Sina e Criação (Reformatado)

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    SINA E CRIAOFontes Existenciais da InquietaoFilosfica e da Criatividade Potica

    Este livro visa desenvolver uma reflexo dialogante e meditativa a respeito daexperincia existencial fundamental, que conduz criao potica. Partindo deum mtodo filosfico sem pretenses analticas, procura-se aqui se instalar naperspectiva de uma reflexo meditativa, levando em conta os aspectos

    mstico, potico e filosfico da existncia, presentes especialmente em obrasde autores brasileiros como Carlos Drummond de Andrade, Ariano Suassuna engelo Monteiro, alm de aprofundar o que a se mostra a partir dopensamento filosfico de Raimundo Farias Brito e Evaldo Bezerra Coutinho.Procurando aprofundar e dar a compreender o sentido existencialfundamental do labor potico, e tomando como ponto de partida que oprprio filosofar tem suas razes profundas na experincia mstica e potica,busca-se primeiro compreender como a tristeza se faz solo originrio efecundo da criao; em seguida procura-se enxergar em que medida aantecipao da morte instaura, como possibilidade de sentido finita, aliberdade criadora; depois se verifica como a existncia aprisionada nos limites

    de sua finitude sente o primeiro lampejo de sua liberdade na experincia dacriao potica; e, por fim, procura-se mostrar exemplarmente como o laborpotico possui, em ltima instncia um carter redentor da experincia finitado homem no mundo.

    2013

    Gilfranco Lucena dos SantosUniversidade Federal do Recncavo da Bahia

    Amargosa/BA

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    Sina e riaoFontes Existenciais da Inquietao Filosfica e da riatividade Potica

    Gilfranco Lucena dos Santos

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    APRESENTAO

    O que em ns empurra-nos criao potica e inquietao filosfica? Por que

    efetivamente fazemos poesia, literatura, arte e construmos ideias e conceitosfilosficos? Como uma ininterrupta vibrao de corda tencionada, tais indagaes

    sobrevoam ao mesmo tempo distantes e rasantes os meandros argumentativos

    encravados nos cinco ensaios que constituem a presente obra. Longe de qualquer

    compromisso com o modo de filosofar imperante em nossa poca, cuja praxe parece

    transmutar a filosofia em uma simples ancilla scientiae, o que nela percorre bastidores e

    proscnio um debruar-se quase um atirar-se no velho-novo problema das origens.

    Nessa caudalosa tarefa, os prprios olhos autobiografantes de seu autor recolhem nomrmore de sua existncia uma experincia potico-filosfica capaz de ousadamente

    danar por sobre os tnues limites que separam o mstico, o artstico e o filosfico.

    Sina e Criaode Gilfranco Lucena dos Santos nos guia pelas sendas de uma

    elaborao intelectual densa e profundamente ntima, ancorada no pressuposto de que

    Arte e Filosofia, ambas tomadas como modos de compor, possuem uma fonte originria

    comum: a existncia. Em outras palavras, a trama criadora que se desdobra em obra de

    arte ou construto filosfico sempre faz referncia a um horizonte existencial de sentido,a uma tradio, ou quilo que o autor precisamente denomina verbo herdado. Destarte,

    o poeta um criador e o criar potico (ou mesmo filosfico) uma re-orquestrao do j

    orquestrado, do repositrio e lugar mesmo de resguardo de toda criao possvel ao

    existente humano. Visto dessa maneira, todo compor poetizante compreendido desde

    as razes telricas da vida em tudo que ela abarca, peremptoriamente flechando cada um

    de ns e engendrando dilaceraes configuradoras.

    No pano de fundo e sudrio mesmo dos processos criativos que arrebatam o

    artista e o filsofo o autor encontra uma primeira fonte: a tristeza humana enquanto

    revrbero e centelha da tristeza criadora do Deus judaico-cristo. Juntando-se a

    Drummond e Farias Brito, com os quais se coloca em ntida contiguidade intuitiva, faz-

    nos reconhecer no dorso do fazer potico e da compreenso filosfica as cinzas da

    tristeza csmico-divina. No ato artstico e filosfico de composio, segundo Gilfranco

    L. dos Santos, repete-se o gesto-sntese de Deus em sua incomensurvel solido, pois

    Nele tristeza e criao consubstanciam-se. No olvidando seu sentido simblico, o autor

    revela a face mtica do contedo dessa tristeza criadora suscitando o modo comum de

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    representao da criao nesse domnio, a procriao, e nesta as figuras da dor, da

    gerao, da transmutao, da regenerao.

    Noutra senda, a vez da abertura antecipatria para finitude experienciada

    como vspera de morte estatuir-se em fonte existencial da produo artstica e

    filosfica. Schopenhauer j teria dito que a morte a musa da filosofia, sem a qual

    jamais se teria filosofado, e tal assero parece incorporar-se s argutas palavras do

    autor quando busca retratar, nas raias do pensamento de Evaldo Coutinho e Farias Brito,

    o carter trgico do existir em sua condio de propulsor da criao potica. Porquanto

    cnscios de estarmos mergulhados na sina da morte inexorvel, pomo-nos a criar.

    Porquanto vivemos com a lancinante conscincia de estar a um passo de morrer, no

    hesitamos em esculpir esttuas erigidas em nome de nossa vontade de eternizao.

    Engravidados pela morte, esta inseparvel sombra da existncia, libertamo-nos dando

    luz a obras mediante as quais anelamos perpetuarmo-nos.

    Para alm dos epitfios, poesia jazigo! Qui seja essa a mais penetrante

    considerao filosfica desse livro. O dilogo construdo com Ariano Suassuna e

    ngelo Monteiro , nesse sentido, bastante profcuo. No mundo como crcere, e na

    morte como carcereira, um Quaderna acorrentado exibe o seu destino potico que no

    fundo o nosso: somente no onrico da elaborao potica desencarceramo-nos. Com alucidez prpria de quem filosofa com altivez, o autor nos coloca ante a tarefa mesma da

    poesia: reter o instante, pereniz-lo no perecvel. A poesia no sendo mais que o dstico

    perenizado da finitude entrega existncia uma possibilidade remissiva. Demiurgo s

    avessas, o poeta-filsofo arranca do transitrio aquilo que captura e cristaliza em obra

    de arte, e nesse atrevimento fundamental, vive e se redime da finitude!

    A escrita ensastica fincada nas pginas que se seguem exala uma atitude ao

    mesmo tempo particular e universal de seu autor: particular em vista do anseio porgenerosamente comunicar uma abissal vivncia prpria revertida sobretudo em poesia, e

    universal pela tentativa a nosso ver exitosa de compreend-la na perspectiva do

    drama existencial humano em franca correspondncia com um circuito reflexivo

    consolidado na tradio filosfica desde os antigos gregos. Essa dupla valncia permite

    ao livro abrigar a densidade tpica de quem tem com a sabedoria uma profunda amizade,

    e a beleza lrica de algum que ao escrever versa sobre todos ns, falando de si.

    Jos Antnio Feitosa ApolinrioSerra Talhada, Setembro de 2013.

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    Existenciar para a morte,

    eis o dstico que aponho fachada do meu templo.Evaldo Coutinho

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    A meu Pai,

    in memoriam,

    que sempre sofreu as dores de estar arremessadopara a mortee entregue angustiosa vida errante, prpria da existncia em agonia.

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    PREFCIO

    Este livro um inventrio. uma prestao de contas com o que para mim tem

    se tornado mais essencial, em minha precria experincia filosfica. um inventrio do

    que tenho recebido de herana e, portanto, a nica coisa que posso deixar de herana.

    Visa desenvolver uma reflexo dialogante e meditativa a respeito da experincia

    existencial fundamental, que conduz s inquietaes filosficas e criao potica.

    Partindo de um mtodo filosfico, sem pretenses analticas, procura-se aqui se instalar

    na perspectiva de uma reflexo meditativa, levando em conta os aspectos mstico,

    potico e filosfico da existncia, presentes especialmente em obras de autores

    brasileiros como Carlos Drummond de Andrade, Ariano Suassuna e ngelo Monteiro,

    alm de aprofundar o que a se mostra a partir do pensamento filosfico de Raimundo

    Farias Brito e Evaldo Bezerra Coutinho.

    Trata-se de uma interpretao interativa, que inclui necessariamente uma

    penetrao de sentido e significao, no caracterizada por uma mera compartilha

    intersubjetiva de objetividades exteriores, mas uma contemplao unitiva,

    correspondente; prolongamento de um sentido comum. Trata-se, pois, da interpretao

    de intuies filosficas inquietantes e criaes poticas sugestivas, mas no no sentidode alcanar a sua completude, mas apenas no mbito em que um determinado sentido

    comum pode ser compreendido em seu elemento nico, singular e pleno por si. Por isso,

    uma meditao, no uma exposio analtica.

    Este mtodo de exposio, caracterizada aqui como uma penetrao de sentido

    no nenhuma inveno. Trata-se de um modo como se constitui a interpretao de

    uma herana verbal, de um sentido comunicado, compreendido e passvel de ser

    prolongado e aprofundado; que pode ir alm do sentido comunicado, passvel deinterpretao. Interpretar no analisar o que se disse, mas elaborar o compreendido.

    No se pode confundir interpretao com anlise e, com isso, no estou estabelecendo

    nenhuma hierarquia entre ambos. A diferena bsica entre interpretao e anlise que,

    nesta ltima, a fidelidade consiste em unicamente apreender o mais objetivamente

    possvel o que foi dito e o modo como foi dito, criando meta-estruturas de apreenso

    que se diferenciam objetivamente da estrutura em que o verbo herdado foi comunicado.

    Na penetrao de sentido, prpria da interpretao que aqui almejo empreender, afidelidade ao dilogo participativo, em que se pode ir alm do que j foi dito, mesmo

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    que se parta claramente dele. Ir alm do j comunicado significa prolongar e aprofundar

    o sentido da palavra comunicada. Trata-se de uma repetio ou retomada revisionista,

    luz de um sentido compreendido, em que, de incio, parece no haver nada de novo,

    mas, ao fim e ao cabo, chega-se a um patamar de sentido, que no se imaginaria

    alcanar no incio da interpretao.

    Procurando aprofundar e dar a compreender o sentido existencial fundamental

    do labor potico, e tomando como ponto de partida que o prprio filosofar tem suas

    razes profundas na experincia mstica e potica, busca-se primeiro compreender como

    a tristeza se faz solo originrio e fecundo da criao; em seguida procura-se enxergar

    em que medida a antecipao da morte instaura, como possibilidade de sentido finita, a

    liberdade criadora; depois se verifica como a existncia aprisionada nos limites de sua

    finitude sente o primeiro lampejo de sua liberdade na experincia da criao potica; e,

    por fim, procura-se mostrar exemplarmente como o labor potico possui, em ltima

    instncia um carter redentor da experincia finita do homem no mundo.

    Espero que este livro seja recebido, em ltima instncia caso se perceba que

    ele se tornou digno distocomo uma homenagem a esses grandes poetas e pensadores

    brasileiros, que muito marcaram minha experincia meditativa sobre a vida e sobre a

    experincia de pensar e criar, as quais caracterizam a filosofia e a arte.

    O Autor

    Amargosa, maio de 2013.

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    SUMRIO

    INTRODUO ................................................................................................. 15

    PRIMEIRO CAPITULO

    TRISTEZA E CRIAO ................................................................................... 31

    SEGUNDO CAPTULO

    VSPERA DE MORTE E CRIAO ............................................................... 41

    TERCEIRO CAPTULO

    A EXISTNCIA APRISIONADA E SEU DESTINO POTICO ..................... 59

    QUARTO CAPTULO

    A FUNO REDENTORA DO LABOR POTICO ........................................ 69

    QUINTO CAPTULOO RESGUARDO ARTSTICO DA EXISTNCIA HISTRICA .................... 81

    CONCLUSO................................................................................................... 91

    REFERNCIAS................................................................................................ 93

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    INTRODUO

    Filosofar aqui no consiste em outra coisa, seno em recolher vestgios para a

    elaborao de uma s composio. Neste sentido, Filosofar compor. E nisto se

    assemelha arte.

    A diferena entre o filsofo e o artista est em que o artista v assim como o

    religioso cr sem ter visto, confiando apenas no testemunho dos antepassados e em

    funo do que sente em seu ntimo. Desse modo, enquanto o artistave o religiosocr,

    o filsofo quer ver para crere, por isso, mergulha em suas inquietaes, que so sua

    fonte de inspirao.

    Mas as inquietaes do filsofo e dos filsofos no so sempre as mesmas. Elas

    despertam o filosofar e, tomado por elas, o filsofo inquire e persegue as indicaes e

    pistas de seus questionamentos, enquanto procura ver mais e melhor.

    O filsofo procura ver mais e melhor aquilo que de algum modo sente, mas no

    sabe. Por isso, segue o faro de suas inquietaes, enquanto se sente impulsionado a

    caminhar em direo a si mesmo. As inquietaes se constituem como uma espcie de

    inspirao que o convocam para si, a fim de que ele possa descobrir e ver o que

    realmente no sabe, mas, de algum modo, sente. Assim, o filsofo quer ver para crernaquilo que de algum modo sente, mas no sabe propriamente. O filsofo, portanto, no

    um sbio, mas um ser anelante pela sabedoria, que reconhece no ter.

    Por isso, conta a tradio que Pitgoras no quis ser chamado de sbio(so,foj),

    mas de amigo da sabedoria (filoso,foj). Ao anoitecer da filosofia, Hegel cometeu esse

    ledo engano em sua proposta filosfica: O verdadeiro aspecto (Gestalt), em que a

    verdade existe, s pode ser o seu sistema cientfico. Colaborar para que a filosofia se

    aproxime da forma da cinciada meta em que se possa tirar-lhe o nome de Amor aoSaberpara ser saber efetivo isto o que me proponho 1. Por outro lado, ao alvorecer

    da longa noite em que mergulhou o pensamento filosfico com Hegel, preciso tentar

    corrigir esse erro e, retomando a postura pitagrica, comear de novo a pensar,

    reconhecendo-se no como sbio, nem como tolo, mas como filsofo.

    Comear de novo a pensar, cultivando a amizade pela sabedoria, implica

    redescobrir em que consiste aphilia, e quais atitudes a constituem.

    1Friedrich HEGEL.Fenomenologia do Esprito, trad. Paulo Menezes, 3 ed. Petrpolis: Vozes, 1997, p.23.

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    Era em funo desta amizade, de certo modo desprezada por Hegel em seu

    prefcio Fenomenologia do Esprito, que Pitgoras considerava-se praticante da

    filosofia, a qual no havia certamente de ser compreendida como saber efetivo

    (wirkliches Wissen), como o quis Hegel, mas como amizade pela sabedoria (fili,a tou/

    sofou/).

    Heidegger caracterizou bem, certa vez, esta espcie de amor, isto , a amizade.

    Traduziu o verbo grego filei/npor presentear o favor, ou conceder a graa (die

    Gunst schenken), entendendo o favor no sentido originrio de propiciar e preservar.

    Segundo ele:

    A propiciao originria uma preservao do que convm ao outro, do que

    pertence sua essncia, medida que o sustenta. A amizade, fili,a, , assim, ofavor que favorece ao outro a essncia que ele j possui, de maneira que nessaapropriao a essncia favorecida possa florescer em sua prpria liberdade. Naamizade, a essncia reciprocamente propiciada e favorecida libera-se para simesma. 2

    Desse modo, o amigo da sabedoria, em sua amizade por aquilo que sente, mas

    no sabe, e quer ver para crer, pois se enche de espanto com o que sente, com o que

    fareja, um propiciador do florescimento da sabedoria, esta que, por sua vez, se anuncia

    em cada filsofo de um modo diferente, a partir de suas inquietaes. Este, ao procura-la, almeja encontra-la, resguard-la, cultiv-la, preserv-la e mant-la em sua essncia.

    H uma tendncia contempornea, especialmente em virtude da fragmentao do

    saber cientfico, a buscar se inteirar de tudo aquilo que se tornou objeto da cincia, e

    pode ser apreendido segundo seu mtodo. Esta tendncia conduz no s busca de um

    saber fragmentrio e disperso em muitas justas especialidades, mas, acima de tudo, a um

    processo de especializao em que a filosofia j no tem grande relevncia, se no se

    prestar a estabelecer fundamentos lgicos, qui ontolgicos, desses outros campos dosaber. Resta filosofia fornecer o arcabouo profundo em que se insere, como algo

    justificado e bem fundamentado, o saber especializado da cincia. Chegou-se mesmo a

    anunciar o fim da filosofia, com vistas a deixar um caminho aberto para a tarefa do

    pensamento nesse clima atual. Mas aqui interessa-me a questo de um recomeo, em

    que j esteja de antemo decidido como faz-lo. De um recomeo em que esteja em

    jogo, acima de tudo, suscitar essa experincia de aproximao de um saber que est

    2 Martin HEIDEGGER. Herclito, trad. Mrcia S Cavalcante Schuback. Rio de Janeiro: RelumeDumar, 1998, p. 128.

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    muito longe daquele j consagrado e firmemente constitudo na concepo cientfica

    do mundo. Como faz-lo? Tentemos comear com um breve retorno experincia

    inicial da filosofia.

    Pela tradio, segundo a qual se conta que o termo filosofia advm de Pitgoras,

    no se pode imaginar que ele tenha sido simplesmente aquilo que quiseram fazer dele:

    um mero sabedor de muitas coisas, apesar de, certamente, ter investigado muitas coisas,

    impelido por suas inquietaes e, at mesmo, aprendido muitas coisas. O essencial na

    atitude pitagrica mostra-se no fato de ele se colocar numa atitude de contnua busca e,

    s por isso, poder ter feito alguma descoberta. esta busca que caracteriza o termo

    filei/nna palavra filosofia.

    Depois de Pitgoras, Herclito considerava ser bem necessrio [serem] os

    homens amantes da sabedoria para investigar muitas coisas 3, e considerou que

    Pitgoras, filho de Minesarco, procurou investigar (istori,hn h;skhsen) mais do que

    todos os homens, tendo, com isso, atravs de suas composies escritas e por ele

    escolhidas, constitudo para si uma sabedoria (evpoih,sato eautou/sofi,hn) a partir das

    inquiries por ele levadas a cabo 4. Porm, apesar do que j dissemos acima sobre

    Pitgoras, esta sabedoria alcanada por Pitgoras foi caracterizada por Herclito como

    sendo polumaqei,hn, isto , aprendizado de muitas coisas. esta expresso e este tipo de

    saber que, a meu ver, pode ter sido injustamente aplicado a Pitgoras e melhor se

    aplica quilo que fizeram ou quiseram fazer dele que est sob o olhar crtico de

    Herclito no fragmento 40, assegurando que polumaqi,h, isto , muito aprendizadono

    ensina ao intelecto (no,on ouv dida,skei), seno teria ensinado Hesodo e Pitgoras, e

    tambm Xenfanes e Hecateu 5.

    V-se, pois, atravs da conexo desses dois fragmentos, que a crtica de

    Herclito dirige-se a esse aprendizado de muitas coisas, que ele atribui tanto a Pitgoras,a quem quiseram chamar de sbio, e que entrou na tradio como sabedor ou aprendiz

    de muitas coisas, assim como o faz com Hesodo, Xenfanes e Hecateu. preciso notar,

    porm, que, ao tentar pensar-se como filsofo, Pitgoras quer, certamente, rejeitar ser

    3 HERCLITO, fragm. 35, in ANAXIMANDRO, HERCLITO e PARMNIDES. Os PensadoresOriginrios. Trad. Emanuel Carneiro Leo e Srgio Wrublewski. 3 ed. Petrpolis: Vozes, 1999, p. 67.4Cf. HERCLITO, fragm. 129, in Charles H. KAHN. A arte e o pensamento de Herclito. Uma edio

    dos fragmentos com traduo e comentrio. So Paulo: Paulus, 2009, p. 68. Cito o nmero do fragmentode acordo com Diels, indicado pela letra D nesta edio de Kahn.5HERCLITO, Fragm. 40, in C. H. KAHN, op. cit., p. 65.

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    chamado de sabedor de muitas coisas; uma caracterstica que Herclito, como filsofo

    que foi, tambm haver de evitar.

    De fato, para Herclito, a autntica busca do saber no se coaduna com o

    aprendizado de muitas coisas. Tentando recompor o seu discurso, ainda que de maneira

    relativamente arbitrria, a partir de alguns dos vestgios de seus escritos que chegaram

    at ns, demos-lhe a palavra para ouvir o que significava para ele a filosofia e o

    filosofar. Quem propriamente o sbio na perspectiva heraclitiana? Segundo Herclito,

    Um somente o sbio, proclamado, queira ou no queira, pelo nome de Zeus6. O que

    reafirma em outros fragmentos: Um o sbio, conhecendo o plano pelo qual dirige

    todas as coisas atravs de tudo7. O raio comanda todas as coisas8. Para Herclito, o

    divino se mostra como um mbito no qual se situa a sabedoria, e s a ele se pode

    propriamente chamar de sbio.

    Esse divino, proclamado, aqui, pelo nome de Zeus, o raio que governa todas as

    coisas , porm, em outro passo, interpretado do seguinte modo: O deus: dia noite,

    inverno vero, guerra paz, saciedade e fome, que muda como se misturando a

    perfumese nomeado segundo o prazer de cada um9. V-se por a a rbita em torno

    da qual gravita o que Herclito nomeia como deus, Zeus, o raio: dia e noite, guerra e

    paz, saciedade e fome, inverno e vero; esta mudana contnua que sendo, ao mesmotempo, um s, recebe dos homens, porm, vrios nomes, por uma limitao do homem,

    e no por causa da divindade mesma imanente ao cosmos. Este cosmosproclamado por

    Herclito o novo Zeus dos filsofos, como diz Charles Kahn, e que remete ideia

    de deus csmico, ordenando a regularidade do sol e das estrelas, da luz do dia e das

    estaes, por um ato de inteligncia csmica 10.

    Para o homem, que dito tolo por um deus, tal como a criana dita tola

    por um homem11

    , as mudanas da natureza, seus tempos, mostram-na como mltipla,quando, na verdade, essas mudanas contnuas so uma unidade divina. Nisso erra os

    homens, segundo Herclito, pois s veem o mltiplo no um, segundo opinies diversas

    e a seu bel prazer, o que atesta contra sua presumida sabedoria. Pois, assegura Herclito,

    6Ibidem, Fragm. 32, p. 104.7Ibidem, Fragm. 41, p. 80.8Ibidem, Fragm. 64, p. 104.9Ibidem, Fragm. 67, p. 105.10

    Charles KAHN, A arte e o pensamento de Herclito; uma edio dos fragmentos com traduo ecomentrio, trad. lcio de Gusmo Verosa Filho. So Paulo: Paulus, 2009, p. 262.11HERCLITO, Fragm. 79, op. cit.,p. 81.

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    as opinies humanasso brinquedos para crianas 12. Segundo Herclito, amaioria

    dos homens no pensa coisas como as encontra, nem reconhece o que experimenta, mas

    acredita em suas prprias opinies13. E se pergunta: Que juzo ou compreenso eles

    tm? Creem nos poetas do povo e adotam a multido como seu professor, no sabendo

    que muitos so sem valor, homens bons so poucos14.

    Ento, podemos ver Herclito passar em revista queles considerados como

    sbios das multides. Sua posio rudemente crtica, e certamente tem em vista mais

    atacar o modo como os poetas eram tomados pelas multides do que propriamente os

    poetas em si. Fato que, numa genuna antecipao da concepo e da atitude socrtica,

    Herclito reluta em falar dos seres humanos como sbios 15, compreenso vulgar que

    estava arraigada na tradio grega de ento, e que se conservava nas lendas dos Sete

    Sbios, que atribua a poetas, artesos, estadistas e mestres de moralidade 16o ttulo

    de sbios17.

    Assim, Herclito zomba dos que creem nos poetas do povo (dh,mwn avoidoi/si) e

    adotam a multido como seu professor. Pensando desse modo, e tentando mostrar

    porque no se deve aplicar aos homens o ttulo de sbios, Herclito comea a

    sarcasticamente demonstrar a impropriedade da atribuio de sbio aos homens,

    tornando patente, recorrendo prpria tradio, os equvocos, enganos e problemasdaqueles que a multido considera como sbio. E assegura:

    Os homens se enganam no reconhecimento do que bvio, como Homero, queera o mais sbio de todos os gregos. Pois ele foi enganado por meninos que

    12Ibidem, Fragm. 70, p. 81.13

    Ibidem, Fragm. 17, p. 60.14Ibidem, Fragm. 104, p. 82.15Charles KAHN, op. cit., p. 262.16Ibidem.17 No Protgoras de Plato figura uma lista de sete, caracterizados como indivduos de educaoesmerada: Entre esses, diz Plato, contam-se Tales de Mileto; Ptaco de Mitilene; Biante de Priene;nosso Solo; Clebulo, de Lindos; Miso de Queneu, e o lacedemnio Quilo, que tido como o stimodo grupo (PLATO, Protgoras, 343a, trad. Carlos Alberto Nunes, Belm: EDUFPA, 2002, p. 95).Digenes Larcio, em seu Vidas e Doutrinas dos Filsofos Ilustres, apresenta uma lista de sete idntica de Plato, exceto pelo fato de substituir o nome de Mson pelo de Periandros (cf. DIGENESLARTIOS, Vidas e Doutrinas dos Filsofos Ilustres, 13, trad. Mrio da Gama Kury, 2 ed. Braslia:

    UNB, p. 16). Mas traz tona outras referncias a eles em outras obras antigas, nas quais no somente semudam os nomes, mas tambm o nmero dos reconhecidos como sbios (cf. DIGENES LARTIOS,Vidas 40-41, op. cit., p. 23).

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    matavam piolhos, que disseram: o que vemos e apanhamos deixamos para trs;o que no vemos nem apanhamos levamos embora 18.

    Trata-se, de fato, de uma ironia sinistra, que Homero, tendo sido o mais sbio

    de todos os gregos, tenha sido enganado por garotos que catavam piolhos , fazendo,

    como contava a tradio, que o poeta tivesse morrido de desgosto por no ter sido

    capaz de adivinhar a resposta da charada 19.

    Pitgoras foi um daqueles renomados ditos Sbios da Grcia pela tradio. Seu

    nome figurava entre os sbios na obra de Hrmipos, intitulada Sobre os Sbios, e

    melhormente como filsofo na suaLista de Filsofos de Hipbotos20. Herclito observa

    sua capacidade investigativa, mas em nome de sua crtica atribuio de sbio aos

    homens, destaca em que consiste o aprendizado de Pitgoras, dizendo ainda de maneirasarcstica e mesmo irnica: Pitgoras, filho de Minesarco, levou a inquirio alm de

    todos os homens e, escolhendo o que gostava dessas composies, forjou uma sabedoria

    para si: muito aprendizado, arte malfica 21. Para Herclito, muito aprendizado no

    ensina ao intelecto, seno teria ensinado Hesodo e Pitgoras, e tambm Xenfanes e

    Hecateu 22, e assegura ainda que Homero merece ser retirado da competio e

    espancado com vara e Arquloco tambm 23. Ou seja, como um aedo, que tinha seus

    poemas recitados por rapsodos em competies pblicas nos jogos e festivais (agones),em conexo com os torneios atlticos 24, Homero, tal como Arquloco poeta lrico e

    autor de invectivas cmicas do sc. VII a. C. mais que ser aclamado como sbio,

    deveria mesmo era ser punido com o seu prprio smbolo, a vara ou rhabdos 25, isto ,

    o instrumento padro utilizado pelos bardos e rapsodos que competiam em torneios de

    poesia 26. Pois, para Herclito, o que esses ditos sbios constituam tratava-se mais de

    um aprendizado mltiplo, do que propriamente de sabedoria.

    Por isso, numa ausculta ao senhor, cujo orculo est em Delfos, e que nodeclara nem oculta, mas d sinal 27, Herclito assegura: fui em busca de mim mesmo

    18Ibidem, Fragm. 56, p. 67.19C. KAHN, op. cit., p. 147.20DIGENES LARTIOS, Vidas, 42, op. cit., p. 23.21Ibidem, Fragm. 129, p. 68.22Ibidem, Fragm. 40, p. 65.23Ibidem, Fragm. 42, p. 67.24C. KAHN, op. cit., p. 146.25

    Ibidem.26Ibidem, p. 67, n. XXI.27HERCLITO, Fragm. 93, op. cit., p. 71.

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    28. A sentena concisa, que, segundo Plato, foi posta de comum acordo entre os Sete

    Sbios, entrada do templo de Delfos, oferecendo a Apolo as primcias de sua

    sabedoria 29 e atribuda a Tales 30, d sinal sobre o que de fato essencial: Gnw/qi

    sauto,n, isto : Conhece-te a ti mesmo. Com boca delirante, a Sibila declara coisas sem

    sorrisos, sem adornos, sem perfume, e a sua voz ressoa por mil anos por causa do deus

    que fala atravs dela 31, assevera Herclito. E assegura, quanto a este dito, que: No

    descobrirs os limites da alma mesmo se percorreres todos os caminhos, to profundo

    o seu dito (lo,goj) 32. E ouvindo no a mim, mas ao dito (lo,goj), que sinaliza e

    indica, sbio condizer ser tudo um33. E assegura:

    Embora este dito seja sempre, os homens sempre falham em compreend-lo,tanto antes quanto depois de t-lo ouvido. Embora todas as coisas se passem deacordo com este dito, homens so como descrentes quando experimentamsemelhantes palavras e obras, como agora empreendo, distinguindo cada umasegundo a natureza e dizendo como ela . Mas outros homens se esquecem doque fazem despertos, assim como se esquecem do que fazem dormindo 34.

    Desses homens, que se esquecem do que fazem acordados, assim como se

    esquecem do que fazem dormindo, diz Herclito que Hesodo o professor da

    maioria. ele que conhecem como o maior conhecedor, ele que no reconheceu a

    natureza do dia e da noite: ambos um 35. Pois, sustenta Herclito, Hesodo

    considerava alguns dias bons, outros como ruins, porque no reconhecia que a natureza

    de todos os dias era uma e a mesma36. Para Herclito, o dia e a noite so ambos um,

    aquele proclamado pelo nome de Zeus. No ter reconhecido isso , para Herclito, um

    limite na expresso de Hesodo, que tambm no poder ser chamado de sbio. O relato

    de Hesodo estava apoiado no padro de oposio mais firmemente ancorado na

    experincia bsica da humanidade entre a luz do dia e a escurido da noite 37. O

    28Ibidem, Fragm. 101, p. 64.29PLATO,Protgoras, 343a. op. cit., p. 95.30De acordo com Digenes Larcio dele o provrbio conhece-te a ti mesmo, que Antstenes, em suaobra Sucesses dos Filsofos, atribui a Femonoe, embora admitindo que o mesmo fora plagiado porQulon (DIRGENES LARTIOS, Vidas40, op. cit., p. 23).31HERCLITO, Fragm. 92, op. cit., p. 72.32Ibidem, Fragm. 45, p. 72.33Ibidem, Fragm. 50, p. 72.34Ibidem, Fragm. 1, p. 59.35

    Ibidem, Fragm. 57, p. 66.36Ibidem, Fragm. 106, p. 66.37C. KAHN, op. cit., p. 143.

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    relato de Hesodo a respeito da natureza do dia e da noite 38 algo com o qual s um

    tolo pode se empolgar, pois, para ele, um homem tolo ama empolgar-se com qualquer

    relato39. Mas declara: de todos os relatos que ouvi, nenhum foi mais longe do que

    este: reconhecer o que sbio, separado de tudo40.

    V-se por esta tentativa arbitrria de acompanhar numa certa ordem de

    recomposio, que no teve, de modo algum, a inteno de ser correta, que a

    compreenso de Herclito relativamente filosofia superar o mito do sbio, para

    seguir o caminho da busca da sabedoria, indicada pelo Orculo de Delfos: nisto consiste

    o filosofar: ir em busca de si mesmo, da singularidade da existncia, at ao ponto de

    poder, com o orculo, condizer ser tudo um.

    Este retorno, ressignificado, o retorno singularidade da existncia. Sendo a

    existncia singular, no adianta muito sair em busca de aprender muitas coisas, porque

    somente ao caminhar para si mesmo, que tudo pode ser descoberto e fazer algum

    sentido.

    Por isso, mais do que ser sbio, importa ser amigo da sabedoria. Mais do que

    investigar muitas coisas, importa condizer ser tudo um. Mas que este um, que os

    homens resolveram chamar pelo nome de deus?

    Antes que os filsofos gregos resolvessem sair procura desse um, por meio dabusca de si mesmos, orientados pelo Orculo de Delfos, os poemas homricos

    ressoavam pelos becos e vielas e praas das antigas cidades gregas. As aes eram

    compreendidas como movidas pelo impulso divino, e a prpria natureza era

    compreendida como estando cheia de deuses. Os mitos povoavam as mentes e coraes

    dos povos, que vieram depois, pelo domnio de um s, a constituir a Hlade. A

    Teogonia de Hesodo fazia-os ver a terra e seus elementos constitudos por deuses, at

    que as tragdias e as comdias fizessem os gregos voltarem seus olhos para os doisprincipais modos como os homens aprenderam a enfrentar os dramas da vida: o choro e

    o riso.

    Tudo isto se deu, antes que os filsofos aparecessem e, quando eles chegaram, o

    que fizeram no foi propriamente romper com toda a tradio dos povos dos quais

    fizeram parte, apesar do que disse Herclito; mas, mais propriamente, o que fizeram foi

    38Cf. HESODO, Teogonia, 748-757.39

    Ibidem, Fragm. 87, p. 82.40Ibidem, Fragm. 108, p. 69.

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    aprofundar ainda mais, tudo aquilo que nos mitos, teogonias, tragdias e comdias era

    genuinamente digno de ser pensado. Sua crtica no se voltava tanto para o passado,

    mas para o modo como a sabedoria de seus ancestrais cara em circulao. Romperam,

    desse modo, propriamente, mais com seu presente, que com seu passado. Mas, nessa

    crtica e ruptura, o passado era retomado de uma maneira nova, em que no restava mais

    espao para fetiches e iluses.

    Os filsofos conservaram a piedade. Mas no se podia continuar a crer que o

    caos originado das paixes humanas, pensados antes como foras no dominveis, fosse

    imputado aos deuses, como sendo tudo culpa deles. Segundo Xenfanes, aos deuses

    Homero e Hesodo atriburam tudo o que entre os homens injurioso e censurvel41;

    referem-se inmeras vezes a atos ilcitos dos deuses: roubar, cometer adultrio e

    enganar uns aos outros 42. Os filsofos deslumbravam-se e ficavam estupefatos com os

    fenmenos do mundo; mas sentiam que era preciso ter a conscincia de que o mundo,

    o mesmo em todos, nenhum dos deuses e nenhum dos homens o fez, mas sempre foi,

    e ser, fogo sempre vivente, acendendo segundo medidas e segundo medidas

    apagando, como disse Herclito 43. Sentiam que os deuses conclamavam os homens a

    uma s coisa, enunciada por dois nomes, mas que, no fundo, era uma s coisa:

    sabedoria e justia.A mera busca de compreender o mundo por oposio ou superao por meio do

    discurso no o solo que sustenta a passagem domu,qojao lo,goj. Nesta passagem, cujo

    convite e atitude no mais o de aplaudir o repetir e cantar dos mitos, o que faziam com

    os griot do povo chamados aedos e rapsodos, no est em jogo a dessacralizao do

    mundo ou seu desencantamento. Era preciso decantar o sentido dos mitos e escutar o

    dito que a concentrao no que de fato se mostra como divino, para no perd-lo de

    vista. Assim, nesta passagem do mu,qoj ao lo,goj, no se trata de uma rupturadescontnua, mas de um fluxo contnuo, em que o mito decantado para se escutar nele

    o sentido profundo do que est dito nele e do que no mundo, sob o cu e sobre a terra,

    consiste esta autntica comunho entre o humano e o divino.

    Aristteles se deu conta desse fluxo, na passagem domu,qojao lo,goj, e f-lo

    emergir de uma mesma fonte ou nascente: evk qaumasi,on, da admirao, da estupefao,

    41XENFANES,Fragmentos, trad. Daniel Rossi Nunes Lopes. So Paulo: Olavobrs, 2003, Fragm. 11,

    p. 23.42Ibidem, Fragm. 12, p. 2343HERCLITO, Fragm. 30, in C. H. KAHN, op. cit., p. 73.

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    da perplexidade, do espanto humano diante do mundo. J Plato se mostra adepto da

    concepo segundo a qual a filosofia tem a admirao por sua font e. Diz Plato: a

    admirao a verdadeira caracterstica do filsofo. No tem outra origem a Filosofia.

    Ao que parece no foi mal genealogista quem disse que ris era filha de Taumante 44.

    Por isso, para Aristteles, ofilo,muqoj filo,sofo.j pwj evsti,n\45, isto , o amante dos

    mitos , de algum modo, amante da sabedoria, pois os mitos esto cheios de elementos

    admirveis, maravilhosos, dignos de admirao, a mesma admirao que fonte da

    filosofia.

    Qual , ento, o sentido da passagem domu,qojao lo,goj? O logoscomea por

    ser, de certo modo, um mito dialogado, isto , o canto da tradio dos antepassados

    dialogado e refletido. H um sentido de mundo que se resguarda no labor potico

    expresso da comunho humano-divina sob o cu e sobre a terra que o filsofo,

    dialogando com sua tradio, torna patente na esfera do conceito, que agarra ou recolhe

    esse sentido de mundo. Esta reflexo ou recolhimento dialogante no se reduz, porm, a

    uma meraprojeo especular da imagem do sentido que reflete. Ela contm, ainda,

    fundamentalmente, umgesto, que, de algum modo, transforma o sentido ou, pelo

    menos, torna a manifest-lo de outro modo: o logosprocura agarrar o sentido e fixa-lo

    para resguard-lo melhor e de maneira definitiva na conversa em torno das coisas; e

    assim que se torna conceito, ou, mais propriamente, que se torna ivde,a, isto , a

    evidncia ou ei=dojdo sentido apreendido e guardado na yuch,, isto , na mente. Esta a

    raiz de toda autntica abstrao terica, de todo aprendizado, de toda reflexo

    especulativa, que nada mais do que a transformao do smbolo em conceito. este

    ato que se constitui em toda passagem genuna do labor simblico (mtico ou mstico), e

    por isso potico em sentido lato, ao labor conceitual (lgico) e por isso filosfico, ou at

    cientfico, quando se abandona o filosfico. O que no se quer, porm, nesse ato, perder de vista o mistrio revelado, descoberto e contemplado. Quem pode manter-se

    encoberto e escondido face ao que a cada vez j no declina?, perguntava-se Herclito.

    para apreender o mistrio que nasce essa amizade pelo saber, at ao ponto de sua

    transformao em muito aprendizado, no qual, de certo modo, o mistrio j se perdeu.

    Este o caminho, que conduz do ato de recolher, prprio do potico, ao ato de

    44PLATO, Teeteto, 155d, trad. Carlos Alberto Nunes. Belm: EDUFPA, 2001, p. 55.45

    ARISTTELES, MetafsicaA, 2 981b, 28-29, 2 ed., trilngue, prep. Valentin Garca Yebra. Madrid:Gredos, 1998.

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    apreender, prprio do cientfico, passando pelo filosfico, cujo ato resguardar por

    meio de uma especulao, de uma reflexo, para ver mais e melhor.

    Em funo disso, ngelo Monteiro, ao cantar o seu louvor filosofia como

    sonho do homem, refletindo sobre essa copertenaentre Mito e Logos, assegura:

    O Mito no passa da face misteriosa e oculta do Logos, que ter de sercontinuamente por ns desvelada, para aclarar nosso prprio destino sobre aTerra. Pois do Mito que fala o Logos. Das iluminaes, dos pressgios, dasforas do inconsciente que se querem incorporadas e assumidas pelaConscincia para, cada vez mais, ativar o milagre do Ser nas suas maissurpreendentes epifanias, o milagre do ser manifesto nos arqutipos, nossonhos, nas prodigiosas utopias concebidas pelo homem. 46

    Por isso, mesmo se tiver de ser contra Herclito, temos que dizer que j na

    inteno homrica de registrar por meio da escrita os poemas que constituam a

    memria coletiva, no se encontrava outra coisa, seno esse desejo de pela poesia

    salvar o que vai perecer; prender a onda na praia, antes que a onda caia.

    Jos Trindade Santos nos faz ver brilhantemente como, por isso, era fundamental

    a invocao divina; e diz que o bardo homrico, ao lanar por escrito os seus poemas,

    recolhe cantos que h longos anos circulam na memria coletiva 47. Para tanto, a

    escrita exerceu um papel fundamental no processo de fixao de um patrimnio

    comum, de que o poeta o guardio 48. Enquanto os poemas no estavam ainda

    fixados pela escrita, a memria oral cumpria o papel de resguard-los. O poeta era o

    responsvel pela memria coletiva 49 tendo que conservar e recitar os cantos que

    celebravam os feitos antigos 50. Como a memria no estava ainda fixada no modelo

    invarivel que a escrita representa, a declamao desses feitos antigos pelo poeta

    compunha, improvisava e organizava o material herdado, adaptando-o s exigncias da

    ocasio51

    . O poeta era, alm disso, um vaticinador, um adivinho, na medida em que,por sua dignidade era investido de funes sacrais, pois o conhecimento do passado

    permitia-lhe antever o futuro 52. Apesar de alguns desses aspectos terem mudado,

    depois que os poemas passaram a ser fixados pela escrita, eternizando assim em texto

    46ngelo MONTEIRO.Escolha e Sobrevivncia. So Paulo: Realizaes, 2004, p. 64.47Jos Trindade SANTOS.Antes de Scrates. 2 ed. Lisboa: Gradiva, 1992, p. 38-39.48Ibidem, p. 39.49Ibidem.50

    Ibidem.51Ibidem.52Ibidem.

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    rgido e sem vida a memria do poeta e dos feitos que cantava, o auditrio dessa

    memria comunicada passou a escut-la pela boca dos rapsodos, declamadores

    profissionais preparados para se exibirem nas ocasies festivas 53, os quais se

    limitavam a repetir, a pedido, extensas passagens decoradas 54dos poemas homricos.

    Segundo Jos Gabriel Trindade Santos, esta sobrevivncia da oralidade prolongar-se-

    ainda por muitos sculos 55.

    Na poca de Plato, vemos, pelo on, como era com dignidade que se

    valorizavam os rapsodos, ainda que a se verifique como Plato os considerava

    mensageiros dos mensageiros dos deuses, j que eram mensageiros dos poetas 56. Nesse

    dilogo, Scrates colocado diante de on, a considerar, ainda que, certamente, no tom

    irnico que lhe prprio, e demonstrar sua inveja dos rapsodos, por causa da profisso

    deles. Pois sua arte exigia no somente que se apresentassem ricamente vestidos e com

    a mais bela aparncia imaginvel 57, mas principalmente porque como declamadores

    dos poetas lhes era foroso viver sempre na companhia de excelentes poetas 58,

    destacando-se a figura de Homero, considerado o maior e mais divino dos poetas59. E

    Plato, pela boca de Scrates, louva os rapsodos no somente pelo fato de estes serem

    declamadores dos versos dos poetas, mas porque eram capazes de penetrar o sentido

    profundo 60desses versos. Plato reconheceu que ningum poderia tornar-se rapsodosem ter compreendido o que o poeta quer dizer 61, uma vez que, acima de tudo, o

    rapsodo teria de ser intrprete entre o poeta e seus ouvintes, o que no lhes seria

    possvel sem o conhecimento exato do pensamento do poeta 62.

    E como a rapsdia, tal como a arte dos aedos, implicasse a inspirao divina,

    justificava-se o pedido de auxlio Memria, tomada no como uma capacidade

    psquica, mas como uma deusa que consente aos homens cantarem acontecimentos que

    no presenciaram63

    . O poeta precisava dela para registar um verso herdado de outros

    53Ibidem.54Ibidem.55Ibidem.56Cf. PLATO,on, ed. J. Burnet, Platonis opera, vol. 3. Oxford: Clarendon Press, 1903, 535a.57PLATO,Io, 530b, trad. Carlos Alberto Nunes. Belm: EDUFPA, 2007, p. 217.58Ibidem.59Ibidem.60Ibidem, 530c.61

    Ibidem.62Ibidem.63J. G. T. SANTOS, op. cit., p. 39.

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    tempos 64. O rapsodo, por seu turno, dela precisava para no se enganar na restituio

    das passagens que tinha decorado 65. Vale, porm, ressaltar com Jos Trindade Santos,

    que, ao ato escritural que cumpre determinar a correta relao entre esses dois polos

    difusores da memria coletiva66; porque, de fato, com a fixao do poema memorial

    na palavra escrita se distinguem claramente a quem pertence o ato criador e o ato

    revigorante da histria: o bardo tambm chamado aedo um criador, pois, mesmo

    recitando de memria, recria e transforma o verso ancestral no seu dizer 67. Por outro

    lado, o rapsodo, que se constitui como o repetidor inspirado, que retoma e transmite, por

    uma espcie de afinidade divinalmente congnita, uma verso do poema j fixada pela

    escrita, s entrar em cena quando a palavra, que voa de ouvido em ouvido em ouvido,

    tiver ficado definitivamente esculpida pela escrita 68.

    Trindade insiste, como ele mesmo o diz, numa interpretao dos poetas

    [gregos] que os tome como obras recolhidas, a partir de um ciclo de cantos transmitidos

    atravs dos sculos pela tradio oral 69. E, neste sentido, assegura que o poeta no

    est a inventar o argumento e o verso da histria que relata, mas a record-los

    invocando uma memria ancestral e um verbo herdado 70.

    verdade que Trindade diz isso referindo-se epopeia homrica, mas penso

    realmente que esta convico que ele exprime pode ser aplicada a todo labor poticofundante, originrio ou genuno. Pergunto-me se todo labor potico no consistiria

    justamente na composio de uma memria ancestral. Ele assegura ainda que num

    universo comandado pela oralidade, no se espera do poeta que apresente concepes

    originais, mas antes que d forma s noes que a tradio veiculou, como aquisies de

    um saber ancestral 71. Fico me perguntando, porm, se no justamente onde h

    originalidade e genuinidade, seja na poesia, na filosofia ou na religio, que se constitui

    essa recordao e composio memorativa de uma memria ancestral e de um verboherdado. Creio que sim. E mesmo na filosofia, na tradio reflexiva grega, isto est, de

    algum modo, a acontecer. E onde quer que haja filosofia original e genuna, penso que

    64Ibidem.65Ibidem.66Ibidem.67Ibidem, p. 39-40.68Ibidem, p. 40.69Ibidem, p. 97.70

    Ibidem.71Ibidem, p. 98.

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    isso tem que acontecer. Toda criao original carrega as marcas de sua origem, mais

    ainda quando o que lhe compete dar forma a noes que a tradio veiculou.

    neste sentido que convm considerar que todo ato de pensar por meio da

    criao, do questionamento crtico e da crena , por natureza, tnico. Desde que seja

    genuno, o pensar criativo da arte, questionador da filosofia e crente da religio no

    rfo em sua origem, e sempre acaba por manifestar seu carter ancestral. Como disse,

    certa vez, um poeta: s cantador quem traz no peito o cheiro e a cor de sua terra, a

    marca de sangue de seus mortos e a certeza de luta de seus vivos (Franois Silvestre,

    cantador). Esta assertiva no se aplica somente ao cantador, mas a todo genuno poeta,

    filsofo ou mstico. O cheiro e a cor da terra e a marca do sangue dos mortos e certeza

    de luta dos vivos o que caracteriza o aspecto tnico de todo pensamento autntico.

    Mesmo a dita filosofia grega deve muito antes ser reconduzida, para ser

    compreendida, aos lugares e pocas desde onde e desde quando seus pensadores a

    constituram, e sem nenhuma pretenso de unificao do pensamento em uma tal

    filosofia grega. A pretenso imperiosa dapoltica no deveria precisar se constituir no

    critrio primaz para a compreenso do pensamento filosfico. Sua universalidade

    consiste apenas na criatividade singular, que emerge livremente, e pode ser retomada na

    experincia histrica dos indivduos de qualquer lugar, desde que consigam fazer aexperincia de seu verbo herdado. Da pluralidade dos lugares e pocas, povos e

    culturas, emergiram homens e mulheres singulares, que passaram a se expressar a partir

    de suas razes ancestrais e dos lugares onde viveram e por onde andaram. Assim que

    de Mileto, mas como cidado do mundo, emergiu um Tales, e, do mesmo modo de

    Colofon um Xenfanes, de Samos um Pitgoras, de feso um Herclito e de Elia um

    Parmnides. Em todos eles, especialmente em Xenfanes, Herclito e Parmnides,

    herdeiros da tradio mitopotica grega, emergia uma recomposio profunda erefixadora de uma memria ancestral e de um verbo herdado. Em Tales e Pitgoras, h

    de se considerar tambm no somente Mileto e Samos, mas, fundamentalmente, os

    lugares de suas andanas Egito, Babilnia, Fencia carregados tambm de uma

    milenar memria ancestral e um verbo herdado.

    Toda esta reflexo foi estabelecida aqui no sentido de dizer que neste livro, o

    que est efetivamente em jogo no a constituio de uma filosofia cientfica, de um

    saber efetivo, mas justamente a tentativa de, a partir de um verbo herdado, conceder agraa de poder meditar em torno de uma herana potica e filosfica em que mais

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    importante do que a conquista do saber efetivo, est em questo colocar-se a caminho

    de um saber, de uma maneira amigvel, se quiser ainda apaixonada e mesmo

    enamorada, sem preocupar-se demasiado com a noite de npcias.

    Neste sentido, o livro que se segue um ensaio filosfico, no uma obra de arte,

    pois tenho conscincia de que uma coisa a reflexo do Filsofoe outra a imaginao

    criadora do Artista, se bem que ambas tenham uma fonte comum 72. E, sabendo disso,

    no pretendo, tambm, de modo algum, oferecer um breve tratado de filosofia da arte,

    porque disso tambm eu no seria capaz. A nica coisa que aqui ser possvel sondar

    essa fonte comum, de onde emerge a composio artstica e a composio filosfica.

    Trata-se, assim, de uma composio filosfica em torno da fonte de onde emergem

    tanto a Filosofia quanto a Arte. E enquanto composio um arranjo de sentido e

    significao. Um sentido que se alcana tambm por meio e atravs da arte.

    72Ariano SUASSUNA.Iniciao Esttica. 11 ed. Rio de Janeiro: Jos Olmpio, 2011, p. 123.

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    PRIMEIRO CAPTULO

    TRISTEZA E CRIAO

    Este captulo um prembulo. Uma elaborao dialgica de carter mstico,

    potico e filosfico, s para comear. a exposio de uma experincia um tanto

    infantil e pessoal em demasia. Deve-se ter pacincia com as coisas de criana, quando

    se adulto. Mas peo aos leitores pacincia se aqui, de um passado to longnquo

    emerge uma existncia inocente, que a vida adulta j h muito tempo aprisionou no

    calabouo do corao. Alguns espritos mais crticos diro que piegas... outros mais

    cticos diro ser ingnuo, outros mais srios diro ser ntimo demais. Em todo caso,

    pacincia: o que aqui digo apenas a ttulo de prembulo... s um umbral para uma

    reflexo mais consistente.

    Tenho guardada de mim uma foto em preto e branco de quando eu ainda era

    apenas uma criana de colo. Era eu pequenino. o vestgio imagtico mais antigo que

    tenho de mim. Eu mesmo no me lembro de mim assim. Mas vejo que o sorriso de Deus

    me habitava... Deus sorria... estavasorrindo... estavafeliz! Que bom!

    Fazia pouco tempo que eu tinha comeado a existir. Deus certamente ficou feliz

    quando me viu feito... Era o consolo de sua tristeza. Deus estava contente. Ele ficacontente tambm.

    bom saber que Deus me habita... eu queria que todos tivessem essa

    conscincia... mas no preciso esse querer... cada um sabe tudo a seu tempo... mesmo

    eu, se estiver errado.

    Mas ao contemplar essa foto, lembro-me que, certa vez, fui envolvido de uma

    profunda tristeza, uma tristeza inconsolvel. Um dos meus irmos no Carmelo estava

    comigo e me perguntava por que eu estava to triste e por que chorava; de onde vinhatal tristeza? E eu no sabia responder. Eu estava como algum que sabe que dentro em

    pouco ir morrer, e no h o que fazer, e est profundamente s diante da morte, mas se

    sente feliz que tenha algum ao seu lado, naquele momento de profunda solido. Meu

    amigo estava comigo, junto minha solido; queria ajudar, mas no tinha o que fazer

    seno permanecer comigo.

    Eu me via ali s e profundamente triste e no sabia de onde provinha tal tristeza.

    Quando meu amigo me perguntara de onde ela provinha, esperava, talvez, que eu lheapresentasse algum motivo objetivo, exterior, para minha tristeza: eu, porm, no via

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    que encontrava exteriormente a sua verdadeira origem, mas confesso que no sabia de

    onde vinha. O que eu via era como que uma pequena criana sozinha, sentada de

    joelhos, com as mos, como quem reza, coladas aos lbios, e chorando muito, muito

    triste.

    Isso um prato cheio para os psiclogos de planto, eu suponho. Mas o que

    pude descobrir mais tarde sobre os motivos dessa tristeza tinha outra natureza, diferente

    daquela, passvel de ser explicada psicologicamente. Ceticamente falando, pelo menos o

    modo como a signifiquei, tinha o carter de um pensamento teologal, fundado em uma

    experincia mstica, por assim dizer. Agora, falando como quem cr, minha tristeza era

    de natureza mstica, o que continua um prato cheio para os psiclogos de planto, mas

    s podero ver nisto um mecanismo psquico. Para mim, porm, minha tristeza era de

    ordem teologal: era Deus que chorava em mim. Eu com Ele e Ele comigo ramos um.

    A origem de minha tristeza est em Deus. Foi isto o que pensei e, at, escrevi:

    Deus quis neste mundo algum que fosse marcado profundamente por sua dor e

    por sua tristeza, a me fez. Deus estava triste quando me fez, porque Ele estava vendo

    muita dor no mundo. Muita maldade tinha se espalhado no mundo e, apesar de ele ter

    criado com sua mo amorosa tantos homens e mulheres cheios de seu amor, continua a

    no ver realizado no mundo o seu projeto salvfico de amor. Posso, assim, arrogar-me o direito de compreender de algum modo, os

    sentimentos de Jesus, quando chorou diante de Jerusalm, como nos narra So Lucas:

    Jesus caminhava frente, subindo para Jerusalm. (...) E, como estivesse perto,

    viu a cidade e chorou sobre ela, dizendo: Ah! Se neste dia tambm tu

    conhecesses a mensagem de paz! Agora, porm, isso est escondido a teus

    olhos. Pois dias viro sobre ti, e os teus inimigos te cercaro com trincheiras, te

    rodearo e te apertaro de todos os lados. Deitaro por terra a ti e a teus filhosno meio de ti, e no deixaro de ti pedra sobre pedra, porque no reconheceste o

    tempo em que foste visitada. (Lc 19, 28b. 41-44)

    Este choro de Jesus sobre Jerusalm, que no soube reconhecer o tempo em que

    foi visitada, representa o mesmo choro de Deus ao olhar para o mundo por Ele criado, e

    que fica desolado, por no acolher a visita de Deus. Para os cristos das primeiras

    comunidades, este choro de Jesus mostrava-se como o prenncio da Jerusalm

    devastada pela guerra e pela fome; uma desolao j cantada no passado pelo ProfetaJeremias, quando dizia:

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    Os meus olhos, noite e dia, chorem lgrimas sem fim; pois sofreu um golpe

    horrvel, foi ferida gravemente a virgem filha do meu povo! Se eu saio pelos

    campos, eis os mortos espada; se eu entro na cidade, eis as vtimas da fome!

    At o profeta e o sacerdote perambulam pela terra sem saber o que se passa.Rejeitastes, por acaso, a Jud inteiramente? Por acaso a vossa alma desgostou-

    se de Sio? Por que feristes vosso povo de um mal que no tem cura?

    Espervamos a paz, e no chegou nada de bom; e o tempo de reerguer-nos, mas

    s vemos o terror! (Jr 14, 17-19).

    Devastada uma vez pelos Babilnios, outra vez pelos Romanos, Jerusalm

    mostra-se aos cristos das primeiras comunidades como um sinal da perdio humana

    no mundo e o choro de Jeremias ou o choro de Jesus nada mais representa do que odesgosto de Deus. Conforme nos narra So Mateus, clamou Jesus diante de Jerusalm:

    Jerusalm, Jerusalm, que matas os profetas e apedrejas os que te so enviados,

    quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos como a galinha recolhe os pintinhos debaixo

    das asas, e no o quiseste! Eis que a vossa casa ficar abandonada (Mt 23, 37s). Como

    haveria Deus de no chorar, ao ver seus filhos carem mortos pela maldade e injustia, e

    ao ver a terra, que fez com tanto carinho, subsistir na desolao?

    Entendi, portanto, imerso nessa tradio religiosa muito especfica, e imbudodesse sentido muito precisoque alguns chamariam de ingnuo, outros de piegas,que

    nisso consistia a tristeza de Deus pela qual fui profundamente marcado.

    E imediatamente compreendi, porm, que sua tristeza no o abate, porque

    conhece profundamente seu plano, seu sonho, seu projeto... o reino, aquele, no qual

    acreditamos que nos aguarda... E entendi que, por causa disso, Deus trabalha

    incansavelmente e, por conta disso, foi com muito amor, com muito ardor e fora de

    vontade que Ele me fez...Compreender, portanto, a origem da minha tristeza como uma participao na

    dor de Deus consolou-me e trouxe serenidade ento minha alma...

    Esta experincia pessoal de significao, interpretada, aqui, no interior de uma

    reflexo de carter teologal, prpria da tradio crist, de teor estritamente mstico.

    No tem nada de propriamente potico e muito menos de filosfico. Mas serviu-me de

    ponteou porta de entradapara a compreenso do que Carlos Drummond de Andrade

    fala a respeito de Deus e da criao, numa passagem do mstico para o potico. Eu

    achava que somente eu tinha tido aquela intuio de que Deus estava triste quando me

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    fez e me surpreendi quando deparei dois poemas de Drummond: um ele chamou Deus

    triste, e est no livro As Impurezas do Branco; o outro ele deu o nome de Tristeza

    no Cu, e est no livro chamadoJos.

    Deus triste fala de um momento de descoberta. Identifiquei-me logo, pois

    comigo foi assim tambm. S que o meu tom era outro; parece-me que Drummond

    mais grave. Eu descobri assim: Deus estava triste quando me fez. Drummond

    descobriu assim: Deus triste. E continuou:

    Domingo descobri que Deus tristepela semana afora e alm do tempo.

    A solido de Deus incomparvel.Deus no est diante de Deus.Est sempre em si mesmo e cobre tudotristinfinitamente.A tristeza de Deus como Deus: eterna.

    Deus criou triste.Outra fonte no tem a tristeza do homem. 73

    Nas primeiras palavras de Drummond, percebi logo: mais grave do que eu

    pensei. Para mim Deus estava triste quando me fez. A palavra de Drummond eramuito forte: Deus triste. A mim pareceu ento que Drummond viu e eu sen ti. E

    pareceu-me que Drummond no sentiu e eu no consegui s ver! Drummond refletiu e

    representou, eu percebi e me comovi... Afinal de contas, a verdade no que

    Drummond no sentiu, mas que sentiu e pensou de modo diferente, talvez de modo

    mais prprio, metafsico. Ele sentiu empaticamente e refletiu com conceitos... Eu senti

    comovido, profundamente comovido, e descrevi. Os ltimos versos de Drummond me

    deixaram, porm, estupefato, porque vimos o mesmo: ele viu o que eu vi: Deus criou

    triste./ Outra fonte no tem a tristeza do homem, outra fonte no tem a tristeza

    profunda do homem.

    Tristeza no Cu era profunda; l Drummond diz:

    No cu tambm h uma hora melanclica.Hora difcil, em que a dvida penetra as almas.Por que fiz o mundo? Deus se pergunta

    73

    Carlos Drummond de ANDRADE, As Impurezas do Branco, inCarlos Drummond de ANDRADE,Nova Reunio:23 livros de poesia. v. 2. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009, p. 188.

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    e se responde: No sei.

    Os anjos olham-no com reprovao,e plumas caem.

    Todas as hipteses: a graa, a eternidade, o amorcaem, so plumas.

    Outra pluma, o cu se desfaz.To manso, nenhum fragor denunciao momento entre tudo e nada,ou seja, a tristeza de Deus. 74

    Diante disso, nada consigo dizer a mais. No h o que discordar. Exceto que,

    desde uma perspectiva dogmtica, talvez se deva dizer que nem todos os anjos olharampara deus com reprovao, s um: o rancoroso, o ressentido e descompassado. Gabriel,

    Rafael e Miguel olharam-no comovidos.

    Como se no bastasse tanta correspondncia com um existente com quem, de

    repente, senti afinado comigo, l veio outro, para marcar a passagem do potico ao

    filosfico. Fiquei impressionado quando, lendo o Ensaio sobre o Conhecimento, de

    Raimundo Farias Brito, ao l-lo falando da matria, vi que ele teve a mesma intuio.

    Como se explica a existncia da matria?, perguntava-se o ilustre filsofocearense, dizendo ser esta a questo das questes, a questo suprema; e pensa que

    a existncia dos corpos e existncia da matria, que ele j tinha dito antes ser a

    existncia inconsciente e, no ser vivo, a conscincia da morte, um fato que s se

    poder explicar como consequncia de algum drama colossal, de alguma monstruosa

    tragdia passada no seio da existncia primordial, explicitando esse drama como uma

    revoluo de ordem csmica, que mudou toda a base primitiva do ser, e chegou, por

    assim dizer, a agitar o corao mesmo de Deus. Essa revoluo , ento, mtico-filosoficamente, caracterizada por ele como a queda de uma parte da criao luminosa,

    puramente espiritual, que, segundo ele, deve ter precedido existncia do mundo

    corpreo; queda que teria se dado pelo fato de um deslocamento dessa parte puramente

    espiritual de sua rbita prpria, que, sentindo e pensando elevar-se ainda mais, e

    subindo, subindo sempre, em to alta eminncia se viu, que por fim veio a pensar em

    substituir o incriado mesmo. E assegura que nessa carreira vertiginosa para o alto,

    74

    Carlos Drummond de ANDRADE, Jos, in Carlos Drummond de ANDRADE, Nova Reunio: 23livros de poesia. v. 1. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009, p. 24.

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    esse esprito puro que era filho do prprio Deus, terminou por se perder no infinito,

    isto , terminou por se perder e ficar suspenso no vcuo, de tal modo que sem

    encontrar nenhum ponto de apoio, ou seja nenhum princpio de equilbrio, e perdendo

    ao mesmo tempo a conscincia de si mesmo para obedecer exclusivamente s leis do

    peso, desprendeu-se no abismo. Isto o que, segundo ele, se pode chamar de morte

    do esprito ou transformao do esprito em matria, sendo a matria, pois,

    fundamentalmente concebida como esprito morto 75.

    Assim comea Farias Brito a descrever o drama pelo qual se pode compreender

    o princpio da tristeza de Deus. Trata-se da imaginao filosfica de um mito da queda

    do esprito para explicar a matria como morte do esprito. E de uma maneira brilhante

    ao menos para aqueles que ainda conseguem perseguir, com um pouco de pacincia,

    uma reflexo filosfica em que religio, arte e filosofia se misturam em um pensamento

    mstico, potico e filosfico Farias Brito continua dizendo que se a matria , pois,

    morte, preciso distinguir duas espcies de morte, uma vez que a matria se

    apresenta de dois modos, isto , como matria orgnica e como matria organizada,

    havendo, portanto, correspondentemente a esses dois tipos de matrias duas espcies de

    morte: a matria inorgnica a morte absoluta; a matria organizada uma morte

    relativa. Chama, assim, a morte absoluta de morte inconsciente e, por conseguinte,nada em relao conscincia e quase nada em relao ao ser. E, marcado pelo

    dualismo moderno, que cinde a experincia do ser vivente em uma realidade interna e

    externa, fala que a segunda morte, a morte relativa, inconsciente e consciente ao

    mesmo tempo, sendo inconsciente em sua realidade externa e consciente no

    sentimento de sua realidade interior: logo, no sofrimento e na dor; logo, no sentimento

    de sua degradao e misria.

    Para Farias Brito, no horizonte dessa conscincia no sentimento de suarealidade interior, isto , de sua realidadeno sofrimento e na dor, que se constitui,

    vem tona e se deixa sentir, no sentimento de sua degradao e misria, a tristeza de

    Deus. Para ele, esta a fonte da tristeza de Deus: pois vendo a queda do esprito, vendo

    o cadver de seu filho morto, Deus se sentiu triste. E assim, segundo Farias Brito,

    desde ento a tristeza se fez me de todas as coisas. Continuando ainda a matria na

    vertigem da queda, tudo era confuso e desordem em toda a extenso do infinito e,

    75Raimundo Farias BRITO. O mundo interior. (Ensaio sobre os dados gerais da filosofia do espirito). 3ed.Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003, p. 457-458.

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    com isso, constituindo-se o caos e a treva; o silencio e a morte, Deus sofreu... e Deus

    chorou...76.

    Que o esprito humano-divino desfalea e caia uma tragdia monstruosa que

    chega a agitar o corao mesmo de Deus. Pensando em elevar-se ainda mais, por

    uma espcie de transbordamento de ser que busca superar-se a si para alcanar-se como

    outro, chegando at tentao de ser substitudo e no amado, acolhido e vindo a

    tornar-se como um gerado que no se sente mais livremente aberto a compartilhar sua

    vida com aquele que o gerou (certamente o demonaco em ns esse desejo), faz que

    este esprito divino, que se torna humano enquanto criado imagem e semelhana do

    divino, perdendo seu equilbrio e ponto de apoio, perca-se ao perder a conscincia de si

    mesmo para obedecer exclusivamente s leis do peso, despendendo-se no abismo.

    assim que vendo a queda do esprito humano-divino, Deus se sente triste. Mas como

    disse Drummond, e eu pude sentir em minha experincia individual, o choro de Deus

    to profundo quanto criativo. Deus criou triste, disse Drummond. Deus estava triste

    quando me fez, disse eu. Deus se sentiu triste e desde ento a tristeza se fez me de

    todas as coisas, disse Farias Brito; e acrescenta:

    O pranto divino, deixando-se a princpio perceber um som vago e indistinto,

    como uma melodia longnqua, amargurada, mas fascinadora e sublime, logo sedesfez em lgrimas de dolorosa tristeza e dilacerante amargura. E estas lgrimasespalhando-se como uma chuva de ouro por toda a extenso do espao infinito,lgrimas de sangue, ou lgrimas de fogo, instantaneamente se fizeram percebercomo suave claridade e consoladora manh, nas profundezas da noite ilimitadado caos, curando como um blsamo sagrado, todas as feridas da morte erestabelecendo por toda a parte a harmonia e a ordem. a significao do fiatlux. Desde ento ficou toda a existncia material dotada de um contnuodesenvolvimento e sujeita ao domnio de leis invariveis e eternas. Tal aorigem da luz exterior; tal provavelmente a significao do que se

    convencionou chamar a harmonia das esferas. Era uma nova criao a que Deusse resolvia; criao que era uma obra de amor e piedade, pois o que o Criadortinha em vista era unicamente habilitar o seu filho a libertar-se da morte. 77

    Se pensarmos que, assim, miticamente, nasceu o sol e os luminares celestes, que

    brilham para todos os habitantes da terra, lgrimas de fogo da tristeza profunda e

    amargura dilacerante de Deus, pois, em todo caso, tudo j teria nascido mesmo da

    amargura fundamental de sua solido profunda, que, para superar-se precisa entregar-se

    76

    Ibidem.77Ibidem, p. 459.

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    at doer, transmutar-se, gerar-se e produzir-se em outro semelhante, mas, ao mesmo

    tempo, diferente de si mesmocomo no pensar que toda criao , afinal de contas a

    regenerao, que tambm acontece na criao de cada um de ns e at de cada ser vivo?

    Que Deus se resolveu a uma nova criao por amor e piedade e que o pranto divino foi

    o veculo sagrado para a obra de regenerao (... que significa criar de novo), fato de

    que nos faz o Pentateuco a narrao simblica78.

    Por isso, talvez, no foi difcil, para mim, pensar que fora modelado por Deus

    em meio sua tristeza regeneradora, esperanosa e persistente. Em meio a essa situao,

    por isso, encontraram-se esse testemunho de um mstico, de um poeta e de um filsofo.

    Pois foi misticamente que vi que Deus estava triste quando me fez; foi poeticamente

    que Drummond disse que Deus criou triste; e foi filosoficamente que Farias Brito

    concebeu que Deus se sentiu triste e, desde ento, a tristeza se fez a me de todas as

    coisas. Aqui, o mstico, o poeta e o filsofo encontram-se diante de um mesmo

    Mistrio, e , sem dvida, com surpresa, estupefao e fascinao que o contemplamos

    e o procuramos descrever e pensar. Diante do mistrio, estamos certamente destinados a

    repetir o gesto da criao por meio da liberdade, a fim de superar a solido, isto ,

    compreend-la e tornar-se capaz de colocar-se acima dela, mesmo sabendo que ela nos

    constitui de uma maneira inexorvel e incontornvel. pela assuno de nossaliberdade criadora que a tristeza da solido que nos invade consegue repousar em paz.

    J gerou, cumpriu o que podia arrancando-se de si, agora pode descansar, pode se

    despedir.

    Quando li Farias Brito dizer de como as lgrimas de fogo de Deus

    instantaneamente se fizeram perceber como uma suave claridade e consoladora

    manh, logo recordei-me do poema Quando eu lembro a minha terra, que compus

    pensando na minha gente sertaneja, na minha famlia, no meu pai... e escrevi:

    Quando eu lembro a minha terra

    Vejo o Sol no horizonte a brilhar;

    E, num choro de criana,

    A Vida, assim, renasce pra sofrer;

    Porque o Povo, l, se cala, meu irmo.

    E esse Povo, a sorrir, chora,

    78Ibidem.

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    Mas chora s por dentro... lgrima no cai...

    Seca se faz... Chuva no cai.

    E a Terra fica dura... dura feito a Vida.

    Pensei, ento, que assim que o sertanejo ressente a amargura dilacerante da

    tristeza de Deus, sob as lgrimas de fogo de seu choro inconsolvel. E, ao me lembrar

    da outra estrofe do poema, que foi composta por mim a partir da pergunta de um amigo

    meu de composies, Gustavo Vila Verde, que, ao mostrar-lhe aquela estrofe

    interpelou-me, perguntando: Mas o Serto s isso?; pensando que no, respondi: ,

    voc tem razo; o Serto no s isso no!. E escrevi:

    Quando eu lembro a minha Terra,

    Vejo a Lua sobre a Serra a iluminar

    O sereno de uma Noite

    Onde um Homem se reclina a pensar

    Na escurido da Vida a declinar.

    Mas uma tenra Luz o envolve,

    E inspira em Silncio

    A Aurora que a Vida traz... fora refaz... canto perfaz...E no abrigo desse Dia, lhe doa nova Vida.

    Vejo que essa outra estrofe reflete justamente o que diz Farias Brito, para quem,

    ao mesmo tempo em que a lgrima de fogo fruto do choro dilacerante de Deus, que

    chora pelo povo que, a sorrir, s chora por dentro, pois Deus chora por ele, essa lgrima

    de fogo se deixa perceber tambm como fonte de regenerao, como suave claridade e

    consoladora manh.

    Quando escrevi sobre aquele Homem que v a aurora, pensava em meu pai, queviveu muitas noites de angstia profunda, porque era atormentado com o declinar da

    vida, e reclinado chorava na escurido da noite. Mas as lgrimas de fogo da tristeza de

    Deus tambm se mostram como aurora de regenerao que doa nova vida, inclusive na

    criana que nasce, faz sorrir e sorri. a lgrima de fogo de Deus fazendo-se aurora de

    regenerao. Eu nasci em um domingo, s oito horas da manh: enquanto eu chorava,

    como reflexoda tristeza de Deus, fazia Deus sorrir. Certamente tambm meu pai, minha

    me, meu av e minha av... tambm sorriram... diante da lgrima de fogo hmida,fruto da tristeza profunda de Deus, que acabara de nascer.

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    Acabemos aqui, porm, esse prembulo. Cruzamos o umbral para uma reflexo

    mais segura e consistente. Seja concedido, porm, que, com o que aqui ficou dito,

    pudemos ter um acesso preliminar existncia em seu nascedouro, a agonia de ser em

    busca mais da alteridade que do repouso no mesmo 79, fonte de toda criao. No

    fundo, esta a fonte tanto do que Drummond exprimiu, quando falou da tristinfinita e

    incomparvel solido de Deus a partir da qual cria, quanto do que Farias Brito

    mencionou, quando se referiu elevao do esprito divino que, procurando ser mais,

    transbordou em gratuidade doadora at perda do equilbrio, para encontrar-se em

    outro, e no estatizar-se no repouso de sua solido tristinfinita. Pois sua solido

    tristinfinita , certamente, de algum modo, o motivo primordial, pelo qual o esprito

    divino no repousa em si mesmo, mas eleva-se em doao livre, gratuita e criadora de

    outro de si mesmo. Este o nascedouro de toda criatura e de toda criao. Pois,

    marcada por essa tragdia tremenda de sua criao, que a criatura, num gesto mimtico,

    sente em si a dorprofunda de sua solido, e, em memriasaudosa da solido divina no

    interior da qual foi criada, busca elevar-se em ato criador at cair e tombar na morte

    incontornvel da qual j sabe e pela qual espera, pois tambm, de algum modo, almeja

    descansar, repousar. A triste solido inexorvel e incontornvel na criatura destinada a

    morrer, a cair, a tombar, isto , marcada pela morte, a fonte do movimento paraentregar-se sua obra criadora, numa tentativa de, s assim, participar da obra criadora

    divina, e eternizar-se.

    Desse modo fique descrita a relao entre tristeza e criao.

    79ngelo MONTEIRO.Escolha e Sobrevivncia, op. cit., p. 51.

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    SEGUNDO CAPTULO

    VSPERA DE MORTE E CRIAO

    Entre nascimento e morte, ou seja, da agonia de ser em busca mais de

    alteridade que do repouso no mesmo 80e frente perspectiva da morte vizinha 81, a

    existncia estabelece uma luta entre o prprio pensamento e o prprio sentimento para

    compreender-se como existncia criadora, criativa e pronta para criar, fixando-se na lida

    potica. a atitude criadora em vsperas de morte.

    Neste captulo, tendo cruzado os umbrais da entrada para uma reflexo mais

    consistente, pretendo falar da relao entre a vspera de morte e a criao, com base em

    uma reflexo sobre a antecipao da Morte em Farias Brito e Evaldo Coutinho. Mas,

    antes disso, considerei importante comear com uma breve digresso sobre o modo

    como a morte foi tomada por alguns filsofos gregos, com vistas a perceber a leve

    alterao que ocorre na percepo daqueles filsofos brasileiros.

    Na Apologia de Scrates, Plato estabelece, pela boca de seu personagem

    principal, uma assertiva importante a respeito da morte, e caracteriza uma relao

    extremamente fecunda com ela. Uma relao fecunda e livre. Durante o seu julgamento

    injusto e na perspectiva de ser levado morte, por um tribunal que considerava ser esseo maior dos males a ser impingido a Scrates, Plato faz ressoar, pela boca de Scrates,

    uma fascinante compreenso e reflexo a respeito desse fato. Ningum sabe o que seja

    a morte, diz Scrates, e, ignorando at mesmo se porventura no ser para os homens

    o maior dos bens, temem-na como se soubessem com certeza que o maior dos males 82. Hora, esta expectativa face morte, acompanhada do sentimento de medo , na

    perspectiva do esprito socrtico, caracterizada por Plato na Apologia, como nada mais

    nada menos do que a expresso de um querer demonstrar saber o que no se sabe. Porisso, acrescenta: E como poder deixar de ser censurvel semelhante ignorncia, isto ,

    imaginar algum que sabe o que no sabe?83. Apresentando de outro modo a pergunta

    socrtica: Como manter essa expectativa amedrontada diante daquilo que no se sabe?

    Tal atitude considerada uma sndrome da ignorncia.

    80ngelo MONTEIRO,Escolha e Sobrevivncia, op. cit., p. 51.81QUENTAL apudngelo MONTEIRO,Escolha e Sobrevivncia, op. cit.,p. 52.82

    PLATO.Apologia de Scrates, trad. Carlos Alberto Nunes. Belm: EDUFPA, 2001, p. 129.83Ibidem.

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    O tribunal, diante do qual Scrates se encontra, interpreta a morte como o maior

    dos males, como algo de que se pudesse saber por um lado e, por outro, cego para o que

    Scrates alerta como sendo um maior mal. Diz ele ao tribunal: Maior malno fazer o

    que ele faz agora: procurar matar injustamente um homem?. Scrates, diante da morte,

    antecipando-a, no a teme. O que teme fazer o mal, mais que ser morto injustamente,

    argumento que vai ser refletido por Plato ainda mais tarde, no dilogo Grgias, quando

    pe em questo o que seja pior: sofrer injustia ou pratic-la? Entendendo, tambm a,

    que melhor sofrer injustia que pratic-la. Porm o difcil, senhores, diz Scrates,

    no fugir da morte, que mais cedo ou mais tarde nos atinge; e continua: muito mais

    difcil fugir da maldade, porque esta corre mais do que a morte 84. Mas, entende que:

    Agora, tambm, por tardo e velho, fui apanhado pelo mais lerdo, isto , a morte,

    enquanto meus acusadores, por arrebatados e geis, o foram pelo mais rpido, a

    maldade 85. E testemunha poder sair do tribunal julgado por seus algozes como

    merecedor da pena de morte, enquanto eles foram julgados pela Verdade como

    culpados de maldade e de injustia 86. E diz ainda, num tom de conformidade aterrador

    com o destino sagrado que consuma sua prpria existncia ao dizer: Conformo -me

    com a minha pena, como eles devem conformar-se a deles. 87. E acrescenta num tom

    de tremenda resignao e serenidade, perpassada pela gravidade da incerteza maisprpria e mais profunda da existncia humana: Talvez tudo devesse terminar por essa

    forma e creio que assim mesmo est bem 88.

    Alm disso, quanto morte iminente que abraa, ao lhe sobrevir injustamente,

    Scrates assegura no tem-la, tambm por entender o seguinte: Consideremos

    tambm quantas razes temos para esperar que a morte seja um bem, pois Morrer

    uma de duas coisas: ou quem morre nada , e carece da menor sensao seja do que for,

    ou ento, como se diz, uma mudana e a passagem da alma deste lugar para outro 89

    .E acrescenta a seguinte explicao a respeito do porque considera um bem, caso quem

    morra nada seja e nada carea da menor sensao seja do que for: Se se tratar, de fato,

    da privao total de sensao, como no sono, quando quem dorme no perturbado nem

    84Ibidem, p. 143.85Ibidem.86Ibidem.87Ibidem.88

    Ibidem.89Ibidem, p. 145

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    pelos sonhos: ter de ser a morte um ganho maravilhoso 90. E acrescenta por fim: Se a

    morte for isso, considero-a um grande lucro, porque todo o tempo no parecer mais

    longo do que uma nica noite 91.

    Considero importante fazer aqui um comentrio pessoal: desde que li essa

    pgina de Plato, fiquei fascinado com essa compreenso. Certa vez, depois de uma

    dessas noites fascinantes e reconfortantes de sono, e quando j tinha tentado escrever

    uma ode morte, aps aquela noite acordei com entusiasmo, refletindo sobre essas

    consideraes a respeito dessa primeira possvel caracterizao socrtica da morte, e

    escrevi:

    Morte, em dura Sorte nos confirmas,

    Na Vida, que, por ti, vem, nos conforta,

    s Portas de uma Noite escura e fria,

    De um Dia, que, ao surgir, pra ti se volta.

    Num Dia claro e quente de cansaos,

    A Noite chegar pra seu repouso.

    E a Vida, toda cheia de embaraos,

    Na Morte encontrar supremo gozo.

    E o gozo repouso, em Noite afvel,

    Do Dia que, exausto, se despede.

    E a Morte o Sono imperturbvel

    Da Vida, cujo sangue j no ferve.

    Por que no te cantar, Morte serena?

    Por que no te chorar, Vida infeliz?

    Pois, do Calor do Dia, a Chama amena

    Se foi, para te dar Noite feliz.

    E quem, vivendo um Dia sem descanso,

    No quer, Noite, um Sono imperturbado?

    A Vida encontrar seu Pouso manso

    Em ti, Morte fiel, preu ser velado.

    90Ibidem.91Ibidem.

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    E a Vela, que ilumina este Velrio

    o Sol que brilha Luz do Meio-Dia.

    E o Canto, Cantilena que imploro, choro, que transforma Morte em Vida.

    A Vida, que floresce, l no Campo,

    Do meu Corpo-Semente, enterrado,

    Se prende firmemente ali, num Canto...

    Na Terra fico, assim, bem resguardado 92.

    O Dia e a Noite... A Vida e a Morte podem, talvez, ser apenas faces de uma

    mesma moeda. Mas este jeito de falar apenas um modo de antecipao amena da

    morte. Para Scrates, o tom era mais grave. A morte no era s antecipao: era

    iminente! Por isso, a caracterizao socrtica no assim to amena... Ela assume o tom

    de uma dor resignada perpassada pela incerteza numa expectativa apenas confiante.

    Mesmo assim, Scrates enxergava outra possibilidade: a morte pode no ser somente

    aquele sono profundo, que eu me senti inspirado a cantar e louvar. A morte pode

    tambm ser outra coisa. Havia ainda, para Scrates, outro modo como a morte poderia

    ser considerada: se for a morte o trnsito daqui para um lugar diferente, sendo certo,

    como se diz, que todos os mortos l se renem: que maior bem poder haver, senhores

    juzes? 93. E, aps meditar sobre quem l poderia encontrar, assegura:

    Eu, pelo menos, desejo morrer mil vezes, se tudo isso for verdade. Como seriaadmirvel viver em um lugar onde fssemos encontrar Palamedes e AjazTelamnio, e os outros heris da Antiguidade que pereceram vtimas dejulgamento injusto! Comparar minha sorte com a deles, segundo penso, noseria pequena satisfao. [...] Conviver com eles, conversa-los e examin-los:

    que indescritvel felicidade! Decerto no matam l ningum por isso, pois, almde serem os que l demoram mais felizes do que os daqui, so imortais o tempotodo, a ser verdade o que nos contam 94.

    92 Neste poema, a rima no perfeita, mas a mantive de propsito, porque se resguarda, nalgumaspalavras combinadas, certo tom... uma leve semelhana de sonoridade e sentido, e um ritmo, que podemsustentar a combinao. Dia e Vida no rimam, mas combinam... Campo e Canto no rimam, mas no

    cemitrio esto l, os dois juntos: um Canto, no Campo Santo e o Canto, Cantilena que imploro.93PLATO, op. cit., p. 14594Ibidem, p. 145-146.

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    Assim se pronunciava Scrates diante da morte iminente, na certeza de que

    para o homem de bem, nenhum mal pode acontecer na vida nem na morte, e que os

    deuses no se descuidam de seu destino 95. Permanece verdade, porm, que havemos

    de considerar, que esta a expresso do homem diante da morte iminente e injusta.

    Ainda que, em todo caso, nada mais conforme expresso da verdade sobre a morte,

    especialmente daquele vivente, que est para morrer injustamente, de morte matada e

    no morrida. Por isto tudo, no se haveria de tremer, mesmo diante da morte

    iminente. E o que dizer da antecipao da morte pelo simples saber que algum dia vai

    morrer, mesmo que a no se tenha imediatamente em vista?

    NaRetrica, Aristteles faz referncia morte em uma perspectiva que se torna

    fundamental para o modo como de maneira decadente o vulgo impessoalmente se

    comporta frente a ela. Ao falar do temor, Aristteles acentua que todos sabem que vo

    morrer, mas, pelo fato de nunca perceber isto como um fato iminente, no se preocupam

    (ouvde.n fronti,zousin) com a morte. O que causa preocupao o perigo (ki,dunoj) ou

    mau iminente (evggu,j). A morte, da qual todos sabem que vir um dia, mas no vivida

    como prxima no iminente (ouvk evggu,j). Aristteles refere-se ao temor e diz ser o

    temor certa dor (lu,ph) ou preocupao (tarach,) em vista do que se mostranum futuro

    iminente (evk fantasi,aj me,llontoj))) su,negguj) como mau, danoso ou doloroso

    (kakou/fqartikou/h;luperou/) 96. A morte, sobre a qual todos sabem que vir um dia,

    no vivida como prxima, pois no iminente, por isso, no se h de tem-la por uma

    mera antecipao por meio do saber. A morte, nessa perspectiva aristotlica, s se torna

    temvel caso se constitua como um mal iminente. Com isso passa-se por cima do

    fenmeno da angstia, engendrada quando da antecipao da morte, mesmo no a

    sabendo como possibilidade imediata.

    Epicuro tendeu a afastar ainda mais a antecipao criativa da morte, e passoutambm por cima do fenmeno da angstia, quando se ateve a buscar afastar o medo da

    morte, que, ao mesmo tempo, favorecia o desvio da angstia que sua antecipao nos

    proporciona. Para Epicuro, a morte no constitui, de modo algum, motivo para o temor,

    uma vez que no se pode esperar sofrimento de algo para o qual nenhum sofrimento

    existe, ao mesmo tempo em que se desvencilha daquela expectativa segundo a qual a

    95

    Ibidem, 146.96Cf. ARISTTELES.RetricaB 5, 1382a 20-25, trad. Isis Borges B. da Fonseca. So Paulo: MartinsFontes, 2003, p. 30.

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    morte possa ser uma passagem para um lugar de reencontro com os antepassados. Para

    Epicuro, no h realmente nada de terrvel na vida para quem tem a conscincia de que

    nada existe de terrvel na cessao da vida, considerando, assim, ser insensato quem

    diz que teme a morte no porque sua presena pode causar sofrimento, mas porque sua

    perspectiva faz sofrer (EPICURO, Carta a Meneceu, 125) 97. Ora, para Epicuro, sofrer

    por causa da perspectiva de que vai morrer insensato, pois aquilo que no perturba

    quando est presente causa somente um sofrimento infundado quando esperado 98.

    Ele considera, logicamente que o mais pavoroso dos males a mortenada para ns,

    pois enquanto existimos a morte no est presente, e quando a morte est presente j

    no existimos. 99. Com base neste argumento, Epicuro conclui que: Nada , ento, a

    morte para os vivos, e nada para os mortos, porque para os vivos ela no existe, e os

    mortos j no existem 100. Apesar disso, procura caracterizar, por fim, o modo como o

    vulgo se relaciona com a morte: a maioria ora foge da morte como o maior dos males,

    ora a procura como a cessao dos males da vida 101.

    Assim, na herana grega conclama-se superao do temor diante da morte

    antecipada. E esse destemor diante da morte se faz conveniente em funo dos seguintes

    aspectos bsicos que esses filsofos acima citados cuidaram de tentar elucidar: 1) Por

    que temer a morte se ela for a penetrao em um sono profundo e imperturbvel? 2)No h tambm motivo para teme-la se ela, em vez disso, for um reencontro com os

    antepassados; 3) Alm disso, tendemos j naturalmente a no teme-la, uma vez que ela

    no se apresente como algo iminente; 4) E, por que, mesmo assim, haveramos de teme-

    la, se ela mal nenhum pode nos fazer, pois enquanto vivemos, ela ainda no est a, e

    quando ela se d, j no estamos a para experiment-la, uma vez que ela a cessao

    de toda sensao por meio da qual unicamente experimentamos aquilo de que

    efetivamente fugimos enquanto vivemos, isto , a dor. Ora, por todos esses argumentos,no temos motivo para temer a morte, ainda que a antecipemos e a nica forma de

    desenvolvermos uma relao correta com a morte pela superao do medo. Haveria,

    porm, outra forma, mais correta, de relacionar-se com a morte, na medida em que

    97EPICURO, Carta a Meneceu, inDigenes LARTIOS, Vidas e Doutrinas dos Filsofos Ilustres, trad.Mario da Gama Kury, 2 ed. Braslia: UNB, 2008, p. 312.98Ibidem.99

    Ibidem.100Ibidem.101Ibidem.

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    temos dela um saber necessrio de sua vin