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www.ts.ucr.ac.cr 1 Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de Filosofia e Ciências Humanas Escola de Serviço Social VIOLÊNCIA URBANA E CONSTITUIÇÃO DE NOVOS SUJEITOS POLÍTICOS: UM DESAFIO À INTERVENÇÃO SOCIAL Suely Souza de Almeida

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de Filosofia e Ciências Humanas

Escola de Serviço Social

VIOLÊNCIA URBANA E CONSTITUIÇÃO DE NOVOS SUJEITOS POLÍTICOS:

UM DESAFIO À INTERVENÇÃO SOCIAL

Suely Souza de Almeida

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1998

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Violência Urbana e Constituição de Novos Sujeitos Políticos: um desafio à intervenção social

Suely Souza de Almeida

Introdução

Toma-se como cenário a cidade do Rio de Janeiro dos anos 90, que é emblemática em matéria de exacerbação da violência urbana, através das

interconexões entre as forças de segurança e o crime organizado, a coexistência - inclusive em termos geográficos – de acentuadas desigualdades sociais – a evidente desconcentração da violência cotidiana (Silva, 1994), a concentração de chacinas praticadas por representantes das ditas forças de segurança contra as

classes populares (ocorrência das chacinas de Acari, 1990; da Candelária, 1993; e de Vigário Geral, 1993) e a escalada da impunidade.

Na década atual, a violência ordinária é protagonizada de forma espetacular e midiática por policiais civis e militares contra integrantes das classes populares,

revelando forte conteúdo - além de classista - racista, à medida em que produz vítimas, em sua maior parte, pobres e negras.

Analisa-se o impacto destas experiências de violência estatal no cotidiano de famílias brasileiras, a produção de rearranjos em seu interior, bem como, a

emergência da mulher-mãe na cena pública, que, pouco a pouco, vai se constituindo como sujeito político, a partir da reivindicação de justiça.

Em outros termos, a discussão incidirá sobre o protagonismo político de um novo sujeito, a partir do lugar tradicional que ocupa na família (em princípio

destituído de uma dimensão política, na acepção clássica), que constrói a legitimidade de suas lutas e reivindicações, ancorada na defesa de princípios sacralizados, como a maternidade e o direito à vida.

A defesa de tais princípios, associados à ótica dos direitos humanos,

mobiliza apoios e alianças de organizações nacionais e internacionais, favorecendo a organização de tais mulheres, para o enfrentamento de um poderoso adversário: o Estado, representado mais imediatamente pelas forças policiais estaduais.

A experiência da violência policial apresenta-se como contexto que produz

forte impacto sobre as subjetividades de mulheres das camadas populares e que propicia sua emergência na cena pública como sujeitos políticos, paradoxalmente, a partir do seu tradicional papel de mãe, reinventando a relação e as fronteiras público x privado.

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1. Violência Urbana: cenários, lugares e experiências

A violência está presente, na maioria das sociedades ocidentais contemporâneas, como uma das preocupações centrais na agenda dos cidadãos comuns, de representantes do poder político, da sociedade civil, penetrando, a cada dia, com maior vigor, também no meio acadêmico.

Este é um tema indissociável de estudos sobre a questão urbana, a cidadania, os direitos humanos, à proporção em que a cidade é um espaço de lutas sociais (Kowarick, 1994), sendo a violência uma das formas de manifestação mais agudas da “questão social”.

Hobsbawn (1995) chama atenção para o fato de que 80% dos maiores assassinatos em massa ocorridos na história americana tenham sido praticados a partir de 1980 e, portanto, no contexto de inseguranças, derivadas da combinação da depressão da economia com a expulsão crescente da mão-de-obra humana do

mercado de trabalho. É evidente que a “questão social” não pode ser apreendida tão-somente a

partir de suas manifestações econômicas, mas também políticas e culturais, nem é essa a matriz teórica do autor em questão. A importância de se pensar em suas

complexas determinações é corroborada por Wieviorka, ao afirmar que “O declínio do movimento operário e a perda do lugar central das relações de produção industriais tornam improváveis a idéia de uma ligação entre importantes violências sociais e a inserção de seus agentes num conflito estrutural de classe, no sentido

habitual da expressão. Não é mais a luta contra a exploração, a sublevação contra um adversário que mantém com os atores uma relação de dominação, e sim a não-relação social, a ausência de relação conflitual, a exclusão social, eventualmente carregada de desprezo cultural ou racial, que alimentam hoje em toda parte do

mundo, inclusive na própria Europa ocidental, condutas amotinadoras ou uma violência social mais difusa, fruto da raiva e das frustrações” (1997:7).

Concorda-se com a primeira parte da afirmação de Wieviorka, que aponta para a necessidade de se ultrapassar o enfoque exclusivo das determinações de

classe. Ressalta-se, contudo, que prescindir da análise de tais determinações, ou refutar o vínculo entre a violência e relações sociais fundamentais, significaria recair em outro equívoco teórico: o entendimento de que este fenômeno possui caráter errático, sendo transposto ao plano das relações interpessoais. Defende-se, antes,

a importância da ampliação do campo das determinações, incluindo-se também outras relações fundamentais, como as de gênero e étnico-raciais, uma vez que se

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entende a exclusão social como inscrita no seio do conjunto de relações sociais antagônicas. Seu caráter é, portanto, de não-exterioridade vis-à-vis este campo de

forças1 (Almeida, 1998) e sim de inclusão, sendo este marcado por conflitos, tensões e disputas pelo poder.

Wieviorka acentua que a novidade das formas de violência atuais reside em sua referência à identidade étnica ou religiosa de seus protagonistas, ao contrário

dos anos 70 e 80, em que a violência política e o terrorismo tinham grande importância. Refere-se a Baudrillard (1995), que nega a existência de uma violência atávica, mostrando que esta é, antes, fruto de nossa modernidade. Indica, ainda, que a violência é uma categoria central, na era contemporânea, para o entendimento da

vida social e das relações internacionais, seguindo, assim, o veio de análise aberto por Tilly (1978), que considera ter valor heurístico a realização de um inventário sobre as formas de violência predominantes em determinada época, para melhor caracterizá-la.

Vásquez fornece indicações importantes para se discutir a relação entre a violência e a vida social, observando que o objeto da violência é formado por seres que corporificam relações sociais, e não por indivíduos abstratos. Nas palavras do autor, “...as ações humanas que se exercem sobre eles não se dirigem tanto ao que

têm de seres corpóreos, físicos e sim a seu ser social; ou seja, à sua condição de sujeitos de determinadas relações sociais, econômicas, políticas, que se encarnam e cristalizam em determinadas instituições; instituições e relações que não existem, portanto, à margem dos indivíduos concretos.(...) A práxis esbarra no limite oferecido

por indivíduos e grupos humanos. A violência se insere na práxis na medida que se faz uso da força, pois a ação violenta é exatamente a que tende a vencer ou a saltar um limite através da força. (...) O corpo é o objeto primeiro e direto da violência, mesmo que esta, a rigor, não se dirija em última instância ao homem como ser

meramente natural, e sim como ser social e consciente. A violência visa a dobrar a

1 Entende-se que um campo de forças é estruturado a partir da articulação complexa das relações sociais fundamentais de uma dada sociedade, quais sejam: as relações de classe, de gênero e étnico-raciais. “Em um campo, seus componentes são complementares e competitivos, determinam e sofrem ações dos sujeitos individuais e coletivos, que integram as forças em disputa em dada formação social. Estas ações traduzem-se em práticas materiais e simbólicas, metamorfoseáveis e negociáveis, a partir do permanente confronto de experiências. É também com base nesta tensão que são (re) construídos lugares sociais, que permitirão a reprodução/ transformação das referidas estruturas e processos. Tem-se, port anto, uma processualidade irredutível a tão-somente um dos termos deste campo. Os sujeitos não apenas se situam em dado campo de forças, mas são constituídos por este, ao mesmo tempo em que o re-significam. Neste sentido, a relevância da estrutura e da gênese dos fenômenos, ou de seu caráter histórico, evidencia-se (Cf. Almeida, 1998).

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consciência, obter seu reconhecimento, e a ação que se exerce sobre o corpo dirige-se, por isso, a ela” (1977:379-380).

Sustenta-se a pertinência da análise de Vásquez, à medida em que esta sugere não ter a violência caráter absoluto, posto que não prescinde de uma base legitimadora para seu exercício. Por outro lado, entende-se que a ideologia subjacente às relações de exploração-dominação não é suficiente para assegurar a

subordinação de seres singulares ou de categorias humanas, uma vez que tais relações não se produzem ao largo das lutas pelo poder. Se existissem adversários a priori vencidos, deixariam de se apresentar nesta condição. Em outras palavras, a violência é reguladora das relações sociais, à medida em que transformações

substantivas destas são ameaçadoras para a ordem social vigente. Ao ser praticada pelo próprio Estado – ou por seus braços armados -, o

estudo da violência tem realçada sua estreita articulação com os debates sobre democracia e a constituição do Estado de Direito. Aliás, a produção intelectual no

Brasil sobre violência tem sido desenvolvida nesta direção, sobretudo por Velho & Alvito (1996), Zaluar (1984), Soares (1996), Paixão & Beato (1997), Pinheiro (1997), Silva (1994), Kant de Lima (1995) e Caldeira (1997), que estudam a violência urbana contemporânea, o que não lhes permite ficar ao largo da violência estatal e,

em particular, da policial. Hoje, no Brasil, vive-se um momento especialmente rico para discussão do

aparato policial necessário/adequado à ordem democrática, presenciando-se inclusive a recuperação por parte das forças da repressão de espaços, símbolos e

modalidades de ações políticas forjadas por sujeitos políticos no confronto com o Estado autoritário e com estas mesmas forças repressoras. Isto porque conseguem se nomear como trabalhadores, explorados em seu processo de trabalho e defensores de uma pauta de reivindicações comuns às classes trabalhadoras,

obtendo assim apoios políticos de adversários históricos. Tradicionalmente, o Estado tem centralidade nos estudos sobre violência,

sobretudo a partir da clássica formulação weberiana do seu monopólio legítimo da violência física, a qual, como argumenta Wieviorka, é cada vez menos adequada às

sociedades contemporâneas. O estudo em questão busca conferir visibilidade à prática ilegítima da violência por agentes do Estado brasileiro, que, ao mesmo tempo, institui regras/formas de convivência, organização, sociabilidade e resistência, recrudescendo e reatualizando as tensões Estado-sociedade civil.

O aumento da violência nas sociedades contemporâneas ocidentais é um fato sem precedentes na era moderna, o que gera profundas perplexidades.

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Hobsbawn afirma que o século 20 foi o “...mais assassino de que temos registro, tanto na escala, freqüência e extensão da guerra que o preencheu, mal cessando por

um momento na década de 1920, como também pelo volume único das catástrofes humanas que produziu, desde as maiores fomes da história até o genocídio sistemático” (1995:22). Acrescenta ser uma das lições deste século o fato de que os seres humanos aprenderem que podem “...viver nas condições mais brutalizadas e

teoricamente intoleráveis...” (idem ). Santos (1995) acentua a importância de se exercitar a perplexidade sem

sofrê-la, tornando-a, antes, produtiva. Mostra que à mudança de paradigmas societais deve corresponder mudanças ao nível dos paradigmas epistemológicos.

Nesta direção, Wieviorka refere-se à necessidade de se pensar um novo paradigma da violência, dadas as profundas transformações recentes no mundo contemporâneo, sobretudo a partir dos anos 60 e 70, mostrando a importância de se enfatizar mais as rupturas do que as continuidades.

Embora não se tenha a pretensão de responder a tal desafio nos limites deste trabalho, pensa-se que a análise de casos paradigmáticos de violência urbana pode contribuir para fornecer indicações ao debate teórico.

2. Violência urbana no Rio de Janeiro: a década das chacinas

A análise das Chacinas de Acari, da Candelária e de Vigário Geral não se esgota na tentativa de compreensão de sua expressão fenomênica, sendo importante o deslindamento da inscrição da violência oficial, envolvendo,

recorrentemente, setores populares, em um dado campo de forças. Para o entendimento das chacinas em questão, é importante, portanto, que

sejam consideradas condições históricas – econômicas, sociais, políticas e culturais - que possibilitaram sua emergência. Em outros termos, devem-se levar em conta os

seguintes aspectos: a) o lugar ocupado pela polícia na (re)produção e gestão dos conflitos sociais urbanos, no Rio de Janeiro, nas duas últimas décadas, em estreita conexão com sua herança política da ditadura militar; b) as complexas relações entre a polícia e os setores socialmente excluídos (práticas de negociação,

favorecimentos, confrontos); c) o impacto da crescente autonomização da polícia em relação ao restante do Estado sobre a política de segurança pública (ou sua não-implementação); d) as matrizes simbólicas que articulam representações em torno do poder, legalidade, justiça, ética, direitos humanos, exclusão social, violência,

entre outros aspectos.

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Ressalta-se que tais episódios de violência envolvendo policiais não são isolados, quer se tome o Estado do Rio de Janeiro como palco de sua eclosão, quer

se tome o conjunto do país. São fenômenos que, antes, estão inscritos na lógica da gestão da “questão social” no Brasil, mediada por densas relações de poder, tributárias das desigualdades que permeiam as relações antagônicas fundamentais. Há, entretanto, algumas peculiaridades que marcam os fenômenos em questão:

1. todos resultaram em assassinatos coletivos e deram origem a fortes mobilizações ao nível da sociedade, conquanto tenham provocado reações ambíguas e díspares por parte de diferentes frações de classe;

2. a chacina da Candelária2 representa o deslocamento da violência

policial cotidiana praticada contra os setores excluídos em seu próprio território (favelas, em geral) para o centro financeiro da cidade do Rio de Janeiro - espaço do qual crianças e adolescentes ousaram se apropriar e estabelecer suas próprias condições de habitabilidade, lazer e sobrevivência;

3. a chacina de Acari3 eliminou as vidas de onze jovens, dentre os quais, oito menores, em um sítio na Baixada Fluminense; as investigações indicam que o crime foi praticado por policiais civis e militares, pelo fato de alguns daqueles jovens, que eram assaltantes, terem se recusado a pagar propina aos policiais;

4. a chacina de Vigário Geral ocorreu em represália ao assassinato de quatro policiais militares, atribuído a traficantes desta localidade; na noite seguinte, mais de quarenta homens (policiais civis, militares e alcagüetes), fortemente armados e encapuzados, invadiram a favela, arrombaram casas e mataram vinte e

uma pessoas, atingindo famílias inteiras, inclusive crianças; 5. a prática de ações ilegais por parte de integrantes do governo,

responsáveis, em tese, pela garantia da legalidade e da ordem pública, torna-se objeto mesmo de investigação da corporação policial, marcada historicamente por

este paradoxo.

2 2 Esta chacina ocorreu menos de 24 horas após um carro de polícia ter sido apedrejado na Candelária, devido à prisão de um homem cheirando cola naquele local (as crianças sobreviventes informaram que os policiais haviam prometido vingança). 3 Acari tem sido uma área constante de tensões entre traficantes, policiais e a população. Em 1994, em virtude de uma disputa por pontos de comercialização de drogas entre esta favela e outra, situada na zona norte, doze pessoas foram mortas. A favela foi, então, ocupada por cem policiais, o que levou o chefe local do tráfico de drogas a matar um travesti e assumir a autoria do crime. No corrente ano, a favela voltou a ser notícia, por ter sido ocupada por trezentos policiais, para o desenvolvimento de um “trabalho pioneiro de ação social”.

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As chacinas da Candelária e Vigário Geral ocorreram, com intervalo de um mês, no segundo Governo Leonel Brizola, quando se generalizava o discurso dos

direitos humanos - a partir do qual se buscava fundamentar a política de segurança pública do Estado -, que era sistematicamente refutado por agentes policiais, setores sociais dominantes e, paradoxalmente, por segmentos das camadas populares; a chacina de Acari aconteceu no Governo Moreira Franco, quando as

taxas de criminalidade no Estado estavam em curva ascendente, tendo em comum com o Governo Brizola, o comando da política de segurança pública por um civil, externo à corporação policial, com vínculos anteriores com a OAB e um passado de lutas em favor dos direitos humanos.

Este conjunto de fatores favoreceu a emergência dos crimes em questão na cena pública, roubando os noticiários dos meios de comunicação, inclusive daqueles veículos destinados às camadas médias e às mais favorecidas. Provocou polêmicas e debates, ensejando a formulação de propostas oriundas de vários

setores, de promessas políticas e de decisões governamentais, bem como, ações de organizações diversas de defesa dos direitos humanos, de âmbitos nacional e internacional.

Registre-se que as chacinas da Candelária e de Vigário Geral, ocorridas em

momento de forte crise política enfrentada pelo segundo Governo Brizola, com repercussão notadamente na área de segurança pública, geraram, por parte das autoridades estaduais, ações enérgicas, resultando na prisão, em poucos dias, de vários suspeitos de participação nos crimes: foram efetuadas as prisões de três

policiais e um serralheiro, no caso da Candelária, e de trinta e um policiais civis e militares, no caso de Vigário Geral.

A violência urbana tem gradações diferenciadas e é assimilada de formas distintas de acordo com as frações de classe e as categorias sociais contra as

quais é dirigida. Quando esta modalidade de violência é impingida aos setores mais privilegiados da população, as reprovações social e legal são inequívocas. No entanto, ao atingir os setores historicamente excluídos - exclusão esta que já encerra, em sua própria lógica, boa dose de violência -, as reações são ambíguas,

dada a associação exclusão-marginalidade-violência, e sua conseqüente banalização4. Incluir esta forma de violência na agenda nacional de direitos civis exige embates e negociações.

4 A imprensa registrou, na época das Chacinas, reações da sociedade marcadas por ambigüidades. Matéria publicada na Revista Isto É, em sua edição de 04/08/93, intitulada “Há mesmo indícios de que o Rio aprova o massacre da Candelária”, exemplifica esta afirmação.

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A violência policial contra as camadas populares tem sua própria gramática: são empregadas táticas bem desenvolvidas de intimidação e coerção, reforçadas

pela violência física; os ataques são violentos, sem aviso prévio e aparentemente aleatórios, mas, de fato, calculados; é travada uma guerra psicológica e física visando a silenciar protestos e a minimizar os riscos de retaliação por parte das vítimas dos atos de violência; é criada uma atmosfera de intimidação, de forma que

não haja local seguro para as vítimas potenciais. Estes segmentos vivem, pois, em um mundo permeado por eventos

traumáticos e/ou catastróficos, tais como ameaças e humilhação, espreita e vigilância, coerção e violência física. Qualquer que seja a intenção identificada como

subjacente à violência, seus efeitos são os mesmos: estas camadas aprendem que devem ficar no lugar que lhes é designado cultural e socialmente.

São reveladoras desta lógica as “ocupações sociais” das favelas de Acari e Vigário Geral, realizadas, respectivamente, pela polícia civil e militar, no ano

passado. A primeira ocupação aconteceu em Acari, tendo sido comandada pelo chefe da Polícia Civil e contando com a participação de cerca de trezentos policiais e funcionários de outras Secretarias de Governo, responsáveis por projetos de “desenvolvimento social de comunidade”5. Estava prevista também a participação

da polícia militar, que, contudo, foi inviabilizada devido à morte de uma criança de dois anos, dias antes, que fora atingida por uma bala perdida, quando brincava em frente à sua casa, e cuja autoria fora atribuída a integrantes da referida corporação. Os depoimentos dos moradores que se seguiram à tal ocupação, marcados por

denúncias de violação sistemática de direitos humanos (invasão de casas sem ordem judicial, quebra de objetos, agressões etc.), revelavam medo e indignação6.

A ocupação de Vigário Geral por policiais militares - pertencentes ao mesmo Batalhão do qual fazia parte a maioria dos acusados pela Chacina de Vigário Geral

- tem gerado, da mesma forma, denúncias de extorsão e outras práticas de violência contra os moradores7. Ambas as chacinas, aliás, contaram com a participação de policiais militares do mesmo Batalhão, que é considerado, pelo atual Secretário de Segurança Pública, modelo de ação policial, o que revela, de forma eloqüente, a

concepção militarizada que preside a atual política do Estado nesta área.

5 Cf. Jornal do Brasil, 25/04/96. 6 Cf. Jornal do Brasil, 28/04/96. 7 Cf. Jornal do Brasil, 16/04/97.

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O medo e a ameaça permanentes - que marcam a história de vida da população que vive em áreas de risco, sendo generalizados para a sociedade

inclusiva - servem à criação de um clima difuso de insegurança, que constituem importante caldo de cultura favorecedor da adoção de medidas repressivas e autoritárias, balizadoras do recrudescimento do uso da força policial. Trata-se, portanto, de uma lógica circular: a sociedade termina refém das estratégias de

exploração do sentimento de insegurança coletiva. A violência expressa, assim, um contexto e processo de dominação e não simplesmente ou necessariamente um conjunto de atos brutais8.

Contudo, as amplas mobilizações que tais chacinas originaram foram

pontuais, efêmeras, fragmentadas e sua permanência na cena pública nacional esgotou-se tão logo os meios de comunicação de massa passaram a priorizar outros temas políticos. Claro está que os contornos das mobilizações guardam relação direta com os contextos nos quais estão inseridas, com a capacidade

política dos sujeitos coletivos de interpelarem um campo de forças determinado e de conferirem um caráter público às suas lutas.

Contrastando com a dinâmica societária mais ampla, estes crimes revelaram outra singularidade: a emergência no cenário político de mulheres, sem qualquer

forma de militância prévia, movidas que são pela extensão do tradicional lugar que ocupam no âmbito privado. Tais mulheres - mães das vítimas de Acari e familiares das vítimas de Vigário Geral e da Candelária - passaram a se mobilizar, de diferentes formas e com intensidades diversas, tentando preservar na memória

social os assassinatos de seus familiares e lutando contra a impunidade dos criminosos.

3. Constituição de Novos Sujeitos Políticos: mulheres no espaço público

A emergência de mulheres-mães na cena pública, nos anos 90, ocorre no vácuo deixado pela reduzida intervenção do poder instituído na área de segurança pública e prevenção da violência urbana e, em especial, da violência institucional contra os setores menos favorecidos.

Tais mulheres promovem investigações paralelas às oficiais, confrontam e desafiam as forças policiais, tornam-se interlocutoras do Poder Judiciário e de outras instituições, nacionais e internacionais, movidas pelo afeto e pela imperiosa

8 Para aprofundamento de análises comparativas entre o terrorismo e a tortura política, respectivamente, e a violência cotidiana, notadamente a doméstica, cf. Marcus (1994) e Copelon (1994).

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necessidade de proteção dos seus filhos – ou de suas memórias - contra a violência estatal e para-estatal, no contexto de governos civis e de normalidade democrática.

Estes sentimentos são bem enraizados nas subjetividades das mulheres, através do seu processo de socialização para a maternagem (Chodorow, 1978), que mescla representações e práticas – ou um processo de qualificação continuado e informal – relativas a cuidados, assistência familiar, polivalência e onipotência, o

que, no confronto, com os desafios cotidianos – favorece a cultura da culpabilização/vitimização femininas. A onipotência materna, modelada com base na matriz dominante de gênero, contrasta com o sentimento generalizado de impotência face à truculência e brutalidade policial e à fragilização da sociedade

civil. Não há, tendencialmente, nessas tentativas de recuperação da memória de

seus filhos e/ou familiares, estratégias bem definidas de ação e participação políticas. De fato, trata-se de práticas singulares, cujos limites e possibilidades estão

circunscritos por condições dadas da época, construídas em um solo histórico comum. A trama invisível que tece os acontecimentos trágicos em suas vidas vai adquirindo inteligibilidade através de ações intuitivas, fragmentárias, que, aos poucos, vão sendo redesenhadas com vistas à localização de indícios da

intervenção ilegal e criminosa de agentes do Estado – a busca de materialidade do crime e da responsabilização criminal de agentes oficiais.

As ações dessas mulheres, embora não possam ser caracterizadas de início como conscientemente políticas, guardam as marcas dos acontecimentos da

segunda metade dos anos 80 e início dos anos 90. Suas intervenções, no espaço público, são mediatizadas pelos debates sobre democracia e a constituição/ampliação de direitos civis, sociais e políticos (consolidados, sobretudo, na Constituição de 1988) e, paradoxalmente, pela revelação da impossibilidade de

concretização destas conquistas para as camadas pauperizadas da população, através da interrução trágica das trajetórias de gerações mais jovens de suas famílias.

De início, eram iniciativas, individuais, solitárias, clandestinas. Foram, neste

processo, de luta contra a invasão da coerção estatal na vida cotidiana, passando a congregar e articular práticas clara e intencionalmente políticas. Neste sentido, experimentam o autoritarismo como solo de construção da sociabilidade política, criam um espaço público no sentido arendtiano – tornam-se visíveis, nomeam suas

lutas, seus direitos – e constróem uma herança política (Telles, 1994).

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As lutas dessas mulheres são contemporâneas do precário e ainda incipiente processo de democratização do Estado e da sociedade brasileira. Não se

transformaram em um movimento, nem mesmo efêmero e pontual, como alguns dos denominados novos movimentos sociais que surgiram em meados dos anos 70, posto que construído em outro registro – familiar, emocional, afetivo -, cujas integrantes foram constituindo, em oposição ao Estado, uma identidade comum.

Estas lutas – resultantes das chacinas da década em curso - mostram que o lugar da ação política não é empiricamente dado, nem determinado aprioristicamente (Telles, idem).

Organizam-se como grupos de pressão, solidarizam-se com outras lutas, têm

um ciclo vital mais extenso do que a maior parte dos movimentos sociais (posto que o cuidado materno ultrapassa em muito a presença e a existência física, envolvendo completamente as subjetividades das mulheres), colocam em questão o arbítrio, o autoritarismo e o caráter ilegal/ilegítimo da ordem autoritária, obtendo algumas

conquistas pontuais. Neste processo, têm obtido apoios de organizações da sociedade civil e

política, e enfrentam o poderoso aparato policial, em condições muito adversas, tendo em vista as ameaças constantes com que se defrontam9 e a inexistência de

programas de apoio a testemunhas no Brasil10. Dessa forma, os sobreviventes de violência ou as famílias das vítimas ficam também totalmente vulneráveis ao decidirem levar adiante suas queixas.

A mobilização permanente de mulheres na cena pública contra a impunidade

pela morte de seus filhos e familiares, assim como manifestações de solidariedade em outros julgamentos similares, permite a politização do problema. Assim, nega-se que se trata de problemas episódicos, de natureza privada, abstraídos do seu contexto histórico, possibilitando sua representação enquanto problema de interesse

público, o que favorece a alteração de uma correlação de forças determinada. Ademais, as ações das mulheres em questão favorecem a mobilização da opinião pública contra a lógica de julgamento dos crimes cometidos contra membros das camadas populares por representantes do poder instituído e podem pressionar a

redefinição das relações polícia x camadas populares.

9 Uma das mães de Acari foi morta, em 1993, em circunstâncias não-esclarecidas até o momento. 10 Uma testemunha-chave da chacina da Candelária está exilado na Suiça, para evitar seu assassinato, pois vinha sofrendo ameaças constantes. Observe-se, ainda, que um dos policiais acusados foi morto em condições não-esclarecidas.

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4. Relações de gênero: potencial heurístico para desestabilização de dicotomias socialmente construídas

Embora com alcance limitado e polêmico, toma-se, neste texto, o conceito de

gênero formulado por Scott: “...o gênero é um elemento constitutivo de relações

sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos...” (1990:14). A autora realça o lugar ocupado, nesta definição, pelos símbolos culturais disponíveis e, freqüentemente, contraditórios, no que se refere às representações que ensejam, suas modalidades e contextos. Discute também que é relevante a análise das

estratégias empregadas para normatizar as interpretações dos significados desses símbolos, mostrando que estas não são homogêneas, mas concorrenciais.

Scott salienta que se deve estudar o gênero em todos os domínios da vida social, mostrando suas imbricações com o poder: “Estabelecidos como um conjunto

objetivo de referências, os conceitos de gênero estruturam a percepção e a organização concreta e simbólica de toda a vida social. Na medida em que estas referências estabelecem distribuições de poder (um controle ou um acesso diferencial às fontes materiais e simbólicas), o gênero torna-se envolvido na

concepção e na construção do poder em si mesmo” (idem, p.16). Por outro lado, para esta autora, o gênero é também um crivo a partir do qual

se decodifica o sentido e a complexidade das relações sociais. Assim, procedendo-se de forma análoga a Lauretis (1994), pode-se sugerir que para Scott, a (re)

construção do gênero é gênese, produto e processo de relações de poder. Na proposta teórica de Lauretis, a dimensão simbólica é não menos

fundamental, pois esta autora entende o gênero também como “...um aparato semiótico, um sistema de representação que atribui significado (identidade, valor,

prestígio, posição de parentesco, status dentro da hierarquia social etc.) a indivíduos dentro da sociedade” (1994:212). Estes significados devem ser apreendidos a partir de dado contexto político-econômico, sendo também inscritos em cada cultura, que os re-emoldura (Almeida, 1998).

Esta categoria histórico-analítica é importante para a compreensão da constituição da mulher como sujeito político, a partir da perda dos seus filhos, fazendo-se necessária a análise do lugar que esta ocupa na estrutura familiar.

À mulher tem sido histórica e universalmente atribuída a responsabilidade

pela reprodução humana, entendida não só em sua dimensão biológica, mas também em termos de socialização e de cuidados materiais e emocionais das gerações imaturas. Esta divisão sexual do trabalho que se processa no interior do

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grupo familiar está tão naturalizada que a participação feminina no mundo do trabalho assalariado acaba subordinada à sua participação nas atividades

vinculadas à reprodução. Enquanto para o homem, há uma clara delimitação casa-trabalho, para a

mulher ocorre uma superposição de tempos e espaços, realizando-se o seu trabalho, em ambas os espaços, de forma incompleta e permeada por culpas. É

uma atividade que, ao contrário do trabalho assalariado, não é condicionada por limites temporais e de investimentos, tendo base essencialmente afetiva, o que supõe não apenas a implicação plena da subjetividade de quem o executa, mas de toda a sua vida.

Esta tarefa é, certamente, mais bem sucedida entre mulheres do que entre homens, devido à capacidade potencialmente reprodutiva das primeiras, favorecendo toda uma construção ideológica em torno da maternidade. Verifica-se, assim, que não há uma expressão possível das mulheres em um campo fora da

família e do trabalho; quaisquer que sejam as modalidades adquiridas pelas conexões entre estes dois termos, constituem experiências estruturadoras da subjetividade das mulheres.

A denominada dupla jornada de trabalho não é a superposição dos trabalhos

assalariado e doméstico, embora os compreenda. Na realidade, é uma articulação complexa de tempos, de espaços, de estratégias e de práticas, que envolvem uma problemática global, vivenciada como “...a justaposição de duas experiências mutiladas” (Bertaux-Wiame et alii, 1988:41).

A ruptura com a representação fragmentada do real conduz à afirmação de que a inserção da mulher, simultânea e ambiguamente, nos dois espaços, coloca em questão não somente esta falsa construção de campos estanques - o que não significa a redução de um campo ao outro -, mas permite excluir do mundo da

produção as exigências da reprodução. Qualquer que seja sua forma de inserção no mundo do trabalho assalariado, a

mulher tem participação estratégica na elaboração da história social da família, sendo uma das tecelãs principais da trajetória social de membros do grupo familiar,

embora nem sempre reconstitua sua experiência de forma globalizante (idem). Tampouco é possível distinguir claramente seus diferentes campos de atividade, dadas as demandas díspares e simultâneas que emergem de cada um deles.

A mulher ocupa lugar estratégico na articulação destas dimensões da vida,

sendo cotidianamente instada a realizar opções, o que a conduz a escolhas conflituosas ou, via de regra, à não-escolha efetiva, configurando um quadro de

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ambigüidades que, por ser instável, exige rearranjos freqüentes. Tal impasse, que se constitui no bojo de pressões multidimensionais e estruturais com as quais a

mulher se depara no dia-a-dia, adquire a aparência de “um aspecto da psicologia feminina”.

Entende-se, assim, que a perda concreta dos filhos não significa, para as mulheres, o desenraizamento da vivência da maternidade ao nível de suas

subjetividades. Para Doray, “o campo da subjetividade engloba o conjunto dos processos pelos quais o indivíduo, em estreito contacto com as estruturas simbólicas da cultura, tenta assumir e abrir um acesso à forma genérica de seu ser” (1989:85).

A relação entre o ser singular e o ser genérico é, portanto, dialética, à medida em que um só se realiza através do outro, o que remete à complexidade do processo de constituição do sujeito. Os seres singulares, ao se apropriarem do resultado de suas atividades procedem à subjetivação, constituindo-se em sujeitos

que, no mesmo movimento, objetivam-se através da sua participação no processo de produção e reprodução da vida, em todas as suas dimensões (Saffioti, Cançado e Almeida, 1992).

Este processo de objetivação-subjetivação não é totalmente consciente, mas

se inscreve também na psique. Assim, pode-se pensar como no processo de reelaboração da violência como morte e como extensão de determinada forma de inserção do ser singular em relações de classe, gênero e étnico-raciais, as mulheres subjetivam-se, vivendo, de forma dramática, a invasão da vida privada pelo mundo

público. Estas relações são o filtro através do qual os sujeitos se situam no mundo e dão sentido à experiência11.

As mulheres-mães em luta contra a violência institucional vão, gradativamente, se dando conta de que “o pessoal é político”12. Esta é uma

concepção que subverte a lógica do espaço político clássico, exigindo que se reinventem novas bases para fazer política, a partir de temas considerados 11 Utiliza-se esta expressão no sentido formulado por Thompson, segundo o qual é através da experiência que o sujeito se historiciza: “Os homens e mulheres também retornam como sujeitos, dentro deste termo - não como sujeitos autônomos, ‘indivíduos livres’, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida ‘tratam’ essa experiência em sua consciência e sua cultura (...) das mais complexas maneiras (...) e em seguida (...) agem, por sua vez, sobre sua situação determinada” (1981:182; grifos no original). 12 Esta frase, cunhada por feministas radicais, no início dos anos 70, nos Estados Unidos, logo foi incorporada pelo movimento feminista, ao nível internacional, transformando-se em importante b andeira de luta. O objetivo era mostrar que os problemas vividos por mulheres de nacionalidades, culturas, religiões, frações de classe, raças e etnias, as mais distintas, como se fossem individuais e privados, têm raízes comuns.

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marginais, conferindo-lhes, no entanto, a centralidade necessária para romperem o anonimato.

Este debate pode ser fomentado a partir da problematização da relação público x privado. Apreendem-se estes dois termos como dimensões da vida social, com fronteiras fluidas, permeadas por tensões e ambigüidades, e manipuladas, ao longo da história, para forjar um determinado modelo de sociedade.

De acordo com o quadro teórico esboçado neste texto, entende-se que a sociedade não é repartida em domínios ou esferas, mas é regida por um conjunto de relações sociais contraditórias, que configuram um determinado campo de forças. Raramente existiu uma fronteira nítida entre vida doméstica e vida pública, sendo o

elo entre estas duas dimensões estabelecido pela família, que contribui para a construção das identidades privadas e públicas de cada sexo.

Na realidade, as dimensões pública e privada da vida são ligadas por relações rearranjadas continuamente entre trabalho, intervenções estatais, práticas

familiares e aspirações individuais, que moldam as trajetórias dos seus membros. A família é afetada por problemas macro-estruturais: pela política econômica, pelas políticas sociais em geral (que garantem ou não o acesso aos serviços urbanos básicos), pelas regras do jogo político (uma determinada concepção de ética, um

certo projeto de sociedade, uma dada visão e prática de respeito aos direitos humanos).

Pode-se afirmar que a família e o Estado são instituições extremamente imbricadas para a construção de uma dada (des)ordem social. À família é atribuído

o trabalho de reprodução dos seres humanos - cuidados fundamentais dispensados a crianças, aos seus membros em idade produtiva, a doentes e a idosos -, reduzindo a responsabilidade econômica do Estado e encobrindo suas deficiências e/ou omissão em termos de políticas públicas. É, portanto, instituição central à

reprodução material e simbólica das relações sociais, embora não seja prioritária em termos de investimentos públicos.

A família jamais esteve isenta da intervenção velada ou aberta do Estado e de instituições da sociedade civil, religiosas ou laicas, sendo os exemplos mais

flagrantes os que concernem a políticas demográficas e ao direito privado. A dicotomia público x privado está na base da dissimulação ou ocultamento da divisão de trabalho permanentemente reconstruída entre Estado e família e da divisão sexual do trabalho, igualmente reproduzida nas dimensões pública e privada da vida, que

constitui uma das bases fundamentais de construção dos lugares fundamentais atribuídos culturalmente a homens e mulheres.

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A invasão policial praticada contra integrantes das camadas populares, em suas próprias casas ou enquanto dormiam, expressa, de forma extrema e dramática,

a invasão do poder público na vida privada. Estes episódios produziram impactos profundos nos desenhos das estruturas familiares, provocando rupturas e levando-as a reinventar a lógica da solidariedade - comum às famílias das camadas populares, enquanto estratégia de sobrevivência necessária à sua reprodução cotidiana

(Salem, 1986). Esta lógica redefine valores e subordina projetos individuais aos interesses e necessidades do grupo familiar.

A família é considerada, portanto, um conjunto complexo de trajetórias singulares dos seus membros (Goldani, 1994), cujas histórias de vida se

entrecruzam e guardam estreita relação com a história de um dado contexto, em uma época determinada. Trata-se, sim, de uma condensação de relações sociais: as relações familiares são construídas e reproduzidas no contexto de relações de classe, raciais, de gênero, religiosas e geracionais.

Às práticas familiares incorporam-se tais fatores externos, públicos, que impulsionam a subjetivação das mulheres enquanto tecelãs das relações familiares - condição que lhes moverá a freqüentar a cena pública e reivindicar direitos. Deve-se levar em conta que a inserção do sujeito em relações de gênero, classe e étnico-

raciais condiciona a forma pela qual este se apropria da noção de direitos, interpela a ordem institucional e reivindica-os. Por outro lado, o fato de o sujeito representar-se como portador de direitos não significa necessariamente que terá possibilidades reais de usufruir dos mesmos.

Sabe-se que o Direito constitui tão-somente um dos parâmetros para regulação de relações conflituosas. É um instrumento poderoso, sem dúvida, mesmo em um país como o Brasil, onde não há uma forte cultura legalista enraizada. Isto porque o Direito define o que constitui ameaça à ordem pública e aos direitos

individuais, permitindo ao Estado dispor de um arsenal de punições hierarquizadas, potenciais e reais.

Em outras palavras, trata-se da constituição de sujeitos políticos, capazes de tematizar questões centrais à afirmação de sua autonomia enquanto classe ou

categoria, o que não exclui - ao contrário, supõe - a vivência de suas singularidades. Assim, as categorias público e privado estão longe de ser estruturalmente dicotômicas, embora seja esta a construção ideológica necessária à manutenção das relações sociais hegemônicas, profundamente hierarquizadas.

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Este elenco de questões permite a tematização, a partir da realidade brasileira, de questões contemporâneas centrais ao Serviço Social13: maior ênfase

ao estudo da sociedade civil, em sua relação com o Estado, novas formas de manifestação da questão social, a relação público x privado, subjetividade e identidade, relações de classe, gênero e étnico-raciais, dentre outros temas.

13 Tais temas estão inscritos na nova proposta curricular aprovada pela Associação Brasileira de Ensino de Serviço Social (ABESS), em 1996.

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