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SISMICIDADE GLOBAL NO ÚLTIMO QUARTEL DO SÉC. XX E. Ivo ALVES Centro de Geofísica Universidade de Coimbra SUMÁRIO No presente trabalho analisaram-se os sismos com magnitude M5 registados na Terra entre 1 de Janeiro de 1976 e 31 de Dezembro de 2000. Quer a análise clássica (distribuições de Gutenberg-Richter e de Omori) quer a análise quantitativa de recorrência, quer a análise dimensional desta extensa sucessão cronológica são consistentes entre si e mostram que a sismicidade do globo pode ser analisada como um todo, indicando que as relações tensão-deformação têm longo alcance, provavelmente à escala planetária. 1. INTRODUÇÃO Depois dos trabalhos pioneiros de Beno Gutenberg e Charles F. Richter [1], não se têm feito muitas tentativas para quantificar a sismicidade da Terra como um todo. Aliás, mesmo Gutenberg e Richter definiram zonas sísmicas no Planeta e representam a sismicidade como um todo apenas numa figura (figura 5, pág.17, op. cit.). O problema, no presente, é duplo. Primeiro há a questão da enorme quantidade de dados disponíveis – o catálogo NEIC [2] regista uma média de mais de 20000 eventos por ano (Gutenberg e Richter [1] estudaram 1111 sismos ocorridos entre 1904 e 1948).

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SISMICIDADE GLOBAL NO ÚLTIMO QUARTEL DO SÉC. XX

E. Ivo ALVES Centro de Geofísica Universidade de Coimbra

SUMÁRIO No presente trabalho analisaram-se os sismos com magnitude M≥5 registados na Terra entre 1 de Janeiro de 1976 e 31 de Dezembro de 2000. Quer a análise clássica (distribuições de Gutenberg-Richter e de Omori) quer a análise quantitativa de recorrência, quer a análise dimensional desta extensa sucessão cronológica são consistentes entre si e mostram que a sismicidade do globo pode ser analisada como um todo, indicando que as relações tensão-deformação têm longo alcance, provavelmente à escala planetária. 1. INTRODUÇÃO Depois dos trabalhos pioneiros de Beno Gutenberg e Charles F. Richter [1], não se têm feito muitas tentativas para quantificar a sismicidade da Terra como um todo. Aliás, mesmo Gutenberg e Richter definiram zonas sísmicas no Planeta e representam a sismicidade como um todo apenas numa figura (figura 5, pág.17, op. cit.). O problema, no presente, é duplo. Primeiro há a questão da enorme quantidade de dados disponíveis – o catálogo NEIC [2] regista uma média de mais de 20000 eventos por ano (Gutenberg e Richter [1] estudaram 1111 sismos ocorridos entre 1904 e 1948).

322 SÍSMICA 2004 - 6º Congresso Nacional de Sismologia e Engenharia Sísmica Depois põe-se a questão da utilidade desta análise: existirá, de facto, uma “sismicidade da Terra”, ou os catálogos sísmicos aglomeram simplesmente eventos de regiões sismotectónicas díspares, sem relação entre si? 2. OS DADOS Neste trabalho abordou-se o primeiro problema, do enorme volume de dados, ao truncar a série analizando apenas os sismos com magnitudes M≥5, independentemente da profundidade focal, no período de 25 anos entre 1976 e 2000, num total de 39035 eventos registados no catálogo NEIC [2]. A distribuição geográfica dos epicentros desses sismos encontra-se representada na figura 1.

-90

-60

-30

0

30

60

90

-180 -150 -120 -90 -60 -30 0 30 60 90 120 150 180

M=[5.0, 6.0[ M=[6.0, 7.0[ M=[7.0, 8.0[ M=[8.0, 9.0[ Figura 1: Distribuição geográfica dos epicentros dos sismos registados entre

1976 e 2000, com M≥5. Trabalhos posteriores deverão socorrer-se de meios computacionais mais poderosos que permitam truncar a série a magnitudes mais baixas, com o consequente crescimento exponencial no número de dados e nos tempos de processamento. Além disso, o software actualmente disponível não permite, em geral, tratar sucessões com mais de 216 pontos de dados pelo que uma abordagem de séries mais extensas requererá o desenvolvimento de novas aplicações informáticas, possivelmente em plataformas não-PC. 3. A ANÁLISE 3.1. Análise “clássica” A sucessão cronológica truncada ajusta-se bem (R2=99%) a uma distribuição frequência-magnitude de Gutenberg-Richter com parâmetros a=9.88 e b=1.07 (figura 2).

E. Ivo ALVES 323

log N = -1.07M + 9.88R2 = 0.99

0.0

0.5

1.0

1.5

2.0

2.5

3.0

3.5

4.0

4.5

5.0

4.0 5.0 6.0 7.0 8.0 9.0M

log(

N)

Figura 2: Distribuição magnitude-frequência da sequência analizada.

Contudo, a questão da existência de uma sismicidade global, ou seja, se há interacções tectónicas de longo alcance, à escala planetária, deve ser respondida por outros meios. Uma primeira abordagem consistiu na determinação do parâmetro p da lei de Omori [3] para a taxa de decaimento do número de réplicas, independentemente da localização do “sismo principal” e das respectivas “réplicas”. Esta análise foi feita para os catorze sismos mais fortes da sequência estudada, com magnitudes entre 8.0 e 8.9 (quadro 1, na página seguinte). A lei de decaimento de Omori, muito mais antiga (1894) que a de Gutenberg-Richter, tem recebido atenção nos últimos anos. Na sua forma geral, estabelece que

N(t) = t -p (1) onde N(t) é o número acumulado de réplicas depois de passado um tempo t a seguir ao sismo principal e p é o parâmetro que define a velocidade de decaimento daquele número. Os valores encontrados para p variaram entre 0.312 e 1.623, com mediana 0.584, média 0.704 e desvio-padrão 0.385, que são consistentes com resultados experimentais e com análises de sequências de réplicas em zonas sismotectónicas limitadas, por exemplo, no Japão [4]. 3.2. Análise dimensional Sabe-se que expoentes de Lyapunov positivos são um sinal de caos determinístico (p. ex. [5]). Assim, aplicou-se uma implementação do algoritmo de Eckmann e Ruelle [6] para determinar o espectro dos expoentes de Lyapunov da sucessão de tempos de pausa entre os sismos da base de dados original.

324 SÍSMICA 2004 - 6º Congresso Nacional de Sismologia e Engenharia Sísmica

Quadro 1: Taxa de decaimento (p) do número de réplicas depois dos catorze sismos mais fortes no período estudado.

S: sismo principal. T: fim escolhido para a sucessão de réplicas. Evento

# Data Lat Lon M S (dias)

T (dias)

# Dias

# Réplicas p

00083 14-01-1976 -28.43 -177.66 8.2 0013.6 0028.7 15 159 0.612 02265 21-04-1977 -09.97 160.73 8.1 0476.1 0487.0 11 073 0.558 15679 19-09-1985 18.19 -102.53 8.1 3549.5 3562.8 13 081 0.312 17555 20-10-1986 -28.12 -176.37 8.3 3945.2 3960.6 15 130 0.911 21690 23-05-1989 -52.34 160.57 8.2 4891.4 4903.8 12 076 0.419 28595 08-08-1993 12.98 144.80 8.2 6429.3 6438.8 10 042 0.525 29895 09-06-1994 -13.84 -067.55 8.2 6733.9 6746.3 12 080 0.456 30438 04-10-1994 43.77 147.32 8.3 6851.5 6865.9 14 182 0.940 31371 07-04-1995 -15.20 -173.53 8.1 7036.9 7040.8 04 017 1.623 32639 17-02-1996 -00.89 136.95 8.2 7352.2 7361.4 09 069 0.609 35410 25-03-1998 -62.88 149.53 8.8 8119.1 8132.5 13 050 0.488 36175 29-11-1998 -02.07 124.89 8.3 8368.5 8375.0 06 023 0.395 38014 04-06-2000 -04.72 102.09 8.3 8921.6 8933.9 12 102 0.613 38724 16-11-2000 -03.98 152.17 8.2 9086.1 9099.4 13 183 1.391

A figura 3, na página seguinte, mostra que a sismicidade apresenta vários expoentes de Lyapunov positivos, dos quais o máximo é de +0.01. Este facto indica que o retrato de fases da sismicidade da Terra é um atractor estranho, ou seja, que a sucessão estudada é uma instância de caos determinístico. Note-se que isto não significa que tenhamos acesso àquele atractor. É-nos possível, contudo, conhecer uma sua propriedade: a dimensão de correlação generalizada. O algoritmo de Grassberger e Procaccia [7] permite-nos proceder à determinação daquela dimensão cujo valor, 2.61, mostra que o atractor é fractal, como se esperaria.

-0.14

-0.12

-0.10

-0.08

-0.06

-0.04

-0.02

0.00

0.02

Lmax=0.01

Figura 3: Expoentes de Lyapunov da sequência analisada.

Lmax = 0.01

E. Ivo ALVES 325 3.3. Análise de recorrência Os diagramas de recorrência foram introduzidos por Eckmann, Kamphorst e Ruelle, em 1987 [8] para a análise qualitativa de sucessões cronológicas caóticas cuja dinâmica subjacente não é explicitamente conhecida. Já em 1981, Takens havia demonstrado que é possível recriar um mapa topologicamente equivalente ao comportamento de um sistema dinâmico multidimensional pelo uso de uma sucessão cronológica de uma única variável observada [9]. A implementação do processo é simples. Para expandir um sinal unidimensional para um espaço m-dimensional, substitui-se cada instância do sinal original x(t) pelo vector

y(i) = {x(i), x(i-d), x(i-2d), …, x(i-(m-1)d} (2) onde i é o índice de tempo, m é a dimensão de imersão (embedding) e d é o atraso temporal. Como resultado, obtemos uma colecção de vectores

Y = {y(1), y(2), …, y(N-(m-1)d)} (3) em que N é o comprimento do sinal original. A escolha dos valores óptimos para m e d é crítica para a interpretação dos gráficos de recorrência. Embora se pudesse jogar com estes valores num processo de tentativa-e-erro, em busca do gráfico mais estruturado possível, Kennel, Brown e Abarbanel [10] introduziram o método dos falsos vizinhos mais próximos para determinar a dimensão óptima de imersão e Fraser e Swinney [11] introduziram o método da informação mútua para determinar o atraso temporal óptimo. O método dos falsos vizinhos mais próximos encontra o vizinho mais próximo de cada ponto numa dada dimensão e verifica se estes pontos são ainda vizinhos próximos numa dimensão mais alta. A percentagem de falsos vizinhos mais próximos tende para zero quando se encontra a dimensão óptima. O método da informação mútua baseia-se no seguinte princípio: o atraso temporal ideal é aquele que, dado o estado do sistema x(t), fornece a máxima quantidade de nova informação sobre x(t+T). A teoria desenvolvida por Fraser e Swinney sustenta que, depois de um máximo inicial (x(t+0)), a quantidade de informação atinge um primeiro mínimo para um valor de t que deve ser o usado na reconstrução do espaço de fases. A análise de recorrência da sucessão de sismos do último quartel do séc. XX foi feita com recurso ao programa VRA-Visual Recurrence Analysis, de E. Kononov [12]. Uma vez que o sinal de uma sucessão de sismos não é contínuo, nem sequer periodicamente amostrado, optou-se, mais uma vez, por analisar a sequência dos tempos de pausa entre sismos sucessivos. A aplicação do método dos falsos vizinhos mais próximos permitiu determinar que a dimensão de imersão óptima para reconstrução do espaço de fases é 8, correspondendo a 50.46% de

326 SÍSMICA 2004 - 6º Congresso Nacional de Sismologia e Engenharia Sísmica falsos vizinhos. Determinou-se que o atraso temporal óptimo é 6, correspondendo ao primeiro mínimo na informação mútua média. Com base nestes valores, construiu-se o diagrama de recorrência da figura 4. Este diagrama representa, recorde-se, uma secção de Poincaré no atractor multidimensional (neste caso, 8-dimensional).

Figura 4: Diagrama de recorrência para a sequência de pausas analisada.

A figura 4 mostra uma estrutura nítida, fractal, recordando um tapete de Sierpinsky. Para comparação representou-se, na figura 5, o diagrama de recorrência para uma sucessão de valores de ruído branco, com os mesmos parâmetros estatísticos da sucessão de pausas sísmicas – mesmos máximo, mínimo, média e variância. Nota-se que o segundo gráfico é muito mais uniforme, menos estruturado que o primeiro.

Figura 5 : Diagrama de recorrência para uma sequência de ruído branco com os mesmos parâmetros estatísticos da sequência de pausas representada na figura 5.

E. Ivo ALVES 327 4. CONCLUSÕES A análise da sequência de todos os sismos com magnitude M≥5 registados na base de dados NEIC entre 1976 e 2000 mostrou que:

a) os dados ajustam-se muito bem (R2=99%) a uma relação de Gutenberg-Richter com a=9.88 e b=1.07;

b) as taxas de decaimento temporal do número de “réplicas”, para os catorze sismos com M>8, traduzidas no parâmetro p da lei de Omori, variam entre 0.6 e 1.6, valores que são consistentes, quer com observações em zonas limitadas, quer com resultados experimentais (apesar de não haver, aparentemente, qualquer relação tectónica ou, sequer, geográfica, entre os “sismos principais” e muitas das putativas “réplicas”);

c) a sequência estudada é uma instância de caos determinístico, apresentando expoentes de Lyapunov positivos, com o maior deles, baixo, de +0.01 e uma dimensão generalizada de 2.61;

d) a análise de recorrência da sucessão das pausas entre os sismos estudados mostra uma estrutura interna muito diferente da que teria se não houvesse qualquer relação de causa-efeito entre sismos sucessivos.

O conjunto destes resultados permite-nos responder à pergunta colocada na introdução: faz, de facto, sentido, falar-se de uma sismicidade global. A natureza caótica da sismicidade da Terra indica que o fenómeno sísmico tem grande sensibilidade às condições iniciais e que a litosfera se encontra globalmente num estado crítico. Sugere, também, que as acções tectónicas são de longo alcance geográfico. Parafraseando Edward Lorentz, um abalo menor, nos Açores, pode desencadear um grande sismo na Califórnia. 5. REFERÊNCIAS [1] Gutenberg, B.; Richter, C. F. – Seismicity of the Earth, 1949, Princeton. [2] NEIC – National Earthquake Information Center, United States Geological Survey,

2003.12.22, http://neic.usgs.gov/neis/epic/epic.html. [3] Omori, F., “On after-shocks of earthquakes” – J. Coll. Sci. Imp. Univ. Tokyo, Nº 7, 1894,

p.111-200. [4] Hirata, T. – “Omori’s power law for aftershock sequences of microfracturing in rock

fracture experiments”, J. Geophys. Res., 92, 1987, p. 6215-6221. [5] Gulick, D. – Encounters With Chaos, 1992, McGraw-Hill, Singapore. [6] Eckmann, J.-P.; Ruelle, D. – “Ergodic theory of chaos”, Rev. Mod. Phys., 1983, Nº 57, p.

617-638. [7] Grassberger, P.; Procaccia, I. – “Measuring the strangeness of strange attractors”, Physica

D, Nº 49, 1983, p.189-195. [8] Eckmann et al. – “Recurrence plots of dynamical systems”, Europhys. Lett. , 1987, Vol. 4,

No. 9, p. 973-977.

328 SÍSMICA 2004 - 6º Congresso Nacional de Sismologia e Engenharia Sísmica [9] Takens, F. – “Detecting strange attractors in turbulence”, 1981, In: Dynamical Systems and

Turbulence (Warwick, Ed.), Lecture Notes in Mathematics, 1980, Nº 898, Springer-Verlag, Berlin.

[10] Kennel et al. – “Determining embedding dimension for phase-space reconstruction using a geometrical construction.” Phys. Rev. A , Nº 45, p. 3403-3411

[11] Fraser, A.M.; and Swinney, H.L. “Independent Coordinates for Strange Attractors from Mutual Information.” Phys. Rev. A , Nº 33, p. 1134-1140.

[12] Kononov, E. – “Visual Recurrence Analysis”, http://home.netcom.com/~eugenek/ download.html, 2000. (Aparentemente, Kononov deixou de manter o sítio indicado. O presente autor pode disponibilizar o software VRA que era de domínio público para aplicações académicas.)