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XII EHA – ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE –UNICAMP 2017 189 SOB O SIGNO DO SILÊNCIO NO AMOR À FLOR DA PELE Dalmo de Oliveira Souza e Silva 1 Introdução Antigamente, se alguém tivesse um segredo que não quisesse partilhar, subiam uma montanha, procuravam uma árvore, abriam um buraco nela e sussurravam o segredo para dentro do buraco. Por fim, cobriam-no de lama e lá deixavam o segredo para sempre. (Diálogo do Sr. Chow Mo-wan a seu amigo Ping) Amor à Flor da Pele (2000) ganhou em Cannes o prêmio de melhor ator (Tony Leung Chiu Wai) e o Technical Grand Prize (pela edição e fotografia). É o sétimo longa-metragem de Wong Kar-wai, apontado no Festival Internacional de Cinema de Cannes por Felizes Juntos (1997), foi o primeiro diretor de nacionalidade chinesa a presidir o júri do mesmo festival (2006). No ano seguinte, lançou seu primeiro filme em língua inglesa, Um Beijo Roubado. O cineasta integra ainda o movimento chamado de Segunda Nova Onda do Cinema de Hong Kong. Essa geração de cineastas tem como traço comum a ênfase na identidade bastante atípica da região que oscila entre os valores asiáticos e britânicos o lugar já esteve sob a influência da Grã-Bretanha e, atualmente, é administrado pela China. Amor à Flor da Pele tem como pano de fundo as incertezas da cidade dividida entre a tradição chinesa e a modernidade ocidental. Originalmente, o título Fa Yeung Nin Wa (em mandarim, algo como Anos com Flores), recebeu adaptações: internacionalmente, In the Mood for Love, inspirado na canção de Brian Ferry. Em Portugal, o filme recebeu o nome de Disponível para Amar e no Brasil, Amor à Flor da Pele. Para Kar-wai, o título ocidental dizia, sobretudo, do ―mood for love‖ e não sobre o amor (MÜLLER, 2013); tratava das sensações que surgem no instante de aproximação; sobre as brechas entre os acontecimentos. Por essa razão, os demais títulos carregam ambiguidades frente à atmosfera existente no filme. Os personagens centrais não estão disponíveis para amar; nada está ―à flor da pele‖. Talvez, Secrets título sugerido pelo diretor e não aprovado pelos organizadores de Cannes fosse o mais apropriado. Os diálogos entre os personagens principais, Sra. Chan, uma secretaria (Maggie Cheung) e o Sr. Chow Mo-wan, um jornalista (Tony Leung), até acontecem, mas eles não dizem; eles guardam segredos. ―O que não é dito‖, o silêncio adquire tons diversos. Filosoficamente, o silêncio integra os movimentos da vida e, por isso mesmo, torna-se um modo de resistência algo que se debela aos domínios da oralidade. ―A vida se torna resistência ao poder quando o poder toma como objeto a vida‖. (DELEUZE, 1 Graduação em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia e Letras Nove de Julho (1984), graduação em Letras pela Universidade Federal de Alagoas (1981), mestrado em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (1987) e doutorado em Artes pela Universidade de São Paulo com bolsa Sandwich (DAAD) na Universidade de Augsburg/Alemanha (1993). Atualmente é professor titular da Universidade Metodista de São Paulo.

SOB O SIGNO DO SILÊNCIO NO AMOR À FLOR DA PELE de Oliveira Souza e... · trilha sonora, de Michael Galasso, com boleros, mambos e músicas populares ocidentais. A canção-tema

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XII EHA – ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE –UNICAMP 2017

189

SOB O SIGNO DO SILÊNCIO NO AMOR À FLOR DA PELE

Dalmo de Oliveira Souza e Silva1

Introdução

Antigamente, se alguém tivesse um segredo que não quisesse partilhar, subiam uma

montanha, procuravam uma árvore, abriam um buraco nela e sussurravam o segredo

para dentro do buraco. Por fim, cobriam-no de lama e lá deixavam o segredo para

sempre.

(Diálogo do Sr. Chow Mo-wan a seu amigo Ping)

Amor à Flor da Pele (2000) ganhou em Cannes o prêmio de melhor ator (Tony Leung Chiu Wai) e

o Technical Grand Prize (pela edição e fotografia). É o sétimo longa-metragem de Wong Kar-wai, apontado

no Festival Internacional de Cinema de Cannes por Felizes Juntos (1997), foi o primeiro diretor de

nacionalidade chinesa a presidir o júri do mesmo festival (2006). No ano seguinte, lançou seu primeiro filme

em língua inglesa, Um Beijo Roubado. O cineasta integra ainda o movimento chamado de Segunda Nova

Onda do Cinema de Hong Kong. Essa geração de cineastas tem como traço comum a ênfase na identidade

bastante atípica da região que oscila entre os valores asiáticos e britânicos – o lugar já esteve sob a

influência da Grã-Bretanha e, atualmente, é administrado pela China. Amor à Flor da Pele tem como pano

de fundo as incertezas da cidade dividida entre a tradição chinesa e a modernidade ocidental.

Originalmente, o título Fa Yeung Nin Wa (em mandarim, algo como Anos com Flores), recebeu

adaptações: internacionalmente, In the Mood for Love, inspirado na canção de Brian Ferry. Em Portugal, o

filme recebeu o nome de Disponível para Amar e no Brasil, Amor à Flor da Pele. Para Kar-wai, o título

ocidental dizia, sobretudo, do ―mood for love‖ e não sobre o amor (MÜLLER, 2013); tratava das sensações

que surgem no instante de aproximação; sobre as brechas entre os acontecimentos. Por essa razão, os demais

títulos carregam ambiguidades frente à atmosfera existente no filme. Os personagens centrais não estão

disponíveis para amar; nada está ―à flor da pele‖. Talvez, Secrets – título sugerido pelo diretor e não

aprovado pelos organizadores de Cannes – fosse o mais apropriado. Os diálogos entre os personagens

principais, Sra. Chan, uma secretaria (Maggie Cheung) e o Sr. Chow Mo-wan, um jornalista (Tony Leung),

até acontecem, mas eles não dizem; eles guardam segredos.

―O que não é dito‖, o silêncio adquire tons diversos. Filosoficamente, o silêncio integra os

movimentos da vida e, por isso mesmo, torna-se um modo de resistência – algo que se debela aos domínios

da oralidade. ―A vida se torna resistência ao poder quando o poder toma como objeto a vida‖. (DELEUZE,

1 Graduação em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia e Letras Nove de Julho (1984), graduação em Letras pela Universidade

Federal de Alagoas (1981), mestrado em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (1987) e

doutorado em Artes pela Universidade de São Paulo com bolsa Sandwich (DAAD) na Universidade de Augsburg/Alemanha

(1993). Atualmente é professor titular da Universidade Metodista de São Paulo.

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2005, p. 99). Em Amor à Flor da Pele, o silêncio media os afetos, assim como o desejo permeia a trama. O

amor de Sra. Chan e do Sr. Chow acontecerá? Quais segredos guardam de seus respectivos cônjuges, dos

vizinhos, dos colegas de trabalho e deles próprios? Como entender o segredo que Sr. Chow deixou

escondido em um buraco cavado em uma árvore? Sabemos somente que Kar-wai decide omitir as soluções

finais. O diretor nos mantém presos no desenvolvimento da trama e não nos dá o desenlace – estamos no

contínuo ―esperar que as coisas realmente aconteçam‖.

O ―vir a ser‖ dessa paixão está na trilha sonora, no enquadramento, na fotografia e nos figurinos.

Aqui vale destaque aos figurinos impecáveis, assinados por William Chang. Eles desfilam confusamente nos

primeiros momentos do filme, particularmente marcando os costumes de uma época. Também merece nota a

trilha sonora, de Michael Galasso, com boleros, mambos e músicas populares ocidentais. A canção-tema

Quizás, Quizás, de Oswaldo Farrés, na voz de Nat Kin Cole rege as dúvidas levantadas pelo enredo do

filme.

Como a natureza do cinema continua sendo fundamentalmente visual (DELEUZE, 2005), então,

todos esses recursos em Amor à Flor da Pele se voltam ao desejo sem contato físico, tão só expresso pelo

olhar, pelas atitudes e, especialmente pelo o que ―se cala‖. Para além, do cotidiano banal do casal, Kar-wai

inscreve a História: por que recorrer aos anos de 1960? Por que, no final do filme, o documentário sobre a

visita de Charles de Gaulle ao Camboja? Assim, a História também se torna segredo na trama.

Nesse sentido, retém-se a atenção em três aspectos: a trama, a fotografia e as motivações

históricas. Sob o signo do silêncio, se desvela uma estética, marcada pela contenção dos desejos e pela

cumplicidade dos amantes – imersa numa atmosfera criada, sobretudo, pelos recursos cinematográficos.

O duplo traídos/traidores

Nos fins dos anos de 1990, Kar-wai não consegue ir à diante com o projeto de Summer in Beijing,

um musical aclimatado em Pequim. Nesse período, o governo chinês exigia a análise do roteiro para a

produção e filmagens e essa demanda deu de encontro ao processo de criação espontâneo e sustentado pelo

improviso do cineasta, sendo assim, depois de algumas tentativas, ele decidiu ambientar sua trama em Hong

Kong, nos anos de 1960. Aqui a questão do processo colonial e da ocidentalização da região ressurgiu com

força total.

O filme apresenta cenas que acontecem no auge da Revolução Cultural na China – um período de

transformações políticas e sociais que agitou o país. Nesse cenário de mudanças, a Revolução mexeu com a

vida de muitas famílias e o crescimento populacional combinado à crise econômica do lugar fez com as

pessoas precisassem subalugar quartos ou dividir moradias com outras famílias. Neste clima de contensão de

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despesas, dois casais (personagens centrais da história) se encontram, se conhecem e, daí, surge o desejo de

estarem juntos.

A relação afetiva dois dos cônjuges antagonistas aproxima as partes traídas, no caso a Sra. Chan e o

Sr. Chow Mo-wan. Naquele prédio, homem e mulher se tornam próximos pela dor e, ao mesmo tempo,

estão separados pelas convenções morais, afinal, eles são casados. Da condição de traídos, gradativamente,

tomam ações de traidores (sem a consumação do fato). Assombrados pelo pejo, os traídos/traidores resistem

em assumir aquilo que um sente pelo outro – o roteiro do filme dá ênfase à situação.

Aliás, Kar-wai não tinha roteiro pronto; ele criava o filme a partir dos takes filmados. A cada

tomada, a ideia do filme se adensava (MÜLLER, 2013, p. 66). Sem história prévia, o método de criação de

Kar-wai exigiu da equipe, dos produtores e dos atores dedicação absoluta – um trabalho de absorção. Seu

trabalho era de um verdadeiro escritor buscando sentido à narrativa que constrói gradativamente através das

cenas gravadas.

Retornando à análise do conflito dos protagonistas, eles escondem sua amizade dos outros

moradores do prédio; são discretos nos gestos e nas palavras. O distanciamento emocional está sempre entre

eles. De fato, onde começa a traição e a culpa daqueles que traem? O tradicionalismo da cultura oriental, os

tabus preservados e a vida rotineira fragilizam a relação que intentam construir – eles tornam-se reféns de

seu desejo.

No filme, a escolha do sistema narrativo sustentado pela elipse prende o espectador no tempo dos

dois personagens centrais. A ausência dos parceiros que traem adensa a supressão de outros sentidos que não

sejam os da Sra. Chan e do Sr. Chow. Os ―traidores‖ estão sempre fora-do-campo: ―ouvimos suas vozes,

vimos fragmentos de seus corpos, supomos sua presença‖ (MÜLLER, 2013, p. 68). Não conhecemos seus

os cônjuges, exceto pelo que dizem deles, pela sua dor e pelos sentidos: não nos dão a vê-los; não nos dão a

escutá-los. No fundo, sua existência é mais um segredo.

Esse segredo é mantido pela cenografia e pela fotografia que criam espaços fragmentados e

inexatos. O enquadramento da câmera privilegia a visão dos atores a partir das portas, batentes e janelas –

nos dá impressão de que os personagens estão dentro de um labirinto. Surpreende-nos a experimentação dos

enquadramentos que, por vezes, abandona o primeiro plano. No edifício onde moram poucas palavras eles

trocam entre si – somente as mais formais. Seus vizinhos não sabem da aproximação; notam a solidão dos

dois e a ausência constante de seus companheiros, mas não conhecem a condição de traídos/traidores.

Em outras cenas, a Sra. Chan e o Sr. Chow encontram-se em espaços reclusos, como restaurantes e,

por fim, um quarto de hotel. A maioria dos espaços é cercada pela profusão de texturas nas paredes e de

móveis decorativos, demonstrando o horror ao vazio – tão presente nas relações humanas. Em algumas

vezes, as ruas vazias à noite também foram testemunhas dos encontros dois.

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Nesses espaços, num primeiro momento, os protagonistas tentam entender os motivos que levaram

à traição dos seus parceiros (simulam como teriam sido traídos) e, em seguida descobrem afinidades que os

une para a escrita de uma história sobre artes marciais. No meio tempo entre uma situação e outra, pesam os

preceitos morais de não poderem levar avante aquela amizade em público e tão pouco repetirem o ato de

seus cônjuges.

Da novela sobre artes marciais que escrevem em parceria nasce o desejo de estarem cada vez mais

juntos. Instala-se, definitivamente, o impasse que o espectador já esperava: estariam eles traindo seus

parceiros? O amor dos traídos seria mais ético do que o dos traidores? Ao final, eles também traíram; eles

traíram?

Os ambientes fechados/noturnos

Amor à Flor da Pele segue o modus operanti de seu diretor: filmado em película (e não

digitalmente), levou 15 meses de filmagens. Teve como diretor de fotografia, Christopher Doyle, parceiro de

Kar-wai em outros trabalhos, substituído por Mark Lee Ping Bin, nos últimos meses – o que levou a uma

ação simultânea: o diretor continuou as filmagens com o elenco e a equipe. Ao mesmo tempo, as imagens

gravadas durante as filmagens de 1999 eram editadas. Diversas cenas foram desprezadas na mesa de edição

e reaproveitadas no longa-metragem seguinte de Kar-wai, concluído em 20042.

Inspirado pela atmosfera do filme Um corpo de que cai (1958), de Alfredo Hitchcock, o cineasta

equipara seu personagem interpretado por Tony Leung ao de James Stewart, porém, a fotografia parece

guardar muitas semelhanças entre os dois filmes. Em ambos, ela envolve os personagens num teor dramático

e melancólico, no qual a dramaticidade se materializa em uma gramática visual. No caso de Amor à Flor da

Pele, existe uma carga intensa de romantismo vinda das cores assinaladas pela presença da luz vermelha e

sua gradação tonal, atestando a expressão, como ponto de fuga de uma solidão em conjunto.

As cenas se sucedem, em sua maioria, em ambientes fechados (o prédio, o escritório, a redação do

jornal) ou noturnos (o caminho do restaurante de massas, os arredores do prédio, as ruas soturnas da cidade).

Os dois personagens parecem presos em lugares pequenos, entulhados e claustrofóbicos. Há um misto de

glamour e decadência nesses lugares que, embora, a existência de objetos sugira a presença de muitas

pessoas sempre estão vazios.

Tal qual a dualidade do ―vazio/cheio‖ dos lugares, a solidão dos personagens ronda todas as cenas.

Eles são casados, mas estão permanentemente sozinhos (a não ser, quando escondidos se encontram). A vida

rotineira de nossos personagens mostra-se pelo o acúmulo de objetos e pelo ambiente reduzido que cada um

2 2046, o segredo do amor (2004). Hospedado em um hotel em Hong Kong, o jornalista Mo Wan Chow escreve um livro de

ficção científica sobre o futuro enquanto recorda seus relacionamentos do passado e se envolve com suas vizinhas de quarto.

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ocupa: ele jornalista, rodeado por mesas, arquivos, telefones, carimbos e máquinas de escrever e, ela

secretaria, no seu diminuto escritório, também munida de sua máquina de escrever e papéis.

Em raros momentos emerge a luz do dia, exceção mais forte é a sequência na qual o Sr. Chow

conta seu segredo à montanha. Aqui a locação escolhida eram as ruínas históricas do templo Angkor Wat no

Camboja. A constante imperiosa é a luz artificial e as cores saturadas – a fotografia é majoritariamente

avermelhada e quente – o que dá ares de sensualidade e de algo a ser desvelado. A câmara segue a Sra. Chan

a cada plano revelando suas formas, seu caminhar e sua feminilidade – como se o desejo do Sr. Chow

estivesse na lente. A visão da bela mulher caminhando, suas costas, seu vestido justo (já dissemos aqui que é

digno de nota o figurino escolhido) é, sem dúvida, um plano lírico.

O foco está nos dois personagens – nada divide as atenções com eles, exceto o tempo (a

passagem/suspensão do tempo). Ele adquire uma relevância enorme na trama. São muitas as cenas nas quais

o relógio se apresenta em closes. Justamente a ênfase no relógio quebra de modo categórico a cronologia do

tempo. Tudo o que ele não tem é linearidade.

O que tão somente temos é o tempo psicológico dos enamorados – ―uma bolha do tempo‖. Quanto

tempo se passou entre a descoberta da traição, a tentativa de entender o adultério, a aspiração por vingança,

o florescer da amizade e a paixão contida? Serão dias, semanas, meses ou anos? O ritmo lento do desenrolar

dos acontecimentos reforça a suspensão do tempo e nos engana a percepção. Sabemos que o tempo corre. A

montagem do filme acena o tempo e o lugar; não desconstrói a noção do ―passar do tempo‖, mas nos

perdemos na trama psicológica dos personagens que conflui passado, presente e futuro. O tempo é mais um

dos segredos.

O silêncio das intenções

No filme, existe uma linha tênue de movimento de câmara que separa amor e paixão, criando a

atmosfera para ações silenciosas marcadas pelos afetos que se sucedem por meio do desejo. Por diferentes

momentos, o espectador aguarda a ação mais decisiva de um dos protagonistas: a Sra. Chan dirá algo mais

provocativo ou se lançará aos braços do Sr. Chow? Ele conseguirá dizer-lhe sobre sua atração? Os dois

personagens ensaiam reações, mas tudo fica nas intenções.

Pelo ritmo compassado do filme, o ―desfecho‖ até é surpreendente. O Sr. Chow anuncia que irá

sozinho para Cingapura. Nesse ponto, o espectador aguarda os protestos da Sra. Chan e finalmente, o

desenlace daquele amor contido. Não! Ela ressente-se! Não impede que ele vá; ele simplesmente vai, sem

cenas que mostre arrependimento ou de tentativa de salvar aquele amor. A personagem não chora; contida, é

o universo que a cerca que diz de sua tristeza. A atmosfera incide sobre os sentidos subjetivos e não sobre a

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ação (inação) dos protagonistas. O silêncio dos amantes motiva a fuga para Cingapura. Faz com que a

separação geográfica seja o desenlace daquele conflito – a solução mais ética.

Antes do fim, a passagem do tempo, da separação entre os dois amantes é sublinhada pela inserção

de um filme documental que registra a visita de Charles De Gaulle ao Camboja. Como todas as produções

de Kar Wai essa menção não é acaso: esse episódio histórico assinala o término do processo colonialista

europeu na Ásia – ele deixa para traz uma influência ocidental que tantas vezes invadiu os cenários e a

atmosfera do Amor à Flor da Pele. Nesse ponto, o diretor nos coloca que ―aquele tempo da Sra. Chan e do

Sr. Chow‖ teve fim. Será essa mais uma intenção silenciosa? A História rompe em meio à narrativa ficcional

– tudo se transforma em visão nostálgica de um tempo que não retrocede. No intertítulo que leva ao final do

filme, lê-se: ―Ele se lembra dos anos passados como se olhasse por uma janela embaçada. O passado é uma

coisa que ele vê, mas não toca. É tudo o que ele vê é borrado e indistinto‖ (KAR WAI, 2012).

Cinco anos, se passam até que o Sr. Chow retorne a Hong Kong e a casa onde viveram. Lá ele não

encontra mais seus antigos locadores ou vizinhos. É informado de que agora, no lugar, moram uma senhora

com uma criança. Na sequência fílmica, a Sra. Chan aparece na casa onde viveram com uma criança. Seria

ela a senhora? Não se tem essa certeza! Até nesse trecho, o espectador ainda tem a expectativa dos ―felizes

para sempre‖. O ―the end‖ está na sequência em que o Sr. Chow conta seu segredo ao buraco cavado na

árvore – o que aconteceu entre eles que não percebemos? Aqui, o diretor lembra-nos que realmente é um

segredo (algo a ser silenciado).

Em suma, em Amor à Flor da Pele Kar Wai nos comove pelo silêncio e pelo ―não dito‖. A

linguagem cinematográfica conta uma história com economia de palavras e gestos. O espectador/expectador

não somente vê ou ouve os protagonistas. Ele sente a atmosfera e vive o conflito por intermédio de todos os

recursos audiovisuais que o diretor tem à mão. Todos se completam para nos mostrar a força do silêncio das

intenções.

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Fig. 1. O jornalista Chow Mo-wan (Tony Leung Chiu Wai) e a secretaria Su Li-zhen (Maggie Cheung),

Amor à Flor da Pele, 2000. Fonte: http://sublimeirrealidade.blogspot.com.br/2013/05/amor-flor-da-

pele.html. Acesso em 13 out. 2017.

Fig. 2. Chow Mo-wan (Tony Leung Chiu Wai) e Li-zhen (Maggie Cheung), no quarto de hotel alugado pelo

Sr. Chow para escrever a novela sobre artes marciais, Amor à Flor da Pele, 2000. Fonte:

http://p3.publico.pt/cultura/filmes/21458/mulholland-drive-e-o-melhor-filme-do-seculo-xxi. Acesso: 13 out.

2017.

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Fig. 3. Chow Mo-wan (Tony Leung Chiu Wai) e Li-zhen (Maggie Cheung), nas ruas vazias de Hong Kong,

Amor à Flor da Pele, 2000. Fonte: https://celluloidwickerman.com/2013/01/07/music-parallels-of-in-the-

mood-for-love-wong-kar-wai/. Acesso: 13 out. 2017.

Fig. 4. Chow Mo-wan (Tony Leung Chiu Wai) na redação do jornal, Amor à Flor da Pele, 2000. Fonte:

http://luiztonon.blogspot.com.br/2015/04/o-amor-e-flor-da-pele-e-eterno.html. Acesso: 13 out. 2017.

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Fig. 5. Li-zhen Chan (Maggie Cheung), no seu escritório, Amor à Flor da Pele, 2000. Fonte:

http://luiztonon.blogspot.com.br/2015/04/o-amor-e-flor-da-pele-e-eterno.html. Acesso: 13 out. 2017.

Fig. 6. O closet do relógio que surge dividindo os tempos na narrativa, Amor à Flor da Pele, 2000. Fonte:

HEINZ, 2013, p. 95.

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Referências Bibliográficas

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DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.

_____. Cinéma 2. L´image-temps. Paris: Minuit, 1985.

_____. Cinema 1. L´imagem-mouvement. Paris: Minuit, 1983.

_____. Foucault/Gilles Deleuze. São Paulo: Brasiliense, 2005.

_____. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2009.

HEINZ, Renata. Atmosfera em amor à flor da pele de Wong Kar-wai: o filme como experiência. São

Leopoldo: UNISINOS (dissertação), 2013.

KAR-WAI, Wog. In the mood for love. Hong Kong: 2012 (Blu-ray: The Criterium Collection, 2012).

JOUSSE, Thierry. Wong Kar-wai. Paris: Cahiers du Cinéma/CNDP, 2006.

MÜLLER, Adalberto. Ambiências afetivas em amor à flor da pele de W. Kar-wai. Ilha do Desterro.

Florianópolis, no. 65, p.p. 63-71, jul./dez. 2013.