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MARIA PAULA PANÚNCIO-PINTO
O sentido do silêncio dos professores diante da violência doméstica sofrida por seus alunos –
uma análise do discurso.
São Paulo 2006
ii
MARIA PAULA PANÚNCIO-PINTO
O sentido do silêncio dos professores diante da violência doméstica sofrida por seus alunos –
uma análise do discurso.
Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo para obtenção do Título de Doutor em Psicologia. Área de Concentração: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano Orientadora: Professora Doutora Maria Isabel da Silva Leme
São Paulo 2006
iii
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na publicação Serviço de Biblioteca e Documentação
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Panúncio-Pinto, Maria Paula.
O sentido do silêncio dos professores diante da violência doméstica sofrida por seus alunos – uma análise do discurso / Maria Paula Panúncio-Pinto; orientadora Maria Isabel da Silva Leme. -- São Paulo, 2006.
178 p. Tese (Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
Área de Concentração: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
1. Violência na família 2. Escolas 3. Análise do discurso 4. Silêncio I. Título.
HM291
iv
FOLHA DE APROVAÇÃO
Maria Paula Panúncio-Pinto O sentido do silêncio dos professores diante da violência doméstica sofrida por seus alunos – uma análise do discurso
Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo para obtenção do Título de Doutor em Psicologia. Área de Concentração: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano
Aprovado em:
Banca Examinadora Prof. Dr. ___________________________________________________________________
Instituição: _____________________________Assinatura____________________________
Prof. Dr. ___________________________________________________________________
Instituição: _____________________________Assinatura____________________________
Prof. Dr. ___________________________________________________________________
Instituição: _____________________________Assinatura____________________________
Prof. Dr. ___________________________________________________________________
Instituição: _____________________________Assinatura____________________________
Prof. Dr. ___________________________________________________________________
Instituição:______________________________Assinatura____________________________
v
Dedicatória
“a saudade é prego- parafuso, quanto mais aperta, tanto mais difícil de arrancar...”
Talvez a morte seja, de todas as coisas da vida, a mais definitiva. E talvez seja esse caráter
definitivo, que tira da nossa convivência pessoas insubstituivelmente queridas e importantes,
que nos incomode e ameace tanto. Durante esse longo percurso (5 anos podem as vezes
parecer uma vida!) tive perdas irreparáveis, pessoas que eu imaginei que sempre estariam
comigo, as quais, se eu fosse consultada e pudesse mesmo escolher, ia querer ao meu lado
agora, dividindo comigo esse momento, já que fizeram parte da minha vida de modo tão
especial. E é a elas - aqui representadas pela minha avó (in memoriam) e meu avô, e a todas as
pessoas que ficaram e continuam vivendo corajosamente apesar das perdas, que eu dedico
este trabalho.
Para minha avó Mercedes, que me mostrou com alegria o mar, as quaresmeiras floridas e
tantas belezas as quais estava atenta e recortava pra me mandar (amor e saudade pra sempre!);
Para meu avô Joaquim, que corajoso, lúcido nos seus 93 anos, continua me dando lições de
otimismo e fé na vida, com meu amor e admiração.
vi
Agradecimentos
Um trabalho como este envolve muito tempo, dedicação, atenção. Embora em muitos
momentos deva ser uma construção solitária, jamais seria possível sem a participação de todas
as pessoas que, direta ou indiretamente, estiveram ao meu lado. Durante toda essa caminhada
fui muito privilegiada por todos os felizes encontros que este trabalho possibilitou ou
solidificou.
Sonhei e fui...de tão singular me vi plural...”
Só as pessoas mais generosas podem se tornar bons mestres. Fui muito feliz por ter
encontrado pessoas como vocês. Tenho certeza que ao longo deste trabalho vocês vão
encontrar muito de vocês, inesquecíveis pela valiosa interlocução, pelo modelo de
competência e dedicação, pela amizade, afeto, paciência e disponibilidade, serei sempre grata:
Isabel, pelo respeito e serenidade com que conduziu a orientação deste trabalho;
Yves e Suzy, pelas inestimáveis contribuições nas disciplinas e no exame de qualificação;
“ A medida de amar é amar sem limites...”
Acreditando que somos o feliz encontro entre o mito e o logos, sei que tudo que sou hoje,
tudo que sou capaz de perceber e elaborar, tudo que sinto e faço não existiria sem o amor
incondicional que tenho recebido de algumas das pessoas mais importantes da minha vida;
Meu pai e minha mãe, por tudo que me ensinaram e ainda ensinam sobre os valores, a vida e
pelas lições de amor, respeito e solidariedade que nunca cessam;
Pedro, meu irmão querido, você foi muito importante neste processo todo, uma das poucas
pessoas da minha convivência que sempre teve ouvidos para as minhas viagens filosóficas.
Pela música, pelo amor sempre, e por nunca ter cobrado nada sobre minhas ausências;
Horácio, companheiro de todos os sonhos, sem palavras pra expressar o seu papel neste
pedaço longo e sofrido da minha vida que se materializa aqui. Sem você ao meu lado, como
eu teria caminhado tanto? Pela generosidade, confiança, paciência, companheirismo, afeto,
compreensão. Tudo de melhor que posso listar da minha vida, vem com você.
vii
Daniel e Du, os pais que eu ganhei há 14 anos, pela compreensão infinita, pelo apoio sempre.
É bom saber que sempre posso contar com vocês!
“Na nossa festa vale tudo, vale ser alguém como eu, como você...”
Impossível suportar as dificuldades da vida sem a alegria que sempre esteve presente através
da família RODHANNA. Quando parecia que minha pilha ia acabar, ir pra estrada com vocês,
conviver com vocês e com a beleza do trabalho que faz o mundo parecer melhor, sempre me
dava energia pra continuar: Rodrigo e Nora, Duda, Dê, Dri, Ita, Manga, Pedrão (de novo) Réo,
Bento, Amarelo, Roger, Rogerinho, Sandro, Je, Di, Bióla, Carol do Manga, Carol Sister,
Marília, Ygor, Dalva, Azulão, Carla, Horácio (de novo).
“Bendito encontro na vida, amigo...É tão forte quanto o vento quando sopra,
tronco forte que não quebra não entorta, pode crer, eu to falando de amizade...”
Como enfrentar a dureza do dia-a-dia sem a força, o carinho, a confiança, a alegria, a ajuda,
os conselhos, os helps, os ouvidos, a paciência dos amigos?
Carol Sister (irmã emprestada,irmã pra sempre!;) Dan e Van; Lucinéia ( a melhor secretária do
mundo!); Eli (sempre ali, cuidando de mim quando eu mais precisava!); PL (meu paparazzi
oficial); Rita (sinônimo de amizade em qualquer situação, minha referência de amizade); Fer
Nocam (só você poderia ser atriz, cantora e psicóloga: sua sensibilidade e talento me tocam e
inspiram, sempre!);
Suzy, pela generosidade com que me acolheu, pela paixão com que me conduziu em minha
viagem ao universo da AD, pelo afeto e amizade, nunca vou encontrar palavras suficientes pra
expressar minha gratidão e admiração;
Amigos do curso de Terapia Ocupacional da UNIUBE: Ana Cláudia, Heloísa, Ana Cristina,
Sônia, Beatriz; de forma especial agradeço ao Léo (companheiro de muitas jornadas, risadas,
ataques de nervos) e à Débo (amiga valiosíssima, presente com sua doçura, sabedoria e afeto);
Amigos da UBS George de Chirrè Jardim: Neiry (inesquecível!), Dr. Dalmo (sinto falta da
sabedoria e das intermináveis viagens de São Bento!); Ralph, Raquel, Luciana Alvarez,
Luciana Fioroni, Mariana Pontes, Mariana Marquez (me ensina tudo de mineirês sô!);
viii
agradeço especialmente a Leilinha, minha parceira na Coordenação do Programa de Atenção
ao Adolescente , amiga que ganhei no trabalho, um grande privilégio!
“When the stars are invisible, children are here to be watched, like a lesson to be
followed…”
É uma pena como somos capazes de esquecer tão rápido o jeito que víamos o mundo quando
éramos crianças. Foi de crianças que recebi as lições de amizade mais fortes: Carol Bossolani
e Maria Júlia, pela demonstração de fidelidade e de amizade, obrigada por terem
pacientemente esperado pelo meu tempo e terem sido as melhores amigas que alguém poderia
desejar.
“ há que se cuidar do broto, pra que vida nos dê flor e fruto...coração de estudante, há que
se cuidar da vida, há que se cuidar do mundo, tomar conta da amizade...”
Alunos e ex-alunos do curso de Terapia Ocupacional, queridos, indispensáveis na minha
atualização na vida, me ensinam tudo que tá rolando no mundo hoje e eu serei muito grata por
essa troca, pela amizade, pelo carinho e pela força, sempre.
Todos os estagiários e os adolescentes que passaram do Programa de Atenção ao Adolescente
da UBS.
ix
PANÚNCIO-PINTO, M. P. O sentido do silêncio dos professores diante da violência
doméstica sofrida por seus alunos – uma análise do discurso. 2006. 178f. Tese
(Doutorado) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
Os novos sentidos recentemente postos pelo discurso jurídico no que tange à garantia dos
direitos e à proteção integral à infância – materializados no Estatuto da Criança e do
Adolescente – colocam a escola como local privilegiado de identificação das crianças em
situação de risco por sofrerem violência doméstica em suas casas e atribuem ao professor o
papel de reconhecer e notificar os casos aos Conselhos Tutelares.Tal demanda justifica-se
pela gravidade do impacto sobre o desenvolvimento e a saúde provocado pela violência
doméstica O que se verifica, entretanto é que as notificações que chegam aos órgãos
competentes vindas da escola ainda são pouco significativas. Objetivou-se com este estudo de
abordagem qualitativa, compreender por que a escola silencia diante da violência doméstica
praticada contra seus alunos (crianças), através de entrevistas feitas com 06 professores de
escolas de município do interior do estado de São Paulo. Além disso, buscou-se identificar as
condições de produção desse discurso e discutir a relação entre as influências do contexto em
interação com esses sujeitos específicos, dentro da escola e o silêncio sobre a violência
doméstica, dentro de uma perspectiva materialista histórica. Os depoimentos dos professores
foram tratados e analisados através da Análise do Discurso (AD), conforme pressupostos de
Michel Pêcheux, perspectiva teórica que propõe que os sentidos se produzem no confronto
sujeito-língua-história, não existindo sentidos dados a priori. Os resultados permitem
identificar dois eixos discursivos distintos (dentro da violência e fora da violência) que
emergem no interjogo das posições professor-pai. No lugar social do professor, falando sobre
a violência, o sujeito critica e nega a violência como estratégia. No lugar de pai/mãe, as falas
são outras: quando eu perco a cabeça, infelizmente é o que resta. A análise permitiu concluir
que existe uma relação de sentidos que é mais forte, as representações que circulam há
tempos ainda têm mais força do que o discurso jurídico atual, incapaz de transformar as
práticas. Ainda que o discurso jurídico defina o procedimento no caso da violência doméstica
ser identificada pelo professor, a fronteira demarcada entre o público e o privado, entre a
escola e a família, acaba por silenciar o professor. O silenciamento ocorre porque o que se
demanda da escola – reconhecer e denunciar – é um papel que ela não consegue cumprir: a
dúvida que se coloca devido à tensão constitutiva de duas posições em conflito que geram
ordens discursivas distintas, leva ao silêncio.
x
Palavras-chave: Violência na família, Escolas, Análise do discurso , Silêncio
xi
PANÚNCIO-PINTO, M. P. The meaning of silence: why do teachers keep quiet
regarding domestic violence – an analysis of their discourse. 2006. 178f. Tese
(Doutorado) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
Juridical proceedings have recently acquired new meaning into their contents, regarding the
protection of youth rights (until the age of 18), materialized in ECA (a body of laws which
defines and protects the rights of children), related specifically to domestic violence exposure.
Although domestic violence can impair children’s development and health, and also, that the
school is a privileged institution to identify and notify these cases, school’s notification
represents only a small proportion of the total reported. Thus, this research aimed to
understand why school is an institution that keep silent about this phenomenon,
interviewing first grade teachers of private and public schools. We analyzed teachers’s
interviews using a qualitative approach (discourse analysis) supported by a materialistic and
historical perspective, based on Michel Pecheux’s perspective. We identified on teachers’
answers two major points that justify their scarce notifications: 1) speaking as teachers they
deny domestic violence and treat child raising practices as a parental responsibility; 2) as
parents, they point that beating is the only viable solution to solve conflicts. The results allow
us to conclude that there is an ancient tradition of domestic violence as a child rearing
practice, that is still powerful and strong even though a new juridical perspective has
emerged and defined intervention. Family and school frontiers or the public and the private
relations are still confusing matters, that lead the school and educators to remain in silence, so
the role to identify and notify domestic violence is not accomplished.
Keywords: domestic violence, schools, discourse analyses discourse, silence.
xii
Lista de Tabelas
Tabela 1: Informações gerais sobre os sujeitos ........................................................................ 90
Tabela 2: Relação de Periódicos e Freqüência de Artigos ..................................................... 175
Tabela 3: Classificação dos Estudos de Acordo com Temas Abordados e Ano de Publicação .. 176
Tabela 4: Temas discutidos a partir do eixo Intervenção: programas, serviços e pesquisa ... 177
Tabela 5: Temas discutidos a partir do eixo Impacto sobre desenvolvimento e Saúde ......... 177
Tabela 6: Temas discutidos a partir do eixo Associação entre Violência Conjugal e Abuso Infantil.178
Tabela 7: Temas discutidos a partir do eixo“Caráter Cíclico da Violência Interpessoal Doméstica ...178
Lista de Abreviaturas e Siglas AD Análise do Discurso
CMDCA Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
CT Conselho Tutelar
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
OMS Organização Mundial da Saúde
PL Projeto de Lei
TD Transdisciplinaridade
VIPD Violência Interpessoal Doméstica
Lista de Músicas “The happiest days of our lives” (Roger Waters/1979)
“Another brick in the wall” (Roger Waters/1979)
“Haja”(Christian Oyens & Zélia Duncan/1998)
“Pivete” (Chico Buarque & Francis Hime/1977)
“Candeeiro Encantado” (Lenine & Paulo C. Pinheiro/1998)
“Ecos do Ao” (Lenine & Carlos Rennó/2002)
“Keep Talking” (David Gilmour, Richard Wright & Polly Samson/ 1994)
xiii
Sumário
I. Introdução .................................................................................................................01
1.1 Infância, educação e violência................................................................................01
1.2 Retomando o problema de pesquisa .......................................................................13
1.3 Definindo os objetivos............................................................................................15
II. Transitando pelo complexo “TEORIA-MÉTODO”: Teorias, modelos e conceitos .18
2.1 Complexidade: Buscando a relação entre o sócio-histórico e o subjetivo .............18
2.2 Infância, educação e violência: o que nos diz a história.........................................23
2.2.1 Philippe Ariés: Uma História das Mentalidades ..........................................25
2.2.2 A História da Infância Contada por de Mause ..............................................28
2.2.3 Educação e classe social ................................................................................32
2.3 Infância e política pública no Brasil: o novo paradigma trazido pelo ECA..........36
2.4 Violência Interpessoal Doméstica .........................................................................42
2.4.1 O impacto da VIPD sobre o desenvolvimento e a saúde: buscando uma
nova compreensão sobre a inter relação sujeito-contexto ...............................................50
2.5 A reafirmação da complexidade: em a busca do “não dito“..................................57
III. Sobre Violência .......................................................................................................60
3.1 Definindo violência ...............................................................................................61
3.2 Violência: um traço humano?.................................................................................65
IV. O objeto-linguagem na perspectiva da Análise do Discurso (AD)......................74
4.1Do universalismo a análise do discurso...................................................................75
4.2 Análise do Discurso: a linguagem constituída por de complexas determinações ........80
V. Percurso Metodológico .............................................................................................87
5.1 Implicações de uma visão materialista de ciência ...............................................87
xiv
5.2 O caminho percorrido em busca de outros sentidos ............................................89
5.2.1 O Universo da Pesquisa..............................................................................89
5.2.2 Método........................................................................................................90
VI. Resultados e Discussão..........................................................................................105
6.1 Dentro e fora da violência: que fronteiras são essas?........................................106
6.1.1 O discurso proferido de fora da violência: os professores falam sobre a
violência ...........................................................................................................107
6.1.2 O discurso da violência: o que dizem os professores d e dentro da
violência ............................................................................................................128
6.1.3 A fronteira escola-família.........................................................................136
VII. Considerações Finais ...........................................................................................147
7.1 O sentido do silêncio: a tensão entre o público-jurídico e o privado-subjetivo 147
7.2 A construção histórica da transformação...........................................................159
VIII. Referências .........................................................................................................162
IX. Bibliografia ............................................................................................................173
Anexo ............................................................................................................................174
xv
When we grew up and went to school
There were certain teachers who would
Hurt the children anyway they could
By pouring their derision
Upon anything we did
And exposing every weakness
How carefully hidden by the kids
But in the town it was well known
When they got home at night, their fat and
Psychopathic wives would thrash them
Within inches of their lives.
“THE HAPPIEST DAYS OF OUR LIVES” (Roger Waters, 1979)1
We don’t need no education,
We don’t need no thoughts control
No dark sarcasm in the classroom
Teacher: leave those kids alone
All in all you are just another brick in the wall
“ANOTEHR BRICK IN THE WALL”
2
1 extraído do álbum “The Wall”, da banda inglesa Pink Floyd (1979) 2 Idem.
I. Introdução
1.1 Infância, educação e violência
No final dos anos 70 Alan Parker chocou o mundo com o longa metragem “The Wall”,
filme derivado do álbum homônimo da banda inglesa de rock progressivo “Pink Floyd”: as
imagens ( e a música) do clip “The Happiest Days of Our Lives” /“Another Brick In The
Wall” mostram um modelo de educação hierárquico, centrado na coerção, na humilhação, na
valorização do disciplinamento corporal. Mostra alunos marchando em fila indiana para
dentro de uma máquina de moer carne e saindo dela formatados, iguais, silenciados. São
imagens fortes, que causaram indignação e repúdio: nas cenas finais os alunos, cantando em
coro o refrão em destaque , quebram a escola.
Mais de vinte anos depois, educadores e todos os profissionais que de alguma forma se
vêem envolvidos na tarefa de educar têm a sua frente um grande desafio: tornar realidade,
através de sua prática, os novos paradigmas colocados recentemente quando o tema é
educação.
Os notáveis avanços tecnológicos que geraram a explosão de eficiência na
comunicação não têm sido suficientes para garantir o resgate de valores fundamentais a uma
educação que realmente faça sentido e possa contribuir para a solução dos graves problemas
enfrentados pela sociedade atual: fome, mortalidade, desemprego, individualismo, solidão,
violência.
Solidariedade, cooperação, respeito a vida e ao outro, diálogo, igualdade e acesso
democrático aos direitos são princípios freqüentemente evocados quando se discute educação,
princípios de certa forma esquecidos pelos modelos pedagógicos tradicionais em nome da
eficiência, da competência, da competitividade e da lógica de mercado.
Assim, em nome da educação, crianças e adolescentes têm sido historicamente vítimas
de processos educacionais violentos, no lar ou na escola. Tais processos vêm, ao longo dos
séculos, negligenciando o respeito, a emancipação, a autonomia e a transformação,
privilegiando a transmissão de verdades prontas, o adestramento, a submissão, a dominação e
a manutenção das coisas como estão.
Quando uma mãe bem intencionada usa o tapa para ensinar algo que poderia ser
transmitido pelo diálogo, com respeito ao limite extremo da individualidade do outro/sujeito -
o corpo - ensina a criança a ser violenta. Ao ser violenta, abusando de seu poder, ensina ao
filho que a violência é uma forma aceitável para solucionar conflitos.
2
Semelhante raciocínio pode ser aplicado ao professor que ridiculariza o equívoco de
uma criança em sala de aula: tirando-lhe o direito de errar, está negando sua condição de
sujeito em desenvolvimento, ensinando-lhe a intolerância, o desrespeito a outras idéias e
posições, impingindo-lhe vergonha, condenando-a ao silêncio. Ainda que ausente a
punição corporal, a violência e o desrespeito estão presentes e talvez sejam as lições mais
contundentes e inesquecíveis que restem de episódios desse tipo para a criança. A violência
vai então sendo reproduzida ao nível das micro-relações, silenciosa e sutilmente.
Para definir um modelo de educação mais humano e eficiente é necessário que nos
reportemos a várias áreas do conhecimento, familiarizando-nos com conceitos diversos para
tentarmos definir o que seria uma prática realmente transformadora, que deixasse de lado uma
visão hierárquica e adultocêntrica de educação e passasse a pensá-la como via de mão dupla,
num processo no qual educador e educando troquem referências, com respeito, sem violência,
sem coerção: uma educação não abusiva, que permita olhar para a criança como valor.
Na verdade a idéia de infância como valor é bem recente, começando a tomar forma e
a traduzir-se em leis apenas a partir de meados do século XX, em países como Suécia,
Holanda e Finlândia.
Os ares progressistas que sopram da Europa Ocidental – não é por acaso que tais
idéias vêm de lá para cá e não contrário – começam a gerar discussões no Brasil a partir dos
anos 70, mas apenas em 1990 ganha texto jurídico próprio, quando foi promulgada a lei 8069,
O Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA. De acordo com o ECA, os direitos à vida, à
educação, à saúde, à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes devem ser
garantidos com “absoluta prioridade”, respeitando sua “condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento” (Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990).
Faz-se necessário, então, perguntar: como seria uma educação que pudesse realmente
considerar os erros das crianças como novas hipóteses por elas colocadas, e entender esses
mesmos erros como necessários para que novas etapas sejam alcançadas em seu
desenvolvimento? O que é necessário ser transformado para que os “equívocos” das crianças
deixem de ser motivos para que sejam humilhadas, penalizadas ou ridicularizadas?
Ao nos depararmos com o fato de que a infância figure como valor há tão pouco
tempo e que, de certa forma, os direitos garantidos pelo recente discurso legal estão distantes
de se realizarem na prática das relações sociais, entendemos como fundamental a reflexão
proposta por Snyders (1984):
3
Com efeito, a verdade é que o face a face entre um jovem e um não jovem é profundamente incômodo. E não se pode deixar de atribuir a uma censura psicológica e moral o fato de se falar disso tão raramente, ao passo que a literatura, os filmes, as canções nos falam repetidamente da fragilidade e dos fracassos dos amores entre adultos (p. 13).
A afirmação do autor parte de sua discussão sobre o que para ele representa um dos
últimos tabus de nossa sociedade: os pais devem amar, e amam, os filhos. O autor nos fala
que a sociedade não aceita que os pais, sobretudo as mães, não ofereçam aos seus filhos um
amor constante, incondicional e natural. Ao estudar a história da infância, entretanto, é
possível entender o quanto essa relação miticamente entendida como natural, está sujeita ao
contexto histórico, cultural, social, além das interações específicas sujeito contexto e - como
sugere Snyders - o quanto não é fácil aos pais amarem seus filhos. O mito do amor incondicional dos pais pelos filhos tem levado a sociedade a discutir
muito pouco a maternidade/paternidade como escolhas possíveis, encarando-as, ao contrário,
como caminho natural da vida. Os casais que exercem seu direito e optam por não ter filhos
são cobrados como se estivessem faltando a um dever para com a sociedade. Outros tomam o
nascimento de filhos indesejados, que vieram por acidente, como fardos a serem carregados:
crianças que vão carregar a culpa pelos anos roubados à mãe adolescente, pela falta de
estudos do pai e assim por diante.
Todas as complexas questões que envolvem o relacionamento entre adultos e crianças
– a assimetria presente na relação de dependência estrita do cuidado, as outras diferenças que
derivam disto e colocam o adulto numa posição de poder em relação à criança, os mitos que
cercam a maternidade/paternidade – geram conseqüências para as práticas de criação de
filhos. Assim, a violência doméstica emerge como importante fator de risco ao
desenvolvimento infantil saudável.
Uma criança pode ser vitimizada pelos pais e essa violência, seja ela física,
psicológica ou sexual, não é um evento isolado ou esporádico, mas reflete um padrão de
relacionamento entre adultos e crianças. A violência pode ser sutil, como a simples
desvalorização das conquistas da criança, ou assustadoramente concreta, podendo até levar a
óbito. O fato de ocorrer entre as quatro paredes de um lar, no domínio da vida privada,
dificulta a notificação e abordagem aos casos, bem como a proteção a crianças que vivem em
situação de violência.
A idéia de punição e disciplinamento presente nas relações primárias carrega em si
pressupostos de valores e verdades transmitidos sob coerção e não construídos a partir da
4
mediação: uma educação não violenta deveria considerar crianças e adolescentes como
sujeitos capazes de, contando com a mediação dos adultos – pais ou professores: condutores –
construir seus próprios valores, saberes, conceitos, caminhos originais.
Contudo isso ainda parece muito difícil. A despeito de um discurso jurídico - que
percorre um caminho da Europa e América do Norte para o resto do mundo – que ressalta a
importância de uma educação não-violenta e começa a propor a intervenção do Estado nesse
"assunto de família", a violência que acontece no lar praticada pelos pais, contra os filhos, tem
se mostrado como uma realidade ainda muito presente.
Minayo e Souza (1998) discutem dados que a partir da década de 70 colocam a
violência como uma das principais causas de morbi-mortalidade entre a população de
adolescentes e adultos jovens das grandes cidades, o que tornou esse grupo de causas um
importante problema de saúde pública.
No mundo inteiro, a enorme freqüência da violência doméstica praticada contra
crianças e adolescentes tem mobilizado profissionais de diversas áreas e a sociedade em geral.
A violência praticada contra os filhos pelos pais é extremamente comum, assumindo cifras
assustadoras nos países que já se organizaram para o recebimento das denúncias e
atendimento dessas situações.
Nos Estados Unidos, por exemplo, estudos têm demonstrado um crescimento do
número de casos, chegando ao registro de 7 300 casos por dia, o que configura um aumento
de 63% desde 1984 (MOUDEN & BROSS, 1995; JESSE, 1998). Straus e Gelles (1995)
estimam que cerca de 1 500 000 sejam vítimas de graves maus-tratos em seus lares.Talvez
não seja correto dizer que houve aumento do número de casos, mas que o aumento da atenção
dispensada ao tema nas últimas décadas, em termos clínicos, sociais, legais e acadêmicos
começa a ampliar a visibilidade sobre a violência doméstica.
Vieira et al. (1998) discutem que, a exemplo do que tem acontecido nos Estados
Unidos, países como Canadá, Austrália e outros da Europa Ocidental têm investido na
discussão. Paradoxalmente, países mais fracos do ponto de vista econômico, como a Rússia e
os países da América do Sul, apresentam pouca produção bibliográfica a respeito do tema. É
possível pensar, que do ponto de vista da cultura, algumas sociedades são mais hieraquizadas,
como as latinas ou as orientais. O desafio de sensibilizar quanto à violência doméstica, bem
como de estruturar serviços eficientes em proteger as vítimas é ainda maior em culturas que
atribuem pouco valor à infância e nas quais o disciplinamento corporal é historicamente
valorizado.
5
Doe (2000) discute alguns aspectos culturais da sociedade coreana que colocam a
violência doméstica como grave problema social a ser enfrentado naquele país. Seu trabalho
faz uma revisão dos estudos sobre uso da punição corporal na Coréia e apresenta a sociedade
coreana como adultocêntrica, uma cultura que historicamente tem ignorado as opiniões e
percepções das crianças e onde a punição corporal é aceita como ação disciplinadora
freqüentemente usada por pais e professores. As crianças devem ser obedientes e viver de
acordo com as expectativas dos adultos, carregando silenciosamente seus deveres. Até um
passado recente pouca ou nenhuma atenção pública foi dada à crianças em risco de sofrerem
abuso em nome da disciplina, mas o elevado número de incidentes envolvendo abuso contra
crianças tem sensibilizado a opinião pública.
Kozu (1999), em seu trabalho sobre violência doméstica no Japão, também discute
questões culturais ligadas a forma de uma sociedade compreender e tratar o fenômeno da
violência doméstica. Coloca que tradicionalmente o termo violência doméstica no Japão
remete à violência física e emocional de crianças contra seus pais. Apenas muito
recentemente a sociedade tem considerado sobre outros tipos de violência doméstica,
sobretudo contra mulheres e crianças. O autor discute os desafios de se estruturar ações para
proteger e intervir nesses casos diante do background histórico e cultural da violência
doméstica naquele país.
Nossa revisão de literatura3 levou-nos a concluir que é difícil chegar ao estado da arte,
diante de um tema complexo e multifacetado como o da violência doméstica contra crianças e
adolescentes. Quando se aborda esse tema como central, é possível identificar uma vasta
gama de temas transversais que reafirmam a complexidade do fenômeno: saúde e qualidade
de vida, reprodução da violência a partir das relações dentro da família, legislação, direitos e
cidadania, desenvolvimento, moralidade e ética (Anexo I: Visão Geral dos Trabalhos
Recuperados com Revisão de Literatura) .
O tipo de violência que ocorre no lar, praticada por pais contra os filhos, por filhos
contra pais idosos ou doentes, por homens contra mulheres ou por cuidadores, parentes ou
não, de pessoas com deficiências ou idosos nem sempre foi tratado como um só fenômeno,
3 com as palavras-chave violência doméstica, domestic violence e child abuse foram encontrados 110 trabalhos no período de 1998-2002, em 54 periódicos diferentes (13 periódicos no Brasil e América Latina), sobre a realidade encontrada em países como Brasil, EUA, Inglaterra, Austrália, Canadá, Paquistão, Coréia, Japão, África do Sul. Para realizar o recorte de interesse deste trabalho, nossa leitura privilegiou os trabalhos sobre violência contra mulheres e crianças, devido a associação entre os fenômenos apontada na literatura. Os trabalhos encontrados no período que se seguiu ao exame de qualificação mantém o mesmo padrão quanto ao temas abordados. E como nosso foco passou a ser a busca pelo que ainda não está dito, os resultados dessa nova pesquisa bibliográfica não foram incluídos aqui.
6
mas nossa revisão de literatura originou reflexões que sugerem chamá-lo especificamente de
Violência Interpessoal Doméstica -VIPD e pensá-lo como fenômeno único. A VIPD
configura-se como um evento contínuo, através de episódios que podem se repetir ao longo de
anos. Inúmeros sintomas, que podem emergir em qualquer período do curso de vida, são
relacionados a experiências ligadas a VIPD. A gravidade do impacto sobre a saúde e
qualidade de vida, além dos custos sociais (a reprodução da violência, por exemplo) têm
levado a um aumento da discussão sobre a importância de capacitar profissionais que possam
estar direta ou indiretamente envolvidos a reconhecer e abordar tais situações.
A realidade da violência interpessoal doméstica, seja ela praticada contra a mulher,
contra crianças, contra idosos ou portadores de deficiências, é descrita amplamente na
literatura especializada. A teia de relações que pode ser tecida entre eles a partir dos trabalhos
realizados no mundo todo, sugere que a VIPD é um fenômeno complexo. Compreendê-lo em
suas diversas faces para conseguir abordar vítimas e agressores com sucesso configura-se
num desafio importante para todas as áreas do conhecimento que se relacionam com
qualidade de vida, desenvolvimento sustentável, cidadania, educação.
Esses quatro tipos de violência interpessoal são freqüentemente notificados aos
serviços sociais e de saúde e a abordagem efetiva aos casos configura-se num dos maiores
desafios aos programas de atendimento e proteção à mulher e à criança, bem como aqueles
destinados ao atendimento de idosos e portadores de deficiência.
Parece possível arriscar a afirmação de que os desafios ao enfrentamento do fenômeno
e à redução dos custos sociais são comuns, em qualquer lugar do mundo.
A preocupação com a ampliação da compreensão sobre a violência interpessoal
doméstica aparece como central nos trabalhos identificados e apontam para claras
dificuldades enfrentadas pelos programas e serviços que buscam prevenir sua ocorrência e
atender com sucesso aos casos notificados.
De uma forma geral, é possível afirmar que a VIPD emerge como uma situação
complexa, que requer esforços teóricos, de pesquisa e operacionais. Os trabalhos abordam a
questão de muitas formas e a partir de diferenças perspectivas. As dificuldades geradas pela
complexidade do fenômeno levam as pesquisas para muitas e distintas situações.
A complexidade do fenômeno também se reafirma quando olhamos para o fato de que
a pesquisa sobre violência doméstica seja tema de interesse de tantas e diferentes áreas:
psicologia (desenvolvimento, personalidade, cognição), direito, educação, saúde (pediatria,
psiquiatria), assistência social. Foi possível encontrar trabalhos abordando diferentes aspectos
do fenômeno em periódicos da área da saúde: medicina (pediatria, psiquiatria), odontologia,
7
saúde mental, enfermagem, saúde coletiva, saúde da mulher, psicologia (desenvolvimento,
aprendizagem, violência), direito, entre outros
As diferentes perspectivas e os diferentes lugares de realização das pesquisas indicam
o caráter universal do fenômeno. A leitura de trabalhos produzidos em diferentes países
aponta para dificuldades que se repetem também na realidade brasileira: escassez de dados
que subsidiem a estruturação de serviços eficientes, a proteção à vítimas, a integração dos
serviços e o treinamento de pessoal, a produção de conhecimento na área, a sensibilização da
sociedade em geral, entre outras.
A leitura do material selecionado no universo da VIPD demonstrou que muitos
trabalhos abordam um ou mais temas. Porém, existem eixos temáticos que se repetem. Nossa
classificação baseou-se no foco principal de discussão e análise de cada artigo. Assim,
obtivemos os seguintes temas centrais: a abordagem aos casos (intervenção, programas,
serviços e pesquisa); impacto da violência sobre o desenvolvimento e a saúde; associação
entre violência conjugal e violência contra a criança e o caráter cíclico da violência
doméstica4.
O desafio de estruturar programas e serviços que abordem de forma eficaz a demanda
gerada pela VIPD foi enfatizado por um número considerável de trabalhos Ao discutir
questões referentes aos serviços e programas destinados ao atendimento das famílias
envolvidas em situações de violência doméstica, a preocupação com a identificação de
estratégias para melhorar a eficiência dos serviços é central.
A intersetorialidade - integração das diversas agências, instâncias, setores e serviços -
é apontada como a meta mais importante a ser atingida rumo à eficiência da intervenção,
sendo que a questão da comunicação e do compartilhamento de informações aparecem como
obstáculos importantes (SHEPARD, FALK & ELLIOTT, 2002; MATTHEWS, 1999). Ainda
sobre a importância de atuação coordenada e integração de serviços, alguns trabalhos
discutem a necessária abordagem integrada da violência contra mulher e contra crianças, já
que são fenômenos que ocorrem com freqüência elevada numa mesma família (ECHLIN &
OSTHOFF, 2000; EDLESON 1999).
Os estudos realizados em serviços de proteção à mulher e serviços de proteção à
criança, partindo de registros de atendimentos (prontuários) e acompanhamento de casos
4 Os trabalhos que abordam os temas “impacto da violência sobre o desenvolvimento e a saúde” e “caráter cíclico da violência” serão apresentados e discutidos no Capítulo 2, item 2.4, quando trataremos de aprofundar conceitos e achados sobre a VIPD .
8
(entrevistas, questionários e aplicação de escalas), constatam a ocorrência simultânea de
violência conjugal e contra criança, praticadas pelo companheiro-pai, identificando um
número importante de preditores comuns. Exploram o aumento da probabilidade de
ocorrência e reincidência de violência contra crianças (abuso, negligências) em lares onde as
mães sofrem violência de seus parceiros (DUBE et al 2002; ARANHA-CARNEIRO &
ALVES-CABRAL, 2001; SLEP & O´LEARY, 2001; BEEMAN, HAGEMEISTER &
EDLESON, 2001; RUMM et al, 2000, MILLS et al, 2000; ECHLIN & OSTHOFF, 2000;
EDLESON 1999; WHITNEY & DAVIS, 1999; SHEPARD E RASCHICK, 1999;
BROWNE & HAMILTON, 1999; DEPANFILIS & ZURAVIN 1999; WILSON, 1998).
Num estudo que acompanhou 151 mulheres por sete meses dentro do Programa de
Enfermagem de Visita Domiciliar a Famílias Vulneráveis com Recém Nascidos, Cadzow,
Armstrong, & Fraser (1999) identificaram, entre outros indicadores de risco, a violência
conjugal. O estudo volta a tocar na importância da integração entre os serviços de violência
doméstica contra mulher, abuso infantil e negligência.
O investimento na formação e treinamento específicos para as equipes é outro fator
discutido (SAATHOFF & STOFFEL, 1999; LEMON ,1999; FINDLATER & KELLY, 1999
A; SKYNER & WATERS,1999). Autores apontam para o desenvolvimento de protocolos que
facilitem o diagnóstico (CULLROSS, 1999); estabelecimento de diretrizes filosóficas e éticas
e de rede de apoio aos profissionais (HENDRY, 1998); inclusão de conteúdos específicos
sobre violência doméstica nos currículos dos cursos da área da saúde (ALPERT et al. 1998;
CARVALHO et al., 2001; HENRY & PURCELL, 2000) .
As questões ligadas aos dilemas éticos que estão envolvidos na abordagem de um
fenômeno que ocorre no âmbito familiar são discutidas em alguns trabalhos e também tocam
no ponto da capacitação profissional. Nesses trabalhos são abordados: os riscos inerentes à
pesquisa epidemiológica com seres humanos, pois enquanto são sujeitos de determinada
pesquisa, essas pessoas podem morar com o agressor e o fato de falarem sobre a violência
com outras pessoas pode aumentar o risco (ELLSBERG & HEISE, 2002); o despreparo dos
profissionais e os conflitos internos e externos que o profissional vai enfrentar ao atender uma
família suspeita ou acusada de abuso e negligência contra suas crianças (HENRY &
PURCELL, 2000); escassez de modelos que apontem saídas para os dilemas éticos (MILLER
et al, 2002).
Alguns dos estudos que apontam para a necessidade de treinar equipes especialmente
para atender aos casos de VIPD, abordam a preocupação com a produção de conhecimento na
área através de pesquisa, a necessidade de se obter e organizar dados que favoreçam a
9
intervenção, seja em nível preventivo ou de reabilitação. Desta forma, outras estratégias foram
identificadas para aumentar a eficácia de uma possível intervenção: o planejamento da
intervenção com base em estudos/conhecimento produzido por pesquisa (HUMPHREYS et
al, 2001; GELLES, 2000; CHALK, 2000; CARTER, WEITHORN & BEHRMAN, 1999); a
busca da ampliação do conhecimento sobre o fenômeno (MATTHEWS, 1999; MCGILL,
DEUTSCH & ZIBBELL, 1999; LEVESQUE, 1998); o investimento em pesquisas que
incluam variáveis e perspectivas múltiplas (FANTUZZO & MOHR, 2000), além da
identificação de estratégias de prevenção (ECKENRODE et al., 2000; CARTER,
WEITHORN & BEHRMAN, 1999).
Por tratar-se de um fenômeno complexo que ocorre ao nível das relações interpessoais
na família, o sucesso da abordagem-intervenção (que tem como primeiro objetivo proteger as
vítimas e além disso, diminuir o impacto negativo sobre o seu desenvolvimento e saúde,
prevenir a reincidência e quebrar de um ciclo que pode levar a criança que hoje é a vítima,
tornar-se um agressor doméstico ou uma pessoa violenta em suas outras relações na
sociedade) depende de equipes interdisciplinares especialmente preparadas para lidar com
isso, da integração entre serviços legais (Vara de Família, Vara da Infância, Ministério
Público), de saúde e educação, como também da existência de legislação que garanta a
execução dos serviços de proteção aos direitos de forma rápida e adequada.
A leitura de trabalhos realizados em várias áreas do conhecimento, em diferentes
países revela dificuldades comuns ao enfrentamento da questão, algumas das quais são
observadas também aqui, á despeito de termos uma lei especificamente voltada para a
garantia dos direitos e para a proteção especial de crianças e adolescentes que é considerada
uma das mais modernas do mundo.
No Brasil, desde a promulgação do ECA muito tem se discutido sobre a proteção
especial e os direitos de crianças e adolescentes em situação de risco. Além dos riscos que se
enquadram na categoria de "sociais" e na verdade somando-se a eles, estão os riscos pessoais
e a violência doméstica se enquadra aqui, como categoria diferenciada.
A recente compreensão de que a exposição a qualquer situação de violência oferece
riscos para a saúde global dos indivíduos e grupos, fez com que a violência fosse reconhecida
como questão de saúde pública pela Organização Mundial de Saúde. Não obstante, as formas
de intervir e a própria questão da notificação dos casos constituem-se em polêmicas que vem
atrasando a estruturação das redes de atendimento. O conhecimento e a adesão aos artigos do
ECA ocorrem de forma extremamente desigual ao longo do território brasileiro.
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Todas essas questões resultam numa escassez de dados sobre a incidência real da
violência doméstica, além do que é possível inferir que a maioria das estimativas reflete
apenas os casos mais visíveis ou graves de violência familiar.
Em nosso país, o texto legal é claro. De acordo com o artigo 227 da Constituição
Federal (1988) quem se cala diante do sofrimento de uma criança está descumprindo a lei,
pois:
É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes á vida, á saúde, á educação, ao esporte, ao lazer, á profissionalização, á cultura, á dignidade, ao respeito, á liberdade e á convivência familiar e comunitária.
Neste cenário, não é difícil perceber a importância do papel atribuído à escola em
identificar as crianças que sofrem ou testemunham violência dentro de suas casas. O
reconhecimento pressupõe a notificação aos órgãos de proteção, bem como o apoio à
intervenção junto da família abusiva. A identificação dos casos e a notificação ganham
importância fundamental se olharmos para as conseqüências da violência sofrida em casa
sobre o desenvolvimento da criança e seus efeitos sobre o comportamento do adulto que essa
criança virá a ser. O desempenho escolar, o relacionamento com outras crianças, o interesse e
a participação dos pais na escola podem ser indicadores da violência sofrida em casa,
tornando a escola um local privilegiado para sua abordagem. Entretanto, não é o que tem
ocorrido. 5
Ao contrário, abordagem prévia realizada junto aos serviços de proteção à infância no
município onde este estudo se realizou, demonstra que no período de 2001 a 2004
pouquíssimas6 notificações chegaram ao Disque-Criança7 vindas de escolas e referindo-se a
alunos que pudessem estar sofrendo violência em casa. Os dados obtidos através do serviço
5 Entre os trabalhos que discutiram os desafios da intervenção, os serviços estudados referiam-se preferencialmente á serviços de saúde ou á serviços comunitários de assistência social. Mesmo tocando no ponto da intersetorialidade, repetidamente apontando para a integração de agências, nenhuma referência ao papel da escola foi identificada.
6 No período de 2001 a 2002 nenhuma notificação, entre 2002 e 2004 apenas 04 notificações, de casos gravíssimos. 7 Serviço municipal ligado ao Centro de Referência da Criança e do Adolescente, com funcionamento ininterrupto (24 horas), que recebe notificações sobre crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social através de ligação gratuita ao 1407. A notificação pode ser anônima. Após o recebimento da ligação e avaliação inicial do risco, um agente de ação comunitária treinado realiza a visita domiciliar.
11
municipal Disque-Criança demonstram que as notificações vindas da escola decorrem de uma
preocupação oposta àquela de proteger as crianças: referem-se à “comportamento irregular” ,
como se a agressividade, a timidez extrema, os problemas com desempenho fossem
problemas da criança e não resultado de sua interação com um contexto adverso, no qual a
violência doméstica pode estar presente gerando conseqüências negativas ao seu
desenvolvimento. Semelhante situação se observou em se tratando dos três Conselhos
Tutelares em funcionamento na cidade.
Este estudo investigou aspectos do complexo fenômeno da violência doméstica que
atinge crianças e adolescentes, sobretudo sua manifestação dentro da escola a partir de seus
indicadores e o silenciamento dos professores em relação a sua ocorrência. Por que a escola
silencia diante da violência doméstica que atinge seus alunos?8
O problema de pesquisa apresentado traz conceitos que merecem discussão
aprofundada e cuidadosa. Desta forma, também constituem-se como objetivos deste trabalho
apresentar possibilidades de discuti-los.
Em primeiro lugar emergem violência e infância. Desde já é preciso informar que
pretendemos compreendê-los de uma perspectiva histórico-crítica: lançar um olhar crítico à
história, compreender como o conceito de infância evoluiu e como infância e violência
sempre andaram juntas. A imagem de que a criança precisa ser corrigida, educada, moldada
foi tão fortemente construída que pode parecer normal lançar mão de estratégias violentas em
nome de sua educação, fazendo valer o equívoco “os fins justificam os meios”. Estamos
estendendo a infância como construção social e histórica e, portanto, como fenômeno que não
é único, nem universal. Isso implica, de certa forma, buscar a relação entre o sócio-histórico e
osubjetivo. Tais considerações nos levam a refletir que as concepções ideológicas de infância
foram construídas a partir da interação de sujeitos com a cultura, em determinados momentos
históricos. Em relação à violência, estaremos buscando essa mesma compreensão.
Olhar para história dessa perspectiva deve nos auxiliar a ampliar nosso entendimento –
já que estamos nos perguntando porque os educadores têm silenciado sobre a violência que
atinge seus alunos – sobre a escola que temos hoje no Brasil. Isso implica também na
compreensão de aspectos peculiares da sociedade brasileira.
Justamente devido às múltiplas faces que podem ser reconhecidas na violência
doméstica praticada contra crianças e adolescentes, é que pretendemos originar aqui um
8 Conforme referimos, existem diferenças substanciais entre a realidade encontrada em diferentes municípios. De qualquer forma, guardadas as diferenças, podemos dizer que em geral, a escola se manifesta apenas em casos muitos graves.
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discurso essencialmente polifônico, que permita para olhar para ela em sua complexidade.
Para tanto vamos integrar o conhecimento produzido sob a referência de perspectivas teóricas
diversas.
Além da interlocução com conhecimento produzido sob diferentes quadros teóricos,
nossa crença na complexidade de nosso objeto de estudo e nosso desejo de polifonia nos
levam a recorrer à arte (música) e à literatura.
Ao fazer isso estamos, por um lado, assumindo que o conhecimento não se constrói
apenas no contexto acadêmico-científico. De outro lado, estaremos tentando identificar nos
textos de música e literatura, nuances que podem escapar ao cientista: talvez o olhar do
artista/escritor, por gozar da invejável licença poética, possa trazer elementos importantes
para a contextualização dessa complexa realidade. Fragmentos de peças de música (a forma
arte que será mais evocada neste trabalho) e literatura serão evocados aqui e ali, em citações
para abrir ou fechar capítulos ou no meio do texto, para auxiliar em algumas reflexões.
A arte deve contribuir para contextualizar a violência numa perspectiva cotidiana,
auxiliando-nos, também a refletir sobre a difícil construção da ponte entre teoria e prática.
Ao escolher a arte como auxiliar no reconhecimento da realidade da violência
doméstica, estamos assumindo que a compreensão de conteúdos complexos depende tanto da
subjetividade quanto da objetividade. Isso marca também uma posição em relação à ciência e
à produção do conhecimento.
Falar de violência ou das condições de vida do povo brasileiro é discutir uma
realidade de desencantamento: desencantamento provocado pela racionalidade do capital
que destruindo a relação direta entre os indivíduos, reduz o homem à passividade e à
condição de “coisa” (MATOS, 1993). A mesma teoria crítica que já citamos propõe o
reencantamento do mundo pela imaginação, em particular a imaginação na arte. Serão
apenas breves recortes: que nos ajudem a ampliar nossa compreensão da realidade e a
reencontrar a beleza.
Especificamente em relação à música, forma extremamente popularizada e popular
de arte, vamos fazer um esforço para não levar em conta o caráter de fast food dado a ela
pela lógica de mercado, que sob um certo ângulo poderia até desqualificá-la como arte.
Aqui, e no mundo, é o poder econômico que decide qual música está tocando nas emissoras
de rádio ou vai para a trilha de filmes e novelas. Sendo assim, o poder econômico, que vem
transformando tudo em produto/demanda para o mercado, desbanca a arte. Mesmo quando
13
estivermos nos remetendo a alguma peça que se enquadre nessa triste perspectiva, vamos
buscar a beleza que pode emergir mesmo em tristes realidades.
Finalmente, resta-nos esclarecer que estudar parte de um fenômeno complexo, numa
perspectiva da complexidade não comportaria outro tipo de abordagem metodológica que não
a qualitativa. Assim, nos propusemos a ouvir os professores e procurar compreendê-los
através da Análise do Discurso (AD), conforme pressupostos teóricos de Michel Pêcheux.
Nenhuma opção metodológica poderia ser mais complexa do que aquela que propõe
juntar Lingüística (especificamente a Semântica), Marxismo (História) e Psicanálise
(Inconsciente) para procurar, na fala ou no silenciamento dos professores, o que ainda não
está dito, sentidos ainda não colocados e a compreensão das condições de produção desse
discurso.
Orlandi (1999) nos diz que, nesta perspectiva, a AD “estabelece um objeto linguagem
diferente daquele instaurado pela lingüística tradicional, por que procura tratar dos
processos de constituição do fenômeno linguístico e não meramente de seu produto” (p. 17).
Através do discurso busca-se a constatação do modo social de produção da linguagem
e da produção dos sentidos, ou seja, os processos constitutivos da linguagem são entendidos
em sua dimensão histórico-social.
Desnecessário dizer que ao escolher a AD para ouvir os professores sobre a violência,
não poderíamos tomá-la apenas como instrumento, já que não há sentido em separar teoria e
método. Assim, a escolha da AD implicou num inevitável mergulho em seu universo teórico.
A posição teórica sugerida a partir dos pressupostos de Pecheux faz emergir vários pontos de
conflito com a psicologia: a questão do assujeitamento, da linguagem como não-intencional
(pensar um “sujeito à linguagem” e não um “sujeito da linguagem”) e todas as implicações de
fazer pesquisa partindo de uma perspectiva materialista emergem como os nós centrais.
Estaremos insistentemente buscando no discurso dos professores, ao mesmo tempo, as
condições de produção desse discurso, o contexto histórico, social e as ideologias que
permeiam esse dizer, como também as questões subjetivas.
1.2 Retomando o problema de pesquisa
Quando uma criança apresenta dificuldades na escola isso pode ter muitos
significados. Embora muito freqüentemente o “problema de comportamento”, a
agressividade, a timidez, os problemas de aprendizagem e a queda no rendimento escolar
possam ser entendidos isoladamente como “problema da criança” é importante pensar que
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essa criança-aluno é uma face desse sujeito que além de estar na escola, está também na
família, a qual é parte de uma comunidade, que se inscreve num contexto de bairro, cidade e
assim por diante. Na escola, essa criança traz as marcas de outros contextos, que embora
estejam extramuros, se fazem presentes de muitas formas dentro da escola.
A partir de dados obtidos nos Conselhos Tutelares e no serviço municipal Disque
Criança de um município do interior do estado de São Paulo onde se realizou este estudo, foi
possível identificar que a escola se mostra silenciosa quanto à violência praticada contra suas
crianças e adolescentes, dentro da família. Mensalmente os referidos serviços recebem
notificações sobre situações de risco envolvendo crianças e adolescentes: situação de rua,
exploração do trabalho infanto-juvenil, prostituição infanto-juvenil, violência doméstica, entre
outras. Para ambos os serviços, as notificações podem ser anônimas no caso de cidadãos. No
que se refere às organizações (serviços de saúde e educação, organizações governamentais e
não governamentais) espera-se, conforme o novo discurso que se origina a partir do Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA) que o denunciante se identifique. A despeito de
campanhas e treinamentos realizados tanto pelos Conselheiros Tutelares, quanto pelos
técnicos do serviço Disque-Criança, as notificações sobre casos de violência doméstica são
raramente realizadas por hospitais e escolas. No caso específico das escolas o que se observa
é que a escola identifica "crianças problemáticas" (desempenho escolar baixo e agressividade,
principalmente) e notifica aos órgãos competentes para providências, que em geral redundam
em responsabilizar a família que "não dá conta da criança".
Por que a escola se mostra silenciosa quanto aos casos de violência doméstica contra
suas crianças e adolescentes ?
O que está por trás desse silenciamento dos professores?
Como os professores significam a violência doméstica?
O caráter privado do fenômeno afeta seu modo de agir?
A partir de suas experiências como educadores, seja na escola ou em suas casas,
utilizam e/ou valorizam qualquer forma de violência como estratégia de educação válida?
Ao realizar uma pesquisa partindo do silenciamento da escola sobre a violência
doméstica sofrida por seus alunos, num município do interior do Estado, procuramos focalizar
as condições de produção do discurso dos professores sobre a relação escola-família9 e sobre
as possibilidades de interfaces entre essas dimensões da vida da criança.
9que passa necessariamente pela questão da violência doméstica e do papel do professor e da escola na identificação e notificação de casos; além do reconhecimento do risco ao desenvolvimento implícito em situações contínuas de violência no ambiente familiar.
15
Todas essas questões podem quase soar como hipóteses e na verdade, acabou
tornando-se um grande desafio não apresentá-las dessa forma e não assumi-las como tal ao
colher e analisar os depoimentos.
Tudo que emerge da leitura dos trabalhos recuperados e na discussão das questões
teóricas e metodológicas, pode emergir como evidência. Os dados que se repetem na revisão
de literatura, por exemplo, não cessam de recolocar o que está posto.
Para nós, o grande desafio presente todo o tempo foi evitar os efeitos de naturalização
e evidências e pensar, para o discurso dos professores: onde essas evidências se ancoram,
realizando um esforço para entender a língua na história, as condições de produção desse
dizer ou do silenciamento - do não dizer.
Além disso, conforme já colocamos, nos interessa ampliar a compreensão sobre a
relação entre as variáveis do contexto sócio-histórico e as variáveis do sujeito,
especificamente em relação à violência doméstica e ao silêncio dos professores/educadores
sobre isso. Podemos dizer, então, que parte do nosso problema refere-se à relação entre o
contexto social e histórico e o sujeito: como seria possível pensar essa fronteira entre o
“dentro” e o “fora”? Como “saem” e como “entram” as coisas? Que trocas são essas que
fazemos com o entorno? É possível falar em trocas?
1.3 Definindo os objetivos
Objetivo Geral
Compreender, a partir do discurso de professores, por que a escola silencia diante da
violência doméstica praticada contra seus alunos (crianças), através de abordagem feita em
03 escolas em município do interior do estado de São Paulo.
Objetivos Específicos
Identificar as condições de produção do discurso dos professores: o entorno imediato, o
contexto histórico ampliado, a ideologia e as influências sócio-culturais;
16
Discutir a relação entre as influências do contexto em interação com esses sujeitos
específicos, neste ambiente específico que é a escola e o silêncio em relação á violência
doméstica.
Diante da complexidade do objeto, da complexidade teórico-metodológica e da
presença insistente de temas transversais diversos e igualmente complexos, torna-se
necessário uma parada inicial para abordarmos modelos, conceitos e o prisma sob o qual
estaremos olhando para tudo isso.
Em primeiro lugar, no Capítulo II vamos apresentar algumas questões teórico-
metodológicas que deverão permear todo o desenvolvimento do trabalho, juntamente com
alguns conceitos essenciais que passam pela história da infância e da educação, pela realidade
brasileira, pensada a partir do ECA, pelas questões conceituais e caracterização da VIPD e
pelo olhar que estamos nos propondo a lançar sobre desenvolvimento humano e sobre a
relação sujeito-contexto.
Em seguida, no Capítulo III vamos abordar a violência. Entendendo que ao abordar os
aspectos ligados à VIPD antes de abordar a violência em seu caráter mais geral, fizemos um
caminho que partir do particular, vamos apresentar alguns aspectos teóricos sobre questões do
sujeito e do contexto envolvendo a violência, também pensando-a como um traço humano.
O Capítulo IV propõe uma parada para retomarmos as questões teóricas específicas
ligadas à AD e finalmente, antes de apresentar no Capítulo VI nossa leitura e interpretação
sobre o que dizem os professores a respeito da violência doméstica sofrida por seus alunos,
incluímos um capítulo que retoma o percurso metodológico e descreve a construção do
dispositivo de análise.
17
Difícil conjugar a vida, separar cicatriz e ferida Engolir o comprimido do tempo, que alguém nos enfiou goela adentro
Haja deus pra tanto mistério, filhos teus histéricos
Dão voltas pelo mundo redondo, pronto, pra nos confundir
E nós, bando de tantos tontos, rodando aos trancos por aí
Haja teto pra tanto desabrigo
Haja palavra pro que eu não digo
Haja instinto e haja saída
Pra tanto labirinto.
HAJA (Christian Oyens/Zélia Duncan, 1998)10
10 extraída do álbum “Acesso” (1998), de Zélia Duncan
18
II. Transitando pelo complexo “TEORIA-MÉTODO”: Teorias, modelos e conceitos
Como já dissemos, ao estudar a violência doméstica e o silenciamento dos
professores, procuramos integrar conhecimento produzido sob perspectivas teóricas diversas.
O que em nenhum momento significa que não pretendemos marcar o lugar de onde olhamos. Isso certamente exige uma tomada clara de posição em relação ao que é da ordem dos
conceitos: em termos teóricos e metodológicos será necessário dizer de onde olhamos para a
violência, infância, saúde, desenvolvimento humano. Ao assumir que são muitos os possíveis
olhares sobre um objeto, torna-se também necessário dizer qual é nosso olhar sobre a ciência
e a produção do conhecimento.
A escolha da Análise do Discurso (AD) marca uma posição que se coloca criticamente
em relação à forma tradicional de pensar ciência.
Além disso, ao utilizar um método que nasce a partir de pressupostos teóricos
moldados no entremeio entre Lingüística, Psicanálise e, sobretudo Marxismo, deparamo-nos
com inúmeras contradições para um trabalho que se produz a partir da Psicologia.
As implicações de penetrarmos nesse complexo cenário teórico-metodológico,
produzido no entremeio de três disciplinas não menos complexas em seus próprios campos,
nos levam a uma complexidade que aumenta a medida em que essas três disciplinas tão
distintas, com trajetórias e objetos tão diversos, não cessam de produzir interfaces.
Nesse sentido, e considerando que a escolha da AD nos coloca numa perspectiva
materialista de ciência, inicialmente colocamos a necessidade de abrir mão da dicotomia, da
lógica da exclusão para buscar as relações entre o sócio-histórico e o subjetivo.
2.1 Complexidade: Buscando a relação entre o sócio-histórico e o subjetivo O complexo fenômeno que pretendemos estudar implica, para nós, na busca de
complementaridade entre perspectivas teóricas diversas, tarefa difícil diante da necessidade
colocada pela ciência tradicional de compatibilidade entre perspectivas discutidas num
trabalho. Mais do que compatibilidade, nossa busca refere-se à complementaridade: como o
conhecimento gerado a partir de referenciais teóricos distintos pode melhorar a compreensão
sobre determinado objeto.
Se o que perseguimos é a compreensão da relação imbricada entre as variáveis do
contexto sócio-histórico e as variáveis do sujeito, especificamente em relação à violência
19
interpessoal doméstica e ao silêncio dos professores/educadores, para considerá-las neste
estudo estaremos integrando contribuições de teorias que nos ajudem a entender o contexto
social e histórico, o sujeito e inter relação entre ambos.
Ao tomar a Análise do Discurso (AD) a partir dos pressupostos teóricos de Michel
Pêcheux para ouvir os professores, estamos assumindo uma posição materialista que à
primeira vista pode parecer incompatível com a noção de sujeito tradicionalmente trabalhada
pela Psicologia.
Na verdade, aceitar o assujeitamento como ponto teórico-metodológico central,
compreendê-lo como foi pensado por Pêcheux, a partir do marxismo de Althusser e integrar
essa questão à Psicologia tornou-se um complexo desafio a ser enfrentado neste trabalho.
A constante referência de Pêcheux (1997) ao marxismo de Althusser coloca a questão
filosófica ligada ao materialismo dialético: é necessário romper com a categoria ideológica do
sujeito como origem, essência e causa, responsável pelas determinações do objeto exterior.
Não existe um sujeito absoluto. Isso, contudo, não significa aceitar que o sujeito é um
receptáculo passivo de determinações sociais e históricas.
Partindo da teoria sócio-histórica de L. S. Vygotsky (1896- 1934) - uma teoria do
desenvolvimento cujos conceitos são notadamente influenciados pelas idéias marxistas, já que
todo o paradigma traz em si as marcas de suas origens11 - partimos de um ponto materialista
segundo o qual é impossível pensar em ‘organismo’: o sujeito é uma construção histórico e
social e, portanto, simbólico. Para Vygotsky o desenvolvimento psicológico é um curso de
apropriação de formas maduras de atividade. O sujeito constitui suas formas de ação e
consciência nas relações sociais (GÓES, 1991).
Assim, o homem nasce mergulhado no social, no cultural, no simbólico – cercado por
outros homens. O processo de constituição da identidade se dá através do outro. Os fatores
exógenos (meio social) têm papel formador. Vygotsky considera o intelectual como
construção cultural: o modo de pensar, agir não são, por assim dizer, categoria naturais ou
inatas. Ao contrário, têm suas origens na relação com outro. Ainda assim, por ser uma teoria
genética, a perspectiva sócio-histórica permite considerar que esse sujeito determinado pelo
social e pelo histórico, marcado pela história e pela cultura, tem uma identidade biológica
própria, um núcleo estável.
11 O movimento da sociedade não é dirigido por forças sobrenaturais, mas os homens fazem a sua história. As mudanças históricas na sociedade geram mudanças na natureza do homem. O curso do desenvolvimento social é determinado pelas condições materiais da vida do homem.
20
A noção de “identidade biológica” pode parecer determinista demais, e reforçar o
sujeito concebido idealmente: um sujeito único e intencional. Porém, esse não é o único jeito
de pensar tal noção.
Tomando das idéias da Psicologia Cultural, que não nega a estabilidade - existe sim
uma essência, uma realidade essencial, estável - Bruner (1999) propõe que a "essência" está
distribuída e é afetada pela cultura numa perspectiva de interpenetração. Pensar a identidade -
self - dessa forma significa entendê-la como construção pessoal, realizada de dentro para fora
e ao mesmo tempo de fora para dentro, que se estabelece sim a partir de uma "porção estável",
do sujeito, mas também, simultaneamente, a partir das relações com o outro, com o mundo,
com a cultura: o si mesmo, nesta acepção, se torna dependente de um diálogo, projetado
tanto para o receptor do nosso discurso como para propósitos intrapsíquicos.
Abordando dessa forma a questão do conhecimento e sua dependência do contexto - o
transacionismo - o autor apresenta a Psicologia Cultural como uma alternativa ao positivismo,
como possibilidade de substituir o maniqueísmo tradicionalmente colocado pela ciência
tradicional - ou é do sujeito ou é da cultura, como posições que se excluem e se chocam - por
uma outra lógica: a da interpenetração. Assim, com muita tranqüilidade é possível assumir
que existe uma parcela importante do sujeito e este núcleo se inter relaciona, influencia e é
influenciado pelo histórico e pelo social. Nessa inter-relação a instabilidade também é parte
da realidade.
Para expandir a idéia de “identidade biológica” para além do determinismo, podemos
pensar num sujeito que carrega marcas do desenvolvimento filogenético e também
características/marcas que se definem a partir de sua relação com o contexto a que está
sujeito. A idéia de contexto ou entorno pode remeter ao histórico, social, cultural, econômico
e também ao entorno mais próximo – comunidade de origem, família, hábitos, gostos. Isso
nos define um sujeito que, mergulhado e determinado por suas condições materiais de vida,
identifica-se com algumas evidências, é capturado por certos sentidos naturalizados e não por
outros.
Nossa opção teórico-metodológica nos leva a abrir mão do conceito de “indivíduo”.
Estamos aqui compreendendo o sujeito como elemento de um complexo de relações. Se a
condição de ser sujeito é, para a AD, o assujeitamento, é preciso deixar claro que
assujeitamento não é igual à passividade. Estamos falando de um homem que existe em
relação à língua e à história, entendendo que a produção dos sentidos se faz no jogo que
coloca o sujeito em relação à, ao lado da língua e da história. Não existe um sentido
21
estabilizado, dado a priori, tampouco a preponderância do sujeito no jogo homem-história-
língua.
Esse sujeito – igual quanto a determinadas condições materiais de vida as quais ele e
seu grupo estão sujeitos é, ao mesmo tempo, diferente quanto à forma como reage e se
relaciona com o contexto. A idéia de um sujeito igual e diferente, assujeitado e ativo nos remete a uma posição
em ciência que procura alternativas para a dicotomia tradicional do ou. Nessa perspectiva,
chama-nos atenção a teoria da complexidade uma vez que os conceitos ligados a ela refletem
uma nova e importante forma de pensar ciência , conforme propõem Morin e Le Moigne
(2000).
Dentro da teoria da complexidade inscreve-se o paradigma da transdisciplinaridade
(TD), que nos interessa por propor um novo olhar para a produção do conhecimento e,
conseqüentemente, a construção de novas estratégias para a educação.
A TD propõe o reconhecimento da interdependência de todos os domínios da
realidade. Diante da impossibilidade de retomar o todo, ela busca reconhecer a
interdependência sem negar as especificidades dos diferentes campos do saber. Ao reconhecer
a necessária integração entre Arte, Filosofia, Ciência e Religião, a TD propõe um trânsito entre
esses campos, que deve resultar numa síntese que considere as diversas dimensões do ser e da
realidade.
Os pilares da TD são complexidade (a realidade é complexa e não pode ser dividida em
unidades mais simples para ser compreendida); existência de diferentes de níveis de realidade
e a lógica do terceiro incluído (implica em substituir o “ou” pelo “e”).
A lógica da exclusão – o “ou” como organizador do pensamento, nunca o “e” - traz
graves conseqüências para o desenvolvimento sustentável, uma vez que sujeito e objeto são
dicotomizados e não tomados como um todo integrado.
Morin (2000) remete-se a Rabelais12 para nos lembrar que para que a ciência moderna
pudesse se desenvolver era preciso o princípio fundamental da disjunção absoluta entre o
julgamento de valor e o problema do dever moral:
12 “ Ciência sem consciência é somente a ruína da alma”
22
Em outras palavras, o conhecimento científico se coloca então de maneira absolutamente necessária como conhecimento amoral: ele implica numa disjunção entre ciência e consciência no sentido moral do termo. Mas a essa disjunção se acrescenta uma segunda, formulada de maneira exemplar por René Descartes. Com efeito, Descartes, ao propor o problema do conhecimento, determina dois campos de conhecimento totalmente separados, totalmente distintos. De um lado, o problema do sujeito, do ego cogitans, do homem que por assim dizer reflete sobre si mesmo, e esse problema vai ser, deve ser aquele da filosofia. De outro lado, o problema daquilo que ele chama de res extensa, quer dizer, dos objetos que se encontram num espaço, e o universo da extensão do espaço é aquele oferecido ao conhecimento científico (p. 27).
O autor nos coloca que o paradigma cartesiano, que separa sujeito e objeto em esferas
próprias (de um lado a filosofia e a pesquisa reflexiva, de outro a ciência e a pesquisa
objetiva), cria uma dissociação que atravessa o universo de um extremo ao outro:
sujeito/objeto; alma/corpo; espírito/matéria; qualidade/quantidade; finalidade/causalidade;
sentimento/razão; liberdade/determinismo; existência/essência.
A lógica da disjunção permeia tanto a produção do conhecimento, a ciência por assim
dizer, como todas as supostas formas de acesso ao conhecimento, incluindo-se aqui a
educação.
Infelizmente, uma prática pedagógica humanizadora e integral está muito distante do
que se observa no cotidiano da maioria das escolas e dos lares, em qualquer parte do mundo.
Aceitamos o desafio de Morin e tentaremos, então, partir da premissa de que a
realidade é complexa e não pode ser fragmentada em unidades mais simples para ser
compreendida. Aceitar a complexidade para nós é tecer uma interlocução entre perspectivas
teóricas diversas, procurando integrar conhecimentos que podem, a primeira vista, parecer
incompatíveis, para essa realidade que queremos estudar.
Ao usar a arte, como forma de contextualizar algumas reflexões, estamos também
abrindo mão de uma posição tradicional da ciência em desprezar a subjetividade e a emoção.
O autor nos diz que todo o conhecimento está, em algum grau, ameaçado pelo erro e
pela ilusão, pois nossas percepções constituem-se em traduções e reconstruções cerebrais
resultantes da codificação, pelos sentidos, de estímulos captados:
23
O conhecimento, sob forma de palavra, de idéia, de teoria é o fruto de uma tradução/reconstrução por meio da linguagem e do pensamento, e por conseguinte, está sujeito ao erro. Este conhecimento, ao mesmo tempo tradução e reconstrução, comporta a interpretação, o que introduz o risco do erro na subjetividade do conhecedor, de sua visão de mundo e de seus princípios de conhecimento. A projeção de nossos desejos ou de nossos medos e as perturbações mentais trazidas por nossas emoções multiplicam os riscos de erro (MORIN, 2000).
Concordamos com o autor quando discute, entretanto, que não é recalcando a
afetividade que chegamos a eliminar o risco de erro. Na verdade, a idéia de tradução,
reconstrução ou interpretação não nos levam a noção de erro, mas àquela que sempre vai nos
remeter à instabilidade de tudo que ocorre no plano do simbólico, ou aos sempre possíveis
deslocamentos de sentido, que dependem tanto do sujeito quanto do contexto.
Se a afetividade pode, nas palavras de Morin, “asfixiar o conhecimento, pode também
fortalecê-lo”. Ele nos chama a atenção para estreita relação entre inteligência e afetividade:
A faculdade de raciocinar pode ser diminuída, ou mesmo destruída, pelo déficit de emoção; o enfraquecimento da capacidade de reagir emocionalmente pode mesmo estar na raiz de comportamentos irracionais. Portanto, não há um estágio superior da razão dominante da emoção, mas um eixo intelecto-afeto e, de certa maneira, a capacidade de emoções é indispensável ao estabelecimento de comportamentos racionais.13
Razão e emoção é uma outra dicotomia da qual queremos abrir mão, por entender que
são domínios interdependentes.
Tendo colocado algumas questões centrais que devem guiar a leitura, é necessário
informar que, em relação ao método proposto pela AD, faremos ainda outras incursões sobre s
questões teóricas, num capítulo reservado especialmente para isso.
Vamos agora passar por uma breve retomada da história – infância e educação, que
deve nos auxiliar a pensar as relações entre infância, educação e violência.
2.2 Infância, educação e violência: o que nos diz a história
Estudar a história da infância é tarefa que depende da recuperação de dados nem
sempre disponíveis, de fontes limitadas e fragmentárias. As dificuldades de se chegar a uma
visão de conjunto são inumeráveis.
13 ibid. p. 20-21.
24
A busca pela história da infância deve, então, considerar, como em qualquer estudo
histórico, que o passado não está organizado e pronto, pois não existe um “real” esperando
para ser desvelado: a história é uma construção e depende dos olhares e das motivações de
quem a escreveu. Além disso, a história oficial é sempre e inegavelmente a história dos
vencedores. Sempre existirá uma história nas entrelinhas, esperando para ser melhor contada,
de outros pontos de vista. Assim, as diferentes versões dos autores que estudam ou estudaram
a história da infância trazem narrativas que variam de acordo se trate deste ou daquele lugar
social, gerando diferentes paradigmas.
Uma das dificuldades mais evidentes desta nossa tentativa de resgatar um pouco da
história, refere-se ao fato de que a história das crianças faz parte da história dos excluídos, da
vida no cotidiano, dos anônimos, dos sem rosto. Os historiadores sempre estiveram muito
mais preocupados com questões políticas e militares, intrigas e rivalidades entre poderosos,
tendo prestado pouquíssima atenção à infância, como à história da vida privada, em geral. A
maior preocupação tem girado em torno da história que se torna pública, em detrimento do
que se passa e reproduz ao nível das micro relações, das relações interpessoais, na família e
nas instituições. Ignora-se, infelizmente, que a grande história se constrói a partir das relações
interpessoais e que a história da infância, nessa perspectiva, adquire importância fundamental
para o estudo da sociedade humana.
Como vimos, a compreensão da infância como valor é recente, e diversos estudos
históricos nos mostram que práticas e atitudes em relação a ela refletiram, durante séculos,
uma visão pessimista e negativa. Tal idéia nos é apresentada pelos autores e, de fato, ao olhar
para os dados sobre a história da infância, não é difícil chegar a essa compreensão.
Dados históricos demonstram que é só a partir do século XVIII que as crianças passam
a ser consideradas como importantes de alguma maneira: na Idade Moderna são focalizadas
nas teorias do conhecimento e a partir daí algumas mudanças começam a ocorrer na visão
negativa que imperava desde a Antiguidade, como veremos a seguir.
Azevedo (2001) nos diz que o século XX pode ser considerado o Século da Criança.
Na segunda metade começa a discussão dos direitos da criança cidadã, da criança como
sujeito e a tônica do discurso passa a ser a proteção. A realidade nos mostra, entretanto, que
essa imagem da criança, construída através de séculos da historia ocidental, não é facilmente
desconstruída e que, a mudança para melhor que se observa ao nível das idéias não se
identifica nas práticas e atitudes em relação à infância.
25
Nossa busca pela história da infância restringiu-se aos trabalhos de Ariés (1973, 1981)
e deMause (1974). Apresentaremos o que esses autores apontam sobre a história, práticas,
atitudes e concepções ideológicas da infância ao longo da história.
Sobre os autores estudados quase poderíamos dizer que, a despeito das semelhanças –
ou de em alguns momentos relatarem situações históricas parecidas – Ariés e deMause não
olham para a mesma história da infância, ainda que muitos resultados dos estudos de ambos
sejam coincidentes .
A obra de Ariés parte da preocupação em descrever uma história das mentalidades e
apresenta o relato da emergência do sentimento de infância, desde as sociedades medievais
até a sociedade industrial, descrevendo a história de uma infância genérica, usando
principalmente a iconografia. Sua abordagem é culturalista, ao contrário de deMause, cujo
universalismo de base psicanalítica aponta para motivações inconscientes como motor da
história.
Quando deMause busca um princípio psicogênico para explicar mudanças históricas, e
oferece uma compreensão psi para a evolução que ele observa nos cuidados dos pais para com
seus filhos, é como se o objeto – a história – mudasse.
Não vamos aqui nos deter nas questões teóricas, de base psicanalítica, que o autor
utiliza como explicação para o que encontra em sua busca pela história da infância. Interessa-
nos a recuperação histórica sobre as práticas de criação dos filhos e neste sentido o trabalha de
deMause e colabores é riquíssimo. A despeito das muitas críticas feitas ao seu trabalho, e aos
problemas presentes em sua construção de uma teoria psi da história, deMause acessou fontes
que lhe permitiram uma reconstrução importante de alguns períodos.
2.2.1 Philippe Ariés: Uma História das Mentalidades
O trabalho de Ariés como historiador reflete sua preocupação em descrever atitudes,
valores e práticas. Trabalhou com uma história social e cultural, com a formação de
consciência através das gerações de forma regressiva e comparativa.
Em seu livro “História Social da Criança e da Família” o autor apresenta suas duas
teses: (1) na velha sociedade tradicional a criança era mal vista; (2) a partir do século XVII
criança e família passam a ocupar um novo lugar, em conseqüência das transformações
sociais.
26
De acordo com o autor, nos séculos X e XI os homens não se detinham diante da
imagem da infância. Até o século XII a infância não era representada pela arte medieval, o
que se via eram crianças representadas como adultos em miniatura.
O autor descreve que na velha sociedade tradicional a passagem da infância para a
juventude ocorria de forma brusca:
[...] A criança, então, mal adquiria algum desembaraço físico, era logo misturada aos adultos, e partilhava de seus trabalhos e jogos. De criancinha pequena, ela se transformava imediatamente em homem jovem, sem passar pelas etapas da juventude [...] (p. 10).
A socialização da criança, a transmissão dos valores e conhecimentos, não era
assegurada nem controlada pela família pois a criança se afastava logo de seus pais e a
aprendizagem (educação) ocorria através da convivência com os adultos: “A criança
aprendia as coisas que devia saber ajudando os adultos a fazê-las” (p. 10).
O autor relata que a passagem da criança pela família e pela sociedade era muito breve
e insignificante para ser registrada ou tocar a sensibilidade: as famílias não choravam a perda
de uma criança, pois logo viria outra para substituí-la. Crianças muito pequenas não eram
sequer contadas, devido ao alto índice de mortalidade e ao grande número de nascimentos.
De acordo com o autor, a família antiga tinha por missão a conservação dos bens, a
prática de um ofício e a ajuda mútua num mundo em que homens e mulheres isolados não
poderiam sobreviver. A família não tinha uma função afetiva: “... o sentimento entre os
cônjuges, entre os pais e os filhos, não era necessário à existência nem ao equilíbrio das
famílias.” (p. 11).
A tese do autor é que as famílias conjugais se diluíam numa convivência ampliada
com vizinhos, amigos, amos e criados, crianças e velhos, mulheres e homens; identifica uma
“propensão das comunidades tradicionais aos encontros, visitas e festas” e salienta essa
característica como principal diferença entre as sociedades antigas e as industriais, atuais –
que reservam um novo lugar para a criança e a família, onde o privado assume peso
fundamental.
Ariés passa a relatar uma atenção diferenciada à infância, por um sentimento que
identificou como superficial, surgido a partir do século XVI o qual chamou de “paparicação”:
sentimento “reservado à criancinha em seus primeiros anos de vida, enquanto ela ainda era
uma coisinha engraçadinha.” (p. 10).
27
Relata a identificação de um outro sentimento contrário à paparicação, proveniente de
uma fonte exterior à família – os eclesiáticos, homens da lei e um grande número de
moralistas da época. Tal sentimento colocava as crianças como “criaturas frágeis de Deus”,
que deviam ser cuidadas e protegidas, além de disciplinadas.
Na escola medieval, todas as idades misturavam-se num mesmo auditório e nessa
época os mestres não eram responsáveis pela vida cotidiana de seus alunos.
A partir do fim do século XVII uma mudança, que o autor propõe que se olhe através
de duas abordagens distintas, alterou a situação da infância descrita até então.
Em primeiro lugar, a escola fez com que a criança deixasse de ser misturada aos
adultos e de aprender apenas através do contato com eles: “... a criança foi separada dos
adultos e mantida à distância numa espécie de quarentena (a escola, o colégio), antes de ser
solta no mundo” (p 11).
Ariés vê a escolarização – reflexo do grande movimento de moralização dos homens
que teve lugar neste período histórico – como um longo processo de enclausuramento, como
dos loucos, pobres e prostitutas. Para ele, é entre os moralistas e educadores do século XVII
que se observa a formação do sentimento da infância como inocente, o que coloca os adultos
como responsáveis por sua vida e educação. A idéia de moralização e a preocupação com a
moral exprimiam o apego à infância: era preciso ao mesmo tempo preservar e disciplinar.
Para isso crianças e adolescentes passaram a ser claramente separadas dos adultos.
Ariés observa que antes do século XV o estudante não estava submetido a uma
autoridade disciplinar. A partir de então os educadores passaram a ser responsabilizados pela
alma dos alunos e a tarefa de educar e instruir passou a ser organizada por duas idéias: (1) a já
conhecida noção de fraqueza da infância e (2) a responsabilidade moral do mestre, gerando
três características principais: a vigilância, a delação e ampla aplicação de castigos corporais.
A outra perspectiva trabalhada pelo autor é que a família tornou-se lugar de afeição
necessária entre os cônjuges e entre pais e filhos, passando a ser entendida e valorizada como
espaço privado.Ariès postula que a família da moderna sociedade industrial fez a criança mais
infeliz, restringindo sua convivência social.
Em contrapartida à situação de sociabilização da família e sua convivência festiva em
grupos maiores como se vira até o século XVII e XVIII, ocorreu uma polarização da vida
social no século XIX em torno da família e da profissão:
28
A família começou então a se organizar em torno da criança e lhe dar uma tal importância que a criança saiu de seu antigo anonimato, que se tornou impossível perdê-la ou substituí-la sem uma enorme dor... e se tornou necessário limitar seu número para melhor cuidar dela. (p. 12)
As duas teses apresentadas pelo autor culminam na seguinte conclusão: a criança antes
do século XVII era feliz, pois se misturava aos adultos; a partir da “invenção” da infância, os
laços de sociabilidade foram destruídos e as crianças privadas de liberdade e expostas a
castigos corporais severos, nesse novo lugar assumido pela família e pela criança, a partir do
fim do século XVII, com o surgimento da escola.
Até o século XVII, a iconografia revela que a vida se mostra em comunidade, vivida
em público, inclusive as intimidades. A antiga sociabilidade foi substituída pelo
individualismo de uma sociedade fechada em seus membros.
A escola, que sob a ótica de Ariès surge para atender aos filhos da burguesia
triunfante, com um regime cada vez mais rigoroso, nos séculos XVIII e XIX resultou no
internato. A família privou a liberdade da criança, infligindo chicotadas e as correções mais
humilhantes. Um amor obsessivo pelas crianças começaria a dominar a partir do século
XVIII, num mundo sagrado e privado.
2.2.2 A História da Infância Contada por deMause
Em seu extenso trabalho sobre a evolução da infância, deMause (1974) nos diz que “a
história da infância é um pesadelo do qual apenas recentemente começamos a despertar”.
Sua tese, contrária a de Ariès, é que as práticas de criação de filhos foram tornando-se
melhores, menos abusivas e mais empáticas ao longo do tempo: “quanto mais retornamos no
tempo, maior a probabilidade de encontramos pais pouco preparados para cuidar de seus
filhos”. O autor afirma que até o século XVIII a maior parte das crianças poderia ser
classificada como “maltratada”.
O trabalho de deMause e colaboradores contam uma longa e lamentável história de
abuso de crianças desde os tempos mais antigos até os dias presentes.
O autor coloca que, pelo fato de que os humanos apresentam um potencial
reprodutivo infinito, sempre nasceram mais bebês do que a sociedade pode cuidar.
Incontáveis mulheres achavam que tinham filhos demais, mas isso não chegou a ser suficiente
para o controle dos nascimentos: entre os ricos, as famílias estavam preocupadas com as
29
heranças, entre os pobres, os camponeses desejavam famílias grandes para garantir força de
trabalho e cuidadores em sua velhice.
Assim, mulheres que trabalhavam o dia todo nos campos cuidavam de crianças
pequenas como incumbência, usando quaisquer meios para discipliná-las e quietá-las.
Também não é novidade que crianças eram colocadas muito jovens para trabalhar, e no
trabalho eram freqüentemente tratadas como escravas.
O infanticídio e o abandono eram práticas comuns, desde a pré-história. Práticas
sacrificiais são encontradas por ele desde 7000 aC entre celtas, gauleses, escandinavos,
egípcios, fenícios e isralelitas; estando presentes também na Grécia e em Roma. DeMause
descreve o abandono como a prática mais antiga, presente entre os babilônios e muitas outras
nações. O envio de crianças à amas de leite - praticada nas classes privilegiadas - também é
entendido pelo autor como forma de abandono, identificada por ele na Bíblia, no código de
Hamurabi, na literatura greco-romana (mitologia, tragédia e comédia). Além disso, o autor
identifica práticas violentas, que envolvem abuso físico, sexual e psicológico.
A forma mais antiga de abandono de crianças é o direito de vendê-las; tal prática era
legal na Babilônia e deve ter sido bem comum em outras nações durante a Antiguidade.
Outras práticas: dar crianças para pagar dívidas, enviar para outras famílias para ser criadas:
crianças eram dadas para pagar serviços médicos e por uma série de outras razões (p 33).
Na Antiguidade, o assassinato de crianças pode ser considerado como ocorrência
diária: jogadas em rios, mortas de fome; aquelas que não eram perfeitas em forma e tamanho,
choravam muito ou pouco, ou eram reconhecidas como aquelas que não cresceriam bem,
eram mortas; bebês do sexo feminino também eram expostos ou mortos.
Até o século XVIII o tempo que os pais dispensavam ao cuidado dos filhos era
mínimo: ao nascer eram mandados às amas de leite, quando retornavam eram cuidados por
servos e por volta dos 7 anos eram mandados para lares estranhos para aprenderem as tarefas
domésticas, ou enviadas para a escola.
Sobre a Antiguidade e o início da Idade Média Lyman (1974) faz algumas
considerações sobre as dificuldades metodológicas que envolvem o acesso a tal período: (1)
pais, crianças e infância não são abordados diretamente pela história, aparecem apenas na
abordagem a outros tópicos; (2) existe pouca precisão sobre idade e também no emprego dos
termos “criança” e “infância”. Além disso, o autor sugere a necessidade de compreender o
contexto: eram séculos violentos, os pais também eram vítimas de cenas negras e eventos
brutalizantes. O mesmo autor nos fala que com o avanço do cristianismo a situação começa a
melhorar.
30
Como já vimos existem muitas semelhanças entre as duas obras, mas as importantes
diferenças se definem por abordagens opostas.
Ariés trabalha com informações obtidas no universo cotidiano para explicar as
transformações históricas decorrentes das relações sociais que se estabelecem nessa esfera.
Ele constrói uma história da vida privada, afirmando que na sociedade tradicional a infância
não era reconhecida enquanto tal. Ele também argumenta que a família moderna construiu e
assegurou à criança um lugar central no seio da família. Destaca uma perspectiva de
deterioração da situação da infância em função da diminuição da sociabilidade dessa nova
família, conforme já relatamos.
Podemos dizer que deMause, tal como Ariés, fala de uma infância não reconhecida
socialmente, a partir das diversas formas de violência contra a criança através dos séculos,
descritas minuciosa e dolorosamente em seu livro.
Os autores, além de diferirem quanto ao princípio explicativo das mudanças (cultural
X universal), diferem com relação a sua compreensão da história da criança e da família: para
Ariés a criança tradicional, nas sociedades antigas, era livre e feliz por misturar-se com muitas
classes e idades; uma especial condição de infância foi inventada no início do período
moderno, resultando num conceito tirânico de família que destruiu a amizade e a
sociabilidade, privando as crianças da liberdade. Tal tese é decorrente dos seguintes
argumentos: um sentimento de infância era impensável na Idade Média, sendo que a família
moderna restringiu a liberdade e aumentou a severidade das punições.
DeMause, ao contrário, entende que a criança tradicional não era livre e feliz tal como
pensava Ariés, uma vez que ela estava sujeita a diversas formas de violência plenamente
toleradas pela sociedade, tais como: infanticídio, abandono, fome, violência física, violência
sexual, trabalho infantil, entre outras. Relata que a situação das crianças foi melhorando
consideravelmente através dos séculos e ainda diz que ocorreu um decréscimo de castigos
corporais como práticas de educação, mas que outros castigos começaram a aparecer. Ele
demonstra que hoje os pais estão mais envolvidos com a educação dos filhos. Afirma que, se
hoje nos espantamos com o número de vítimas da violência doméstica, as cifras do passado
seriam muito maiores. O autor também não concorda com a tese de que a família moderna aumentou a
severidade das punições, pois ele demonstra ao longo do livro que todas essas formas de
violência anteriormente apontadas, muito paulatinamente foram sendo menos utilizadas.
31
Sobre a visão da história da infância e da família oferecida pelos dois autores é
necessário considerar, conforme sugere Poster (1979), que os modelos de estrutura de família
e as conseqüentes práticas de criação dos filhos não seguiram os mesmo padrões nas
diferentes classes sociais durante os mesmos períodos históricos. Assim, a prática de enviar os
filhos para amas de leite era comum entre as famílias aristocráticas dos séculos XVI e XVII e
não acontecia entre os camponeses, por exemplo.
Interessa-nos de forma geral perceber que mesmo partindo de perspectivas diferentes,
o trabalho dos autores registra a presença de concepções negativas de infância e relatam, com
maior ou menor freqüência, a presença de violência nas relações interpessoais adulto-criança
ao longo da história.
Interessa-nos também perceber que o nascimento da família burguesa, marca uma
importante mudança do ponto de vista da criação dos filhos.
Poster (1979) remete-se a Ariés para explicar a mudança que começa com a
emergência da burguesia e torna-se ponto de partida para o modelo atual de família nuclear:
Chegou um momento em que a classe média não pôde suportar mais a pressão da multidão ou o contato com a classe inferior. Ela apartou-se; retirou-se da vasta sociedade polimórfica para se organizar separadamente, num meio homogêneo, entre suas famílias, em lares planejados para a privacidade, em novos bairros mantidos livres de toda a contaminação da classe inferior (p. 184).
O autor propõe a compreensão de que a família moderna nasceu na Europa por volta
de 1750 e que a burguesia desenvolveu uma forma de família que contrastava com a da
aristocracia e do campezinato, diferente mesmo da organização que o mesmo grupo
experimentou antes do século XVIII. O autor defende que no início da Revolução Industrial a
classe trabalhadora tinha uma estrutura familiar que ao longo dos dois séculos seguintes foi se
tornando cada vez mais semelhante à da burguesia, e diz que hoje a família apresenta uma
mistura desses elementos históricos. Defende a idéia de que seria um equívoco importante
tomar a família burguesa – estrutura familiar dominante na sociedade capitalista avançada do
século XX – como norma para todas as outras estruturas familiares.
De acordo com o autor a família burguesa está localizada em áreas urbanas, com um
padrão demográfico que progrediu gradualmente para baixa fertilidade e baixa mortalidade,
sendo que o planejamento familiar começou neste grupo. Além disso, ganha peso a questão da
privacidade, conforme Ariés destaca em seu trabalho.
32
Sobre as crianças, o autor mostra que os filhos foram reavaliados pela burguesia,
tornando-se muito importantes para os pais:
Um novo grau de intimidade e profundidade emocional caracterizou as relações entre os pais e os filhos dessa classe. Uma forma nova de amor maternal foi considerada natural nas mulheres, que tinham não só de zelar pela sobrevivência dos filhos, mas treiná-los para um lugar respeitável na sociedade[...] eram encorajadas a criar um vínculo entre elas e os filhos, tão profundo que a vida interior da criança pudesse ser talhada para a perfeição.14
Nesse contexto a família tornou-se, ao contrário do que acontecia no regime antigo,
um microcosmo privado, um santuário em cujos recintos sagrados, estranho nenhum tinha o
direto de entrar. As relações internas dessa família estavam definitivamente fora da jurisdição
da sociedade.
Poster atribui essa nítida separação entre a autoridade externa e a família à separação
das atividades produtivas, em locais distintos do lar:
Em busca do lucro o burguês precisava dedicar todas as suas atenções aos assuntos econômicos. A ‘casa’ moderna dos primeiros tempos em que família e economia se fundiam num só local era inadequada nessa situação. Os homens tinham que sair dos seus lares e estabelecer locais separados para seus negócios (p. 188).
Isso fez com que, dentro das fronteiras claramente definidas da família, a autoridade
dos pais sobre os filhos fosse exclusiva: o poder dos pais sobre os filhos cresceu
consideravelmente e o que acontecia na família não era da conta de mais ninguém.
Esse deslocamento gradual da vida familiar para uma esfera cada vez mais restrita ao
domínio privado, que se mantém na família atual, é um ponto importante que retomaremos ao
longo da análise.
2.2.3 Educação e classe social
Azevedo (2001) nos mostra que é só na Idade Moderna que a criança passa a ser
focalizada nas Teorias do Conhecimento, sendo que no século XVIII desenvolve-se uma visão
mais otimista da natureza humana, como conseqüência, Rosseau passa a defender a idéia de
que a criança nasce naturalmente boa, sendo corrompida posteriormente pela sociedade.
14 ibid. p. 188
33
Considera a criança como possibilidade de erro que a educação poderia controlar. A autora
discute que a realidade desmente essa visão otimista que parece emergir. A criança ainda é
vista como a antítese da razão e como presa aos sentidos. Nesse período passa-se do teológico
ao epistemológico, mas a desconfiança em relação à criança continua: a criança é alguém em
quem não posso confiar, alguém que se não for controlada pode errar. Azevedo comenta que
aquela “emergência da infância” documentada por Ariés refere-se à infância burguesa:
crianças tratadas diferencialmente por um longo processo de escolarização. Para as crianças
pobres restava o trabalho infantil, exercido em condições brutais: crianças continuavam
misturadas aos adultos, cumprindo jornadas de trabalho extensas e pesadas.
De fato, se considerarmos brevemente a história da educação, vamos constatar que os
ideais de educação atingiram de forma diferenciada as classes sociais. É também a história da
educação que nos coloca a escola, desde muito cedo, como aparelho ideológico do estado, ao
lado de outras instituições muito fortes, como a família, por exemplo.
Alencar (2002) nos diz que a educação existe desde que o ser humano surgiu na face
da Terra, carregando consigo relações de poder e dominação :
Revelar ao outro a produção e a conservação do fogo, fundamental para a sobrevivência da espécie, era educação. Ensinar o manejo de um porrete para controlar uma mina d’água, expulsando o acesso de outros grupos a esse bem comum, e inaugurando a apropriação privada, também era educação. Dominadora e classista, mas educação. Por isso educação é cultura e ideologia e pode servir para aproximar e afastar pessoas e classes sociais. (p. 47)
Gadotti (2002) nos mostra que com a decadência do Império Romano e com as
invasões bárbaras a cultura antiga foi submetida ao crivo ideológico do cristianismo. Desta
forma, as escolas catequéticas conciliaram a fé cristã com as doutrinas greco-romanas.
Apenas as escolas monacais conservaram a tradição clássica, mas restringiam-se ao clero
(séculos I-VII DC).
Á partir do século IV, com a adoção por Constantino do cristianismo como religião
oficial do Império, o autor nos diz que pela primeira vez a escola se torna o aparelho
ideológico do estado.
É de alguns seguidores do cristianismo (São Paulo, São Jerônimo, São Gregório, São
Basílio, Santo Agostinho) que vem a criação e a difusão de duas vertentes na educação: uma
destinada ao povo (catequética, dogmática) e outra destinada ao clérigo (humanista,
34
filosófica), tendência que se manteve e reproduziu no ocidente, trazendo grande diferenciação
entre a educação destinada aos ricos e aquela destina aos pobres. De um lado o clero e a
nobreza, do outro os vassalos e os servos (período feudal). Assim, à classe trabalhadora que
começara a se formar com a transição da ordem feudal para a ordem capitalista, restava a
educação oral, transmitida de pai para filho, em casa: a cultura da luta pela sobrevivência.
Durante o período renascentista a educação continuou se caracterizando pelo elitismo,
destinada ao clero, aos nobres e à burguesia nascente. A preocupação com uma educação
formal, voltada para a criança, começa a aparecer no século XV, educação que ainda mistura
muito as funções da família e da escola. A idéia de uma educação individualizada, exercida ao
nível privado, se materializa na figura do preceptor: o professor que vai até a casa da criança e
acompanha sua formação.
Com a Reforma Protestante, a escola se transfere para o controle do Estado : uma
escola pública religiosa, ainda muito distante da idéia de escola pública, universal e gratuita.
Como reação da Igreja Católica à Reforma, foi criada a Companhia de Jesus (1554). A
educação jesuítica volta-se par a formação do homem burguês, privilegiando o dogma, a
tradição, uma educação mais científica e moral do que humanista.
Nos séculos XVI e XVII a educação passa a ser enfocada como fundamental. Gadotti
nos lembra que Locke fala da criança como um livro em branco, em cujas páginas o professor
pode escrever tudo que for necessário. O autor cita Comênio, que propõe um sistema
articulado de ensino, reconhecendo a educação como direito de todos. A educação das classes
populares e a democratização do ensino ainda não figuram como centrais, mas começa a luta
das camadas populares pelo acesso à escola. Começam a surgir ordens religiosas que se
dedicam à educação popular, mantendo a perspectiva de uma educação para a submissão,
tendo a religião como principal argumento.
Com a Revolução Francesa as idéias sobre universalização e democratização da
educação tornam-se norma jurídica.
Alencar (2002) retoma que é apenas a partir desse período que a educação passa a ser
considerada como direito universal, sendo que no período que se seguiu à revolução se
fortaleceu a concepção de que ler, escrever e contar é o melhor caminho para a cidadania. Até
o início do século XVIII apenas 10% da população européia era letrada, e educação passa a
ser sinônimo de civilização. O autor nos diz que a própria ascensão da burguesia e as relações
capitalistas de produção exigiam isso: educação como instrumento inicial da realização do
princípio de igualdade e dever do Estado.
35
Essas transformações permitem uma maior diferenciação entre as funções
educacionais da família – instituição que, como nos mostram os trabalhos de Ariés e Poster
ganha contornos que a coloca cada vez mais no domínio do privado – e da escola. A educação
postulada como direito de todos e dever do Estado coloca a escola como instituição pública.
É a partir daí que se solidifica a noção moderna de escola:
Seja como aparelho ideológico do Estado, para reproduzir as condições sociais de existência na sociedade de classes, seja como atendimento à pressão das massas trabalhadoras por informação e formação. Escola como espaço de contradições. Escola como serviço público, que o Estado tem a obrigação de oferecer, com gratuidade e qualidade.15
Como podemos perceber com a leitura dos estudos históricos sobre infância e
educação, a relação entre adultos e crianças ao longo da história naturaliza a violência no
contexto das relações interpessoais, seja em casa, seja na escola. A violência também está
presente nas relações entre classes sociais.
Impossível não considerar, já que estamos falando de educação, na família ou na
escola, a força e a autoridade dessas duas instituições que, mesmo pertencendo a ordens
distintas – privado X público – estão historicamente ligadas à promoção da violência e da
exclusão.
Influenciado pelos ideais marxistas, Basaglia (1985) em sua profunda avaliação das
instituições sociais, coloca escola e família ao lado do hospício, como instituições totais:
Família, escola, fábrica, universidade, hospital: instituições que repousam sobre uma nítida divisão de funções, através da divisão do trabalho (servo e senhor, professor e aluno, empregador e empregado, médico e doente, organizador e organizado). Isto significa que o que caracteriza as instituições é a nítida divisão entre os que têm o poder e os que não o têm. De onde se pode ainda deduzir que a subdivisão das funções traduz uma relação de opressão e de violência entre poder e não-poder, que se transforma em exclusão do segundo pelo primeiro.
Retomando Azevedo (2001), podemos considerar o século XX como o Século da
Criança. Na segunda metade começa a discussão dos direitos da criança cidadã, sujeito de
direitos e a tônica é a proteção. Entretanto, as conquistas representadas pelos documentos
jurídicos não têm se constituído em mudanças concretas nas práticas sociais.
15 ibid., p. 48
36
O que podemos perceber é que a norma jurídica se introduz como resposta às pressões
sociais. Contudo, transformar em discurso jurídico uma reivindicação social não garante
alterações profundas na estrutura social, em curto prazo. Retomaremos este ponto, importante
para a contraposição público X privado que deve permear nossa análise do discurso dos
professores. Por hora, interessa-nos a compreensão sobre a limitação do discurso jurídico, que
se por um lado responde a pressões e reivindicações de movimentos sociais, por outro pode se
mostrar incapaz de introduzir transformações. Devemos ter isso em foco ao olharmos para a
realidade brasileira.
2.3 Infância e política pública no Brasil: o novo paradigma trazido pelo ECA
No sinal fechado ele vende chiclete, capricha na flanela e se chama Pelé Pinta na janela, batalha algum trocado, aponta um canivete e até...
Dobra a Carioca, ô lerê, desce a Frei Caneca, ô laráSe manda pra Tijuca, sobe o Boréo Meio se maloca, agita numa boca, descola uma motuca, um papel
Sonha aquela mina, ô lerê, prancha parafina ô lara Dorme gente fina, acorda pinel
Zanza na sargeta, fatura uma besteira e tem as pernas tortas e se chama Mane Arromba uma porta, faz ligação direta, engata uma primeira e até...
Dobra a Carioca, ô lerê, desce a Frei Caneca, ô lará Se manda pra Tijuca, na contramão
Dança paralama, já era pára-choque e agora ele se chama Emerson, Sobe no passeio, ô lerê, pega no recreio ô lara
Não se liga em freio, nem direção No sinal fechado, ele transa chiclete
E se chama Pivete E pinta na janela
Capricha na flanela Descola uma Beretta
Batalha na sargeta E tem as pernas tortas...
PIVETE (Chico Buarque/ Francis Hime, 1977)16
Na canção “Pivete” a sensibilidade do artista captou a total ausência de direitos em
determinada parcela da população infanto-juvenil: um retrato da situação da infância,
mostrando o trajeto de crianças e adolescentes sobrevivendo da-na rua e a construção de uma
identidade violenta a partir disso. Desde que a canção foi escrita muitas coisas mudaram. Mas
será que a situação da infância no Brasil mudou?
16 Extraído do CD Chico Buarque (1977), de Chico Buarque
37
No período que se seguiu a década de 70, com o fim da ditadura militar, parcelas
consideráveis da população passaram a se organizar para discutir questões básicas como
saúde, educação e demais políticas sociais. Como vimos, nesse contexto, nasceu o Estatuto da
Criança e do Adolescente – ECA.
A lei nasceu como resultado de ampla participação popular, a partir de fóruns que se
realizaram nos Estados e Municípios, que reuniam cidadãos e representantes de movimentos e
instituições comprometidos com a infância e juventude. De forma geral, trata dos direitos dos
quais são sujeitos crianças e adolescentes, que devem ser cuidados pelas políticas públicas
com absoluta prioridade, levando-se em conta sua condição peculiar de pessoas em
desenvolvimento.
Muito se tem discutido sobre as conquistas que o ECA representa. O texto jurídico
contém regras novas, reorganiza as políticas sociais básicas, assistenciais e de proteção
especial. Além disso, a lei pretende redefinir claramente o papel do Estado, da sociedade e da
família na garantia integral dos direitos da criança e do adolescente. Partindo dessas
definições começa a ser cobrado da escola, como instituição pública, o dever de participar da
garantia aos direitos e à proteção especial daquelas crianças em situação de risco: é daqui que
começa a emergir a tensão público X privado.
Tem-se alardeado como uma das importantes contribuições do ECA a criação dos
Conselhos. A noção de decisões tomadas através de Conselhos paritários propõe o difícil
exercício democrático tanto na elaboração das políticas quanto em sua execução. A sociedade
civil passou a ter a possibilidade real e também o compromisso de participar na definição das
políticas públicas na área da infância e da juventude, através dos Conselhos Municipais
(CMDCAs), Estaduais e Federal dos Direitos da Criança e do Adolescente: são órgãos
paritários que contam com a representatividade da sociedade civil organizada na elaboração
das políticas, exigindo, por um lado, que a sociedade civil realmente se organize, e por outro,
que os governos saibam que não decidem mais sozinhos, dentro dos gabinetes, quais
programas, projetos e ações devem ser realizados com prioridade.
Outra forma de participação popular proposta pelo ECA são os Conselhos Tutelares
(CTs): a partir da eleição de membros da comunidade para fiscalizar a execução das políticas
e garantir o atendimento aos casos envolvendo crianças e adolescentes, passa-se a questionar
um poder/saber técnicos que residiam no Executivo, e até então não eram questionados.
Contudo, uma conseqüência da criação dos CTs que tem sido pouco discutida, diz respeito á
criação de uma instância pública com atribuições e poder para intervir nas famílias.
38
Essa forma “conselho” merece algumas considerações para começarmos a penetrar
nas evidentes contradições criadas ou mantidas pelo discurso jurídico, mesmo quando esse
contém importantes avanços, como é o caso do ECA.
Os “conselhos gestores” representam uma tendência que se instalou em várias áreas –
infância, educação, assistência social, cultura, saúde – a partir da constituição de 1988.
Gohn (2001) discute que essa forma de gestão participativa é importante por ser fruto
de demandas e pressões populares pela redemocratização. Os conselhos inserem-se na esfera
pública, vinculados ao Poder Executivo nos três níveis de governo, sendo em nível municipal
que suas ações se sedimentam e onde se instala seu caráter deliberativo. A autora nos diz que,
em tese, os conselhos são dotados de potencial de transformação política, por permitirem
expressão, representação e participação. Eles representam uma nova esfera social-pública ou
pública não-estatal.Sua composição paritária (representantes do poder executivo +
representantes da sociedade civil) que em princípio emerge como grande conquista
democrática, camufla a desigualdade de condições entre os participantes, uma vez que a
paridade é real apenas do ponto de vista numérico. Se pensarmos nas condições de igualdade
do acesso à informação e de disponibilidade de tempo, por exemplo, veremos que um
membro do poder executivo exerce suas atividades de conselheiro durante seu expediente
remunerado de trabalho, com acesso à informação e familiaridade com as questões técnicas de
sua área de atuação. Já os conselheiros representantes da sociedade civil, não são
remunerados, não contam com estrutura administrativa que favoreça suas atividades no
Conselho, e em geral, exercem uma atividade profissional que deve ser conciliada, em termos
de tempo, com aquelas de conselheiro.
Para que os conselhos das diversas áreas cumpram seu papel, é preciso haver
integração entre eles.
Como exemplo, Gohn (2001) nos fala da integração entre os conselhos da área da
educação e os CMDCAs e os CTs. A Secretaria Estadual de Educação promulgou
normatização segundo a qual a escola deve notificar ao Conselho Tutelar sobre o aluno que
tiver mais que “x” faltas. A autora discute que a normativa sobrecarrega os CTs, transferindo
responsabilidade para um órgão que tem outras importantes atribuições (violência doméstica,
drogas, exploração do trabalho infantil, etc).
Marcamos aqui que, quando o ECA define que é dever da família, da comunidade, da
sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos
direitos das crianças e adolescentes, acaba atribuindo à escola o papel de reconhecer e
denunciar aos CTs as crianças que estão em situação de risco, incluindo aqui a questão da
39
violência doméstica, e de outras situações que podem emergir ao nível privado, na família.
Esse ponto também emergiu na nossa análise como importante na compreensão do
silenciamento e será retomado oportunamente.
Se os conselhos representam uma grande conquista dos movimentos populares e da
sociedade civil organizada, a priori constituem-se apenas em espaços virtuais. Entre as
muitas condições necessárias à eficácia e efetividade dos conselhos (aumento de recursos
públicos, garantia da paridade real e não apenas numérica, acompanhamento e fiscalização
das atividades, etc) a autora coloca a necessidade de capacitação aos conselheiros:
Não há cursos ou capacitação aos conselheiros de forma que a participação seja qualificada; não há parâmetros que fortaleçam a interlocução entre os representantes da sociedade civil com os representantes do governo. É preciso entender o espaço da política para que se possa fiscalizar e também propor políticas; é preciso capacitação ampla que possibilite a todos os membros do conselho uma visão geral da política e da administração (GOHN, 2001).
Todas essas questões têm gerado muitos ataques aos conselhos, sobretudo aos CTs.
Questiona-se sua credibilidade e capacidade de cumprir suas atribuições, outro ponto que
emerge em nossa análise como necessário à compreensão do silenciamento dos professores.
Também salientamos a importância de reconhecer que, se por um lado, o discurso jurídico
representa a institucionalização das demandas e pressões sociais, por outro ele gera inúmeras
contradições que não consegue resolver.
Para pensarmos a situação da infância e juventude brasileiras e começarmos a
entender as dificuldades em transformar o que prevê a lei em práticas efetivas, é preciso
lembrar, conforme sugere Adorno (1999) que “o conceito de infância constitui uma
construção cultural subjacente ao modo pelo qual diferentes sociedades organizam a
reprodução de suas condições materiais e não materiais de trabalho e vida”.
Assim, em primeiro lugar é necessário recorrer à história, para pensar que sentidos
construídos ao longo de séculos e naturalizados pela repetição de práticas não se transformam
pela simples imposição de um novo discurso, através das leis. Na verdade é esse caráter de
coação do discurso jurídico que está no centro das contradições que ele gera.
A história da infância no Brasil não é bonita: somos uma sociedade com dificuldades
de nos organizar, na qual a imediata necessidade de garantir a sobrevivência leva muitas
crianças a assumir responsabilidades adultas. As nossas origens como ‘colônia de
exploração’, a página negra da escravidão como base da economia, e outras tantas vicissitudes
40
históricas nos colocam características peculiares da sociedade brasileira, que vem ao longo
dos séculos privilegiando o desenvolvimento econômico, em detrimento do social. Essa
história do desenvolvimento nacional, concentrador e excludente gerou, de acordo com o
IBGE (1990), 32 milhões de crianças e adolescentes sobrevivendo abaixo da linha da pobreza,
número que só se amplia desde essa data, apesar da multiplicação de programas sociais
voltados à infância e à família.
Temos que considerar que as profundas mudanças que afetaram o mundo ao longo da
década de 90 trouxeram conseqüências importantes para a realidade brasileira:
[...]a globalização da economia avançou, as políticas neoliberais ganharam centralidade, o desemprego aumentou, o processo de trabalho se transformou com a informatização tecnológica; as empresas realizaram reengenharias e proveram enxugamentos no seus quadros de funcionários, o emprego industrial escasseou, a economia informal cresceu A exclusão social atingiu também as camadas médias da população que passaram a encontrar dificuldades para achar postos de trabalho, além de conviver com o fantasma do desemprego (GOHN, 2001, p.91)
Essa realidade tem levado o Estado a patrocinar de forma crescente, políticas de
inserção social para os excluídos do acesso ao mercado de trabalho, ou destituídos dos seus
direitos sociais, por meio de políticas compensatórias. As políticas de ajustes estruturais são
apresentadas como modernas, inevitáveis e de largo alcance, mas colaboram para o aumento
do desemprego e da pobreza e geram mais desigualdade social.
Em conseqüência do avanço das políticas neoliberais o Estado se retira de alguns
setores (privatização), ao mesmo tempo em que através das políticas assistenciais
compensatórias (cesta básica, leite, gás, bolsa escola), apoiado pelo discurso jurídico de
garantia dos direitos aos grupos mais fracos e socialmente excluídos, amplia sua área de
abrangência para o domínio do privado, invadindo o conhecido espaço das liberdades
individuais.
Os avanços e mudanças que se multiplicaram a partir dos anos 90, como vimos,
afetaram de forma ímpar o mundo do trabalho, com conseqüências diretas para a forma de
pensar a educação. O desemprego cresce e o mercado demanda qualificação. Cada vez mais
se fala em uma educação que prepare o “indivíduo” para o mercado de trabalho,
desenvolvendo habilidades e competências. Nesse discurso imperam a competitividade e o
individualismo.
41
Alencar (2002) nos diz que a política neoliberal na educação é o retrato da ideologia
dominante da hegemonia do mercado: não se trata mais de preparar para a vida, mas para a
competição, violenta disputa por um lugar ao sol (p.58).
O autor evoca a história para pontuar os marcos fundamentais de cinco séculos de
educação no Brasil: saber controlado por poucos (grande propriedade), compartimentalização
reducionista (monocultura), autoritarismo elitista (escravidão), machismo sexista
(patriarcalismo) e cultura importada. Retoma o cenário do século XVIII, onde os negócios do
poder e do dinheiro se misturavam, para pontuar marcas históricas da educação brasileira:
[...] foram criadas aulas régias como alternativa às missões jesuíticas mas os conteúdos pedagógicos e os métodos de imposição foram mantidos: o mestre discursava, o aluno ouvia. O educando era adestrado, a Coroa exaltada, as fórmulas decoradas. Saber era armazenar (p.54).
Marcas históricas que se repetem: Alencar interpreta que ao longo dos séculos a
educação se encarregou do adestramento da elite para a reprodução da ordem social.
O autor discute que no Brasil as deficiências do serviço público de educação são
gritantes, e que nossa educação não dá conta da crescente demanda: nossa média de
escolaridade é a menor da América do Sul, estamos entre os primeiros do mundo em evasão e
repetência. Em contraste, os 4.6% do produto interno bruto investidos em educação colocam o
Brasil ao lado da Inglaterra, EUA e Itália. Ainda assim, são 22 milhões de analfabetos adultos.
15 milhões de analfabetos funcionais, 3 milhões de crianças até 14 anos fora da escola.
Paradoxalmente, há escolas de 1ª. à 4ª, séries para 95.7% das crianças em idade escolar.
Infelizmente, muitas crianças vão à escola para comer e chegam á quarta série do ensino
fundamental, mas não lêem nem escrevem.
Se por um lado a norma jurídica impõe a educação como direito de todos, a marca da
história se imprime na manutenção de uma educação classista.
Diante do caos social que atinge o país desde sempre, o ECA tem se mostrado
impotente para alterar uma cultura secular, segundo a qual o risco não se encontra no contexto
social e econômico e sim na própria criança. De acordo com o Estatuto, estão em situação de
risco pessoal e social todas aquelas crianças e adolescentes excluídas pelas políticas públicas
básicas e que, também se encontram à margem das políticas de proteção especial. Essa nova
perspectiva deixa para traz a idéia de que o risco se encontra na própria criança, trazendo a
compreensão de que o risco traduz uma desvantagem sócio-econômica e cultural, e encontra-
se, portanto, no contexto.
42
As opções políticas, que fizeram da sociedade brasileira o que ela é hoje, originaram
inúmeros fenômenos públicos que envolvem as crianças e jovens das classes populares, sendo
inumeráveis as situações de risco as quais a infância/juventude brasileiras estão expostas:
situação de rua, não acesso á saúde e educação (falta de orientação quanto a anticoncepção e
gravidez precoce, exposição a drogas, não universalização do direito a creche), privações de
todas as naturezas, abandono, não acesso ao registro civil, prostituição, exploração do
trabalho infanto-juvenil (milhares de crianças e adolescentes que jamais adquirirão as
ferramentas básicas da cidadania - ler, escrever e contar - pois não vão a escola e cada vez
mais se distanciam da possibilidade de se apropriar da tecnologia e das benesses do mundo
moderno). Tais situações de risco podem ser compreendidas como adversidades impostas pelo
contexto. Todas as situações citadas referem-se às conseqüências da pobreza, ou das opções
políticas que criaram e continuam criando um exército de excluídos.
Se os fenômenos públicos, decorrentes das questões estruturais (meninos de rua,
exploração do trabalho infanto-juvenil, prostituição infanto-juvenil, entre outros) há anos são
denunciados internacionalmente e não se esboçam soluções para eles, a violência doméstica –
com suas características de acontecimento privado – tem recebido atenção crescente mas
pouco sucesso tem sido observado em termos de políticas que garantam efetividade na
intervenção: a proteção e o tratamento das vítimas, o tratamento dos agressores e a prevenção,
através de ações educativas que proponham a discussão sob a perspectiva de uma educação
não-violenta, não-hierárquica, não-adultocêntrica pautada no diálogo e no respeito mútuo.
Parece lícito supor que parte das dificuldades em se pensar modelos efetivos de intervenção,
que também atuem na prevenção, estejam relacionadas ao caráter privado da violência
doméstica. No caso da violência doméstica contra crianças, também vale a idéia tão
freqüentemente evocada quando se trata da violência contra mulher: “em briga de marido e
mulher, ninguém mete a colher”, ou seja, cada família sabe como resolver seus problemas.
Em relação ao ECA, a despeito de todas as contradições que a lei cria, não é possível
negar sua importância: coloca novas e importantes possibilidades, aponta a democratização
das relações através dos Conselhos, pretende proteger aqueles que estão em risco social e
democratizar o acesso aos direitos. Entretanto, quanto mais conhecemos a lei, mais nos parece
que o discurso jurídico funciona como uma forma de coação que não cria condições de
intercâmbio com o social. Ao idealizar sociedade, infância e as instituições, ao invés de
favorecer mudanças nas práticas, provoca grande resistência.Retomaremos esse ponto ao
longo da análise do discurso dos professores como central na compreensão do silenciamento
da escola diante da violência doméstica sofrida pelos alunos.
43
2.4 Violência Interpessoal Doméstica
O tipo de violência que ocorre no lar, praticada por pais contra os filhos, por filhos
contra pais idosos ou doentes, por homens contra mulheres ou por cuidadores, parentes ou
não, de pessoas com deficiências ou idosos nem sempre foi tratado como um só fenômeno,
mas nossa revisão de literatura originou reflexões que sugerem chamá-lo especificamente de
Violência Interpessoal Doméstica -VIPD e pensá-lo como fenômeno único.
Foi possível perceber, através da revisão de literatura, que o termo “violência
doméstica” refere-se preferencialmente à violência contra mulher. Quando os estudos
referem-se à violência doméstica contra criança, os termos mais comuns na literatura
internacional são “child abuse”, “maltreatment” e “vitimization”. Nos trabalhos publicados no
Brasil encontramos preferencialmente os termos “violência doméstica” e “crianças
vitimizadas”. Outros termos como abuso, agressão e maus tratos também são empregados
com freqüência.
Nossa leitura desse material aponta para as quatro formas de violência interpessoal
como um fenômeno único que se manifesta em contextos diversos , colocando em evidência o
que parece ser uma dificuldade básica do ser humano: descolar-se do umbigo e colocar-se no
lugar do outro. Crianças, mulheres, idosos e portadores de deficiência são pessoas que em
determinados momentos podem parecer ou ser mais fracos e vulneráveis sob algum ponto de
vista. Ou ainda, são pessoas que se tornam mais vulneráveis à violência em função de possuir
menos poder dentro das relações sociais.
Olhando para a violência entre pais e filhos como relação interpessoal de poder,
relação assimétrica, hierárquica, com fins de dominação, exploração e opressão, Azevedo &
Guerra (1995) propõem que olhemos para o poder em nossa sociedade como conceito que
nasce e se constrói através de relações de gênero, raça, idade e classe social. As relações de
poder se dão em cadeia e se caracterizam pela conversão de diferentes em desiguais.
Como vimos a partir da história da infância, a violência entre pais e filhos está
presente através dos séculos e para autores como Ariès (1973,1981) ou deMause ( 1974) é
uma violência inerente as relações interpessoais adulto-criança. São relações assentadas no
pressuposto poder do adulto (maior, mais forte, mais inteligente, independente) sobre a
criança (menor, mais fraca, ignorante, dependente). São, portanto, relações de natureza
hierárquica, assimétrica e adultocêntrica.
Azevedo e Guerra (1995), propõem a seguinte definição para o fenômeno:
44
Todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra crianças e/ou adolescentes que, sendo capaz de causar dano físico, sexual ou psicológico á vítima, implica de um lado uma transgressão do poder/dever de proteção do adulto e, de outro, uma coisificação da infância, isto é, uma negação do direito que crianças e adolescentes têm de serem tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento (p. 78).
Sobre a violência doméstica contra crianças e adolescentes é necessário lembrar,
conforme discutem Azevedo e Guerra (1989, 1993,1995) e foi possível reafirmar a partir da
revisão de literatura, que ela é universal, não sendo privilégio dos países subdesenvolvidos,
ocorre em todas as sociedades.
Também é sempre necessário reafirmar que a violência doméstica não está ligada
exclusivamente às condições sócio-econômicas, ou seja, não é privilégio dos pobres, mas
ocorre em todas as classes sociais indistintamente. Diversos estudos demonstram que fatores
ligados a privações, desemprego; falta de perspectiva, não acesso ao consumo são fontes de
estresse e podem levar ao aumento da incidência da violência doméstica.
Saffioti (1989), ao identificar uma utilização indiscriminada dos termos vitimização
(usado para referenciar o fenômeno da violência doméstica) e vitimação (refere-se ao
abandono material, como consequência das opções políticas, da concentração da riqueza em
poucas mãos), nos diz que os fenômenos da vitimação e da vitimização têm origens comuns
numa ordem social na qual as relações são permeadas pelo poder. Entretanto, as crianças
vitimadas pela fome, pela ineficiência das políticas públicas básicas, não são as únicas sujeitas
ao processo de vitimização. Enquanto a vitimação atinge apenas os filhos da famílias
economicamente desfavorecidas, a vitimização ignora fronteiras econômicas entre classes
sociais.
Azevedo & Guerra (1989) sugerem a existência de dois tipos de violência que atingem
a infância: a Violência Entre Classes Sociais, Macro Violência ou Vitimação17 e a Violência
Intra-Classes Sociais, Micro Violência ou Vitimização18.
17 “Infância Pobre”, “Infância Abandonada” (exclusão social, cultural e política, pobreza de direitos); Infância Infratora (crianças e adolescentes em conflito com a lei, em decorrência da interação de inúmeras condições pessoais e do contexto); Infância Explorada no Trabalho, crianças e adolescentes que tendo que contribuir no orçamento familiar devido a situação de pobreza da família, deixam de brincar e de estudar para produzir; Infância Vítima de Exploração Sexual, seja através da prostituição infanto-juvenil, seja através da pornografia, como negócio rentável, mercantilizado; Infância Vítima de Violência na Mídia: uso da imagem da criança pela sociedade de consumo. 18 O segundo tipo diz respeito àquela violência que ocorre no âmbito do privado, das instituições, no plano das relações interpessoais. Aqui se encontra a Violência Interpessoal Doméstica, tipo de violência que acontece no lar e pode atingir crianças, mulheres, pessoas com deficiência e idosos.
45
Pensar as situações de risco que atingem a infância da perspectiva da violência, seja a
estrutural, seja a interpessoal nos leva a refletir o quanto ambas as formas de violência estão
imbricadas, sendo difícil pensar numa relação de causa e efeito entre elas.
Entender que a macro e a micro violência se misturam não significa, contudo, aceitar
que são iguais. Muitas situações de risco que atingem a infância no mundo todo poderiam ser
classificadas na categoria “estrutural ou macro-violência”. Infelizmente, as crianças também
estão sujeitas a uma forma perversa de violência que as atinge em seu cotidiano,
independentemente de suas condições materiais de vida.
Por isso, a violência doméstica pode ser entendida como uma situação de risco muito
diferenciada, que ocorre independentemente da condição estrutural, podendo ser identificada
em todas as classes sociais, em todo tipo de família e em diferentes momentos históricos.
Isso nos faz entender que tanto as condições estruturais, do contexto econômico e
social, quanto as particulares, subjetivas são importantes. Se as condições estruturais são
determinantes, por marcarem definitivamente quais são as famílias que terão acesso aos
direitos básicos e fundamentais da cidadania - podendo, assim, investir no desenvolvimento
de seus filhos - e quais estão excluídas, o que acontece no plano interpessoal, das micro-
relações também é parte do contexto, do todo, relaciona-se com ele e o afeta.
Também devemos observar que em contraste com os fenômenos públicos que
envolvem milhões de crianças e adolescentes das classes populares (crianças sem nome, sem
rosto, sem endereço) a violência doméstica quando notificada e tornada pública gera um
grande mal-estar: vítima e agressor têm nome, sobrenome, endereço. Saffioti (1989) nos diz
que, além disso, quando a violência doméstica física ou sexual torna-se, após sua notificação,
um fenômeno público ameaça a solidez da instituição sobre a qual repousa a sociedade: a
família.
Dawes & Donald (1999) discutem – em edição que divulga trabalhos realizados na
sociedade sul-africana, com suas peculiaridades históricas e socioeconômicas –as
conseqüências psicológicas da adversidade vivida pela infância naquele país: quando
descrevem o contexto do país, passamos a identificar crianças e adolescentes vivendo
situações de risco pessoal e social, que as colocarão em risco para o seu desenvolvimento
global.
Os autores nos mostram que muitas circunstâncias podem produzir adversidade na
infância. As características peculiares de sua sociedade levam as crianças a experimentarem
grande predisposição para condições de vida adversas: os anos de apartheid, o fato de que as
46
crianças são negras em sua maioria, a pobreza a que estão expostas. E como se as condições
estruturais já não fossem suficientemente ruins tais crianças ainda experimentam no lar abuso
sexual e físico, estresse pela separação parental ou o risco de viverem com pais alcoólatras ou
doentes mentais. Os autores nos levam a refletir que enquanto os primeiros locais para viver
adversidade sejam a família e a escola, os riscos de exposição à adversidade no lar aumentam
para as famílias pobres, onde as estratégias de coping dos adultos são levadas ao extremo com
freqüência. Também discutem os efeitos da pobreza em si como um estressor psicológico.
Diferentemente de eventos discretos como separação parental ou perda de pais ou
irmãos, os eventos relacionados à pobreza, à privação aos direitos e à relação pais-filhos
(incluindo aqui todo tipo de violência doméstica) são eventos contínuos, que ocorrem ao
longo de períodos de tempo indeterminados, e podem afetar o desenvolvimento e a saúde de
crianças que estão sujeitas a eles, como veremos a partir dos resultados de alguns trabalhos
conduzidos nesta perspectiva.
Ao discutir a identificação de fatores que predizem o aumento da probabilidade de
aparecimento de problemas emocionais e de conduta em crianças e adolescentes Compas e
Phares (1991) citam dados de pesquisas que apontam para a possibilidade de existência de
associação entre eventos estressantes e desordens psicológicas. Para esses autores a
experiência de eventos estressantes durante a infância e adolescência podem acionar um
processo no qual stress e problemas emocionais/comportamentais alimentam-se mutuamente,
num ciclo.
Em seu estudo sobre stress, suporte social e adaptação no início da adolescência
DuBois et al. (1992) focalizaram o papel de eventos estressores entre jovens provenientes de
comunidades com desvantagens econômicas, culturais e sociais. De acordo com os resultados
obtidos, entendeu-se que os jovens das comunidades menos favorecidas são mais vulneráveis
aos efeitos do stress, uma vez que o ambiente em que vivem lhes oferece menos chances para
o desenvolvimento de competências, habilidades de enfrentamento e mecanismos de auto-
regulação que lhes permita uma adaptação mais eficaz.
Outras características da violência doméstica apresentadas nos trabalhos de Azevedo e
Guerra (1989, 1993,1995) ) referem-se ao fato de ser um fenômeno multicausal, determinado
pela interação de fatores psicológicos, sócio-econômicos e culturais do pai, da mãe e dos
filhos o que nos leva ao seu caráter cíclico, ou seja, o padrão abusivo da interação pai-mãe-
filho tende a se reproduzir: é provável que uma criança vítima de violência torne-se um
pai/mãe agressor.
47
Conforme veremos partindo de nossa discussão sobre a relação entre violência e
desenvolvimento, viver situações violentas como testemunha ou vítima, pode ser fator de
risco para o desenvolvimento de atitudes violentas. Essa reprodução da violência originada
dentro das famílias, a partir das relações interpessoais vividas no lar é registrada de forma
extensa e pode ser importante ponto de partida para pensar a prevenção da violência. Os
trabalhos que discutem este ponto também identificaram relação entre abuso de substâncias
psicoativas e práticas disciplinares severas, história de violência na infância de pais
agressores, e problemas conjugais e violência contra criança.
A noção de que o que a criança apreende das suas primeiras relações é fundamental
para seu desenvolvimento não é nova. As conseqüências da relação primária para o
desenvolvimento constituem-se num tema muito discutido pela literatura especializada.
Algumas teorias são taxativas: experiências adversas vividas na infância interferem no
desenvolvimento global (bio-psico-social) de forma negativa e, muitas vezes, irreversível. A
possibilidade de intervir com sucesso para abordar as alterações no desenvolvimento depende
de muitos fatores, entre eles, o caráter contínuo ou discreto do evento adverso que interfere no
curso do desenvolvimento e a precocidade da intervenção.
Winnicott (1986, 1995), que sob influência da psicanálise desenvolveu estudos sobre
os efeitos da privação na infância, estabeleceu relação entre o que ele chama de
desenvolvimento de “tendência anti-social” e privação.
É importante atentar para o fato de que esse autor define privação na perspectiva
analítica, como um processo interno, subjetivo (privação de afeto, de seio). Neste trabalho
estaremos sempre considerando a inter relação dos fatores do sujeito (como ele lida com
situações adversas) com os fatores do contexto social e histórico. Assim, com a ajuda de
Dawes & Donald (1999), ampliamos o conceito de privação para uma perspectiva mais geral
de adversidade, conceito que pode referir-se tanto a eventos de ordem subjetiva, quanto a
aqueles do contexto social, econômico, cultural e histórico, e, na verdade, o que possa vir a
resultar da interação de ambos.
Westaway (2000) discute o processo de brutalização que resulta das experiências
precoces de violência vividas no lar e diz ser na família o local onde a criança pode viver as
primeiras experiências de grupo, as quais podem ser traumáticas. Refere que em algumas
famílias a dinâmica familiar, as interações humilhantes e o abuso (violência interpessoal)
causam vergonha e medo na criança. Além disso, a criança aprende a ser violenta.
Semelhante discussão é feita por Souza (2000):
48
Considera-se que a família é a instituição fisicamente mais violenta que a maioria dos indivíduos irá encontrar porque é nela que a maioria das pessoas aprendem a ser violentas. (...)a punição física é vista e experimentada pela maioria dos membros da família como normal, assim, é a família que fornece a primeira arena onde crianças observam e recebem um treinamento explícito em violência (p.78).
Os aspectos referentes à família também são citados como possíveis fontes de
vulnerabilidade ao stress e relacionados ao aparecimento de desordens e alterações no
desenvolvimento, sendo que outros autores discutem o papel na família no desenvolvimento de
modelos violentos de relacionamento interpessoal.
Parton (1987) cita estudos que defendem uma abordagem sócio-cultural para o
problema, explicando que a família, longe de ser patológica, sofre influências resultantes de
uma combinação entre cultura, organização social e aprendizado social. O autor discute que a
família pode ser a instituição fisicamente mais violenta que a maioria dos indivíduos irá.,
sendo nela que a maioria das pessoas aprende a ser violentas. Para ele isso coloca a família
como o primeiro local onde crianças observam e recebem um treinamento explícito em
violência. Conclui alinhando situações específicas que, combinadas, predispõem à violência
como: o alto nível de conflito familiar, o treinamento em violência através do disciplinamento
físico, a norma cultural que permite que pais batam nos filhos desde que estes não lhes
obedeçam.
Dentro da perspectiva da família como gênese da violência, encontramos a noção de
"sociabilidade autoritária", defendida por Passetti (1995, p.16). Para ele, a criança não é
apenas vítima de um agente disciplinador na família. Mais do que isso:
O que acontece é uma seqüência de exercícios de autoridade que transcendem limites legais e socialmente tidos como aceitáveis para revelar, com maior amplitude, o uso e abuso da violência, muitas vezes legítima (do estado e dos próprios pais). São crianças violentadas, que reproduzirão essa situação, encontrando num outro sujeito o seu objeto substitutivo, afirmando a continuidade da sociabilidade autoritária.
Nessa perspectiva de reprodução da violência a partir de sua presença na história de
vida, alguns autores apontam para os efeitos da violência doméstica nas práticas de criação
dos filhos, sendo o estilo parental fortemente influenciado pela história de vida dos pais:
quanto maior a presença de eventos negativos e história materna de abuso na infância maior a
probabilidade de ocorrência de violência perpetrada pela mãe (LEVENDOSKY &
GRAHAM-BERMANN, 2001); a reincidência de violência contra crianças é maior em
49
famílias cujos pais apresentam violência doméstica, abuso, negligência e abuso de drogas em
suas histórias de vida (ENGLISH, MARSHALL & ORME, 1999); presença de história de
abuso na infância ou história de exposição à violência parental em agressores domésticos com
problemas de alcoolismo (MCMURRAN,1999) ou abuso de outras substâncias psicoativas
(HIEN & HONEYMAN, 2000).
Miller, Fox & Garcia-Beckwith (1999) realizaram estudo em que examinaram 30
registros de casos de abuso físico severo em crianças menores de 05 anos. Os autores
compararam as características familiares com fatores de risco descritos na literatura. Seus
resultados coincidem com tendências que antes já haviam sido descritas: em termos
psicológicos, pais agressores apresentam depressão, ansiedade e desordens de personalidade;
em relação aos problemas ao longo do curso de vida encontraram violência doméstica
conjugal, abuso de drogas e/ou álcool e violência doméstica sofrida na infância. Também
encontraram que o abuso é negado pelos agressores na maioria dos casos. Crianças muito
jovens que foram agredidas apresentaram como história anterior à agressão problemas ao
nascimento e problemas médicos.
Thompson et al. (1999), num estudo realizado com 1000 pais com idades entre 18 e 72
anos para identificar competência parental (atitudes parentais, práticas disciplinares entre
outros indicadores) identificaram 02 categorias principais: (1) pais que obtiveram scores
elevados em disciplinamento corporal, negligência, abuso verbal e atitudes depreciativas em
relação à criança relatam ter sofrido abuso na infância, violência/dificuldades conjugais e
problemas para administrar a raiva e (2) pais que obtiveram scores baixos em todas as práticas
disciplinares, baixa percepção da eficácia disciplinar e uma história conjugal e pessoal
saudáveis.
O caráter cíclico da violência doméstica parece ser uma importante característica a
ser considerada: crianças que vivem em situação de violência, se não forem socorridas e
atendidas de forma adequada (tiradas da situação de violência e tratadas quanto as possíveis
seqüelas) podem vir a se tornar agressores domésticos no futuro. Além disso, podem vir a
desenvolver problemas com álcool e drogas, além de outras desordens afetivas e alterações
na saúde mental. Assim, novamente ganham destaque as conseqüências da experiência de
eventos de vida potencialmente estressantes ou negativos sobre o desenvolvimento e a
saúde.
50
Outros aspectos que voltam a aparecer são: a dificuldade de realizar o diagnóstico
diante da negação dos pais sobre a ocorrência do abuso e o aumento da probabilidade de
sofrer abuso para crianças que apresentaram problemas ao nascimento.
Não é difícil compreender porque a violência doméstica é uma situação adversa
particular que gera conseqüências num nível pessoal, com repercussão para o social.
Reafirmamos que para nós, a complexidade do tema, exige que façamos um esforço
de buscar a complementaridade que pode haver entre as matrizes teóricas que explicam as
relações familiares de um ponto de vista universal e aquelas que o fazem a partir de uma
compreensão social e histórica.
A compreensão da violência interpessoal doméstica como fenômeno freqüente, e,
sobretudo como fator de risco ao desenvolvimento bio-psico-social normal, é recente.
Ramey, Mulvihill & Ramey (1997) referem-se à "nova morbidade", descrevendo
uma enormidade de riscos biológicos e psicológicos para a saúde e bem estar de crianças. O
termo diz respeito à interação de fatores adversos de ordem ambiental, comportamental e
biológica. A partir dessa perspectiva, que propõe que se olhe para a interação de diversos
fatores e que se atribua peso igual aos fatores do sujeito e do contexto, tem sido possível
passar a incluir a violência doméstica como fator de risco ao desenvolvimento.
Ao aceitar a premissa de que eventos de vida afetam o desenvolvimento e a saúde
global, estamos diante de uma tomada de posição em relação à compreensão do
desenvolvimento humano e ao relacionamento sujeito contexto.
2.4.1 O impacto da VIPD sobre o desenvolvimento e a saúde: buscando uma
nova compreensão sobre a inter relação sujeito-contexto
No início de seu capítulo sobre as conseqüências psicológicas da adversidade, Dawes
& Donald (1999) sugerem que a compreensão do que seja adversidade pode variar muito de
sociedade para sociedade, de cultura para cultura e que por isso, talvez seja interessante
questionar a universalidade das respostas psicológicas a adversidade. Os autores nos chamam
atenção para o fato de que o terreno ainda esteja tão inexplorado se as perspectivas são tantas
para a pesquisa psicológica. Além disso, colocam que:
51
Pesquisas sobre o desenvolvimento de crianças em ambientes de alto risco historicamente tem sido conduzidas numa perspectiva positivista. Recentemente a dominância desse paradigma tem sido desafiada por um modelo de conhecimento psicológico conhecido como construtivismo social ( p. 01 ).
Delval (1997), na obra em que propõe reflexões sobre a construção do conhecimento
escolar, discute a natureza do construtivismo como posição epistemológica, auxiliando na
compreensão do construtivismo social como perspectiva de pesquisa que propõe que os
fenômenos estudados (a realidade) sejam olhados tanto da perspectiva do sujeito (como
interpreta e lida com a realidade) quanto da perspectiva histórica e social: a inter relação
(historicamente datada, culturalmente contextualizada) entre o sujeito e o contexto.
O autor nos diz que a elaboração que o sujeito faz da realidade (como a percebe,
interpreta e reorganiza internamente) é uma construção solitária, realizada em seu interior,
mas influenciada pelo social, pelo outro, produto da vida social.
Percebemos, então, que uma perspectiva construtivista social, se contrapõe tanto ao
empirismo quanto ao inatismo: o conhecimento não é uma cópia do mundo exterior,
pressupõe uma elaboração do sujeito, tampouco é o resultado da emergência de estruturas pré-
formadas, significando apenas a exteriorização de algo que é interno.
A posição sugerida pelo construtivismo social é interacionista, ou seja, o
conhecimento e os fenômenos resultam da ação do sujeito sobre a realidade e vice-versa,
determinado pelas propriedades (ou características) do sujeito E da realidade. Diante de nossas
escolhas teóricas, a idéia de interação não é suficiente para descrever as complexas relações
que se estabelecem entre o sujeito e o mundo. Estamos preferindo a imagem da
interpenetração, pensando em inter relação e não apenas em interação.
Tal perspectiva permite, como já dissemos, entender o processo de desenvolvimento
humano de forma mais ampla. É possível pensar, então, que os eventos de vida podem exercer
influência sobre o desenvolvimento. Tal olhar enfoca questões que fazem sentido nessa nossa
busca da compreensão dessa inter relação sujeito-contexto.
A matriz teórica que permite pensar nas influências dos eventos de vida sobre o
desenvolvimento e na forma como cada sujeito pode reagir a essas influências é a
“perspectiva do curso de vida” e, expandir o conceito de desenvolvimento humano constitui
uma das suas preocupações.
Nessa perspectiva, desenvolvimento é entendido como qualquer mudança na
capacidade adaptativa do organismo, não importando se considerada como positiva ou
52
negativa, ganho ou perda. Assume-se uma posição multicausal, considerando-se muitos
possíveis determinantes para o desenvolvimento, as diferenças individuais e a presença de
uma plasticidade determinada por eventos de natureza ontogenética e sócio-cultural.
Além disso, o desenvolvimento é compreendido como um processo multidirecional,
que ocorre durante todo o curso de vida, contextualizado por fatores biológicos, psicológicos,
sócio-culturais e históricos, que determinam as transformações, num processo de
equilibração constante entre ganhos e perdas. Portanto, nesse enfoque o desenvolvimento não
é visto simplesmente como um movimento rumo à maior eficácia e aos padrões adultos,
como assumido pelos modelos tradicionais.
De acordo com Baltes (1983, 1987) três tipos de influência interagem para produzir
processos de mudança e determinar o desenvolvimento humano: a) influências normativas
graduadas por idade ou ontogenéticas; b) influências normativas historicamente graduadas,
e c) influências não-normativas.
As influências normativas relacionadas à idade dizem respeito aos determinantes
biológicos e ambientais, e apresentam alta correlação com a idade cronológica. Maturação
e socialização são exemplos destas influências, tradicionalmente consideradas pela
Psicologia do Desenvolvimento.
As influências normativas historicamente graduadas dizem respeito a eventos do
contexto histórico-social, os quais, em interação com os eventos graduados por idade,
podem produzir resultados peculiares a todo um grupo etário ou geração. Como exemplo,
pode-se citar a guerra, que gera privações de toda sorte, estresse elevado, insegurança e
ansiedade, os quais em conjunto, têm o poder de mudar valores, atitudes, expectativas e
oportunidades para o desenvolvimento físico e intelectual, entre outros fenômenos.
Quando comparado com ouro grupo que não viveu o evento e suas consequências, o grupo
que o vivenciou pode apresentar um perfil diferente.
As influências não-normativas referem-se a eventos biológicos e ambientais, que
não ocorrem para todos os indivíduos de um grupo etário, não apresentam uma ordem ou
padrão, mas que geram efeitos significativos sobre as histórias de vida individuais.
Migração, perdas afetivas, separação ou morte dos pais, experiências de negligência,
abandono e violência podem ser exemplos de eventos não-normativos.
Como é possível observar, Baltes separa e categoriza as influências sobre o
desenvolvimento, numa abordagem mais ampla, contrariando a visão tradicional, segundo a
qual envelhecer significa decair: postula uma dinâmica entre ganhos e perdas em qualquer
período do desenvolvimento.
53
Bluck & Habermas (2000), discutem que a perspectiva do curso de vida permite
considerar a vida humana como unidade de agregação, observação e integração, de forma que
os procedimentos e estruturas cognitivas e afetivas refletem as estruturas da vida.
Um número considerável de trabalhos recuperados através da revisão de literatura
aborda as relações entre a violência interpessoal doméstica e desenvolvimento. Os efeitos da
violência interpessoal doméstica (VIPD) sobre a qualidade de vida e saúde das pessoas que são
vítimas ou testemunhas de situações desse tipo são amplamente relatados.Os estudos citam
inúmeros sintomas orgânicos e mentais, que podem emergir em qualquer período do curso de
vida, e são relacionados a experiências ligadas à VIPD.
As relações entre a violência doméstica e alterações no desenvolvimento – o impacto
negativo de testemunhar e/ou sofrer violência sobre a saúde – apontam tanto os efeitos
imediatos ou de curto prazo sobre a saúde mental de crianças e adolescentes, quanto os efeitos
que podem ser identificados em adultos com presença de eventos ligados a VIPD ao longo de
sua história de vida.19
Nessa perspectiva, a experiência de abuso na infância foi indicada como preditor
para estilos de relacionamentos e aparece associada a alterações negativas na qualidade de
relacionamento com pares, no funcionamento social, na percepção de suporte social e apego
(LEVENDOSKY, HUTH-BOCKS & SEMEL, 2002); determinante no aparecimento de
comportamento violento/agressivo/delinqüente de crianças e adolescentes na escola
(HORTON, 2001; JONSON-REID ,1998) e em outras situações envolvendo convivência
social (FLYNN; 1999); aumento da disposição para comportamento agressivo, presença de
problemas emocionais (depressão, ansiedade), baixa competência social e funcionamento
acadêmico pobre (FANTUZZO & MOHR, 1999), sendo que os autores encontraram que os
efeitos adversos variam de acordo com a situação: idade da criança, natureza e severidade da
violência, presença concomitante de outros fatores de risco; fuga do lar e envolvimento em
situações de conflito com a lei - destruição de propriedade e roubo (YEO, 1998) e alteração no
desempenho escolar (SULLIVAN & KNUTSON, 2000); atos socialmente desaprovados e
fisicamente destrutivos (GALLO,1998); presença de sintomas como depressão, sintomas
19 Parte dos estudos procurou estabelecer relação entre violência no ambiente familiar como evento presente ao longo da história de vida e o aparecimento de desordens/alterações, envolvendo principalmente a Perspectiva do Curso de Vida e o Modelo da Aprendizagem Social. Em termos de método, foram aplicados questionários envolvendo crianças, adolescentes e pais, além de instrumentos e escalas para identificar e medir a presença de sintomas e alterações no comportamento ( Child Behavior Check List; Adverse Childhood Experience; MSM IV; Traumatic Life Events Questionnaire).
54
traumáticos, comportamento anti-social e comportamento suicida em mulheres adultas com
história de violência familiar (MAKER, KEMMELMEIER & PETERSON, 1998; ROBERTS
et al, 1998)
Nessa mesma linha, alguns estudos exploraram especificamente a presença de
sintomas de estresse pós-traumático em sujeitos envolvidos em algum momento do curso de
vida com situações de violência doméstica (LEVENDOSKY et al., 2002; SLOVAK &
SINGER, 2002); identificaram conseqüências específicas como a falta de habilidade para
lidar com situações de conflito, em virtude do trauma provocado pela violência
(MAXWELL,1998; GALLO,1998). A identificação da violência doméstica como evento
negativo ou potencialmente estressante também apareceu em alguns estudos (KUBANY et al.
, 2000); relacionado ao risco para tentativa de suicídio (DUBE et al, 2001); ao envolvimento
de mulheres entre 22 e 28 anos em crimes (KATZ, 2000); ao envolvimento de mulheres com
severos problemas de saúde mental na vitimização de seus filhos (STANLEY & PENHALE,
1999).
No único estudo que não se restringe à saúde mental, Romans et al (2002) exploraram
o papel de eventos de vida adversos na possível etiologia de desordens médicas em geral.
Realizaram entrevistas numa amostra comunitária de 477 mulheres da Nova Zelândia com
idade inferior a 65 anos. Sete das 18 condições médicas relevantes emergiram com aumento
significativo em mulheres que sofreram mais de um tipo de abuso ao longo de sua história de
vida (fadiga crônica, problemas de visão, enxaquecas, asma, diabetes e problemas cardíacos).
A preocupação em estabelecer relação entre história de violência na vida dos sujeitos e
abuso de substâncias aparece em alguns estudos, seja apontando o abuso/dependência química
em pessoas que sofreram ou testemunharam violência ao longo da história de vida, seja
identificando a quimiodependência no agressor: relação entre abuso físico e sexual e
desordens de conduta, aumento do risco para dependência a álcool em vítimas de violência,
presença de abuso físico e dependência ao álcool como fatores de risco independentes tanto
para tornar-se vítima de violência quanto para tornar-se abusador/agressor (KUNITZ et al,
1998); problemas parentais com álcool e violência presentes na história de mulheres adultas
freqüentadoras de um programa para tratamento de alcoolismo (LANGELAND, VAN-DEN-
BRINK & DRAIJER, 2002); relação entre história de violência familiar e abuso de
substâncias e as implicações para o tratamento de pessoas que abusam de substâncias
químicas (EASTON, SWAN & SINHA, 2000). Miller, Wilsnack e Cunrad (2000), num
estudo que investigou a prevalência de violência na vida de mulheres e as conseqüências
55
físicas e psicológicas dessas experiências (abuso de drogas e álcool), concluíram que a
história de vitimização na vida das mulheres afeta de forma negativa suas crianças, que
testemunharam a violência ou também foram vítimas.
A partir dos estudos que discutem os impactos da VIDP sobre o desenvolvimento e a
saúde de testemunhas ou vítimas, reafirma-se a importância da realização de esforços que de
forma permanente estejam voltados a sensibilização da comunidade em geral para identificar
e notificar casos e a capacitação de profissionais de todas as áreas para identificar e intervir de
forma eficiente junto a vítimas e agressores.
Além disso, apontam para a necessidade de se pensar a VIPD como fator de risco
peculiar por estar presente universalmente em distintas sociedades e culturas, por ser tão
difícil de prevenir e abordar e por gerar conseqüências em nível pessoal (saúde, qualidade de
vida) que afetam a sociedade de forma coletiva (reprodução da violência testemunhada ou
sofrida no lar em outras esferas da vida social pública). Um aspecto que evidencia isso é a
relação identificada entre VIPD e comportamento violento, delinqüência juvenil, violência na
escola, prática de atos infracionais por adolescentes ou de crimes, por adultos. O aumento da
probabilidade para abuso de substâncias como álcool e drogas pelas vítimas também é um
aspecto a ser considerado nesse enfoque, já que álcool e drogas estão associados a eventos
violentos de forma geral..
A importância da escola e o papel dos educadores no reconhecimento dos casos
apareceu em apenas 01 estudo. Weis & Fine (1998), num trabalho onde descrevem a história
familiar de três mulheres brancas (24-31 anos) que sofreram violência doméstica na infância e
como adultas, discutem a importância da participação dos educadores no diagnóstico e
reconhecimento de casos de violência na vida de seus alunos (testemunhar ou ter
testemunhado violência em seus lares ou serem criados em lares cujos pais sofreram violência
na infância). A mensagem aos educadores é direta: a violência doméstica é freqüente; permeia
a biografia de mulheres brancas da classe trabalhadora, o terror doméstico é silencioso, apenas
as pessoas extremamente vitimizadas falam dela e, finalmente: a violência doméstica afeta os
estudantes nas escolas, tanto se testemunham ou testemunharam ou se são criados por pais
que sofreram violência. Os autores insistem que é importante que educadores sejam capazes
de identificar a extensão e o potencial da violência doméstica na vida dos estudantes.
A leitura dos trabalhos também indicou ser necessário atentar para o atributo
“doméstica” desse tipo de violência. A questão do segredo que envolve eventos negativos que
ocorrem numa família emerge como central. Sobre isso, Berman (2000) - ao discutir os
resultados de estudo narrativo com crianças que testemunharam violência em duas situações
56
distintas: na guerra e em casa (filhos de mulheres vítimas de violência doméstica) - identifica
uma discriminação fundamental: embora ambos os grupos tenham testemunhado atrocidades
e carreguem eventos contínuos que podem ser considerados como eventos negativos (perdas,
separação) e com potencial para afetar negativamente seu desenvolvimento, as crianças da
guerra viveram sua dor e seu sofrimento de forma coletiva enquanto que as crianças que
testemunharam violência contra suas mães sofreram sozinhas, no espaço privado do lar, o
horror de presenciar cenas violentas e o sofrimento da mãe, experimentando a vergonha e o
medo de que os acontecimentos pudessem vir a tornar-se públicos.
A experiência coletiva de eventos adversos ou potencialmente traumáticos parece
permitir experimentar estratégias compartilhadas de coping, ao contrário do que ocorre com a
violência doméstica, que é vivida em segredo e compartilhada pelas vítimas com outras
pessoas apenas em situações muito particulares.
O que os trabalhos nos mostram é existem conseqüências que emergem a partir da inter
relação sujeito-contexto e que eventos de vida ligados à violência doméstica podem estar
relacionados a uma ampla gama de alterações mentais e orgânicas, em nível do sujeito que se
refletem de forma mais ampla, na vida social (abuso de drogas e comportamento violento
podem ser exemplos).
Mesmo sendo possível estabelecer associação entre violência e saúde e até apontar
conseqüências específicas para a experiência com violência, sabemos que nunca é indicado
trabalhar com generalizações. Por isso não podemos deixar de considerar os conceitos de risco,
vulnerabilidade e resiliência.
Já vimos que risco é entendido como algo do contexto, que expõe todo o grupo que está
sob determinadas condições e, portanto, refere-se a grupos ou populações.
Por outro lado, vulnerabilidade refere-se a questões particulares do sujeito, ou seja,
existem fatores que predispõem ao desenvolvimento de desordens quando estes sujeitos são
expostos a fatores de risco.
Desta forma é possível entender que a vivência de adversidade ou situações adversas -
ou stress ou a exposição a situações geradoras de stress, como a violência – pode ser entendida
como fator de risco para o aparecimento de sintomas, não significando, contudo, que todos os
sujeitos expostos a um mesmo fator de risco venham a desenvolver sintomas ou alterações.
Podemos entender que as fontes de vulnerabilidade podem estar no sujeito ou no
ambiente, ou decorrer da interação de fatores de ambos e a compreensão dos aspectos ligados
a este conceito levam a um outro: o de resistência, ou resiliência.
57
Célia (1997) nos fala que viver em risco é natural, natural no sentido de ser inerente a
sociedade em que vivemos e assim, estresse e violência tornaram-se fatores presentes. Saber
como evitá-los, e enfrentá-los é importante. Muitas crianças e adolescentes, entretanto, vivem
sob acúmulo de muitos riscos e pesquisas citadas pelo autor mostram que o acúmulo de riscos
pode levar a sérias conseqüências no desenvolvimento. Se a exposição simultânea a vários
fatores de risco é uma realidade, pesquisas têm demonstrado que muitas crianças conseguem
superá-la, apesar de viverem sem sérias dificuldades psicossociais:
Essa adaptabilidade, essa condição, esse estado de ser, convencionou-se chamar de resiliência. (...) Resiliência é a capacidade que tem um corpo de resilir, ou seja, de ter flexibilidade pois, quando submetido a uma ou várias forças energéticas, sofre a ação da mesma e após cessada a força reage voltando ao seu estado de normalidade, mostrando sua flexibilidade...” (p. 23).
2.5 A reafirmação da complexidade: em busca do “não dito“
A leitura dos trabalhos permitiu reafirmar algumas tendências já discutidas e
abordadas por outros pesquisadores em estudos anteriores: a violência interpessoal doméstica
é um fenômeno complexo, multifacetado, multicausal: resulta da interação de fatores do
sujeito e do contexto. O fato de ocorrer ao nível das micro-relações, dentro do privado
ambiente familiar, gera uma série de dificuldades para sua identificação e dilemas e desafios
para sua abordagem.
Os efeitos provocados sobre o desenvolvimento e a saúde das pessoas vítimas de
situações violentas dentro da família, ao longo do curso de vida, chamam a atenção para a
urgência da abordagem bem sucedida aos casos notificados de VIPD. O número de alterações
e sintomas que já foram relacionados à VIPD no mundo todo, a gravidade das conseqüências
sobre a qualidade de vida e a saúde permitem olhar para esse tipo de violência, como vimos,
como uma questão de saúde pública.
Os aspectos ligados à complexidade da violência doméstica apontam para a
importância de identificar, prevenir e abordar essa forma de violência que parece alimentar a
reprodução da macro-violência. Além dos efeitos sobre o desenvolvimento e a saúde,
experiências violentas vividas na família podem ser responsáveis pela reprodução da
violência, numa cadeia que também envolve abuso de substâncias psicoativas e envolvimento
em outras situações violentas: crimes, agressões, destruição de propriedade.
58
O número de serviços ou setores da sociedade que podem estar envolvidos na
prevenção e abordagem aos casos é outro ponto que repete a idéia de complexidade.
Nesse contexto o papel da escola na identificação dos casos ganha destaque
fundamental como importante estratégia de prevenção. Curiosamente apenas 01 artigo (WEIS
& FINE, 1998), do Reino Unido, discute o papel dos educadores no reconhecimento e
abordagem aos casos, por considerar a escola como locus privilegiado para manifestação de
indicadores. A importância da participação dos educadores no diagnóstico e reconhecimento
de casos de violência na vida de seus alunos é ressaltada. Igualmente importante é o papel dos
profissionais da saúde.
Interessante perceber que a necessidade de integração dos serviços também é evocada
quando se discute a prevenção. Se comportamentos violentos podem ser aprendidos em casa
e se manifestam como conseqüência de experiências vividas no lar, a identificação dos casos
ou das famílias de risco e a abordagem preventiva podem ser importantes fatores de
prevenção da violência social.
Caberia perguntar: que outros aspectos poderiam estar envolvidos na dificuldade de
identificar e reconhecer o fenômeno? Além de todas as questões que já estão postas, das
variáveis que já foram consideradas e estudadas, o que mais poderia concorrer para o pouco
sucesso relatado na abordagem ao fenômeno e em sua reprodução, a despeito dos esforços e
discussões que se intensificaram nos últimos anos?
Pensando especificamente na violência doméstica praticada contra crianças e
adolescentes, como essas práticas se mantém?
A busca da compreensão a partir do discurso de educadores, no contexto da escola,
com a preocupação de identificar as condições materiais e ideológicas da produção dessa
realidade deve nos permitir arriscar repostas para algumas dessas perguntas.
Vamos retomar a discussão sobre a inter-relação sujeito contexto no próximo capítulo,
ao abordarmos questões ligadas a violência em seu caráter mais geral.
59
Lá no sertão cabra macho não ajoelha, nem faz parelha com quem é de traição,
puxa o facão, risca o chão que sai centelha, porque tem vez que só mesmo a lei do cão.
Enquanto a faca não sai toda vermelha, a cabroeira não dá sossego não,
revira bucho, estripa corno, corta orelha, quem nem já fez Virgulino, o capitão.
Já foi-se o tempo do fuzil papo amarelo, pra se bater com o poder lá do sertão,
mas Lampião disse que contra o flagelo, tem que lutar de parabelo na mão.
Falta o cristão aprender com São Francisco, falta tratar o nordeste com o sul,
falta outra vez Lampião, trovão, corisco, falta feijão invés de mandacaru, falei?
Falta a nação acender seu candeeiro, faltam chegar mais Gonzagas lá de Exú Falta o Brasil de Jackson do pandeiro,
maculêlê, carimbó, maracatu.
è lamp, é lamp, é lamp é lampião meu candeeiro encantado...
”CANDEEIRO ENCANTADO” (LENINE/PAULO C. PINHEIRO , 1998) 20
20 extraído do CD “ O dia em que faremos contato”, de Lenine (1998)
60
III. Sobre Violência
O texto-música que abre este capítulo toca na questão da violência estrutural – a
desigualdade, a exclusão social e a pobreza – como causa para a violência mais concreta, do
confronto físico, corporal mesmo.
Sabemos que este é apenas um possível ângulo para olhar para a violência, e que, se
queremos olhar para ela da perspectiva da complexidade, qualquer tentativa de apontar uma
causa corre o risco de cair na simplificação de ignorar a interpenetração sujeito-contexto.
Já discutimos aqui que, se por um lado a pobreza e a exclusão aos direitos podem
levar ao esgotamento das estratégias para lidar com a adversidade, levando à violência, por
outro lado, é um grave equívoco pensar que a violência só esteja presente entre os pobres.
Todos os dias, temos lições da realidade que nos mostram situações em que a violência
interpessoal acontece nos diversos níveis da pirâmide social.
Podemos pensar nos trotes violentos aos calouros, por exemplo. Recentemente
criminalizado e amplamente discutido pela mídia como desnecessário e abusivo, o trote
costuma provocar situações que colocam em risco a integridade física e metal dos calouros,
situações que são impingidas pelos veteranos no início de cada período letivo, ano após ano.
Apesar das humilhações e constrangimentos (ingerir bebidas alcoólicas, ter os cabelos
cortados, o corpo e as roupas atingidos por tintas, ovos, graxa, andar como animais) parece
impossível aos calouros não desejar passar pelo trote: para o aluno que acaba de passar pelo
funil estreito do vestibular receber o trote é a confirmação do ingresso na universidade, uma
forma de comemorar sua vitória. No próximo ano, eles serão veteranos e estarão repetindo o
ritual. Por mais que se discuta que o trote poderia ser algo mais inteligente, menos primitivo e
se converter em ações solidárias, como formas de prestação de serviços á comunidade, por
exemplo, essa prática, que caminha no limite da violência, se reproduz ano após ano, e não
são raros os relatos de vítimas fatais.
O texto da música, sem nenhuma pretensão científica, também faz uma importante
referência à valorização de atitudes violentas como sinal de coragem ou como a única forma
de lidar com determinadas situações. Ser “cabra macho” e enfrentar a violência com
violência é tão importante quanto se manter fiel aos princípios (“ nem faz parelha com que é
de traição”). A forma como o texto se refere a Virgulino Lampião coloca a violência como
valor, no sentido de ser uma forma de resistir à violência das relações sociais sustentadas pelo
poder.
61
Finalmente, o autor aponta para saídas que podem ser encontradas na cultura, ou na
redescoberta e valorização das referências culturais brasileiras. Além disso, aponta para a
necessidade de solução dos problemas sociais, como saída para a violência.
Entendemos tudo isso como marcas da complexidade desse acontecimento que é a
violência.
A violência pode estar ligada às condições sócio-econômicas, mas está presente e
distribuída de forma mais ou menos uniforme entre as classes sociais; é possível pensar na
gênese da violência num nível das micro-relações e em seu caráter cíclico, já que crianças
criadas em ambientes violentos (sofrendo violência ou testemunhando episódios violentos
contra a mãe ou outro membro da família) podem vir a se tornar violentas. Da mesma forma,
também é possível pensar a violência que se manifesta nas relações interpessoais como
conseqüência ou reflexo da violência que ocorre ao nível das macro-relações: a violência
entre classes sociais,a violência da exclusão social e da desigualdade.
Já vimos que alguns autores propõem que se olhe com mais atenção para a idéia de
que práticas educacionais usadas na infância são a base para a personalidade do adulto. Ao
estudar a história da infância de uma perspectiva universalista deMause (1974) discute que as
práticas de educação de crianças numa sociedade não são apenas um item na lista de traços
culturais, antes são a condição para a transmissão e desenvolvimento de todos os outros
elementos culturais e coloca limites definidos naquilo que pode ser alcançado em todas as
outras esferas da história: “experiências específicas da infância devem ocorrer para sustentar
traços culturais específicos, uma vez que essas experiências não ocorram mais, o traço
desaparece” (pág. 3) . As práticas de criação de filhos são determinadas pelos traços culturais
ou os definem? Preferimos abrir mão dessa dicotomia e imaginar que os dois sentidos se
complementam, aceitando a lógica da interpenetração e interdependência sujeito- contexto.
Nessa perspectiva, é possível assumir que atitudes violentas podem ser conseqüência
de situações que não podem ser resignificadas, seja por questões referentes ao sujeito, seja por
questões referentes ao contexto, e mais especificamente, produzidas nessa inter-relação.
3.1 Definindo violência
A violência comporta muitas e possíveis formas, definições, olhares.
Diante dessa pluralidade da violência, Deslandes (2002) propõe que falemos de
“violências”: assassinatos, escândalos econômicos, corrupções, mortes anônimas, chacinas;
violência interpessoal, violência estrutural, violência contra o trabalhador, assédio moral. A
62
autora nos diz que banalizada pela mídia, mercadoria para a indústria de segurança e
cruelmente útil na propagação de idéias de seletividade social e racial, a violência produz
milhares de vítimas, em nosso país e em todo o mundo.
Roure (1993), discute que no sentido literal, cristalizado, violência significa
transgressão de regras pré-estabelecidas. É necessário observar o quão simplista um sentido
que se pretende literal pode ser e como esse sentido naturalizante é o que ganha o senso
comum. Percebemos, então, o quanto a literalidade pode empobrecer ou ocultar os sentidos.
Pensar a violência como transgressão de normas é ignorar a violência implícita na norma; é
ignorar a violência institucionalizada e utilizada como instrumento de dominação: educar para
a norma, para a manutenção de um estado de coisas correspondente à ideologia dominante. A
autora nos fala dos discursos reificados que se tornaram verdades e permitiram, a partir da
literalidade construída pelo poder “...a construção de um imaginário que concebe a punição,
a repressão, o extermínio, o linchamento, a pena de morte como ‘conseqüências naturais’
para aqueles que optaram ‘violentamente‘ pelo caminho da marginalidade” (p. 18).
Para além da literalidade, é possível perceber que a violência pode ser muito mais sutil
que a simples e concreta transgressão a regras/normas. Dizendo de outra forma, a transgressão
das normas, em alguns casos pode ser muito menos violenta do que sua manutenção.
Chauí (1985), define como violência “...a ação que trata o ser humano não como
sujeito, mas como coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio de
modo que quando a atividade e a fala de outrem são impedidas ou anuladas há violência.” A
definição apresentada não se refere necessariamente ao uso da força física. O aspecto mais
importante dessa caracterização de violência é a coisificação, e o impedimento ou a anulação
da atividade e da fala do outro.
Adorno (1988) também se refere a “coisificação”, a conversão de sujeitos em objeto.
De acordo com o autor, a violência é uma forma de relação social, ligada ao modo pelo qual os
homens produzem e reproduzem suas condições de vida e trabalho. A violência, então,
expressa modelos de comportamento em determinada sociedade, num dado momento
histórico. Essa violência vivida entre homens e mulheres, adultos e crianças e entre diversas
categorias profissionais resulta na transformação do sujeito em objeto, ou seja, sua
coisificação. O autor coloca que a violência nega alguns valores considerados universais como
a liberdade, a igualdade e a vida. Constitui-se, portanto, numa ameaça à vida, pois reduz,
aliena e anula a manifestação desses direitos que todo indivíduo deveria ter.
63
Tudo isso nos leva a pensar que a Violência Interpessoal envolve sempre uma
questão de poder e quanto menos poder uma pessoa ou grupo possui mais suscetível à
violência ele será.
Em 1996 a 49ª. Assembléia Mundial de Saúde adotou a Resolução WHA49.25
declarando a violência como problema importante e crescente de saúde pública no mundo. Na
resolução a Assembléia chamou a atenção para as sérias conseqüências da violência – no curto
e no longo prazo – para pessoas, famílias, comunidades e países e, destacou os efeitos
prejudiciais que ela gera nos setor de serviços de saúde.
Uma das conseqüências dessa Resolução foi a publicação do Relatório Mundial sobre
Violência e Saúde (Organização Mundial de Saúde - OMS, 2002).
De acordo com o documento, o primeiro passo para uma análise abrangente e científica
da violência começa por sua definição. Assim, a OMS propõe que:
Violência é o uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação (p. 5)
Algumas peculiaridades da definição apresentada pela OMS merecem comentários.
Em primeiro lugar, a associação entre intencionalidade e a prática o ato violento,
independentemente do resultado produzido, o que exclui os incidentes não intencionais. A
inclusão da palavra poder, aliada a expressão uso da força física expande o entendimento
convencional de violência incluindo os atos que resultam de relações de poder, como as
ameaças e intimidações. A compreensão do uso intencional do poder como base para a
violência permite incluir a negligência ou atos de omissão como atos violentos, e todos os
tipos de abuso físico, sexual e psicológico, bem como suicídio e outros atos de auto-agressão.
De acordo com o relatório, o impacto da violência pode ser visto de várias formas, em
diferentes lugares do mundo: todo o ano, mais de um milhão de pessoas perdem suas vidas e
muitas outras sofrem lesões não fatais resultantes da violência auto-infligida, interpessoal ou
coletiva. De forma geral, no mundo todo a violência está entre a principal causa de morte entre
pessoas na faixa etária de 15 a 44 anos.
Embora seja difícil obter estimativas precisas, o custo da violência se traduz em bilhões
de dólares americanos em gastos anuais com assistência à saúde no mundo todo e no caso das
64
economias nacionais mais alguns bilhões em termos de dias de trabalho perdidos, aplicação
das leis e perda de investimentos.21
O relatório propõe também a reflexão sobre a total impossibilidade de se calcular o
custo humano em sofrimento e dor: podemos falar no percentual dos orçamentos gastos com o
cuidado às vítimas de violência, mas existem os custos invisíveis, da mesma forma que ainda
existe uma violência invisível:
Ao mesmo tempo em que a tecnologia dos satélites tem tornado certos tipos de violência – terrorismo, guerras, rebeliões e tumultos civis – diariamente visíveis ao público, há muito mais violência ocorrendo de forma invisível nos lares, locais de trabalho e até mesmo em instituições médicas e sociais criadas para cuidar das pessoas. Muitas das vítimas são demasiadamente jovens, fracas ou doentes para se protegerem. Outras são forçadas por convenções ou pressões sociais a manterem silêncio sobre suas experiências (p. 3).
Sobre a tipologia da violência o relatório divide a violência em três grandes categorias,
conforme quem comete o ato violento: violência auto-infligida, violência interpessoal
(infligida por uma pessoa ou por um pequeno grupo de pessoas) e violência coletiva (infligida
por grupos maiores: Estados, grupos políticos organizados, grupos de milícia e organizações
terroristas).
Na categoria da violência auto-infligida temos o comportamento suicida (pensamentos
suicidas, tentativas de suicídio e suicídios completados) e o auto-abuso (atos de auto-
mutilação).
A violência interpessoal divide-se em 02 subcategorias: violência da família e de
parceiro/a íntimo/a (incluindo-se aqui a violência doméstica contra mulher, crianças e
adolescentes, idosos e portadores de deficiência, pensando-se na violência que ocorre
preferencialmente dentro de casa, no espaço privado) e violência comunitária (ocorre entre
pessoas sem laço de parentesco, geralmente fora de casa: violência juvenil, atos aleatórios de
violência, estupro ou ataque sexual por estranhos; a violência institucional pode ser incluída
aqui: escolas, locais de trabalho, asilos, prisões).
Finalmente, a violência coletiva pode ser social (crimes de ódio cometidos por grupos
organizados, atos terroristas, violências de multidões), política (guerras e conflitos, violência
21 em entrevista à Solange Azevedo (revista Época, edição de 22/11/2004) o historiador Luís Mir referiu que no Brasil ocorrem 55 000 homicídios/ano e que a violência representa 40% dos gastos da saúde em nível nacional, sendo que para os estados do RJ e SP o percentual sobre para 60%.
65
do Estado) ou econômica . Essas subcategorias sugerem a existência de motivos possíveis
para a violência cometida pelos grandes grupos de pessoas ou Estados.
Sobre a natureza dos atos violentos, o relatório propõe que eles podem ser de natureza
física, psicológica, sexual e envolvendo privação e/ou negligência. Cada uma dessas
naturezas de violência podem ocorrer dentro das categorias ou sub-categorias. Por exemplo,
uma criança pode sofrer violência física e negligência infligida por seus pais (violência
interpessoal doméstica).
Em relação às causas da violência, o relatório da OMS discute e assume uma posição
multicausal: algumas causas da violência podem ser facilmente percebidas enquanto outras
possuem raízes profundas na história e cultura humanas. Ao mesmo tempo em que é possível
assumir que alguns fatores biológicos e outros fatores do sujeito possam explicar algumas
predisposições para a agressão, não se pode negar que esses fatores interagem com o
contexto (fatores familiares, comunitários, sociais e históricos) para criar uma situação
propícia à manifestação da violência. Novamente estamos diante da compreensão que
queremos aprofundar: a complexidade presente na inter relação sujeito-contexto não permite a
simplificação de apontar causas para a violência no sujeito OU no contexto.
3.2Violência: um traço humano?
Parece correto afirmar que a violência sempre tenha estado presente na experiência
humana. A presença marcante da violência na pós-modernidade é paradoxal e provoca grande
desconforto, sendo abordada pela sociedade contemporânea como um dos grandes desafios a
ser enfrentado na busca do desenvolvimento sustentável, da qualidade de vida, da justiça
social. A polêmica que sempre se instala quando a discussão se volta para as causas da
violência nos levou a buscar outras compreensões que nos auxiliem integrar a perspectiva do
universal a uma perspectiva social e histórica.
La Taille (2002) sugere a existência de uma estreita relação entre violência e ética. Ao
argumentar sobre a insuficiência dos três fatores que em geral são evocados como causas da
violência, recorre a Freud e à idéia de que o ser humano nasce violento e só não realiza de
forma brutal essa tendência primitiva porque renuncia aos instintos agressivos sob influência
do superego.22 Cabem aqui algumas considerações partindo dessa referência à Freud (1929,
1997).
22 instância que reúne as leis (restritivas) da civilização, da cultura; responsável pela limitação de certos comportamentos para que a civilização seja possível, como por exemplo, a proibição da expressão da violência (função da moral); o superego dá a forma, os conteúdos diferenciam-se na cultura.
66
Ainda que a violência seja pauta preferencial entre os desafios enfrentados pela
sociedade atual é interessante perceber que ela se configura num acontecimento tão antigo
quanto o próprio homem. Tal constatação reafirma a posição que pretendemos adotar: a
violência, e suas múltiplas manifestações, resulta da inter relação a qual se dá sob complexas
determinações histórico-sociais.
Se hoje muitas discussões pretendem responsabilizar, em última análise, o capitalismo
pela violência, que comumente é pensada como conseqüência da pobreza, da má distribuição
de renda e da privação aos direitos básicos (saúde, educação, cultura, lazer, emprego), um
rápido olhar lançado para a história permite identificar a presença da violência muito antes do
surgimento do capitalismo como sistema econômico.
Certamente ninguém pode negar as conseqüências da pobreza, da má distribuição de
renda e do não acesso da grande maioria da sociedade às benesses do progresso, da
tecnologia, da globalização. Mas, essa história comporta um outro olhar.
Ainda que a história seja um instrumento limitado, pelos erros e enganos, também pela
evidente dificuldade de se estudar um passado tão remoto, é ela mesma que nos mostra a
presença da violência, como traço marcante do comportamento humano, “desde os
primórdios”.
A história não nos permite responsabilizar apenas o contexto gerado pelo capitalismo
por nossas mazelas: muito antes da transição do feudalismo para o capitalismo a exploração
do homem pelo homem já era uma prática instituída.
Na verdade, a violenta exploração do mais fraco pelo mais forte está presente desde
que o primeiro primata assumiu a postura ereta e passou a utilizar as mãos para transformar a
natureza a seu favor23: os representantes da espécie que se mostraram mais fortes e criativos
passaram a assumir a liderança dos bandos, subjugavam as fêmeas e inauguraram, antes ainda
do surgimento da linguagem, a divisão hierárquica entre o pensar e o fazer.
Freud descreve isso de forma interessante na obra “O mal estar na civilização”, datada
de 1929. Ainda que o autor pareça cético demais em relação ao homem, não discuta a
violência como traço evolutivo, resultante da interação natureza/cultura e que seja possível
dizer que na discussão de Freud está presente um certo juízo de valor, suas considerações são
interessantes e podem contribuir para nossa discussão.
23 Estamos novamente nos remetendo ao trabalho de Friedrich Engels: O Papel do Trabalho da Transformação do Macaco em Homem
67
O autor apresenta suas idéias sobre “porque a civilização não deu certo”, em sua
discussão sobre as dificuldades da humanidade, a despeito de todo o progresso que se podia
observar, para atingir a tão almejada e inatingível felicidade.
Entre outras coisas, Freud relata que a vontade arbitrária do chefe da família primitiva
era irrestrita: remete-se à pré-história, quando surgiu o hábito de formar famílias para obter a
cooperação de seus membros na luta contra os poderes assustadores da natureza e pela
sobrevivência, para nos mostrar a origem da dominação.
Assim, se desde que o mundo é mundo o mais forte subjuga o mais fraco é possível
afirmar que o capitalismo é apenas conseqüência da inter relação sujeito-contexto e não o
responsável pelas dificuldades que encontramos hoje para nos organizarmos e solucionarmos
nossos problemas.
Freud (1929, 1997) postula a existência de uma inclinação à agressão:
Em conseqüência dessa mútua hostilidade primária dos seres humanos, a sociedade civilizada se vê permanentemente ameaçada de desintegração. O interesse pelo trabalho em comum não a manteria unida; as paixões instintivas são mais fortes que os interesses razoáveis ( p. 68).
O autor insiste que nem todas as restrições impostas pela civilização (limitação de
certos comportamentos para que a civilização seja possível) são capazes de domar nossos
instintos primitivos:
O elemento de verdade por trás disso tudo...é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário: são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo: ‘O homem é o lobo do homem’. 24
Freud continua a contribuir para a nossa reflexão, sendo necessário apontar para o
valor de seus postulados, levando-se em conta a época em que escreveu:
24 ibid. p. 67
68
Os comunistas acreditam ter descoberto o caminho para nos livrar de todos os males. Segundo eles, o homem é inteiramente bom e bem disposto para com seu próximo, mas a instituição da propriedade privada corrompeu-lhe a natureza. A propriedade da riqueza privada confere poder ao indivíduo e, com ele, a tentação de maltratar o próximo, ao passo que o homem excluído da posse está fadado a se rebelar hostilmente contra seu opressor (FREUD, 1997, p 69).
O autor deixa claro que não pretende fazer críticas ao sistema, apenas desconfia que
possa ser possível, através da redistribuição das riquezas, abolir a agressividade, a dominação
e a desigualdade entre os homens. Freud escreve, quase que prevendo o fracasso (que ele não
chegou a testemunhar, tendo morrido em 1939, do regime socialista): ”não se pode senão
imaginar, com preocupação, sobre o que farão os soviéticos depois que tiverem eliminado
seus burgueses”.
Sabemos o que aconteceu com o sonho da revolução russa. Podemos citar, também, a
Revolução Cubana: em nome dos fins, os meios foram os piores possíveis, reproduzindo a
violência, a dominação.25
Assim, as regras, as leis restritivas da civilização acabam por limitar certos
comportamentos, como por exemplo a proibição da expressão da violência. La Taille (2002)
nos diz que em Freud, a ética existe para “se opor a uma natureza violenta do indivíduo. Logo
a ética tem relação direta com a questão da violência” (página 230).
O mesmo autor - quando discute os fatores que tentam explicar a violência, mas não o
fazem de modo satisfatório - aponta para um primeiro fator, já considerado por nós nesta
discussão, que diz respeito à macro-estrutura ou ao contexto sócio-econômico: desemprego,
pobreza, miséria. Em seguida a desestruturação da família e, finalmente, o último fator, que
de acordo com o autor é evocado por quase todos: a educação, ou o não acesso a uma
educação de qualidade.
O autor nos diz que do ponto de vista da psicologia esses fatores não parecem dar
conta de explicar a violência. Sem negar a importância do acesso aos direitos da cidadania,
incluindo o direito a uma educação de qualidade e a importância da família e das relações
familiares no desenvolvimento, La Taille propõe que se olhe para a questão da violência da
perspectiva do desenvolvimento moral.
25 O triste episódio dos oprimidos que chegam ao poder através da luta armada e uma vez no poder reproduzem os atos daqueles contra os quais lutaram, repete-se ao longo da história. Isso nos remete ao trabalho de Foucault, que apresenta um sujeito capturado pela ideologia dominante através da instituição, um sujeito que reproduz a instituição: o libertador torna-se o governante autoritário e corrupto.
69
Ao citar La Taille anteriormente falamos da relação violência-ética, agora referimo-
nos, citando-o novamente, à violência na perspectiva do desenvolvimento moral. O sentido da
discussão que estamos nos propondo fazer torna necessário definir moral, inicialmente, para
em seguida estabelecer, se é que seja possível, a distinção entre moral e ética.26
É possível definir moral como uma inquietação (empírica/normativa) sobre como agir
em sociedade, em relação aos outros, em relação a si mesmo.
Em termos etimológicos, Moral, do latim e Ética, do grego, são sinônimos: a origem
das palavras nos remete à idéia de costumes (como as pessoas se relacionam entre si).
Convencionalmente se propõe uma distinção: pensa-se moral como um conjunto de
regras ou deveres e pensa-se ética como o conjunto de princípios que deram origem às regras.
Assim, enquanto a pergunta da moral seria "O que (não) devo fazer?", a pergunta da ética é
"Que sentido dar à vida" ou "Quem desejo ser?", dizendo respeito às coisas que fazem
sentido numa definição de identidade.
Calligaris (2006), evoca Hume (1751) e sua “Investigação sobre os princípios da
moral” , para falar da origem dos nossos sentimentos morais. Para o filósofo a capacidade de
sentir simpatia pelos semelhantes estaria na base dos sentimentos morais, configurando-se na
base para a moralidade: se soubermos nos colocar no lugar dos outros, nosso comportamento
terá uma grande chance de ser moralmente aceitável. Calligaris coloca a questão: de onde vem
essa simpatia que nos torna morais? Ainda: quais habilidades seriam necessárias para
simpatizar a ponto de me colocar no lugar do outro?
Varella (2006) discorre sobre a teoria da Empatia-Sistematização, uma contribuição da
Psicologia para a compreensão da questão. Segundo essa teoria os sujeitos podem ser
classificados de acordo com sua habilidade de sistematizar – analisar um sistema com o
objetivo de prever seu comportamento, ou estabelecer empatia – capacidade de identificar
estados mentais alheios e de responder a eles com a emoção mais apropriada. Como podemos
perceber, para me colocar no lugar do outro entram em jogo habilidades cognitivas e afetivas.
Ao longo do desenvolvimento passamos por etapas que nos levam da anomia (que
significaria ignorar a existência de regras: situação observável em crianças pequenas cujos os
interesses motores são predominantes) à autonomia, passando pela heteronomia (realismo
moral ou manipulação instrumental das regras). Se a heteronomia corresponderia à coação, a
26 O faremos com a ajuda de La Taille a partir de notas de aulas das disciplinas "Psicologia do Desenvolvimento Moral: ‘Estado da Arte’ e as Novas Perspectivas” e “A construção cognitiva, moral e cultural do ‘si mesmo’ ”.
70
autonomia seria a cooperação. Piaget27 define o desenvolvimento em três momentos ou
etapas, Kohlberg28 em seis mas, o importante é perceber que na fase final do desenvolvimento
moral não se pensam as regras, ou a ética, em função de si ou de um outro próximo, mas a
sociedade é pensada em função da ética: “as pessoas que chegam a esse nível são mais
autônomas, e também mais pacíficas: ou seja, elas conseguem ver as relações sociais num
plano mais elevado “ (La Taille, 2002, p. 230).
Se formos nos basear em Piaget ou Kohlberg, contudo, entenderemos que existem pré-
requisitos a um desenvolvimento moral passível de atingir a autonomia. Na perspectiva
construtivista, cognição e raciocínio lógico são condições necessárias ao desenvolvimento
moral, mas não suficientes. Num contexto de relações sociais onde co-existem coação e
cooperação, a matriz do desenvolvimento moral é a inter relação. Em que condições é
possível ao ser humano chegar à autonomia? Numa sociedade em que todos fossem seres
autônomos, haveria violência?
Sobre isso, nos diz La Taille que “ se Kohlberg e Freud tiverem razão, o
desenvolvimento ético de uma pessoa é um dos elementos (não digo o único) necessários à
contenção da violência, seja em que nível essa violência, essa manipulação do outro, ocorra”
(p.230).
Guardadas as diferenças de foco e perspectiva das teorias, Piaget não foi mais otimista
que Freud: a moralidade, assim como a inteligência, é um virtual de toda a pessoa (“Toda
criança é um ser potencialmente capaz de chegar à autonomia”), mas se a possibilidade da
autonomia é real, a probabilidade é pequena.
Diante disso, é importante rever a hipótese de Lévy-Bruhl, discutida por La Taille
(2002) segundo a qual a moralidade humana é extraordinariamente complexa, não podendo
ser facilmente explicada pela lógica ou por poucos princípios diretores.
Podemos pensar, então, aceitando a complexidade do agir moral, na questão da
identidade como importante nessa discussão: como nos tornamos (ou não) seres autônomos,
cooperativos, solidários?
A discussão que Taylor (1996) propõe para responder a essas questões no interessa
por também pontuar a inter relação sujeito-contexto. 27 o objeto da moral em Piaget não é tão claro quanto em Kohlberg e consiste num sistema de regras e como o indivíduo legitima essas regras; Piaget vê a moral como resultado da necessidade de afeição recíproca; a função da moral é garantir a afeição recíproca, manter a organização social. 28 Mais explícito que Piaget, Kohlberg definiu moral como justiça ( igualdade e equidade); direitos e deveres, leis, regras.
71
O autor propõe três eixos ou dimensões morais: (1) respeito ao outro; (2) busca de
uma vida plena (projeto de vida, que vida viver) e (3) dignidade ( projeto de identidade, quem
eu quero ser: valores que me fazem sentir digno): ser capaz de sentir e inspirar valor.29 Propõe
que a identidade seja entendida como valor e afirma que a identidade (o self) depende da
busca de quadros referenciais culturais, ou "marcos referenciais", construídos pelo diálogo
com o contexto: a rede ou sistema de valores que orienta a construção do self vem da cultura,
da inter relação com um entorno ampliado, social, histórico. Conforme sugere Taylor, é
possível compreender a identidade, como conjunto de representações valorativas de si, que se
formam a partir de “marcos referenciais” construídos na inter relação com o entorno
ampliado. De acordo com o autor, é impossível ao homem desfazer-se dos "marcos
referenciais", pois o horizonte dentro do qual vivemos nossas vidas é que lhe dá sentido.
Tentando definir identidade, Taylor coloca que a pergunta “quem eu sou?” não se
responde apenas um com um nome ou uma referência familiar. Para ele, o que responde tal
pergunta é entender o que é importante para nós mesmos: uma identidade define-se pelo
horizonte dentro do qual se adota uma postura (compromissos e identificações que
proporcionam o marco dentro do qual se define o que é bom, valioso, o devo fazer, o que
aprovo e a que me oponho). A identidade pode ser definida para alguns como certos
compromissos morais ou espirituais, ou pela nação ou tradição a que pertencem: perder esse
compromisso é perder o significado das coisas. Para o autor, preocupações como “que tipo de
vida vale a pena viver” ou “o que seria uma vida digna e honrada” não são opcionais; a
resposta pode variar de pessoa para pessoa e muito mais de cultura para cultura (questões
relacionadas com o significado da vida); assim variam os bens através dos quais as pessoas
definem sua identidade, porém a necessidade de uma orientação moral ou espiritual nem por
isso é menos absoluta.
Olhando da perspectiva da psicologia e do texto de Taylor, essa definição de
identidade pode remeter àquele sujeito que é origem e causa de todas as coisas, ao sujeito
intencional e consciente, que conquista ativamente sua identidade e aproxima-se, por escolha,
de valores e ideais. Essa idéia nos interessa, como dissemos, por pontuar a inter relação
sujeito-contexto, sem nunca perder de vista que é a condição de interpelação que nos torna
sujeitos, na história.
29 Necessário considerar, como o próprio Taylor o faz, que essas escolhas acontecem na complexidade de determinações sociais e históricas e que essas “condições” em que as escolhas se produzem referem-se tanto ao contexto imediato, quanto ao contexto histórico mais amplo.
72
Sobre a posição de Taylor, La Taille (2002) nos diz o seguinte: ou os valores morais
compõem ou não compõem a personalidade de uma pessoa. Acontece que esses valores ou
“marcos referenciais” podem variar muito entre as culturas ou mesmo dentro de uma mesma
sociedade. Como separar até que ponto a violência é aceitável ou pode ser justificada? Em
quantas situações a atitude pacifista de oferecer a outra face pode ser ridicularizada? Com
muita freqüência, em muitas comunidades recusar atitudes violentas pode soar como
“covardia”. Afinal, o que define o que o é valorizado ou desprezado pode depender muito
pouco de “escolhas” intencionais do sujeito.
No caso da violência doméstica, por exemplo, poderíamos pensar em quantas pessoas
admiradas por sua conduta ética na sociedade podem ser extremamente cruéis quando se trata
da educação de seus filhos? Isso nos leva a pensar que poder haver diferenças para o que faz
sentido para nós, em diferentes lugares sociais.
Infelizmente, as famílias mais expostas e que acabam sendo notificadas aos serviços
sociais e de saúde são as famílias pobres. Embora as discussões teóricas insistam em colocar
como evidência o fato de que a violência interpessoal ignora fronteiras entre classes sociais, é
mais fácil diagnosticá-la entre os pobres: casas muito próximas, sem muros, muitas pessoas
dividindo o mesmo espaço. Parece correto afirmar que é mais fácil aos profissionais forçarem
sua entrada numa casa sem muro ou portão, num bairro popular, do que abordar uma família
de bairro nobre, numa casa guardada por muros altos, portões eletrônicos e, sobretudo, pela
reputação dos moradores, pessoas idôneas até que se prove o contrário, bem sucedidas,
respeitadas30. Além disso, é difícil escapar à evidência construída historicamente de que “os
pobres são perigosos”.
Como é possível perceber, uma discussão sobre violência pode ir por muitos e
distintos caminhos, mas a ampliação da compreensão sobre ela depende de aceitarmos a
complexidade da inter relação sujeito contexto, a qual pode ser melhor contemplada a partir
das questões teóricas colocadas pela AD, conforme veremos no próximo capítulo.
30 Em minha experiência de 13 anos num serviço de proteção à infância, recebemos pouquíssimas notificações referentes á famílias de classe média. Jamais conseguimos passar do portão. A célebre frase “ Você sabe com quem está falando?”, o bairro de residência, o aspecto da casa impediam os agentes de ação comunitária de prosseguir. As notificações referentes á famílias de classe média eram repassadas à autoridade competente, saíam da alçada do serviço municipal.
73
“ Senhor Scarlatti - disse o padre Bartolomeu de Gusmão quando o improviso terminou e todos os ecos ficaram corrigidos – não me gabo de saber desta arte, mas estou que até um índio da minha terra, que
dela sabe ainda menos do que eu, haveria de sentir-se arrebatado por essas harmonias celestes.
- Porventura não – respondeu o músico, porque bem sabido é que há-de o ouvido ser educado se quer estimar os sons musicais, como os olhos têm que aprender a orientar-se no valor das letras e sua
conjunção de leitura, e os próprios ouvidos no entendimento da fala.
- São palavras ponderadas, essas, que emendam as levianas minhas. É um defeito comum nos homens mais facilmente dizerem o que julgam querer ser ouvido por outrem do que cingirem-se à verdade.
- Porém, para que os homens possam cingir-se à verdade, terão primeiramente de conhecer os erros.
- E praticá-los?
- Não saberei responder à pergunta com um simples sim ou simples não, mas acredito na necessidade de um erro.
- Tendes razão, disse o padre. Mas, desse modo, não está o homem livre de julgar abraçar a verdade e achar-se cingido com o erro.
-Como livre também não está de supor abraçar o erro e encontrar-se cingido com a verdade, respondeu o músico. E logo disse o padre:
- Lembrai-vos de que quando Pilatos perguntou a Jesus o que era a verdade, nem ele esperou pela resposta, nem o Salvador lha deu.
-Talvez soubessem ambos que não existe resposta para tal pergunta.
-Caso em que, sobre esse ponto, estaria Pilatos sendo igual a Jesus.
-Derradeiramente, sim.
-Se a música pode ser excelente mestra de argumentação, quero já ser músico e não pregador.
-Fico obrigado pelo cumprimento, mas quisera eu, senhor padre Bartolomeu de Gusmão, que a minha música, fosse um dia capaz de expor, contrapor e concluir como fazem sermão e discurso.
- Ainda que, reparando bem no que se diz e como, senhor Scarlatti, se exponham e contraponham, as mais das vezes, fumo e nevoeiro, e se conclua coisa nenhuma. A isto não respondeu o músico, e o
padre rematou:
- Todo o pregador honesto o sente quando baixa do púlpito. Disse o italiano, encolhendo os ombros:
Fica o silêncio depois da música e depois do sermão, que importa que louve o sermão e aplauda a música, talvez só o silêncio exista verdadeiramente.”
José Saramago (1982)31
31 extraído do romance “Memorial do Convento” ( pp 156-158), de 1982 (edição brasileira de 2001)
74
V. O objeto-linguagem na perspectiva da Análise do Discurso (AD)
Seria possível afirmar que diferentes olhares sobre um mesmo objeto criam objetos
diferentes? Ou faria mais sentido a perspectiva segundo a qual diferentes olhares não criam
objetos diversos, mas antes, fazem emergir diferentes faces de um mesmo objeto?
É interessante perceber que o “lugar de onde olho” se define por uma perspectiva
teórica marcada por um “jeito de olhar” que se define por um método. Ainda, esse “jeito de
olhar” deve manter uma relação coerente com o “lugar”. A busca dessa coerência teoria-
método tem sido um objetivo obsessivamente perseguido quando se trata da produção do
conhecimento.
Orlandi (1999), a propósito mesmo do objeto linguagem, remete-se a Sausure (1962)32
e a Veyne (1971)33 e nos diz que: “... diferentes perspectivas pelas quais se observa um fato
ou acontecimento dão origem a uma multidão de diferentes objetos do conhecimento, cada
qual com suas características e propriedades” (p. 15).
Para tentar dar forma a essa compreensão, podemos rapidamente pensar nesse objeto
linguagem - ou nesses diferentes objetos que podem surgir a partir de diferentes perspectivas
– na psicologia.
Tomemos como exemplo a linguagem tal como aparece em Piaget e em Vygotsky:
enquanto para o primeiro o mediador entre o sujeito e o objeto do conhecimento34 é a ação, na
teoria sócio histórica é a linguagem35, junto às demais funções semióticas, que aparece como
mediação no processo de desenvolvimento. No processo de desenvolvimento descrito e
discutido por Vygotsky - entendendo-se por desenvolvimento intelectual a apreensão da
cultura e a apreensão das formas culturais maduras de atividade - a linguagem desempenha
um papel fundamental. Para Vygotsky, a linguagem não tem a função de comunicar o
pensamento, como para Piaget. Antes, à linguagem é dada uma função estruturante, de
representação do mundo. A linguagem nomeia as experiências, não sendo possível pensar sem
ela. Desenvolve-se mediante longo acúmulo de mudanças estruturais e funcionais,
dependendo da inter relação de fatores do sujeito e fatores externos, do contexto.
32 “O método determina o objeto” 33 “Diferentes perspectivas metodológicas criam objetos diferentes”. 34 Piaget procurou entender “quais os mecanismos mentais o sujeito uso nas diferentes etapas da vida para entender o mundo” (Rappaport, 1981). 35 É possível dizer , em última análise, que o mediador é o outro já que a linguagem é a fala do outro. No processo de apreensão cultural o outro é o guia.
75
Assim, é possível entender a linguagem que comunica o pensamento de forma
intencional, passando pelo domínio da cognição como um objeto distinto daquela outra
linguagem, aquela da função estruturante, mediadora no processo de desenvolvimento, e que
se desenvolve sob influência do exterior, entendendo esse “exterior” como produto de
complexas determinações históricas e sociais.
Na lingüística também podemos identificar diferentes objetos linguagem através da
história e a partir de diferentes perspectivas teóricas e métodos. Antes de apresentarmos esse
objeto linguagem da análise do discurso (AD), faremos uma breve incursão pela lingüística.
4.1 Do universalismo a análise do discurso: como a lingüística estuda a
linguagem e as línguas A perspectiva de que a língua é neutra e de que tem apenas a função de comunicação é
freqüente e faz parte da mais ingênua concepção possível de linguagem.
Guimarães (2001) nos apresenta uma hipótese do senso comum - que pode ser
considerada como ingênua e acrítica – sobre o que é a linguagem: instrumento de
comunicação. Nessa hipótese estariam implícitas duas outras: a de que dizer sempre significa
informar e a de que a linguagem sempre expressa nossos pensamentos e sentimentos.
O autor nos diz que tal compreensão é tomada pelo senso comum como
inquestionável, e que ela, infelizmente, ignora que uma língua nacional é aquilo que é tomado
como padrão de correção por uma elite escolarizada e culta.
Barthes (1978) sugere que a dificuldade de se estabelecer um paralelismo entre o real e
a linguagem reside no fato de que o real segue uma ordem do pluridimensional e a linguagem
uma ordem unidimensional. O autor propõe que os homens sejam eternamente inconformados
com essa impossibilidade topológica de sobrepor ou de estabelecer relação direta e única entre
a linguagem e o real.
O autor nos chama a atenção para a inocência que reside no fato de pensar o poder
como uno e nos diz que o poder, como os demônios36, é plural:
Adivinhamos, então, que o poder está presente nos mais finos mecanismos do intercâmbio social: não somente no Estado, nas classes, nos grupos, mas ainda nas modas, nas opiniões correntes, nos espetáculos, nos jogos, nos esportes, nas informações, nas relações familiares e privadas e até mesmo nos impulsos liberadores que tentam contestá-lo: chamo de discurso de poder todo discurso que engendra o erro, e, por conseguinte a culpabilidade de quem o recebe” (p. 11).
36 “Meu nome é Legião”. (p. 11)
76
Fala-nos, então, de uma guerra sem fim que deve ser travada contra os poderes, plural
no espaço social e perpétuo no espaço histórico: podemos expulsá-lo aqui que ele reaparecerá
ali.Barthes identifica a razão dessa resistência: “o poder é o parasita de um organismo trans-
social, ligado à história inteira do homem. Esse objeto em que se inscreve o poder, desde a
eternidade humana é linguagem” (p. 12).
Para ele, na língua - a expressão obrigatória da linguagem – servidão e poder se
confundem, pois assim que ela é proferida, entra a serviço de um poder, que impede de dizer
ou obriga a dizer:
A linguagem é uma legislação, a língua é seu código. Não vemos o poder que reside na língua, porque esquecemos que toda língua é uma classificação, e que toda a classificação é opressiva... Um idioma se define menos pelo que ele permite dizer, do que por aquilo que ele obriga a dizer37...Por sua própria estrutura a língua implica uma relação fatal de alienação. Falar, e com maior razão discorrer, não é comunicar, como se repete com demasiada freqüência, é sujeitar: toda língua e uma reição generalizada. 38
A idéia de que o poder inscreve-se na linguagem pode ser identificada também no
texto de Guimarães(2001) e encontra alguma correspondência nos escritos de Pêcheux,
conforme discutiremos mais adiante.
De acordo com o autor, o interesse pela linguagem data da Antiguidade Clássica.
Desde Platão identifica-se, na Grécia no interior da filosofia, esse interesse em estudar a
estrutura e o enunciado das línguas para poder tratar do juízo. Assim, a primeira classificação
das palavras de que se tem notícia foi feita pelo filósofo: nomes e verbos. Depois dele,
Aristóteles classificou as palavras em nomes, verbos e partículas:
Se aqui temos a primeira divisão da cadeia de sinais lingüísticos pelo reconhecimento de uma diferença de categorias entre palavras, estamos diante de uma posição que toma como interesse à relação da linguagem com o conhecimento. A divisão entre nomes e verbos procura descrever a estrutura do juízo, que deve falar de como é o mundo (p. 01).
O autor nos diz que, ao lado dos estudos ligados à filosofia, desenvolveram-se os
estudos ligados à retórica e à gramática. Historicamente a gramática constitui-se como
37 Citando Jakobson
38 ibid. (p. 12-13).
77
instrumentação das línguas (arte ou técnica), como modo de ensinar a ler e escrever
corretamente, como norma ditada/imposta por uma classe dominante:
A gramática instala como central, no domínio dos estudos da linguagem, a qualidade da correção, qualidade que toma várias feições no decorrer da história e permanece, ainda hoje, como um modo de regular as línguas como línguas dos Estados Nacionais, com todas as conseqüências que isso traz. Por outro lado, a retórica se apresenta como o estudo das técnicas de convencimento dos ouvintes por aquele que fala, orador. Neste caso o que interessa é como dizer para levar o ouvinte à conclusão projetada. Estamos diante de duas posições distintas: de um lado uma norma de correção (gramática), de outro as regras de como proceder para convencer, para alcançar o ouvinte (retórica). De um lado o valor da língua, de outro a adequação da relação orador auditório (GUIMARÃES, 2001, p. 1-2, grifos nossos).
A partir dessas origens e pressupostos, desenvolveu-se o estudo da linguagem e da(s)
língua(s). Guimarães nos mostra que o pensamento moderno sobre linguagem começa no
início do século XIX, com a lingüística comparativa.
A questão principal refere-se às relações genealógicas entre as línguas: reconstituir o
passado lingüístico das línguas européias e asiáticas, entender as formas no processo de
mudança. Tal perspectiva de estudo da linguagem marca uma posição naturalista, biológica e
se caracteriza pela formulação de leis fonéticas.
No início do século XX o naturalismo é abandonado e os estudos sobre linguagem
passam a ter a forma que têm hoje.
A partir de 1906, Ferdinand Saussure inicia um dos principais movimentos da
lingüística do século XX.
Saussure chega à clássica distinção entre língua e fala e define um objeto específico
para a lingüística, para pensá-la cientificamente. Ele apresenta uma concepção de língua como
sistema, substituindo a concepção naturalista, organicista e atomista, dominante até então.
Para o lingüista, no funcionamento da língua não é levado pelo que as formas foram, mas por
aquilo que elas são e pelas relações que elas tem naquele momento da história.
Na concepção de Saussure, entretanto, não estavam incluídas as questões do sujeito,
da relação com o mundo e mesmo a questão da significação:
78
Não está em questão em Saussure nem a referência, nem a expressão do pensamento. Busca-se estar num domínio autônomo que não é o filosófico nem no sentido aberto por Platão, de um lado, nem no de Aristóteles, de outro. Nem no sentido de Descartes, no século XVI em que a questão é cognitiva, ligada a estrutura do pensamento.39
O trabalho de Saussure põe os estudos lingüísticos num novo caminho, e surgem
outros teóricos importantes: Benveniste (estudo da relação que tem aquele que fala com a
língua e que se marca na estrutura da língua); Ducrot (semântica argumentativa: o fundamento
do sentido são as relações retóricas que se marcam na língua; o sentido é uma relação da
linguagem com o mundo); Austin40 (filosofia analítica inglesa ou pragmática: estudo da
significação, que para a pragmática é pensada como intenção do falante que ele comunica ao
ouvinte – o sujeito da linguagem tomado como dono de suas intenções); Jakobson (linguagem
como instrumento de comunicação, estudo sobre funções da linguagem); Hjelmslev
(estruturalismo não funcionalista, estudo da significação que no Brasil desenvolveu diálogo
com análise do discurso, incluindo um tratamento semiótico aos aspectos ideológicos da
significação).
Todas essas posições decorrem do estruturalismo de Saussure e caracterizam a
lingüística européia do século XX. O estruturalismo avança para a antropologia, sociologia,
psicanálise e filosofia e passa a por no centro das ciências humanas a questão do simbólico: os
fatos humanos significam, estão estruturados enquanto significação.
Guimarães aponta que o segundo movimento fundamental da lingüística do século XX
é marcado pelo trabalho de Chomsky: a linguagem passa a estar ligada diretamente ao
pensamento, como instrumento de expressão, numa posição metodológica claramente lógico-
formal. Para Chomsky a sintaxe é fundamental: as pessoas falam porque têm um órgão da
linguagem; a capacidade para falar é inata, biológica. Ele recoloca a lingüística no domínio
das ciências da natureza, colocando o biologicismo fora da história.
Com a ajuda de Guimarães, percebemos que a própria história da lingüística, como
ciência e disciplina, apresenta muitas idas e vindas que não alteram de modo definitivo o
paradigma central do estudo das línguas e da linguagem e nos mostra que o biológico volta a
ser pensado a partir de uma concepção universal, sem que ponha em destaque as diferenças
étnicas, históricas, culturais:
39 Ibid. p. 03 40 Sua obra de referência e “How to do things with words” de 1962, que se desenhou a partir das formulações de Morris na década de 30, numa linha ligada ao pragmatismo de Pierce, americano que no final de século XIX criou a semiótica.
79
Para Chomsky a questão é que o Humano é biologicamente universal e é o mesmo para todos, e a linguagem é parte desta caracterização naturalista e universal do homem. Na medida em que se constitui como uma gramática, a teoria chomskyana concebe o conhecimento sobre as línguas como um conjunto de regras de como formar frases. Essas regras são consideradas como constituindo a competência dos falantes, considerados idealmente, fora de qualquer situação histórica ou particular (GUIMARÃES, 2001, p. 5).
O movimento formal originado em Chomsky encontra também sua face semântica: o
estudo da significação se formula como um sistema lógico, e constitui a noção de sentido a
partir do conceito de verdade.
Até aqui, essa breve incursão sobre a história da lingüística nos mostra concepções que
buscam a unidade do lingüístico. Contribuições vindas da antropologia e da sociologia,
propõem o contrário: a não unidade. Dessa outra posição, surgiram, ao longo de século XX,
três movimentos dentro da lingüística.
Sapir, lingüista americano formado a partir das posições do antropólogo Boaz, coloca
que a língua é parte da cultura de um povo e marcada, portanto, por essa cultura. Tal
perspectiva propõe que se pense a linguagem a partir dos elementos exteriores que a
constituem. Na verdade, vai além disso: propõe a linguagem como determinante do
pensamento.
Um outro movimento que se opõe à universalidade e unidade lingüística é o da
sociolingüística quantitativa americana: a língua pensada como tendo uma estrutura variável
que se pode conhecer por um método quantitativo, através do qual se estabelecem relações
entre a divisão estratificada da sociedade e a variabilidade estatística da língua.
Um terceiro movimento marcado pelas ciências sociais e humanas é a análise do
discurso, posição teórica que pensa a relação entre o exterior e a linguagem como histórica e
constitutiva do processo lingüístico.
A perspectiva de análise do discurso, desenvolveu-se a partir de 1960, na França: de
um lado com Foucault – pensamento filosófico dedicado ao estudo da história – de outro com
Pêcheux : “análise do discurso para pensar o histórico e o político como próprios do processo
de significação do dizer, no qual se constitui o sujeito” (GUIMARÃES, 2001, p. 06, grifos
nossos).
Na perspectiva da análise do discurso, o discurso (a linguagem, a língua e seus
significados) torna-se objeto integralmente lingüístico e integralmente histórico, de forma que
o contexto - ou como o conceitua Guimarães, a exterioridade – não se apresenta como objeto
80
externo ao qual a linguagem correlacione-se, mas como parte do que é próprio à linguagem e
ao seu funcionamento.
A análise do discurso coloca em questão a historicidade, mas, lembrando Guimarães,
não a historicidade “definida pelo tempo enquanto dimensão do mundo, mas por uma
especificidade determinada pela ideologia, por uma materialidade sócio-histórica”.
4.2 Análise do Discurso: a linguagem constituída por complexas determinações
Como pudemos perceber a partir das considerações de Guimarães, ao tomar a Análise
do Discurso (AD) para ouvir os professores, estamos tomando um objeto linguagem diverso,
por muitos motivos, daquele idealmente identificado pela lingüística tradicional.
Ao discutir a dinâmica que se opera entre a Lingüística, a Psicanálise e o Marxismo na
constituição da AD, Pêcheux (1997) nos apresenta a idéia de “entremeio”, um imbricamento
que vai em direções que se expandem e toca no ponto de que as três disciplinas não param de
se estender em direção “além-de” (página 294). Com a idéia de entremeio propõe que se olhe
para a instabilidade inerente aos espaços de realização do simbólico, espaços que se
movimentam: não se juntam as três disciplinas, são três lugares ao mesmo tempo.
Retomando, da Lingüística, especificamente da Semântica toma-se a linguagem. Da
Psicanálise toma-se o conceito de inconsciente, a idéia de falha que coloca a possibilidade de
deslocamento de sentidos, de transformação, de novas interpretações. Do Marxismo toma-se a
idéia de que a história é movida pela luta de classes; diferentes sentidos e interpretações são
possíveis na perspectiva política na língua e na linguagem, o que permite pensar o discurso
como “língua na história” (PÊCHEUX, 1997).
Orlandi (2001), entretanto, propõe uma importante reflexão a esse respeito:
Se a AD é herdeira das três regiões de conhecimento – Psicanálise, Lingüística, Marxismo – não o é de modo servil e trabalha uma noção – a de discurso – que não se reduz ao objeto da lingüística , nem se deixa absorver pela teoria marxista e tampouco corresponde ao que teoriza a Psicanálise. A AD interroga a lingüística pela historicidade que ela deixa de lado, questiona o materialismo perguntando pelo simbólico e se demarca da Psicanálise pelo modo como, considerando a historicidade, trabalha a ideologia como materialmente relacionada ao inconsciente sem ser absorvida por ele ( p. 20).
Se a possibilidade de deslocamento e transformação de sentidos está na história e não
no sujeito, pensar a linguagem numa perspectiva materialista implica, em primeiro lugar, no
descentramento da noção de sujeito e na compreensão do sujeito como posição, lugar de
81
deslize de sentidos. A primeira conseqüência dessa concepção materialista de linguagem é
reconhecer que o sujeito está interpelado, em condição de interpelação. Isso significa aceitar a
“peste do assujeitamento”41. No “processo sem sujeito nem fim(ns)” de Althusser o homem
só está na história se revestido da “forma-sujeito” – interpelado ideologicamente, marcado por
determinações sociais e históricas. Não existe aqui a noção de indivíduo soberano em relação
ao mundo. A forma-sujeito (sujeito interpelado ideologicamente,) importada por Pêcheux do
marxismo althusseriano, define um agente de práticas sociais e históricas, sujeitos que são
ativos, porém não intencionalmente ativos, pois estão sob determinações das condições de
produção:
...as condições materiais de existência dos homens determinam as formas de sua consciência sem que as duas jamais coincidam; ou ainda: os homens fazem sua história mas não a história que eles querem ou acreditam fazer42: os homens estão determinados, na História, a pensar e a fazer livremente o que não podem deixar de fazer e pensar (PÊCHEUX, 1997, p. 295).
Isso nos coloca, então, diante de um sujeito que não decide o que faz sentido para ele:
a ideologia produz a naturalização de sentidos.
Ao recorrer à idéia althusseriana de “assujeitamento” Pêcheux volta a tocar numa
velha e conhecida ferida e faz uma conexão importante com a psicanálise: determinações
históricas e motivos inconscientes, ambos incontroláveis do ponto de vista do sujeito, tiram
do homem aquela intencionalidade do sujeito concebido idealmente e seu papel de autor
consciente do próprio discurso.
Emergem aqui outros dois conceitos fundamentais, que ganham importância
indiscutível em AD: história e falha.
Pêcheux parte da idéia de interpelação do sujeito para chegar ao lugar fundamental de
pensar a falha, lugar onde o intercurso com a psicanálise é marcado pela noção de
inconsciente e pela idéia da linguagem como “sintoma”.
Assim, a possibilidade de deslocamento e transformação, a possibilidade de criação de
condições para se que aloquem outros, novos sentidos, está na história e não no sujeito. Essas
são as “condições de produção” do discurso. Nesse contexto, a história é vista como lugar de
contradição e a determinação das formas de existência se dá nas relações de produção e
reprodução materiais de vida, no confronto entre forças e relações de produção.
41 referindo-se ao marxismo de Althusser 42 remetendo-se à Marx no “18 Brumário”: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.”
82
Roure (1993) nos lembra que a história não é o simples registro de acontecimentos, a
transmissão de informações, nem um amontoado de dados colocados a partir das categorias
tempo e espaço. Recorre a Pêcheux (1975, 1997) para nos lembrar que a história se produz
num processo coletivo de interação e interlocução que leva a produção de novos sentidos, que
se contrapõem aos que já existiam. Ao aceitar uma “univocidade lógica” da história e a
literalidade dos discursos, negamos as contradições e os múltiplos sentidos possíveis.
Essa história, entendida numa perspectiva materialista dialética, não pode ser resumida
a uma essência, mas deve ser pensada como processo de determinações herdadas; não tem um
sujeito, mas um motor: a luta de classes. E é a falha que permite que a história se coloque em
movimento.
Ao aceitar que ser interpelado é não ter como explicar porquê, voltamos ao ponto do
“entremeio”: os lugares onde a ideologia captura o sujeito tem a ver com as falhas e está no
entremeio entre as disciplinas, espaço de reapropriação dos conceitos. Temos um sujeito está
em confronto material com o mundo real43 e é nesse confronto, a partir do movimento da
história e da língua, que o mesmo ( o óbvio, aquilo que já foi naturalizado pelas ideologias, o
que já está posto) e o novo se colocam.
A AD proposta por Pêcheux como instrumento científico44, procura entender os
funcionamentos na língua e os funcionamentos mostram-se por regularidades: inúmeras
questões reaparecem, existem pontos de ligação entre elas; pensa-se isso na história trazendo
o espaço de abertura para a contradição: no chiste, na falha. Retomando Pêcheux (1997): “a
forma-sujeito do discurso na qual coexistem indissociavelmente interpelação, identificação e
produção de sentido, realiza o non-sens da produção do sujeito como causa de si sob a forma da
evidência primeira” (p. 295).
Assim, ao contrário do que o próprio Pêcheux postulara inicialmente45, não é no
espaço de ação política consciente que está a possibilidade de mudança, pois este já está
determinado: o autor havia colocado no sujeito do proletariado o lugar de escape, de tomada
de posição não subjetiva; ao retomar a questão discute que na luta de classes o oposto é
colocado como possibilidade e, paradoxalmente, a prática do proletariado (pensada antes
como lugar de transformação) não permite sair desse lugar de reprodução burguesa; na
verdade a busca do oposto pode ser a manutenção; num movimento de oposição se reforça o
43 Um real que existe independentemente desse sujeito. 44 a primeira publicação de Pêcheux discute a necessidade de fornecer ás ciências sociais um instrumento científico que permitisse uma abertura teórica em seu campo (Henry, 1997). 45 em “Les veritès de la Palice” (1975),e retifica posteriormente no texto “Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação” (anexo III da 3a. edição brasileira )
83
não-deslocamento. Revendo sua posição inicial, Pêcheux nos diz que o ponto de escape não
está no interior; ao pensar o proletariado como possibilidade de movimento admite que deixou
de lado a psicanálise (o inconsciente, a falha); esqueceu um ponto da psicanálise que emerge
na linguagem: o chiste, o ato falho. Ao se fixar um pouco mais no marxismo, pensando-o
como lugar de escape, deixou de lado o entremeio entre marxismo e psicanálise.
Eis a contradição: a conscientização não garante a mudança. Se a interpelação produz
a ilusão de centramento, que é condição fundante de ser sujeito, o espaço de mudança está no
próprio assujeitamento.
A noção de non-sens é fundamental: o não-sentido emerge do inconsciente como
constitutivo; ele interpela e captura o sentido, na falha é que o sentido se encontra. No
confronto novo-mesmo, deparamo-nos com sentidos que enganam. A ideologia (ou, para ser
fiel a Pêcheux, as ideologias) coloca o conhecido, o óbvio, a trilha. Produz-se assim, a
naturalização dos sentidos, as evidências. O caminho trilhado, o conhecido, é muito forte,
natural.
As reflexões de Pêcheux permitem a compreensão de que essa luta que se trava na
linguagem não tem caráter de revolução. A transformação é lenta, a partir de pequenas falhas
que permitem a alocação na história de novos sentidos, de não-evidências. É na relação
dominação-dominado que existe o espaço de transformação; a falha é o lugar de desequilíbrio
da ideologia dominante: “[...] formas de aparição fugidias de alguma coisa ‘de uma outra
ordem’ , vitórias ínfimas que no tempo de um relâmpago, colocam em xeque a ideologia
dominante tirando partido de seu desequilíbrio” (p. 301).
Existe uma pulsação entre o sentido e o non-sens que é constitutivo da produção de
sentido: “só há causa daquilo que falha” ou, em outras palavras, a falha é causa e não a
intenção.
Assim, o sujeito antes de dar o sentido, é tomado por ele, numa relação que remete ao
inconsciente: impossível pensar a ideologia sem referência ao registro inconsciente, e este
remete ao sujeito como lugar de falha e possibilidade de transformação.
Paradoxalmente é no sujeito-assujeitado que se encontra a possibilidade de
deslocamento; na posição-sujeito, lugar onde os sentidos se produzem e disponibilizam na
história.
Esse sujeito capturado, tomado pela evidência não é receptáculo passivo e mesmo
pensando em “vitórias ínfimas” pode “ousar pensar por si mesmo” (pg 304). Ainda que no
tempo de um relâmpago, novos sentidos são sempre possíveis: esse sujeito esta no confronto e
84
como sujeito (da/à linguagem) pode dar chance à história de se produzir em outro lugar, em
outra relação, historicizar o sentido, possibilitando que novas interpretações se disponibilizem
no conjunto história-língua-inconsciente.
Assim, esta AD proposta por Pêcheux propõe que se confira outro estatuto à noção de
história; critica o sociologismo restrito à oposição de classes e propõe que se pense a história
como lugar onde o complexo de determinações (não apenas as econômicas) atua; lugar de
“identificação do sujeito”.
Orlandi (1999), ao definir a linguagem como transformadora, também a define como
“ação sobre a natureza”, marcada definitivamente pelo conceito de social e histórico:
Daí considerar a linguagem como interação, vista na perspectiva em que se define a relação necessária entre homem e realidade natural e social. Ou seja: concebo a linguagem como trabalho, como produção e procuro determinar o modo de produção da linguagem enquanto parte da produção social geral... a linguagem é um trabalho simbólico, mas ainda assim, um trabalho (p. 17).
Lembra-nos, também que todo falante e todo ouvinte ocupam um lugar na sociedade,
definindo, assim, relações de força no discurso. Sendo assim, o discurso é a constatação do
modo social de produção da linguagem.
Orlandi propõe que olhemos para as formações discursivas como componentes das
formações ideológicas, as quais determinam o que pode e o que deve ser dito, a partir de uma
posição em uma dada conjuntura: existe uma “relação necessária do dizer com a ideologia”.
A autora afirma que “o dizer tem a ver com as condições em que se produz e com
outros dizeres: o dizer tem sua história” e a produção do discurso se faz através da
articulação entre o processo parafrático - o qual permite a produção do mesmo sentido sob
várias das suas formas, e o processo polissêmico - responsável pelo fato de serem sempre
possíveis novos e múltiplos sentidos. A tensão constante entre o mesmo e o diferente constitui
as várias instâncias da linguagem:
Esta tensão básica, vista na perspectiva do discurso é a que existe entre o texto e o contexto histórico-social: porque a linguagem é sócio-historicamente constituída, ela muda; pela mesma razão, ela se mantém a mesma. Essa é a sua ambigüidade.46
46 ibid. (p. 20).
85
Como vimos, a lingüística tradicional tende a trabalhar mais com o produto do que
com o processo: isso a leva a privilegiar a paráfrase. A autora nos diz, que em AD não há
separação entre produto e processo: paráfrase e polissemia são objetos de reflexão sobre a
linguagem.
Da mesma forma, o conceito de literalidade, tão central para a semântica lingüística,
perde totalmente o sentido. A idéia de um sentido hierarquicamente mais importante, central,
nuclear não cabe aqui: “Não há um centro e suas margens. Há só margens. Dessa forma,
todos os sentidos são, de direito, sentidos possíveis” (p. 20).
Para o analista, que se debruça sobre seu material exaustivamente em busca da não-
evidência, a ideologia emerge como a própria condição de interpretação.
È necessário considerar a possibilidade de interpretar em condições específicas,
buscando compreender as condições de produção. Isso equivale a assumir que não somos nós
que decidimos o que faz sentido para nós, pois a ideologia produz a naturalização de sentidos.
No confronto com o material (o discurso, a materialidade da língua) cabe ao analista
questionar os sentidos que se dão como evidência e as causas que se colocam como
inquestionáveis. Compreender como os sentidos são dados como evidência é compreender as
condições em que eles se produziram assim.
86
A porta da verdade estava aberta
Mas só deixava passar
Meia pessoa de cada vez
Assim, não era possível atingir toda a verdade
Porque a meia pessoa que entrava
Só trazia meio perfil da verdade
E sua segunda metade
Voltava igualmente com meio perfil
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
Diferentes uma da outra
Chegou-se a discutir qual metade seria mais bela
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
Seus caprichos, sua ilusão, sua miopia.
“ VERDADE” - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
87
V. Percurso Metodológico
5.1 Implicações de uma visão materialista de ciência
Antes de apresentar o percurso metodológico gostaríamos de reafirmar o que foi dito à
título de introdução sobre nossa escolha por aceitar a complexidade e a multiplicidade de
relações que compõe essa parcela do real que nos propusemos a estudar e, além disso, dizer
de nossa inquietação sobre uma ciência tradicional, idealista e a-histórica que, a despeito dos
questionamentos e críticas postos há pelo menos 50 anos no cenário da produção do
conhecimento, continua nos capturando pelo conforto e sedução das evidências, de tudo que
já está posto, das hipóteses que nos fazem girar sempre em torno do mesmo e conhecido
sentido.
Em se tratando de Análise do Discurso (AD), possibilidade teórico-metodológica que,
como vimos nos Capítulo IV, se ancora no Marxismo (materialismo histórico), na Psicanálise
(sobretudo nos conceitos de inconsciente e falha) e na Lingüística ( particularmente na
Semântica e na questão inesgotável do sentido, ou dos sempre muitos e possíveis sentidos) é
possível afirmar que o sentido simbólico presente nessas vertentes teóricas certamente as
torna irrefutáveis47 e completamente marginais em relação ao que tradicionalmente se coloca
como válido na produção do conhecimento.
Ao optar pela AD neste estudo, voltamos a colocar as questões que acompanham o
pensamento de Pêcheux como preocupação que não se esgota: como se institui o científico ,
como trabalhar a questão dos sentidos (da Semântica) sendo científico sem ser idealista? À
uma Lingüistica que se constitui no positivismo, com objetos e métodos definidos, Pêcheux
propõe que se pense o sentido como fruto dos confrontos nas relações sociais; busca o lugar
possível de pensar o sentido dentro da cientificidade.
Ao discutir a Semântica (o sentido), frente à disciplina institucional que é a
Lingüística, Pêcheux (1997) coloca repetidamente questões que se referem às implicações de
se fazer ciência numa perspectiva materialista histórica: explicita a Semântica como uma
disciplina que sempre se coloca frente à relação do sentido sem se remeter às “condições de
produção”. É como se dissesse que a Lingüística não dá conta das questões do sentido, pois ao
ignorar as condições de produção, nega a exterioridade, a luta de classes e as relações de
classe onde, de fato, os sentidos se produzem, ou seja: na História. Lembra-nos que as 47 Se “uma boa teoria é aquela que pode ser refutada”...
88
"formas ideológicas" não são fixas, se alteram no processo histórico, uma vez que "a relação
imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência" não é homogênea: as
"condições reais de existência" são distribuídas pelas relações de produção econômicas, com
suas contradições políticas e ideológicas. Nesse sentido, em diferentes momentos históricos as
"formas ideológicas" imprimem o papel de obstáculo e matéria-prima em relação à produção
do conhecimento, à prática pedagógica e à prática política do proletariado (p. 77).
Sua crítica a uma ciência tradicional se coloca quando discute a posição filosófica
segundo a qual o pensamento e a linguagem provêm primeiro da experiência (realismo
metafísico) e depois da dedução (empirismo lógico). Quando toca no “realismo metafísico”48
e no “empirismo lógico”49 Pêcheux os coloca como formas idealistas de pensar ciência, a
produção de conhecimento, o lugar dos sentidos: sua reflexão nos permite pensar que tanto as
teorias empiristas quanto as realistas negam as disciplinas científicas como historicamente
constituídas e o fazem em nome de uma "teoria universal das idéias", constituindo-se em
teorias ideológicas que contribuem para o mascaramento das disciplinas científicas e para o
encobrimento da distinção entre ciência e não ciência (p. 72).
A propósito mesmo da questão da cientificidade, Pêcheux apresenta as teses
fundamentais do materialismo: (1) o mundo material (exterior) existe (objeto real, concreto
real); (2) o conhecimento objetivo desse mundo se produz no desenvolvimento histórico das
disciplinas científicas (objeto do conhecimento, concreto de pensamento, conceito) e (3) o
conhecimento objetivo é independente do sujeito. Ou seja: o "objeto real" existe mesmo que
não seja reconhecido ou conhecido, independentemente da produção do objeto do
conhecimento que lhe corresponde.
O grande ponto materialista que acompanha toda a reflexão de Pêcheux é a questão da
objetividade: é fundamental a diferenciação entre o objeto real e o objeto do conhecimento
correspondente. Avançando um pouco mais: a interpretação sujeito-real como forma de
confronto se inscreve no simbólico. Sendo assim, a relação sujeito-real é necessariamente
simbólica: não tem como atingir o real a não ser interpretando, simbolizando.
Finalmente, recolocamos a questão central da reflexão de Pêcheux, questão que deve
permear o desenvolvimento metodológico deste trabalho: que ciência é essa que não reproduz
o que está posto? Como fazer ciência sem dependência aos processos ideológicos postos?
48 (referência mais forte ao mundo, noções que produzem generalidades científicas, conceitos referidos numa abstração) 49 (questão da aplicabilidade, da experimentação)
89
5.2 O caminho percorrido em busca de outros sentidos
5.2.1 O Universo da Pesquisa
População
Para os diferentes tipos de violência doméstica praticados contra crianças e
adolescentes, a literatura aponta para indicadores que podem chamar a atenção para a
violência sofrida em casa pelos alunos, indicadores que podem ser percebidos em sala de aula,
dentro do espaço da escola. Além dos indicadores que se referem ao desempenho escolar e
comportamento da criança, os indicadores orgânicos, no caso da violência física, podem ser
flagrantes. Da forma como aparecem descritos na literatura, parecem claros. Diante da
realidade encontrada (o silêncio da escola), podem não ser assim tão claros: talvez seja
mesmo necessário ampliar a compreensão sobre essa forma de violência e os efeitos
provocados nos professores, considerando o contexto em que as práticas educacionais se
inserem.
Dentro de um mesmo município podem ser encontradas múltiplas realidades nas
escolas, conforme elas sejam públicas ou privadas. Ainda entre as públicas, outras realidades
podem ser identificadas de acordo com sua localização territorial.
Considerando que nos primeiros anos do ensino fundamental espera-se que o professor
mantenha um contato mais próximo com alunos já que, via de regra, é um único professor
quem ministra os conteúdos, definimos como universo desta pesquisa as salas de primeira a
quarta série de três escolas de município do interior do estado de São Paulo: duas escolas
municipais, escolhidas de acordo com a localização em relação ao centro da cidade, sendo a
Escola A situada próximo ao centro, a Escola B localizada na periferia; e um colégio
particular, a Escola C.
Sujeitos
Considerando-se que a AD propõe o confronto com a materialidade da língua
através de gestos de interpretação confrontados com determinações históricas e com as
condições de produção, lidar com o material implica em leituras sucessivas da forma-material
do discurso. O esforço para compreender a evidência saindo dela não permitiria uma análise
adequada do discurso de muitos sujeitos. Assim, foram ouvidos seis professores do ensino
fundamental, em três escolas diferentes, conforme proposto. Os funcionamentos que se
90
repetem nos discursos compõem regularidades que não podem ser lidas como “coincidência”
o que faz do material, por sua qualidade, suficiente para sustentar a interpretação.
Para manter o sigilo sobre a escola e sobre os sujeitos, chamaremos as escolas de A, B
e C e os sujeitos serão identificados pela letra da escola e por um número que reflete a ordem
em que os depoimentos foram colhidos. As informações gerais sobre o contexto de cada sala e
de cada sujeito podem ser visualizadas na Tabela 1.
Os sujeitos A1 e A2, são do sexo feminino, professoras de primeira e segunda série do
ensino fundamental da Escola A, respectivamente, que é uma escola municipal de ensino
fundamental, situada num bairro bem estruturado, na região central do município.
Os sujeitos B3 e B4 são uma professora e um professor, de primeira e quarta série de
ensino fundamental respectivamente, da Escola B que também é uma escola municipal, de
ensino fundamental e médio, situada na extrema periferia do município, num bairro distante e
com problemas desde sua criação. Trata-se de um conjunto habitacional que reuniu moradores
de diversos núcleos de favela do município.
Tabela 1: Informações gerais sobre os sujeitos Sujeitos
Informações Gerais A1 A2 B3 B4 C5 C6
Sexo Fem Fem Fem Masc Masc Fem Idade 34 29 51 60 27 23 Estado Civil Casada casada divorciada casado solteiro casadaFilhos 02 01 02 06 01 00 Tempo de Profissão (em anos) 14 11 24 39 04 06 Tempo na Escola (em meses) 6 06 06 06 36 72 Série 1ª. 2ª. 2ª. 4ª. 1ª.-4ª. 1ª. Número de Alunos/Sala 32 30 32 29 16 16
Os sujeitos C5 e C6 são um professor e uma professora, sendo que o professor
ministra aulas de educação física de primeira á quarta série do ensino fundamental e a
professora é responsável pela primeira série da Escola C, que é um escola particular, de
ensino fundamental, situada em bairro nobre da cidade.
5.2.2 Método
A busca de significado na realidade identificada no município onde este estudo se
realizou – em geral a escola silencia sobre a violência doméstica que afeta suas crianças – a
91
tentativa de compreendê-la e, quem sabe, interpretá-la a partir de determinadas perspectivas
teóricas, apontam necessariamente para uma abordagem qualitativa.
Diante das questões implícitas na escolha da AD optamos por não definir um
instrumento fechado, mas um roteiro geral, baseado nas perguntas de pesquisa, comum para
todos os depoimentos, e não nos moldes de uma entrevista propriamente dita.
Assim, os depoimentos não seguiram um roteiro rigidamente estruturado, mas tiveram
uma ordem geral de questões, que se baseou numa lógica a partir do problema de pesquisa, e
que esteve presente como eixo ou ponto de interlocução:
(1) Identificação do contexto: como os professores vivem/compreendem a violência
doméstica? Sofreram violência? Praticaram ou praticam contra seus filhos? Reconhecem –
na como boa ou má estratégia? Valorizam ou condenam? Como pensam a educação?
Como avaliam sua responsabilidade?
(2) Como os professores significam a violência doméstica? O que os professores sabem e o
que pensam sobre o fenômeno da violência doméstica contra crianças, especificamente
sobre seus alunos?
(3) Como se sentem sobre a violência praticada contra crianças, seus alunos?
(4) Como reconhecem e avaliam os indicadores (o que identificam e como identificam); como
avaliam define como se sentem? O que os impede de reconhecer os sinais/indicadores?
(5) O que os leva a avaliar a violência como positiva (atitude correta, boa estratégia de
educação) ou negativa (atitude errada/estratégia ruim de educação)?
Assumindo que “a linguagem serve para comunicar e para não comunicar” (Orlandi,
2001) buscamos no discurso dos professores a compreensão histórica, cultural e ideológica
que explique seu silenciamento em relação à violência doméstica sofrida por seus alunos.
Igualmente, procuramos olhar para as particularidades desse sujeito que é o professor, sua
história e seus papéis no cenário desta pesquisa: pessoa que é professor(a), pai/mãe, filho(a),
cidadã(o).
92
Procedimentos
Tradicionalmente, o que se espera neste item é a descrição dos procedimentos.
Entendemos que a escolha metodológica da AD demanda uma coerência teórico-
metodológica que fará com que algumas considerações teóricas sejam retomadas ou
explicitadas enquanto estivermos expondo os procedimentos. Além disso, considerando que
toda a situação de aproximação às escolas, definição dos sujeitos e realização dos
depoimentos compreendem o que em AD é definido como condições de produção do
discurso, algumas situações serão descritas em detalhes, já que essas peculiaridades
constituem-se em importantes referências à análise.
Inicialmente foi feita a seleção das escolas. As duas escolas públicas foram
selecionadas pela lista telefônica, por sua localização. Foram feitos contatos telefônicos com a
direção para agendar um encontro inicial e a partir deste o processo de apresentação da
pesquisa o contato com professores foi iniciado.
Pensando no peso que as condições de produção ganham para a análise, torna-se
importante lembrar, conforme nos coloca Orlandi (2001) que a AD não trabalha com a língua
como sistema fechado e abstrato:
... mas com a língua no mundo, com maneiras de significar, com homens falando, considerando a produção de sentidos como parte de suas vidas, seja enquanto sujeitos seja enquanto membros de uma determinada forma de sociedade. Para encontrar as regularidades da linguagem em sua produção o analista de discurso relaciona a linguagem a sua exterioridade, pois leva em conta o homem na sua história, processos e condições de produção da linguagem (p. 16).
De acordo com autora, as condições de produção compreendem fundamentalmente os
sujeitos e a situação, bem como a memória, a forma como ela aciona e faz valer as condições
de produção. Essas condições podem ser consideradas em sentido estrito e temos então as
circunstâncias da enunciação, o contexto imediato. E num sentido amplo elas também
incluem o contexto sócio-histórico, ideológico.
A AD não trata da língua, não trata da gramática, mas trata do discurso, palavra que
em sua etimologia tem a idéia de curso, percurso, movimento. O discurso é, portanto, a
palavra em movimento: ao estudar o discurso estamos observando o homem falando. Assim, á
frente da análise está a idéia de que estudos discursivos visam pensar o sentido dimensionado
no tempo e no espaço das práticas do homem. A autora reforça a idéia de que o discurso é o
lugar em que se pode observar a relação entre língua e ideologia, compreendendo como a
língua produz sentidos por/para os sujeitos (ORLANDI, 2001).
93
Neste sentido, inicialmente cumpre destacar a diferença encontrada entre as escolas
públicas e a escola privada, já nesses procedimentos iniciais.
Uma primeira aproximação foi complicada em todos os casos. Nas públicas, contudo,
foi difícil apenas o primeiro contato com a direção. Na verdade, foi possível perceber um
certo desconforto diante das palavras “pesquisa” e “violência”, e uma tendência a adiar um
primeiro encontro, uma certa preocupação em ter alguém de fora da escola, olhando para suas
práticas.
Na escola A, identificada a partir da lista telefônica pela localização central, foi feito
contato com a orientadora pedagógica, que agendou um horário de reunião com professores
para a apresentação da pesquisa, sendo que o agendamento foi feito para três semanas após
esse primeiro contato, e as duas professoras foram voluntárias para prestar o depoimento.
A Escola B foi a primeira escola de periferia, entre as 4 com as quais foi feito contato
telefônico, que retornou a ligação. A diretora atendeu pessoalmente e pediu um tempo para
conversar com os professores e definir a partir do interesse deles quem prestaria o depoimento
e em que dia.
Superada essa etapa, após os esclarecimentos prestados junto à direção sobre a
pesquisa, não houve qualquer obstáculo na aproximação aos professores. O esclarecimento
dado no sentido de que o objetivo era falar sobre a experiência dos professores, sobre sua
percepção a partir de sua vivência como professor de ensino fundamental, em sua carreira
como um todo e não sobre aquela escola em particular, pareceu-nos ter atenuado o
desconforto inicial da direção de ambas as escolas.
Com as e escolas particulares foi um pouco mais complicado. Em relação a seleção de
uma escola particular, houve um primeiro procedimento que consistiu na identificação através
da lista telefônica, seguido pela seleção de 06 escolas a partir de referências e da localização
geográfica em bairros nobres. Durante 03 meses foram tentados contatos telefônicos, mas em
apenas uma das escolas foi possível o contato pessoal com a pessoa responsável
(coordenadora pedagógica do ensino fundamental). Nas demais qualquer possibilidade de
agendamento de um encontro era descartada à referência ao tema sob o ângulo da violência
doméstica50: “Violência doméstica? Ah não... Nunca teve nada disso aqui não...”.
Novas tentativas foram feitas em novos colégios, colocando o tema central da
pesquisa sob o ângulo do relacionamento escola-família, sem mencionar inicialmente a
50 Necessário perceber que este estudo poderia ser apresentado à escola sob os diferentes ângulos possíveis: violência doméstica, educação e violência, relacionamento escola-entorno (família, comunidade), desenvolvimento e interação indivíduo-contexto.
94
questão da violência doméstica. Ainda assim, a dificuldade de chegar até aos professores das
escolas particulares, a partir da direção, permaneceu.
O contato com um primeiro professor de uma escola particular aconteceu através de
um amigo: C5 (professor de uma escola com a qual já haviam sido feitos vários contatos
telefônicos) aceitou prestar o depoimento e indicou uma colega da mesma escola. Nesta
escola (Escola C) não foi feito nenhum contato com a direção, mas os depoimentos foram
colhidos na própria escola .
Além do contexto que envolveu a aproximação às escolas e aos sujeitos, podemos
ainda considerar, em termos do contexto imediato, algumas diferenças (particularidades) que
emergem entre os sujeitos.
Para A1 e A2 participar desta pesquisa foi uma escolha, uma vez que a elas foi
apresentado o contexto da pesquisa e seus objetivos e as mesmas foram voluntárias para
prestar seu depoimento. Assim, o fizeram dentro da escola, com o conhecimento e aprovação
da direção. Igualmente quanto a C4 e 5, participar deste estudo foi uma escolha, com a
diferença de que o contato com eles não foi feito através da direção da escola.
Em relação aos sujeitos B3 e B4 a situação foi algo diferente uma vez que eles foram
indicados pela direção da escola. Os critérios que a direção usou para indicá-los não nos
foram revelados, mas a julgar pelo desconforto apresentado por ambos, nos pareceu que eles
não tiveram escolha. B4, logo no início do depoimento perguntou: “Ninguém vai ouvir esta
gravação?” Também prestaram seu depoimento dentro da escola, com o conhecimento e
aprovação da direção.
Ampliando um pouco a discussão sobre as condições de produção, vamos pensar sobre
as escolas e as possíveis diferenças entre elas, enquanto contextos imediatos à produção dos
dizeres desses professores.
Como já dissemos, as escolas A e B são escolas públicas municipais, sendo que A
oferece apenas salas de ensino fundamental e B oferece também ensino médio. A diferença
importante entre elas está na localização: a escola A localiza-se próximo ao centro, num
bairro bem estruturado (infra-estrutura completa com equipamentos públicos de saúde nos três
níveis de atenção, equipamentos de educação, transporte coletivo com várias linhas e horários
próximos para todos os locais da cidade, próximo a clubes e estruturas públicas de lazer e
cultura – centros comunitários, SESC, etc).
A Escola B localiza-se na periferia, bem distante de outros bairros, o bairro conta
apenas com uma Unidade Básica de Saúde (atenção primária), para quaisquer procedimentos
de maior complexidade a população é encaminhada para outros locais, sempre distantes
95
(próximos ao centro), não existem no bairro equipamentos públicos ou privados destinados a
atividades culturais de lazer, o Centro Comunitário funciona de forma precária, pois já foi
destruído pela população (depredação) inúmeras vezes. O bairro conta apenas com uma linha
de ônibus, o que o torna isolado em relação ao restante da cidade. Também não oferece
oportunidades de emprego, por ser distante do centro não apresenta empresas, o comércio
local é precário o que leva a população a exercer suas atividades de trabalho em outros bairros
ou no centro. Conforme exposto anteriormente, trata-se de um conjunto habitacional que
reuniu moradores de diversos núcleos de favela do município, num programa implantado pela
Prefeitura na gestão 1989-1992, que consistia em oferecer oportunidade para trabalhadores de
baixa renda, moradores de núcleos de favela em adquirir casa própria com financiamento
prolongado e juros baixos. Desde de o início de sua criação, o bairro apresentou problemas,
sobretudo pelo fato de ter reunido famílias provenientes de diversos núcleos de favela : reuniu
no mesmo espaço gangues rivais, que brigavam pela liderança na comunidade51. Além disso,
o Projeto previa uma certa agilidade da construtora contratada, mas o bairro foi entregue aos
moradores sem asfalto, guias e infra –estrutura básica. Mesmo pagando um financiamento de
casa própria e morando em casas de alvenaria, o bairro manteve características de favela por
muito tempo. Nas palavras de B4: “Isso era uma favela...Eles vieram pra cá, mas de 60% já
retornou pra favela... Porque não adianta você tirar da favela e dar uma casa e falar ‘Agora
você se vire pra pagar e...’ Então...Tanto é que as ruas do bairro são imundas..É um bairro
em...em...morro...quer dizer...a sujeira deveria toda estar lá em baixo, mas não...Você vê...a
sujeira toda está nas ruas, você passa nas ruas as ruas são imundas...você vê tudo
jogado...Como se ainda estivessem na favela”.
Apesar da diferença de localização e histórico dos bairros onde se situam as Escolas A
e B, de maneira geral, o ambiente de ambas é parecido: grades separando a recepção do
restante da escola, portões trancados, presença de 01 guarda municipal na portaria. As
condições de conservação dos prédios não é da melhores, paredes sujas, telhas e vidros
quebrados apesar das grades de proteção externa nas janelas.
Embora fechadas, não se encontra qualquer resistência em penetrar na escola: em ambas as
escolas a porta se abre ao toque da campainha e não se observa qualquer preocupação com o
fato de que alguém esteja entrando na escola: é possível caminhar pela escola e até mesmo
abordar algumas crianças, sendo que nas duas escolas foi possível observar algumas crianças
fora da sala de aula, circulando livremente pelo pátio. Também foi possível perceber que em
51 conforme informações prestadas pela Secretaria da Cidadania e Ação .Social do município
96
ambas existe uma rotatividade de professores que deve ser considerada (ver Tabela 6): A1 e 2
e B3 e 4 relataram estar naquela escola há apenas 06 meses. Isso não ocorreu para C5 e 6 que
relataram estar na mesma escola há mais de 3 anos.
A Escola C apresenta muitas diferenças em relação a A e a B. A primeira delas,
conforme observado, é a permanência do professor: C5 está na mesma escola há três anos, C6
há seis anos.
A própria aproximação a região onde se situa a escola começa a mostrar um cenário,
em tudo, muito diferente. A escola C fica na zona sul da cidade, área nobre. À entrada da
recepção de um prédio imponente, em excelente estado de conservação, e com inúmeras
placas de identificação com a logo do Colégio exposta em tamanho gigante, estava um
segurança particular que aborda qualquer pessoa que se aproxima da recepção e conduz o
visitante diretamente à recepcionista: impossível entrar na escola ou falar com qualquer
pessoa (aluno ou qualquer funcionário) sem passar pela recepcionista. Difícil ver a escola
numa recepção totalmente fechada. Uma vez dentro da escola chamou-nos a atenção o
tamanho da sala e das carteiras - proporcional, em cada série à idade/tamanho das crianças,
seu estado de conservação: sala pequena, ar condicionado, 16 crianças. Muito diferente das
outras realidades, ao menos aparentemente.
Tais diferenças geraram uma inquietação e suscitaram a impressão de que as escolas
públicas não têm dono, são território de ninguém e os alunos são a clientela. Assim, tanto os
professores, funcionários e direção quanto os alunos, estão de passagem por ela, sem contudo
pertencer àquele espaço, que sendo de todos, acaba sendo de ninguém: a facilidade de acesso,
o estado de conservação, a forma como todos se referem aos alunos e sua famílias – nos
levaram a esta reflexão. Ao contrário, a escola particular tem donos (todo o cenário da Escola
C produz tal impressão) e tudo nela indica que não há nada de público em seu espaço. A
direção e os alunos pertencem àquele espaço, professores e direção não estão de passagem a
espera de um local melhor (defendem a escola, protegem o espaço) e, sobretudo os alunos e
suas famílias recebem tratamento de clientes: existe um cuidado dos professores ao referirem-
se aos alunos e suas famílias, o que não parece existir nos outros casos.
Feitas algumas considerações a respeito das condições de produção, retomemos os
procedimentos. No contato direto com os professores o contexto da pesquisa era explicitado,
de forma geral.
Os depoimentos foram gravados e transcritos na íntegra. Considerando que houve um
intervalo variável entre um depoimento e outro, as leituras iniciais foram marcadas pelo
contato com cada depoimento, de forma isolada. Essa leitura parcializada dos depoimentos
97
tinha início já na transcrição. A partir do momento em que todos os depoimentos foram
transcritos, foi iniciada uma etapa de aproximação ao material , buscando organizá-lo
(herança insistente da ciência tradicional) de algum modo.
As primeiras aproximações ao material nos permitiram filtrar perguntas que foram
apresentadas a todos os sujeitos, não necessariamente na mesma ordem, mas que fizeram
parte de todos os depoimentos. São questões saídas do eixo exposto acima e que derivam do
problema e das perguntas de pesquisa. Além disso, refletem a preocupação de chamar à cena
algumas especificidades da Psicologia, como disciplina de origem deste trabalho: como esse
sujeito particular se relaciona com o contexto? O que sente e o que pensa?
Nesta etapa, temos o que Orlandi (2001) chama de corpus de arquivo (a transcrição na
íntegra) a partir do qual vai se constituindo o objeto empírico, o corpus de análise.
Redefinindo um eixo agora com as perguntas que textualmente foram colocadas ao
professores e num caminho que emerge das questões centrais levantadas a partir do problema
de pesquisa, fomos buscando definir critérios para essa primeira organização do material,
realizando recortes que nos permitiram agrupar os dizeres dos sujeitos:
Identificação geral: sexo, idade, estado civil, tempo de magistério, tempo de trabalho
na escola, experiência profissional geral, número de filhos;.
Percepção geral sobre a população que freqüenta a escola
Política de relacionamento escola-família e adesão dos pais aos chamados da escola
Percepção sobre influência do ambiente familiar no comportamento da criança na
escola
O que entende por violência
Percebe os alunos como violentos?
O que sente quando presencia violência entre os alunos?
Já sofreu algum tipo de violência dos alunos? Como agiu? O que sentiu?
Percebe/percebeu sinais de violência sofrida em casa pelos alunos?O que sentiu?
Como agiu?
Como vê o papel do professor nesses casos?
Acredita na eficiência dos serviços que atendem casos de violência doméstica?
Tem filhos? Usa ou usou de violência no processo de educação dos filhos? Como se
sente sobre isso?
Acha válido?
98
Em sua experiência de filho, se lembra de ter sofrido alguma forma de violência no
seu processo de educação em casa?
As primeira tentativas de explorar o material organizado a partir das perguntas/temas
começou a incomodar pela dificuldade de sair da evidência e evitar os sentidos naturalizados.
As próprias questões, selecionadas para o primeiro recorte, reforçam isso: as questões que são
comuns aos depoimentos são necessárias para a conversa acontecer, mas acabam organizando
o material pelo conteúdo. Para fugir ao conteúdo é necessário buscar funcionamentos
discursivos que independem da pergunta, regularidades que emergem nas falas dos sujeitos e
independem dos temas. Se olharmos para as perguntas podemos perceber que elas guardam
cristalizações, naturalizam a idéia de que a violência é ruim, de que denunciar é a atitude
esperada, sendo dever do professor denunciar, apontar, constatar a violência e por isso
acabam colocando o professor num discurso racionalizado “sobre a violência”.
Frente às contradições apontadas por essa primeira forma de organizar o material
surgiu a necessidade de retornar a algumas questões teóricas, antes de retomar procedimentos
de exploração do material.
Orlandi (2001) discute que a construção do corpus e a análise estão diretamente
ligados pois decidir o que faz parte do corpus já é decidir acerca de propriedades discursivas:
Considera-se que a melhor maneira de atender à questão da constituição do corpus é construir montagens discursivas que obedeçam critérios que decorrem de princípios teóricos da AD, face aos objetivos da análise, e que permitam chegar à sua compreensão. Esses objetivos, em consonância com o método e os procedimentos, não visam a demonstração mas a mostrar como um discurso funciona produzindo (efeitos de) sentido (p. 63).
Um confronto com a forma material do discurso também pressupõe que não se tragam
evidências de fora da materialidade. Os “gestos de interpretação” devem ser sustentados no
material a partir das condições de produção. Assim, não se trabalha com a relação de signo,
mas com efeito de sentido.
Para compreender os procedimentos de análise devemos nos remeter à autora quando
ela coloca que se a análise de conteúdo coloca a pergunta “o que este texto quer dizer” a
questão colocada pela AD é “como este texto significa?” (p. 17). Na busca de produzir um
conhecimento a partir do próprio texto, ocorre uma mudança de foco de “o que é dito” para
“como é dito”, já que o texto é visto como tendo uma materialidade simbólica própria e
significativa, com uma espessura semântica também própria.
99
A idéia de interpretação emerge, então, como importante componente do dispositivo
de análise, que se institui a partir da pergunta, sempre se estabelecendo em relação às
condições de produção do discurso que se analisa.
Nesse sentido, é importante perceber que esse ir-e-vir da exploração do material
trouxe a tona o fato de que nosso problema de pesquisa nasceu de uma posição-sujeito bem
marcada52: a indignação pela realidade encontrada – o silenciamento dos professores sobre a
violência sofrida por seus alunos em casa. Os esforços para sair desse lugar da evidência, dos
sentidos cristalizados chamaram a atenção para as perguntas iniciais, que ao longo dos
procedimentos de análise foram “mudando de lugar”, saindo dessa posição de “indignação” e
“reprovação” ao silenciamento dos professores. O que estava por trás das perguntas iniciais
era a idéia de que a escola é omissa: “será que o professor não sabe a relação entre violência
e desenvolvimento, não enxerga que as crianças precisam de ajuda?”
Durante todo o processo de elaboração do projeto e de preparação para a coleta e
análise dos depoimentos esse lugar de indignação foi sendo desconstruído e essa posição,
presente nas primeiras formulações do problema de pesquisa – porque os professores são
omissos quando seu dever é denunciar? – foi cedendo lugar ao analista.
As interlocuções produzidas a partir do exame de qualificação e durante os
procedimentos de análise foram contribuindo para a desnaturalização do “deve denunciar”,
processo que resultou em alterações importantes no texto como um todo: palavras foram
substituídas, num embate que se travou entre o sentido cristalizado e as novas possibilidades
de escuta para a questão do silêncio da escola frente à violência sofrida na família por seus
alunos.
Assim, a formulação da pergunta para compor o dispositivo de análise passou de
“porque a escola não notifica/denuncia?” para “como o discurso da não-violência é
significado” e “porque ele parece não fazer sentido”; em outras palavras: “qual o significado
do silêncio dos professores” ou “como os professores significam a violência sofrida por seus
alunos em casa”. Retomando os procedimentos, o que chamamos de uma primeira tentativa de
organizar o material possibilitou uma edição nos depoimentos, que de alguma forma facilitou
sua exploração.
52 o olhar de profissional de um serviço de defesa e proteção de crianças e adolescentes, absolutamente indignada
com o silêncio da escola.
100
Desses procedimentos – leituras do material editado e dos depoimentos na íntegra –
foi sendo possível a identificação de regularidades nos discursos que nos remeteram para a
formulação de fronteiras, limites que se organizam a partir de dois eixos discursivos: fora da
violência (um discurso sobre a violência, que retoma visão da violência como ruim e o papel
esperado do professor) e dentro da violência (um discurso que em muito contradiz o primeiro,
formulações feitas de dentro da situação de filho, de pai-mãe, que de certa forma tolera e até
reforça a violência como estratégia de educação).
Identificadas as formulações discursivas que remetem a essas fronteiras, a leitura-
exploração do material passou a se dar na busca de recortes dos depoimentos que
sustentassem essa regularidade e permitissem discutir o estabelecimento de fronteiras, marcos
de língua como fora-dentro, lá-aqui, antes-agora. Interessante perceber que a fronteira aparece
independentemente das perguntas. Nessa perspectiva, as perguntas feitas ao material saem da
idéia do conteúdo e se voltam à forma: quando aparecem esses dois discursos – dentro da
violência e fora da violência – e a quais espaços fazem referência?
Às perguntas de pesquisa - por que a escola se mostra silenciosa quanto aos casos de
violência doméstica contra suas crianças e adolescentes? O que está por trás desse
silenciamento dos professores? – juntam-se aquelas que vão compondo o dispositivo de
análise na exploração do material.
As leituras sucessivas foram revelando também a formulação de fronteiras escola-
família e demarcando diferentes discursos para diferentes posições-sujeito, levando-nos a
outras perguntas: “Que fronteiras são essas?”, “São diferentes fronteiras ou diferentes
formulações de uma mesma fronteira?”
Na medida em que possibilidades de interpretação se colocam, novas possibilidades de
olhar para o material surgem: a busca de formulações que sustentem a interpretação são
pretextos para aproximações sucessivas. Importante retomar Orlandi (2001) quando nos diz
que não se pretende a exaustividade em extensão nem a completude em relação ao objeto
empírico pois ele é inesgotável:
Isto porque, por definição, todo discurso se estabelece na relação com um discurso anterior e aponta para outro. Não há discurso fechado em si mesmo mas um processo discursivo do qual se podem recortar e analisar estados diferentes (p. 62).
Assim, também é importante ter em mente que a noção de discurso trabalhada na AD
distancia-se do modo como o esquema elementar da comunicação dispõe seus elementos. A
101
língua não é compreendida apenas como um código entre outros, emissor e receptor não
atuam numa seqüência em que primeiro um fala e depois o outro decodifica. Estamos falando
da relação entre sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela história, de um complexo
processo de constituição desses sujeitos e produção de sentidos e não meramente transmissão
de informação. Concorrem processos de identificação do sujeito, de argumentação, de
subjetivação, de construção da realidade. Sendo as relações de linguagem relações de sujeitos
e de sentidos seus efeitos são múltiplos e variados. Todos esses pressupostos estão na base da
definição de discurso: o discurso é o efeito de sentidos entre locutores (p. 21)53. Novamente,
isso chama a atenção para a necessidade de manter presente a situação específica em que cada
depoimento foi colhido, as condições imediatas de produção desses dizeres, presente durante
as leituras sucessivas, norteando os recortes e a constituição do corpus.
No processo de análise a relação forma-conteúdo é tomada numa perspectiva
materialista: os sentidos que a forma produz são pensados fora da literalidade, a forma
produz efeito de conteúdo, a forma é sempre pensada “em relação a”, produzindo sentidos.
Se os sentidos se disponibilizam na história, cabe ao analista procurar nos interstícios
o que ainda não está dito; compreender a posição-sujeito frente à formação discursiva,
realizando recortes dentro das possibilidades de interpretação. Cabe ao analista a difícil tarefa
de ter sensibilidade para sair do óbvio e identificar as possibilidades de polissemia: descartar
os sentidos cristalizados, tentar sair da literalidade na busca de outros sentidos possíveis, em
busca do que ainda não foi dito. Se o sentido literal nos leva a pensar em sentidos únicos, a
análise deve nos conduzir para novos sentidos.
Debruçar-se sobre o material significa buscar uma tomada de posição não-subjetiva, o
distanciamento: ancorar-se no material para não trazer as próprias evidências interpretativas.
Os gestos de compreensão do analista comportam o esforço de não a trazer de fora do
material de análise a evidência que insiste em entrar.
As leituras sucessivas perseguiram a compreensão sobre os funcionamentos
discursivos, os quais mostram-se por regularidades: diferentes questões reaparecem ao longo
do material, existem pontos de ligação entre elas. São regularidades que marcam fronteiras
entre o dentro e o fora da violência, que marcam diferentes discursos para diferentes
posições-sujeito e que emergem em diferentes momentos dos depoimentos sem guardar
qualquer relação com a pergunta.
53 Ibid.
102
É sempre necessário remeter a funcionamentos para além do lingüístico e do lógico
para chegar às “condições materiais de produção”, já que é o conjunto de determinações que
torna possível o espaço de produção de sentidos. Para tanto, para definir esse “lugar-sujeito”
o pensamento que permeia toda a análise é: quais são os interlocutores envolvidos, quais são
as questões centrais, como são discutidas. No nosso caso, estamos na escola, falando com
professores: o que isso significa na rede de relações sociais? Onde essa discursividade está
sendo produzida, quais são as especificidades desse discurso/material?
Todas essas questões guiaram a exploração do material: em AD levantam-se
considerações, identificam-se funcionamentos. Não se fecham interpretações.
Antes de apresentar e discutir os resultados da análise, restam ainda algumas
considerações sobre a importante questão da interpretação.
Orlandi (2001) nos apresenta que a AD teoriza a interpretação, coloca a interpretação
em questão a partir da pergunta “como objetos simbólicos produzem sentidos?”. Assim,
trabalham-se os limites da interpretação, já que não estamos a procura de um sentido
verdadeiro através de uma “chave de interpretação”. Dispensada essa idéia, resta o método, a
construção de um dispositivo teórico. Não se busca uma verdade oculta atrás do texto, mas a
compreensão dos gestos de interpretação que constituem o texto: o dispositivo de análise
(escuta discursiva), ao explicitar os gestos de interpretação (do sujeito que fala) procura
descrever a relação do sujeito com sua memória, revelando os processos de identificação e
suas filiações de sentido. Interpretar é pensar o sentido no co-texto (as outras frases do texto)
e no contexto imediato; é saber como um objeto simbólico (texto) produz sentido, como as
interpretações funcionam, pois quando se interpreta se está preso a um sentido. Nessa
perspectiva, compreender é explicitar os processos de significação presentes no texto, escutar
outros sentidos e compreender como eles se constituem: essa compreensão, por sua vez,
implica em explicitar como o texto organiza os gestos de interpretação que relacionam
sujeito e sentido. Produzem-se, assim, novas práticas de leitura (p.27).
Neste contexto, cabe ao analista a formulação da questão que desencadeia a análise. O
que define a forma do dispositivo analítico é a questão posta pelo analista, a natureza do
material que analisa, a finalidade da análise e a pergunta do pesquisador que organiza sua
relação com o discurso, levando a mobilização desses ou aqueles conceitos, procedimentos.
O dispositivo teórico objetiva mediar o movimento entre a descrição e a interpretação e
sustenta-se em princípios gerais da AD como forma de conhecimento, com seus conceitos e
método. Importante reconhecer, conforme sugere a autora, que a partir da análise e com a
compreensão do processo discursivo é possível ao analista interpretar os resultados de acordo
103
com os diferentes instrumentais teóricos dos campos disciplinares nos quais se inscreve e de
que partiu (ORLANDI, 2001, p. 28).
Como é possível perceber, a construção de um dispositivo de interpretação é um
procedimento central, e a interpretação está presente em dois momentos da análise: (1)
fazendo parte do objeto da análise, já que o sujeito que fala interpreta, cabendo ao analista
descrever esse gesto de interpretação e (2) o próprio analista está envolvido com a
interpretação, já que não há descrição sem interpretação. A autora fala de um deslocamento
que permita ao analista trabalhar no entremeio da descrição com a interpretação:
O que se espera do dispositivo do analista é que ele lhe permita trabalhar não numa posição neutra mas que seja relativizada em face da interpretação: é preciso que ele atravesse o efeito de transparência da linguagem, da literalidade do sentido e da onipotência do sujeito. Esse dispositivo vai assim investir na opacidade da linguagem, no descentramento do sujeito e no efeito metafórico, isto é, no equívoco, na falha e na materialidade. No trabalho da ideologia (p 61).
O esforço do analista, presente em todas as etapas de leitura, se fixa em não ser vítima
dos efeitos de evidência e das ilusões, mas tirar proveito delas pela mediação teórica: sair do
lugar do leitor para uma posição construída pelo analista, lugar em que se torna possível uma
outra leitura, um trabalho nos limites da interpretação, a partir da compreensão do movimento
de interpretação presente no objeto simbólico. O analista, assim, se coloca em uma posição
deslocada que lhe permite contemplar o processo de produção de sentidos em suas condições
(p. 61).
Pensamos ser importante essa noção de percurso que foi colocada aqui, porque ela trás
o deslocamento da posição inicial – o lugar da militância e da indignação, para esse outro
lugar, que estamos chamando de “lugar do analista”.
Tal descolamento se fez possível a partir do confronto com a materialidade da língua.
Sobre isso, nos diz Lagazzi-Rodrigues (1998):
A materialidade sobre a qual se debruça a AD vem perpassada pelo simbólico, constituída na relação do sujeito com a linguagem, e o papel do analista é o de tentar dar visibilidade aos funcionamentos discursivos trabalhando a materialidade da língua para compreender a determinação material do social (p. 51).
É essa visibilidade que procuraremos dar ao apresentar a análise e os recortes que
sustentam nossa interpretação, no próximo capítulo.
104
Rebenta na Febem rebelião, um vem com um refém e um facão
a mãe aflita grita logo: não! e gruda as mãos na grade do portão
aqui no caos total do cu do mundo cão, tal a pobreza, tal a podridão
que assim nosso destino e direção, são um enigma, uma interrogação
e, se nos cabe apenas decepção, colapso, lapso, rapto, corrupção?
e mais desgraça, mais degradação? concentração, má distribuição?
então a nossa contribuição não é senão canção, consolação?
não haverá então mais solução? não, não, não, não, não...
pra transcender a densa dimensão, da mágoa imensa então, somente então
passar além da dor da condição de inferno e céu nossa contradição
nós temos que fazer com precisão entre projeto e sonho a distinção
para sonhar enfim sem ilusão o sonho luminoso da razão
e se nos cabe só humilhação, impossibilidade de ascensão
um sentimento de desilusão e fantasias de compensação
e é só ruina, tudo em construção e a vasta selva, só devastação
não haverá então mais salvação? não, não, não, não, não...
porque não somos só intuição, nem só pé-de-chinelo, pé no chão
nós temos violência e perversão mas temos o talento e a invenção
desejos de beleza em profusão idéias na cabeça, coração
a singeleza e a sofisticação o choro, a bossa, o samba e o violão
mas, se nós temos planos, e eles são o fim da fome e da difamação
por que não pô-los logo em ação? tal seja agora a inauguração
da nova nossa civilização tão singular igual ao nosso ão
e sejam belos, livres, luminosos os nossos sonhos de nação.
“ECOS DO ÃO” (Lenine/Carlos Rennó, 200254)
54 Extraído do CD “Falange Canibal”, de Lenine (2002)
105
VI. Resultados e Discussão
Antes de apresentar os resultados propriamente ditos - recortes dos discursos dos
professores que sustentam as possibilidades de interpretação encontradas – temos algumas
considerações, necessárias para organizar o que foi dito até agora sobre nosso objeto:
∇ a relação sujeito-contexto: ao abordar a imbricada inter-relação sujeito-contexto,
com a ajuda de teorias diversas, nos perguntamos “o que é do sujeito”, “o que é do
contexto” e “o que resulta dessa inter-relação”;
∇ a violência em geral, e a violência doméstica em particular ou a relação entre
educação e violência: modelos de educação, tomados para pensar a violência
doméstica em sua complexidade.
Terminamos nossa revisão de literatura repetindo uma pergunta tantas vezes colocada
pelos estudos sobre violência doméstica: sob que condições tem sido possível a manutenção
dessa prática educativa que permite e utiliza estratégias violentas?
Para além de tudo que já se afirmou sobre a violência interpessoal doméstica (VIPD)
– sua complexidade, seu caráter cíclico, as conseqüências sobre o desenvolvimento e a saúde
da vítimas e testemunhas, sua criminalização crescente a partir de um discurso jurídico que
quer garantir os direitos e a proteção especial às crianças e adolescentes, os dilemas e
dificuldades implícitos na abordagem aos casos por ocorrerem no espaço privado das famílias
e o crescente registro de casos nos serviços de proteção à infância – o que ainda resta para ser
dito? Que outros aspectos poderiam estar envolvidos na dificuldade de identificar e
reconhecer a violência? Além de todas as questões que já estão postas, das variáveis que já
foram consideradas e estudadas, o que mais poderia concorrer para o pouco sucesso relatado
em sua abordagem e na insistente recorrência da reprodução da violência entre pais e filhos, a
despeito dos esforços e discussões que se intensificaram nos últimos anos?
Nossa busca pelo não-dito sobre a violência interpessoal doméstica partiu do
discurso de educadores, no contexto da escola, para explorar novos possíveis sentidos
presentes nos dizeres desses professores – que também são pais e tem uma experiência
própria em sua memória de filho sobre a violência como estratégia para educar – que possam
apontar caminhos e possibilidades de construir novas respostas, a partir de uma exploração
que permita:
∇ a identificação das condições materiais e ideológicas da produção dessa realidade
imaginária, pensadas como realidade externa – fora; e
106
∇ a compreensão de como diferentes formas de relacionamento entre o sujeito
(dentro) e o contexto (ideologia – fora) produzem tais resultados, especificamente
no que toca a relação entre violência e educação.
A idéia dessa fronteira entre “dentro” e “fora” já havia sido por nós colocada a
propósito da discussão sobre identidade, quando nos perguntamos “como se dá a relação
entre o sócio-histórico (o contexto, o entorno, a ideologia) e o que é construído como
individual?”.
Retomando as perguntas colocadas pelo problema de pesquisa: como seria possível
pensar essa fronteira entre o “dentro” e o “fora”? Como “saem” e como “entram” as coisas?
Que trocas são essas que fazemos com o entorno?
Em nossa exploração do material (depoimentos transcritos dos seis sujeitos)
identificamos formulações discursivas que também nos levaram à idéia de fronteiras: dentro e
fora da violência, dentro e fora da escola, dentro e fora de determinados lugares sociais –
escola, família, comunidade – e seus respectivos papéis: professor, pai-mãe, filho-filha.
Na verdade, partindo desse olhar, a presença dessa noção de fronteira tornou-se a
marca fundamental das formulações discursivas identificadas nas falas desses sujeitos-
professores.
A exploração do material a partir do método proposto pela AD levou-nos a
identificação de regularidades, que nos possibilitaram pensar esses dizeres de determinados
lugares sociais, a partir dos quais se produziram as diferentes formulações.
6.1 Dentro e fora da violência: que fronteiras são essas?
Como descrito anteriormente, uma primeira regularidade que surgiu aos nossos olhos
foi a presença de fronteiras, limites que pareciam se organizar a partir de dois eixos
discursivos: um discurso sobre a violência, proferido de fora da violência, que repete o
discurso jurídico atual, retoma a visão da violência como ruim e o papel do professor,; e um
discurso da violência, proferido de dentro da violência e que em muito contradiz o primeiro,
contendo formulações de dentro de situações envolvendo a experiência com a violência.
Olhando para o material a partir desses eixos, passamos a perguntar: quando aparecem
esses dois discursos – sobre (fora) a violência e dentro da violência – e a quais espaços fazem
referência?
107
6.1.1 O discurso proferido de fora da violência : os professores falam sobre a
violência
Observamos que o discurso sobre a violência emerge de um lugar social bem
demarcado: o professor, dentro da escola, nos momentos do depoimento em que se discute o
relacionamento entre os alunos em sala de aula, ou ainda quando se fala sobre a percepção
que o professor tem a respeito da educação que o aluno recebe em casa – percebe sinais de
que o aluno possa sofrer violência em casa, como pensa o papel do professor?
O discurso sobre a violência também aparece quando, ao indagar sobre a educação que
os sujeitos receberam de seus pais, eles são reportados ao papel de filho, como veremos
adiante.
Ao falar sobre a presença da violência no espaço da escola, entre os alunos podemos
perceber que as falas dos professores são marcadas por uma espacialização ou limite espacial
(situações que ocorrem no interior de um limite) e por uma marcação de freqüência:
“Então a gente percebe um comportamento mais agressivo, no caso ali, né, nem tanto assim,
nessas coisas... É, de empurrão, de bater, de gritar, dar tapa no rosto, segurar pelo pescoço... É muito freqüente...Jogar no chão, chutar, é muito freqüente... dentro da sala de aula...”
(A1)
“Entre eles tem algumas coisas...Tive um caso de um menino que deu muito trabalho na
escola, aqui ... assim...no geral ele é agressivo com as crianças, mas comigo não. Ele bate, já
deu soco...Tem umas atitudes assim...dentro da sala, no pátio..E algumas crianças a gente vê
que não é de vez em quando que acontece isso...acontece sempre.” (A2 )
“Agressividade...Entre as crianças, contra professor, contra funcionário...O que existir...Não
é...assim, não é freqüente...Muito pelo contrário...Até já foi, mas agora...” (B3)
“Então... é normal, eles brigam e se você não abrir a boca...eles param...daí dez minutos
eles estão conversando ...é...aquela história de briga entre marido e mulher...mesma coisa...”
(B4)
“Ah, essa aluna aí que eu te falei...Eu acho que ela é mais violenta que os outros...As
vezes...num sei se é por maldade...é o jeito dela brincar que ela acaba sendo violenta...dentro
da sala.” C6
108
Os sujeitos estão falando sobre a violência que pode ocorrer entre os alunos, dentro da
escola, dentro da sala de aula: os professores relatam situações em que ocorre violência entre
os alunos, descrevem a violência, inicialmente como se fossem espectadores, observando algo
de fora da situação.
É possível entrever um certo desconforto, uma certa dificuldade de chamar de
violência alguns comportamentos das crianças quando, por exemplo A1 e A2 (escola pública,
região central), relatam episódios de violência física referindo-se a eles como se não fossem
importantes, ou como – embora classificados por eles mesmos como violência – fossem
episódios como quaisquer outros que possam ocorrer em sala de aula e que de tão freqüentes,
passam a ser relatados como “normais”: “...um comportamento mais agressivo, no caso ali,
né, nem tanto assim, nessas coisas... É, de empurrão, de bater, de gritar, dar tapa no rosto,
segurar pelo pescoço...”; “Entre eles tem algumas coisas... Ele bate, já deu soco...”. Esse
incômodo em relação à violência, não referido explicitamente, mas presente com expressões
como “coisa boba” e “nem tanto assim”, pedem desculpas pelas situações, que os mesmos
sujeitos expressam como “muito freqüente” e “acontece sempre”. Deparamo-nos aqui com a
marca da contradição: temos o pré-construído “não deveria acontecer violência dentro da
escola, dentro da sala de aula” e o relato: mas, “contece”.
Observando a formulação poderíamos dizer que o discurso de B4 difere dos demais,
uma vez que coloca a violência entre os alunos como normal:
“Quer dizer... Violência...é um negócio tão idiota, sabe? De vez em quando as mães vem
falar alguma coisa, o filho ta brigando... Os cachorrinhos brigam...É um treino...É um
treinamento...Só que nós guardamos raiva...e os animais chamados irracionais não
guardam...Então... é normal, eles brigam e se você não abrir a boca...eles param...daí dez
minutos eles estão conversando ...” (B4)
Contudo, vamos novamente encontrar marcas desse lugar social que é a escola, e
desse papel do educador.A contradição e o desconforto também podem ser notados, no caso
de B3 - que começa falando sobre a agressividade entre os alunos como freqüente dentro da
escola, para em seguida negá-la como tal. Ainda assim, continua a falar sobre situações
violentas dentro da escola, referindo-se a um exemplo extremo, como caso isolado.
“ Eu tive, eu tive um aluno que ele era totalmente agressivo... Então se a direção vai tomar
alguma atitude ele agride com palavras...palavrões mesmo...com palavras, com... atitudes,
109
chuta, xinga... Essa mesma criança... ela saiu pela porta, foi em casa, pegou a faca e veio
agredir o funcionário que chamou atenção...” (B3)
O lugar social do educador, dentro da escola fica marcado quando a ocorrência de
violência dentro da sala de aula, entre os alunos, é negada ou atenuada: é colocada como
“normal”, idéia novamente presente no discurso de B4 (escola pública, periferia), que admite
que a violência ocorre com freqüência dentro da sala de aula, sua sala e demonstra que isso
não o incomoda. Contudo, termina falando em procedimento que dá certo (não interferir faz
com que a violência cesse), marca que, como veremos, aparece como uma regularidade nesse
lugar-social: o professor parece preocupado em falar sobre seus procedimentos, em
demonstrar que suas ações estão dentro do que se espera dele:
“Eu tenho uma aluna que ela é muito agressiva...verbal. Ela é agressiva com os
colegas...com os colegas da classe , das outras classes e com os funcionários... Dentro da
sala, não.” (B3 )
“Então... é normal, eles brigam e se você não abrir a boca...eles param...daí dez minutos
eles estão conversando ...é...aquela história de briga entre marido e mulher...mesma coisa...
Como eles vêem que eu não vou.interferir...eles param...As vezes eles estão se batendo, eles
olham pra mim eu viro as costas... Bate-boca, dão tapa, dão chute... Dentro de sala
mesmo...” (B4)
Enquanto das duas escolas públicas temos formulações que permitem pensar os
professores como observadores externos de situações de violência entre os alunos, com a
marca da ambivalência entre admitir a presença da violência e negá-la, da escola particular
identificamos um discurso cuja marca é a negação da ocorrência de situações deste tipo dentro
da escola, como é o caso de C5, ou mesmo em C6, que cita o caso isolado de uma aluna, mas
nega situações violentas entre os alunos como acontecimento cotidiano:
“Eu num vejo muito isso aqui, não...Raramente tem uma situação...de conflito...mais
verbalmente, né? Mas assim de xingar, numa situação de jogo...Agressão física às vezes tem
assim na pré escola, né? As crianças...as vezes um empurra o outro, mas é coisa assim
...boba...”. (C5)
110
“...Então eu acho que ela é uma criança violenta...Agora os outros...eu não vejo assim...Ah,
as vezes uma coisa ou outra dos meninos...dentro de sala, no pátio...o jeito de falar, de
brincar...acaba sendo...mas...num é muita coisa... não.” (C6)
Ainda que negando a violência como freqüente, quando descrita ou identificada pelos
professores da escola privada aparece com a mesma marca dos outros sujeitos como: “coisa
boba” e como não sendo “muita coisa”. Tais expressões começam a indicar uma
regularidade presente em todos os discursos aqui analisados: a idéia de gradação da violência
e da demarcação de um ponto – nunca muito claramente definido – até o qual a violência pode
ser aceitável. Essa idéia de gradação está ligada à presença cotidiana de conflitos interpessoais
entre as crianças, ou à banalização da violência e sua presença constante na mídia, seja em
noticiários, retratando a realidade concreta ou em outras peças como filmes, publicidade,
novelas. Além disso, nesta fala de A1 que segue, aparece a idéia de contradição entre um
discurso que aponta para a situação ideal de nunca ser violento com o outro e a realidade
cotidiana, na qual a violência está presente de forma inegável e concreta, sendo muitas vezes
valorizada em certos contextos:
“ Que por mais que a gente explique que a gente não deve bater, que a gente não deve
agredir, que a gente não deve...mas o externo, o fora...Em casa, da violência geral...de tudo.
Porque criança ta aberta, eles percebem tudo...Eles tão vendo tudo e têm uma percepção
muito rápida das coisas...Eles captam as mudanças muito rapidamente...E eles assimilam
isso muito rápido, então eu percebo assim...é...”porque que eu não posso bater no meu
amigo se ali na esquina o moleque vai lá e arranca o tênis do outro e leva embora”...ou... -
...se na televisão todo mundo consegue as coisas pelo meio da violência, da...da...sabe? é a
lei do mais forte...” (A1)
Temos também que atentar para as falas de C5 e C6 que nos levam a identificar a
presença de idéias cristalizadas sobre a distribuição da violência entre classes sociais: seria
mesmo possível admitir que crianças de escolas públicas apresentem mais comportamentos
violentos do que crianças de escolas privadas?
Já vimos que existe uma relação freqüentemente evocada entre pobreza e violência:
os riscos de exposição à adversidade e ao stress no lar aumentam para as famílias pobres, o
que não quer dizer que a violência em geral, e a violência doméstica, aconteçam apenas nas
classes sociais menos favorecidas.
111
Azevedo e Guerra (2000), compilando inúmeros estudos sobre o assunto, pontuam
que este acontecimento é universal, no sentido de ignorar a fronteira entre as classes sociais.
Entretanto, os pobres estão mais expostos devido as suas condições de vida e por isso a
identificação da violência nessas famílias é mais freqüente. Muito se tem repetido sobre a
relação entre violência e pobreza, além da repetição concorre para a cristalização a exposição
a que as famílias mais pobres se submetem, por suas condições de vida e moradia, e também
por sua inclusão em programas assistenciais.
Também La Taille (2002), em sua discussão sobre violência e ética, sem negar a
relação existente entre violência e pobreza, demonstra ser essa uma simplificação que não dá
conta de explicar os comportamentos violentos: “há inúmeras pessoas que vivem em extrema
situação de pobreza e que não se tornam necessariamente violentas” (pg. 228). Também
sobre as relações familiares, nos diz o autor:
Não há dúvidas de que a desestruturação da família costuma gerar uma indigência afetiva que predispõe as pessoas a um contato mais ríspido e violento...Todavia, verifica-se que a violência encontra-se em várias famílias não desestruturadas. Há famílias nucleares que aparentemente são harmoniosas, nas quais a violência doméstica é extremamente forte (pg 228).
Sobre o discurso de C5 e C6 é importante considerar também as relações de trabalho
numa escola pública e numa escola particular e na própria relação professor aluno, que na
escola particular resvala para a delicada posição do aluno-cliente. Interessante observar uma
fala de C5, comparando sua experiência numa ONG que atende crianças e adolescentes em
situação de risco na periferia e sua experiência atual, na escola particular. A noção cristalizada
que os alunos da periferia seriam mais violentos em contraponto ao que realmente acontece,
ou seja: na escola privada os alunos freqüentemente mostram-se agressivos, sem respeito para
com o professor. Novamente temos a marca da contradição no discurso:
“Tem alunos lá nas Mangueiras que... se você não soubesse que eles eram lá das
Mangueiras, você poderia colocar em qualquer escola em termos de educação, sabe? De
tratamento com o professor, respeito...responsabilidade, ordem ali na hora de
ouvir...Aqui...eu, eu tenho alunos que se acham...meio que...não têm mesmo um respeito
sabe? Com relação ao professor, não só a mim mas com os outros professores também... O
aluno falar com você assim...xingando...Já aconteceu do aluno xingar e...palavrão,
112
ofender..Então eu acho que é uma falta de respeito, é uma forma de violência, né?
Agressividade contra o professor que está aqui pra passar alguma coisa positiva...” (C5)
Seguindo com os depoimentos, continuando nessa perspectiva discursiva do lugar
social do educador, na escola e do discurso sobre violência, proferido de dentro da escola,
temos as falas que relatam os procedimentos diante situações de violência entre os alunos:
“Eu, eu...a primeira reação que a gente tem é ir lá e separar essas crianças... Aí eu vou
conversar, né? Que podem chegar até a mim para eu intermediar para eles não chegarem ao
ponto de se baterem, né?” (A1)
“Em algumas vezes eu acho que eu tenho que interferir...Então eu vou...quando é uma
coisa mais séria assim eu tenho que separar.. né? E acalmar...eu tenho que dar um chega
mesmo, Eu acho que a gente tem que fazer uma investigação nestes casos, né?” (A2)
“Eu sou assim...eu sou muito legal com eles, brincalhona mas eu sou muito severa...sabe?
Eu sou uma pessoa que eu não saio da sala de aula.....Eu...Eu tenho uma atitude que eu fico
me policiando... Quando eu vejo eu procuro intervir pra separar...sabe?” (B3)
“É...como eu não interfiro na briga... Como eles vêem que eu não vou.interferir...eles
param...As vezes eles estão se batendo, eles olham pra mim eu viro as costas...” (B4)
“Ah, sim...alguns alunos...bem poucos, mas tem...Aqueles mais tímidos, que não interagem
com os outros alunos, que não querem participar das atividades. Ou os briguentos,
agressivos ...Mas a gente tenta sempre colocar no grupo, né? Porque a educação física é
para todos, né?” (C5)
O que chama atenção nesses recortes é o contexto imediato que os originou. Os
sujeitos passaram a relatar procedimentos diante de uma situação da entrevista na qual, a
partir do relato das situações em que ocorreu conflito entre os alunos dentro da sala de aula,
eram solicitados a dizer como se sentiam diante dessas situações.
Diante da colocação “o que você sente nessas situações”, vem uma fala sobre “o
que faz nessas situações”. Mesmo a pergunta sendo o que sente quando presencia a violência
entre os alunos, a resposta traz um discurso sobre a violência: racionalizado, organizado,
falando em procedimentos. Mais do que isso, ao responder com procedimento quando
113
solicitado a falar sobre sentimento, marca-se o lugar de onde esse dizer se produz: há algum
tempo, em qualquer discussão sobre escola e educação os professores têm estado na
berlinda.55 Assim, a pergunta esperada é “o que você faz?”, pois professores têm sido
freqüentemente solicitados a reafirmar práticas corretas, esperadas, condizentes com o
discurso jurídico, que desde que a divulgação do ECA e das discussões sobre criança como
sujeito de direitos se intensificaram, é tomado como correto. Essa cristalização impossibilita a
escuta em relação a sentimento. Ao falar sobre como age, o sujeito marca essa posição: as
perguntas “né” e “sabe” ao final das falas chamam o interlocutor a reconhecer que esses
procedimentos são corretos, ou seja: que o professor está cumprindo seu papel. O verbo vem
formulado na primeira pessoa, como em B3 por exemplo - ...eu sou muito legal com
eles...mas eu sou muito severa... Eu sou uma pessoa que eu não saio da sala de aula...- que
relata que dentro da sua sala não ocorre violência entre os alunos. O professor tem
necessidade de reafirmar suas práticas como corretas, o que se espera deles é que controlem a
sala. Novamente aparece a idéia de gradação, agora na fala de A2: quando é uma coisa mais
séria assim eu tenho que separar.
Aparentemente dissonante dos outros discursos, vem a fala de B4, que como já
vimos, coloca a violência como normal. Se a violência é um acontecimento natural entre as
crianças, mesmo dentro da sala de aula, seu procedimento é não fazer nada: “Como eles
vêem que eu não vou interferir...eles param.” Contudo, aqui está novamente o professor
falando do seu procedimento correto, embora diferente dos outros que intervêm, pois o
resultado é o desejado: a violência cessa. E no caso de B4 a contradição fica ainda mais
marcada quando, ao falar como se sente, critica duramente a atuação dos professores em
geral:
55 O Ministério da Educação (MEC) e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), realizam desde 2003 um estudo sobre o relacionamento escola-família e a percepção dos pais sobre a qualidade educacional das escolas, das condições de ensino e da atuação dos professores e diretores - Pesquisa Nacional Qualidade da Educação: a escola pública na opinião dos pais. Resultados preliminares discutidos por Pacheco e Araújo (2005) permitem a formulação de algumas conclusões a partir da percepção dos entrevistados sobre o ensino público fundamental brasileiro. Especificamente sobre os professores, os autores relatam que, apesar da importância que atribuem à direção da escola, é o professor que está no centro da atenção dos pais e alunos. É dele a responsabilidade direta pela qualidade do ensino, pela disciplina na sala de aula, pela motivação dos alunos e pelo sucesso ou fracasso escolar. Assim, tanto pode despertar simpatia como antipatia, ou simples indiferença. Em princípio, os professores da rede pública são considerados mais capacitados do que os professores da iniciativa privada, por serem admitidos por meio de concursos públicos. Isso, porém, enquadra-os em uma categoria especial, a dos funcionários públicos. Por sua vez, a categoria é vista como um segmento dotado de proteções e regalias pouco comuns aos profissionais do mercado privado.
114
“Ah...também esse sentimento de você não poder fazer nada...Então, quer dizer...nós somos
dois milhões de professores no país...tem 80 milhões de alunos analfabetos...É...o jornal fala
que os professores não ensinam...A televisão fala que os professores não estão preparados...
e você não encontra nesses 2 milhões nenhum professor que fale assim ‘mea culpa, mea
culpa’, entende? Todos os professores são bons, todos trabalham bem...(silêncio)...” (B4)
Temos aqui uma marca importante: o incômodo que a violência causa quando trazida
para dentro da escola. Sua presença entre os alunos não tem nada de normal, classificá-la
assim é apenas uma forma de negar o incômodo que ela provoca, pois as situações de
violência entre alunos colocam em xeque o papel do professor quando ocorrem dentro da sala
de aula.
Voltando novamente o olhar para a figura do professor, há quem discuta que a
violência na escola é um sinal de que autoridade da escola diante do aluno esteja em crise, o
que seria mais um fator de tensão.
Bazílio (2005) nos diz que o longo do tempo, as relações entre alunos e professores
foram se tornando muito informais. Para o autor a relação professor-aluno e a relação direção-
aluno, na verdade, têm que se caracterizar como relações assimétricas em alguns momentos.
Não podemos deixar de pontuar, contudo, o quanto essas idéias sobre a necessidade de
autoridade para deter a violência podem ser perigosas e como – ao atribuir a violência na
violência a essa dita crise de autoridade da escola – podemos simplificar demais as
possibilidades de compreendê-la e atribuir um peso excessivo ao papel do professor.
Novamente temos o professor no centro da polêmica. Parece compreensível que do discurso
dos professores surja uma preocupação em apresentar seus procedimentos.56
56 Os resultados parciais da pesquisa MEC- INEP também apontam nessa direção. Na análise das opiniões dos participantes dos grupos focais, apresentada por Pacheco e Araújo (2005) tornam-se visíveis a sensação de insegurança e a percepção de um aumento de violência, incorporada às escolas da rede pública de ensino, principalmente nas grandes cidades. Esse tema preocupa sobremaneira os pais dos alunos. A opinião de boa parte dos entrevistados está situada entre uma percepção exagerada da violência na escola e a vivência cotidiana de casos reais de violência escolar. Somado a isso, existe uma percepção bastante presente na pesquisa sobre a escola pública atual como o espaço da indisciplina, da transgressão e da desordem, o espaço em que a autoridade mais se esvaziou na sociedade. Novamente estamos diante de representações que circulam e contribuem para naturalizar o sentido de que a violência está ausente das escolas particulares, como afirmaram C5 e C6, para depois eles mesmos oferecerem o contraponto a essa noção. Alguns dos pais dizem que a escola pública é “Uma terra de ninguém” e desejam a restauração e ampliação da autoridade de diretores, professores e equipes técnicas. Os diretores de melhor avaliação são aqueles que exercitam mais abertamente a sua autoridade e atuam com mais firmeza no combate à indisciplina. Expressões como “pulso forte”, “rigoroso”, “exigente” e “disciplinador” acentuam muito mais o perfil do diretor que aspiram, do que “comunicativo”, “atencioso” e “interessado”.
115
Apenas C6 respondeu falando de imediato sobre seu sentimento ao presenciar
violência entre os alunos e o sentimento marca, novamente, o mal estar que a violência
provoca :
“Ai...eu me sinto assim...super...ah...nem sei qual é a palavra...porque é muita coisa uma
criança brigar dentro de uma sala de aula ...ainda criança...num sei...” (C6)
Quando o assunto é a percepção do professor sobre a educação que seu aluno recebe
em casa, se percebe sinais de que possam ser tratados com violência, novamente aparece um
discurso sobre a violência, proferido de fora da violência, como se, de novo, o professor fosse
um observador externo. Aqui também se torna visível a fronteira escola-família, e aparece
novamente a idéia de gradação da violência, marcas presentes de forma repetida nas falas dos
sujeitos. Ainda que se repita a situação do professor falando sobre seus procedimentos nesses
casos – o professor fala dos sinais e indicadores, parece reconhecê-los, reafirma seu papel de
denunciar a violência para proteger a criança – e a identificação de situações em que a
violência ocorreu, não se observam relatos desses procedimentos. O verbo no futuro do
pretérito coloca como muito distante a ação de denunciar: denunciariam caso percebessem,
mas admitem perceber muito raramente:
“Eu tento conversar com a criança primeiro, né? Pra ver se a criança conta...eu... se uma
criança chega assim meio machucadinha na escola eu falo ‘ Ce caiu? O que que foi que
aconteceu?’, né? Pra ver se ela me conta alguma coisa... Olha...eu acho que...num é muito
difícil a gente detectar uma criança que tá sendo vítima de algum tipo de violência...né? E a
gente percebe isso no comportamento da criança...” (A1)
“A gente fica com uma vontade de fazer alguma coisa urgente, de...né?Porque assim as duas
vezes que eu vi foi coisa assim séria mesmo...Repetido, com marcas graves assim... Nós
chamamos a família pra conversar,... nós fomos investigar e a família já estava sendo
atendida pelo Assistente Social lá no bairro...” (A2)
“Ah é freqüente (perceber que os alunos sofrem violência em casa)...Porque eu tive uma mãe
que outro dia entrou dentro da sala e surrou o menino lá dentro. Num deu tempo nem
d’eu...sabe? Eu falei ‘Não pode fazer isso.’ ” (B3)
116
“Ah, num sei....Nunca ouvi comentário (de crianças desta escola sofrerem violência grave
em casa). Aqui não. Eu já vi e quando vimos a gente acionou o Conselho Tutelar... Eu
acionaria, acionaria sim... Porque eu acho que não é através da...da...pancadaria ou do
castigo físico que você educa...Eu acho que tem que ser ...tem que dar atividade pras
crianças...” (B3)
“Não, não... Não, não...nunca (percebeu aluno que estivesse sofrendo violência em casa) . O
pessoal comenta as vezes...mas comigo nunca aconteceu. (Se acontecer) Ah...eu vou...eu vou
primeiro pro Conselho Tutelar...Não, num resolve não...mas eu acho que eu tenho que
denunciar...mesmo porque eu sou funcionário público, não posso esconder, né? E como
professor eu não posso me omitir...” (B4)
Em suas falas os sujeitos-professores das escolas públicas deixam claro que conhecem
os sinais e falam do seu procedimento, na primeira pessoa. As falas vêm entrecortadas por
interjeições que convocam o interlocutor a endossar os procedimentos.
A idéia de gradação reaparece, como se só os casos muito graves merecessem atenção,
ou dizendo de outra forma, como se a violência possa ser aceita ou justificada, até certo ponto,
mas novamente não se define este ponto com clareza. O que temos aqui são as idéias
cristalizadas que circulam sobre o que seria mais ou menos violento; também observamos a
marca da dificuldade de definir o que é violência. Esse tipo de representação – “só um tapa,
tudo bem” – que leva a graduar a violência de leve à grave, circula referenciada inclusive pelo
discurso jurídico, visto que a justiça aplica penas diferenciadas para os delitos, dos leves aos
graves.
Retomando nossa discussão, a marca da fronteira entre o dentro e o fora da escola se
faz presente: os limites de atuação do professor cessam, quando o caso já está sendo
acompanhado fora da escola, como na fala de A2: “nós fomos investigar e a família já
estava sendo atendida pelo Assistente Social lá no bairro”.
Temos um discurso que ressalta procedimentos e marca fronteiras entre o dentro e o
fora da escola, como no relato de B3 sobre a mãe dentro da escola, sendo violenta com o filho
dentro da sala da aula. Apresenta-se, ao mesmo tempo, a negação sobre casos (nunca).
A atitude relatada pelos professores diante dos casos de violência é a atitude esperada,
aquela proposta pelo discurso jurídico – denunciar ao Conselho Tutelar – contudo referida
com o verbo no futuro de pretérito: acionaria, se houvessem casos.
117
A negação da presença da violência doméstica também acaba demarcando fronteiras
entre o que ocorre “na minha sala, com meus alunos” e o resto da escola, como no caso de
B4, que nunca percebeu sinais de violência doméstica em seus alunos – avalia a violência
como natural, como referiu ao falar da violência entre os alunos. Ainda assim, mesmo
negando a violência doméstica, o discurso de B4 ressalta seu dever de professor, exatamente
conforme o assunto é discutido a partir do ECA. Novamente a marca do lugar social do
educador traz o procedimento: o professor, sujeito intencional, com o verbo na primeira
pessoa do presente: “eu tenho que denunciar...mesmo porque eu sou funcionário público, não
posso esconder, né?”
A idéia de separação entre meus alunos e os outros também acaba por marcar limites
da atuação do professor: mesmo tendo notícia de uma situação grave de violência, como na
citação abaixo referente aos irmãos da aluna (coloca a situação definitivamente fora das
fronteiras da escola), o professor entende que não pode agir, seu procedimento não vai além
de conversar com a criança, mesmo percebendo a presença de uma violência que pode ser
grave:
“Então, olha...quando, quando eu trabalhava lá na periferia... eh...eu tinha uma aluna que
ela contava que quando o pai chegava bêbado em casa ele pendurava os irmãos dela de
ponta cabeça pelo eh no no caibro, né?...da coisa e...batia neles. Mas eu não tinha acesso a
essas crianças, eu tinha acesso só à menina... ...ela falou pra mim que ela chegou a apanhar
algumas vezes, mas não que o pai colocasse ela de ponta cabeça...” (A1)
Além disso, novamente nos deparamos com a idéia de gradação, de uma violência que
pode até ser aceita, e por isso acaba não sendo passível de denúncia: ela chegou a apanhar
algumas vezes, mas não que o pai colocasse ela de ponta cabeça. Entretanto, os limites entre
uma situação na qual caberia denúncia e uma outra, mais leve, em que não seria necessário
denunciar, não são claros. Novamente é importante considerar que a idéia de gradação faz
parte de representações que circulam e se cristalizam.Além disso, é necessário pensar mesmo
na fluidez desse limite entre o dentro e o fora da escola: se por um lado o procedimento de
denunciar ao Conselho Tutelar é claro a partir do texto legal, a dificuldade em definir os casos
que são passíveis de denúncia é uma realidade inegável. Estamos diante de um território
fronteiriço: a polêmica sobre a ingerência da escola , pensada como espaço e instrumento
público, na vida privada da família faz emergir os limites da atuação do professor. A despeito
do conhecimento do texto legal e de sua assimilação– o procedimento é denunciar ao
118
Conselho Tutelar – as dúvidas e questões éticas, recorrentemente discutidas pela literatura,
podem mesmo levar o professor a silenciar. Além disso, podemos entrever um outro possível
conflito para este professor: denunciar seria mesmo uma solução, ou uma forma segura de
proteger a criança? A crença nas instituições as quais a lei delega poder para intervir
efetivamente não parece grande – também já vimos que são muitas as contradições geradas
pela lei no que tange ao funcionamento dos conselhos:
“Eu acredito na efi...eh, assim...eles tiram realmente a criança da família mas pro lugar que
essas crianças vão também é muito triste...Então eu num sei o que que é pior, né?
Porque...tem história escabrosas também... “ (A1)
“Olha, eu não sei...eu acho assim, ficou sabendo tem que denunciar...Se o serviço não é bom
e ninguém denunciar a gente nunca vai melhorar . Tem que denunciar e tem que pegar no
pé pra tomar...sabe? Pra ta vendo o que ta acontecendo, ta acompanhando o caso... Liga de
novo, liga de novo..sabe? Porque acho que assim, a escola tem esse papel de proteger, de
tomar providências. E aí o serviço, se não é bom, ele vai ter que encontrar meios de
melhorar e a gente tem que ficar atenta, né? “ (A2)
“É...se tiver algum problema muito sério com a criança ela (diretora) já fez reunião a
comunidade...É...assistente social, a chefe da saúde...é...presidente de bairro né? Bom ela
faz...ela convoca todas as pessoas ...só não veio...o da...Conselho Tutelar... Eu não vi
solução para os casos que já passou (para o Conselho Tutelar)... Então eu...eu não acredito
não...Num vi solução...” (B3)
“Não, (o Conselho Tutelar) num resolve não...mas eu acho que eu tenho que denunciar...”
(B4)
Como vimos, dos professores das escolas públicas vem um discurso que chama
atenção sobre as ações previstas em lei – reafirma o papel do professor em denunciar ao órgão
competente, que é uma instituição externa à escola (fora), admite que a violência doméstica
pode estar presente (raramente tiveram notícia, mas sabem o que fazer e como reconhecer).
Tal discurso trás o fato de que professores da rede pública municipal foram alvo de
treinamentos, discussões sobre o ECA e sobre Violência Doméstica levadas a termo pelo
Poder Executivo local. Porém, a clareza dos procedimentos previstos em lei e esperados dos
119
professores contrasta com o limite imposto pela fronteira casa-escola: será que o Estado tem
mesmo o direito de intervir em situações que ocorrem dentro do espaço sagrado, preservado
do lar? Mesmo sabendo como agir, os procedimentos acabam se restringindo aos limites da
escola: conversar com o aluno dentro da sala de aula, conversar com a mãe dentro da escola.
Da escola privada, ao contrário, vem uma fala algo diferente, trazendo de novo idéias
cristalizadas sobre a distribuição da violência entre as classes sociais. Além disso, possíveis
procedimentos nunca se dirigem para fora da instituição (escola). Ao contrário, qualquer
procedimento se restringe á comunicar o caso e discutir dentro da escola, com a direção:
“Não, não...aqui não. Violência não. Aqui na escola não (viu ou soube de casos de
violência doméstica contra os alunos). Ah, tem que procurar...tem que procurar a
direção...nós temos reuniões semanais, discutir isso com os outros professores, com os
diretores...pra ver se eles estão percebendo alguma coisa, se estão sabendo e aí...a escola
tomaria uma posição, né? Chamar os pais...ou não... Não sei te dizer, mas eu comunicaria a
direção.” (C5)
“Ah...eu...eu acho que conversar...eu num sei...eu tentaria...que nem...no ano passado que
eu tinha esse aluno...eu conversava muito com ele...assim...sobre isso...assim...de uma forma
pra sair inteira...assim bem diretamente pra chegar assim...no ponto
dele...mas...ah...eu...seria isso...eu passaria pra direção pra gente ta chamando...pra gente
chamar os pais....” (C6)
Chamam a atenção as repetidas negativas, que fecham a questão: casos de violência
doméstica não acontecem com nossos alunos. Além disso, emerge a diferença entre saber
exatamente o que fazer (acionar o órgão competente) e saber que casos assim devem ser
discutidos com a direção: uma idéia de proteção ao cliente-aluno e sua família. A idéia de
realizar uma denúncia não é sequer considerada.
Em C6, fica ainda mais visível o fato de que tomar alguma providência está fora da
agenda da escola. Além disso, é possível identificar uma certa insegurança sobre como agir
nesses casos, o que se registra pelas reticências repetidas, em toda a fala e que tornam difícil
até compreender o que está sendo dito. Na verdade, o que se percebe é que a dificuldade de
pensar numa atitude relaciona-se com limite colocado pela fronteira entre a escola e a família.
Embora assumindo que a fronteira não é imóvel, entendemos que ela se constitui numa marca
forte é impossível ao professor ignorá-la: seria correto interferir numa situação familiar?
120
Ainda no eixo discursivo sobre a violência, no discurso fora da violência é possível
perceber que esta é colocada como estratégia ruim, porém os argumentos soam como mera
repetição de um discurso batido para esse lugar do educador, na escola:
“Porque eu acho que não é através da...da...pancadaria ou do castigo físico que você
educa...Eu acho que tem que ser ...tem que dar atividade pras crianças...” (B3)
“Não, a violência não pode ser uma estratégia pra educar, eu acho que só atrapalha...”
(A2)
“...eu acho que na maioria das situações poderia ser contornado isso (violência física)
...Conversado...ser... exigido de outra maneira...” (C5)
“Mas assim...eu acho que num...sei eu num sei...eu acho que pela conversa você...você
consegue criar a criança...É lógico que as vezes...aí...é difícil você falar sem ter a
experiência, entendeu?” ...mas eu acho assim...depende...as vezes um tapa, entendeu...só pra
criança sentir um pouco assim...num é sentir a dor mas sentir o que ela fez, entendeu?” (C6)
(Violência é) Um desabafo, sei lá...Eu sou calmo...Já tive piores momentos de...inclusive com
aluno...Falta de entendimento, né? Você pode conversar amigavelmente e você parte pra...
pra...ignorância, né?” (B4)
As falas de C6 e de B4 demonstram uma certa dificuldade para uma tomada de
posição em relação a usar (ou não) a violência como estratégia para educar.
A fala da professora mais jovem, que não tem filhos (C6), permite identificar
novamente a marca da contradição: posso dizer que sou contra a violência física, mas não sei
como é isso na prática pois não tenho filhos:
“ ...depende...as vezes um tapa, entendeu...só pra criança sentir um pouco assim...num é
sentir a dor mas sentir o que ela fez, entendeu? Mas as vezes, num sei, num sei se é
necessário, num se as vezes pelo castigo você pode deixar a criança...tirar...em vez de dar
um tapa tirar alguma coisa que a criança gosta...Num sei, e difícil isso...” (C6)
121
Também reaparece a idéia de gradação da violência e a supervalorização da violência
física como limite pra dizer se a violência está ou não presente. Um castigo que priva a
criança também pode ser uma forma de punição violenta. Qual seria mesmo um limite seguro
pra avaliar o que pode ser mais ou menos violento, sobretudo no caso do relacionamento entre
pais e filhos?
“Por mais que eu converse e peça chega uma hora que num...que num dá.....entendeu?
Então...e eu ainda penso assim...eu sou uma pessoa... esclarecida...uma pessoa...estudada,
que tem uma estrutura...Agora eu fico imaginando...uma pessoa que passa fome, uma
pessoa que...que que é privada de de um monte de coisas nessa vida.” (A1)
A violência entre os pobres pode parecer mais justificável do que em outras classes
sociais. Estamos novamente diante de idéias cristalizadas, de representações que insistem em
circular, segundo as quais a violência é comum entre os pobres e, talvez, sequer ocorra entre
as classes mais privilegiadas.
O que podemos perceber pelas falas dos sujeitos é que a dificuldade de definir e
encarar a violência incomoda muito:
“Quer dizer... Violência...é um negócio tão idiota, sabe? Os cachorrinhos brigam...É um
treino.. Só que nós guardamos raiva...e os animais chamados irracionais não
guardam...Então... é normal Um desabafo, sei lá... Falta de entendimento, né? Você pode
conversar amigavelmente e você parte pra... pra...ignorância, né? Violência é uma...” (B4)
“Ah, existem dois tipos de violência...a moral...assim a ...física né e a moral, que seria
verbal...que aí é...tipo...dependendo do que você fala pra uma criança você está sendo
violento...Então...ah, num sei assim...que que é a violência, mais a fundo...seria? Ah, se
alguém gritasse comigo acho que ...sabe assim? Já ta sendo violento...assim...num é o
extremo mas...é uma forma de violência...Porque tem gente você nunca sabe...então se você
grita com uma pessoa ela não tá nem aí...mas outras já sentem...mais...então isso já é pra
mim uma violência...fora...bater, né? Empurrar..entre crianças é isso, né? Bater, empurrar,
chutar...Magoar com palavras...” (C6)
“Acho que violência seria uma agressividade sem motivo ...o aluno ser agressivo, se mostrar
agressivo em qualquer situação ...Geral, verbal, física...Normalmente em qualquer situação,
122
competição ele já se mostrar agressivo , querer entrar em conflito...isso aí eu acho que seria
uma violência...E também a falta de respeito , assim...exagerada...”(C5)
“Violência é quando você é agredido em qualquer direito que você tem...né? Pra mim
violência de uma maneira bem geral é isso...” (A1)
“Violência é qualquer agressão...Física, verbal...” (A2)
“Pra mim violência é qualquer tipo de agressão, seja ela física ou verbal.” (B3)
De forma geral, a marca que emerge das falas dos sujeitos é a incerteza: “acho que”,
“seria”, “sei lá”, além das expressões que chamam o interlocutor a endossar, como “né?” e
“sabe”, ou falas , como as de B4 e C6, que são entrecortadas por muitas reticências.
A contradição entre a violência ser “normal” e, ao mesmo tempo, um “negócio
idiota” e “ignorância” (B4) marca a dificuldade em definir, falar sobre violência. As mesmas
marcas podem ser observadas na tentativa de definição apresentada por C6, que numa fala
longa, procura mostrar que sabe que existem diferentes formas de violência, mas entre
reticências e interjeições passa por elas - física, verbal – mas não chega a concluir.
As muitas possibilidades de definir a violência nos levam a inferir que esta não é uma
marca exclusiva do discurso dos professores.
A violência que diariamente chega até nós – banalizada pela enorme freqüência com
que aparece, em todos os níveis do cotidiano – pode se tornar muito incômoda quando afeta
pessoas que nos são próximas, quando acontece diante dos nossos olhos, ou ainda, quando
coloca em pauta questões éticas. Quando se trata da violência interpessoal doméstica, essa
dificuldade em definir, ou estabelecer um limite sobre quando interferir, pode aumentar ainda
mais: o que pode ser classificado como violência no relacionamento entre pais e filhos? Indo
um pouco além: ainda que algumas situações possam ser claramente definidas como
“violência”, será que tenho o direito de interferir?
Também é possível pensar fronteiras entre dentro e fora da violência a partir do lugar
social da família, no papel de filho. Nesta posição, contudo, tratam-se das memórias do
sujeito e talvez por isso, as fronteiras não pareçam muito claras. Necessário pensar, como
sugere Bruner (1997) que o relato retrospectivo é muito afetado pela perda, pela reelaboração,
sendo que contam os sentidos re-significados, transacionados na cultura. Também é
importante considerar, que a mais traiçoeira característica da memória humana é a de apagar
123
ou transformar lembranças dolorosas. Além disso, estamos também diante de uma possível
superposição de papéis: o filho que também é pai.
O discurso que retoma as memórias dos sujeitos sobre a presença de violência na
educação que receberam de seus pais, está no eixo discursivo “fora da violência”: vem
organizado, e as idéias parecem conter cristalizações que desculpam ou justificam a atitude
dos pais, ou mesmo, que repetem que sempre que um pai ou uma mãe bate nos filhos é porque
o filho mereceu :
“Eu lembro que eu nunca apanhei do meu pai ... Nunca...Eu lembro que uma vez ou duas
minha mãe me deu assim uns tapinhas na bunda... Eu sou filha única, primeira neta,
morava com minha outra avó na minha casa...Então ...não me lembro de ter apanhado...
Lembro assim de coisa de mãe mesmo, de dar um tapinha, né? Alguma coisa assim...” (A1)
“Olha, eu nunca apanhei da minha mãe nem do meu pai. Eles eram muito assim...Eu não
sei se a gente, eu e minha irmã, se a gente era calma ...mas também eu acho que é deles
isso, né? Eles sempre foram muito carinhosos, sabe de agradar de ter contato físico mesmo,
de pegar no colo...” (A2)
“Não, não...Um irmão meu apanhou uma vez porque ele respondeu pro meu pai...num sei o
que que foi meu pai deu um tampa nele na hora e ele até hoje se lembra disso. Então eu fui
criada num ambiente graças a Deus assim muito saudável, de muito respeito...sabe? Minha
mãe, sempre, até hoje...minha mãe tem 80 anos, dá muito carinho pra gente e é recíproco.”
(B3)
“Meu pai era bravo...mas...valeu a pena! Nós éramos nove irmãos, paupérrimos...E...da
família quem deu certo fui eu...Porque eu trabalhava, já apanhava algodão com 7 anos pra
comprar o material e tal...na época o governo não dava nada, né? Nem comida...Mas valeu a
pena, foi uma aprendizagem muito boa. Não guardo mágoa dessa época, não...de jeito
nenhum...O...meu pai me batia porque eu fazia coisa errada...Eu lembro disso...Meus
irmãos também apanhavam...mais do meu pai porque minha mãe não batia...Meus irmãos
fugiam pela janela...Mas...era outra época, né? Não tem...não tem comparação com
esta...”B4
124
“Apanhei... Eu apanhei e eu acho que algumas situações ...é...foi bom...eu mereci, né?
Mas...eu acho que na maioria das situações poderia ser contornado isso
...Conversado...ser... exigido de outra maneira...Então eu tento passar isso pro meu
filho...Exigir primeiro, conversar, ensinar...tentar mostrar como é...Mas eu também já bati
nele, a mãe dele já bateu...” (C5)
“...assim...meu pai...era assim..aquela coisa de a mãe fala, fala, fala...aí num dá certo, aí
chama o pai e o pai bate, entendeu? Meu pai acho que eu lembro assim uma vez ele me
bateu mas...nem lembro se foi de mão ou se foi de cinta...que eu fiquei super...Do meu
irmão eu lembro que ele batia...do meu irmão eu lembro que foi mais...meu irmão é mais
novo...aí eu lembro de umas duas vezes” (C6)
Também não podemos deixar de identificar a presença de sentidos cristalizados
sobre o fato de que pais que amam educam, que é pelo bem da criança, e a criança apanha
porque merece, os pais estão no seu papel, como em B3 (“Um irmão meu apanhou uma vez
porque ele respondeu pro meu pai”); B4 (“O...meu pai me batia porque eu fazia coisa
errada...Eu lembro disso...”) ou C5 (“Eu apanhei e eu acho que algumas situações ...é...foi
bom...eu mereci, né?”).
Novamente nos deparamos com a marca da gradação: algumas situações são aceitáveis
como em A1 ( “minha mãe me deu assim uns tapinhas na bunda...Lembro assim de coisa de
mãe mesmo, de dar um tapinha, né?”).
Certamente não estamos aqui dizendo que isso não seja verdade, nem discutindo a
enorme responsabilidade que representa a educação dos filhos, em qualquer contexto.
Contudo, se tais idéias sobre a punição corporal são tão fortes, parece-nos compreensível o
silenciamento dos professores: se em outros papéis, como no de filho, por exemplo, são tantas
as justificativas para a violência, como no papel de professor a atitude poderia ser a de
denunciar?
Apenas de C5 vem a reflexão: “Mas...eu acho que na maioria das situações poderia
ser contornado isso ...Conversado...ser... exigido de outra maneira...” Contudo, a marca da
incerteza se faz presente: acho, poderia.
Nos outros casos o que vemos é a aceitação das estratégias como válidas, como em
B4: “Meu pai era bravo...mas...valeu a pena...Não guardo mágoa dessa época, não...de jeito
nenhum...O...meu pai me batia porque eu fazia coisa errada” . Ou em A2, referindo-se à
experiência do marido:
125
“Ele (o marido) apanhava da mãe dele, mas assim a mãe dele é ótima, mas era a criação
que... Hoje em dia ela fala assim...’se eu fosse ser mãe hoje jamais eu bateria no meu filho .
Porque hoje a gente lê, a gente ouve, a gente fica sabendo tanta coisa ...no meu tempo a
gente achava que o certo era bater’...Mas apesar dela ser muito brava ela era muito
amiga.” (A2)
Interessante perceber que anteriormente, ao referir-se a condução que dá para a
educação de seu filho, A2 comenta que seu marido é “mais durão”: a literatura está repleta de
referências que corroboram o caráter cíclico da violência doméstica. Além disso, chama-nos a
atenção a idéia de que antigamente era mais comum e menos discutida (aceita sem reflexão) a
presença de punição corporal na educação dos filhos. Tal idéia também aparece em B4:
“Meus irmãos também apanhavam...mais do meu pai porque minha mãe não batia...Meus
irmãos fugiam pela janela...Mas...era outra época, né? Não tem...não tem comparação com
esta...”.
Retomando, o discurso sobre a violência – sendo esta reconhecida ou não como
acontecimento dentro da escola – se por um lado vem organizado, racionalizado, repetindo o
discurso jurídico, por outro apresenta muitas contradições. Na verdade, existem marcas
presentes no discurso sobre(fora) que se repetem no discurso da (dentro), como veremos: a
contradição, o desconforto causado pela violência, o sentido de gradação. A diferença
fundamental que estamos identificando entre esses discursos é que o discurso sobre está
pautado no jurídico e o discurso da pauta-se pelo sensível, conforme retomaremos após a
discussão dos recortes.
O discurso proferido de fora da violência, tem marcas importantes que vão pontuando
o lugar social de onde se origina. A primeira e mais forte marca é a presença da contradição,
que se faz visível pelo desconforto que o tema causa, no fato do professor sempre enfatizar
seus procedimentos, na idéia de gradação da violência.
A contradição, que emerge em muitos momentos no discurso sobre a violência,
apresenta-se nas falas dos professores da escola privada, que inicialmente negam a presença
da violência, como se ela fosse um privilégio das escolas públicas, para depois aparecer em
outros momentos do depoimento, apesar das afirmações que dizem que ela raramente ocorre
entre os alunos, ou entre alunos e professores. Ou quando, após negar a violência entre os
alunos o professor cita o exemplo de uma ONG na periferia onde os alunos são mais educados
do que na escola particular. Outra formulação dessa contradição se traduz pelo professor da
126
escola pública que conhece os procedimentos no caso de identificar um aluno que sofre
violência, mas acaba tendo o mesmo procedimento do professor da escola privada. Ou seja,
marca-se a discrepância entre reconhecer sinais de violência e saber como agir, e nunca ter
reconhecido uma situação que o levasse a agir. Também vemos contradição no fato dos
sujeitos negarem a violência como estratégia válida, quando se colocam no lugar social do
professor. Contudo, quando se voltam para a sua história de filhos, admitem ter sofrido
violência, que agora aparece como estratégia válida.
A contradição se formula novamente quando, ao falar sobre a violência que ocorre, ou
se manifesta dentro da escola, os professores demonstram um incômodo ou desconforto, que,
como vimos, não é explicitado, mas aparece, sobretudo, quando o professor admite a presença
da violência dentro da escola, dentro da sala de aula: primeiro diz que a violência é freqüente,
para depois negá-la como tal; ou descreve episódios de chutes, socos e confronto físico como
“não é muita coisa” ou “coisa boba”.
Quando se trata de identificar a violência doméstica – trazida de fora, da família para
dentro da escola, a partir de possíveis sinais – temos um professor que demonstra conhecer os
procedimentos, mas que admite muito raramente ter reconhecido a violência e tomado a
atitude de notificar.Estamos diante de um professor preocupado em ressaltar seus
procedimentos: dentro da escola, sobre a violência que ocorre entre os alunos, o que se vê é a
firmeza em intervir, impedir a violência, fazer com que ela cesse (seja separando, conforme
relatam 05 dos sujeitos, ou deixando que se batam até parar, como B4) ou mesmo, negar que
ela ocorra dentro da sala de aula.
A contradição emerge na dificuldade em definir o que seria mesmo violência e no
sentido de que até certo ponto, a violência é compreensível e pode ser aceita, marca que
estamos identificando como gradação: idéias cristalizadas sobre o que seria mais ou menos
violento, como se só os casos mais graves merecessem atenção.
Muitos autores discutem essas questões, e o incômodo provocado pela violência, a
dificuldade em conceituá-las, a noção de gradação fazem parte de representações que
circulam e se cristalizam pela repetição.
Para alguns autores, a gradação é considerada na própria definição de abuso físico e
relaciona-se com intensidade e área do corpo:
Abuso físico é qualquer ato que provoque lesões na criança, cometido por um responsável, por qualquer razão. As lesões incluem os danos ao tecido além do eritema por um tapa em qualquer área do corpo, que não a mão ou as nádegas (PASCOLAT, 2001 ).
127
Ao contrário, Azevedo e Guerra (1995) adotam a definição de Neil (1989), segundo a
qual “violência doméstica física é toda ação que causa dor física numa criança , desde um
simples tapa até o espancamento fatal, representam um só continuum de violência”. As
autoras consideram que, qualquer tipo de agressão pode ser facilmente enquadrada em
situação de risco, quanto à saúde física e mental da criança, e, portanto, digna de preocupação
e reflexão.
Além disso, Azevedo e Guerra (2000), relatam que a literatura sobre este fenômeno
tem enumerado uma série de definições acerca do mesmo, sendo que todas elas contêm
ambigüidades. O problema fundamental em termos de definição é que o significado de muitas
ações é determinado pelo ambiente em que ocorrem, o que inclui: a intenção do agente, o
efeito do ato sobre quem o recebeu, o julgamento de valor de um observador sobre o ato e a
fonte do critério para o julgamento. Ou seja, pode ser mesmo muito difícil definir os limites
do que seja ou não violento, no relacionamento entre pais e filhos, sobretudo olhando para ele
de fora da família, a partir de uma instituição pública, a escola.
Outra marca importante identificada nesse discurso sobre a violência refere-se à
formulação da fronteira entre dentro e fora da escola (escola-família). Essa marca da
separação entre a escola e família, aponta para limites definidos da atuação do professor, e
pela importância dessa fronteira que se define com tanta clareza e que parece impossível de
ser desfeita, vamos retomar a discussão, num item separado.
Finalmente, nesse discurso sobre violência marcam-se diferenças entre a escola
privada – negação repetida de que a violência possa ocorrer, idéias cristalizadas sobre a
violência e sua distribuição entre as classes sociais, desconhecimento do procedimento de
notificar ao Conselho Tutelar, e as públicas – ambivalência quanto a admitir a violência,
conhecimento do procedimento.
6.1.2 O discurso da violência: o que dizem os professores de dentro da violência
Se existe um discurso que nega a violência como estratégia para a educação no lar,
um discurso que coincide com o discurso jurídico atual da doutrina da proteção integral, que
chama o professor ao seu papel de identificar e denunciar – que se mantém enquanto se trata
desse lugar social que é a escola – existe um outro que em muito se opõe ao primeiro, e que
aparece quando esse sujeito se coloca dentro da situação da violência, seja como professor –
sensibilizado, não mais como observador externo, identificando-se com seu aluno vitimizado,
128
mas, sobretudo, como pai-mãe, no papel de educador dos seus próprios filhos, fora da escola,
nesse outro lugar social que é o lar.
Ou seja, esse discurso que estamos identificando como proferido de dentro da
violência também aparece no lugar social do professor, quando o sujeito relata uma
experiência recente com a violência doméstica sofrida por uma aluna. Interessante perceber
que no discurso proferido de fora da violência, o mesmo sujeito não se lembra ou percebe
casos e usa o verbo no futuro do pretérito, negando o acontecimento dentro da escola
particular. Num outro momento do depoimento, a contradição e formula quando se lembra de
um acontecimento recente em que observou marcas de violência numa aluna:
“Aqui, eu tive um caso semana passada sexta feira...uma aluna minha veio... me mostrar na
perna dela, ela tava de short, a mão certinha do pai dela ...Entendeu? Eu falei assim
‘Nossa...mas porque...que que isso, que que você fez?’ ” (C6)
Inicialmente a fala de C6 chama atenção pela forma como é colocada: a professora
demonstra muito incômodo pela marca na perna da aluna. Além disso, sua primeira reação é
perguntar porque o pai bateu: “que que você fez?” Estão presentes sentidos cristalizados
segundo os quais se a criança apanha é porque mereceu, os pais sempre usam a violência
para educar, corrigir a criança, para seu próprio bem. Enquanto continua o relato, C6 vai se
mostrando cada vez mais indignada:
“Ela falou assim: ‘Ah...é que eu tava com dor de cabeça e eu não queria brincar com meu
pai...” Aí, conversando com ela eu descobri que dentro do carro quando eles estavam vindo
pra cá o pai dela começou a fazer uma brincadeira...nome de num sei que com a letra A...e
ela tava com dor de cabeça e ela tem dificuldade que é uma que eu chamei pra reforço...Aí
ela tem então bastante dificuldade já e ela não tava conseguindo falar a resposta pro
pai...ela falou que tava com dor de cabeça ...às vezes num é nem dor da cabeça, às vezes ela
não conseguia pensar...e o pai ficou bravo com ela e deu um tapa nela na perna dela...mas
ficou a marca certinha ...”
Em seu relato, colocando-se dentro da situação de violência, aparecem sentimentos, e
uma certa indefinição sobre aceitar ou não a violência como estratégia de educação no lar:
129
“Ah eu me sinto...muito assim...sensibilizada porque...num sei...eu num faria isso com...eu
num tenho filho mas eu num faria isso...de deixar marca...eu acho assim que existem
outras formas de você aprender a vida..falar, ou dar bronca...entendeu?”
Totalmente envolvida pela situação – trazida de fora da escola para dentro da sala de
aula – ao mesmo tempo em que está o sujeito-professor, está também a mulher que pensa em
ter filhos, e em teoria acha que podem existir outras formas que não a violência física.Não se
sente, contudo autorizada a falar com certeza, pois não tendo filhos, não sabe como é na
prática. Além disso, existem suas memórias de filha, que como vimos (“...aquela coisa de a
mãe fala, fala, fala...aí num dá certo, aí chama o pai e o pai bate, entendeu? Meu pai acho
que eu lembro assim uma vez ele me bateu mas...nem lembro se foi de mão ou se foi de
cinta.” ) passou por situações de violência. Além da incerteza sobre aceitar ou não a
violência na relação entre pais e filhos, nesse discurso dentro da violência, aparece a
indignação pela falta de compreensão do pai para uma limitação da filha:
“ E o pai não sabe, não ta vendo que ela tem uma dificuldade maior? Entendeu? Pra dar
um tapa assim pra deixar marca...tem que ser muito forte...pra você deixar marca...”
E finalmente, aparece novamente o sentido da gradação e a dificuldade em
estabelecer parâmetros sobre até que ponto é violência, ou o que define isto: força, repetição,
motivo, o fato de deixar marcas?
“Às vezes a mãe ah..dá um tapa pra assustar a criança...que num sei o que mas...pra deixar
marca na perna tem que ser muito forte...”
A professora está se referindo a um dos únicos episódios de que se lembra, foi um
acontecimento recente. Observamos um processo de identificação com a criança, de dentro da
situação nenhuma fronteira se mostra com clareza. Quem é o sujeito desse discurso: a
professora, a filha ou a mãe que poderá vir a ser?
Ainda desse lugar social que é a escola, o professor fala de dentro da situação de
violência quando ele é alvo de violência por parte dos alunos.
No caso de C6, ela relata um incidente com uma aluna que a “tirou do sério”. Diante
da agressão, a professora sai da posição de observadora para dentro da situação. Novamente o
discurso que se apresenta vem carregado de sentimento, entre reticências:
130
“...Ce chega e fica assim fora do sério... Aí ce nossa...aí fica...aí eu falei assim ‘Pode ir
sentar lá fora porque eu num to conseguindo...’ Sabe, assim? Eu já tava tão nervosa...faz
dois anos isso...Eu falei assim ‘Não, senta lá fora, espera um pouco que agora eu vou
continuar dando aula pros outros alunos e você não vai ter aula.’” (C6)
Diante de uma situação em que foi agredida pela aluna, acaba tendo o procedimento
de pedir à aluna que saia da sala, sem estar muito segura sobre ser este um procedimento
correto. Seu discurso procura justificar:
“Não, porque num sei o que...porque ela não queria sair, que não sei o que...porque
assim...eu nunca tiro uma criança da sala...aconteceu naquele ano porque eu tinha uma
sala que era muito agitada...não era só ela...eram muuitos, e as vezes...assim...uma vez ou
outra eu deixava um...um pouquinho lá fora só pra eu conseguir organizar a sala.” C6
Sua fala vem carregada de sentimento, entrecortada por interjeições e muitas
reticências e o procedimento de pedir que a aluna saia, pede justificativas.
“E com ela eu falava pra sentar ela fora, ela não queria “Não, porque eu não vou sair,
porque eu não quero”...e eu falando com ela...aí eu comecei a levantar o tom e ela começou a
levantar o tom e eu comecei ...sabe quando você perde o controle? A hora que eu vi o
coordenador, a patroa aqui na porta da sala...Porque eu tava gritaaaanndo, gritando...E ela
apresentado a escola pra um casal de pais...Eu fiquei com a cara no chão, né? Mas foi
assim...fora do controle...eu fiquei muuito mal com isso...muito mal...até...eu tinha
assistente, eu pedi pra minha assistente continuar...ela sabia o que eu tava dando...ela
continuou a aula...eu fui no banheiro...eu queria cho...eu tava...chorando porque...eu saí do
meu controle e isso...E, e...acumulou, né? Porque cada dia ela me desobedecia mais, me
desobedecia mais...e gritava...e que um sei o que...E naquele dia foi ao extremo...eu gritando
com ela e ela gritando comigo e eu aumentando e ela aumentando a voz...e eu gritando... Mas
ela foi muito violenta comigo, né? E eu era professora ela era aluna...Ela tinha que...se ela
tava me desobedecendo e eu pedi pra ela sair da sala ela tinha que ter saído...”
Como veremos adiante, quando os sujeitos nos falam sobre sua experiência com
violência na educação de seus próprios filhos, a idéia de perder o controle, sair do sério ou
perder a cabeça está sempre presente para justificar a presença da violência nessas relações.
131
Numa outra situação ocorrida dentro da escola, voltamos a identificar um discurso
proferido de dentro da violência. A situação relatada por A1 é mais concreta em termos do
consenso sobre violência, já que o aluno-agressor porta uma arma de fogo:
“Numa escola aqui da prefeitura...periferia...fui ameaçada com revólver...dentro da sala de
aula...Um menino de 12 anos, ele tirou o revolver 38 pra me dar um tiro nas costas...Que que
eu fiz? Eu enfrentei ele...”
Novamente temos o sentido cristalizado de que os pobres são violentos, que se marca
pela necessidade de situar o ocorrido na periferia. Contudo, sofrer uma ameaça concreta,
dentro da sala de aula, coloca o sujeito definitivamente dentro da violência, e então aparecem
sentimento e indignação:
“Senti muito, muito medo, né?...Eu fiquei um mês afastada da escola...fiquei...muito mal, eu
entrei em depressão profunda ...sabe? Eu não queria voltar lá, não queria trabalhar eu
num...E aquela realidade daquele pessoal não entrava na minha cabeça...sabe? Eu sofri
muito...Eu sofri muito até...(suspira) que eu consegui sair de lá...Eu...eu...
num...num...num é uma coisa assim que...que me...que eu tenha estrutura pra
enfrentar...pra lidar com tanta violência, com tanta desgraça junta que nem era lá... “
A situação de violência leva ao reconhecimento da impotência do professor diante
de contextos externos à escola, sobre os quais não reconhece seu papel, esbarrando mesmo
nos limites institucionais. Essa demarcação de limite em sua atuação vai reaparecer outras
vezes, em outras falas, como veremos, e é uma importante marca a ser considerada na
compreensão do silenciamento.
Nessas três situações em que o discurso que chamamos de “dentro da violência” se
formula a partir da escola, do papel social do professor, ele faz referência a experiências
concretas, da história recente da vida profissional, em situações dentro da escola, que levam o
professor pra fora dela, identificando-se com outros papéis ou posições. Mais do que isso, as
situações parecem mesmo evocar outros papéis e lugares sociais, como no caso de C6. Assim,
quando o discurso se refere ao que foi vivido pelo professor, a fala não vem tão organizada, e
aparece o sentimento como justificativa. Reaparece a noção de gradação da violência, também
emerge a relação entre pobreza e violência.
132
Contudo, os recortes mais significativos deste discurso formulado de dentro da
violência aparecem em um outro lugar social, fora da escola: os pais ou mães falando sobre a
educação dos seus filhos. Então aparece a contradição entre o discurso formulado de fora da
violência, na escola. Antes de condenar, a violência aparece como inevitável e a marca de
“sair do sério”, “perder a paciência”, “passar dos limites” é muito forte:
“Eu vejo assim eu como mãe...Por exemplo...tem algumas vezes...eu já tive de usar
de...de...bater, de dar tapas mesmo... Por exemplo...essa semana mesmo eu tive quer dar uns
tapas no meu filho (onze anos) porque ele tava fora..do normal, entendeu? E eu já tinha
conversado, eu tinha pedido e mesmo assim não teve jeito...Então a arma que, que...a gente..
tem infelizmente... Então eu tive que dar... uns três tapas assim... no ombro dele assim...pra
ver se ele... né... Tentei fazer com que ele entendesse mas ele não entendeu...Não teve jeito...
Não... E aí eu já fui ficando...nervosa...” (A1)
Ao assumir que como mãe já usou a violência física, tal estratégia aparece como um
recurso extremo, mas inevitável. A formulação ficar nervosa remete a uma outra, já colocada:
sair do sério, e de certa forma justifica a violência: depois de tentar conversar, como último
recurso, a violência. E aí, novamente, se formula muito sentimento, relacionado, sobretudo, à
responsabilidade de educar:
“... É muito difícil...Nossa...é horrível! Eu...eu me desgasto muito porque... eu...eu...Parece
que tudo que eu... ensinei...foi por água abaixo, entendeu? Por mais que eu converse e peça
chega uma hora que num...que num dá.....entendeu? E não tem nada que te tire mais fora do
sério do que um filho...Não tem, não tem (com ênfase)...Não tem marido, não tem pai, não
tem mãe, não tem ninguém...O que mais me...me desequilibra é quando eles têm um
comportamento desses... Porque é muito sentimento envolvido...é uma relação muito forte, é
muito sentimento envolvido...”(A1)
Ao referir situações com filho de 8 anos, A2 coloca a irritação por perceber que não
tem mais um controle completo da situação, ou seja, que verbalmente não consegue mais
comandá-lo:
133
“ É...ele ta numa idade agora que ele ta assim...’Vai tomar banho’ e ele ‘Ah daqui a pouco eu
vou...Ah, num precisa, depois eu vou...’ Então essas coisas me tiram do sério. Porque até
pouco tempo era tudo assim certinho...” (A2)
Ao mesmo tempo em que admite que o fato do filho não obedecer imediatamente a
transtorna, pondera – ao relatar as exigências do marido – que se trata de uma criança:
“O meu marido ele é mais... é mais durão. Ele quer as coisas muito certas então às vezes a
gente precisa conversar: ‘Peraí, ele é criança’. Porque ele tem que ter respeito, tem que ter
limite, mas a gente tem que ver que ele é uma criança, né? Que ele num vai ter atitude de
um adulto...” (A2)
Começa a aparecer a dificuldade de avaliar e definir com clareza quais estratégias em
quais momentos podem ser aceitáveis ou válidas. De qualquer forma, está presente na
formulação o sentido de que a violência física não é a mais desejável das estratégias, mas
acontece, é justificável e socialmente legitimada: quem pode discordar sobre o fato de que
uma criança tem que ter limites? Assim, a violência pode acontecer quando a mãe perde a
paciência, mas não é nada grave:
“Eu já perdi a paciência sim algumas vezes...de bater...Pouquíssimas vezes. Acho que uma
duas vezes ou três..Nunca foi uma surra, assim....Sabe quando te dá um nervoso assim,
você dá um safanão? Mas só isso...” (A2)
Aqui é possível retomar a formulação de que em certos momentos se “perde a
paciência” ou se “sai do sério”: ou seja, mesmo entendendo racionalmente que a violência
não é boa estratégia, ela acaba acontecendo, como se fosse algo impossível de evitar na
relação com os filhos. A intensidade dessa relação pode justificar a violência.
Está presente outra vez o sentido de gradação, reafirmando que até certo ponto a
violência faz parte dessa relação e se não for extrema, é aceitável, justifica-se. O discurso
continua sendo formulado com emoção e sentimento:
“ É muito triste eu detesto fazer isso...Tanto assim...eu converso muito, e...Também eu não
sou de por de castigo não. Eu sou assim de...conversar. Infelizmente muitas vezes assim...a
gente acaba perdendo mesmo a paciência.” (A1)
134
Como o discurso de A2 sugeriu, podem haver diferenças entre a forma como pais e
mães lidam com a educação dos filhos. C5 fala de situações em que bateu no seu filho de 2
anos:
“Já apanhou, sim... ele só apanhou porque ele sabia que tava errado e fez a coisa
errada....Ele sempre sabe quando apanha porque ele apanha ...entendeu? Ele é uma
criança muito esperta e... ele já tenta te ludibriar em algumas situações...”
Se a violência pode não ser boa estratégia, existe uma gradação possível, algumas
formas de violência física que são aceitáveis: “É, ele é pequenininho mas ele já
apanhou...Tapa na bunda...nada de ficar com marca, nada disso...” (C5). Também é
possível retomar a marca da contradição: falando sobre a violência na escola C5 nos diz que
ela não é boa estratégia. Falando de sua relação com o filho de dois anos ele – infelizmente –
a considera como possibilidade que não pode ser descartada:
“Eu acho que tem situações em que a criança precisa ver que...num pode tudo, que tem
limites e acho que infelizmente...eu acho, eu acho que essa é a maneira...espero descobrir
outra maneira, pra num ter que ficar batendo mas por enquanto eu acho que em alguns
casos é necessário” (C5).
Finalmente, temos o relato de B4. Temos considerado este sujeito como um caso a
parte, porque, se por um lado seu discurso parece ser muito diferente dos demais, por outro
percebemos as mesmas regularidades identificadas nos outros. Chama-nos atenção o fato de
ser ele o único sujeito que admite a violência como normal, natural, e no contexto da
discussão sobre sua percepção em relação à violência sofrida em casa pelos alunos nos diz:
“Ah, isso é normal...né?” (pais baterem nos filhos). Bem então, faz sentido que ele diga
nunca ter percebido que os alunos tenham sofrido violência em casa. No papel de pai, ele
confirma a formulação anterior:
“Só bati uma vez no maior ...quer dizer...e eu não arrependi...e não bati...assim...com
violência, né?É...eu achei que valeu a pena...porque nunca mais eu tive que bater nos outros
e...foi só um tapa que eu dei nele também...Mas...nós não usamos
violência...Ô...mas...não...” (B4)
135
Mesmo considerando a violência entre pais e filhos como normal, B4 apresenta
inúmeras justificativas para sua atitude como pai: foi só uma vez, foi só um tapa, não foi dado
com violência. As reticências também soam como justificativas: mesmo sendo normal, existe
um certo mal estar em admiti-la como prática. Contudo, a fala se encerra justificando a prática
como positiva:
“Hoje a gente fala, né, que valeu a pena aquele tapa que eu dei, que não tem
problema...eles eram pequenos...mas eles...é...não tiveram problema nem com cigarro, nem
com bebida, ninguém bebe, fuma...menos ainda droga...Trabalham...mas eu sempre falo que
valeu a pena porque eles passaram a temer...E...o que acontece com as crianças aqui
é...que eles não conhecem a dor...Quando você conhece a dor...é...você respeita...” (B4)
Retomando, nesse discurso proferido de dentro da violência, nos deparamos com
marcas que se repetem, presentes também no discurso sobre violência: a contradição – que
aqui fica ainda mais nítida quando comparamos o que o sujeito diz como professor, com o que
ele diz como pai, ou quando observamos o desconforto causado pela violência – que aqui se
faz visível em formulações sobre a intensidade da relação pais e filhos, a responsabilidade de
educar, a emoção envolvida. Ainda, vemos a contradição no sentido de gradação –
formulações que retomam sentidos estabilizados sobre o que é e o que não é condenável
quando se trata de educar os filhos, sentidos presentes na dificuldade de definir quais
estratégias são aceitáveis, ou até que ponto a violência pode ser aceita (tapa na bunda, tapinha,
dado sem violência, coisa de mãe).
Uma marca exclusiva desse discurso da violência é a relativa desorganização dessa
fala que se formula com emoção e sentimento, em contraste com o que observamos lá no
discurso sobre, que é organizado, racionalizado. Outra forte marca desse discurso é a
justificativa, que se formula na ordem do subjetivo.
A marca da separação entre o que acontece dentro da escola e que é externo
novamente nos remete ao limites da atuação do professor: como agir diante de uma situação
que está atingindo o aluno fora da escola, no lar? Faz parte do papel do professor? Isso vai
ajudar a criança?
A demarcação dessa fronteira dentro-fora da escola é muito presente nas falas e
merece uma retomada, já que estamos considerando como fundamental na compreensão do
silenciamento a marca dessa tensão que se estabelece entre o público (jurídico) e o privado
(subjetivo).
136
6.1.3 A fronteira escola-família
Como vimos, a formulação de fronteiras é uma marca importante que reaparece
quando se trata de definir limites da atuação do professor, ou o relacionamento escola-família:
não é uma delimitação clara, mas uma fronteira flexível que hora separa e hora aproxima os
dois universos/dimensões/lugares.
Assim, os discursos permitem identificar “a criança lá em casa X a criança aqui na
escola”, além de acentuar a marca dos lugares e papéis sociais: criança filho, criança aluno.
Marca-se uma separação, e se a família não se apresenta na escola para fazer uma ponte, essa
separação fica muito definida e é colocada como algo que dificulta o trabalho do professor:
“Tem criança que eu vou passar o ano inteiro e não vou conhecer nem a mãe e nem o
pai...Ninguém que seja uma referência dessa criança em casa, né? Tem os que são
freqüentes nas reuniões de pais, outros que aparecem mais quando tem problema...Alguns a
gente chama e não aparece, né? Então a gente tenta trabalhar com o que a gente tem, que é
a criança Eu acho que a educação é... ela é uma via de mão dupla, escola-família família-
escola, né? Quando a gente trunca esse caminho aí fica mais difícil, né? É imprescindível a
gente conhecer...alguém responsável por essa criança, que traga alguma informação pra
gente, né?” (A1)
“Uns três ou quatro casos que eu tenho mais assim de crianças com mais problema de
aprendizagem são realmente que a família...Eu tenho ...por exemplo...eu mando lição pra
casa num faz porque ninguém sabe ler o que é que ta escrito... entendeu? O grande
problema...um dos grandes problemas nossos da escola, de problema de aprendizagem ta
muito relacionado com a família...o contexto de onde essa criança vem...né? (A1)
“E...não têm acompanhamento em casa de nenhuma lição de casa que a gente manda, não
tem interesse nenhum da família na vida escolar da criança... Família totalmente
ausente...da escola...” (B3)
“Tem aquela família que apóia demais e que a criança você percebe a diferença porque...e
aí a gente percebe mesmo que tem o apoio familiar...Em tudo na criança: a organização,
sabe? A maneira de arrumar a mesa pra trabalhar, a maneira de organizar o material numa
mochila...é totalmente diferente.. Outros assim, a maioria eu acho ..é descaso mesmo
familiar...Num é descaso , é que a família num dá importância..”(A2).
137
A fronteira que se estabelece entre a escola e o que é externo (família, comunidade) é
formulada como um obstáculo ao trabalho da escola, trabalho do professor: os problemas ou
dificuldades que a criança apresenta na escola são reflexos do que ela vive em casa e na
comunidade de origem, contexto sobre o qual a escola pode muito pouco. Assim, o que
percebemos é que alguns problemas vêm de fora da escola, e por isso, colocam-se fora dos
limites da atuação desse professor:
“Eu acho que a gente tem que fazer uma investigação nestes caso, né?(de crianças muito
violentas na escola) Ver, tentar descobri porque.., como que essa criança está sendo tratada
em casa e porque que é que ela tá chegando na escola desse jeito e aí ver como que a gente
pode interferir...né?” (A2)
“...se você ficar aqui na hora do recreio você vai observar...elas são pequenininhas as da
primeira série...Eles se chutam tanto! Que eu acho que eles vêem isso em casa...É uma
transferência, eu acho que a atitude deles é nada mais nada menos do que uma
transferência do lar para a escola.” (B3)
“Eu acho assim esta escola até que tranqüila demais pela localização. Sei lá...eles vivem
num meio aqui que...que eles visualizam muita coisa errada...marginalidade, drogas,
violência...” (B3)
“Que por mais que a gente explique que a gente não deve bater, que a gente não deve
agredir, que a gente não deve...mas o externo, o fora...Em casa, da violência geral...de
tudo”. (A1)
“Ver, tentar descobri porque.., como que essa criança está sendo tratada em casa e porque
que é que ela tá chegando na escola desse jeito e aí ver como que a gente pode
interferir...né? Chamando família, trabalhando questões de hábito, né? Da convivência
familiar mesmo...” (A1)
Ainda sobre essa fronteira escola-família, temos passagens interessantes em A1 e B3,
reforçando a definição da separação bem como indicando explicações ao silenciamento:
138
“...que a mãe chegou um dia pra mim na pré-escola e me deu uma varinha...porque está
escrito na bíblia que tem que bater com uma varinha...Aí eu falei, dei a varinha pra ela e
falei: ‘Olha eu nunca li isso e também num to aqui pra bater...A minha educação é por
outro lado..’ né? ‘A educação dessa correção, deste tipo de...se você acha que tem que ser
feita então faça você, em casa’...” (A1)
“Porque eu tive uma mãe que outro dia entrou dentro da sala e surrou o menino lá dentro.
Num deu tempo nem d’eu...sabe? Ela falou (simulando gritos) ‘Ele não me obedece, ele não
me respeita, não obedece o pai, só vive na rua Foi lá, bateu, bateu...Eu falei ‘Não pode fazer
isso aqui’. E mesmo porque diante dos outros coleguinhas, ele vai ficar com vergonha e vai
piorar a situação em casa.” (B3)
A formulação “aqui dentro da escola eu não posso bater, se você acha necessário, faça
isso lá, em casa” reforça a existência de uma fronteira definida, que permite procedimentos
num lugar e não no outro: são dimensões separadas. A contradição se faz novamente presente:
como pode o professor tomar para si o papel de denunciar quando reconhece os sinais de que
a criança sofre violência em casa, se existe uma separação tão marcada entre escola-casa? Ou
ainda, se como pais os professores admitem que, embora racionalmente a violência não seja
pensada como boa estratégia, infelizmente ela acaba se configurando como um recurso
inevitável, como podem romper o silêncio?
“Mas muitas coisas fica assim...eu acho que a escola fica meio...é...você não tem...Por
exemplo, eu professora: eu tenho o meu limite, eu vou até um certo ponto, né?” (A2)
Observamos que se é possível ao professor perceber com clareza a separação entre a
escola e a família, os limites que marcam sua atuação dentro da escola muitas vezes não são
definidos dessa forma. Seu papel e responsabilidade se limitam aos alunos – seus alunos,
dentro da sala de aula? Ou ele pode – ou deve – interferir em situações que envolvem outras
crianças dentro da escola, ou mesmo fora dela?
“ Eu tinha uma aluna que ela contava que quando o pai chegava bêbado em casa ela ele
pendurava os irmãos dela de ponta cabeça pelo eh no no caibro, né?...da coisa e...batia
neles. Mas eu não tinha acesso a essas crianças, eu tinha acesso só à menina...” . (A1)
139
“Percebi outro dia no portão, uma mãe contando pra mim mas num era de aluno meu.
Porque eu tava de carona então fiquei esperando a mãe de uma menininha que ia me dar
carona...Aí ela chegou e me contou... ‘Ai, que eu não aguento mais, meu marido ta me
batendo, foi na frente do menino, pegou a faca tava querendo me matar...’ , né? Isso foi na
semana passada. Mas na sala de aula, não”. (A2)
Também nos deparamos aqui com o professor falando sobre seus procedimentos. No
caso de B4, reconhecer que dentro da sua sala os alunos, por mais problemáticos que sejam
fora da sala de aula, não apresentam problema é uma forma de reafirmar que age de forma
correta. No caso de B3, igualmente, a professora reafirma que intervém, mesmo não sendo
seus alunos:
“A diretora me colocou no ano passado três crianças problemáticas...eles deram problema
fora da sala, dentro da sala não. Este ano foi a mesma coisa...Quatro ou cinco
problemáticos...Dentro da sala uma beleza, fora problema...” B4
“Eu tenho uma atitude que eu fico me policiando...Eu num importo que a criança num seja
minha...Quando eu vejo eu procuro intervir pra separar...sabe? Porque eu não gosto...”
(B3)
Talvez seja mesmo muito difícil, frente às condições de produção, o sujeito constituir-
se numa posição discursiva única, sendo são tantas as dúvidas sobre até onde ir ou como. Os
questionamentos formulados por esse sujeito mostram o movimento ente essas diferentes
posições: posso intervir numa situação dentro de uma família, mesmo se as vítimas não são
diretamente meus alunos? Posso interferir numa situação com outras crianças, na escola,
mesmo elas sendo alunas de outro professor? Ainda, tenho o direito de interferir numa
situação que acontece fora da escola, destro do privado espaço da família?
Chama-nos a atenção a questão do portão, como demarcação concreta de fronteira
entre dentro e fora da escola: a família pertence a uma ordem distinta daquela da escola.
Existe uma interface, mas é necessário separar o que é de uma ordem (público – escola) e o
que é da outra (privado – família).
As formas de relacionamento escola-família também são definidas com clareza: cada
um faz sua parte e em alguns momentos conversam sobre isso. Existem reuniões regulares, os
pais são chamados à escola em algumas situações previstas. Interessante perceber que a
140
chamada política de relacionamento escola família, tem um alcance restrito, uma vez que em
geral, a família é chamada para vir à escola quando a criança apresenta algum problema:
“...Tem criança que eu vou passar o ano inteiro e não vou conhecer nem a mãe e nem o
pai...Ninguém que seja uma referência dessa criança em casa, né? Agora eu tenho mães
também que todo dia na hora da saída ta me perguntando como é que ta a criança, né? Tem
os que são freqüentes nas reuniões de pais, que vão pra frequentar as reuniões de pais...que
geralmente são bimestrais, né? A freqüência na primeira série é boa, principalmente na
primeira reunião...porque eles querem conhecer a cara da professora...Eles querem ver quem
é a professora, né? (rindo) Então...Mas aí depois vai diminuindo a freqüência...e eles
aparecem quando tem problema...Alguns a gente chama e não aparece, né? A gente chama
o pai, chama a mãe, manda um bilhetinho mas não aparece, né?” (A1)
“Tem, tem...Tem as reuniões de pais e quando a gente precisa...convoca o pai ou a família
ou a mãe..quem a gente achar que tem necessidade...Já teve um caso em que...na minha
classe...a gente teve que ir na casa da criança..aí a diretora teve que ir comigo...” (A2)
“Tem, tem...reuniões bimestrais. Mas a freqüência é muito baixa. Uma que eu acho que os
pais devem...as mães devem trabalhar. Eles já deixam a criança aqui justamente pra poder
ter um local onde eles se alimentam, pra eles se descompromissarem com esse fator
alimentação, certo? ... (quando tem alguma situação problema com a criança) Quando
chama, vem. A diretora é uma pessoa... assim...muito preocupada nesse...nesse ponto e
ela...chama. Se a criança apronta alguma coisa, ou se tem algum problema de saúde ou
qualquer problema que tiver aqui, ela chama imediatamente..” (B3)
“É... E...nessa última reunião...Faltaram poucas mães...nas duas primeiras...É uma reunião
geral com a diretora e depois reuniões individuais, nas salas...O...nessa última reunião
vieram 19 mães...Na primeira tinha 3, na segunda 4 ou 5...Nesta tinha 19...E as mães
percebem quando o aluno ta crescendo...né? (quando tem alguma situação problema)
Não...eu tento resolver aqui ...Eu tento o máximo possível não mandar aluno para a
direção...(Quando chama a família) é a diretora que chama... Quando chama... elas não
vêm também não...Quando assim...quando é pra falar de problema do filho elas não
vem...Quando é pra falar bem até que...(silêncio)” (B4)
141
“Olha, aqui nós temos um relacionamento bom com as famílias ...É...freqüentemente tem
eventos, final de semana...é da política da escola...Então os pais estão sempre em
contato...(quando tem algum problema com algum aluno) A gente entra em contato com a
direção, a direção chama o pai ou vice-versa...O pai tem alguma dúvida, algum problema,
ele procura a direção da escola, procura o professor...Marca um horário, né? Aqui nós
temos esse tratamento bem personalizado...” (C5)
“ É...a gente faz uma reunião por mês...por bimestre, né? Mas...todo mundo...As vezes essas
reuniões assim...são palestras...pros pais...aí no final da palestra a gente conversa com os
pais...agora nos casos que precisam ser chamados a gente chama pra conversar
individualmente, porque a gente as vezes prefere não falar na reunião...a gente chama
individual... são casos defasagem mesmo, de aprendizagem...que nem...nós chamamos três
pais agora da primeira série...essa semana...atendi dois, a semana que vem mais um...sobre
mesmo a situação de aprendizagem... manha...Então, mas que nem assim...tem pais que não
podem trazer..., a gente registra tudo...deixa registrado que a gente chamou, que a escola ta
dando essa...essa...alternativa e não pode...Ou comportamental...Não pára quieto, é
inquieto, e num tem a atenção na hora que tem que ser...A outra é falta de atenção,mas
assim...” (C6)
Dos professores das escolas públicas vem um discurso com uma marca mais forte no
sentido de que a escola chama a família quando a criança tem problema, e a política de
relacionamento escola-família se resume nisso. Também aparece a idéia de que a família não
participa: palavras como “se descompromissarem” ou expressões que referem a não adesão
da família quando é chamada: “Alguns a gente chama e não aparece, né? A gente chama o
pai, chama a mãe, manda um bilhetinho mas não aparece, né?”. De novo, é de B4 que vem a
reflexão: “Quando assim...quando é pra falar de problema do filho elas não vem...Quando é
pra falar bem até que...”.
Sobre o relacionamento escola-família a Pesquisa Nacional Qualidade da
Educação: a escola pública na opinião dos pais (MEC-INEP) mostra que embora seja
praticamente unânime a noção de que uma maior integração com a escola é necessária,
e de que esta integração requer uma presença mais freqüente dos pais, a discussão
apresentado por Pacheco e Araújo (2005) sobre o que dizem os pais mostra uma
realidade distante do quadro almejado. As indicações da pesquisa são de que a
142
presença dos pais e mães na escola parece declinar à medida que o aluno vai vencendo
as séries iniciais do ensino fundamental, e alcançando a pré-adolescência. Ainda que
se reconheça a importância de um relacionamento mais estreito entre família e escola,
necessário para superar as dificuldades dos alunos e das famílias, uma parcela razoável
dos entrevistados se protege com a incompatibilidade de horários e compromissos.
Além disso, emerge o que também encontramos em nossa análise: os pais incomodam-
se com o fato de que a escola os chame apenas quando o aluno apresenta problemas.
Um chamado imprevisto para o comparecimento à escola desperta forte apreensão
entre os pais e mães. De imediato, surge a maior probabilidade do chamado estar
relacionado a problemas disciplinares de alguma gravidade, ou de baixo rendimento,
ou, ainda, de alguma deficiência. E agora o que está em xeque é o papel da família: ser
chamado na escola do filho pode soar quase como a constatação de ter falhado como
educador no lar. A apreensão justifica-se e se ser chamado pela escola é sempre
sinônimo de “problema”.
Diferente do que ocorre na escola privada, ainda que se mantenha a idéia de chamar os
pais quando a criança tem problemas, os professores procuram demonstrar que existe uma
política de aproximação que está além da situação de reuniões regulares, o que se evidencia
principalmente na fala de C5. Temos novamente aqui a marca da diferença entre escolas
públicas e privadas, a preocupação que emerge na fala do professor no sentido de valorizar e
exaltar os procedimentos da sua escola.
Se por um lado, a separação escola-família aparece como um obstáculo ao trabalho do
professor em algumas formulações, por outro, quando por algum motivo essa separação se
atenua, e o contrário acontece, aparecem as dúvidas e indefinições sobre os limites de atuação
do professor:
“Tenho uma aluna que tem muita dificuldade para aprender...Pra se relacionar com os
colegas até que nem tanto..Mas o problema dela...É porque eles moram ali todo mundo por
ali, né? Eles moram por ali, muito perto, então eles estão na convivência...já se conhecem de
fora da escola..., né?” (A1)
“Porque eu tive uma mãe que outro dia entrou dentro da sala e surrou o menino lá dentro.
Num deu tempo nem d’eu...sabe? Ela falou (simulando gritos) ‘Ele não me obedece, ele não
me respeita, não obedece o pai, só vive na rua Foi lá, bateu, bateu...Eu falei ‘Não pode fazer
143
isso aqui.´ E mesmo porque diante dos outros coleguinhas ele vai ficar com vergonha e vai
piorar a situação em casa.” (B3)
“Eu acho assim esta escola até que tranqüila demais pela localização. Sei lá...eles vivem
num meio aqui que...que eles visualizam muita coisa errada...marginalidade, drogas,
violência...” (B3)
“Ô...(silêncio)...o...ambiente da rua deles...tem muita gente desempregada...ou ta tomando
pinga, ou ta usando droga...e...dando exemplos excelentes para as crianças...Elas num
tem...É..Fulano de Tal não sabe ler não sabe escrever...então ta toda hora sentado no bar
bebendo... Mas eles não sabem a diferença entre um cesto de lixo e o chão...Dentro da sala
você percebe isso...chupa bala jogo ali, chupa chiclete jogo no chão...E você tem pouco
tempo, né? Quando você é das séries finais...num tem como...Isso tem que ir desde o pré
conscientizando...porque eles num tem isso em casa...” (B4)
“É...o que ela vive em casa vai fazer parte da formação dela, né?Nós podemos ajudar aqui
mas...em casa é onde ela passa o maior tempo...da vida dela, então acho que tem uma
parcela fundamental aí. Mas a escola pode ajudar tem uma pequena parcela da
escola..pequena não...também muito grande, não mais do que em casa mas... a escola pode
ajudar bastante.” (C5)
“No ano passado já...eu tinha um aluno que era bastaaante violento...eu acho que aí entra
a família...entendeu? A família dele era muuuito complicada , muuuito desorientada
assim...” (C6)
Existe um incômodo quando as fronteiras se movem. As formas de relacionamento
entre professores e pais (escola-família) foram definidas a priori e marcam-se com clareza -
cada um tem seu papel, existem procedimentos previstos na agenda da escola para o
relacionamento escola-família e eles dizem respeito às questões educacionais, na escola
(desempenho e comportamento da criança dentro da escola). Estamos aqui de novo diante do
relacionamento entre o dentro e o fora da escola e da sempre difícil definição de papéis: até
onde a escola pode ir sem invadir o espaço privado do que ocorre dentro da família? Ou até
que ponto uma instituição pode interferir no papel da outra? Ao mesmo tempo em que a
144
escola não pode repassar seus deveres para a família, em termos de assumir a escolarização da
criança, a escola não se sente autorizada a interferir em assuntos como a Violência Doméstica.
Não estamos entendendo isso como uma posição de não-envolvimento da escola. Na verdade
o que temos é uma relação de interdependência entre as duas instituições: a confusão se
instala quando o novo discurso jurídico chama o professor para uma tomada de posição que é
de outra ordem.
A dinâmica da fronteira escola-família não significa indefinição de papéis, ao
contrário. É bom para as duas instituições poder dizer ‘isto é da família’, ‘isto é da escola’ e
ponto final.
Parece-nos que a necessária delimitação entre o dentro e o fora da escola, ajuda o
professor a assegurar-se de seus limites em relação aos contextos externos, que mesmo fora
dos contornos da escola, representam uma fronteira que se move: o aluno acaba trazendo para
dentro da escola em seu desempenho e comportamento, reflexos do que ele vive fora dela.
Contudo, circula um novo discurso insistente que prega a aproximação escola-família e leva a
um conflito que emerge naturalmente quando se propõe derrubar uma fronteira e misturar
ordens tão distintas quanto essas, do público e do privado.
Se de um lado, a família se queixa que alguns procedimentos da escola a afastam, de
outro lado, a escola também dirige críticas à família e sua não participação. E da mesma
forma faz o discurso da aproximação, mas: como seria possível uma aproximação se quando
isso se anuncia o que se percebe é apreensão? Talvez pudesse parecer menos ameaçador uma
definição mais nítida sobre o que cabe a cada uma das instituições, que cumpririam seu papel,
cada uma no seu lugar. Fala-se na aproximação, compreende-se a necessidade de que família
e escola dialoguem mais, mas como mostrou a análise, a fronteira escola-família marca
processos discursivos distintos, cujas posições-sujeito não se intercambiam, ou seja, não é
possível passar do papel de professor ao papel de pai, ou vice-versa. Contudo, não se trata de
uma fronteira imóvel, podendo haver rearranjos/reorganizações entre as duas formações
discursivas, o que faz com os dois espaços possam ora se aproximar, ora se distanciar.
Historicamente observamos que a fronteira já foi marcada com mais força. O jogo
aproxima-distancia, referenciado pelo discurso cada vez mais freqüente da aproximação, pode
apresentar possibilidades que contribuam para a desejada ampliação da interface escola-
família.
O movimento que se produz no jogo das posições-sujeito pode favorecer a
estabilização de novos sentidos: um embate que se trava entre o fora e o dentro, entre o
145
racional do discurso pronto insistindo em entrar e a emoção que impede certas práticas
enquanto promove outras.
146
For millions of years mankind lived just like animals Then something happened which unleashed the power of our imagination
We learned to talk
There's a silence surroundiing me I can't seem to think straight
I'll sit in the corner No one can bother me
I think I should speak now (why won't you talk to me) I can't seem to speak now (you never talk to me)
My words won't come out right (what are you thinking) I feel like I'm drowning (What are you feeling)
I'm feeling weak now (why won't you talk to me) But I can't show my weakness (you never talk to me
I sometimes wonder (what are you thinking) Where do we go from here (what are you feeling)
It doesn't have to be like this
All we need to do is make sure we keep talking
Why won't you talk to me (I feel like I'm drowning) You never talk to me (you know I can't breathe now)
What are you thinking (we're going nowhere) What are you feeling (we're going nowhere)
Why won't you talk to me You never talk to me
What are you thinking Where do we go from here
It doesn't have to be like this
All we need to do is make sure we keep talking
KEEP TALKING (DAVID GILMOUR, RICHARD WRIGHT & POLLY SAMSON, 1994)57
57 Extraído do álbum “ The division bell”, da banda inglesa Pink Floyd (1994)
147
VII. CONSIDERAÇÕES FINAIS
7.1 O sentido do silêncio: a tensão entre o público-jurídico e o privado-subjetivo
As regularidades e marcas presentes nos discursos dos professores começam a apontar
para a possibilidade de explicar seu silenciamento sobre a violência doméstica presente nas
histórias de seus alunos.
Ao longo da análise, fomos apresentando possibilidades de interpretação para
responder algumas perguntas: “como o discurso da não-violência é significado” e “porque
ele parece não fazer sentido”; em outras palavras: “qual o significado do silêncio dos
professores” ou “como os professores significam a violência sofrida por seus alunos em
casa”; “ por que a escola se mostra silenciosa quanto aos casos de violência doméstica
contra suas crianças e adolescentes?” e “ O que está por trás desse silenciamento dos
professores?”.
Como vimos, a contradição é uma marca muito forte presente nos dois eixos discursivos
que identificamos, dentro e fora da violência.
Para retomar essa marca, tomemos como exemplo a fala de B4, que difere dos outros
sujeitos ao referir-se a violência (entre os alunos, entre pais e filhos) como natural, normal.
Mesmo com um discurso aparentemente tão diverso daquele que repudia a violência58,
atribuindo-lhe valor negativo, o silêncio sobre a violência é uma regularidade comum para
todos os sujeitos: mesmo sabendo o que fazer nesses casos, em 30 anos como professor, B4
relata não ter havido situações que o chamassem a agir. Em nossa organização social a
violência está presente em suas mais diversas formas, o que nos faz perguntar: o que torna a
violência invisível tanto para quem a nega como estratégia quanto para quem a considera
natural? Os que fazem os discurso de negá-la como estratégia válida, também não a
reconhecem a ponto de agir como dizem que deveriam, caso percebessem.
Talvez pudéssemos pensar que B4 passou por um momento histórico em que a
violência era aceita como normal, sem quaisquer questões impostas por normas que
limitassem ou criminalizassem sua presença na relação entre pais e filhos, e ele repete isso
sem censura.
58 B4 , como vimos, é o único entre os sujeitos que refere-se à violência como natural, normal: “Então... é normal, eles brigam e se você não abrir a boca...eles param...daí dez minutos eles estão conversando ...é...aquela história de briga entre marido e mulher...mesma coisa...”; “ ah...violência entre pais e filhos é normal, né?”
148
Em contrapartida, os outros falam que repudiam, mas não podem evitá-la, usam ou já
usaram com os próprios filhos, e justificam-se: com filho, não dá, uma hora eles nos tiram do
sério. Ainda assim, o discurso traz a nova ordem do discurso legal: a violência é ruim, devem
ser encontradas outras formas, se eu perceber devo denunciar.
Já vimos que a contradição está presente nos discursos dos professores e ela marca as
formulações que se colocam nas diferentes posições: o que se diz como professor e o que se
diz como pai, o desconforto e a dificuldade de definir a violência e o sentido de gradação, a
necessidade do professor marcar seus procedimentos como corretos, a ambivalência em
admitir ou negar a violência dentro da sala da aula, na escola ou a discrepância entre saber
identificar os sinais e nunca ter reconhecido casos que os levassem a fazer a denúncia.
Colocamos a pergunta: como se justifica a presença de discursos diferentes, proferidos
por um mesmo sujeito, dependendo do lugar de onde fala?
Em primeiro lugar, vamos nos deter um pouco nos eixos discursivos fora e dentro da
violência. Pudemos perceber que esses discursos aparecem em diferentes lugares sociais:
numa posição o sujeito fala sobre a violência, num discurso organizado e racionalizado, como
um observador externo. Em um outro papel, no de pai, por exemplo, o sujeito se coloca dentro
da violência, e esse discurso da violência contradiz o primeiro de tal forma, que poderíamos
pensar que nem é a mesma pessoa que fala: é um discurso que se formula com sentimento, a
partir do que é da ordem do sensível e sua marca fundamental é a justificativa.
Isso nos remete a uma questão central na AD: a possibilidade de deslocamento e
transformação de sentidos está na história e não no sujeito e, portanto, o sujeito é
compreendido como posição, já que conforme propõe Orlandi (1999) – “o sujeito e os
sentidos são determinados histórica e ideologicamente” (pág 8).
Como vimos, os funcionamentos na língua mostram-se por regularidades. Temos
questões que reaparecem e existem pontos de ligação entre elas, e é o fato de nos propormos a
pensar isso na história que traz o espaço de abertura para a contradição (PÊCHEUX, 1997).
Estamos aqui diante de sujeitos que estão em confronto com o mundo, no movimento
da história e da língua, o que, de acordo com Lagazzi-Rodrigues (1998) aponta para a relação
entre o discurso e a determinação material do social. Remete-se a Pêcheux (1990)59 e sua
definição de real – “o impossível de ser de outro modo”, para falar desse confronto sujeito-
mundo, já que para Pêcheux não descobrimos o real, damos de encontro com ele:
59 Pêcheux, Michel O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 1990.
149
O embate do sujeito com o real configura a impossibilidade de seguir em frente. É um ponto de retorno que reclama derivas e deslocamentos na posição sujeito, é espaço de contradição. O social encontra-se, pois, materialmente determinado, assim como o mundo visto pelo homem aparece subordinado ao simbólico. Não há como falar do social fora do simbólico. Justamente por isso não descobrimos o real, nos confrontamos com ele (P. 50)
Essa noção de posição sujeito coloca-nos a possibilidade da produção de diferentes
discursos: na posição-professor nos deparamos com o discurso sobre a violência, organizado
e racionalizado, sobre procedimentos esperados, dizendo que a violência na educação é um
equívoco. Na posição-filho – considerando que a posição filho e a posição pai estão muito
próximas, imbricadas porque tratam-se de filhos que já são também pais – temos novamente
um discurso sobre a violência: a idealização de pais perfeitos que nunca usaram de violência,
ou que quando usaram, foi para o bem dos filhos. Na posição-pai, temos o outro discurso que
contradiz aquele que se formula como professor: o discurso da violência, carregado de
sentimento, desorganizado, que procura se justificar o tempo todo, mas admite: não tem como
evitar a violência, pois infelizmente filhos nos tiram do sério, pedem por limites, a
responsabilidade em educá-los é grande.
Orlandi (1999) nos lembra que todo o falante e todo o ouvinte ocupa um lugar na
sociedade e isso faz parte da significação. Da mesma forma, temos que pensar que os
interlocutores, a situação, o contexto histórico, social e ideológico – as condições de
produção do discurso - constituem o sentido, não são meros complementos (p. 18).
Nesse sentido, Lagazzi-Rodrigues (1998) , nos diz que as relações de produção são
determinantes de posições sujeito, retomando Marx fala em produção social da existência
(bens materiais e idéias) da qual os homens são autores no início, passando depois a ser
totalmente determinados por essa produção:
Na perspectiva discursiva é importante que a produção social não seja entendida como unilateral, sendo a organização social vista não como processadora de resultados, mas como uma confluência de fatores de diferentes ordens, da qual o homem é sujeito constitutivo, interpelado ideologicamente, nem autor, nem receptor (p. 52).
Como vimos, o repúdio à violência doméstica contra crianças e adolescentes, em
termos históricos, é recente. Apenas a partir da segunda metade do século XX começam a
emergir discussões partindo do eixo dos direitos humanos. O movimento, que começa na
150
Europa, atinge o Brasil nos anos 80, com a retomada da democracia política no retorno das
eleições diretas. Como já vimos, esse discurso vem, sobretudo, a partir do ECA (Lei Federal
8069/90).
Atualmente tramita no Senado Federal o Projeto de Lei (PL) 2.654/200360 que proíbe
qualquer forma de castigo físico em crianças e adolescentes, e prevê sanções aos agressores,
bem como em casos de omissão de educadores, profissionais da saúde, entre outros agentes. O
PL em questão tramita desde 2003 e detalha as questões sobre a intervenção nos casos, que no
ECA era abordado de forma mais geral. Por ocasião de sua aprovação pela Câmara dos
Deputados, em janeiro deste ano, virou notícia. A principal polêmica diz respeito à
interferência do Estado em assuntos de ordem privada, na família.
Tomemos a questão do discurso jurídico, especificamente em relação ao ECA,
referência para o discurso sobre violência proferido pelos sujeitos.
Existe um discurso jurídico que se sustenta no eixo dos direitos humanos e do
politicamente correto. É um discurso idealizado que não cria condições de interlocução, pois
trabalha com a idealização de criança, de família e de educação. Entrar no discurso jurídico é
fazer o discurso sobre a violência, falando de fora dela, como espectador.
Ao discutir a instância jurídica, Lagazzi-Rodrigues (1998) remete-se a Mialle (1980)61
para refletir que os sistemas jurídicos, assim como os regimes políticos, estão em relação mais
ou menos direta com os problemas de existência e desenvolvimento encontrados pela
sociedade no confronto com o mundo, propondo que o sistema jurídico é um dos elementos
da organização social: “a instância jurídica faz parte de um todo e só pode ser compreendida
em relação a esse todo, que por sua vez, sendo um dos modos de produção teoricamente
definidos, dá a essa instância um lugar, uma função e uma eficácia particulares” (p. 51).
A autora apresenta a idéia de que a instância jurídica é uma ordem de sentidos
constitutiva da memória do dizer e por isso, ao mesmo tempo, determinante das e
determinada pelas relações sociais.
Vimos especificamente em relação ao ECA, que a lei foi conseqüência de pressões dos
movimentos populares e veio para reorganizar atribuições diante de um novo cenário mundial
que passa a propor que se olhe e se cuide da infância como valor a ser preservado.
Contudo, temos que pensar, com a ajuda de Lagazzi-Rodrigues, novamente
remetendo-se a Mialle, que a norma jurídica encontra-se num domínio que a situa na ordem
do “dever ser”, junto com as noções de obrigação e imperativo. Isso a coloca como
60 disponível em http://www2.camara.gov.br/proposicoes 61 Mialle, M. Une introduction critique au doit. Paris: Maspero, 1980
151
instrumento de medida que, ao definir o que é normal e compatível com a norma , evidencia
seu caráter coercitivo:
[...] estudar a norma em meio às relações sociais é fundamental para que o jurídico seja trazido para junto da história e mostrado fora de uma perspectiva individualista e também de uma perspectiva tipológica. Assim como o político, o jurídico vem perpassado por categorias que se mostram enquanto instâncias isoladas que privilegiam a especificidade legal e apagam a complexidade constitutiva da ordem jurídica ( p. 54).
Se o discurso jurídico leva, pela coerção, ao discurso racionalizado sobre a violência
(reconhecimento de não bater e sim dialogar, que bater é errado, de que os casos devem ser
denunciados ao Conselho Tutelar, etc) existe uma relação de sentidos que é mais forte: a
autoridade paterna/materna para muitos pode ser justificada pelo amor entre pais e filhos, pela
responsabilidade dos pais pelo que os filhos virão a se tornar. No lugar social do professor,
falando sobre a violência, o sujeito critica e nega a violência como estratégia. No lugar de
pai/mãe, as falas são outras: quando eu perco a cabeça, infelizmente é o que resta. Não mais
como observador externo, mas como sujeito dentro da violência.
Temos aqui o ponto discutido por Lagazzi-Rodrigues a partir de Mialle: no mundo do
direito tudo parece uma questão de decisão, de vontade, de razão. O imaginário jurídico vem
marcado pelo “sujeito-de-direito” e pela regra imperativa. Isso coloca as normas como lógicas
e necessárias para organizar as relações que, nas palavras de Mialle, “já estão organizadas em
outro lugar”: na sociedade capitalista o sistema jurídico conquistou a hegemonia de dizer o
valor dos atos sociais, a medida das relações sociais através da abstração e da generalização, o
que faz com que todos sejam considerados como pessoas jurídicas, sujeitos de direito:
Temos, portanto, uma instância jurídica que se mostra pela des-historização das relações sociais, centrando-se no isolamento de diferentes posições sujeito e negando, nesse imaginário, a relação com o político. É necessário compreender que o sistema jurídico é um sistema de relações, tal como afirma Mialle, para compreender o efeito de sentido do discurso jurídico como obrigação, coerção, compreender o efeito do discurso criminológico. Este é decorrência do sentido coercitivo da norma e está calcado no sentido da repressão, tendo na individualização da culpabilidade, sustentada pela “generalização da forma abstrata e da pessoa jurídica”, sua característica fundante. Comete crime aquele que é culpado de transgredir, infringir, violar a lei, ou seja, para não cometer crime o sujeito é obrigado a cumprir a lei e cada um é responsável por esse cumprimento. O conceito de crime não permite relativizações e considerações de ordem social e vem ancorado
152
numa prática individualizante. E justamente nessa prática parece residir o paradoxo da instância jurídica (p. 58).
Ao criminalizar a violência dos pais contra os filhos e atribuir à escola o papel de
reconhecer e denunciar a violência doméstica que atinge seus alunos, o discurso jurídico
coloca em conflito duas ordens distintas: o privado e o público.
Já vimos que o avanço das novas relações de produção a partir da Revolução
Burguesa coloca a família cada vez mais no domínio do privado e a escola, desde então
compreendida pela norma jurídica como direito universal e dever do Estado, na esfera
pública.
Por mais que exista um discurso jurídico que defina claramente o procedimento no
caso da violência doméstica ser identificada pelo professor, na escola, a fronteira demarcada
entre o público e o privado, entre a escola e a família, determina a atuação do professor. Os
sentidos cristalizados e as representações que circulam há tempos ainda têm mais força do que
o discurso jurídico atual – que teve sua origem em movimentos sociais, que ignorando séculos
de história que autorizam e legitimam a violência nessas relações, mostra-se incapaz de
transformar as práticas, de pronto.
Retomando Lagazzi-Rodrigues (1998) os limites do direito oficial marcam-se
justamente pelo olhar individualizado que ele lança a questões construídas social e
historicamente e, portanto, coletivas: “ao trazer o jurídico para o espaço do social e afirmá-
lo na relação com o político, domínio de possibilidades entre posições sujeito, tornamos
visível a imobilidade da instância jurídica produzida pelo sentido coercitivo da norma” (p.
59).
Assim, podemos dizer que o silenciamento sobre a violência se produz na
impossibilidade de desfazer a fronteira escola (público) X família (privado). Chegamos a uma
tensão constitutiva de duas posições que estão em conflito, por pertencerem a ordens
discursivas distintas: a escola, ao contrário da família, não permite o funcionamento privado,
na escola não há espaço para o privado.
O professor é cobrado para uma tomada de posição que não está na ordem de
sentidos que define seu papel. Os limites da atuação do professor esbarram na fronteira
público-privado. Como pudemos observar, discursivamente não tem confusão: o professor
fala dos limites de sua atuação, sabe até onde ir. Contudo temos um professor que no
discurso sobre a violência está afetado pelo discurso da violênica: nessa posição, a sombra da
153
família na escola é uma constante. É no jogo das posições que a dúvida se coloca: denuncio
ou não, falo ou não falo?
Isso nos leva a refletir que, embora ao longo da história da infância e da educação a
violência tenha sido utilizada como estratégia pensada para educar, num contexto de punição
ou disciplinamento, ela também pode ser entendida como algo que é da ordem do subjetivo:
sair do sério ou perder a cabeça não é pensado, mas um descontrole que pode muitas vezes
estar mais relacionado a questões pessoais da mãe/pai do que à intenção de educar. E o que é
da ordem do subjetivo e reflete a forma particular do sujeito lidar com o filho não depende do
discurso jurídico ou de normas públicas segundo as quais a palmada é condenável. Nessa
relação intensa que se estabelece entre pais e filhos o sentido de “perder a cabeça” soa como
uma justificativa para a violência. E se é levada a termo para dar limite e educar está mais do
que legitimada socialmente. Ou seja: traz a ordem do subjetivo em contraponto ao jurídico.
Estamos dizendo que o discurso da não se pauta no jurídico, no que vem de fora como norma
legal ou como produto de anseios de grupos, mas no sensível, no subjetivo, naquilo que vem
de dentro e não se controla.
No discurso do pai que “perde a paciência” a violência se justifica. Se
racionalmente ela é negada como estratégia, no calor de relações interpessoais tão particulares
entre pais e filhos, o sentido de “sair do sério” a justifica: não é boa estratégia, mas...quem
pode evitar?
Olhando para os resultados, cabe a pergunta: onde estaria a possibilidade de
transformação? Como é que o novo se coloca? Como sentidos naturalizados por práticas que
se repetem há séculos ganham novos contornos?
Se é no jogo das posições que a fronteira escola (público,jurídico) – família (privado,
subjetivo) se materializa produzindo os dilemas que levam ao silenciamento, talvez possamos
pensar que é esse mesmo jogo, resultante do confronto sujeito (dentro)-mundo (fora) que leva
ao movimento que permite que novos sentidos se coloquem.
A diferença entre o que se diz numa posição e noutra talvez resulte, ao longo do
tempo, em transformação: há 30 anos atrás, quando o que se discutia era o risco de que a
excessiva permissividade dos pais criasse uma geração inteira de mal educados, nem se falava
sobre os pais baterem nos filhos. Hoje, a norma jurídica propõe a intervenção em situações de
violência que ocorrem no lar, permitindo que isso seja considerado como alternativa que
passa a fazer parte do discurso. Seria correto pensar que com o tempo isso possa promover a
estabilização desse novo sentido da não-violência?
154
Certamente temos que olhar para a complexidade que envolve a produção do sentido,
em determinadas condições, no confronto história-língua e que coloca o sujeito como
elemento de transformação. Temos que voltar nosso olhar para a complexidade da inter
relação que se produz no confronto sujeito-mundo.
Voltando ao jogo dentro-fora, podemos pensar que talvez seja muito difícil imaginar
que a mesma violência pensada-praticada durante séculos como natural, hoje esteja sendo
questionada, repudiada, criminalizada por este novo discurso, que vem de fora. Dentro estão
as idéias cristalizadas, sentidos naturalizados por séculos de repetição.
Aqui cabe uma discussão sobre as leis e realidade, ou o papel desse discurso jurídico
que – mesmo tendo sua origem no social – não cria possibilidades de intercâmbio com o
social, discussão que pode se aplicar ao próprio ECA, e a inúmeros projetos propostos para a
sua regulamentação e complementação.
Se retomarmos a idéia colocada por Lagazzi-Rodrigues (1998) de que o sistema
jurídico determina e é, ao mesmo tempo, determinado pelas relações sociais, talvez possamos
examinar com mais tranqüilidade a compreensão desse novo sentido segundo o qual a
violência deve ser substituída por outras estratégias – sentido que começa a se produzir no
jogo da instância jurídica e das relações sociais.
Já vimos, ao examinar a realidade brasileira, no Capítulo II, que convivemos aqui com
a questão histórica das leis que pegam e das leis que não pegam. Sabemos que o fato de
existir a lei não significa que a essência das relações sociais será alterada, prontamente, após
sua promulgação. Existem muitos exemplos que poderiam ser dados, mas vamos continuar na
perspectiva do ECA. Temos a questão do trabalho infantil, que não foi erradicado após a
promulgação do Estatuto em 1990. Pela lei estão autorizados a trabalhar apenas os
adolescentes com mais de 16 anos que estiverem freqüentando a escola. Sabemos que 16 anos
após a promulgação da lei o trabalho infantil, que acontece apesar da lei, continua sendo uma
prática vigente. É verdade que a lei cria inúmeras contradições, uma vez que ela não altera a
realidade das famílias que necessitam da contribuição dos filhos no orçamento pra
sobreviverem, tampouco cria condições para que todos tenham acesso a uma escola de
qualidade, etc. Contudo, o que está posto na lei tem permitido, nesses anos que se seguiram a
sua promulgação, que a sociedade discuta a questão.
O que dizer do polêmico projeto de lei que criminaliza a palmada? Rosenfield (2006)
coloca a questão nesses termos: cabe ao Estado disciplinar as relações entre pais e filhos? Nos
diz o autor que a relação pai/filhos se fez historicamente ao abrigo do Estado a partir de regras
que foram evoluindo conforme as mudanças de mentalidade e de concepção de mundo. Um
155
traço distintivo desse processo consiste em que essas regras foram se fazendo segundo as
transformações relativas a idéias que foram ocorrendo sem que coubesse ao Estado decidir
pelo tipo de relação a ser implementada. Queremos discutir aqui a complexidade dessa inter
relação jurídico e social e perguntamos: muitas vezes a norma jurídica não reflete a
transformação que ocorre ao nível do social ? E será que a norma jurídica, ao se adiantar, não
cria condições para que a transformação ocorra? Reconhecemos e aceitamos, conforme
discute Lagazzi-Rodrigues (1998) que a abstração e a generalização inerentes à norma
jurídica marcam-na como prática individualizante e reconhecemos nisso sua maior
contradição. A lei, no entanto – falemos agora do ECA – coloca uma série de novas
possibilidades e permite que elas passem a circular. Como vimos, novos sentidos passam a ser
colocados no jogo das posições-sujeito: novas formulações são postas em circulação e isso
obriga a sociedade a lidar com o novo.
Essa perspectiva nos permite pensar que o novo se coloca também pelo contraditório,
e que, neste caso, ele pode resultar desse embate do jurídico com o social. Se o jurídico surge
do social, para conter as tensões e organizá-lo, é necessário pensar que as demandas sociais
nem sempre são consenso. Contudo, a norma jurídica só se formula quando há condições para
isso. Quando, mesmo não havendo consenso, ela passa a fazer sentido para alguns, ainda que
este discurso da não violência ainda não faça sentido aos sujeitos na posição de pais.
Pensemos que diante da idéia de que a violência na relação entre pais e filhos é ruim,
por algum tempo pessoas se colocavam contra. Entre os argumentos – a educação demanda
autoridade, quem ama educa e os filhos pedem limites, precisam aprender a respeitar limites
para tornarem-se cidadãos, etc – está aquele que apontava, para o absurdo da ingerência do
Estado na vida privada. Temos que concordar que esse é um problema inegável e uma
contradição muito forte desse Estado neoliberal, que se retira de setores fundamentais, com a
privatização crescente dos equipamentos que deveriam garantir a igualdade de acesso às
políticas sociais, ao passo em que se insere em assuntos da ordem do privado.
Ainda podemos encontrar alguns que publicamente defendem a violência como ideal
de educação, mas a pressão do novo discurso jurídico aumenta com a militância dos
movimentos sociais, que lutam pelo fim da violência na educação e pelos direitos e proteção à
crianças e adolescentes.
Vimos que o sentido coercitivo da norma jurídica reflete-se no discurso dos
professores, que nessa posição-sujeito repetem em suas falas que a violência não é boa
estratégia, que se percebida por eles deve ser denunciada, etc. E reaparecem efeitos desse
sentido, quando na posição pai/mãe os sujeitos, mesmo admitindo que a violência é inevitável
156
na relação com seus filhos e fazendo uma fala cuja marca é a necessidade de justificar essa
violência, alguns começam a considerar a busca por outras possibilidades ou alternativas
nessa relação, como aprece em C5: “...eu acho que na maioria das situações poderia ser
contornado isso (violência física) ...Conversado...ser... exigido de outra maneira...”,
“...espero descobrir outra maneira, pra num ter que ficar batendo mas por enquanto eu acho
que em alguns casos é necessário” , ou em C6: “Mas assim...eu acho que num...sei eu num
sei...eu acho que pela conversa você...você consegue criar a criança.”
Se é verdade que cada vez menos encontramos quem se lance a defender a palmada ou
louvar que uma criança , por vezes, pede para apanhar, a violência continua presente nas
relações entre pais e filhos. Estamos entendendo que muitas vezes é isso que torna a violência
invisível aos professores. E como as práticas de criação dos filhos acontecem dentro da
família, o argumento de que, enfim, cada um sabe das coisas que acontecem dentro de sua
casa tem muita força. Contrariar isso é ir contra a constatação histórica de que a família, como
base da organização social, se sustenta no privado. Será que alguém de fora tem o direito de
interferir? Ou, apesar de existir a lei, um discurso jurídico que a condena como eu posso
pensar em denunciar uma mãe se eu também faço isso com meu filho? Eu entendo que é
difícil educar, que filho tira a gente do sério mesmo....
A formulação jurídica – que é determinada pelas e determina as relações sociais –
repetida muitas vezes, poderá de alguma forma resultar em transformação? Água mole em
pedra dura, tanto bate até que fura? Fura, quando houver condições de produção para que essa
formulação faça sentido na amplitude do social. Reconhecemos aqui possibilidades de
transformação pela linguagem: a mudança acontece quando as novas formulações encontram
condições que permitem que elas façam sentido.A luta que se trava entre o mesmo e o novo se
materializa na linguagem. A repetição, o mesmo repetido parafraticamente de muitas
maneiras permite que o novo surja, num processo que passa pelo jogo dos sentidos.
A repetição pode levar essas novas possibilidades a uma estabilização?
O texto legal – que, se por um lado tem o caráter coercitivo da instância jurídica, por
outro tem a representatividade dos movimentos sociais – começa a colocar novos sentidos: se
antes sequer era cogitada a possibilidade de qualquer intervenção sobre as práticas de criação
dos filhos, hoje sabemos que um pai pode perder o pátrio poder se for julgado abusivo. Se o
discurso jurídico, sozinho, parece incapaz de transformar a realidade, no embate com o social
ele torna visível a polêmica, faz emergir a discussão.
Discursos contraditórios refletem posições-sujeito que estão em conflito: o novo e o
velho se confrontam. Não há discurso sem sujeito, e esse sujeito à linguagem é ele mesmo
157
elemento de transformação. O trabalho da linguagem provocando pequenos abalos nas
relações sociais.
Voltemos, então à questão do trabalho da linguagem para pensar como o novo se
coloca. Talvez sejam fragmentos quase invisíveis que venham operando a transformação, que
é lenta e vem desse movimento ideologia – sujeito: uma linguagem que determina e, ao
mesmo tempo, sofre determinações do histórico e do social.
Orlandi (1999) nos coloca que a capacidade de linguagem está na constituição da
própria condição da espécie, pois o homem não é isolável nem de seus produtos (cultura),
nem da natureza.Retomando, a linguagem pode ser pensada como transformadora: ação sobre
a natureza, relação necessária entre o homem e a realidade natural e social. O fato de ser a
linguagem um trabalho simbólico, não tira dela essa possibilidade de compreensão: a
linguagem como trabalho, como produção (p. 17).
A autora reflete que ao tomarmos a linguagem como trabalho, estamos deslocando a
importância dada a sua função referencial: tomar a palavra é um ato social com todas as suas
implicações - conflitos, reconhecimentos, relações de poder, constituição de identidades (p.
17).
Se é a partir da linguagem que se estabelece a relação entre o homem e a realidade,
emerge a noção de mediação. Contudo, a autora nos diz que pensá-la como mediação não
deve nos levar a entendê-la como instrumento. A mediação deve ser entendida como relação
constitutiva, como ação que transforma: nem a linguagem como dado, nem a sociedade como
produto, elas se constituem mutuamente. O estudo da linguagem não pode estar apartado da
sociedade que a produz; processos que entram em jogo na constituição da linguagem são
processos históricos e sociais (p. 18).
Fazer o discurso de fora da violência, falar sobre a violência é repetir o que está vindo
de fora: o novo discurso, que questiona e criminaliza a violência na educação é cheio de
contradições e ainda é recente em termos históricos para alterar as práticas. Se ele não cria,
pela idealização, condições de intercâmbio com a realidade, ele projeta novas possibilidades
pela repetição: a violência é ruim, afeta o desenvolvimento da criança, ensina a criança a ser
violenta, o diálogo pode ser uma melhor estratégia. Os efeitos dessa repetição começam a
aparecer em alguns lugares-sujeito, que pedem o politicamente correto, o professor, na escola,
por exemplo. Racionalmente, de fora da violência, começa a se organizar e a se espalhar o
discurso, segundo o qual a violência não deve ser uma possibilidade a ser considerada.
Interessante lembrar uma fala evocada por A2 ao falar da educação violenta que o marido
recebeu:
158
“Ele (o marido) apanhava da mãe dele, mas assim a mãe dele é ótima, mas era a criação
que... Hoje em dia ela fala assim...’se eu fosse ser mãe hoje jamais eu bateria no meu filho .
Porque hoje a gente lê, a gente ouve, a gente fica sabendo tanta coisa ...no meu tempo a
gente achava que o certo era bater’....”
Bem, se houve um tempo em que se achava que bater nos filhos era certo, estamos
hoje vivendo um tempo em que isso se questiona, inclusive juridicamente.
Retomando os eixos discursivos fora e dentro da violência, vamos nos voltar para a
questão do embate entre o racional e o sensível, entre o velho e os novos sentidos possíveis a
partir do trabalho da linguagem.
De dentro, vêm as justificativas para a violência presente nas relações entre pais e
filhos. Como já vimos, talvez a marca mais forte desse discurso da violência seja a emoção, a
idéia de “perder o controle”, “perder a paciência”, “sair do sério”. Se de fora vem o
discurso racionalizado, que normatiza, de dentro vem a hybris: apaixonadamente envolvido
nessa relação com os filhos não posso evitar a violência. Sei das conseqüências, sei que a
violência é ruim, mas infelizmente...Parecem vir de dentro os dilemas que se formam a partir
de idéias cristalizadas que contribuem para tornar a violência invisível, o que leva ao
silenciamento dos professores.
Esses sentidos naturalizados por práticas que se repetem através dos séculos,
traduzem-se nas marcas que justificam a violência a partir do seu objetivo, das intenções dos
pais (para educar e dar limite, para o bem da criança), de sua gradação (só um tapa, num foi
dado com violência), dos limites do que ocorre dentro da família, etc.
Assim, podemos pensar nas “formações imaginárias” colocadas por Orlandi (1999): os
mecanismos de qualquer formação social têm regras de projeção, que estabelecem a relação
entre as situações concretas e suas representações no interior do discurso.
Ao aceitar a linguagem como trabalho, estamos pensando na inter relação
sujeito(dentro) – contexto (fora) e fazendo um percurso que passa, ao mesmo tempo, pelo
subjetivo – o sensível, e pelo social , a história e a ideologia.
159
7.2 A construção histórica da transformação
Entre o homem e a instituição, numa relação em que o poder e a ideologia são as constantes, os sentidos balançam entre uma permanência que as vezes parece irremediável e uma fugacidade que se avizinha do impossível62.
Para fecharmos nossa compreensão sobre o sentido do silêncio dos professores para a
violência sofrida por seus alunos em casa, temos que evocar aqui a idéia do embate entre o
velho e o novo, entre o dentro (sujeito) e o fora (contexto), entendendo que esse dentro e fora
não são dimensões estanques, mas se inter relacionam, de forma complexa. A idéia do embate
entre o novo e o velho também pode nos remeter ao desconforto, citado por Snyders, que
acontece no face a face entre um adulto e uma criança: ser filho hoje, pai amanhã, posições
que se sucedem ao longo do curso de vida, nem por isso cambiáveis.
Importante pensar que todo gosto novo desperta o preconceito, causa estranheza. É
preciso tempo para que novas idéias, em qualquer campo, passem a fazer sentido. O melhor
crítico é o tempo, elemento indispensável às transformações, necessário para colocar em
xeque o tradicional.
O embate entre o novo e o velho – sempre tão difícil de abandonar, cristalizado pela
repetição, pela coação, pela naturalização de sentidos exercida pelo poder – trava-se na
história e a produção de condições que favoreçam a estabilização de novos sentidos demanda
tempo.
Sobre o embate entre o velho e o novo, ao discutir a moralidade frente às relações
sociais, La Taille (1992) nos diz sobre a coação63, que ela não deve ser entendida como tirania
conscientemente exercida por alguém ou por um grupo:
62 Orlandi, Eni Pulcinelli. Linguagem e método: uma questão da análise do discurso. Conferência proferida no Encontro Sobre Linguagem-Interdisciplinaridade In: E. P. Orlandi Discurso e Leitura. 4a. Edição. São Paulo: Cortez; Campinas: Ed. da UNICAMP, 1999. 63 Como vimos, ao discutir o desenvolvimento moral, Piaget identifica duas grandes categorias de relações interindividuais: (1) COAÇÃO: relação assimétrica; um dos pólos impõe ao outro seu modo de pensar, critérios e verdades, não existe reciprocidade (a coação impede); relação constituída (regras dadas de antemão, não construídas pelos participantes); respeito unilateral. A heteronomia deriva-se da coação. (2) COOPERAÇÃO: relação simétrica, regida pela reciprocidade. As relações de co-operação (como às vezes escreveu Piaget) são constituintes, pois pedem mútuo acordo dos participantes uma vez que as regras não são dadas de antemão. Da cooperação derivam o respeito mútuo e a autonomia.
160
[...] mas pode ser decorrência de algum tipo de organização institucional que talvez tenha tido sua origem na necessidade de algum grupo de controlar o poder social, mas que no decorrer dos anos ou dos séculos, manteve-se pela tradição. Aliás, toda tradição pode configurar uma relação de coação, pois as razões que levam a respeitá-la costumam limitar-se á afirmação de que tem que ser assim, pois sempre foi assim (p. 59, grifos do autor).
Muito oportunamente, o exemplo dado pelo autor é o da relação pais-filhos,
classificando essa relação social na família como coação: “por mais que os pais procurem
não ser ‘autoritários’ , as dependências vital, afetiva e cognitiva de seus filhos pequenos
definem uma relação assimétrica”.
Como qualquer relação de poder, a coação pode ser pensada como violência e, como
tal, é uma relação contraditória ao desenvolvimento global da criança. Em termos intelectuais
reforça o egocentrismo da criança, e a dificuldade de se colocar no ponto de vista do outro; do
ponto de vista emocional, condena-a a condição de objeto, negando-lhe a possibilidade de ser
sujeito.
Diz-nos La Taille (1992) que “somente com a cooperação o desenvolvimento
intelectual/moral pode ocorrer, pois ele exige que os sujeitos se descentrem para poder
compreender o ponto de vista alheio”.
Reafirmamos, que tradicionalmente, as relações adulto-criança são compreendidas
como assimétricas. Novas idéias colocadas sobre isso podem soar estranhamente.
Diante de noções antigas, sedimentadas pela tradição e pela repetição, pensar a
educação fora do exercício da autoridade e do poder que historicamente se inscrevem nas
relações adulto-criança pode ser mesmo muito difícil.
Quanto tempo seria preciso para o velho dar lugar ao novo?
Abrir mão da tradição demanda muito trabalho, trabalho que como vimos pode ser
realizado pela linguagem.
As formulações discursivas identificadas dão visibilidade ao fato de que discurso
jurídico não faz sentido diante de séculos de construção de uma ideologia que reforça a
autoridade da família, as práticas de educação levadas a termo em nome do amor
incondicional dos pais pelos filhos.
O sentido da não-violência não se estabiliza por que circula uma indulgência com a
violência: discursividade que se sustenta pelo que vem da ordem do sensível (relação de laço
afetivo forte, quase mítica, que desculpa, nega, atenua, justifica e permite o estabelecimento
de uma gradação para delimitar qual violência é aceitável) que se sustenta pela relação de
161
família: a família é a célula mãe da sociedade, e tem o dever moral, social de educar bem seus
filhos; o afeto se faz também nesse lugar da violência, pois quem ama, educa.
De fora, da ordem do público, coloca-se o discurso jurídico, que vem em resposta ao
social, na relação de determinado e determinante. Não é possível ignorar ou desfazer essa
fronteira que se estabelece entre o jurídico e o social, entre o público e o privado, entre a
escola e a família, pois são condições de produção distintas. Compreendemos, então, que não
faz sentido cobrar a escola pelo silêncio.
Ao se esperar da escola que ela denuncie, coloca-se a ela um papel impossível de ser
cumprido: como resolver em público, na escola, o que ocorre em casa? Parece-nos que este é
o equívoco que está no centro do sentido do silêncio: a escola não pode ser chamada a
resolver um problema que não está em sua ordem de sentido. O discurso jurídico desconsidera
o social: ordens discursivas distintas e posições-sujeito que estão em conflito.
Retomamos aqui a idéia de que a luta que se trava na linguagem não tem caráter de
revolução: a transformação é lenta, a partir do jogo das posições-sujeito que permite que
novos sentidos sejam postos na história. Se é no jogo das posições que se coloca a dúvida que
leva ao silenciamento, é esse mesmo jogo que nos mostra que a possibilidade de
deslocamento está no sujeito: é no jogo das posições que os sentidos se produzem e se
disponibilizam na história. O sujeito é um elemento de transformação: somos o que somos
porque somos sujeitos na história, com percursos particulares.
Por trás da análise e da interpretação que foi possível chegar olhando para o material
desse lugar, está presente a noção que somos simultaneamente “dentro” e “fora” e que o
confronto produz movimento. E como, tomando as palavras de Orlandi (1999), o sujeito não
se apropria da linguagem num movimento individual, essa apropriação social, na qual se
reflete a interpelação do sujeito pela ideologia, pode resultar na alocação de novos sentidos.
Se esses novos sentidos que pretendem alterar práticas seculares que colocam e
justificam a violência na relação entre adultos e crianças – pais e filhos, se estabilizam o que
vai ocorrer é uma mudança no funcionamento familiar. Para que isso aconteça não será
necessário ignorar a existência das fronteiras: não será necessário cobrar a escola pelo seu
silenciamento, porque não mais haverá sobre o que notificar:
O silêncio não é o vazio, o sem-sentido; ao contrário, ele é o indício de uma totalidade significativa. Isso nos leva à compreensão do vazio da linguagem como um horizonte e não como falta [...] mais se diz, mais o silêncio se instala, mais os sentidos se tornam possíveis e mais se tem ainda a dizer (ORLANDI, 2002, P. 70-71).
162
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174
Anexo I
Visão Geral dos Trabalhos Recuperados com Revisão de Literatura
175
Tabela 2: Relação de Periódicos e Freqüência de Artigos PERIÓDICO FREQUÊNCIA
Child Abuse and Neglect 09 Journal of Interpersonal Violence 09 Child Abuse Review 07 Future of Children 07 Journal of the American Professional Society on the Abuse of Children 07 Journal of Aggression, Maltreatment and Trauma 05 Ciências da Saúde Coletiva 04 Violence Against Women 03 Child and Family Social Work 02 Children and Youth Services Review 02 JAMA: Journal of the American Medical Association 02 Jornal de Pediatria 02 Revista de Saúde Pública 02 Acta Psiquiátrica y Psicológica de America Latina. 01 Aggression and Violent Behavior 01 Alcoholism: Clinical and Experimental Research 01 American Journal of Family Therapy 01 American Journal of Preventive Medicine 01 American Psychologist 01 Anais da Academia Nacional de Medicina 01 Australian and New Zealand Journal of Family Therapy 01 Behavioral Sciences and the Law 01 Cadernos de Saúde Coletiva 01 Child and Adolescent Social Work Journal 01 Clinical Child and Family Psychology Review 01 Dissertation Abstracts International The Sciences and Engineering 01 Family and Conciliation Courts Review 01 Family Journal Counseling and Therapy for Couples and Families 01 High School Journal 01 Infant Toddler Intervention. 01 International Journal of Social Psychiatry 01 Jornal Brasileiro de Odontopediatria 01 Journal of Human Behavior in the Social Environment 01 Journal of Marriage and the Family 01 Journal of Substance Abuse Treatment 01 Journal of Clinical Child and Adolescent Psychology 01 Journal of Nervous and Mental Disease 01 Lancet 01 Peace and Conflict: Journal of Peace Psychology 01 Psychological Assessment 01 Psychological Reports 01 Psychophysiology 01 Psychotherapy and Psychosomatics 01 Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento 01 Revista Brasileira de Odontologia 01 Revista Brasileira de Saúde Mental 01 Revista Latino Americana de Enfermagem 01 Revista de Psiquiatria Clínica 01 Southern African Journal of Child and Adolescent Mental Health 01 Violence and Victims 01 Women and Health 01
Total Artigos Identificados 11064
64 37 artigos do total de artigos identificados não foram discutidos/apresentados aqui. Os publicados no Brasil ainda não foram recuperados. Os demais foram descartados por tratarem especificamente de violência sexual, da fisiologia da violência, de violência contra mulher sem abordagem dos aspectos relacionados à vdcca.
176
Tabela 3: Classificação dos Estudos de Acordo com Temas Abordados e Ano de Publicação
TEMA ANO FREQÜÊNCIA
Intervenção, Programas, Serviços e Pesquisa (26 artigos)
2002 2001 2000 1999 1998
03 02 08 10 03
Impacto Sobre o Desenvolvimento e a Saúde (25 artigos)
2002 2001 2000 1999 1998
05 02 06 03 09
Associação entre Violência Conjugal e Violência contra Criança (14 artigos)
2002 2001 2000 1999 1998
01 03 03 06 01
Caráter Cíclico da Violência Doméstica (08)
2001 2000 1999
01 03 04
Total Artigos Discutidos
------
73
177
Tabela 4: Temas discutidos a partir do eixo “Intervenção: programas, serviços e pesquisa”
Sub-Tema Freqüência
Integração dos serviços 09
Estruturação dos serviços 06
Formação e treinamento profissional 04
Questões éticas e formação profissional 05
Preocupação com Pesquisa X Eficácia dos Serviços 03
Questões culturais 02
Tabela 5 : Temas discutidos a partir do eixo “Impacto sobre desenvolvimento e Saúde”
Tema Freqüência
Violência Interpessoal Doméstica X Alterações na Saúde Mental*:
Desordens de conduta (violência, agressão, conflito com a lei) .....08
Sintomas de stress pós traumático ...................................................05
Abuso de substâncias psicoativas ...................................................06
Desordem de personalidade ............................................................02
Problemas acadêmicos ....................................................................03
Problemas emocionais ....................................................................02
Tentativa de suicídio ......................................................................02
Comportamento anti-social ............................................................01
23
Violência Interpessoal Doméstica X Desordens Médicas em Geral 02
* alterações na saúde mental ou sintomas, conforme freqüência em que são discutidos nos
trabalhos.
178
Tabela 6: Temas discutidos a partir do eixo “Associação entre Violência Conjugal e Abuso Infantil”
Tema Freqüência
Violência conjugal aumenta probabilidade de ocorrer violência contra crianças
05
Violência conjugal/violência contra crianças X Alterações no desenvolvimento/saúde
04
Caráter cíclico da violência 02 Comportamento violento X Abuso de Substâncias 03
Tabela 7: Temas discutidos a partir do eixo “Caráter Cíclico da Violência Interpessoal
Doméstica”
Tema Frequência
Presença de abuso infantil na história dos agressores 05
Abuso de substâncias Psicoativas X Práticas Disciplinares Severas 03
Família como espaço privilegiado para vivenciar violência 01
Problemas conjugais X Violência contra criança 01