano que quiser descobri-lo.

- 158 -

Há no movimento enciclopedista (é curioso que o conjunto de livros ganhe o nome

do próprio movimento) muitas características valorizadas por Simondon: o incentivo à

transmissão ampla de informações, a difusão irrestrita do saber do passado e do presente a

todos os interessados, a perspectiva de um engrandecimento humano pela aquisição técnica,

a ligação íntima entre educação e liberdade e a integração dos mais diferentes saberes em

nome de um avanço da humanidade. Um outro aspecto, enaltecido por nosso autor, e talvez

não percebido claramente pelos próprios enciclopedistas, destaca-se mais que todos: a

Enciclopédia é uma obra aberta e o leitor que se depara com um verbete de determinado

objeto técnico, que revela todo o passado deste, deve estar preparado para dar continuidade

à evolução que foi conquistada até aquele momento por este objeto. A idéia é que cada

indivíduo reencontre, nesse conjunto de livros, com a diversidade do pensamento humano.

Ou seja, o leitor deve possuir um aspecto inventivo e o contato com a história tem que ser

inspirador de novas descobertas. Desse processo duplo de aquisição do conhecimento e sua

efetivação na prática virá uma expansão da liberdade humana. Uma necessidade que o

filósofo francês aponta é que os objetos técnicos passem a ser avaliados como artigos

plenamente integrados à cultura de um povo. Em outras palavras, alvos de reflexão. Eles

não vêm ao mundo apenas para ser usados, mas dão o que pensar. Esse movimento de

valoração técnica, que se iniciou entre os renascentistas, teve um momento decisivo nos

séculos XVII e XVIII. Apesar dos abismos que separam sujeito/objeto, mente/mundo

externo, a mecânica moderna realizou avanços nesse campo. Foi ela que deu um lugar para

os objetos no interior do pensamento matemático: “Descartes calculou as transformações

do movimento nas máquinas simples que os escravos da Antiguidade utilizavam. Este

esforço de racionalização, que significa integração à cultura, foi perseguido até o fim do

século XVIII.” (idem, p. 87).

- 159 -

Assim como a ciência conquista precisão e leis gerais no século XVII, o

conhecimento e sua transmissão ganham um caráter inédito de universalidade no século

XVIII. Esse estado de ânimo de grande expressão comunicativa é fortemente devedor da

Enciclopédia. A própria união de muitos autores, em um só conjunto de livros, simboliza,

ao mesmo tempo, a junção de toda a humanidade e um saber que possui validade em

qualquer época e lugar da Terra. O que os enciclopedistas esperam? Primeiro que a reunião

dos textos seja um sistema completo de educação e depois que todo e qualquer homem

entenda o conteúdo ali presente, ou seja, que a humanidade fique mais esclarecida. Ferrater

Mora, ele próprio um enciclopedista da filosofia, detalha as orientações de pensamento da

obra que, não podemos esquecer, ajudou a compor o espírito da Revolução Francesa: “(...)

tolerância religiosa, otimismo a respeito do futuro da Humanidade, confiança no poder da

razão livre, oposição à excessiva autoridade da Igreja, interesse pelos problemas sociais,

importância outorgada às técnicas e aos ofícios, respeito pela experiência, entusiasmo pelo

conhecimento e pelo progresso etc.” (FERRATER MORA, 2000, verbete Enciclopédia, p.

824).

A partir disso, podemos dizer que a Enciclopédia revelou-se como um canal de

divulgação do Iluminismo, movimento filosófico do século XVIII francês criador dessas

idéias que combinam multidisciplinarmente ciência, técnica e política. Precisamos lembrar

que seus editores são Diderot e D‟Allembert, filósofos iluministas de destaque e, ao mesmo

tempo, ideólogos da Revolução de 1789. Mas de que tipo é o saber enciclopedista?

Resumindo, é aquele adquirido pelo chamado homem de cultura, figura capaz de abarcar

com profundidade o essencial do que se conhece em diferentes áreas no seu tempo. A idéia

não é nova. Como vimos, sofistas como Protágoras a defenderam para o cidadão-orador na

Grécia Antiga e os renascentistas a alardearam como conteúdo fundamental do chamado

- 160 -

uomo universale. O que podemos dizer é que um devir enciclopedista atravessa esses

momentos históricos e ganha sua amplitude máxima no século XVIII. Pela primeira vez é

sugerido um padrão educativo a ser alcançado por todos os homens.

A noção de especialização, que será tão cultuada no século seguinte, o XIX, é

contrária ao espírito enciclopedista. Simondon vai dizer que no enciclopedismo “é a

sociedade humana com suas forças e seus poderes obscuros que é colocada no círculo,

tornada imensa e capaz de tudo encerrar. O círculo é a realidade objetiva do livro que a

representa e a constitui.” (SIMONDON, 1989, pp. 94-5). Se o acesso à informação de alto

nível estava limitado à nobreza e ao clero no Antigo Regime, ao contrário, uma motivação

republicana, sem hierarquia de classes e ligada a uma democracia ampla e irrestrita paira

nas idéias enciclopedistas. É liberal na melhor expressão que esse conceito pode ter. Não é

por outra razão que Vincent Bontems diz que o enciclopedismo é a filosofia política

implícita de Simondon. Isso ficaria visível no próprio recurso simbólico a ser valorizado

pela Enciclopédia. A obra recorreu ao uso do simbolismo visual, mais adequado às

operações técnicas, segundo o filósofo francês, do que o oral ou escrito, na medida em que

aquele permite o acesso ao conhecimento até aos iletrados. Temos um cosmopolitismo

inerente ao espírito da época, onde todos os indivíduos interessados em saber mais terão

esse direito assegurado. A Enciclopédia, como obra, é um símbolo do próprio cosmos.

Obviamente, havia na postura libertária dos iluministas a intenção de que todos os

homens fossem alfabetizados, mas antes que esse processo se finalizasse seria preciso que

as informações fossem de antemão acessíveis a todos, algo que só seria possível com o uso

de recursos imagéticos. Além disso, a linguagem escrita é restritiva a quem a conhece. Há

algo nela de seletivo e erudito. Já os esquemas visuais retratam melhor o espírito de

democracia ampla e irrestrita da época. Simondon chega a compor uma expressão

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paradoxal para indicar que as técnicas agora devem estar disponíveis a todos: “mistério

exotérico”. Outro problema é que a oralidade e a escrita, expressões típicas do humanismo

grego e renascentista, não têm capacidade de transmitir estruturas e operações materiais

com alto nível de precisão. O autor dirá que os humanismos têm em comum a promoção da

liberdade, mas cabe a cada época, a partir de suas próprias circunstâncias, fazer brotar o seu

próprio humanismo. Isso acontece porque é intrinsecamente humano criar artifícios que

liberam hoje e aprisionam amanhã.

Mas não podemos negar o Renascimento, apesar da sua tendência à erudição, como

uma grande fonte inspiradora da Enciclopédia. O momento histórico renascentista é de

tomada de consciência humanista inauguradora. No lugar de se contentar com o que a

tradição anunciava, o homem agora começa uma busca por comprovação autônoma do que

sempre foi teorizado. Uma participação humana ativa é estimulada. Um exemplo disso é o

cuidado na tradução, que não deixa de ser uma técnica, em um sentido amplo, dos textos

bíblicos e gregos clássicos: “Querer passar da Vulgata ao texto verdadeiro da Bíblia,

procurar os textos gregos no lugar de se contentar com as más traduções latinas, reencontrar

Platão para além da tradição escolástica cristalizada segundo um dogma fixo é recusar a

limitação arbitrária do pensamento e do saber.” (idem, p. 96). A construção coletiva do

conhecimento também é característica. A grande explosão artística da época não é resultado

direto da existência de ícones como Leonardo Da Vinci e Michelangelo etc, mas vem da

soma de esforços de uma diversidade enorme de pensadores, artesãos e artistas anônimos.

Os dois mestres são apenas tons mais pronunciados em um quadro pontilhado de cores e

gradações mais discretas, mas todas decisivas para a composição do quadro. Um outro

aspecto é que, pela primeira vez na história do Ocidente, ocorre uma valorização das

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técnicas artesãs. Pedreiros, mestres-de-obras, ferreiros, soldadores ganham voz. Seu modo

de atuar passa a ser inclusive etapa de aprendizado artístico.

Apesar do grande impulso renovador da Renascença, momento que poderíamos

classificar de pré-enciclopedista, é só no século XVIII que uma idéia de universalização

científica pode ser mesclada com técnicas que trabalham em regime de colaboração (nível

politécnico). A passagem pela Revolução Industrial foi uma etapa necessária para essa nova

conquista. Foi só a partir desse segundo momento que se tornou possível um tipo de

comunicação entre diferentes máquinas e entre distintos domínios técnicos. Foi nesse

contexto do chamado século das Luzes que a produção de objetos passou do nível artesanal

para o industrial, que o conhecimento instintivo e isolado das manufaturas e corporações de

ofício deu lugar ao padrão geral e científico da indústria. Vamos pensar que os modelos de

tamanho e qualidade dos produtos, exigência absoluta de consumidores hoje, só passou a

ser categorizável nessa época. Mas como temos muitos exemplos de objetos industriais de

ontem e hoje, avaliemos uma situação de tipo de saber anterior, pré-científica, trazida pelo

próprio Simondon: a relação entre o mineiro e a mina.

No exercício de uma função como essa acontece a conquista de uma enorme

intimidade do trabalhador com o local de trabalho e com as atividades desempenhadas. Ele

pode ser considerado até mesmo como parte integrante do lugar. Obviamente uma

sabedoria emana dessas relações. O problema todo é que ela é individualizada, ou seja, só

pode ser adquirida por experiência própria e não pode ser transmitida a ninguém. Temos

em ações como essas a aquisição de uma seqüência de hábitos que, caso não aconteça na

infância, não acontecerá mais. E que depois de adquirido não pode ser modificado. O corpo

torna-se parte integrante do meio onde se atua, como uma segunda casa ou uma segunda

pele. Além disso, é preciso pertencer a uma comunidade que está impregnada daqueles

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esquemas de trabalho. A característica do aprendizado é de fechamento, pois é preciso

vivenciar as mesmas sensações, começar do estágio zero para que o processo de

aprendizagem aconteça. Ou seja, o ato de conhecer precisa tornar-se encarnado, pertencer

ao corpo e a um certo ambiente espacial.

A relação do mineiro com a mina é comparável ao que Bergson comenta sobre o

instinto, característica biológica típica dos insetos. O saber instintivo é desempenhado de

modo tão perfeito, pré-programado e sem hesitação que não abre espaço para qualquer

variação ou criação. Existe, em virtude da própria habilidade incomparável, uma

impossibilidade por parte desse conhecimento instintivo em adquirir novos hábitos. É

também o que pode acontecer conosco, quando adquirimos uma destreza muito grande na

realização de uma certa atividade. Sabemos tão bem realizar algo que aquilo se torna

mecânico e, ao mesmo tempo, imutável. Nesse momento presenciamos um adormecimento

da consciência. Quando Simondon fala do mineiro e da mina, levando em conta

obviamente a diferença de que os insetos já nascem hereditariamente sabendo o que fazer e

o homem assimila as informações empiricamente, há uma real proximidade com a

inclinação instintiva nos dois casos, no aspecto de fechamento às inventividades nas ações

desempenhadas.

Na linguagem bergsoniana, por mais que a tendência biológica humana seja

prioritariamente a inteligência, haveria momentos em nossa existência em que essa

capacidade majoritária dá lugar a outras tendências de nosso passado vital. Existe, de

acordo com o filósofo, uma memória que é própria à vida inteira e que une todas as formas

vivas. Todo ser vivo vem de um mesmo ponto originário: “Arrastamos atrás de nós, sem

disso nos apercebermos, a totalidade de nosso passado (...) o conhecimento instintivo que

uma espécie possui de outra espécie (...) possui sua raiz na própria unidade da vida.”

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(BERGSON, 1979, p. 151). Ou seja, podemos ter comportamentos típicos de vegetais ou de

insetos. Esses primeiros foram os seres vivos que se contentaram com a retirada da

alimentação diretamente do solo. Esse caminho de acomodação, digamos assim, os levou a

um enclausuramento na imobilidade e na inconsciência dos seus troncos, caules ou galhos.

Os animais, ao contrário, optaram pelo risco da caça. Isso dividiu a linha originária da vida

em uma tendência passiva, o torpor dos vegetais, e ativa, dos animais, que levou, por

exemplo, entre outros caminhos vitais divergentes, a uma conquista de consciência no nível

humano. Mas todo esse passado está vivo em nós. Quando nos propomos enraizamentos,

uma orientação vegetal pode nos dominar provisoriamente. Diante da inexistência de

desafios que renovariam uma ação determinada, somos levados a gestos automáticos,

instintivos. O mineiro de Simondon parece estar localizado nesse segundo caso. Em função

da repetição mecânica dos gestos, das impossibilidades de transmissão, do conhecimento

adquirido na infância e do aspecto desnecessário de reinvenção de suas funções, o autor diz

que existe, em todas essas tarefas, uma minoridade técnica. O domínio nessa situação é dos

elementos externos em relação ao homem. Isso torna o personagem do mineiro alguém

muito distanciado da proposta enciclopedista.

Isso é completamente distinto do conhecimento de caráter científico, que vai

estabelecer um conjunto de regras gerais para os eventos integralmente passíveis de

comunicação a todos, inclusive com a utilização de esquemas visuais. O saber, em aspecto

amplo para o nosso autor, envolve também a expansividade e compreensão desse saber.

Um aspecto solidário é inerente a ele. Esse espírito fica claro nas palavras de um dos

idealizadores da Enciclopédia, Diderot, em uma das introduções do livro: “(...) a perfeição

da obra e a utilidade do gênero humano fizeram nascer o sentimento generoso de que

estamos animados.” (DIDEROT, apud POMBO, 12/10/2008). A missão geral da

- 165 -

Enciclopédia é a instrução geral e permanente do gênero humano. Está aí o sentido de

amplitude comunicativa que Simondon percebe na obra. O conhecimento que combina

regras gerais e comunicabilidade universal, ao referir-se à produção de objetos, ganhará o

nome de maioridade técnica. Segundo o autor, a Revolução científica do século XVII teve

um papel importante nesse sentido libertário: “Foi o século XVII que trouxe os meios de

universalização das técnicas que a Enciclopédia colocou em operação.” (SIMONDON,

1989, p. 96). Não podemos esquecer que a própria idéia geral de maioridade é de caráter

iluminista, no sentido que combina acesso fácil ao conhecimento, auto-didatismo,

intervenção criativa e autonomia nas ações. O filósofo dirá: “As técnicas mecânicas só

podem tornar-se verdadeiramente majoritárias tornando-se técnicas pensadas pelo

engenheiro, no lugar de permanecer técnicas do artesão.” (idem, p. 87)

Mas a proposta de Simondon para o técnico (ou filósofo da técnica) não passa

exatamente pela opção da minoridade nem pela da maioridade técnica. A escolha radical

por uma ou outra o enfraqueceria. A arte menor, a do artesão, nos coloca exageradamente

ligados ao sensível, em uma relação de inferioridade com os objetos. Já a habilidade maior,

a do cientista, nos afastaria demais da concretude, colocando-nos, ao contrário, em um

nível de abstração excessivamente distante da matéria e concentrado demais no sujeito. O

técnico (que ele também chama de engenheiro), para o autor, não está em nenhum dos

pólos, mas encontra-se na via média entre a condição artesanal e científica. O técnico

precisa vivenciar um pouco desses dois mundos e é assim com um pouco dos dois talentos

que reincorporaremos os objetos à cultura. Ele ocupa o mesmo nível e vê-se como parceiro

dos objetos, que são, ao mesmo tempo, signos a ser decifrados e conjuntos operativos que

precisam funcionar. Este profissional reúne, portanto, talentos históricos e práticos. É

alguém que utiliza a máquina, mas também a compreende.

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No enciclopedismo, teríamos um exemplo claro de interação entre técnica e cultura.

Temos nessa corrente de pensamento a possibilidade de pensar um outro tipo de

humanismo, que leva em conta não individualidades geniais, mas coletividades criativas.

Simondon enunciará a junção entre a Enciclopédia e a elevação do homem. O sentido

enciclopedista combina cultura e humanismo. Combate também a alienação na medida em

que coloca o homem na posição central do sistema de produção. Como diz Simondon:

“Todo enciclopedismo é um humanismo, se entendermos por humanismo a vontade de

reconduzir a um estatuto de liberdade que do ser humano foi alienado, para que nada de

humano seja estrangeiro ao homem.” (idem, p. 101). Segundo ele, são esses ventos

libertadores da informação técnica que devem nos servir de guia para a criação urgente do

nosso próprio humanismo.

O técnico como filósofo da técnica

Na perspectiva de Simondon, as tradições, o pensamento de uma época e suas

perspectivas futuras se expressam em suas criações técnicas. É a partir desse panorama que

podemos começar a falar do entendimento singular que Simondon tem do técnico.

Haverá, com isso, uma ressignificação completa do seu papel. A atribuição de mero

operador a esse profissional será considerada restritiva e viciada. A simples utilização e

convivência empírica com os utensílios do trabalho não é mais suficiente. Uma ampla

formação enciclopédica, principalmente ligada ao universo técnico, será uma primeira

exigência. Sua atividade envolverá também uma complexa gama de habilidades referentes

ao funcionamento, manutenção, regulagem e melhoramento da máquina. Esse novo

profissional, também nomeado pelo autor como engenheiro, terá que ser capaz de aliar

talentos operativos, intelectuais e criativos. Além disso, uma constituição ética, mesmo que

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isso não esteja claramente exposto por Simondon, fará parte da sua formação: ele deverá

ser capacitado para visualizar o que há de humano por trás das produções técnicas e para

refletir sobre as repercussões daquilo que cria, tendo sempre como alvo a expansão da

liberdade humana. O pressuposto, portanto, é que filosofia e técnica permaneçam

indissociáveis.

Falemos um pouco mais do técnico de acordo com esse novo enfoque. Seu campo

de atuação é aberto: pode ser uma máquina industrial, uma placa-mãe de computador ou a

construção de uma ponte. Pode ainda ser uma estrada de rodagem, o que vai muito além do

que se entende usualmente como objeto técnico. Questões econômicas e sociais escapam

por completo aos interesses técnicos. O preço de uma impressora ou as admirações públicas

ou publicitárias de um automóvel serão características que Simondon chamará de

inessenciais. O design, por exemplo, se não estiver a serviço de um aprimoramento

funcional, é visto como desnecessário. Isso não quer dizer absolutamente que o aspecto

estético deva ser menosprezado, mas a beleza deve estar a serviço de um melhor

funcionamento, pois não se pode pensar esses dois itens como separados. Os pontos

centrais de atenção do técnico concentrar-se-ão no processo de constituição de uma

máquina, qual o nível de integração das partes que a compõem e o que é possível fazer para

ampliar suas potencialidades atuais. Ele também não realiza distinções hierárquicas entre

construção e utilização, entre aspectos manuais e intelectuais.

As funções inventiva e operativa também não estarão dissociadas. A idéia é

conhecer para criar. O técnico não vai se impor ou se submeter à máquina, como um patrão

ou um empregado, mas estabelecerá uma relação de companheirismo, interdependência e

colaboração mútua. Sem ser senhor ou escravo, coloca-se no meio delas, aprende com elas,

promove comunicações entre elas e, porque não?, oferece possibilidades para que elas

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continuem sendo aperfeiçoadas, como obras que podem continuar a ser criadas (os prédios

que têm crescimento estimado de Le Corbusier são demonstrações disso). Em Simondon, a

missão técnica é a de regência. A correspondência analógica do engenheiro é com o

maestro, a quem cabe dois papéis: pôr em contato harmonioso os objetos técnicos de ontem

e de hoje e pensar quais deverão ser incorporados à orquestra em um futuro próximo.

A vinculação trabalho/técnica é outra grande preocupação desse autor. O

utilitarismo, um hábito cada vez mais disseminado no mundo contemporâneo, tende a

condicionar a tecnicidade a resultados produtivos, pois tudo precisa ter uma finalidade

prática e alcançar objetivos previsíveis e palpáveis. Por sua valorização do processo,

Simondon sempre criticou esse princípio utilitarista. Uma criação técnica não poderá ter

seu valor medido por seu grau de pronta aplicabilidade ou rentabilidade. Podemos imaginar

Leonardo da Vinci em um auto-questionamento se o seu protótipo do helicóptero poderia

ser construído imediatamente, quantas pessoas seria apto a transportar, quanto seria

cobrado de cada passageiro pelo vôo? Uma inovação tem um valor próprio, seja utilizável

ou não em dado momento histórico. Ela não só não tem preço, sendo um bem intangível,

como não está submetida ao tempo físico. Esses posicionamentos provocam a necessidade

de inverter a vinculação comum que se faz entre trabalho/técnica, que coloca esta como

serviçal daquele: “É o trabalho que deve ser conhecido como fase da tecnicidade, não a

tecnicidade como fase do trabalho, porque a tecnicidade é o conjunto, cujo trabalho é uma

parte, não o inverso.” (idem, p. 241).

No empenho realizado para a confecção de um objeto pré-programado, o

trabalhador é o mediador físico (é muitas vezes quem substitui o instrumento ou a

máquina), aquele que vai promover a união entre uma determinada matéria e uma forma já

definida. O esquema hilemórfico de Aristóteles, criticado por Simondon no campo

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biológico, volta a ser reproduzido no campo técnico. A atenção será dada a uma ou a outra,

ambas já prontas ou, pelo menos, concebidas por alguém que não está presente no ato de

fabricação. Criação e execução viram pontos distantes no tempo e no espaço. O interesse,

nesse caso, nunca se posiciona na operação propriamente dita, mas nos seus resultados

anteriormente planejados. São os princípios e as finalidades, ambos imóveis, os objetos de

interesse. O meio, móvel, permanece na obscuridade. É esse distanciamento em relação ao

que se produz e como se produz, que seria motivado por ausência de educação técnica, que

promove a alienação, segundo Simondon. O operador não participa da operação técnica

mesmo quando comanda ou serve a máquina. Ele está presente com seus braços e pernas,

mas está alheio mentalmente. . Falaremos mais sobre isso em um próximo subitem. Nosso

autor resume o que há no processo técnico e que falta na prática produtiva: “O

funcionamento operatório supõe na base, como condição de possibilidade, um ato de

invenção. A invenção não é trabalho.” (idem, p. 247).

A própria palavra “execução”, sempre ligada à realização de um trabalho, já traz em

si um sentido fechado de ordenamento externo que não incentiva intervenções ao longo da

realização. Nesse esforço, o que é mobilizado e requerido no homem é apenas seu saber

motor. A tecnicidade aí está contida por um padrão, uma finalidade preestabelecida. Essa

situação estável não deve ser abalada por modificações, sempre conjuradas como

instabilidades perigosas. Como existe um objetivo já definido a ser atingido, as múltiplas

vertentes futuras da relação homem/máquina serão encobertas. O simples trabalho reduz,

assim, as possibilidades de a operação técnica realizar tudo o que pode. O homem torna-se

nessas circunstâncias o que Simondon chama de mero portador de ferramentas. É a

humanidade, assim, que tem diminuídas as suas plenas potencialidades, já que a vida

mental e as resoluções criativas, características singularmente humanas, são diluídas por

- 170 -

uma esquematização sensório-motora que exige apenas repetições. Seríamos, então, menos

humanos quando somos só trabalhadores. Contrariamente à idéia positivista de Comte de

que o trabalho sempre dignifica o homem, Simondon diria que há trabalhos que claramente

tornam a vida humana indigna.

Ao contrário, efetivamente nos humanizamos no momento em que saímos da

simples atualidade aplicadora e penetramos nas virtualidades inventivas. Não estamos

dizendo, por outro lado, que o técnico deve se colocar distante da materialidade do que faz,

como é representado pelos executivos de muitas empresas hoje. Engenheiros que muitas

vezes começaram suas carreiras aplicando idéias na produção efetiva de objetos, na medida

em que ascendem na carreira perdem esse convívio, tornando-se homens de negócios (para

os quais a intenção final lucrativa é a mesma do dono do negócio), o que é fatal em termos

de criatividade técnica e um caminho para o segundo tipo de alienação que apontamos, a

dos proprietários, os que exercem comandos sem ligação afetiva e vital com o que está

sendo feito. Em suma, o técnico não está na condição de blue collar dos operários nem da

white collar dos administradores, mas entre ambos.

Simondon não vai nos falar de um domínio ou de uma submissão do homem ao

ambiente. Não há sombra de determinismos, em que um impera sobre o outro, mas união.

A conjugação será chamada de meio associado. Visto desse modo, o objeto técnico é um

misto harmônico e conversível entre homem e natureza e ele se aprimora na medida em que

se aproxima do natural. Isso faz com que uma flor modificada em laboratório possa ser

mais artificial que uma ponte perfeitamente integrada ao ambiente onde foi construída.

Existe uma falsa imagem, inclusive originária de um certo humanismo de caráter

moderno, de que é do homem o comando da constituição dos objetos. Na realidade, se o

papel humano for bem desempenhado, serão viabilizados os meios para que a tomada de

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forma aconteça, mas ela se dará por si mesma. Qualquer esquema técnico é maior do que a

mera soma de componentes envolvidos na operação. A tese do filósofo escocês do século

XVIII, David Hume, de que as relações são exteriores aos seus termos é plenamente

assimilada pelo pensador francês. Não há coisas, mas relações que ultrapassam e mesclam

essas coisas em composições qualitativamente novas. O que Hume conceitua como relação,

Simondon vai nomear de operação ou sistema. Isso vale até para a composição de um

tijolo: “(...) é o sistema constituído pelo molde e pela argila prensada que é a condição da

tomada de forma.” (idem, p. 243).

Mas trabalho e técnica não se eliminam. Uma máquina obviamente deve realizar a

função a que se presta, mas, para além dessa superficialidade, ela é fundamentalmente

portadora de informações que precisam ser decodificadas. É por isso que o simples uso ou a

mera visão produtiva e econômica dos objetos técnicos é tida como insuficiente. Esse papel

de decodificador cabe ao homem que domina os saberes técnicos. O portador de utensílio

fica para trás e surge o portador de informação. Para que uma real troca de informações

aconteça entre homens e máquinas é preciso um encontro entre a forma externa do objeto e

as articulações mentais internas já presentes a um sujeito. Combina-se estrutura material e

energia imaterial, pondo em contato pólos heterogêneos. Quando isso ocorre, a gênese

criadora é permanente.

Os objetos técnicos possuem dimensões genealógicas, sendo obras coletivas e

abertas. São transmissores interumanos de informação. É o que Simondon chamará de

transindividualidade. Com isso, a estrita separação sujeito/objeto nos moldes cartesianos,

com o império do primeiro sobre o segundo não faz mais sentido, pois o conhecimento

técnico depende de uma aliança de saberes que vem de ambas as partes: “(...) para que um

objeto técnico seja recebido como técnico e não somente como útil, para que ele seja

- 172 -

julgado como resultado de invenção, portador de informação, não como utensílio, é preciso

que o sujeito que o receba possua em si formas técnicas.” (idem, pp. 247-8). Os objetos não

são forjados apenas com matéria, há alma neles, pois existem enigmas e virtualidades de

uma série de criações presente neles. Cada um tem seu modo de existência, sendo

literalmente indivíduos com “história” e “código genético” próprios. Por isso, a necessidade

de decifradores. Para aqueles que são capazes de enxergar, a humanidade toda está presente

em um invento.

A operação de decodificação envolve a retomada do processo inventivo. Será

preciso remontar o problema que foi resolvido no momento da criação do objeto técnico.

Lembremos que não há invenção sem problematização. Esse já é um aspecto integralmente

filosófico, visto que se faz necessário para a compreensão de uma filosofia o esforço de

refazer o processo de pensamento que levou à elaboração de um conceito. É o que o

filósofo francês da primeira metade do século XX, Henri Bergson, uma forte referência nas

reflexões de Simondon, nomeou como intuição. É a intuição do já feito que leva à intuição

do ainda não feito. A junção dessas duas qualidades, intelectual e criativa, é que faz o

técnico penetrar no interior das coisas técnicas para compreender e experimentar suas

tendências evolutivas. É isso que lhe assegura a nova condição de filósofo da técnica.

Técnica e alienação

Alienação é um conceito trabalhado de modo original por Simondon em sua

filosofia da técnica. Mas antes de tratar da sua abordagem específica, sentimos necessidade

de recorrer às fontes históricas do conceito. De acordo com a etimologia, alienar-se está

permanentemente ligado a uma perda de humanidade: é pertencer a um outro, é não possuir

o domínio de si, é estar alheio. Duas grandes acepções decorrem daí em épocas distintas:

- 173 -

uma individual e outra social. A primeira, mais antiga, começa a ser utilizada no século

XIV e diz respeito ao processo de enlouquecimento que os indivíduos sofrem. A segunda,

do século XIX, ganha um sentido renovado, principalmente com Marx. É essa última que

revela-se como fonte fundamental das reflexões de Simondon sobre essa questão. Iremos

expor agora em linhas gerais a visão de Marx e, junto a isso, a crítica simondoniana.

Qual foi a perda específica que o pensador alemão percebeu com a ascensão do

modo capitalista de produção? A primeira constatação é que o mundo da mercadoria

transformou o caráter do trabalho, retirando do homem a seleção afetiva que se realizava

entre ele e sua atividade. O trabalhador simplesmente deixa de escolher o que produz.

Durante o processo inevitável de divisão e especialização de funções que acompanha os

processos inerentes ao sistema capitalista de produção, o operário passa a compor artefatos

exteriores às suas próprias inclinações: “A alienação começa quando (...) o objeto que o

trabalho produz enfrenta o seu produtor como um ser estranho, uma força independente.”

(SANTOS, 1985, p. 35). O trabalho passa a ser hostil ao trabalhador e deixa de refletir suas

aspirações e talentos. Além disso, ele passa a ter uma atuação mínima na elaboração de um

produto industrial. O que Marx conclui é que, ao longo dessa nova ordem de

acontecimentos, a sua própria humanidade é retirada. Com o processo de alienação

(exteriorização de si), a essência humana é retirada, na medida em que deixa de ser o que é,

uma mistura de produção e criação, e torna-se apenas meio de existência. A vida material é

fim e a sua atividade é apenas meio. A divisão do trabalho transforma o operário em

máquina. Ele não existe como ser humano, mas como trabalhador. Quando suas forças

vitais são cedidas a outro, ele perde a sua humanidade.

Um aspecto paradoxal, que Marx anuncia de modo visionário, é que o avanço da

maquinaria, que supostamente teria a missão de poupar os homens de grandes esforços, só

- 174 -

faz com que eles trabalhem, ou sejam “escravizados”, tanto bem quanto mal pagos, mais e

mais horas. Se o capitalismo fosse racional isso aconteceria, porém ele não só é

contraditório, mas se alimenta disso para seguir existindo. Marx traz o exemplo disso: “Mas

esse [o tempo de trabalho] elevou-se para o trabalhador inglês nas manufaturas de algodão,

a 12 até 16 horas diárias desde 25 anos para cá, em virtude da avidez do empresário,

portanto precisamente após a introdução das máquinas poupadoras de trabalho” (MARX,

2004, p. 31). Um aspecto assustador dessa realidade é que facilmente encontramos pessoas

muito orgulhosas dessa sua condição, como se sua dignidade pessoal pudesse ser medida

pelo número de horas trabalhadas. Essa tendência de jornadas de trabalho exaustivas

continua crescentemente visível hoje. Podemos inclusive perceber que os aparatos

tecnológicos são muitas vezes ofertados para fazer com que trabalhar continue acontecendo

em casa, inclusive nos finais de semana. O que se mascara como liberação e bem-estar para

o trabalhador significaria, para Marx, trabalho ininterrupto, ou seja, completa escravização.

Mais uma vez seriam confirmadas as contradições intrínsecas ao capitalismo, as mesmas

que fazem, por exemplo, com que nas metrópoles superpopulosas tenhamos carros cada vez

mais potentes que rodam cada vez mais de modo mais lento.

Marx vê uma nítida perspectiva anti-humanista, não obviamente na criação técnica

em si ou no convívio com as máquinas, mas na fabricação industrial de objetos.

Lembremos que a tomada de consciência para a necessidade de transformar a realidade só

vem com o contato direto com a materialidade do mundo. Só uma efetiva atuação produtiva

(práxis), uma visível exploração de um homem pelo outro e uma clara divisão de classe

social podem revelar a violência e o aviltamento a que o trabalhador se submete no modo

de produção capitalista. O trabalho não é mais uma confirmação da nossa humanidade, uma

manifestação de si, mas uma fonte de lucro, algo sempre exterior ao homem. A simples

- 175 -

manutenção da própria sobrevivência é o objetivo final. A vida material, sem espírito e

meramente orgânica, é fim, enquanto trabalhar é meio. Assim, no regime inerente ao

capitalismo, é um modo negativo de auto-expressão. Essas ponderações são importantes,

pois ele, assim como Simondon de outra maneira, é um pensador que vai além da dicotomia

otimismo/pessimismo em relação à técnica. O que deve ser avaliado para ambos é como a

elaboração de objetos está sendo conduzida e se há ou não participação criativa no processo

fabricador. Isso determina se uma certa produção humana é alienante ou não. Para Marx, é

uma certa conjugação de fatores no modo capitalista de elaboração de objetos que o torna

produtor de alienação e, conseqüentemente, aprisionador, entediante e desumano. O ponto

de vista dominante, o acúmulo permanente de capital, gera um aumento da valoração do

mundo das coisas diretamente proporcional ao desprestígio cada vez maior da realidade

humana. O trabalho, que originalmente é uma atividade vital, potencializadora, torna-se

mortificação. O trabalhador torna-se apenas uma referência numérica, pois é depreciado e

tratado como mercadoria na mesma medida em que mais cria mercadorias. Um indivíduo

deixa de ser uma singularidade humana para se transformar em algo que consegue realizar

funções x em um tempo y.

Em função de ações restritas, repetitivas e ordenadas exteriormente, o homem fica

submetido à condição de meio de produção, de máquina, de coisa. Essa atividade, que Marx

nomeia como “incessantemente uniforme”, prejudica ao mesmo tempo o corpo e o espírito.

O operário perde a identidade com aquilo que faz, podendo assim atuar em linhas de

montagem de qualquer produto. Ele nunca o realiza por completo, não tem qualquer

domínio sobre o objeto que está sendo produzido nem com seu modo de produção. Ele

encaixa um farol em um carro, insere um rebite em uma bolsa, aperta uma porca, inclui

uma sola em um sapato etc. Essa ação é completamente desprovida de qualidade e de

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satisfação. A que ele desempenha naquele objeto poderia ser qualquer outra em qualquer

objeto. É a atividade realizada, que deveria ser decisiva, que deixa de importar. Esse é o

trabalho considerado externo ou abstrato, no qual o trabalhador não desenvolve qualquer

tipo de energia física ou espiritual livres, nenhuma composição de si. Não só o seu trabalho,

como ele próprio, pertencem ao patrão. Está aí o centro nervoso da alienação nomeado por

Marx como estranhamento.

A ação profissional vira um tipo de castigo e foge-se dele como uma peste assim

que as coerções ligadas à sua rotina deixam de existir. Sobre esse tipo de atuação não só

sem afeição e fruição, mas com tristeza, aponta-se uma distinção: “O trabalho aparece, na

economia nacional, sob a forma de emprego.” (idem, p. 30). O trabalho seria, portanto,

ligado a uma escolha íntima do indivíduo, enquanto o emprego seria para a mera

subsistência. Nesse segundo caso, todos os esforços são empregados única e

exclusivamente a serviço do salário, que serve para atender necessidades alheias ao desejo e

prazer do trabalho em si. Nesse segundo caso, todos os esforços são empregados única e

exclusivamente a serviço do salário, que serve para atender necessidades alheias ao desejo e

prazer da atividade em si. Com isso, o próprio fruto do trabalho torna-se indiferente.

Também não é considerado por si, mas apenas como medida de intercâmbio, como

determinação exterior econômica. Um produto só vale uma certa quantia quando

comparado a outro. Tudo isso de modo completamente indiferente aos seus vínculos

exteriores com a natureza e com sua própria utilidade. Está sendo feita a famosa passagem

realizada, de acordo com Marx, pelo capitalismo entre valor de uso e valor de troca. Entre

um e outro, o que se perde é a singularidade que o objeto possuía, sendo ele agora

comparável a qualquer outro pela medida igual e geral do dinheiro. Seguimos na trilha da

- 177 -

abstração: “(...) enquanto valores de troca, as mercadorias café e cigarros são

completamente indiferentes ao seu modo de existência natural.” (SANTOS, 1985, p. 60).

O trabalhador, nesse caso, pode até se aperfeiçoar, mas a degradação como homem

é inevitável. Aliás, o filósofo argumenta que conforme o operário produza mais, ele, ao

mesmo tempo, se desvaloriza. É também por isso que o capitalismo está em franca

contradição com a visão humanista de Marx. Como o nível de realização das tarefas está

limitado ao mecânico e ao simples, as funções humanas podem ser substituídas por

máquinas, o que significa que você emprega homens como peças que, quando envelhecidas

ou ultrapassadas, são repostas, sendo mercadorias, como quaisquer outras.

Simondon discorda dessa visão marxista. Ele considera que essa troca de uma

atividade humana por uma máquina não tem nada de negativo, muito pelo contrário. A

própria substituição é um sinal de que um homem já não deveria estar fazendo aquilo e sim

exercendo sua energia em atividades mais livres e inventivas. O processo de evolução das

máquinas, ao ser bem conduzido, leva a isso. O que Marx vê como parte do processo de

coisificação do trabalhador, Simondon vê como possível liberação e como tendência natural

de máquinas evoluídas. É absolutamente legítimo esperar que um dos resultados possíveis

do aprimoramento das máquinas, que segue a linha do automatismo, é a liberação do

trabalhador do papel de operador de máquinas. É aí que ele deixa a condição de portador

de ferramentas (as máquinas mecânicas são apenas suas versões mais velozes) para assumir

a de portador de informações.

Marx talvez pense que haja uma perversidade a longo prazo. Primeiro se retira do

artesão sua potencialidade inventiva e o amor pelo trabalho para transformá-lo em mero

simulacro da máquina. Em seguida, fechando o ciclo, o que ele realiza torna-se dispensável

já que uma máquina não só faz exatamente o que ele faz, como também mais rápido. De

- 178 -

uma só vez, o operário é alheio aos resultados e aos atos de produção dos objetos. O

capitalista é alguém que apenas usufrui do trabalho alheio, mas não se envolve diretamente

com ele, ou seja, é estranho a ele. O domínio será sempre do capital sobre o trabalho, sendo

que o primeiro equivale ao segundo na condição de armazenamento, de repouso.

Por haver um estímulo permanente à disputa ou, em outras palavras, ao egoísmo, temos o

privilégio dos interesses individuais, o que nunca acompanha o interesse geral da

sociedade. É o próprio movimento de estranhamento e exteriorização do trabalho que

permite a existência da propriedade privada, que é “o produto, o resultado, a conseqüência

necessária do trabalho exteriorizado, da relação externa da matéria com a natureza e

consigo mesmo.” (MARX, 2004, p. 87). Um aspecto interessante apontado por Simondon,

que não é cogitado por Marx, é que a alienação pode ser estendida ao industrial. Ele, tal

como o operário, também não tem controle sobre a produção, mas apenas sobre os

resultados. É também um exilado de si: “Ao homem dos elementos, que é o operário, e ao

dos conjuntos que é o patrão industrial faltam a verdadeira relação com o objeto técnico

individualizado sob a forma de máquina.” (SIMONDON, 1995, p. 118). Isso significa que

tanto o capital quanto o trabalho estão em uma relação de atraso no que se refere aos

indivíduos técnicos. Simondon vai indicar que falta ao trabalhador e ao patrão a cultura

técnica - o conhecimento profundo do passado e do presente dos sistemas técnicas que os

rodeiam - e só ela desaliena.

Outro aspecto das teses de Marx próximo a Simondon é que ambos não associam o

processo de alienação como resultado constante da objetivação (relação do homem com as

coisas e com os outros homens), pois não é uma condição definitiva para o homem se

coisificar com a confecção técnica. Essa coisificação, defendida por Hegel como resultado

inevitável da relação homem/objeto, marcará profundamente o pessimismo em relação à

- 179 -

técnica manifestado em algumas linhas de pensamento no século XX, sendo Heidegger um

exemplo destacado. Marx contemporiza isso. Produzir objetos pode libertar ou aprisionar,

dependendo decisivamente do envolvimento humano nessa produção. O problema é a

tendência alienante inerente ao modo capitalista de produção. Segundo ele, a transformação

do homem em coisa acontece quando ele só se sente junto de si mesmo no momento em

que não está trabalhando. Vida e trabalho estão dissociados. A situação do operário é a de

escravo, ao mesmo tempo da máquina, da produção e do capitalista: “O trabalho exterior, o

trabalho em que o homem se aliena, é um trabalho de sacrifício de si mesmo, de

mortificação.” (MARX, apud ABBAGNANO, 1998, pp. 26-7). Esta é a negação de si.

Quando existe amor naquilo que se produz, não há peso nas horas que passam, mas

prazer no processo e no fim do que se realiza. É desse ponto, que vem de Marx e está

diretamente ligado à escolha autônoma do que se faz e ao aspecto de intimidade com o

local de trabalho, que Simondon parte. Há nessas operações, não-alienadas para Marx e

Simondon, uma paixão manifesta em relação à matéria. O vínculo do mineiro com a mina

de que falamos parece ser este. O trabalhador está absolutamente integrado, em corpo e

espírito, em suas funções. Mal conseguimos distinguir onde começa um e onde termina o

outro, tal a co-naturalidade do mineiro com o seu ambiente. Sua percepção da mina nunca

poderá ser igualada por quem não a freqüente desde muito jovem, o que faz com que o

ambiente rejeite os recém-chegados. Para o filósofo francês, sem a presença de desafios e

sem um saber que se compartilha, que pode ser transmitido, o encaminhamento

problemático desse processo é o resultado sempre igual. Se não há problema, não há

invenção. É essa a razão para ele classificar esse tipo de saber técnico, artesanal por

excelência, em um nível primitivo, pois é tradicional, fechado e local. Esse tipo de saber

pertenceria, por isso, a um estágio infantil: “(...) fica certo que uma semelhante formação

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técnica, consistindo em intuições e esquemas operatórios puramente concretos, muito

dificilmente formuláveis e transmissíveis por um simbolismo qualquer, oral ou figurado,

pertence à infância.” (SIMONDON, 1989, p. 90). Nessa ordem operativa não há renovação

constante de informações, mas apenas a reiteração permanente das mesmas atividades, o

que conduz a um embotamento. Em Simondon, esse momento será chamado de

automatismo. Ele considera que o automatismo e a alienação (unificados em um só

movimento nas atividades dos operários em Marx) são perigos distintos que estão sempre

rondando. Agora é hora de tratarmos da abertura e fechamento dos objetos e técnicos e

como a cultura técnica precisa estar, de uma vez, nas baixas altitudes materiais e nos altos

picos da teoria científica.

Objetos concretos e abstratos

Para começar, indo de encontro ao senso comum, para Simondon concretização

não é finalização ou atualização de um processo, como se pensaria à primeira vista, mas,

pelo contrário, continuidade, abertura. No momento de verificar a condição evolutiva de

um objeto, não podemos levar em conta apenas a sua individualidade, sua denominação,

sua aplicação atual ou a sua aparência externa. É a função, o desempenho que é

determinante. E não existe forma fixa que corresponda a um uso definido: “Um mesmo

resultado pode ser atingido por estruturas muito diferentes.” (idem, p. 19). O critério não

deve ser classificatório (baseado em identidades exteriores) ou por denominação, mas por

ações desenvolvidas: os primeiros computadores provavelmente estavam mais próximos

das calculadoras do que dos computadores contemporâneos. Esse argumento que separa

função de forma se aproxima, a nosso ver, do que Spinoza menciona sobre a importância

decisiva dos modos de existência na avaliação de um ser. Ele vai dizer que, nesse sentido,

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os cavalos de carga estão mais próximos dos bois de carga do que de cavalos de corrida. Ao

se deparar com um indivíduo, a pergunta será “o que ele pode?” (sua potência), não “o que

ele é? Qual é a sua identidade?” (sua essência).

O mesmo raciocínio é aplicado por Simondon no campo técnico. Não é o

pertencimento a uma certa espécie ou uma finalidade que define um objeto, mas a sua

gênese e desenvolvimento temporal. Sua utilização, por exemplo, pautada apenas pelo

presente, revela-se um mau parâmetro para avaliar as potencialidades que ele abriga. Não

se sabe, a partir de um indivíduo isolado, que caminho futuro ele pode ter, pois renovações

surpreendentes não cessam de acontecer. O critério de avaliação deve ser arqueológico, não

simplesmente utilitário, pois só é possível compreender capacidades evolutivas se as

criações técnicas tiverem sua história desvendada, sua árvore genealógica descrita e

compreendida. Sua memória orientará seu devir próprio e revelará a íntima ligação com os

diferentes grupamentos humanos aos quais ela está ligada. O presente é pouco, pois é uma

ficção que aspira a uma falsa estabilidade, já que é visível. O passado é feito de degraus

invisíveis, etapas anteriores de uma escada, também invisível, que continua. O aqui e agora

é apenas um dos degraus. Os indivíduos, inclusive no plano técnico, são fases para outros

indivíduos.

A memória une o mundo físico, o técnico, o mental e o vivo. É interessante perceber

que, tal como na evolução dos seres vivos, no crescimento dos cristais, na composição de

uma idéia ou na constituição de um novo objeto, o momento anterior serve de escalada para

o posterior. Saímos então da casualidade evolutiva, na qual o futuro é inteiramente

indeterminado. Nada é gratuito. Há um fio contínuo de integração entre o antes e o durante

na construção do depois. O que temos são platôs cumulativos e o presente está intimamente

- 182 -

ligado ao passado, sendo uma das suas realizações. O atual, nessas diferentes ordens, é

constantemente abastecido da virtualidade da memória.

Simondon vai marcar as distintas visões sobre os objetos, indicando que saber

técnico, somente aplicativo, não é cultura técnica, pois, nesse último caso, é imprescindível

um conhecimento que leva em conta o antes e o agora, ou seja, a memória. Esse tipo de

conhecimento é um dos fatores que possibilita o aprimoramento funcional. O outro é que as

peças constituintes se troquem internamente energia e informação, harmonizando-se. Isso

não é o mesmo que adaptação, pelo menos não na noção defendida por Darwin. Esta era

entendida como uma simples acomodação às pressões ambientais. Seu sentido é negativo,

passivo, pois é o ser amoldando-se a uma situação prévia. O intercâmbio dentro/fora não

ocorre efetivamente. O indivíduo perde algo e o meio externo não ganha nada. Mas há a

situação de uma adaptação a si, que envolve necessariamente uma reorganização criativa.

Isso acontece no plano biológico, social, mental e técnico.

Nesse último aspecto, isso se dá com um melhor ajuste e colaboração dos

componentes internos (ou elementos técnicos). É daí que novas individualidades técnicas

surgem. Mas, para que isso aconteça, é imprescindível que haja homens que possuam

cultura técnica. Esse entendimento de adaptação, de ordem interna e não externa, vai

ganhar em Simondon a conceituação de ressonância interna, cuja ampliação seria

exatamente o mesmo que evoluir ou, pelo menos, uma das maneiras de evoluir. Esse tipo de

interação consigo mesmo pode levar à realização de novas e inusitadas ações por parte dele.

O que se torna fundamental aí é que as partes interiores entrem em regime de solidariedade

umas com as outras, o que nosso autor chamará de causalidade recíproca. Nenhum

elemento pode ser gratuito e nenhum é superior aos demais. Na visão simondoniana, só

podemos falar em coerência no que diz respeito a essa realidade interior.

- 183 -

É dessa convergência interna de relações e capacidades, propiciadora de novas

individuações, que advém o caráter concreto de um objeto na visão de Simondon.

Concretização, portanto, tem uma íntima ligação com virtualidade, algo que mantém um

caráter imprevisível no que se refere aos usos futuros daquele indivíduo técnico. Todo o

problema técnico é fazer convergir harmoniosamente funções em uma mesma unidade

estrutural. É desse modo que constituímos objetos concretos. A matéria, usualmente

chamada de bruta, não tem, em Simondon, a passividade que o pensamento filosófico

tradicional atribui a ela. Sua abertura relativamente indeterminada (pois há um misto de

participação humana criativa com as características materiais específicas do objeto, ou seja,

também há determinação) para o futuro é condizente com uma feição ativa da própria

materialidade, um passado próprio, vivo e aberto a novas relações. Em outra via, a

coletividade humana, inclusive de períodos históricos distintos, que participou de uma

elaboração técnica injeta algo de sua vitalidade nessas produções. No limite, podemos

pensar que a humanidade está integralmente presente nos objetos que realiza.

Há no processo evolutivo, em todo e qualquer nível, um movimento de

convergência de forças. Já a divergência ou ultra-especialização (Simondon chama também

de hipertelia) levaria ao aparecimento de subconjuntos isolados, completos e autônomos, o

que indica um cada por si não colaborativo, não solidário, ou seja, não evolutivo. Essa

situação de alta individualização, por ser contrária ao movimento de concretização, é

entendida como abstração. É feita inclusive uma analogia com os vínculos humanos: “(...)

as peças (...) são como pessoas que trabalhariam cada uma por si, mas não se conheceriam

entre si.” (idem, p. 21). Por isso os objetos chamados de primitivos, que têm características

artesanais, tendem a uma especialização muito acentuada, à realização de funções únicas,

onde “cada unidade teórica e material é tratada como um absoluto, atingida em uma

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perfeição intrínseca que necessitando, para seu funcionamento, ser constituída em sistema

fechado.” (idem, p. 21).

A característica que impera nessa situação não é a virtualidade, mas a atualidade. O

futuro do objeto está todo condicionado na função já exercida. Ele está no plano do já feito.

É em um sentido contrário a esse que Simondon fala de plurifuncionalidade, em que cada

elemento estrutural realiza várias funções em lugar de uma, e em sinergia, cujo sentido

etimológico vem do grego e se liga à cooperação, ação coordenada e simultânea,

participação de várias partes para um fim comum. Os diferentes itens que compõem os

objetos técnicos devem, ao mesmo tempo, colaborar entre si para a constituição de um

sistema integrado de conjunto e também para realizar atividades múltiplas. É seguindo esse

raciocínio que ele argumenta que o aumento do número de elementos não é absolutamente

garantia de evolução: “O acréscimo de uma estrutura suplementar só é um verdadeiro

progresso para o objeto técnico se esta estrutura se incorpora concretamente ao conjunto de

esquemas dinâmicos de funcionamento.” (idem, p. 30). A inclusão de peças adicionais pode

até ser prejudicial, quando a sinergia não acontece e a abstração aumenta. Um item que

serve apenas para um embelezamento exterior, que tem muitas vezes fins publicitários e

comerciais, pode trazer graves comprometimentos de desempenho.

Pode acontecer também de o inimigo estar dentro. Os elementos constituintes, nesse

caso, ultraespecializados, entram em conflito e provocam o que Simondon chama de

antagonismo funcional. Mais decisivo então que o número de peças é como elas se

relacionam. Quanto às dimensões físicas, a tendência no mundo contemporâneo em relação

aos objetos, principalmente no universo das altas tecnologias, se dá na direção da

miniaturização. Já é possível aliar muita potência a estruturas muito pequenas. A vanguarda

atual, aliás, é a nanotecnologia, área de conhecimento que pesquisa e produz itens tão

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pequenos que muitas vezes chegam a ser invisíveis a olho nu. O que se verifica em muitos

deles é que o tamanho é inversamente proporcional às capacidades potenciais. O porte

físico e o número de peças, portanto, não é critério para definir estágio de avanço. Já a

solidariedade interna entre os componentes é decisiva no nível dos indivíduos técnicos

(reunião de elementos), mas principalmente no dos sistemas técnicos (reunião de

indivíduos). Uma colaboração mais importante dos técnicos para a humanidade será a que

promove uma maior interação entre as várias máquinas. É nesse caso que caberá ao homem

o papel de regente, de conector e companheiro delas. Isso gera uma ciência de acordo com

Simondon: a mecanologia. O autor resume dois tipos de aperfeiçoamento possíveis: “(...) o

que modifica a repartição das funções, aumentando de maneira essencial a sinergia de

funcionamento e o que, sem modificar esta repartição, diminui as conseqüências nefastas

dos antagonismos residuais.” (idem, p. 38).

É por isso que há evoluções que são apontadas como essenciais, convergentes ou

simétricas e que colaboram para um melhor arranjo interno, e outras inessenciais, que

seguem o caminho inverso. Mas os reais e estimulantes conflitos internos dos objetos

podem ser encobertos por aparentes desenvolvimentos. Esses últimos atendem muito mais

às necessidades comerciais de renovação incessante das aparências exigidas pelo público e

pela mídia – vivemos socialmente uma corrida incansável atrás da última novidade, o valor

de algo sendo equivalente ao que ele apresenta de alterações em nível externo –, que a um

critério técnico. Simondon vai dizer que esses avanços acessórios “podem mascarar as

verdadeiras imperfeições de um objeto técnico, compensando por artifícios inessenciais,

incompletamente integrados ao funcionamento do conjunto, os verdadeiros antagonismos.”

(idem, p. 39).

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Assim, distinguir as verdadeiras discordâncias é etapa fundamental da progressão

técnica. A continuidade evolutiva depende da identificação de um preciso grau de abstração

presente no objeto, o que é inevitável, pois nenhum é inteiramente conhecido, totalmente

previsível quanto ao que pode ser ou está definitivamente pronto. É da tensão inerente à

união das partes que se abre o caminho para os avanços, formados por seqüências coerentes

que conduzem a maiores concretudes. É preciso transformar o que é fraqueza em

fortalecimento, o nocivo em saudável. A idéia é encontrar um problema para em seguida

resolvê-lo. Esse é o trabalho do mecanólogo: “O objeto técnico existe então como tipo

específico obtido ao termo de uma série convergente. Esta série vai do modo abstrato ao

modo concreto: ela tende a um estado que faria do ser técnico um sistema inteiramente

concordante consigo mesmo, inteiramente unificado.” (idem, p. 23). Simondon fala

também em linhagens e filogenias técnicas, aproximando-se nesse caso do modo de

pensamento biológico, como se, ao verificarmos o passado de uma espécie, fosse possível

descortinar algo de seu futuro. O criador de um objeto será responsável por uma evolução

essencial ou inessencial, na medida em que tiver ou não capacidade de perceber esse

aspecto histórico, ou melhor, genealógico e genético em sua avaliação, além, é claro, do

conhecimento operativo. Agora vamos avaliar os critérios evolutivos utilizados por

Simondon e tentar demonstrar como eles estão intimamente ligados a uma associação

natural.

Concretização técnica e aproximação com a natureza

A vizinhança com a natureza é condição para um objeto seguir evoluindo.

Obviamente, nosso autor não está se remetendo aqui ao plano das semelhanças físicas com

seres naturais, mas a proximidade funcional que os objetos podem manter em relação ao

- 187 -

vivo. A concretização é co-extensiva do natural. O artificialismo é a via contrária e, visão

interessante de Simondon, pode acometer também os seres vivos na medida em que eles se

afastem das suas inclinações naturais. Isso nos leva a pensar que a idéia de abstração, além

do seu uso no meio técnico, pode ser estendida ao âmbito do que é vivo. Um

enfraquecimento inegável vem daí. Simondon vai ligar essa degradação dos seres técnicos a

uma dependência humana, laboratorial, e a uma conseqüente perda de autonomia e das

capacidades inatas. Isso significa que a relação com os indivíduos, vivos ou técnicos, vai

definir se algo é natural ou artificial, o que mais uma vez destrona esse antigo dualismo. Os

seres vivos são naturalmente concretos, mas o homem pode injetar artificialismos neles. No

lugar de estimular o que existe neles de potencial intrínseco a ser ampliado, o artificialismo

os domestica, tornando-os servos da humanidade, retirando seu desenvolvimento,

poderíamos dizer, genético, próprio. O exemplo fornecido pelo autor é o de uma flor

plantada fora do seu habitat sem qualquer tipo de consideração com a sua singularidade.

Esse procedimento fez com que ela deixasse de dar frutos, além de passar a resistir menos

ao frio e à insolação ao mesmo tempo. Essa flor artificializou-se, perdendo atributos

constituintes fundamentais.

Em contrapartida, o movimento contrário também será possível. Também podemos

ter uma naturalização do que é humanamente elaborado. Se é inevitável que a origem do

objeto seja artificial, o ponto a ser superado é exatamente esse. Isso quer dizer que uma

ponte pode ser mais natural que a flor que mencionamos antes. Ela orna a paisagem e é

ornada por ela. O natural e o artificial não têm ligação com essência ou com origem, mas se

dão na experiência. É a produção espontânea própria da natureza que deve ser buscada

como um espelho, uma analogia, uma inspiração. Essa é a trilha de ampliação da

concretude. Esse aspecto da coerência interior do vivo deve ser referência importante para a

- 188 -

elaboração dos objetos técnicos, pois em ambos os casos teremos o que Simondon chama

de meio associado. Tal como o organismo de um tigre do Ártico está perfeitamente

preparado para sobreviver às árduas condições climáticas existentes, o objeto técnico, fruto

de uma cultura, deve possuir uma completa integração consigo mesmo e com o ambiente

com o qual interage. A diferença é que, se os seres vivos conseguem isso espontaneamente,

os seres técnicos já dependem de uma interferência humana. Eliminando as distinções

radicais, Simondon dirá que uma espécie de vivacidade contagia o universo dos objetos. Os

objetos técnicos, a exemplo do vivo, apenas em uma escala menor, também devem ser

entendidos como teatro de individuação.

Isso contraria nossas idéias iniciais e habituais sobre o mundo técnico. Tendemos a

ver positivamente objetos fechados e absolutos na realização de suas funções. Isso é o que

usualmente se chama de precisão nessa área, pois é desse modo que fica nítido o domínio

que detemos sobre eles. Cada ser técnico deveria ser composto por peças acabadas e

completas, como um indivíduo que atingiu a Forma no sentido aristotélico. Devemos

sempre saber o que esperar deles. O que se extrai daí, de acordo com Simondon, é um todo

invariável e de funcionalidade previsível. Esse encerramento em si causaria uma

paralisação, uma manutenção das conquistas já feitas, nunca um avanço. Mais uma vez nos

deparamos com a abstração. Na forma abstrata “cada unidade teórica e material é tratada

como um absoluto, concluída em uma percepção intrínseca, necessitando para seu

funcionamento, de ser constituída em sistema fechado.” (idem, p. 21). As partes autônomas,

analíticas nas palavras de nosso filósofo (as sintéticas entram em processo de

aprimoramento do conjunto, ou seja, cooperação e sinergia), tendem a gerar dificuldades na

própria instrumentalização, na própria funcionalidade. Essa independência funcional das

partes, em que cada uma só desempenha a sua função única, independente do conjunto,

- 189 -

gera instabilidade. Estas, também nomeadas de elementos técnicos, seriam tão completas

em relação ao que cada uma realiza que se tornam incompatíveis entre si. Simondon, ao

contrário, indica que mais importantes que as funções específicas são as unidades

compatíveis: “É o grupo sinérgico de funções e não a função única que constitui o

verdadeiro subconjunto no objeto técnico.” (idem, p. 34).

Não existe um ponto final predeterminado para um objeto ou conjunto de objetos

técnicos. Ele mesmo levanta os problemas e colabora para a sua própria trajetória evolutiva.

A questão é que esses problemas têm que ser percebidos. A cultura, a educação técnica,

seria necessária para que isso pudesse ser descoberto. Nesse sentido, o processo de

concretização não ocorre aleatoriamente, mas há intenções muito bem definidas, pois tudo

o que é incluído em um objeto em nome de um melhor funcionamento deve ser

determinado. Isso é que será chamado por nosso autor de sobredeterminismo funcional. A

existência de pontos críticos nas máquinas justifica a presença humana. Os objetos

industriais, por exemplo, são mais concretos que os artesanais por não terem nenhum

componente fora do lugar. Tudo o que existe neles é da ordem do necessário. Esse é o

motivo dos sistemas de segurança não serem incluídos, por Simondon, no interior das

tendências mais fortes de concretização, mas são vistos como paliativos, acessórios,

aperfeiçoamentos menores. A segurança é adaptação externa a uma situação prévia, é

restritiva, não ampliadora. Essa trilha é a da conservação e não a da criação, que se dará

sempre com saltos, com rigor reflexivo e intenções muito claras. É assim que vai se dar um

aperfeiçoamento maior, como o que foi conseguido na evolução dos motores até chegarmos

às turbinas aéreas.

A concretização também tem uma forte ligação com a cientificidade. Assim, existe

uma exigência de que a técnica se una à ciência. A técnica não científica tende ao local, ao

- 190 -

particular, ao artesanal, que Simondon associa também à abstração. O artesanato se

contenta com um tecnicismo apenas prático, empírico, o que gera elaborações com alto

índice de aleatoriedade, enquanto a junção de técnica e ciência, prática e teoria, gera

objetos muito precisos, mas receptivos a novas aquisições funcionais. Paradoxalmente, são

abertos ao futuro, mas naquele momento não possuem um elemento sobrando ou faltando.

O conceito de concretização parece também apontar para as conseqüências que a

humanidade pode extrair da elaboração de objetos. Está aí mais uma vez o papel humano

no processo: as máquinas não fornecem sentido a si mesmas, nós é que o fazemos, pois só o

vivo pode resolver problemas e abastecer a si mesmo de informações. Existe um tipo de

concretização despreocupada com essas conseqüências humanas do progresso técnico.

Nosso autor a nomeará objetiva: “(...) pouco a pouco é a concretização objetiva que é só um

sistema; o homem se excentra, a concretização se mecaniza e se automatiza (...)”

(SIMONDON, apud CHATELÊT, p. 271). Há, portanto, avanços que envolvem um

engrandecimento humano e outros, que não só não fazem isso, como podem inclusive

produzir uma fase de decadência, de involução. Esses são aqueles momentos em que

passamos, segundo Simondon, da abertura religiosa aos dogmatismos teológicos, da

grandeza da linguagem à pura e simples concentração na gramática. Há aí um necessário

alheamento do homem no processo de elaboração técnica. A concretização objetiva abstrai

o homem de si.

É desse modo que podemos definir, de acordo com Simondon, se um período

histórico é humanista ou não, o que não significa absolutamente o homem ocupar um papel

essencialista, de referência única em relação ao universo. O que tem de ser analisado é a

participação vital, o quanto aquele que executa o trabalho está ali presente ou quanto do que

ele faz depende diretamente dele. Deve-se avaliar também se ele intenciona ou não algo

- 191 -

com aquilo que faz, que intenção é essa e se sua participação inventiva é requisitada ou não

nessas atividades. Não há em relação aos inventos um papel de centralidade ou de pleno

controle humanos diante do todo em volta. Novos objetos são criados pelo homem em

conjugação com os outros objetos. O homem também se individua, biológica e

mentalmente, individuando seres técnicos. O objeto e seus inventores estarem

reincoporados à cultura, também na reflexão sobre a técnica, é outro objetivo a ser

perseguido, a nosso ver, pela filosofia simondoniana. O que parece é que a educação

técnica fornece esses requisitos.

Uma imagem de que Simondon quer se afastar, por mais que certas filosofias de

linha idealista colaborem para manter, é a homem teórico, isolado, no alto do seu saber, da

vida social e da materialidade do mundo. Esse não é o tecnólogo, mas o tecnocrata. Esses

rótulos que posicionam o filósofo como um despreparado para a vida cotidiana não vêm de

hoje. Foram, por exemplo, atribuídos a Tales de Mileto, que segundo uma anedota, por ser

um puro contemplador, de tanto olhar para o céu, tropeçou em uma pedra e acabou no

fundo de um poço. Mas o curioso é que, na mesma história, ele virou o jogo. Para

demonstrar que a reflexão teórica, no caso envolvendo astronomia, agricultura e

meteorologia, pode auxiliar a prática, em um certo ano, ao prever uma grande colheita de

azeitonas, Tales arrendou todas as prensas de produção de azeite da região a baixo custo.

Após a colheita, em função da superprodução, os agricultores foram obrigados, pela grande

procura, a pagar caro a ele pelo uso dos equipamentos. Isso, segundo a mesma lenda,

tornou o filósofo pré-socrático um homem rico. Ele estaria afirmando aí nessas ações, como

uma espécie de moral da história, que um pensador pode conquistar riquezas materiais, se

desejar, mas a questão é que, em geral, ele não canaliza esforços na direção de uma vida

luxuosa, o que os faz optar por uma existência na simplicidade. Não é inabilidade para a

- 192 -

vida prática, mas uma atenção especial à vida mental. Podemos pensar que uma figura

como Tales se coloca em pé de igualdade com Arquimedes, no sentido de matriz dos

engenheiros de hoje, na medida em que tinham um pé na matemática e outro na realização

de obras.

Na perspectiva desses teóricos práticos, não há hierarquia em caráter definitivo

entre homens e coisas, mas exploração recíproca de possibilidades. Não é só o homem que

molda a matéria. A recíproca é verdadeira, já que novos corpos surgem a partir de novas

técnicas. Mas, para além disso, há uma grandeza histórica, uma cultura técnica que

impregna os objetos e à qual os homens só teriam acesso educando-se. Não existe nenhuma

garantia de evolução unidirecional, já que uma técnica pode humanizar ou desumanizar,

tudo dependendo diretamente do sentido ou falta de sentido que o homem dá a ela. A

concretização só é completa se unir evolução dos objetos e resultados benéficos para a

humanidade. Sobre a relação de franca associação entre humanismo e liberdade, Simondon

vai dizer: “O humanismo não pode jamais ser uma doutrina, nem mesmo uma atitude que

poderia se definir de uma vez por todas; cada época deve definir seu humanismo

orientando-o contra o perigo principal da alienação.” (SIMONDON, 1989, p. 102). A luta

humanista, portanto, em cada momento da história é contra o alheamento do homem do

processo e tem que ser permanentemente reinventada, pois a possibilidade de libertação do

homem pela técnica é distinta em cada época.

Evolução genética dos objetos técnicos × demandas psicossociais

Temos visto neste trabalho que os objetos não são mais compreendidos como meras

massas passivas e inertes inventadas unilateralmente por inteligências humanas, mas são

co-participantes, junto com seus “antepassados”, da sua própria criação. Eles, tal como os

- 193 -

seres vivos, ajudam a construir seu próprio futuro, sendo portadores de uma tecnicidade e

um dinamismo próprios. Eles possuiriam cargas genéticas a ser desvendadas. Haveria

portanto um genoma técnico, pesquisa que se revelaria tão importante quanto a que se faz

hoje do genoma humano. É nesse desvelamento que se localiza um importante papel

humano. É claro que há máquinas fechadas que dispensariam essa avaliação técnica e que

se prestam a uma única função, mas elas são, de acordo com Simondon, desvios da

tendência evolutiva e tendem, como na biologia, à extinção ou a uma utilização muito local

e restrita. Uma característica comum a todas elas é um forte automatismo, o que já anuncia

pouca versatilidade e poucas possibilidades de desenvolvimento posterior, ou seja, um

baixo nível técnico.

Qualquer processo de evolução técnica se dá, portanto, por meio de um vínculo

relacional, que implica, ou melhor, co-implica homem e objeto. Os inventos técnicos não

sairiam prontos da mente prodigiosa de um gênio, mas de uma experimentação em

igualdade de condições entre a humanidade e seus inventos. Como aponta Bernard Stiegler,

os indivíduos técnicos são seres inorgânicos, mas que se organizam. É por isso que se fala

de uma emergência e de um modo de existência deles. As máquinas normalmente têm mais

a nos oferecer do que imaginamos ou esperamos delas. É inerente a grande parte delas uma

margem de indeterminação e uma metaestabilidade que devem, primeiro, ser descobertas e,

em seguida, preenchidas de novas informações pelo homem. Possibilidade de humanismo

sim, mas antropocentrismo não, pois, sendo a proposta genética, não se poderia oferecer

nenhuma atuação central para o homem. Ele é um conector e um criador: “O indivíduo

humano aparece então como tendo que converter em informação as formas depostas nas

máquinas.” (idem, p. 37). É essa informação nova que pode gerar novos regimes para as

máquinas. Toda invenção é na verdade uma exumação, pois o desempenho que se espera do

- 194 -

homem é descobrir os indicadores latentes de avanço que os objetos anunciam no momento

do seu desempenho. Por isso a necessidade de experimentá-los, conhecê-los intimamente e

de promover ligações, sínteses entre eles. É aí que se revela a imprevisibilidade: “O próprio

do objeto técnico industrial é uma tendência à unificação das partes sob um todo que não é

o feito de um homem que fabrica o objeto raciocinando por funções, mas de uma

necessidade sinergética a maior parte do tempo imprevista por ele, que se afirma no seio do

objeto durante o seu funcionamento, onde o objeto inventa o seu funcionamento

independentemente da „intenção fabricadora‟.” (STIEGLER, apud CHATELÊT, p. 252).

Que parâmetro usamos para definir o grau de evolução técnica dos objetos? Ele só

pode ser interno, pois a estrutura externa ou as aplicações práticas não dizem tudo que

aquele objeto pode fazer nesse momento ou no futuro: “A indeterminação que é a virtude

conquistada pela máquina moderna, mas que constitui, por tendência, a essência de todo

objeto técnico, proíbe uma classificação a partir dos usos. A classificação dos objetos

técnicos não deve ser construída sobre critérios exógenos que são os usos que se faz deles.”

(idem, p. 246). Assim como Cuvier descobriu na biologia que um ser deve ser classificado

segundo uma interrelação orgânica interna (é isso que faz uma baleia ser um mamífero e

não um peixe ou a união entre garras, dentes e estômago que um tigre deve ter), o mesmo

procedimento precisa ser aplicado para o mundo dos indivíduos técnicos. A forma externa

não pode servir de fator classificatório. Diz o próprio Simondon sobre as distorções

proporcionadas por uma classificação apoiada na exterioridade: “(...) há mais analogia real

entre um motor de corda e um arco ou uma besta que entre esse mesmo motor e um motor a

vapor.” (SIMONDON, 1989, p. 19).

O que se dá com os carros é um exemplo disso. Por atender a uma série de

demandas psicossociais, acabam acrescentando itens não-evolutivos, ou inessenciais,

- 195 -

relacionados apenas a essa aparência externa e com um fim publicitário de chamar a

atenção dos consumidores. A demanda por mudanças, nesse caso, é um clamor que vem de

fora e feita por pessoas que desconhecem o funcionamento próprio dos veículos. É por isso

que a evolução dos carros tem outra origem: “Os progressos do automóvel vêm de

domínios vizinhos, a aviação, a navegação, caminhões transportadores.” (idem, p. 27). Um

pequeno agrado elétrico e surgem problemas de funcionamento que não existiam. O que

isso significa claramente é que as necessidades econômicas muitas vezes entram em choque

com as necessidades técnicas. Ao comparar carros e aviação, diz ele: “(...) enquanto o

automóvel pode se permitir conservar resíduos de abstração (resfriamento à água, ligação

por bateria e transformador de impulsões), a aviação é obrigada a produzir objetos técnicos

mais concretos a fim de aumentar a segurança de funcionamento e diminuir o peso morto.”

(idem, p. 26). Quanto à aviação, isso aconteceria na medida em que são causas internas que

condicionariam de modo determinante o regime de funcionamento das aeronaves. Não

podemos esquecer que além da questão urgente de garantir maior segurança de vôo, existe

uma baixíssima interferência de passageiros não só na fabricação das aeronaves como

também nos sistemas de operação das companhias aéreas. Em suma, a aviação é uma área

de alta tecnicidade e especialização e não dá abertura para intervenções de usuários.

Isso nos leva a perguntar como fica a relação entre técnica e estética. A questão que

fica no ar é como um objeto técnico pode ser belo? A beleza, o design pode colaborar na

tecnicidade? Quando a beleza não é um mero acessório que tem fins comerciais? O autor

argumenta que só há beleza em um objeto técnico no momento em que ele está em ação e,

ao mesmo tempo, cumprindo a ação a que se presta. Mas o ponto mais importante está

relacionado ao envolvimento humano existente nesses objetos e o quanto a humanidade

ganha com essas atuações. É um para-além da matéria, uma inclusão possível de

- 196 -

qualidades, uma transcendência que faz um objeto técnico ser estético, o que nos faz pensar

que a virtualidade presente em um objeto técnico também é estética. A busca de uma

perfeição própria ao campo da magia é repassada ao universo da técnica no sentido de

aquisição de beleza e prestígio. Simondon obviamente concorda que nem todo objeto

estético é técnico, mas, por outro lado, afirma que todo objeto técnico tem um valor

estético, já que, de modo mais geral, todo gesto humano envolve algo artístico e também

sagrado, sendo uma intervenção entre a totalidade da vida e o mundo. É a beleza técnica

que estetiza a tecnicidade. O objeto técnico é perfeitamente realizado quando consegue

fundir técnica e estética. Isso também seria para ele um motivador evolutivo.

Qualquer tomada de posição taxinômica no campo das máquinas deverá levar em

conta, portanto, o caráter experimental e uma avaliação que se faz por dentro de cada objeto

e, principalmente, o que ele pode ser daqui para a frente. Assim, tal como os indivíduos

vivos evoluem a partir de uma reorganização interna, o mesmo deve acontecer com os seres

técnicos. A distinção é que esse segundo modelo evolutivo depende de uma participação

humana. É a figura do técnico (filósofo da técnica), homem de cultura e companheiro fiel

das máquinas, que surge aí, oferecendo uma real possibilidade de pensarmos avanços

técnicos favoráveis à humanidade. Ou seja, humanamente técnicos.

- 197 -

CONCLUSÃO

Gilbert Simondon é um filósofo raro. Une de um modo muito singular reflexão

consistente e intensa vinculação com a materialidade do mundo e seus devires. Isso faz dele

um pensador absolutamente contemporâneo. A humanidade está em vias de modificação

profunda em relação a si mesma e a divisão estrita de áreas de saber é desprovida de

qualquer sentido. Pensemos na genética, área privilegiada para percebermos que um novo

ser humano está surgindo. Hoje temos aí, no mínimo, o cruzamento de nove setores de

pensamento distintos: política, informática, direito, economia, estatística, medicina,

biologia, filosofia e sociologia.

Um problema surge nesse cenário: tecnicamente, em breve, talvez tenhamos

condição de clonar integralmente seres humanos. Uma pergunta que não vemos ser feita

com freqüência nos meios científicos e na sociedade é com que objetivo se faz esse tipo de

experiência. É exatamente nessa lacuna que o questionamento filosófico se insere. As

terapias genéticas, a partir de células-tronco, oferecem, pelo menos, uma dupla

possibilidade futura que exige uma escolha nossa: recriar órgãos que foram danificados e

praticar medicina regenerativa ou produzir reproduções de seres humanos já existentes. O

caminho a tomar e que nunca foi tomado antes é uma das encruzilhadas éticas

contemporâneas.

O que parece é que vivemos uma disparidade entre os avanços assombrosos

conquistados no plano material pelas ciências e a escassa reflexão crítica, principalmente

dos filósofos, sobre esses mesmos avanços. Parte da filosofia contemporânea parece ainda

ter fortes ranços preconceituosos contra a produção material e técnica. A impressão que

temos é que esses pensadores não estão vivendo em nosso tempo. Ou estão distraídos (o

- 198 -

que já seria imperdoável) ou consideram problemas como esses desprezíveis. Diz

Dominique Lecourt sobre a filosofia e o pensamento sobre a técnica: “(...) Com algumas

exceções raras e notáveis, (...) os filósofos não aceitaram se interrogar de maneira

aprofundada sobre essa dimensão maior da existência humana, sobre o imemorável valor

humano que ela representa.” (LECOURT, 2005, p. 41).

O que esses filósofos não notam é que seres humanos sempre produziram objetos e

foram produzidos por eles, o que significa que novas humanidades sempre surgiram.

Vamos pensar, por exemplo, que novos corpos foram esculpidos, no plano físico e mental,

com o uso de telefones celulares. O que a genética, combinada aos meios computacionais,

está fazendo é acelerar o processo de novas modelagens humanas. Com isso, fica mais e

mais difícil defender a visão filosófica tradicional de uma natureza humana.

Mas os resultados desses processos são imprevisíveis. Podem ser benéficos ou

maléficos ao futuro humano. Essa incerteza nos leva a pensar que talvez nunca tenhamos

precisado tanto de filosofia como agora. Mas ela precisa ser interdisciplinar, voltando-se

para suas origens gregas. Sua problematização tem que envolver, ao mesmo tempo, o ato de

criar objetos e os seus efeitos para a humanidade. Será preciso associar epistemologia,

capacidade operativa e criação de valores. Estes últimos, que milenarmente foram tidos

como universais e absolutos, não se adéquam mais ao nosso mundo. As extremas e velozes

novidades contemporâneas exigem a renovação constante de padrões comportamentais

estabelecidos. Soluções já dadas não nos ajudarão a resolver nossas espinhosas situações

atuais. Não será possível uma resposta alheia ao campo da ação. Valor e automatismo não

podem ser relacionados. Simondon entende que o universo dos valores não é rígido, mas

varia de acordo com os acontecimentos. Afinal o indivíduo em trânsito é “um ponto

singular de uma infinidade aberta de relações.” (SIMONDON, 2005b, p. 506). Para estar à

- 199 -

altura de nossos tempos, lembrando a expressão de Nietzsche, não se pode separar o

biológico, o técnico e o ético.

Torna-se, portanto, urgente retraçar o percurso que o próprio Simondon indica em

sua filosofia. A individuação dos objetos deve ser acompanhada da individuação psíquico-

coletiva. Com isso, dois pensamentos se unem: o técnico e o ético. E ética em Simondon é

uma compatibilidade consigo, uma harmonia interior. O que fica claro para nós em vários

momentos é que a figura do engenheiro ou do técnico deve ter consciência permanente das

conseqüências da sua atuação. Ter educação técnica sem complementar isso com raciocínio

filosófico é não ser integralmente um técnico em Simondon. É justamente por isso que ele

vai propor a inclusão de elementos de história, filosofia e história das técnicas na formação

educativa do técnico. Sem reflexão sobre o seu modo de agir e produzir, a humanidade cai

em tecnicismos puros ou em fundamentalismos religiosos. Uma tendência forte que Lecourt

percebe em vários setores da intelectualidade contemporânea é a do pessimismo combinado

com a irreflexão: “(...) é lamentável (...) que se designe a „manipulação genética das

plantas‟ como uma coisa essencialmente diabólica.” (LECOURT, 2005, p. 28). A restrição

e a proibição não podem ser anteriores ao pensamento.

É óbvio que Simondon tem noção de que a tendência humanista no campo técnico

não é de modo algum majoritária. Nosso filósofo não é um iludido ou um otimista gratuito.

Ele reconhece que há uma tendência aprisionadora e alienante que ronda a produção de

objetos. Mas, na via contrária, há uma possibilidade, pouco explorada devemos reconhecer,

de ampliação de liberdade humana. O humanismo e o anti-humanismo são duas

possibilidades quando lidamos com questões técnicas. Podemos pensar que é exatamente

em função dessa duplicidade de trilhas que o pensamento humanista e técnico revela-se

essencial em nossas vidas. Fica, portanto, uma porta aberta e esperançosa na constituição

- 200 -

educativa de certos técnicos que aliem habilidade produtiva e inventiva a conhecimentos

históricos e éticos. São esses componentes, aliados no pensamento de Simondon, que

podem, em meio ao plano material hiperdesenvolvido que temos, tornar a humanidade mais

humana.

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SITES

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