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Simone Guimaraes - Ef 5

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  • ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM TEOLOGIA

    SIMONE FURQUIM GUIMARES

    EFSIOS 5.21-33 COMO MODELO DE DISCURSO DE GNERO

    So Leopoldo

    2011

  • SIMONE FURQUIM GUIMARES

    EFSIOS 5.21-33 COMO MODELO DE DISCURSO DE GNERO

    Trabalho Final de Mestrado Profissional Para obteno do grau de Mestre em Teologia Escola Superior de Teologia Programa de Ps-Graduao Linha de pesquisa: Leitura e Ensino da Bblia

    Orientador: Verner Hoefelmann

    Segundo avaliador: Flvio Schmitt

    So Leopoldo

    2011

  • SIMONE FURQUIM GUIMARES

    EFSIOS 5.21-33 COMO MODELO DE DISCURSO DE GNERO

    Trabalho Final de Mestrado Profissional Para obteno do grau de Mestre em Teologia Escola Superior de Teologia Programa de Ps-Graduao Linha de pesquisa: Leitura e Ensino da Bblia

    Verner Hoefelmann - Mestre em Teologia - Escola Superior de Teologia

    Flvio Schmitt - Doutor em Cincias da Religio - Escola Superior de Teologia

  • Saber esperar, sabendo ao mesmo tempo forar aquela hora que no pode esperar (D. Pedro Casaldliga).

    Em agradecimento quelas pessoas que esto envolvidas, de alguma forma, com a educao popular da Bblia e que, com pacincia, auxiliam outros e outras na desconstruo de leituras e interpretaes de textos (bblicos) que levam a opresso ou a submisso, tornando estes textos mais prximos ao seu desgnio.

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus/Deusa que, no seu misericordioso amor, nos d a vida e nos acolhe

    em todos os momentos, mostrando os caminhos da justia.

    Ao Centro de Estudo Bblico (CEBI), por onde iniciei a leitura libertadora da

    vida e a leitura engajada da Escritura, e continuo lendo, junto s comunidades,

    buscando antecipar os sinais do Reino.

    Faculdades EST e seus professores, pois l trilhei os caminhos de

    especializao em teologia e Bblia.

    s/aos telogas/os e biblistas feministas que buscam a justia na

    equiparao de gnero, a partir da desconstruo de ideologias patriarcais e

    sexistas, e, em especial, ao Pe. Jos Comblin, falecido neste ano de 2011.

    Aos meus pais e familiares que foram a base formadora do meu ser social e

    cristo. In memoriam de Dom Miguel, bispo da Diocese de Jata/GO, smbolo de

    simplicidade e presena amorosa.

    minha querida filha, por alimentar minha esperana e me dar foras na

    busca por um mundo mais justo.

    Ao meu amado companheiro, que no aconchego de seus braos e de suas

    palavras me revela um jeito novo de viver uma relao livre da dominao sexista.

  • RESUMO

    A violncia tema recorrente na sociedade brasileira. Suas razes remontam antiguidade e seus efeitos permanecem, hoje, perceptveis no cotidiano de muitas mulheres em todo o mundo. Sabe-se que, no Brasil, a cada 15 segundos uma mulher agredida, e que a estatstica perversa de mulheres mortas em seus lares ainda motivo de tabu em muitos setores da sociedade. luz dessa perspectiva de violncia contra a mulher, a pesquisa bblico-teolgica de corte feminista vem produzindo anlises relevantes a respeito do contexto scio-religioso, e em dilogo com as pesquisas sociolgicas vem possibilitando novos olhares sobre o problema. Dessa forma, a inteno neste trabalho sondar o discurso presente na elaborao do texto de Efsios 5.21-33, o qual contm diretivas especficas para o comportamento da mulher crist, e avaliar at que ponto tal diretiva se apia em amplos movimentos culturais do contexto em que foi produzido e suas possveis vinculaes com a ulterior realidade religiosa. Palavras-chave: Discurso. Enunciado. Religio. Violncia. Mulher.

  • ABSTRACT

    The violence is a recurring theme in Brazilian society. Its roots go back to antiquity and its effects remain, today, noticeable in the daily life of many women around the world. It is known that in Brazil every 15 seconds and 1 woman is assaulted, and this perverse statistics of women dying in their homes is still a taboo subject in many sectors of society. As the prospect of violence against women, the study of biblical and theological feminist cutting has produced relevant analysis regarding the socio-religious, and in dialogue with the sociological research has fostered new perspectives on the problem. Thus, the aim here is to probe the discursive discourse in drafting the text of Ephesians 5. 21-33, which contains specific directives for the conduct of the Christian woman, and assess how far such a policy is based on broad cultural movements of the context in which it was produced and their possible links with the later religious reality. Keywords: Discourse. Utterance. Religion. Violence. Women.

  • SUMRIO

    INTRODUO ............................................................................................................9

    1 O TEXTO BBLICO E SUA INTERPRETAO......................................................14

    1.1 Introduo ........................................................................................................14

    1.2 A religio, a lei e a filosofia domstica greco-romana........................................16

    1.3 A cidade de feso.............................................................................................18

    1.4 A carta aos Efsios ...........................................................................................19

    1.5 A Carta de Paulo aos Efsios (cap. 5, vs. 21-33) ..............................................20

    1.6 Exortao s mulheres.....................................................................................21

    1.7 Exortao aos maridos.....................................................................................25

    1.8 Consideraes finais do captulo ......................................................................27

    2 ANLISE FOUCAULTIANA SOBRE O DISCURSO DE EFSIOS 5.21-33............32

    2.1 Introduo ........................................................................................................32

    2.2 Definindo discurso............................................................................................33

    2.3 Elementos internos do discurso: enunciado e funo enunciativa.....................34

    2.4 Elementos externos do discurso: modalidades enunciativas.............................38

    2.5 A ordem do discurso: produo do discurso......................................................43

    2.6 Consideraes finais do captulo ......................................................................45

    3 A REALIDADE DA VIOLNCIA DOMSTICA ........................................................47

    3.1 Introduo ........................................................................................................47

    3.2 A linguagem, os smbolos e os discursos no imaginrio religioso cristo ..........48

    3.3 O corpo como objeto de poder e dominao na cultura patriarcal.....................55

    3.4 Consideraes finais do captulo ......................................................................58

    CONCLUSO............................................................................................................60

    BIBLIOGRAFIA .........................................................................................................65

  • INTRODUO

    A violncia domstica1 contra as mulheres fruto de uma cultura que foi

    naturalizada ao longo da histria, na qual se construiu um discurso de discriminao,

    inferiorizao, subordinao e violncia contra a mulher. Neste discurso, foi

    estabelecido o papel social do homem e o da mulher, as desigualdades das

    relaes, em que o homem detm o poder sobre a mulher, alm de impor o

    comportamento excludente e repressivo s mulheres, violentando sua liberdade e

    autonomia, gerando assim uma cultura de violncia sexista.

    Estamos acostumadas/os s diferenciaes de papis sociais, as quais

    aprendemos a no questionar e que podem ter sido estabelecidas por diferentes

    grupos e pessoas nas suas interpretaes convenientes, e em seus contextos

    histricos.

    A violncia contra as mulheres2 acontece em todas as classes sociais,

    culturas e religies. A sociedade, via de regra, tem acobertado este tipo de violncia.

    Na maioria das vezes no tomamos conhecimento sobre a violncia domstica e o

    agressor fica impune, porque as mulheres/vtimas no procuram seus direitos

    (delegacias de polcia, ministrio pblico, etc) por medo, por falta de informao ou

    por falta de recursos. Percebemos a existncia da violncia somente por meio de

    estatsticas feitas a respeito, sobre as quais elencaremos aqui alguns dados

    pesquisados.

    Segundo o relatrio A violncia Domstica contra as Mulheres e Crianas,

    desenvolvido pelo Instituto Innocenti,3 a porcentagem de mulheres no mundo que

    1 CUNHA, Rogrio Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violncia domstica: Lei Maria da Penha (Lei

    n. 11.340/2006): comentada artigo por artigo. 2. ed. rev. atual. e ampl. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 30. De acordo com a Lei n. 11.340/2006 (art.5), entende-se por violncia domstica e familiar toda a espcie de agresso (ao ou omisso) dirigida contra a mulher (vtima certa), num determinado ambiente (domstico, familiar ou de intimidade), baseada no gnero, que lhe cause morte, leso, sofrimento fsico, sexual ou psicolgico e dano moral ou patrimonial.

    2 Tanto as Naes Unidas quanto o Conselho da Europa consideram que a violncia contra as mulheres, decorrente das relaes de foras desiguais entre homens e mulheres, e que conduz a uma discriminao grave contra o sexo feminino, tanto na sociedade quanto na famlia, viola os direitos da pessoa humana e as suas liberdades fundamentais, impedindo de os exercer parcial ou totalmente; atenta contra a integridade fsica, psquica e/ou sexual das Mulheres. Disponvel em: . Acesso em: 10 jul. 2011.

    3 FONDO DE LAS NACIONES UNIDAS PARA LA INFANCIA. Centro de Investigaciones Innocenti. La Violncia. Domstica Contra Mujeres y Nias. Innocenti digest, Florencia, n. 6, jun. 2000.

  • 10

    sofreram algum tipo de mau-trato familiar oscila entre 20% e 50%. De acordo com

    este relatrio, em todo o mundo foi constatado que a violncia domstica contra as

    mulheres acontece tanto em pases desenvolvidos como naqueles em vias de

    desenvolvimento.

    Segundo pesquisa realizada pela Fundao Perseu Abramo, mais de 2

    milhes de mulheres so espancadas por ano no Brasil, mas apenas 40%

    denunciam. O Relatrio Nacional Brasileiro (2002),4 que retrata o perfil da mulher

    brasileira, traz o dado estatstico de que a cada 15 segundos uma mulher agredida

    no pas, isto , a cada dia, 5.760 mulheres so espancadas no Brasil.

    Ainda segundo a pesquisa da Fundao Perseu Abramo,5 desenvolvida em

    2001, e que envolveu 2.502 entrevistas com mulheres acima de 15 anos, em 187

    municpios das cinco regies brasileiras, cerca de uma em cada cinco brasileiras

    (19%) declarou ter sofrido algum tipo de violncia por parte de algum homem; casos

    de violncia fsica foram relatados por 16% delas; enquanto 2% das entrevistadas

    citaram alguma violncia psquica e 1% lembrou de algum episdio de assdio

    sexual.

    Trazemos esses dados que expem, estatisticamente, a realidade de

    violncia contra a mulher no intuito de esclarecer e justificar o motivo da presente

    pesquisa, pois os inmeros casos de violncia contra as mulheres nos instigam a

    fazer algumas perguntas: qual a origem desta violncia? As igrejas influenciam a

    cultura sexista? Existe discurso sexista na religio, na teologia e, especialmente, nos

    textos bblicos? Se h, por que encontramos este tipo de discurso?

    Com estas perguntas colocadas, queremos analisar com maior profundidade

    a produo do discurso sexista. E, para investigar um desses possveis discursos,

    tomaremos como objeto de pesquisa o discurso tecido na carta aos Efsios 5,21-33.

    Vale ressaltar a importncia que teve o trabalho realizado na Monografia do Curso

    Disponvel em: . Acesso em: 26 fev. 2011. p. 4.

    4 DIAS, Maria Berenice. 15 segundos: pela eliminao da violncia contra as mulheres. ADITAL, Agncia de Informao Frei Tito para a Amrica Latina. Disponvel em: . Acessado em: 25 nov. 2010.

    5 MACHADO, Benedito. Pelo fim da violncia contra as mulheres: um compromisso tambm dos homens. Braslia: AGENDE, 2006. p. 27.

  • 11

    de Especializao para a elaborao deste trabalho final de mestrado profissional,6

    j que nessa experincia acadmica levantamos a possibilidade de existir

    determinada interpretao sexista na carta aos Efsios 5.21-33, mas percebemos a

    necessidade de ir alm deste estudo e adentrarmos em uma discusso terica sobre

    a produo do discurso formado ao longo da histria, segundo o qual a violncia

    estaria legitimada teologicamente. Assim, o objetivo deste trabalho retomar alguns

    aspectos desenvolvidos na monografia com o intuito de dar um alicerce discusso

    posterior.

    Optou-se por Efsios 5.21-33 (que trata da admoestao ao comportamento

    das mulheres) como objeto desta pesquisa, porque julgamos que nesse discurso

    pode haver exerccio de poder para controlar as mulheres na comunidade crist. Ao

    nos ocuparmos com a contextualizao, encontraremos neste perodo o poder

    patriarcal oriundo da tradio popular greco-romana, galvanizada por certos

    princpios provenientes do judasmo, os quais podem ter sido transpostos para a

    comunidade crist no intuito de controlar as mulheres que lideravam essa

    comunidade.

    Note-se que na tradio por trs da discursividade elaborada em Efsios

    5.21-33 h uma tomada do modelo de comunidade crist baseada na relao

    existente entre o senhorio da casa e sua funo como membro do grupo social.

    Verifica-se que nesse texto a produo do discurso de poder se coaduna com certos

    discursos usados pela sociedade ocidental, o que invariavelmente promove o

    sexismo e, consequentemente, os mais variados tipos de violncia contra as

    mulheres.

    Quando propomos analisar a questo do discurso contido no cdigo

    domstico em Efsios 5.21-33 como exemplo bblico do possvel discurso gerador

    de violncia domstica contra a mulher, nos perguntamos sobre qual o tipo de

    violncia contra as mulheres que desejamos tratar. Neste caso, em particular,

    pretendemos tratar da violncia simblica7 que foi construda por um setor

    6 GUIMARES, Simone Furquim. A interpretao do cdigo domstico em Efsios 5,21-33 como

    exemplo bblico da naturalizao da violncia contra a mulher. 2009. 60 f. TCCP (Especializao em Bblia) Programa de Ps-Graduao em Teologia, Escola Superior de Teologia, So Leopoldo, 2009.

    7 Por violncia simblica adotar-se- o conceito elaborado pelo socilogo Pierre Bourdieu. Forma de coao que se apoia no reconhecimento de uma imposio determinada, seja esta econmica, social ou simblica. A violncia simblica se funda na fabricao contnua de crenas no processo

  • 12

    hegemnico na sociedade ocidental. Queremos analisar os smbolos que

    diferenciam os papis sociais como, por exemplo, o homem como portador de fora,

    de inteligncia e imbudo pelo sagrado de uma misso como chefe, e a mulher como

    um ser frgil, impotente, pecadora e referendada como tendo a submisso natural

    de estar ao lado de quem possui a misso, isto , o homem. Queremos avaliar

    aquilo que historicamente construdo, pois resulta de relaes dinmicas e conduz

    construo de hierarquias, de discriminao, de subordinao e dominao

    sexual.

    Tomaremos como referencial terico, sobretudo, a teologia bblica feminista.

    Segundo Ivoni Reimer, essa teologia examina e constata que o processo de escrita

    dos textos bblicos produto de uma poca, cultura e religio.8 A teologia bblica

    feminista prope suspeitar das leituras que afirmam a subordinao e inferioridade

    de mulheres e outras pessoas marginalizadas. Reimer acrescenta que:

    [...] no basta analisar a existncia de estruturas de opresso, mas imprescindvel averiguar e pesquisar, no passado e no presente, onde e como essas estruturas foram e so construdas, questionadas, transgredidas, superadas, ou o que ainda pode e deve ser feito.9

    O presente trabalho prope trs caminhos para discutir as questes

    levantadas acima. No primeiro captulo, faremos uma anlise do discurso presente

    na carta aos Efsios 5.21-33, por se tratar de um texto bblico muito proclamado e

    lido no espao eclesial, sobretudo durante a celebrao do matrimnio. Efsios 5.21-

    33 um desenvolvimento cristolgico, eclesiolgico e teolgico de uma carta paulina

    (1Co 11.3b) e de outra carta deutero-paulina (Cl 3.18-19). Escolhemos Efsios

    porque consideramos que este texto nos mostra vestgios suficientes para

    compreender o contexto social, filosfico e poltico da poca em que foi escrito. Isto

    nos fornecer elementos necessrios para entender a influncia desta sociedade

    que naturalizou o comportamento machista no somente do homem como tambm

    de socializao, que induzem o indivduo a se posicionar no espao social seguindo critrios e padres do discurso dominante. Devido a este conhecimento do discurso dominante, a violncia simblica manifestao deste conhecimento atravs do reconhecimento da legitimidade deste discurso dominante. Em Pierre Bourdieu, a violncia simblica o meio de exerccio do poder simblico. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simblico. Rio de Janeiro: Bertarnd Brasil; Lisboa: Difel, 1989. p. 7-16.

    8 REIMER, Ivoni R. Grava-me como selo sobre teu corao: teologia bblica feminista. So Paulo: Paulinas, 2005. p. 25.

    9 REIMER, 2005, p. 27.

  • 13

    da mulher. Para isso, teremos como referencial terico a exegese e hermenutica

    bblica feminista, sobretudo de autoras latino-americanas.

    No segundo captulo, analisaremos o discurso encontrado em Efsios 5.21-

    33, porm, a partir dos instrumentos de anlise filosfica de Michel Foucault. Vamos

    usar esta ferramenta filosfica com o propsito de verificar como foram

    desenvolvidos os discursos de poder naquela sociedade. Usaremos a pesquisa

    sobre discurso nos livros de Foucault que tratam do poder como um tipo de saber.

    Este instrumental reforar a pesquisa outrora analisada e ser um suporte para

    refletirmos o contexto da violncia domstica. Assim, este captulo far uma ligao

    entre o primeiro, que trata do texto, com o terceiro, que trata do contexto.

    O terceiro captulo pretende analisar a realidade atual da violncia contra a

    mulher. Para isso sero levantadas entrevistas realizadas com mulheres/vtimas, por

    meio de uma pesquisa exploratria bibliogrfica de um vdeo. Na fala das mulheres,

    enfocaremos a influncia religiosa que produziu e reproduziu a linguagem, os

    discursos, os smbolos e o imaginrio androcntrico que levou dominao dos

    corpos, sobretudo das sexualidades femininas. Para tanto, usaremos os seguintes

    referenciais tericos: poder, saber, discurso e microfsica, encontrados nos livros

    Microfsica do Poder, Histria da Sexualidade e O sujeito e o poder, bem como os

    estudos de telogas/os, biblistas e socilogas/os feministas.

    Em geral, optamos pela abordagem foucaultiana, pois ela pode ser

    apropriada pelo estudo de cunho feminista, tendo em vista que ao analisar a

    produo do discurso, tambm se analisa o discurso de poder presente nas redes

    das relaes que nos constituem. Isto facilita entender a violncia sexista.

  • 1 O TEXTO BBLICO E SUA INTERPRETAO

    1.1 Introduo

    Comecemos nosso trabalho com a anlise do texto bblico. Nele tentaremos

    levantar elementos que indiquem um possvel discurso sexista que foi apropriado

    pela sociedade ocidental ao longo da histria e que acabou por influenciar o

    comportamento de violncia contra as mulheres. Para isso, vamos desenvolver uma

    anlise da linguagem contida na carta aos Efsios 5.21-33. Nesta linguagem, vamos

    atentar para o discurso e para os smbolos. Utilizaremos, como instrumental de

    anlise, o mtodo crtico feminista, pois com ele tentaremos romper o silncio do

    texto, buscar chaves e aluses que mostrem a realidade que no est dita

    explicitamente no texto, pois o objetivo de tal trabalho o de desconstruir

    interpretaes do texto bblico que legitimem, justifiquem e fundamentam a violncia

    contra a mulher.

    importante esclarecer que o presente trabalho no tem a pretenso de fazer

    uma exegese do texto bblico, mas sim de analisar a eisegese realizada na

    construo de interpretao do texto, especificamente quanto s palavras de forte

    expresso androcntrica e de sentido patriarcal. Isto ser feito na inteno de

    desconstruir o texto, isto , analisar sua construo histrica, a qual contm, em seu

    todo, A Palavra de Deus; e desfiar possveis interpretaes atuais destas palavras e

    sentidos especficos, que vm, ao longo do tempo, sendo usadas para balizar o

    pensamento preponderante, e que legitima a relao patriarcal na sociedade

    ocidental judaico-crist.

    Optamos pela leitura bblica feminista porque a mesma tenta romper com

    paradigmas ideolgicos patriarcais10 e androcntricos,11 profundamente arraigados

    em nossa sociedade. Ivoni Reimer informa que:

    10 FIORENZA, Elisabeth S. Caminhos da Sabedoria: uma introduo Interpretao Bblica

    Feminista. So Bernardo do Campo: Nhanduti, 2009. p. 229-238. Sistema patriarcal significa literalmente o domnio do pai e geralmente entendido no mbito do discurso feminista num sentido dualista de afirmar a dominao invarivel de todos os homens sobre todas as mulheres. Discute-se se esse termo adequado porque, p. ex., homens negros no tm controle sobre mulheres brancas, e algumas mulheres (senhoras de escravas/os) tm poder sobre mulheres e homens subalternos (escravas/os).

    11 FIORENZA, 2009, p. 30. Literalmente centrao no homem, da palavra grega aner, homem, varo, macho, masculino. Trata-se de um sistema lingustico e cultural que entende

  • 15

    Essa leitura nasceu e se desenvolveu no seio da Teologia da Libertao. E uma das preocupaes desta perspectiva teolgica, que possui em seu ramo a Teologia Feminista a recuperao da memria de mulheres na Bblia. Nesse processo de reapropriao histrica, vamos afirmando nossa dignidade e nosso valor na sociedade, na igreja, na casa, na rua, na poltica, na tica.12

    Reimer explica que a leitura bblica feminista trabalha com a categoria de

    gnero13 com o seguinte objetivo:

    [...] observar alguns elementos no texto que ajudam a entender a realidade das relaes sociais que esto tecidas na vida do texto e na vida que o texto reflete. Um desses elementos o smbolo. Atravs dos smbolos podemos conhecer as relaes de poder na organizao scio-cultural.14

    Por isso, para analisar o texto bblico na perspectiva de leitura15 e

    hermenutica feminista,16 utilizaremos a categoria de gnero como instrumental de

    anlise.17 E, a partir da chave simblica e de linguagem, faremos algumas perguntas

    na abordagem do texto: perceber quais os principais smbolos e linguagens

    utilizados tanto em relao s mulheres quanto aos homens; entender e aprofundar

    o significado de um smbolo/linguagem; perceber quais as imagens de feminino e

    masculino que um smbolo produz ou reproduz, e como elas vo fazendo histria

    nos nossos corpos.

    Inicialmente traaremos o contexto histrico em que foi escrito a carta aos

    Efsios, tendo em vista que por trs do texto existe um contexto especfico

    constitudo por determinadas religies, leis, filosofias, economias, culturas, etc.

    macho/masculino/homem/varo como a norma e as mulheres como secundrias, perifricas e desvio do padro.

    12 REIMER, 2000, p. 20. 13 A categoria gnero aponta para o conjunto de prticas, smbolos, representaes, normas e valores sociais que as sociedades elaboram a partir da diferena sexual antomo-fisiolgica e que do sentido satisfao dos impulsos sexuais, reproduo da espcie humana e, em geral, aos relacionamentos entre as pessoas. STRHER, Marga Janete. Caminhos de resistncia nas fronteiras do poder normativo: um estudo das Cartas Pastorais na perspectiva feminista. 2002. 283 f. (Doutorado em Teologia) Ps-Graduao, Escola Superior de Teologia, So Leopoldo, 2002.

    14 REIMER, 2000, p. 20. 15 Para Fiorenza, a leitura bblica feminista, visa romper o silncio sobre a experincia e contribuio

    histricas e teolgicas de mulheres no texto bblico, buscando chaves e aluses que indiquem a realidade sobre o que os textos antropocntricos calam. FIORENZA, Elisabeth S. As origens crists a partir da mulher: uma nova hermenutica. So Paulo: Paulinas, 1992. p. 65.

    16 Do verbo grego hermeneuein, que pode ser traduzido como interpretar, submeter exegese, explicar, traduzir. O termo hermenutica se refere tanto teoria quanto prtica da interpretao.

    17 Para Fiorenza, a hermenutica feminista um mtodo crtico de anlise que permite s mulheres ir para alm de textos bblicos androcntricos a seus contextos scio-histricos. Ao mesmo tempo, essa hermenutica deve procurar modelos tericos de reconstruo histrica, que coloquem as mulheres no s na periferia mas no centro da vida e da teologia crists. FIORENZA, 1992, p. 63.

  • 16

    Partimos do pressuposto de que estes aspectos influenciaram a escrita da carta. Em

    seguida, exporemos o texto em comento para analisarmos os versculos que tratam

    das exortaes s mulheres e aos homens. Concluiremos o captulo tentando

    buscar algumas respostas sobre a origem da tica crist para a criao destes

    cdigos, e como se deu a sua interpretao ao longo dos tempos, de forma a

    legitimar a relao de dominao do homem sobre a mulher.

    1.2 A religio, a lei e a filosofia domstica greco-romana

    importante estudar a religio, a lei e a filosofia greco-romana, porque as

    instituies e as crenas que encontramos nos perodos do cristianismo primitivo

    nada mais so que o natural desenvolvimento de crenas e de instituies

    anteriores. Por isso, torna-se preciso procurar-lhes as razes em um passado bem

    longnquo.

    Fustel de Coulanges informa que:

    [...] tanto na Grcia como em Roma a famlia compem-se do pai, da me, de filhos e escravos. E cada casa possui sua religio domstica e seu altar para cultuar o deus considerado sagrado. O deus cultuado na casa o senhor do lar, estia despoina, e que os latinos conhecem por Lar familiae Pater.18 Essa religio que vai determinar a condio de cada membro. O pai o primeiro junto ao fogo sagrado: ele que o acende e o conserva; o seu pontfice. Em todos os atos religiosos desempenha a funo mais elevada. No pai repousa o culto domstico. A religio no coloca a mulher em posio to elevada. verdade que toma parte nas funes religiosas, mas no como senhora absoluta do lar.19

    A partir da organizao religiosa no lar, a famlia se estruturava em um corpo

    organizado, era uma pequena sociedade com o seu chefe e o seu governo.

    Coulanges diz que:

    O pai, alm de ser o homem forte protegendo os seus e tendo tambm a autoridade para fazer-se por eles obedecer, tambm era o sacerdote, o herdeiro do lar, o continuador dos antepassados, o tronco dos descendentes, o depositrio dos ritos misteriosos do culto e das frmulas secretas da orao. Toda a religio reside no pai.20

    18 Segundo COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. So Paulo: Martins Fontes, 1998, o sentido

    primitivo da palavra lar o de senhor, prncipe, mestre. p. 10. 19 COULANGES, 1998, p. 68. 20 COULANGES, 1998, p. 71.

  • 17

    Segundo o direito grego e romano, que se originaram dessas crenas

    religiosas, era concorde na sociedade considerar a mulher como inferior na

    estruturao social. Proibia-se s mulheres terem um lar para si ou serem chefe do

    culto. Coulanges diz que em Roma a mulher recebe o ttulo de materfamilias, porm

    perde-o quando seu marido morre.21 Jamais d ordens, no mesmo livre, nem

    senhora de si prpria, sui juris. No lar, est sempre ao lado de outrem, repetindo a

    orao desse outro; para todos os atos da vida civil necessita de tutor.

    As leis greco-romanas diziam que:

    [...] enquanto a mulher estiver moa, est sujeita a seu pai; morto o pai, a seus irmos e aos seus agnados; casada, a mulher est sob tutela do marido; morto o marido, no volta para a sua prpria famlia porque renunciou a esta para sempre, pelo casamento sagrado; a viva continua submissa tutela dos agnados de seu marido, isto , tutela de seus prprios filhos, se os tem, ou, na falta destes, dos mais prximos parentes do marido. O marido tem sobre ela tanta autoridade que pode, antes de morrer, designar-lhe tutor, e at mesmo escolher-lhe novo marido.22

    Irene Foulkes situa a origem da estrutura dos cdigos domsticos nos

    escritos de Aristteles (sculo IV a.C) e a seo de sua Poltica que versa sobre a

    administrao da casa.

    Como na Grcia antiga, a casa estava organizada com base em trs conjuntos de pessoas: amo-escravo, esposo-esposa, pai-filhos, em cada uma destas relaes se exige autoridade por um lado e subordinao por outro, porque, no pensamento de Aristteles, o macho por natureza superior e a fmea inferior, o macho governa e a fmea sujeito (Poltica I.1254b).23

    Assim como os documentos aristotlicos, os escritos posteriores dos

    pensadores e moralistas do sculo I (os esticos e os Padres da Igreja, Flon de

    Alexandria e Flvio Josefo), que receberam influncia de Aristteles, so dirigidos

    explicitamente a leitores vares situados no estrato superior da sociedade, os

    homens encarregados das empresas familiares.

    Reimer informa que na sociedade romana tambm havia pensadores que

    refletiam filosoficamente sobre o papel das mulheres, como o filsofo Ccero.

    21 COULANGES, 1998, p. 69. 22 COULANGES, 1998, p. 69. 23 FOULKES, Irene. Os cdigos de deveres domsticos em Colossenses 3,18-4,1 e Efsios 5,22-6,9:

    estratgias persuasivas, reaes provocadas. RIBLA: Deuteropaulinas: um corpo estranho no corpo paulino?, Petrpolis, Vozes, n. 55, 2006. p. 55.

  • 18

    Segundo ela Ccero defendia que a liberdade sexual para as mulheres tem por

    consequncia tambm a participao delas no exerccio do poder pblico. E tal

    situao parece-lhe tornar a sociedade catica.24 No entanto, parece que naquela

    poca j existia insubordinao de mulheres, apesar das prticas do poder oficial,

    pois, segundo Ccero: deve existir um educador que ensine aos homens como ter

    influncia determinante sobre as mulheres. 25

    1.3 A cidade de feso

    Segundo informaes obtidas na internet,26 feso era uma das ricas cidades

    situadas na costa oeste da sia Menor, de fcil acesso ao mar Egeu. Durante o

    Imprio Romano, era o centro do comrcio martimo e rodovirio, centro da indstria

    txtil. Era a quinta cidade mais populosa do Imprio Romano. Em feso se

    destacavam a lei, a filosofia e as manifestaes religiosas. Havia um importante

    culto romano deusa Diana, conhecida como a deusa da fertilidade, reconhecida

    pelos gregos como rtemis. Nos tempos apostlicos, feso foi uma das cidades do

    Imprio Romano em que o cristianismo mais se difundiu.

    Em feso, Colossos e outras cidades da provncia romana da sia, no

    sculo I, a economia e a poltica estavam dominadas por uma pequena elite de

    proprietrios, que representavam no mais que 5% a 7% da populao total. Um

    tero da populao era constituda por escravos e escravas. A casa era o local que

    estas famlias ricas organizavam sua empresa particular. Podia ser uma oficina de

    tecido ou cermica, um comrcio de produtos como o vinho ou o azeite, um negcio

    de transporte martimo ou terrestre.27

    24 REIMER, 2005, p. 78. 25 REIMER, 2005, p. 80. 26 feso (cidade). In: Infopdia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2011. Disponvel em:

    . Acesso em: 23 fev. 2011. 27 FOULKES, 2006, p. 54.

  • 19

    1.4 A carta aos Efsios

    Conforme encontrado em diversos comentrios bblicos,28 a epstola aos

    Efsios uma carta circular, dirigida a vrias comunidades crists da sia Menor. O

    carter circular da epstola confirma-se pelo fato de a meno a feso, no verso

    1,1 faltar em muitos manuscritos antigos considerados importantes.29 Oscar

    Cullmann argumenta que possvel que ela fosse enviada a diversas igrejas e que o

    nome do destinatrio ficasse em branco no original, sendo preenchido nas cpias

    que foram ento remetidas para essas igrejas.30 Jos Comblin acrescenta que o

    ttulo aos Efsios fora colocado somente no final do sculo II, na lista do cnon.31

    A epstola aos Efsios aborda questes tpicas das comunidades crists em

    torno do ano 90 d.C. Por causa da sua datao tardia, a carta no de autoria de

    Paulo, pois o apstolo morreu na dcada de 60. Alm disso, em Ef 2.20 pressupe-

    se que os apstolos esto mortos, pois afirmado que a Igreja est construda

    sobre o fundamento dos apstolos e profetas. Comblin considera que se Paulo se

    autodenominava apstolo e intermedirio de Cristo, no poderia ele ter escrito uma

    carta sob seu prprio fundamento. Portanto, no perodo em que foi escrita a carta

    aos Efsios, Paulo j morrera e tornara-se fundamento da Igreja. Os cristos agora

    vivem da herana dos apstolos. Portanto, possvel que a carta tenha sido

    escrita por um discpulo de Paulo, morador da regio da sia, comprometido com a

    herana paulina.

    Os versculos 5. 21-6. 9 regulamentam os comportamentos familiares entre

    esposas e maridos, filhos e pais, escravos e senhores. So os chamados cdigos

    domsticos ou tbuas de posies. Os cdigos domsticos tambm podem ser

    encontrados em: Cl 3.18-4.1; 1Pe 2.18-3.7; 1Tm 2.11-15; 5. 3-8; 6. 1-2; Tt 2. 2-10.

    28 Ver Introdues Carta aos Efsios nas seguintes edies da Bblia: BBLIA. Portugus. TEB.

    1995. BBLIA TEB: com o Antigo e o Novo Testamento traduzidos dos textos originais hebraico e grego com introdues, notas essenciais e glossrio. So Paulo: Paulinas, Loyola, 1995; BBLIA. Portugus. CNBB. 2001. CONFERNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. BBLIA Sagrada: traduo da CNBB com introdues e notas. So Paulo: Ave Maria, 2001; bem como nas obras de BORTOLINI, Jos. Como ler a carta aos Efsios: o universo inteiro reunido em Cristo. So Paulo: Paulus, 2001. COMBLIN, Jos. Epstola aos Efsios. Petrplis: Vozes, 1987.

    29 Ver aparato crtico em BBLIA. N.T. Grego. Nestle-Aland. 1979. NESTLE, Eberhard; NESTLE, Erwin; ALAND, Kurt. Novum Testamentum Graece. 26. Aufl. ed. Stuttgart: Deutsche Bibelstiftung, 1979. p. 503. A expresso no est presente no papiro Chester Beatty (o manuscrito mais antigo da carta aos Efsios, de cerca do ano 200), nos cdices Sinatico e Vaticano e em outras fontes, entre elas em Marcio, que se refere a esta carta como a destinada aos Laodicenses.

    30 CULMANN, Oscar. A formao do Novo Testamento. So Leopoldo: Sinodal, 1984. p. 78. 31 COMBLIN, 1987, p. 18.

  • 20

    Marga Strher nos explica que:

    [...] os cdigos orientam-se pela direo vertical da construo sociolgica da antiga concepo de casa, concentrada no homem como marido, pai e senhor, e, ao mesmo tempo, se estende de forma horizontal a todas as casas.32

    E que:

    Os cdigos domsticos expem os deveres das esposas (5,22-24.33), dos maridos (5,25 e 28), dos filhos (6,1-2); dos pais (6,3); dos escravos (6,5-8) e dos senhores (6,9). Percebe-se que o interesse maior do cdigo de Ef o relacionamento entre esposa e marido.33

    Como mencionado anteriormente, a casa era o local em que as famlias

    ricas organizavam suas empresas. A administrao da casa tambm serviu de

    modelo para o governo das cidades organizarem sua administrao. Apreende-se

    da que se dava muita importncia relao que havia entre os integrantes da

    famlia.

    1.5 A Carta de Paulo aos Efsios (cap. 5, vs. 21-33)

    As palavras em negrito so as que pretendemos analisar a posteriori. Este

    texto foi tirado da verso de Almeida Revista e Atualizada.34

    21 subordinando-vos uns aos outros no temor de Cristo. 22 As mulheres sejam submissas ao seu prprio marido, como ao Senhor;

    23 porque o marido a cabea da mulher, como tambm Cristo a cabea da igreja, sendo este mesmo o salvador do corpo.

    24 Como, porm, a igreja est sujeita a Cristo, assim tambm as mulheres sejam em tudo submissas ao seu marido.

    25 Maridos, amai vossa mulher, como tambm Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela,

    26 para que a santificasse, tendo-a purificado por meio da lavagem de gua pela palavra,

    27 para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mcula, nem ruga, nem coisa semelhante, porm santa e sem defeito.

    32 STRHER, 2002, p. 156. 33 STRHER, 2002, p. 152. 34 BIBLE WORKS LLC: software for Biblical Exegesis & Research 6. Norfolk: Bibleworks LLC, 2006.

    Verso 6. CD-ROM.

  • 21

    28 Assim tambm os maridos devem amar a sua mulher como ao prprio corpo. Quem ama a esposa a si mesmo se ama.

    29 Porque ningum jamais odiou a prpria carne; antes, a alimenta e dela cuida, como tambm Cristo o faz com a igreja;

    30 porque somos membros do seu corpo. 31 Eis por que deixar o homem a seu pai e a sua me e se unir sua

    mulher, e se tornaro os dois uma s carne. 32 Grande este mistrio, mas eu me refiro a Cristo e igreja. 33 No obstante, vs, cada um de per si tambm ame a prpria esposa

    como a si mesmo, e a esposa respeite o marido.

    1.6 Exortao s mulheres

    Vs que temeis a Cristo, submetei-vos uns aos outros; mulheres, sede submissas aos vossos maridos, como ao Senhor. Pois o marido a cabea da mulher, assim como Cristo a cabea da Igreja, ele, o Salvador do seu corpo. Mas, como a Igreja submissa a Cristo, sejam as mulheres submissas em tudo aos seus maridos[...].e a mulher, respeitar o seu marido. (Ef 5.21-24,33b)35

    Aqui vamos analisar Ef 5.21-24,33 que trata do discurso de exortao s

    mulheres. Mas, no verso 21, est inserido um princpio que serve de ttulo para toda

    a percope em questo. A frase subordinai-vos uns aos outros (

    ) afirma que no pode haver superiores e nem inferiores, todos so iguais

    perante ao Senhor. Porm, as conseqncias que o autor tira disso so insuficientes

    e culturalmente condicionadas.

    Da exortao que se faz do verso 22 ao verso 24, pode-se perceber, no

    conjunto, o uso da retrica36 como discurso de persuaso para os grupos

    particulares (esposas, esposos). Foulkes37 nos informa que se trata de uma tcnica

    muito usada, neste perodo, pela sociedade e filosofia greco-romana. Estudar esta

    tcnica nos fornecer algumas chaves para analisar o texto. Foulkes nos d uma

    explicao sobre o uso da retrica em Efsios 5. 22-24:

    35 BBLIA Edio Ecumnica: TEB. So Paulo: Loyola, 1994.

    36 A pesquisa da retrica afirma que textos e interpretaes bblicas so discursos argumentativos e persuasivos que implicam objetivos de autoras/es e estratgias lingustico-simblicas, bem como a percepo e construo da parte da audincia. Reconhece que a interpretao de textos e a produo de sentido so determinadas pelos lugares scio-poltico-histricos particulares e pelo interesse e poder poltico-cultural-religioso. CROATTO, Jos Severino. Hermenutica Bblica: para uma teoria da leitura como produo de significado. So Leopoldo: Sinodal, 1986.

    37 FOULKES, 2006, p. 63-64.

  • 22

    [...] o autor estabelece uma relao direta com um grupo particular (esposa, esposo) por meio de um vocativo que encabea um mandato. Para justificar o mandato, o autor usa a tcnica de desenvolver uma srie de metforas e comparaes interconectadas que a explique:

    Imperativo esposas, submetem-se a seus prprios esposos [...]

    Metfora 1 o esposo cabea de sua esposa.

    Metfora 2 Cristo cabea e salvador da Igreja.

    Comparao o esposo cabea da esposa assim como Cristo cabea da Igreja.

    Metfora 3 a qual seu corpo (a Igreja o corpo de Cristo).

    Metfora 4 a Igreja se submete a Cristo.

    Analogia com comparao as esposas devem submeter-se a seus esposos como a Igreja se submete a Cristo.38

    Os retricos da poca usavam metforas, comparaes e analogias com o

    intuito de ampliar ou modificar a compreenso que o auditrio tinha sobre alguma

    coisa que j conhecia. Neste sentido, o que j era conhecido era o dever da esposa

    de submeter-se ao esposo.

    O verbo repetido nos versos 21, 22 e 24 significa subordinar-

    se, submeter-se, sujeitar-se, obedecer.39 A palavra grega subordinar-se, muito

    geral e significa toda dependncia requerida por uma ordem fsica, jurdica ou moral.

    Nesse sentido, Strher afirma que a exortao supe uma sociedade em que as

    esposas esto num nvel inferior ao dos seus maridos40 e para confirmar isto, expe

    alguns filsofos que usavam a mesma expresso em seus tratados:

    [...] a exortao Vs mulheres, subordinai/submetei-vos aos homens como convm no Senhor, foi muito usada por filsofos judeu-helenistas, como Plutarco, Epteto, Pseudo-Calistenes, Filo, Josefo, alm de governos como Alexandre. Nos cdigos domsticos usado na voz mdia, u`pota,ssesqtai, que literalmente quer dizer colocar-se debaixo de ou sob a ordem de algum ou de alguma situao.41

    Nos versculos 22, 23 e 24 h um discurso moral para exortar as mulheres a

    se submeterem aos seus maridos, assim como se submetem ao Senhor. Para isso,

    o autor faz a relao marido-cabea, mulher-corpo assim como Cristo-cabea,

    igreja-corpo para fundamentar a subordinao da mulher ao homem. A palavra

    Igreja () feminina. A palavra Cristo masculina. Para Jos Comblin,

    38 FOULKES, 2006, p. 63-64. 39 RUSCONI, Carlos. Dicionrio do Grego do Novo Testamento. So Paulo: Paulus, 2005. p. 475. 40 STRHER, 1998, p.128. 41 STRHER, 1998, p.128.

  • 23

    [...] teologicamente trata-se de um argumento eclesiolgico para legitimar a mulher como devendo estar subordinada ao homem porque a Igreja est subordinada a Cristo. Este argumento j conhecido pela ideologia patriarcal da poca. Provavelmente uma estrutura recebida da tradio judeu-helenstica. Uma vez que existe tal subordinao, a relao entre Cristo e Igreja invocada para suavizar a subordinao da esposa ao marido como um dever religioso.42

    Em Efsios, podemos encontrar um sincretismo do imaginrio judaico dos

    profetas do Primeiro Testamento. Osias, Jeremias e Ezequiel falam da relao

    matrimonial de Deus como o esposo e o povo de Israel como sendo a esposa.

    Acredita-se que Efsios pretendia que a sociedade fizesse a mesma relao

    hierrquica entre Deus e o seu povo, entre Cristo e a Igreja, entre o homem e a

    mulher.

    No entanto, Martinez diz que:

    [...] a anlise da metfora do matrimnio no se limita a esclarecer a relao que h entre Deus e o seu povo. Ela fornece a possibilidade de observar e imaginar as relaes de gnero e poder que sustm a estrutura social da poca. Imaginar Deus como homem/varo fortalecia o poder masculino e a submisso das mulheres.43

    Imaginar Deus como homem/varo antropomorfiz-lo e torn-lo como

    modelo para construir e legitimar a masculinidade hegemnica presente na

    sociedade ocidental. Martinez argumenta ainda que: [...] essa ideologia patriarcal

    que nasceu no seio do pensamento judaico e que corroborada no contexto do

    Novo Testamento, viaja pela histria, e conduzida pela teologia e filosofia para

    perpetuar o status quo.44

    Outro termo muito usado na sociedade greco-romana, que podemos

    identificar como sendo uma expresso androcntrica, est inserido no verso 22: ao

    Senhor ( ). A sociedade era constituda de um poder piramidal, no qual o

    senhor est no topo dessa pirmide, o kyrios. Fiorenza entendeu que a sociedade

    da poca era constituda por uma estrutura kiriarcal e no patriarcal, porque a

    expresso kyrios denota um poder que supera o crculo familiar (esposa, filhos/as),

    42 COMBLIN, Jos. Epstola aos Efsios. (Srie Comentrio Bblico). Petrpolis: Vozes, 1987. p. 85. 43 MARTNEZ, Raquel C. R. Rompendo velhas mortalhas: a violncia contra a mulher e sua relao

    com o Imaginrio Androcntrico de Deus na Igreja Metodista do Chile. So Bernardo do Campo: FFCR, 2004. p. 119.

    44 MARTINEZ, 2004, p. 119.

  • 24

    visto que o kyrios tem poder sobre todos aqueles e aquelas que estejam

    subordinados a ele:

    A melhor maneira de conceber o kyriarcado como um sistema piramidal complexo de estruturas sociais interseccionais e multiplicativas de sobreordenao (dominao) e subordinao, de domnio e opresso. As relaes kyriarcais de dominao so construdas sobre o direito de propriedade dos homens da elite, e sobre a explorao, dependncia, inferioridade e obedincia de mulheres.45

    Fiorenza diz ainda que o modelo kyriarcal romano de poder imperial era

    legitimado pela filosofia neoaristotlica, que penetrou nas Escrituras crists sob a

    forma de prescries patriarcais que exigiam a submisso.

    A Primeira Carta de Pedro, por exemplo, admoesta crist (o)s que so servas/os a serem submissas/os, at mesmo a amos brutais (2,18-25), e instrui esposas nascidas livres a se submeterem a seus maridos, at mesmo a maridos no cristos (3,1-6). Pede tambm s pessoas crists a sujeitar-se ao imperador e a seus governadores e a honr-los como soberanos (2, 13-17). A antiga igreja ps-constantina tem o mximo de semelhana com esta pirmide imperial romana, apenas em roupagem crist.46

    O termo (cabea)47 refere-se fonte e fora que possibilita a

    existncia, o crescimento e o aperfeioamento do corpo. Este sentido pode ser

    entendido em Ef 4.13-16, segundo o qual se exorta que os cristos deixem para trs

    a infncia espiritual, com sua instabilidade e vulnerabilidade, e cresam at chegar a

    serem como Cristo, aquele que cabea.

    Strher informa que:

    [...] na antropologia grega cabea tem a precedncia sobre os demais membros; ela representa o princpio de autoridade e a razo. Isso tem implicaes para a formao das estruturas de liderana posteriores nas comunidades crists. Para o homem, como cabea da famlia que se destinam as funes de direo da comunidade. A organizao da comunidade ter como fundamento o modelo de famlia patriarcal. Neste sentido, a mulher, tanto no espao da casa como da comunidade, ocupar uma posio de submisso. Em contrapartida, o homem ocupar posio de direo, pois se a cabea da casa, dotado de razo e superioridade; na igreja ocupar tambm a funo de direo, pois ser representante de Cristo (cabea da igreja).48

    45 FIORENZA, 2009, p. 137. 46 FIORENZA, 2009, p. 139. 47 RUSCONI, Carlos. Dicionrio do Grego do Novo Testamento. So Paulo: Paulus, 2005. p. 265. 48 STRHER, 1998, p. 157.

  • 25

    No v.24 se repete o v.22 com o acrscimo em tudo. A subordinao resulta

    da situao de cabea do homem. A mulher vista como quem recebe e o homem

    como quem d. A mulher passiva e o homem ativo. Essa a mesma relao

    encontrada na tradio Greco-romana a respeito da situao do homem em relao

    aos rapazes e mulheres.49

    1.7 Exortao aos maridos

    Maridos, amai as vossas mulheres como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela; ele quis com isto torn-la santa, purificando-a com a gua que lava, e isto pela Palavra; ele quis apresent-la a si mesmo esplndida, sem mancha nem ruga, nem defeito algum; quis a sua Igreja santa e irrepreensvel. assim que o marido deve amar a sua mulher, como o seu prprio corpo. Aquele que ama a sua mulher ama a si mesmo. Ningum jamais odiou a sua prpria carne; ao contrrio, ns a nutrimos e cercamos de cuidado como Cristo faz para com a sua Igreja; no somos ns membros do seu corpo? por isso que o homem deixar o seu pai e a sua me, ele se ligar sua mulher, e ambos sero uma s carne. Este mistrio grande: eu, por mim, declaro que ele concerne ao Cristo e Igreja. Em todo caso, cada um, no que lhe toca, deve amar a sua mulher como a si mesmo.(Ef 5. 25-33a).50

    No discurso retrico, encontrado na exortao acima, j no se v mais as

    metforas e comparaes anteriores. O autor inicia o discurso usando o imperativo

    homens, amai as mulheres que ser acompanhado de analogias do tipo: como

    tambm Cristo amou a igreja.51 Esta tcnica serve para persuadir o grupo dos

    homens, considerados, na poca, superior e, por conseguinte, com direitos e

    deveres de governar as mulheres.

    Em Efsios, repete-se por trs vezes (5. 25.28,33) a exortao para os

    esposos amarem suas esposas. Amor traduz aqui a palavra ()52 agpe que

    significa tambm afeio.

    Comblin diz que amor: [...] a relao entre Deus e o seu povo, a relao

    entre os membros do povo, entre Cristo e o Pai, entre Cristo e os discpulos, entre o

    Pai e os discpulos, entre os discpulos.53 Amor um ato de oferta, sacrifcio e

    preocupao. O autor desenvolve este preceito com a comparao com Cristo.

    49 FOUCAULT, Michel. Histria da Sexualidade II: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984. p. 237-259.

    50 BBLIA Edio Ecumnica: TEB. So Paulo: Loyola, 1994

    51 FOULKES, 2006, p. 64. Aqui ela exemplifica a explicao sobre o discurso retrico para o grupo de homens.

    52 RUSCONI, Carlos. Dicionrio do Grego do Novo Testamento. So Paulo: Paulus, 2005, p. 17. 53 COMBLIM, 1987, p. 91.

  • 26

    Cristo tambm amou. Segundo a doutrina paulina, Cristo amou os seres humanos e

    se entregou por eles (Gl 2.20). Em Ef 5.2 se usam as mesmas palavras que

    encontramos aqui: Cristo tambm nos amou e se entregou por ns. A novidade

    aqui que o amor e a entrega tm por destinatria a Igreja. Comblin faz uma crtica

    sobre o destinatrio da referida exortao:

    [...] h uma desigualdade permanente em todo este contexto, porque somente se fala do amor do marido. A mulher no chamada a amar. A mulher concebida como passiva, receptiva do amor do homem. O uso da comparao com Cristo-Igreja a partir do binmio cabea-corpo, levou a reduzir a mulher a um papel passivo. Pois, no esquema da salvao, Cristo ativo e a Igreja receptiva.54

    Fiorenza acrescenta a seguinte percepo:

    Percebe-se o uso da cristologia para consolidar a posio inferior da esposa no relacionamento matrimonial, visto que enquanto as exortaes aos maridos consistem em persuadi-los a viver a relao de casamento como cristos, ao passo, que as exortaes s esposas de manterem um comportamento social de submisso.55

    E Strher concorda que: [...] ao exigir aos maridos cuidar e alimentar as

    mulheres (5.29) ratifica-se aqui a dependncia das mulheres aos seus maridos, pois

    at a prpria alimentao depende da boa vontade deles.56 J para Comblin:

    [...] a citao de Gn 2,24 em Ef 5,31, tomada como o texto fundador do casamento e tambm como anncio de Cristo e da Igreja. Ao largar sua famlia e unir-se mulher (V.31), o homem se coloca sob um pater famlias de outro grupo familiar.57

    E, em Efsios 5. 32: Grande este mistrio [...], de acordo com Comblin, a

    traduo de para sacramentum na Vulgata, levou a Igreja, na Idade

    Mdia, a considerar o matrimnio como um dos sete sacramentos.

    Na concluso da percope (Ef 5.33), o autor exorta mais uma vez para que

    os esposos amem suas mulheres e que as mulheres temam seus maridos. Verifica-

    54 COMBLIN, 1987, p. 92. 55 FIORENZA, 1992, p. 309. 56 STRHER, 1998, p. 159. 57 COMBLIN, 1987, p. 92.

  • 27

    se novamente o papel de passividade conferido s mulheres na exirtao a temer

    ou respeitar (fobh/tai).58

    Deste ltimo verso, Comblin faz uma crtica feminista:

    Do conjunto do texto o autor tira o essencial dos deveres do homem e da mulher. Da parte do homem, o essencial est na palavra amar que saiu vrias vezes durante a exposio. Amar significa no concreto ser fiel. Do lado da mulher o dever o respeito (o temor reverencial). Por que esta diferena nos deveres? Por que o amor s para o homem e o temor s para a mulher? Apesar das frmulas de igualdade insinuadas ou aludidas no conjunto, o autor pensa em termos de desigualdade. Por um lado est a iniciativa, da o amor. Por outro lado est a passividade, da o temor ou o respeito. Naturalmente este texto no constitui a totalidade da mensagem crist ou bblica sobre a relao homem-mulher.59

    1.8 Consideraes finais do captulo

    Ao analisarmos Efsios 5. 21-33, a partir das idias dos/as autores/as

    citados/as, constatamos que este discurso imbudo de temas teolgicos e

    cristolgicos pode ter sido usado para argumentar, defender e legitimar as duas

    relaes de poder pretendidas no texto, quais sejam, o de hierarquizar as relaes

    eclesiais e o de hierarquizar, ao mesmo tempo, as relaes familiares.

    Constatamos da anlise da percope60 uma relao intrnseca com os

    costumes da sociedade da poca. Os discursos retricos de persuaso, a linguagem

    e simbologia, so chaves que podem nos levar a este tipo de constatao. No

    entanto, nos vem a pergunta: por que o movimento cristo tomou os cdigos de

    deveres domsticos como tpico tico? Strher61 levanta trs possveis hipteses:

    1) Os cdigos domsticos mostram a ligao da experincia de f com o

    cotidiano. Os cristos da segunda e terceira gerao no adotam a posio

    de sair do mundo, mas adotam regras e instrues j conhecidas e

    praticadas pela filosofia popular greco-romana.

    58 RUSCONI, 2005, p. 484. 59 COMBLIN, 1987, p. 93. 60 FIORENZA, Elisabeth S. Caminhos da Sabedoria: uma introduo Interpretao Bblica

    Feminista. So Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2009. p. 229-238. Do grego perikope, ao de cortar em volta um trecho, pequeno ou longo, retirado de um texto que tem sentido completo.

    61 Aqui elencaremos os trs tpicos defendidos por STRHER, Marga J. Casa Igualitria e Casa Patriarcal: espaos e perspectivas diferentes de vivncia crist: o caminho da patriarcalizao da igreja no primeiro sculo do cristianismo. 1998. 211 f. (Mestrado) Programa de Ps-Graduao em Teologia, Instituto Ecumnico de Ps-Graduao da Escola Superior de Teologia, So Leopoldo, 1998. p. 168.

  • 28

    2) Os cdigos domsticos podem ter surgido no contexto de aculturao na

    sociedade romana como defesa contra a perseguio e a calnia da

    sociedade e do Estado romano. Essa aculturao significa no somente

    submisso ao pater familias, mas tambm ao Estado romano.

    nessa direo que tambm Foulkes aponta:

    [...] um setor da liderana das Igrejas de tradio paulina via que os valores radicais do movimento cristo e sua exclusividade religiosa levavam suas comunidades a tornar-se, potencialmente pelo menos, suspeitas de subverter a ordem estabelecida. Sua sobrevivncia no contexto scio-poltico totalitrio estava em perigo. Por isso, os cristos e crists tinham de mostrar-se de acordo com a estrutura hierrquica, comportando-se de um modo que afugentasse toda suspeita de insubordinao de sua parte.62

    Nesta perspectiva, os cdigos de deveres domsticos representam uma tica e uma

    prxis crists para uma situao de sobrevivncia, mas com o problema de que

    contribuem para legitimar um sistema sociopoltico opressor. A terceira hiptese

    levantada por Strher:

    3) As comunidades crists se integraram realidade que as envolvia na poca.

    No havia conflito com a sociedade greco-romana, mas sim integrao. Se a

    sociedade greco-romana era composta por uma hierarquizao entre as

    camadas sociais, o cristianismo da poca que crescia

    consubstancialmente e enfrentava problemas de ordem social precisou se

    integrar a este modelo para manter-se em harmonia, resolvendo, portanto,

    os problemas prticos das comunidades, como as desigualdades sociais

    presentes na comunidade. Por isso, a subordinao era a aceitao de um

    patriarcalismo do amor em Cristo.

    Uma vez adaptados ao sistema patriarcal da sociedade, os cdigos

    domsticos possibilitaram grupos ortodoxos cristos a manterem o poder de

    dominao na comunidade crist, at mesmo para ir de encontro a grupos herticos

    (montanistas e gnsticos). Por isso, entende-se que a adaptao ao patriarcalismo

    foi uma opo dos grupos cristos da poca. Essa interpretao prope que o

    movimento cristo primitivo somente sobreviveria historicamente institucionalizando-

    se de forma patriarcal.

    62 FOULKES, 2006, p. 60.

  • 29

    [...] o interesse maior da nfase ao casamento poderia ser o de exercer algum controle sobre a autonomia que a vida asceta conferia s mulheres. Nos primeiros sculos cristos, inclusive j a partir do primeiro sculo, mulheres integravam ordens celibatrias de virgens e vivas. As mulheres celibatrias abraavam um ascetismo que lhes permitia criar para si mesmas vidas livres de padres de comportamento socialmente esperados. Comparando a posio das mulheres nas comunidades paulinas e nas cartas pastorais, percebe-se que as mulheres foram gradualmente afastadas dos servios de liderana das comunidades crists.63

    Koester tambm concorda com esta anlise quando diz que:

    [...] a carta uma teologia doutrinria da moral e tica crist para combater o gnosticismo. Exemplo disto, so os catlogos elaboradamente interpretados de virtudes e vcios que eram extrados da doutrina dos dois caminhos (4,17-5,20) e a lista de deveres domsticos que o autor tomou de Colossenses (Ef 5,22-6,9).64

    Percebe-se que a interpretao dada aos cdigos domsticos e os discursos

    que foram apropriados pela comunidade crist, tiveram como contexto um mundo

    hierarquizado no qual os vares esto no topo (seres superiores) e as mulheres na

    base (seres inferiores). Lamentavelmente esta interpretao foi se reproduzindo,

    sobretudo, pelos grupos que defendiam o sistema explorador. E algo parecido

    acontece hoje nos debates sobre a questo da mulher, com o manuseio e a

    manipulao do cdigo por parte dos que procuram amparar uma estrutura patriarcal

    j cambaleante.

    Muitas pesquisas acadmicas contriburam para manter interpretaes

    sexistas dos textos bblicos. Porm, o trabalho de telogas/os e biblistas feministas

    na anlise de textos bblicos nos fornece subsdios para romper com interpretaes

    tradicionais. Fiorenza assevera que [...] a corrente teoria e pesquisa acadmicas

    so deficientes porque deixam de considerar as vidas e contribuies das mulheres

    e constroem uma humanidade e uma histria humana enquanto de vares.65

    Reimer elenca algumas caractersticas que tornam opressoras as

    epistemologias encontradas nos textos bblicos:

    [...] 1) so essencialistas: a essncia humana corresponde realidade anterior queda de Ado e Eva. Ou seja, antes da queda tudo era perfeito, o ser humano no tinha pecado. E isto proclamado nas

    63 STRHER, 1998, p. 165. 64 KOESTER, Helmut. Introduo ao Novo Testamento, v.2: histria e literatura do cristianismo

    primitivo. So Paulo: Paulus, 2005. p. 290. 65 FIORENZA, 1992, p. 12.

  • 30

    catequeses ainda hoje, como uma verdade histrica; 2) so monotestas: modelo divino centralizador. H estudos que levantam a questo do monotesmo ser preponderante mesmo na cultura dos povos de Israel do Primeiro Testamento. H estudos que demonstram o politesmo na religiosidade judaica tanto antes como depois do exlio da Babilnia; 3) por ter como imagem de Deus exclusivamente patriarcal. Assim como havia o politesmo, nas culturas antigas tambm existiu a sociedade matriarcal, mas este assunto no exposto nos cursos bblicos, muito menos na catequese; 4) por ser androcntrica. Sendo que j no Movimento de Jesus, a inteno era romper com este modelo de sociedade. Isto no claramente exposto nos estudos bblicos; 5) por inviabilizar a atuao de mulheres. Nas leituras dos textos no se questiona a ausncia de lideranas femininas, de atuaes femininas; 6) por possuir verdades eternas: o que se disse uma vez vlido para sempre e para todos os lugares; e 7) por ser dualista: existir as contradies de bem e mal, sagrado e profano, homem e mulher, boa sexualidade e m sexualidade.66

    Fazer anlise feminista da histria das mulheres na Bblia tem como funo

    no apenas a desconstruo de uma hermenutica de discriminao e opresso da

    mulher, mas tambm tem uma funo poltica importante, visto que deslegitima as

    estruturas religiosas patriarcais e, consequentemente, as estruturas sociais que, por

    serem patriarcais, invariavelmente, produzem violncia contra a mulher.

    A anlise feminista de textos bblicos revela rostos, falas e aes de

    mulheres, muitas vezes silenciadas ou ocultadas pela leitura patriarcal. Por exemplo,

    Leonardo Boff desconstri as diferenciaes de gnero na teologia quando

    demonstra que:

    [...] em Gnesis 1,27, escrito pela tradio sacerdotal, por volta do sculo VI-V a.C., se afirma a igualdade dos sexos e a sua origem divina: Deus criou a humanidade adam, em hebraico, significa os filhos e filhas da Terra, derivado de adamah, que quer dizer terra frtil sua imagem... criou-os homem e mulher. Deus aqui afirma a igualdade fundamental dos sexos, porm a histria nos afastou deste entendimento e, consequentemente, do entendimento do ser humano, homem e mulher.67

    No Segundo Testamento, o apstolo Paulo parte da teologia para afirmar a

    igualdade entre os sexos: No h homem nem mulher, pois todos so um em Cristo

    Jesus (Gl 3.28). Em I Corntios 11.12 diz: Em Cristo no h mulher sem homem

    nem homem sem mulher; como verdade que a mulher procede do homem,

    66 REIMER, Ivoni R. O Belo, As Feras e o Novo Tempo. So Leopoldo: CEBI, 2000. p. 32. Conforme

    Reimer, Fiorenza percebe que o conceito de essencialismo est ligado ao fato de pessoas individuais e grupos imaginarem possuir caractersticas imutveis inerentes e das quais se podem fazer afirmaes universais sobre qualquer grupo (p. ex., mulheres) ou indivduo a respeito de tais caractersticas. O essencialismo no compreende a diferena entre mulheres nem reconhece que essncias so constitudas por estruturas de dominao.

    67 BOFF, 2002, p. 105.

  • 31

    tambm verdade que o homem procede da mulher e tudo vem de Deus. Boff

    tambm menciona que:

    Na histria de Israel surgiram mulheres politicamente ativas como Miriam, Ester, Judite, Dbora, Ana, Sara e Rute que sero bem lembradas benfazejamente pelo povo. A partir do sculo III a.C. a teologia judaica elaborou uma reflexo sobre a graciosidade da criao e da eleio do povo na figura feminina da divina Sofia (Sabedoria) conforme o livro da Sabedoria.68

    Por isso, atualmente as/os feministas atuam no campo da interpretao de

    textos bblicos androcntricos, como a carta aos Efsios, na tentativa de

    desconstruir e desmitificar a linguagem masculina, bem como desconstruir a

    influncia que exerce no imaginrio coletivo.

    68 BOFF, 2002, p. 106.

  • 2 ANLISE FOUCAULTIANA SOBRE O DISCURSO DE EFSIOS 5.21-33

    2.1 Introduo

    At aqui, fizemos uma anlise da carta aos Efsios a partir do instrumental

    terico de biblistas e telogos/as feministas. Pudemos perceber que o discurso

    teolgico, eclesiolgico e cristolgico fundamentaram a estrutura patriarcal (ou

    melhor, kyriarcal) na igreja crist e a estrutura do Pater familias na comunidade

    crist.

    Neste captulo, tentaremos fazer uma anlise do discurso do mesmo texto,

    porm, a partir dos pressupostos filosficos de Foucault. Acreditamos que estes

    instrumentais de anlises nos auxiliam a compreender como se produzem os

    discursos de poder, discursos sexistas, os quais acabam por naturalizar a violncia

    contra a mulher, realidade que ser tratada com maior profundidade no captulo trs.

    Optamos por este caminho porque Foucault estudou a sociedade ocidental

    na perspectiva da relao existente entre o discurso e a histria, da relao

    existente entre a constituio do saber para o exerccio do poder. Portanto, este

    instrumental reforar a pesquisa outrora analisada e ser um suporte para

    refletirmos o contexto da violncia domstica. Assim, neste captulo ser feito uma

    ligao entre o primeiro, que trata do texto, e o terceiro, que trata do contexto. Pode-

    se dizer que a anlise filosfica em questo costura as duas realidades: a de ontem

    e a de hoje.

    Primeiro, vamos definir a ideia de discurso e entender sua prtica, depois,

    conhecer os elementos existentes no discurso (internos e externos) e, por fim,

    entender sua produo.

    Para compreender como se produz o discurso, Foucault estuda a medicina,

    a gramtica e a economia poltica, a partir de seus enunciados. Podemos transpor

    suas anlises ao nosso trabalho, uma vez que elas podem ser transferidas para

    qualquer tipo de discurso. Por isso, aqui utilizaremos oportunamente seu

    instrumental terico, tomando como exemplo o texto bblico em questo, a fim de

    tentar demonstrar a formao de um discurso sexista.

  • 33

    A iniciativa de analisar o texto bblico a partir das teorias filosficas de

    Foucault surgiu a partir da pesquisa acadmica produzida por Karen Bergesch.69

    Nela h um estudo sistemtico da dinmica do poder na relao vinculada

    violncia domstica. Para esclarecer estes elementos do discurso, Karen utiliza

    entrevistas com mulheres e homens envolvidos numa relao conjugal de violncia.

    Oportunamente, usaremos o trabalho de Bergersh como referencial terico para nos

    ajudar a entender a filosofia foucaultiana.

    2.2 Definindo discurso

    Segundo Foucault, discurso:

    [...] um conjunto de enunciados, na medida em que se apiem na mesma formao discursiva [...] um fragmento de histria, unidade e descontinuidade na prpria histria, que coloca o problema de seus prprios limites, de seus cortes, de suas transformaes, dos modos especficos de sua temporalidade, e no de seu surgimento abrupto em meio s cumplicidades do tempo.70

    Em linhas gerais, enunciado um conjunto de ideias que, num determinado

    contexto, d sentido e coeso a este mesmo conjunto de perspectivas denominado

    discurso.71 Esta explicao ser mais bem definida no prximo item, mas aqui, em

    sentido heurstico, tomemos como exemplo o discurso de Efsios 5. 22-23: As

    mulheres sejam submissas ao seu prprio marido, como ao Senhor; porque o

    marido a cabea da mulher, como tambm Cristo a cabea da igreja. Conforme

    visto no captulo anterior, neste enunciado, a ideia convencer os leitores quanto ao

    comportamento mais aceitvel diante de Deus (submisso/obediente), a partir das

    comparaes que fazem entre Cristo-cabea, homem-cabea, igreja-corpo, mulher-

    corpo.

    Se o discurso da histria fragmento, est determinado em um espao-

    tempo, ou seja, num contexto histrico, geogrfico, econmico, social, poltico, etc, e

    69 BERGESCH, Karen. A dinmica do poder na relao de violncia domstica: desafios para o aconselhamento pastoral. 2006. 204 f. (Mestrado) Instituto Ecumnico de P-Graduao em Teologia, Escola Superior de Teologia, So Leopoldo, 2006.

    70 FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2009. p. 132. 71 CARDOSO, Darlete. O jornalismo como (re)produtor de enunciados. Revista Linguagem em

    (Dis)curso, v. 1, n. 2, jan./jun., 2001. Disponvel em: . Acesso em: 21 jan. 2011.

  • 34

    marcado pelos modos especficos de sua temporalidade. O enunciado vai se apoiar

    na formao discursiva j existente, pois h um horizonte de sentido j

    compartilhado pelos agentes envolvidos no discurso. Por isto, no criado de forma

    abrupta, mas apropriado por um sujeito. Conforme explica Karen Bergersh.

    [...] o sujeito que se coloca em um determinado discurso para se expressar enquanto sujeito social. A escolha de um discurso em detrimento do outro surge da histria de cada sujeito e da dinmica da correlao de foras em que cada sujeito est colocado.72

    Nesta perspectiva, o discurso sobre submisso em Efsios 5. 21-33 um

    fragmento da histria que j conhecemos bem, que trata do perodo do pensamento

    e prxis do imprio greco-romano. O sujeito (ou os sujeitos), que escreveu e pregou

    sobre o tema submisso em Efsios 5. 21-33 no inovou nas suas ideias, nem

    mesmo o copiou do Movimento de Jesus, mas sim, apropriou-se de um pensamento

    corrente na poca, o do Pater famlias, para us-lo na assembleia crist. Acredita-se

    que o pensamento doutrinador do comportamento da famlia greco-romana pode ter

    sido apropriado pelos cristos da poca para impor a correlao de foras entre

    dirigentes e fiis, no mbito eclesial cristo, bem como para ressaltar esta correlao

    de foras entre homens e mulheres, no mbito domstico cristo. Isto ser

    detalhado no prximo item.

    2.3 Elementos internos do discurso: enunciado e funo enunciativa

    Segundo Foucault enunciado a unidade elementar do discurso.

    uma funo de existncia que pertence, exclusivamente aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela anlise ou pela intuio, se eles fazem sentido ou no, segundo que regra se sucedem ou se justape, de que so signos, e que espcie de ato se encontra realizado por sua formulao (oral ou escrita).73

    Noutras palavras, o enunciado est relacionado aos signos lingusticos para

    lhes dar sentido ou no em um discurso. Segundo o dicionrio Houaiss da Lngua

    Portuguesa,74 o termo enunciado 1. a exposio de uma afirmao a ser definida,

    explicada ou demonstrada; 2. parte de um discurso oral ou escrito. Segundo

    72 BERGESCH, Karen. A dinmica do poder na relao de violncia domstica: desafios para o

    aconselhamento pastoral. Srie Teses e Dissertaes: So Leopoldo: IEPG, 2006. p. 27. 73 FOUCAULT, 2009, p. 98. 74 HOUAISS, Antonio. Minidicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

  • 35

    Foucault, os enunciados so o pano de fundo da produo do discurso e que

    possuem quatro funes (enunciativas), e, por meio delas, podemos analisar melhor

    o discurso. Bergesch esclarece cada funo,75 que exemplificaremos junto ao objeto

    desse trabalho:

    1 Funo: o enunciado se preocupa com o espao de correlaes.

    Ao definir a que ele se refere, ser possvel dizer se uma proposio tem ou

    no um referente:

    O enunciado o campo de [...] leis de possibilidades, de regras de existncia

    para os objetos que a se encontram nomeados, designados ou descritos,

    para as relaes que a se encontram afirmadas ou negadas.76

    O enunciado, ento, somente cria sentido num campo de correlaes, pois o

    mesmo enunciado, na mesma frase, pode ter significados diferentes, dependendo

    do seu campo de correlaes. Por exemplo, um dito filosfico do perodo do imprio

    greco-romano diz que:o homem superior mulher. Nesta sociedade, aplicava-se

    tal filosofia na administrao da casa, que foi estendida para a administrao do

    Estado. O campo de correlao era a casa e o governo. No entanto, o mesmo dito

    filosfico, quando reproduzido num espao eclesial cristo, cria um novo significado:

    a correlao de foras passa a ser entre dirigentes das igrejas e seus fiis.

    Portanto, um dito popular corrente na poca pode ter sido apropriado para

    ser usado num espao eclesial com novas vestimentas (a cristologia), segundo o

    qual Cristo seria o cabea da Igreja, cujo corpo seria a comunidade crist, e nessa

    correlao haveria uma homologia entre os gneros. Percebe-se, assim, que o

    enunciado uma possibilidade estratgica para a constituio do cdigo domstico

    eclesial.

    2 Funo: especifica a relao que o enunciado mantm com o sujeito.

    O sujeito do enunciado uma funo vazia, podendo ser exercida por indivduos, at certo ponto, indiferentes, quando chegam a formular o enunciado; e na medida em que um nico e mesmo indivduo pode ocupar,

    75 BERGESCH, 2006, p. 21. 76 FOUCAULT, 2009, p. 103.

  • 36

    alternadamente, em um srie de enunciados, diferentes posies e assumir o papel de diferentes indivduos.77

    Bergesch explica que o lugar do sujeito do enunciado vazio, o que significa

    que pode ser ocupado por um mesmo indivduo, e que pode ocupar diferentes

    posies, ou mesmo ser ocupado por indivduos diferentes.

    Portanto, o enunciado mantm com o sujeito uma relao determinada. A

    pergunta, ento, para se reconhecer o sujeito do enunciado deve ser: qual a

    posio que pode e deve ocupar todo indivduo para ser seu sujeito?. Os discursos

    em torno da relao entre homens e mulheres na sociedade greco-romana j

    estavam formulados. Cada indivduo, por sua vez, relacionar-se- com estes

    discursos, muito provavelmente, de acordo com a posio que ocupar na sociedade.

    Ao assumir determinado discurso, torna-se seu sujeito. Nas comunidades crists

    primitivas, formularam-se discursos doutrinrios a respeito dos comportamentos dos

    fieis que tambm se estenderam para a casa de seus membros. Os sujeitos

    formuladores parecem ter tido a inteno de criar uma hierarquia nas comunidades

    de f, nas quais o topo da hierarquia era ocupado por bispos e presbteros, seguidos

    por diconos. Suas posies refletiam, assim como na sociedade greco-romana, o

    ser social fundado na diferena e na excluso. Portanto, tendo o Cristo como cabea

    da Igreja, ao corpo cabe a obedincia, este representado pelos fieis.

    3 Funo: considera o que o autor chama de domnio associado, ou seja, o contexto.

    No basta que uma frase seja pronunciada ou escrita. Para que nela haja um

    enunciado, necessrio considerar um contexto maior. Considera-se o

    enunciado num campo enunciativo, o qual aparece como elemento singular.

    Assim, um enunciado sempre supe outros. Portanto, a funo enunciativa s

    pode ser exercida a partir de um contexto. O enunciado sempre faz parte de

    uma srie ou de um conjunto, considerando em torno de si, um campo de

    coexistncia.78

    Por exemplo, a frase: o homem a cabea e a mulher o corpo,

    compreendida isoladamente, pode ser interpretada de vrias formas, entre elas,

    77 BERGESCH, 2006, p. 105. 78 BERGERSH, 2006, p. 23.

  • 37

    homem superior, mulher inferior, homem pensa, mulher age, homem manda, mulher

    obedece, etc. A frase ou proposio somente participar da funo enunciativa,

    quando estiver num jogo enunciativo que o extrapole. Ao vermos o contexto de uma

    relao conjugal na sociedade greco-romana, diremos que esta frase legitima o

    controle e a dominao do homem sobre a mulher.

    Quando se enuncia que Cristo a cabea e a Igreja o corpo, de forma

    isolada, podemos interpretar que Cristo o mestre, o que ensina, e a Igreja o

    discpulo, quem pratica seus ensinamentos. Porm, num jogo enunciativo, que

    ser esclarecido pelo contexto da organizao das comunidades crists, percebe-se

    que a frase legitima a relao hierrquica dos dirigentes (bispos, presbteros e

    diconos) sobre os fiis.

    4 Funo: Por ltimo, o enunciado deve ter existncia material para ser considerado como tal.

    O regime de materialidade a que obedecem necessariamente os enunciados

    , pois, mais da ordem da instituio do que da localizao espao-temporal

    [...] o enunciado precisa ter uma substncia, um suporte, um lugar e uma

    data.79

    A repetio de uma mesma afirmao atravs do tempo cria um novo

    enunciado. Repetir a frase: mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos!, no contexto

    da sociedade greco-romana criou novos enunciados para a comunidade de f

    organizada naquela poca. Agora j no era somente a mulher ser sujeita ao

    esposo, mas tambm a igreja ser sujeita a Cristo (que aqui representado pelos

    dirigentes).

    Em linhas gerais, para se entender um discurso necessrio que

    verifiquemos o seguinte: a correlao de foras que nele existe, a posio do sujeito

    que dele se apropria, o contexto em que dito ou escrito e, por ltimo, a instituio

    que o materializa e o legitima. Estas so as funes enunciativas do discurso. O

    esquema abaixo pode servir como ilustrao:

    79 FOUCAULT, 2009, p. 116.

  • 38

    CORRELAO DE FORAS

    INSTITUIAO DISCURSO POSIO DO SUJEITO

    CONTEXTO

    Foucault procura entender como se forma a discursividade numa

    determinada configurao social. Ele diz que:

    [...] descrever enunciados, descrever a funo enunciativa de que so portadores, analisar as condies nas quais se exerce essa funo, percorrer os diferentes domnios que ela pressupe e a maneira pela qual se articulam tentar revelar o que se poder individualizar como formao discursiva.80

    Com base no estudo exposto, acreditamos que, segundo os enunciados

    evidenciados em Efsios 5. 21-33, a correlao de foras existentes se refere

    constituio de uma hierarquia nas comunidades crists no final do primeiro sculo

    pelos dirigentes sobre seus fiis, nos moldes do Pater famlias, cujo esposo

    domina a esposa, os filhos e os escravos. Os sujeitos de apropriao das duas

    instituies aqui mencionadas (comunidade e famlia) so, respectivamente,

    bispos/presbteros e marido/pai.

    O contexto, como j foi dito anteriormente, o perodo do imprio greco-

    romano, uma sociedade patriarcal e androcntrica, na qual comea a se desenvolver

    algumas comunidades que vo gradativamente se institucionalizando nos moldes do

    patriarcado e do kyriarcado, cujo senhor est no topo e os fiis na base, bem como o

    homem na esfera superior e a mulher na esfera inferior de poder na casa. A

    instituio que legitima o discurso proferido na poca a prpria sociedade greco-

    romana estruturada com base na filosofia corrente. Essa foi uma tendncia social

    instaurada pouco a pouco dentro das comunidades.

    2.4 Elementos externos do discurso: modalidades enunciativas

    A partir de Foucault, quando observamos os enunciados, podemos perceber

    quais so as posies que ocupam os sujeitos que produzem estes discursos e os

    80 FOUCAULT, 2009, p. 131.

  • 39

    sujeitos para os quais so dirigidos. Esta relao entre os sujeitos e os enunciados

    ser elaborada por meio da modalidade enunciativa, que so os diferentes modos

    pelos quais o sujeito se apresenta em seu discurso, tais como: a descrio, a

    formao de hipteses, formulao de regulaes, ensino, etc.

    As diversas modalidades de enunciao, em lugar de remeterem sntese ou funo unificante de um sujeito, manifestam sua disperso: nos diversos status, nos diversos lugares, nas diversas posies que pode ocupar ou receber quando exerce um discurso, na descontinuidade dos planos de onde fala.81

    Por meio da modalidade enunciativa, Foucault tenta conhecer o sujeito, mas

    fora do seu discurso, para saber as suas intenes bem como os motivos que o

    levaram a construir seu discurso dessa e no daquela forma.

    O discurso no a manifestao, majestosamente desenvolvida, de um sujeito que pensa, que conhece, e que o diz: , ao contrrio, um conjunto em que podem ser determinadas a disperso do sujeito e sua descontinuidade em relao a si mesmo. um espao de exterioridade em que se desenvolve uma rede de lugares distintos.82

    Ele analisa o discurso e a posio do mdico na sua prtica profissional.

    Aqui, no analisaremos o discurso do texto bblico com a abrangncia filosfica de

    Foucault, mas por meio do instrumento filosfico que evidencia as modalidades

    enunciativas. Assim nos aproximaremos melhor do texto em questo.

    Da anlise das relaes dos sujeitos que Foucault faz do discurso clnico, h

    algumas investigaes que so importantes para identificarmos nas relaes

    apresentadas no texto de Efsios 5. 21-33. Foucault prope identificar:

    Quem fala? Quem, no conjunto de todos os sujeitos falantes, tem boas razes para ter esta espcie de linguagem? [...], Qual o status dos indivduos que tm o direito regulamentar ou tradicional de proferir semelhante discurso e Quais os lugares institucionais de onde o sujeito da enunciao obtm seu discurso.83

    O lugar institucional garante ao sujeito que discursa sua competncia do

    saber e reconhecimento social. Porm, ainda existe uma indagao: quais so os

    81 FOUCAULT, 2009, p. 61. 82 FOUCAULT, 2009, p. 61. 83 FOUCAULT, 2009, p. 56.

  • 40

    elementos que agiram na histria para que o discurso do sujeito recebesse esta

    formao e no outra?

    No discurso de Efsios 5. 21-33, exemplificamos como modalidade

    enunciativa os cdigos domsticos que, conforme Strher: [...] configuram-se como

    um corpo de doutrinas ou regras de comportamento ou de deveres referentes s

    relaes existentes entre as categorias sociais que constituam o antigo oikos

    (casa).84

    Estas regras vo estabelecer uma estrutura de desigualdade domstica na

    sociedade greco-romana, as quais sero tomadas como exemplo de comportamento

    para as famlias e para as comunidades crists.

    A partir da anlise de Foucault, queremos descobrir os sujeitos deste

    discurso: os que enunciam e os que recebem. As perguntas, ento, so as

    seguintes:

    quem fala para a assemblia crist?

    quem tem boas razes para usar tbuas domsticas para fazer teologia?

    qual o status do indivduo na assembleia?

    em que lugar este indivduo discursa ou que elementos agiram na histria do cristianismo para que este indivduo usasse este discurso e no outro?

    para responder a tais questes, precisamos entender a organizao da igreja nos primeiros sculos.

    Em primeiro lugar, importante afirmar que a discusso sobre a autoria da

    carta aos Efsios nos obriga levantar algumas questes em relao autoridade

    paulina e ao princpio de apostolicidade. Isto j responde sobre o status ou a

    autoridade de quem discursa. Se uma afirmao de Paulo, tem crdito,

    legitimidade e autoridade apostlica. No entanto, foi esta viso exclusivista de

    autoridade que dificultou a percepo do protagonismo de outras pessoas como

    condutoras da misso crist, nos primeiros sculos. Segundo Strher:

    [...] mais fcil assumir uma autoria paulina dos textos neotestamentrios, chamados de corpus paulinum, do que perder a autoridade paulina e ter que reconstruir os fundamentos de nossa f...porm essa discusso em torno da

    84 STRHER, 2002, p. 74.

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    autoridade paulina dos textos, dificulta a possibilidade de conhecer melhor a histria das primeiras comunidades crists a partir de outros critrios e olhares a ampla participao de outras pessoas como protagonistas da histria.85

    Strher considera que Paulo no o grande precursor da misso crist e da

    organizao de comunidades crists, mas um dos tantos apstolos e apstolas

    engajadas no movimento cristo missionrio e na organizao das primeiras

    comunidades crists.

    Ento, a proposta lanar outro olhar e tentar perceber a descoberta das

    comunidades que continuaram a se estabelecer depois de Paulo. Nessa direo,

    focaremos outro olhar para a carta aos Efsios, num esforo de compreender os

    textos luz de um maior conhecimento da histria dos primeiros cristos, j no final

    do sculo I e incio do sculo II, das relaes comunitrias e interpessoais e das

    implicaes da organizao destas comunidades.

    Tendo em vista que j foi levantada a afirmao de que Efsios ,

    provavelmente, uma carta deutero-paulina, a questo central que se coloca a

    pergunta sobre que tipo de estruturas de liderana funcionaram nas comunidades

    crists que apelavam para a autoridade de Paulo em sua ausncia. Segundo

    Strher:

    As pessoas que esto por trs das Cartas aos Efsios buscam demonstrar s comunidades que existe um vnculo com a tradio paulina que consolida a unidade da comunidade. Respondem a perguntas da poca e tentam resolver problemas, como, por exemplo, o de tendncias no-padronizadas de compreenso de comunidade, chamadas de heresia, ou talvez algum constrangimento ou desconforto por haver mulheres liberadas e lderes nas comunidades.86

    Alguns textos ps-apostlicos podem atestar a preocupao que as

    lideranas comunitrias tinham sobre a questo hierrquica e da obedincia

    doutrinal a esta hierarquia. Isto se d at mesmo como forma de se defender dos

    movimentos herticos, comuns na poca. Dentre os textos ps-apostlicos, temos

    as cartas de Incio de Antioquia, datada em torno de 107-110 d.C.

    Na carta que Incio envia comunidade de feso, ele faz tambm uma

    exortao para que a comunidade obedea aos bispos e presbteros. Ele escreve

    85 STRHER, 2002, p. 75. 86 STRHER, 2002, p. 78.

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    para a comunidade de feso porque est preocupado com a heresia. Ele faz um

    elogio comunidade que resiste s heresias. Tambm recomenda comunidade se

    submeter ao bispo. preciso glorificar de todos os modos a Jesus Cristo, que vos

    glorificou, a fim de que, reunidos na mesma obedincia, submetidos ao bispo e ao

    presbtero, sejais santificados em todas as coisas.87

    Temos tambm a Didaqu,88 outro texto ps-apostlico, com instrues

    prticas para a comunidade, escrita em torno do final do sculo I e incio do sculo

    II, composta na Sria. Na Didaqu podemos ver a organizao local, representada

    pelos bispos e diconos. A escolha de bispos e diconos indica o surgimento de

    ministrios diferenciados e definidos em seus papeis na comunidade.

    Havia problemas tambm com a liderana das mulheres na comunidade

    crist. Fiorenza informa que missionrios cristos foram acusados de perturbar a

    ordem patriarcal romana. Isto est, sobretudo, nos Atos Apcrifos, os quais

    circulavam nas comunidades da sia Menor na poca em que a primeira carta de

    Pedro e as cartas Pastorais foram escritas.

    De acordo com os Atos de Paulo e Tecla, Paulo acusado de corromper todas as mulheres. Os Atos de Paulo mencionam mulheres profetisas como Teonoe, Estratnica, ubula, Fila, Artemila e Ninfa. Tecla, uma mulher de classe alta de Icnio, renuncia a seus papis de filha, esposa, me e patroa. por isso que condenada morte, e no o seu cristianismo. Sua prpria me pediu ao governador: Queima essa mulher fora da lei. Queima-a para que fiquem com medo todas as mulheres que foram ensinadas por esse homem(3:20.3-5). Levantavam-se contra as mulheres acusaes de imoralidade e abandono dos maridos.89

    Isto implica dizer que por trs das exortaes feita s mulh