Upload
others
View
0
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
SOBRE A APRENDIZAGEM:
Ressonâncias entre a Abordagem Enativa de F.Varela e a Psicologia Histórico-
Cultural de L.S.Vygotski
Beatriz Sancovschi
Rio de Janeiro
2005
2
BEATRIZ SANCOVSCHI
SOBRE A APRENDIZAGEM:
Ressonâncias entre a Abordagem Enativa de F.Varela e a Psicologia Histórico-
Cultural de L.S.Vygotski
Dissertação apresentada à banca examinadora da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como exigência parcial para obtenção do
título de Mestre em Psicologia.
Orientador: Profª. Drª.Virgínia Kastrup
Rio de Janeiro
2005
3
S211 Sancovschi , Beatriz.
Sobre a aprendizagem : ressonâncias entre a abordagem enativa de F.Varela e
a psicologia histórico-cultural de L.S.Vygotski / Beatriz Sancovschi. – Rio de
Janeiro : UFRJ , 2005.
144f.
Orientador : Virgínia Kastrup
Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Instituto de Psicologia / Programa de Pós- Graduação em Psicologia ,
2005.
1. Aprendizagem . 2. Mecanismo circular . 3. Varela, Francisco, 1946. 4.
Vygotsky, Lev Semenovich, 1896-1936. I . Kastrup, VIRGÍNIA . II Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia.
CDD 153.15
4
BEATRIZ SANCOVSCHI
SOBRE A APRENDIZAGEM:
Ressonâncias entre a Abordagem Enativa de F.Varela e a Psicologia Histórico-
Cultural de L.S.Vygotski
Aprovado em ____de_________ de ______.
Banca examinadora,
__________________________
Profª. Drª. Virgínia Kastrup
Universidade Federal do Rio de Janeiro
__________________________
Profª. Drª. Andréa Vieira Zanella
Universidade Federal de Santa Catarina
__________________________
Prof. Dr. Francisco Portugal
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
2005
5
AGRADECIMENTOS
À minha família, sobretudo aos meus pais e irmãs pela paciência e pelo apoio prestados nos
momentos mais difíceis de meu trabalho e, pela alegria compartilhada nos êxitos obtidos.
À minha orientadora, prof.ªVirgínia Kastrup por acreditar no meu trabalho e pela atenciosa
orientação.
Aos colegas de pós-graduação pelas valiosas contribuições nas orientações coletivas e
também nas “conversas nos corredores”.
Ao professor do IP-UFRJ Amandio pelos grupos de estudo e pelas discussões fomentadas.
Aos funcionários da pós-graduação Ana e Gian pela ajuda em relação à parte burocrática e
operacional do mestrado.
À Capes por ter fornecido o auxílio financeiro que me permitiu a dedicação necessária a
elaboração de minha dissertação.
A todos,
Muito obrigada.
6
RESUMO
O objetivo desta dissertação é trabalhar as ressonâncias entre a abordagem enativa de
F.Varela e a psicologia histórico-cultural de L.S.Vygotski, a partir da questão da
aprendizagem. Procede-se examinar as possibilidades de repensar a aprendizagem através
do modo singular como Varela e Vygotski concebem a construção da cognição. A noção de
uma cognição inventiva orienta este trabalho. O primeiro capítulo é dedicado à análise da
abordagem enativa. Examina-se aí o mecanismo autopoiético, a aprendizagem pensada no
domínio humano através do exemplo do aprendiz da flauta e a aprendizagem da prática do
devir-consciente. Estas idéias ajudam a recolher indicações a fim de repensar a noção de
aprendizagem. O segundo capítulo é dedicado à psicologia histórico-cultural. Examina-se aí
o mecanismo histórico-dialético de formação das funções psíquicas superiores (mediação e
internalização), a Zona de Desenvolvimento Proximal e as vias colaterais de
desenvolvimento. Na análise da teoria vygotskiana, verifica-se que a idéia da apropriação
da cultura como um destino para o desenvolvimento poderia constituir-se num limite. A
relativização desta noção foi, então, fundamental para potencializar os achados da
psicologia histórico-cultural. A partir dessas discussões, analisa-se, no terceiro capítulo as
ressonâncias entre ambas as abordagens. Aí a questão do mecanismo circular para pensar a
construção da cognição ganha destaque. Por fim conclui-se que, ainda que existam muitas
diferenças entre a abordagem enativa e a psicologia histórico-cultural, o encontro entre
Varela e Vygotski aponta para novas orientações para a psicologia da aprendizagem. Trata-
se da ênfase no mecanismo circular. Tal mecanismo aproxima a aprendizagem da idéia de
produção de subjetividades e de mundos e, torna necessária a inclusão da dimensão política
nos estudos da aprendizagem.
Palavras-chave: Varela – Vygotski – aprendizagem - circularidade
7
ABSTRACT
The purpose of this dissertation is to analyze the enactive approach of F. Varela and the
historical-cultural psychology of L. S. Vygotski, and compare their views on the cognitive
problem of learning. We propose an examination of the possibilities of rethinking learning
according to Varela’s and Vygotski’s singular conceptions of the cognitive construction.
The notion of inventive cognition is the basic orientation of our work. In the first chapter,
dedicated to the analysis of the enactive approach, we examine the autopoietic mechanism,
and consider learning in the human domain through the example of the flute apprentice and
through the practice of becoming-aware. These ideas suggest indications that will
contribute to rethink learning. In the second chapter, devoted to the historical-cultural
psychology, we examine the historical-dialectical mechanism responsible for the formation
of superior psychic functions (mediation and internalization), the Proximal Development
Zone and the collateral paths of development. Within the analysis of Vygotski’s theory, we
verify that the idea of the appropriation of culture as a destination of cognitive development
might represent a limitation. We were then lead to emphasize the relativity of this notion in
order to consider, in their full potential, the findings of the historical-cultural psychology.
Based on these discussions, we analyze, in the third chapter, the resonances of Varela’s and
Vygotski’s approaches, in which the circular mechanism related to the construction of
cognition plays a very important role. At last we conclude that, in spite of the various
differences between these two cognitive approaches, their encounter in this investigation
suggests new directions to research in cognitive psychology, based on the circular
mechanism. Such mechanism indicates a convergence of learning and the idea of
production of subjectivities and worlds, and requires the consideration of the political
dimension in the investigation of the learning process.
Key-words: Varela – Vygotski – learning - circularity.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 10
CAPÍTULO 1
A abordagem enativa e o problema da aprendizagem 23
1.1 – Abordagem enativa: a terceira via no campo das ciências cognitivas 25
1.2 – Circularidade: uma exigência epistemológica 30
1.3 – Aprendizagem na abordagem enativa 32
1.3.1 – Sobre o mecanismo autopoiético: circularidade e co-engendramento 34
1.3.2 – O aprendiz: a aprendizagem no domínio humano 48
1.3.3 – A prática do devir-cosnciente: contribuições para a aprendizagem 54
1.4 - Política e fazer científico 62
1.5 – Contribuições da abordagem enativa ao tema da aprendizagem: algumas sínteses 63
CAPÍTULO 2
A teoria histórico-cultural e o problema da aprendizagem 67
2.1 – Uma promessa de síntese no campo da psicologia 69
2.2 – A questão do desenvolvimento: antes de tudo um problema de método 75
2.3 – Funções elementares e funções superiores 80
2.4 – Aprendizagem e desenvolvimento: processos de transformação temporal 83
2.4.1 – Sobre o mecanismo histórico-dialético: mediações e internalizações 88
2.4.2 – Aprendizagem e a Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) 95
2.4.3 – Aprendizagem e as vias colaterais de desenvolvimento: sobre a teoria
compensatória em defectologia 101
2.5 – Política e fazer científico 108
2.6 - Contribuições da psicologia histórico-cultural ao tema da aprendizagem: algumas
sínteses 109
CAPÍTULO 3
Algumas Ressonâncias entre a abordagem enativa e a psicologia histórico-cultural 112
9
CONCLUSÃO 128
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 139
10
INTRODUÇÃO
“O que ocorreu comigo, penso que sucede com freqüência na vida de todos os que se dedicam à psicologia. Seria melhor dizer, de todos os que se dedicam à história de qualquer ciência. Sempre acontece a oportunidade para uma incursão no passado, pela descoberta de semelhanças entre algumas idéias que pensamos atuais, e outras que se produziram em épocas recuadas” (PENNA, 2003, p.10).
A psicologia é um saber híbrido que se constitui pela aproximação com diversos
saberes como a física, a fisiologia, a sociologia, a biologia, a cibernética, etc. Ela é uma
ciência que se faz nas interfaces, por conexões. A prática de alianças está na base do “fazer
psicologia” (KASTRUP, 2000). Neste sentido, é apenas, nas interfaces, através de conexões
ou ainda pelas articulações (LATOUR, 2004) que podemos ir além dos limites da
psicologia constituída, caminhando em direção a um fazer da psicologia. Cito: “A
expressão ‘fazer psicologia’ ganha força quando evoca um compromisso não apenas com a
aplicação do saber psicológico constituído, mas envolve o processo de produção deste
campo, a invenção da própria psicologia...” (KASTRUP, 2000, p.13). Certamente este é um
caminho que não se faz sem riscos. Novas articulações implicam, ao mesmo tempo,
inúmeras possibilidades, e também muitas incertezas. “Se ‘fazemos psicologia’ não
podemos aguardar o veredicto da história, o aval do conhecimento passado” (Ibidem, p.19).
Tendo em vista estas colocações, propomos nesta dissertação, uma articulação entre
a abordagem enativa de F.Varela e a psicologia histórico-cultural de L.S.Vygotski1. Mais
especificamente, buscamos ressonâncias entre elas, tomando como foco a questão da
aprendizagem. Interessa-nos examinar a possibilidade de repensar a aprendizagem através
do modo singular como Varela e Vygotski concebem a construção da cognição. Nos
situamos, neste empreendimento, na interface entre a psicologia e as ciências cognitivas.
1 A grafia do nome do autor russo Lev S. Vygotski é uma questão curiosa. Conforme explica Duarte “Em decorrência de o idioma russo possuir um alfabeto distinto do nosso, têm sido utilizadas muitas formas de escrever o nome desse autor com o alfabeto ocidental. Os americanos e os ingleses adotam a grafia Vygotsky. Muitas edições em outros idiomas, por resultarem de traduções de edições norte-americanas, adotam essa mesma grafia. Na edição espanhola das obras escolhidas desse autor tem sido adotada a grafia Vygotski. Os alemães adotam a grafia Wygotski. Em obras da e sobre a psicologia soviética publicadas pela então editora estatal soviética, a Editora Progresso, de Moscou, traduzidas diretamente do russo para o espanhol, como, por exemplo, Davidov & Shuare (1987), é adotada a grafia Vigotski. A mesma grafia tem sido adotada em publicações recentes, no Brasil, de partes da obra desse autor” (2001, p.2-3). No presente trabalho seguirei a grafia Vygotski, uma vez que estamos nos baseando, principalmente, nas publicações espanholas. No entanto respeitarei nas referências e citações a grafia da edição utilizada.
11
Varela, em seu livro Conhecer (s.d), propõe uma visão geral das ciências cognitivas,
distinguindo quatro estágios de seu desenvolvimento: o primeiro corresponde aos anos de
fundação (1943-1953); o segundo, ao paradigma cognitivista (cognitivismo
computacional); o terceiro apresenta-se como uma alternativa à manipulação simbólica
(movimento conexionista); e finalmente o quarto, é uma alternativa à representação
(abordagem da enação). Estes estágios, ressalta o autor, não excluem uns aos outros.
Embora o cognitivismo computacional tenha sido a abordagem hegemônica durante os anos
de 1960 e 1970, as noções de uma cognição emergente e de uma cognição enativa ganham
força na atualidade, o que justifica nossa proposta de trazê-las para o debate com a
psicologia.
Optamos por nos referir ao trabalho de Varela pelo nome “abordagem enativa”, no
entanto é importante destacar que não serão excluídas da investigação nem as obras
anteriores à formulação deste conceito, nem as posteriores. Neste sentido trabalharemos
com os três momentos da obra de Varela: o da autopoiese, o da enação e o da pragmática da
experiência.
A psicologia “histórico-cultural” de Vygotski2 é uma teoria que, em função do
contexto sócio-político em que foi concebida e de seu embasamento teórico-filosófico,
comporta complexidades e tensões. Não é nosso objetivo realizar a totalização de trabalhos
vygotskianos, mas pensar com o autor russo, novas possibilidades para a psicologia na
interface com as ciências cognitivas, em particular com a abordagem enativa. Desse modo,
trabalharemos com as virtualidades de seus textos de modo a trazer contribuições para a
noção de aprendizagem.
Ainda que nem Varela e nem Vygotski apresentem uma teoria pronta de
aprendizagem, através da análise de seus textos e, em especial, da forma como concebem a
cognição como um processo em construção, percebemos que esta temática atravessa seus
trabalhos. Neste sentido, justifica-se nosso interesse de fazê-los dialogar a partir deste tema.
Através dos conceitos de autopoiese (MATURANA e VARELA, 1995), enação
(VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2003) e breakdown (VARELA, 2003), a teoria de
2 A escolha pela designação histórico-cultural para nomear a psicologia vygotskiana tem por objetivo marcar uma diferença em relação à psicologia realizada pelo grupo de psicólogos brasileiros que nomeia seus trabalhos de psicologia sócio-histórica. Note-se que a chamada psicologia sócio-histórica, embora tome por base os textos vygotskianos, reúne outras referências como Leontiev, Politzer, Luria e outros, além de situar-se no campo da psicologia social (Bock, Gonçalves e Furtado, 2002).
12
F.Varela, desenvolvida no domínio das ciências cognitivas, propõe uma concepção de
cognição que se afirma em oposição ao paradigma informacional e representacional.
Segundo este paradigma haveria um mundo previamente dado que transmitiria informações
– na forma de inputs – ao sujeito e esse as representaria de modo a poder agir
adequadamente (VARELA, s.d). Para este autor, ao contrário, a cognição é entendida como
uma ação ou um fazer que torna possível a emergência co-engendrada de sujeito e mundo.
Neste contexto, não faz sentido falar em informação. O mundo pode apenas oferecer
ocasiões de breakdowns, ou seja, possibilitar perturbações no acoplamento sujeito-mundo.
O resultado de um breakdown é sempre imprevisível. Desse modo, Varela nos fornece uma
concepção de cognição bastante singular – que se afasta dos invariantes, aproximando-se da
criação – nos forçando a repensar conceitos da psicologia, como é o caso do de
aprendizagem.
Kastrup (1999) e Alvarez (1999) apontam a teoria de F.Varela como uma
alternativa para pensar uma cognição em variação e diferenciação, que comporte o tempo e
a invenção. Ao mesmo tempo, debruçam-se sobre a Epistemologia Genética, em busca de
aliados no campo da psicologia que possam ajudar a pensar este tipo de cognição. De
acordo com Kastrup, o construtivismo piagetiano, na medida em que introduz a idéia de
construção contribui para pensar uma cognição em transformação. No entanto, ao submeter
o problema do conhecimento a sua lógica, Piaget deixa de poder enxergar a invenção na
transformação. Nas palavras da autora:
A forma de colocação do problema psicológico do conhecimento – entre a biologia e a lógica – impõe sua marca na teoria da cognição elaborada por Piaget e determina a ausência de um estudo efetivo da invenção como potência da cognição de diferir em relação a si mesma (KASTRUP, 1999, p.83).
Essa lógica tem por base um tempo seqüencial e sucessivo que marca os estágios do
desenvolvimento da criança. Esses são sempre os mesmos e seguem uma ordem invariante.
Para Piaget (2001) todo desenvolvimento segue o caminho que vai do sensório-motor ao
lógico formal. Neste sentido, conclui Kastrup, o construtivismo piagetiano é um
“construtivismo de caminho necessário” (KASTRUP, 1999, p.95), portanto, não nos
permite pensar a invenção, que é sempre imprevisível.
13
Alvarez (1999) com base no trabalho de M.Ceruti (1986) propõe uma comparação
entre o construtivismo piagetiano e o construtivismo de Varela e Maturana. Conclui que o
construtivismo piagetiano, embora se afirme como um processo de transformação que
envolve a ação, na medida em que tem por base invariantes funcionais: assimilação e
acomodação, não pode ser concebido como um construtivismo radical. Ou seja, o
construtivismo piagetiano se faz no interior de um espectro de variações possíveis,
mantendo identidade e produzindo resultados idênticos. Nas palavras de Alvarez: “O que
move a atividade construtiva, seu invariante funcional, não descarta um aspecto previsível e
determinista, que aponta desde cedo os caminhos de tal construção, caminhos necessários
para a formação das estruturas próprias ao conhecimento científico avançado” (ALVAREZ,
1999, p.19).
Dessa forma, tanto Kastrup quanto Alvarez concluem seus trabalhos apontando a
insuficiência da Epistemologia Genética no que diz respeito a uma concepção de cognição
que comporte a invenção. Restava, contudo, uma pesquisa a ser feita, incluindo a teoria
histórico-cultural. É neste contexto que propomos este trabalho. Portanto, este trabalho de
busca por ressonâncias entre a abordagem enativa e a psicologia histórico-cultural, estará
sendo perspectivado pela noção de cognição inventiva (KASTRUP, 1999)
Para Vygotski, a cognição, ou em seus termos, o psiquismo, só pode ser
compreendido como resultado de construções. Chamamos atenção para o sentido singular
atribuído aqui à palavra construção. A afirmação de que Vygotski trabalha com uma
concepção de cognição em construção, não significa que devamos confundi-lo com o
construtivismo piagetiano (SOUZA e KRAMER, 1991). A construção aqui não resulta de
uma lógica invariante ou mesmo de um amadurecimento biológico, mas se faz ao longo da
vida, com a vida e, principalmente, no encontro com os outros. Ela também não é resultado
da atividade de um sujeito já formado. Aí reside a especificidade da psicologia histórico-
cultural que entende que a formação do psiquismo não se dá de forma dissociada dos
aspectos históricos, sociais e culturais. Neste sentido a concepção de construção da
cognição com a qual esta teoria trabalha parece aproximar-se da de Varela, apontando,
então para um caráter transformador e inventivo da cognição.
A respeito da palavra invenção é importante esclarecer que ela não é um processo
cognitivo a mais, mas uma outra perspectiva, a partir da qual todos os processos cognitivos
14
– inclusive a aprendizagem – são revistos e repensados (KASTRUP, 1999). A invenção é,
então, resultado do movimento de transformação próprio da cognição e não pressupõe um
inventor. Não se trata de uma perspectiva subjetivista ou idealista. A invenção faz parte de
um funcionamento cotidiano da cognição e diz respeito à capacidade que ela tem, no seu
funcionamento concreto, de diferir de si mesma, sendo também alterada por fatores sociais
e históricos.
Note-se que N.Duarte (2001) nega o caráter construtivista da obra de Vygotski.
Para ele, considerar a teoria histórico-cultural construtivista é realizar uma apreensão
neoliberal e pós-moderna dos trabalhos vygotskianos. No entanto, seguindo sua
argumentação percebemos que sua crítica incide sobre um certo uso que a pedagogia faz do
construtivismo e que gerou no Brasil grandes equívocos (SAVIANI, 2001). Embora este
tipo de crítica seja importante no campo da educação, nosso desafio é trazer Vygotski para
a discussão com uma noção mais ampla de construtivismo levando em consideração a
ampliação deste conceito no campo das ciências cognitivas contemporâneas.
No campo dos estudos da cognição, as teorias construtivistas têm o mérito de evitar
concepções totalitárias ou naturalizantes. Por outro, fornecem recursos para compreender e
explicar os movimentos de transformação nas formas de ser e de conhecer que não são
definidas de antemão. Latour (2003), em um texto onde analisa a idéia de construtivismo,
afirma: “O construtivismo pode ser nossa única defesa contra o fundamentalismo, definido
como uma tendência a negar as características construídas e mediadas das entidades cuja
existência pública não mais tem sido discutida” (Ibidem, p.1). Esclarece que defender a
construção ou o construtivismo não implica uma oposição em relação à realidade. Saber se
algo é real ou construído é, segundo ele, um falso problema. Quanto mais construído, mais
real. Uma outra questão importante é que a construção ou o construtivismo devem ser
pensados para além da dicotomia criador-criatura. O que está em jogo nas construções não
são representações, mas articulações com coletivos. Nas palavras de Latour:
O que é interessante no construtivismo é exatamente o oposto do que inicialmente parece implicar: não há construtor, não há mestre, não há criador que poderia ser dito dominar materiais, ou, pelo menos, uma nova incerteza é introduzida tanto para o que será construído como para quem é responsável pela emergência de virtualidades do material à mão (Ibidem, p.3).
15
Parece justificado e importante considerar que tanto Varela quanto Vygotski
pensem a cognição como um processo de construção. Ressaltar o aspecto de construção da
cognição nestas duas abordagens é uma questão que não pode ser separada de sua dimensão
política. Esta observação ganha aqui um sentido especial. Estamos trabalhando com dois
autores que não se furtaram a discutir e apontar a dimensão política de seus trabalhos. Isto
não implicou menor rigor científico, mas possibilitou formas diferentes de colocar os
problemas, bem como de resolvê-los, e isso nos interessa particularmente.
Em psicologia, dois são os processos que nos permitem abordar a transformação
temporal ou a construção da cognição: o desenvolvimento e a aprendizagem. Estes
processos introduzem o tempo no estudo da cognição. No entanto como bem mostra
Vygotski (Vygotski, 1931/2000, p.139 a 141), a noção de desenvolvimento tornou-se uma
noção desgastada, confundindo-se, muitas vezes, com a idéia de amadurecimento biológico
ou de um caminho pré-traçado. É interessante destacar que a concepção de
desenvolvimento com a qual Vygotski trabalha funda-se na unidade dialética
aprendizagem-desenvolvimento. Tal fato sugere mais uma vez a compatibilidade entre a
psicologia histórico-cultural e a concepção de cognição inventiva que caracteriza, conforme
apontam Kastrup (1999) e Alvarez (1999) a abordagem enativa.
Solange Jobim e Souza afirma sobre as teorias do desenvolvimento:
A característica marcante das teorias do desenvolvimento, do século XIX em diante, é se constituírem como saberes que engendram conceitos universalizantes e abordagens teleológicas que demarcam a natureza e o lugar social dos sujeitos, segundo estágios ou etapas unidirecionais de desenvolvimento, ou segundo sua idade cronológica (SOUZA, 1996, p.44).
Assim, optamos por buscar as ressonâncias entre a abordagem enativa e a teoria
histórico-cultural a partir da noção de aprendizagem, ainda que esta apareça de forma
indireta nos dois autores. Um dos nossos desafios é trabalhar nos limites dessas duas
abordagens da cognição e pensar com elas, e para além delas, como poderiam contribuir
para pensar o conceito de aprendizagem a partir da forma como concebem a construção da
cognição. Na medida em que esta construção é concebida por Varela e, parece ser por
Vygotski, como um processo que comporta transformação, variação e invenção, então a
concepção de aprendizagem que aparecerá deverá ser diferente daquela proposta
tradicionalmente pela psicologia da aprendizagem. A noção de uma cognição inventiva faz
16
ver que a aprendizagem pensada como solução de problemas ou adaptação a um mundo
dado é insuficiente. Portanto, será nosso objetivo verificar como a aprendizagem pode ser
entendida em ambas as abordagens e em seus diferentes momentos. Através dela
buscaremos as ressonâncias entre a psicologia histór ico-cultural e a abordagem enativa.
De saída, a questão das lógicas circulares que estão presentes em ambos os autores
nos chama a atenção. É recorrendo a essas lógicas que Varela e Vygotski procuram escapar
das tradicionais dicotomias que impregnam a maioria das teorias científicas, incluindo aí a
psicologia. Assim, as diferenças entre o mecanismo histórico-dialético proposto por
Vygotski (VYGOTSKI, 1931/2000) para compreender a formação social da mente e o
mecanismo da circularidade criadora (DUPUY E VARELA, 1995) proposto por Varela
para dar conta da mente corporificada, merecerão especial atenção. A dimensão política de
ambas as posições também será alvo de interesse.
Embora os trabalhos de Vygotski sejam mais conhecidos e comentados no campo
da Educação, a interface com as ciências cognitivas têm se apresentado como um novo
campo de trabalho. Alguns autores apontam a teoria histórico-cultural como uma teoria
capaz de contribuir para o campo das ciências cognitivas. William Frawley publicou um
livro em 1997 nos EUA, cujo título é Vygotsky and cognitive science: language and the
unification of the social and computational mind (FRAWLEY, 2000). No entanto, na maior
parte das vezes, e este é exatamente o caso do livro citado, os autores indicam possíveis
compatibilidades entre a teoria vygotskiana e a teoria antes hegemônica no campo das
ciências cognitivas que é o cognitivismo computacional. Frawley parte da idéia de que o
cognitivismo computacional e a teoria histórico-cultural constituem dois modos de entender
o ser humano. Um daria conta da dimensão interna e o outro da dimensão externa. Neste
sentido, afirma que a mente computacional e a sócio-cultural seriam complementares.
Assim, propõe construir em seu livro algo como uma “ciência cognitiva vygotskyana”
(Ibidem) que teria no computacionalismo sua chave de leitura. Embora não seja nosso
interesse fazer uma análise detalhada da posição defendida por esse autor, nos parece haver
aí uma compreensão da teoria vygotskiana pouco aprofundada. Em outras palavras, o
mecanismo circular histórico-dialético, fundamento de toda a teoria histórico-cultural,
parece ter sido deixado em segundo plano, como se fosse secundário e não essencial.
17
O computacionalismo ou cognitivismo computacional define a cognição como uma
computação de representações simbólicas ou ainda como manipulação simbólica por regras
lógicas (VARELA, s.d). Com base no modelo computacional, os cognitivistas concebem a
cognição como uma operação que se realiza num nível formal, lógico, abstrato,
encapsulado em relação aos fatores sócio-históricos e psico-fisiológicos (GARDNER,
1996). O funcionamento cognitivo é um processamento de informações que chegam do
meio (inputs) e voltam ao meio através de respostas (outputs), sem que haja alteração das
regras de processamento. Fatores sócio-históricos, biológicos, emoções, são, segundo
H.Gardner, colocados entre parênteses, não chegando a afetar o funcionamento cognitivo,
que resta invariante. Como seria possível conciliar cognitivismo computacional e teoria
histórico-cultural? Consideramos que a dimensão sócio-histórica para Vygotski não é
apenas um complemento do funcionamento cognitivo, mas é o que garante o próprio
funcionamento. É a partir dos processos históricos e culturais que os processos psíquicos se
constituem.
Há, contudo, alguns artigos como o de J.V.Wertsch e M.Cole (2004) que apontam
para uma aproximação entre as formulações da teoria de Vygotski e o movimento
conexionista, que se caracteriza por uma cognição distribuída e uma aprendizagem situada.
Frawley, embora se posicione contra, cita alguns autores das ciências cognitivas que
trabalham com concepções de cognição diferentes do computacionalismo - como a teoria
da ação situada de Schuman – que recorrem a Vygotski em seus trabalhos.
No presente trabalho tomaremos como foco a comparação com a abordagem
enativa. Embora existam na atualidade muitas formas de entendimento da cognição no
campo das ciências cognitivas, Varela nos adverte que a escolha de uma certa perspectiva é
uma tarefa fundamental: “Esta tarefa não pode ser neutra: deve ser cumprida a partir de um
determinado ponto de vista, de preferência o de um interveniente no meio em questão”
(VARELA, s.d, p.9). A forma como colocamos o problema da cognição não é portanto sem
importância, mas pressupõe uma certa posição no campo. Pois há uma diferença entre
ciências da cognição e cognitivismo que não deve ser perdida de vista. O cognitivismo é
apenas uma das abordagens no interior do campo mais amplo das ciências cognitivas.
Desse modo, propor uma articulação entre a abordagem enativa e a teoria histórico-cultural
18
não constitui uma adesão à concepção cognitivista mas, ao contrário, reforça a crítica a tal
modelo de entendimento da cognição.
O presente trabalho de comparação e busca de ressonâncias entre as abordagens
enativa e histórico-cultural é realizado com base nas indicações metodológicas fornecidas
por Y.Clot por ocasião da coletânea de textos reunida no livro Avec Vygotski3 (1999), bem
como na metodologia apresentada por B.Latour em seu texto How to talk about the body? –
The normative dimension of science studies (2004).
Y.Clot, ao justificar a escolha do título de seu livro, explicita dois motivos. O
primeiro refere-se ao fato de que o trabalho de Vygotski sempre foi realizado em diálogo
com outros autores. Com relação a isso, é interessante constatar que toda a obra
vygotskiana foi construída sobre a base de um referencial filosófico-metodológico
(materialismo histórico-dialético) que orientava sua política de alianças teóricas. Era a
partir de uma certa concepção do que deveria ser a psicologia e do que ela deveria estudar
que Vygotski ia dialogando com os autores e construindo sua própria teoria. O segundo
motivo remete a um outro sentido que a obra de Vygotski ganha nos dias atuais, “não
apenas aquele da ciência feita, mas daquele da ciência que se faz”(CLOT, 1999, p.8)4.
Assim o “Com” (Avec), que aparece no título, sinaliza um tipo de postura – um método -
adotada pelos autores, que se caracteriza por um afastamento em relação a uma exegese dos
textos e da obra de Vygotski. “Na leitura e releitura de Vygotski estamos diante de um
início de trabalho e não diante de um santuário” (Ibidem, p.9). Note-se que tal postura é
adotada pelo próprio Vygotski em relação aos autores com os quais trabalhava, e aponta
para um tipo de posição teórica a ser mantida, na medida em que faz avançar as teorias
através do encontro com novas questões. Tal encontro coloca em movimento e suscita, no
autor, um processo que poderia ser dito de aprendizagem.
Latour (2004) desenvolve a noção de articulação para falar de um tipo de
aprendizagem que se diferencia do modelo de aprendizagem sujeito-objeto. Aprender,
3 Avec Vygotski é um livro organizado por Yves Clot que reúne artigos de diferentes autores. Nesses artigos comparece o diálogo ou a articulação das idéias de Vigotski com a de outros pensadores como Piaget, Freud, Wallon e Marx. 4 A tradução é nossa, assim como a de todos os outros textos citados em idioma estrangeiro.
19
segundo o modelo das articulações, significa aprender a afetar e ser afetado, ou seja
aprender a tornar-se sujeito de modo co-engendrado com o mundo. Nas palavras de Latour:
Um sujeito inarticulado é alguém que independentemente do que o outro diga ou faça, sempre sente, age e diz a mesma coisa. Oposto a isso, um sujeito articulado é alguém que aprende a ser afetado pelas outras pessoas - e não por ele mesmo. Não há nada de interessante, profundo em um sujeito ‘por ele mesmo’ [...] – um sujeito só se torna interessante, profundo, quando ele ressoa com outros, é efetuado, mexido, colocado em ação por novas entidades cujas diferenças estão registradas de maneiras novas e inesperadas (Ibidem, p.6).
Neste sentido, “A articulação não significa a habilidade de falar com autoridade (...)
mas ser afetado pelas diferenças” (Ibidem, p.6).
Assim, buscaremos utilizar neste trabalho a idéia de articulação apresentada por
Latour, como um método para o estabelecimento das ressonâncias entre Vygotski e Varela.
Neste sentido propomos uma co-afetação entre os dois autores, incluindo-nos neste
processo. Não se trata, portanto, de desvelar a verdade de Vygotski ou a verdade de Varela,
mas da construção de uma forma possível de entender essas duas teorias de modo que
possam contribuir para pensar uma outra concepção de aprendizagem que se afaste da idéia
de solução de problemas e de adaptação a um mundo prévio. É pela articulação que tal
construção poderá ser realizada.
Uma última colocação a respeito da metodologia adotada neste trabalho refere-se à
ordem de apresentação dos autores. Ao invés de seguirmos a ordem histórica, optamos por
seguir a ordem pela qual os encontros com os autores ocorreram. Tal ordem marca nossas
leituras e questões. Neste sentido apresentaremos no primeiro capítulo a abordagem enativa
e no segundo, a teoria histórico-cultural, invertendo a ordem histórica.
Começaremos o primeiro capítulo fazendo uma breve apresentação da abordagem
enativa, explicitando os três momentos da obra de F.Varela que serão contemplados neste
trabalho: o da autopoiese (MATURANA e VARELA, 1995), o da enação (VARELA,
THOMPSON e ROSCH, 2003) e o da pragmática da experiência (VARELA, DEPRAZ e
VERMERSCH, 2002). Mostraremos, então, como esta abordagem afirma-se como uma
terceira via no campo das ciências cognitivas, situando-se para além tanto do cognitivismo
quanto do conexionismo. Será interessante verificar como a proposição da terceira via não
20
implica uma síntese das diferentes abordagens da cognição, mas apresenta-se como uma
alternativa. Há portanto uma aposta em uma multiplicidade no campo científico. Antes de
entrar na questão da aprendizagem propriamente dita, que é o foco do nosso trabalho,
discutiremos brevemente o lugar da circularidade na abordagem de Varela. Veremos como
esta questão constitui uma exigência epistemológica (VARELA, THOMPSON e ROSCH,
2003) em função de uma certa forma de colocar o problema da cognição que toma como
base a fenomenologia de Merleau-Ponty e as práticas do budismo tibetano. Após esta
introdução inicial nos centraremos na questão da aprendizagem, analisando três momentos
em que essa temática parece aparecer na obra do Varela. Esses três momentos apontam
para um refinamento da noção. Cada um deles nos coloca diante de novas questões e
desafios, através dos quais buscaremos contribuições para repensar a aprendizagem na
psicologia. No primeiro momento trabalharemos o mecanismo circular autopoiético,
propondo pensar a aprendizagem a partir desse mecanismo. Aí discutiremos noções
importantes como as de acoplamento estrutural e perturbação, explicitando o mecanismo
circular. No segundo momento, nos centraremos na aprendizagem pensada a partir do
exemplo do aprendiz da flauta. Neste momento aparece na teoria de Varela, a questão do
humano e da experiência. Abordaremos também o trabalho de H.Dreyfus (1998), que
contribui para a discussão. Veremos que pensada como prática, a aprendizagem nos
permitirá distinguir o iniciante do perito. Por fim, analisaremos a aprendizagem pensada a
partir da prática do devir-consciente. A idéia de aprendizagem como cultivo ganhará
importância especial. Enfim, encerraremos o capítulo analisando como o co-engendramento
entre ciência e política marca os trabalhos do autor chileno.
O segundo capítulo será o momento de apresentação e discussão da teoria histórico-
cultural de L.S.Vygotski. Iniciaremos com uma breve apresentação em que
contextualizaremos os trabalhos do autor russo, explicitando a singularidade de sua obra.
Destacaremos, em seguida, a filiação da teoria histórico-cultural ao materialismo histórico-
dialético de Marx. Em função desta filiação, a teoria de Vygotski se afirmará como uma
promessa de síntese no campo da psicologia, procurando reunir as contribuições das
principais escolas de psicologia da época. Desse modo, o gestaltismo e a reflexologia se
constituirão em interlocutores importantes. Há, por parte de Vygotski, uma aposta em uma
possível unificação no campo científico. Unificação esta que se afirma como subsunção
21
(Aufhebung). A filosofia de Marx marcará também o método pelo qual Vygotski estudará
as funções psíquicas. Neste sentido discutiremos como a questão do desenvolvimento é
antes de tudo um método para estudar o psiquismo humano. Analisaremos, então, as
diferenças entre as funções psíquicas elementares e superiores, preparando o campo para
introduzirmos o problema da aprendizagem, que é o nosso foco. Procuraremos demonstrar
que é em função da forma singular de colocação do problema do desenvolvimento, que a
questão da aprendizagem pode surgir. Neste sentido o que está em questão é uma unidade
dialética aprendizagem-desenvolvimento. Assim, analisaremos a aprendizagem em três
pontos que não obedecem a uma ordem histórica. O que estará nos interessando não é um
possível progresso do pensamento vygotskiano, mas, buscar através destes três pontos
contribuições para o entendimento da aprendizagem para além da solução de problemas e
da adaptação a um mundo prévio. Primeiro nos centraremos, com base no exemplo do gesto
indicativo (VYGOTSKI, 1931/2000), na idéia de uma aprendizagem que se faz pelas
mediações. Aqui destacaremos não apenas o mecanismo circular histórico-dialético, mas
também os principais conceitos, como é o caso dos de mediação, “choques” e
internalização. No segundo momento nos centraremos nas contribuições para a
aprendizagem pensada a partir da Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP)
(VYGOTSKI, 1934/2001). Aqui a dimensão processual da aprendizagem será destacada. O
terceiro momento será a ocasião de discussão da aprendizagem pensada a partir da idéia de
vias colaterais (VYGOTSKI, 1927/1997b). Neste momento trabalharemos com os textos
relativos à defectologia, mais especificamente acerca da teoria da compensação. Enfim,
encerraremos o capítulo analisando como também na teoria histórico-cultural a articulação
entre política e fazer científico é fundamental para a compreensão de seu alcance teórico.
O terceiro capítulo será dedicado à construção das ressonâncias entre a abordagem
enativa de Varela e a teoria histórico-cultural de Vygotski. É importante esclarecer que
cada uma delas está inserida em um contexto específico, o que implica modos singulares de
colocar as questões, bem como de resolvê-las. Neste sentido, encontrar ressonâncias não
significa encontrar o igual, apagando as diferenças entre uma e outra concepção, mas
verificar a existência de tendências que indicam um mesmo sentido ou direção. Não
podemos ignorar que Vygotski era um pesquisador do início do século XX. Embora seu
principal problema de investigação fosse saber e explicar como se desenvolve o psiquismo
22
humano (PUZIREI, 2000), sua teoria é anterior à revolução cognitiva (GARDNER, 1996),
sendo portanto, anterior tanto ao movimento cibernético quanto às ciências cognitivas. O
campo com o qual Vygotski dialoga é a psicologia. Do mesmo modo, não podemos
esquecer que Varela era um pesquisador do final do século XX e início do XXI. Sua teoria
situa-se, portanto, num momento quando a ciência vive a ruptura de antigos paradigmas,
abrindo novas possibilidades para o fazer científico. Seu campo de interlocução é o das
ciências cognitivas. Buscaremos compor as ressonâncias sem desconsiderar as
particularidades de cada uma das abordagens. Desta forma, nos centraremos no material
discutido nos capítulos anteriores a fim de examinar em que medida estas abordagens se
aproximam e se afastam, tendo como eixo a questão da construção da cognição e, por
conseguinte da aprendizagem.
A conclusão da dissertação será o momento de realização de um balanço de tudo o
que foi examinado. Analisaremos não apenas aquilo que ficou para nós como sendo as
principais contribuições de cada abordagem ao tema da aprendizagem, mas também o que a
articulação entre Varela e Vygotski nos traz de novidade. Sobre isso nos referimos à aposta
na fecundidade do mecanismo circular para as discussões sobre a aprendizagem. Tal
mecanismo implica a inclusão da política nos estudos de aprendizagem e, possibilita uma
aproximação entre a aprendizagem e a idéia de produção de subjetividades e de mundos.
23
A ABORDAGEM ENATIVA E O PROBLEMA DA APRENDIZAGEM
Este capítulo é dedicado ao exame de como a construção da cognição na abordagem
enativa pode fornecer indicações para uma concepção de aprendizagem distinta das
concepções tradicionais. Estamos particularmente interessados em seu mecanismo. Embora
não exista nesta abordagem uma teoria pronta da aprendizagem, a referência ao “aprender”
comparece nos três momentos da obra de F.Varela: o da autopoiese, o da enação e o da
pragmática da experiência. Dessa forma, seguindo a indicação metodológica de Y.Clot
(1999) parece possível pensar com
Varela um processo de aprendizagem. Procuraremos,
então, examinar as contribuições desse autor para o problema da aprendizagem.
O termo autopoiese vem do grego e significa auto-produção. Humberto Maturana e
Francisco Varela lançam mão dessa noção, na década de 1970, para definir aquilo que
julgam ser a especificidade do vivo, ou seja sua capacidade de se auto-produzir
(MATURANA e VARELA, 1997; 1995). A partir do movimento cognitivista, a teoria da
informação constituiu-se em modelo para o entendimento não apenas da cognição, como
também do vivo e do humano. Desse modo, cognição, vivo e homem, passaram a ser
entendidos e explicados a partir de mecanismos de processamento de informação, ou seja
como máquinas de entradas e saídas (inputs – outputs). Insatisfeito com esta extrapolação e
acreditando que a teoria da informação estava longe de poder dar conta da complexidade do
vivo e de sua cognição, Varela, junto com Maturana criaram a teoria da autopoiese.
Portanto, são as discussões sobre a especificidade do biológico em relação às máquinas que
permeiam a construção desta teoria. A autopoiese é, portanto, um conceito criado no
contexto de uma biologia do conhecimento que se afirma como crítica à teoria da
informação.
A autonomia constitui-se como um conceito de transição entre o momento da
autopoiese, onde Varela está trabalhando com Maturana e, o da enação, quando passa a
trabalhar sozinho. É importante marcar que nesta passagem, Varela vai aos poucos
deslocando seu interesse dos vivos em geral, para o humano. A autonomia, portanto,
representa também a passagem onde, gradualmente, a questão do humano ganha
importância. O conceito de autonomia diz respeito à capacidade de todo o ser vivo de criar
para si suas próprias regras (VARELA, 1989). Varela distingue, então, os sistemas
24
autônomos dos heterônomos, que têm suas regras dadas pelo exterior. O exemplo
paradigmático de sistemas heterônomos seriam as máquinas de entradas e saídas. Como
exemplo podemos citar os programas dos computadores que são inseridos pelos
programadores, e que vão determinar o modo de funcionamento dos mesmos.
A noção de enação constitui um neologismo inspirado no termo inglês enact que
significa trazer à mão ou fazer emergir (MATURANA e VARELA, 1997)5. A teoria da
enação é desenvolvida por F.Varela na continuidade de seus trabalhos, no final da década
de 1980, quando passa a trabalhar separado de H.Maturana. Embora reconheça os avanços
no campo científico possibilitados pelo conceito de autopoiese, em função de sua crítica ao
modelo da representação, Varela ainda a considerava uma alternativa fraca (COSTA,
1993). Para ele era preciso enfatizar mais o aspecto do co-engendramento organismo-meio,
bem como o aspecto da corporificação do conhecimento. Destaca então a idéia de que o
conhecer é em princípio uma ação, onde as formas ou os pólos são apenas efeitos. Neste
sentido, o conhecimento não é representação, mas invenção recíproca e simultânea de si e
do mundo.
A autopoiese poderia acabar conduzindo, segundo Varela, a uma leitura “solipsista”
por não enfatizar suficientemente a natureza circular, co-engendrada do fenômeno da vida e
do conhecer. A postura solipsista ou idealista encontra-se no extremo oposto à postura
objetivista ou representacional e toda vez que evitamos o extremo representacional, o
solipsismo aparece como risco (MATURANA e VARELA, 1995, p.259). O ponto de vista
enativo constitui-se, portanto, para além tanto da postura solipsista ou idealista, quanto da
postura objetivista ou representacional. O não fundamento é a base da enação. Assim, a
enação abarca as questões colocadas pela autopoiese, inclusive seu mecanismo, porém
destaca com maior ênfase a questão da autonomia, ressaltando o não fundamento e frisando
noções como co-engendramento, circularidade e criação simultânea do organismo e do
meio, ou do si e do mundo. Adotar o ponto de vista enativo implica assumir o risco de
pensar sem fundamentos internos ou externos, deixando de lado toda comodidade do
modelo da representação. Neste contexto a idéia da emergência de coerência e de sentido a
5 Em alguns textos esse termo aparece traduzido pela palavra atuação (Varela, Thompson e Rosch, 2003). Atuação como aquilo que é trazido à cena pela ação. Contudo, optamos por utilizar o neologismo enação, uma vez que a palavra atuação em português pode ser confundida com representação, e é justamente contra a representação que a enação se afirma.
25
partir de fluxos dispersos ganha importância. Voltaremos à esta questão ao longo do
trabalho, na medida em que a noção de emergência nos auxilia na compreensão da
abordagem enativa.
A pragmática da experiência refere-se ao último momento da obra de Varela, onde
este irá dirigir sua investigação para o estudo da consciência. Ressaltamos que este
momento deve ser compreendido no contexto de seu percurso. Portanto, é após a crítica à
representação, que Varela vai estudar a consciência. Neste sentido é a dimensão pré-
reflexiva da consciência, mais do que a reflexiva, que atrai seu interesse. O que está em
questão nestes últimos trabalhos é a busca por uma metodologia que dê conta da
especificidade do estudo da experiência. Neste sentido, Varela, Depraz e Vermersch (2002)
lançam mão da idéia de um aprendizado que se faz no caminho (“leaning on the go” ou
“learning on the job”). A metodologia para o estudo da experiência só pode ser encontrada
no próprio estudo da experiência. Desse modo, afirmam que o objetivo da abordagem
pragmática da experiência é descrever uma atividade ou uma práxis, e não criar uma nova
teoria sobre a experiência (Ibidem, p.1-2).
Chamamos atenção para a inflexão produzida no trabalho do autor chileno. No
trajeto que vai da autopoiese à pragmática da experiência não há mudança na forma de
colocação dos problemas que continuam tendo por base as idéias de circularidade que
define a autonomia, bem como de transformação sem direção pré-definida. Contudo há
nestes últimos trabalhos uma aproximação com a fenomenologia e com a filosofia budista
e, o que é mais interessante, o deslocamento de interesse pelo vivo em geral para o domínio
do humano.
1.1 – Abordagem enativa: a terceira via no campo das ciências cognitivas
O campo das ciências cognitivas tem sua origem a partir do movimento cibernético
nos anos de 1940 (DUPUY, 1996), A máquina de Turing, e o computador, representaram
importantes passos na construção desse campo. De acordo com Varela as ciências
cognitivas produziram uma mudança no campo dos estudos da cognição ao construírem
seus conhecimentos de forma atrelada a uma tecnologia. Cito: “O conhecimento se tornou
tangível e inextrincavelmente ligado a uma tecnologia que transforma as próprias práticas
26
sociais que possibilitam aquele verdadeiro conhecimento” (VARELA, THOMPSON e
ROSCH, 2003, p.23)
De acordo com Gardner (1996) e Varela (s.d) isto que chamamos de campo das
ciências cognitivas afirma-se como um híbrido composto por várias disciplinas que vão
desde a engenharia, passando pela economia, psicologia, até a filosofia. Cada disciplina
possui seus próprios interesses, e é de acordo com eles que conduz seus estudos e
pesquisas, construindo dessa forma esse campo heterogêneo. Em função disso, em um
determinado momento, tornou-se possível delinear um quadro das principais orientações
das ciências cognitivas. Varela (Ibidem) aponta a existência de três abordagens que não se
excluem. São elas: o cognitivismo computacional, o conexionismo e a enação.
Para o cognitivismo computacional a cognição é concebida como uma computação
simbólica por regras lógicas, que se realiza de maneira invariante. Neste sentido, conhecer
diz respeito à capacidade que um agente tem de processar informações que vêm do meio
(inputs) e de emitir respostas (outputs) adequadas. O processamento é sempre o mesmo.
Varela explica: “A intuição central por detrás do cognitivismo é que a inteligência –
incluindo a inteligência humana – assemelha-se à computação em suas características
essenciais de que a cognição pode ser efetivamente definida como computações de
representações simbólicas” (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2003, p.55). É
interessante notar como o paradigma cognitivista foi ganhando espaço no campo científico,
passando a fornecer o entendimento do funcionamento cerebral e da cognição humana.
Varela afirma: “A idéia geral de que o cérebro é um dispositivo de tratamento de
informação reagindo de modo seletivo perante os aspectos discriminativos do ambiente
persiste no mundo das neurociências modernas e na idéia que delas tem o público”
(VARELA, s.d, p.41).
A aprendizagem não aparece como questão para o cognitivismo. Todo o
funcionamento cognitivo é atualização de regras previamente dadas. No entanto, em função
de sua hegemonia nos anos de 1960 e 1970, o modelo cognitivista passou a ser adotado
como modelo para o entendimento do funcionamento cognitivo em muitos campos, como
por exemplo, no campo da Educação. Desse modo, a pedagogia passou a entender a
aprendizagem como internalização de representações - a partir dos inputs – que permitem o
sujeito agir adequadamente. Neste sentido, a aprendizagem tomada a partir do modelo
27
cognitivista, não implica alteração no modo de conhecer, apenas garante acumulação de
informações a respeito do mundo. Aprender nada mais é do que representar adequadamente
o mundo através de regras fornecidas por ele.
O conexionismo surge, segundo Varela como uma crítica à concepção cognitivista.
Os primórdios do conexionismo são encontrados nos primeiros anos do movimento
cibernético, nas discussões sobre o feedback e a auto-organização (DUPUY, 1996).
Segundo esta abordagem, não é o computador que fornece o modelo para pensar os
processos cognitivos e o cérebro, mas o cérebro é quem fornece o modelo tanto para pensar
a cognição, quanto para pensar as computações mais complexas. Segundo Varela:
As arquiteturas cognitivas tinham-se distanciado demasiado das raízes biológicas, não porque se deva reduzir o cognitivo ao biológico, mas porque a tarefa mais banal cumprida pelo menor dos insetos, será sempre efetuada mais rapidamente do que por intermédio da estratégia computacional proposta pela ortodoxia cognitivista (Varela s.d, p.45-46)
Neste sentido o conhecimento afirma-se como emergência. O conceito de
emergência, colocado inicialmente pelos conexionistas, opõe-se à idéia defendida pelos
cognitivistas de que a cognição caracteriza-se como um processamento simbólico por
regras lógicas. A emergência afirma-se, então, contra duas idéias que são pilares da
concepção cognitivista: a de que o tratamento da informação é baseado na aplicação
seqüencial de regras lógicas, e a de que a cognição constitui-se como um tratamento
simbólico (Ibidem, p.45). A concepção emergencista, ao contrário, aponta para um
funcionamento não simbólico e distribuído da cognição. A emergência diz respeito a isto
que surge sem uma causa específica – trata-se de fluxos dispersos – e que assume em
determinado momento uma coerência, aparecendo como uma forma distinta. Trata-se agora
de elementos a-significantes, não-inteligentes, que ao se ligarem de uma determinada forma
tornam possíveis a emergência de um certo comportamento cognitivo (Ibidem, p.49). Essas
ligações não são pré-definidas, mas se constituem através de aprendizagem. Portanto é com
o conexionismo que a questão da aprendizagem aparece como problema no campo das
ciências cognitivas. Para os conexionistas a aprendizagem é fundamental na explicação do
funcionamento da cognição.
É importante, contudo, destacar que algumas correntes dentro do conexionimo, as
mais ortodoxas, em geral trabalham com a idéia de um atrator que teria como função
28
otimizar ou direcionar as configurações que surgem a partir do funcionamento distribuído.
Tal idéia decorre da manutenção do paradigma representacional pelos conexionistas. Note-
se que a idéia de atrator mina a força e o alcance que a noção de emergência poderia
assumir. Vincular a idéia de atrator à noção de emergência impede de enxergar neste
processo a produção de novidade como surpresa.
Voltando a questão da aprendizagem tal como concebida pelos conexionistas, eles
referem-se às regras de aprendizagem, por exemplo citamos a regra de Hebb que afirma:
“Se dois neurônios tentarem ativar-se em simultâneo, a sua união é reforçada, se assim não
for, é diminuída” (Ibidem, p.46), ou ainda, conexões já estabelecidas tendem a repetir-se.
Note-se que a aprendizagem não é explicada por regras e representações que orientariam os
comportamentos. As regras garantem que, a cada momento, e em função da situação, uma
certa configuração apareça e um certo comportamento torne-se possível. A configuração
das conexões está intimamente relacionada à história do ser em questão. Portanto, para os
conexionistas o conhecimento não pode ser pensado fora de uma história de aprendizagem.
O conhecimento não é um processar invariante e abstrato, mas apresenta-se momento a
momento, a partir das conexões que são estabelecidas pela aprendizagem.
O modelo paradigmático para pensar a aprendizagem na abordagem conexionista é
o bebê que faz surgir um mundo coerente a partir de fluxos dispersos. Nas palavras de
Varela: “Ficou claro que a forma de inteligência mais profunda e fundamental é a de um
bebê, que adquire a linguagem a partir de emissões vocais diárias e dispersas e delineia
objetos significativos a partir de um mundo não especificado previamente” (VARELA,
2003, p.73). Assim, os conexionistas iniciaram um trabalho de reaproximação entre as
discussões sobre a cognição e as raízes biológicas da vida, que foi continuado e
aprofundado pelos pesquisadores da abordagem enativa.
Embora Varela veja no conexionismo um significativo avanço em relação ao
cognitivismo, tendo inclusive mantido a noção de emergência em seu referencial teórico,
ele considera necessário dar um passo adiante, a fim de recuperar a investigação do sentido
comum da cognição. A crítica de Varela em relação aos conexionistas refere-se a
manutenção da linguagem do modelo da representação. Ainda que os conexionistas
refiram-se a uma representação ativa, ou seja uma representação que envolve a
aprendizagem, eles ficam restritos a idéia de um mundo exterior pré-determinado. Assim,
29
aprender seria resolver problemas colocados pelo mundo (VARELA, s.d). Varela (Ibidem)
e Dupuy (1998) criticam o conexionismo por não ter conseguido ver o alcance
epistemológico de suas pesquisas. É neste contexto que o autor chileno formula a
abordagem enativa que se estabelece como a terceira via para os estudos da cognição, a
partir da crítica ao modelo da representação.
Varela, a partir da abordagem enativa, procura recuperar o sentido comum da
cognição, fazendo ver que o próprio da cognição não é representar um mundo dado, mas
fazer emergir um mundo a partir da colocação de problemas momento a momento. Vale
citar:
Nossa atividade cognitiva cotidiana revela que esta imagem é demasiada incompleta. A faculdade mais importante de qualquer cognição viva é precisamente, em larga mediada colocar as questões pertinentes que surgem a cada momento da nossa vida. Estas não são pré-definidas, mas en-agidas, nós fazêmo-la emergir sobre um pano de fundo, sendo os critérios de pertinência ditados pelo nosso senso comum, sempre de maneira contextual (VARELA, s.d, p.72-73).
A abordagem enativa apresenta-se como alternativa, e não como uma síntese desse
campo, ou como uma forma superior de entendimento. Embora ela se afirme para além do
cognitivismo e do conexionismo em função da crítica à representação, Varela não rompe
totalmente com o conexionismo, compondo com muitos de seus exemplos e conceitos
como é o caso da emergência. Neste sentido ele concorda com os conexionistas em tomar o
modelo do bebê como exemplo paradigmático para pensar a cognição e, como veremos, a
aprendizagem (Ibidem; VARELA, 2003). Sobre a emergência, é importante observar que
Varela, ao trabalhar este conceito na abordagem enativa, ressalta que é preciso desvinculá-
lo da idéia de um atrator responsável pela otimização das formas que emergem. A
abordagem enativa trabalha, portanto, com uma concepção de emergência independente de
preocupações com finalidade ou otimização. Citamos:
O meu argumento é que as propriedades cognitivas emergem dos sistemas vivos independentemente de tais preocupações de otimização. Elas procedem do historial de compensações viáveis que cria regularidades, mas não é evidente que elas possam estar associadas a um único referente (VARELA, s.d).
30
1.2 – Circularidade: uma exigência epistemológica
A questão da circularidade acompanha toda a obra de Varela. Desde os trabalhos em
conjunto com Maturana, onde eles desenvolvem a teoria da autopoiese, passando pelo
momento da autonomia, da enação, indo até os trabalhos relativos à pragmática da
experiência. Trata-se de uma exigência epistemológica, em função da necessidade de
pensar a cognição para além dos extremos subjetivista e objetivista, ou seja, para além do
paradigma representacional. Neste sentido, a noção de co-engendramento, que já está
presente na autopoiese, torna-se chave para esta abordagem.
Assim, a circularidade aparece na abordagem enativa em função de uma certa forma
de colocar o problema da cognição que recusa a representação e que tem por base a
fenomenologia de M. Ponty e a filosofia budista. A intuição fundamental é que todo estudo
da cognição só pode ser realizado a partir da própria cognição. Assim, ciência e experiência
estabelecem entre si uma relação paradoxal, que para Varela está encarnada na idéia de
circularidade. Sobre isso adverte:
Não podemos evitar, por uma questão de consistência, a implicação lógica de que sob esse mesmo ponto de vista quaisquer dessas descrições científicas, de fenômenos tanto biológicos quanto mentais, devem por sua vez ser um produto da estrutura do nosso próprio sistema cognitivo (VARELA, THOMSON e ROSCH, 2003, p.27).
A circularidade opõe-se tanto ao ponto de vista do observador ou posição objetivista
(Ibidem, MATURANA e VARELA, 1995), quanto a posição subjetivista. O ponto de vista
do observador diz respeito à forma como tradicionalmente o cientista coloca-se diante dos
fenômenos a serem estudados. Refere-se a uma atitude desincorporada ou abstrata e
pressupõe uma realidade objetiva à qual se poderia ter acesso através de metodologias em
terceira pessoa. Cito:
Quando nos voltamos para nós mesmos para fazer de nossa própria cognição nosso tema científico, que é precisamente o que a nova ciência da cognição parece fazer, nenhuma dessas posições – a que supõe um observador desincorporado ou a que supõe uma mente desterrada (dis-worlded) – é adequada (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2003, p.22).
31
Por outro lado, a circularidade nos impede de pensar uma posição subjetivista na
medida em que não se trata de partir de um “Eu” já constituido. Justamente a circularidade
chama a atenção para o engendramento do si e do mundo a partir da ação.
Outra questão importante que aparece quando nos propomos a estudar a cognição e
que exige a utilização da lógica circular é o encontro entre as ciências naturais e humanas.
A cognição só pode ser devidamente entendida se levarmos em conta as conseqüências
desse tipo de encontro – biológico e social -, que está na base da nossa constituição.
Segundo Varela:
Quando é a cognição ou a mente que estão sendo examinadas, a recusa da experiência torna-se insustentável, até mesmo paradoxal. A tensão vem à tona, especialmente nas ciências cognitivas, pelo fato de estarem no cruzamento das ciências naturais e ciências humanas. Conseqüentemente, as ciências cognitivas são como Janus, pois olham ambas as vias simultaneamente: uma de suas faces está voltada para a natureza e vê os processos cognitivos como comportamento. A outra está voltada para o mundo humano (ou para aquilo que os fenomenologistas chamam de ‘mundo da vida’) e vê a cognição como experiência (Ibidem, p.30).
Assim percebemos que a idéia de círculos criadores ou de uma circularidade
fundamental marca não só as explicações dos fenômenos estudados, mas a própria estrutura
da teoria. A circularidade é “uma necessidade epistemológica”
(Ibidem, p.27) para a
concepção enativa.
Note-se que a circularidade que está em questão é uma circularidade criadora, uma
circularidade que, ao se fazer, abre-se para a diferenciação. Nas palavras de Varela:
“...círculos viciosos; eles são considerados como aquilo que deve ser evitado. Eu sugiro, ao
contrário, que estes círculos caminham em direção à criação. Em sua aparente estranheza
são a chave para a compreensão dos sistemas naturais e dos fenômenos cognitivos”
(VARELA, 1989, p.19). Sua forma paradigmática encarna-se na produção autônoma do
vivo, ou, em outros termos, em sua autopoiese. A autopoiese, é uma organização dinâmica
que, ao se realizar através da clausura operacional, garante a emergência do vivo e de um
meio correlato. Mas a dinâmica não é primeira em relação ao vivo ou ao seu meio. Trata-se
de uma lógica paradoxal onde não há hierarquia, mas concomitância (Ibidem; DUPUY e
VARELA, 1995).
É em seu caminho em busca pelo começo da cognição que Varela postula a
circularidade. Não existe um lugar em que se possa ancorar a cognição, ela não vem do
32
mundo, mas também não é propriedade de um sujeito. Neste sentido a circularidade aparece
como uma solução possível para pensar o processo cognitivo e, por conseguinte, a
aprendizagem de forma não dicotômica. Não se trata nem de objetivismo e nem de
subjetivismo, nem de um processo natural e nem social mas de um processo circular. De
acordo com Varela, a dialética encarnaria um outro tipo de solução possível para esse
problema:
Hegel com Descartes em mente percebeu o mesmo tipo de aporia na descrição do impasse que todos os filósofos subjetivos enfrentavam na descrição do início (origem). Para lidar com esta dificuldade Hegel inventou a dialética a qual podemos nomear ‘lógica especulativa de aprendizagem no caminho’. No nosso caso levando a fundo o slogan husserliano do ‘eterno iniciante’ é uma questão de nada menos que uma lógica empírico-transcendental de aprendizado no caminho (VARELA, DEPRAZ e VERMERSCH, 2002, p.22-23).
É interessante perceber que aqui a idéia de origem afirma-se como emergência, e
não como gênese. Voltaremos a essa questão no capítulo onde trabalharemos as
ressonâncias entre a abordagem enativa e a psicologia histórico-cultural. Por hora
ressaltamos apenas que embora a abordagem enativa se pergunte sobre o começo da
cognição, ela não se caracteriza como uma teoria do desenvolvimento. Se quisermos fazer a
classificação da abordagem enativa deverá ser como uma teoria emergencista da cognição
(Ibidem, p.156).
1.3 - Aprendizagem na Abordagem Enativa
Ao construírem a teoria da autopoiese sobre o axioma ser = fazer = conhecer
(MATURANA e VARELA, 1995), Maturana e Varela ampliam a noção de cognição,
obrigando-nos a repensar o problema da aprendizagem. Se o ato cognoscente não é algo
que se faz sobre as bases seguras de um ser já pré-suposto, ou de um mundo dado, mas sim
algo que se confunde com a própria criação do ser e do mundo, então o que é o aprender?
E qual é o seu estatuto no domínio do viver?
De acordo com Eirado e Passos (2004) o modo como Varela concebe a cognição
ultrapassa a questão cognitiva, nos colocando diante do problema da existência, ou em
outros termos, nos colocando diante do problema da produção da subjetividade. Na
33
abordagem enativa não há dissociação entre cognição, ser e mundo. Esses três elementos
nascem juntos, em um mesmo movimento. Nas palavras de Maturana e Varela:
Na base de tudo o que diremos está essa constante consciência de que o fenômeno do conhecer não pode ser equiparado à existência de ‘fatos’ ou objetos lá fora, que podemos captar e armazenar na cabeça. A experiência de qualquer coisa ‘lá fora’ é válida de modo especial pela estrutura humana, que torna possível ‘a coisa’ que surge na descrição (MATURANA e VARELA, 1995, p.68).
Assim, pensar a aprendizagem a partir da obra de Varela pressupõe, por um lado,
considerá-la não apenas como uma capacidade do sujeito de representar algo que está dado
no mundo, e por outro, implica um afastamento entre a idéia de aprendizagem e a de
adaptação. Conforme explicitado na citação anterior, não se pode considerar o
conhecimento como captação e armazenamento de fatos que estão dados lá fora. O
conhecimento implica o ser em questão, com sua história - tanto biológica quanto cultural –
que por sua vez vincula-se a existência de um mundo de sentido6. Assim, o aprender se faz
sobre os limites do si e do seu mundo, tornando possível o surgimento ou, em outros
termos, a invenção de outros si e mundo. Note-se que a invenção ou a criação de novos
sujeitos e mundos se faz sobre a base de uma história. Maturana e Varela afirmam: “A
criação é sempre uma nova etapa, mas construída com materiais ‘velhos’” (Ibidem, p.26).
Por outro lado, no que diz respeito à adaptação, é preciso notar que este conceito ganha na
obra do autor chileno um sentido singular. A adaptação é pensada para além da otimização
de formas (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2003). A abordagem enativa não trabalha
com a idéia de um mundo pré-dado ao qual o organismo deveria ajustar-se. Dessa forma, a
adaptação é pensada muito mais como composição ou sintonia do que como adequação ou
ajustamento (SANCOVSCHI, 2003). Portanto, a idéia de um aprendizado que possibilita a
adaptação torna-se sem sentido. Para a abordagem enativa não aprendemos para nos
adaptarmos a um mundo pré-estabelecido, mas aprendemos e neste processo
experimentamos a adaptação.
6 A idéia de mundo de sentido é trabalhada por Varela através das noções de domínio de comportamento e de domínio cognitivo (Maturana e Varela, 1995, p.161-162). Nas palavras de Maturana e Varela: “Nós, seres de carne e osso, não somos alheios ao mundo em que vivemos e a que demos à luz com nosso existir cotidiano” (Ibidem, p.162).
34
É interessante observar que em função da forma singular de colocar o problema da
cognição, a questão da aprendizagem ganha outros contornos, desvinculando-se da idéia de
representação e de adaptação, e aproximando-se da noção de produção de sentido, ou seja
da produção de si e de um mundo correspondente.
Vejamos como através de alguns dos trabalhos de Varela a aprendizagem pode ser
pensada. Voltamos a lembrar que o que está nos interessando aqui é a contribuição deste
autor para pensarmos uma noção de aprendizagem mais ampla, ou seja que não se limite a
idéia de solução de problemas dados, mas que aponte para um movimento de transformação
da cognição. Escolhemos três momentos da obra de Varela para trabalhar a questão da
aprendizagem: o da autopoiese, o da enação e o da pragmática da experiência. Esta
periodização toma como referência respectivamente, três livros: A árvore do conhecimento
(MATURANA e VARELA, 1995), A mente incorporada (VARELA, THOMPSON e
ROSCH, 2003) e On becoming aware (VARELA, DEPRAZ e VERMERSCH, 2002).
Ao acompanhar esse percurso percebemos que as questões vão ganhando nuances e
refinamento. Cada livro, nos coloca diante de novos problemas e de novos desafios. Ao
final deste percurso, procuraremos ter elementos para apontar a contribuição da abordagem
enativa para a redefinição da noção de aprendizagem. Ressaltamos que neste trajeto
buscaremos subsídios para a análise de possíveis ressonâncias entre a abordagem enativa e
a teoria histórico-cultural.
1.3.1 – Sobre o mecanismo autopoiético da cognição: circularidade e co-engendramento
Uma primeira formulação da aprendizagem pode ser pensada a partir do
desenvolvimento da noção de autopoiese. Nesta ocasião Varela propõe pensar o viver como
um processo de auto-produção que se faz sobre os limites do que se é. Esta só é realizada
no encontro com o mundo e com outros seres vivos, portanto, a autopoiese não pressupõe
isolamento, mas sim contato com um coletivo.
Note-se que o mundo ao qual Varela se refere é diferente do meio behaviorista. Para
o behaviorismo o mundo é dado como realidade independente dos organismos. O mundo
35
behaviorista7 é composto por objetos que emitem estímulos. A partir dos estímulos, os
organismos reagem. Caso reajam em conformidade com os estímulos dizemos que os
organismos estão adaptados. Cada estímulo pressupõe certas reações. Trata-se portanto, de
um modelo linear determinista. Para Varela, ao contrário, o mundo só pode ser definido de
modo co-engendrado com os organismos vivos. O mundo não estimula, mas perturba. A
perturbação não orienta, mas desestabiliza. Neste sentido, os efeitos da perturbação não
podem ser previstos. Estas idéias serão esclarecidas ao longo do capítulo.
Maturana afirma que é a aprendizagem o que está em jogo neste movimento de
auto-produção, uma aprendizagem que se confunde com o próprio viver: “Digo que existe
aprendizagem quando a conduta de um organismo varia durante sua ontogenia de maneira
congruente com as variações do meio, e o faz seguindo um curso contingente a suas
interações nele” (MATURANA, 1998, p.31). E continua:
Explicar o fenômeno da aprendizagem vai consistir, em princípio, em mostrar como, do operar do organismo e seu sistema nervoso como sistemas determinados estruturalmente surge o que o observador vê como uma mudança condutal do organismo com as mudanças do meio e contingente em sua interação com ele (Ibidem, p.34).
Assim, propomos pensar o mecanismo circular, como havia proposto a teoria da
autopoiese como um mecanismo de aprendizagem. Neste ponto nos interessa chamar a
atenção para o mecanismo e para a circularidade inerente ao processo.
Para Maturana e Varela (1995) todos os seres vivos são sistemas autopoiéticos, ou
seja, são seres que se organizam de modo a se auto-produzirem. No entanto, existem níveis
de complexidade no mundo vivo. Embora todos os seres vivos sejam sistemas
autopoiéticos, isto é possuem um mesmo mecanismo que os define, existem diferenças de
complexidade que não podem ser ignoradas. Tanto a célula quanto o homem estão
submetidos a uma mesma organização, a um mesmo mecanismo, no entanto a estrutura
humana permite ao homem experimentar situações impensáveis para a célula. Desse modo
Maturana e Varela se referem à existência de sistemas autopoiéticos de primeira, segunda e
talvez até de terceira ordem (Ibidem, p.124; 206). Os de primeira ordem são as células. Os
7 Aqui não estamos trabalhando com o behaviorismo de Skinner. O behaviorismo skinneriano, embora não questione a idéia de mundo dado, introduz a questão do reforço, complexificando um pouco mais o modelo linear estímulo-resposta (S-R).
36
de segunda ordem são os organismos multicelulares, uma vez que são compostos por uma
reunião de células. Neste nível encontram-se os animais e os homens. Os sistemas
autopoiéticos de segunda ordem formam como um todo uma unidade autopoiética, no
entanto, eles são compostos por várias unidades autopoiéticas menores, as células. Os
sistemas de terceira ordem seriam os sistemas sociais, na medida em que são compostos por
uma reunião de seres multicelulares. Neste sentido os sistemas de terceira ordem podem
apresentar-se como uma unidade autopoiética, que por sua vez é composta por unidades
menores, os sistemas de segunda ordem e estes, são compostos por unidades menores, os
sistemas de primeira ordem.
Ao pensar o homem como um sistema autopoiético formado por vários outros
sistemas autopoiéticos (células) e formador de um sistema autopoiético mais abrangente (a
sociedade), Maturana e Varela avançam sobre os limites que definem indivíduo e
sociedade. O indivíduo, seja ele uma célula, um homem ou um sistema social emergem de
uma rede de processos. Portanto, a cognição é pensada não a partir do indivíduo
constituído, mas implica a consideração de sua constituição ou emergência, a partir de uma
rede processual. Melo (2004) propõe a noção de coletivo como forma de superação desta
dicotomia. Célula, homem e sociedade, tratam-se de diferentes coletivos, possibilitados por
diferentes processos. Neste sentido há um coletivo além e aquém do homem que
possibilitam sua existência. Note-se que o social é uma forma de pensar o coletivo.
Passemos agora ao mecanismo autopoiético, entendendo-o como um mecanismo de
aprendizagem. A célula é a menor unidade autopoiética, sendo tomada como exemplo
paradigmático do mecanismo autopoiético (MATURANA e VARELA, 1995). Em função
dos objetivos deste trabalho que não se restringem à questão da aprendizagem, mas que está
buscando também ressonâncias entre a abordagem enativa e a teoria histórico-cultural, será
importante considerarmos as conseqüências trazidas pelo sistema nervoso e pela linguagem
ao mecanismo. Se Varela concebe a presença da cognição em todos os seres vivos,
Vygotski considera que os processos cognitivos são especificamente humanos, na medida
em que são constituídos pelas mediações semióticas, em especial pela linguagem. É
importante observar que para Maturana e Varela (Ibidem), embora o mecanismo básico seja
o mesmo, ou seja trata-se de autopoiese, a entrada em cena do sistema nervoso e da
linguagem complexificam o sistema mínimo, abrindo novas possibilidades para o fazer, o
37
conhecer e o existir do organismo, e é isso que precisaremos analisar. Qual o papel do
sistema nervoso para estes autores, e qual o estatuto da linguagem?
Note-se que não apenas o sistema nervoso e a linguagem imprimem suas marcas ao
mecanismo autopoiético. Na passagem da célula (organismo unicelular) para os organismos
multicelulares dotados de mobilidade, o mecanismo autopoiético passa a ser marcado pela
questão da ação. Na célula o que está em questão não é a ação, mas sim os processos físico-
químicos. Assim, embora seja sempre o mesmo mecanismo, é importante ressaltar que ele
sofre inflexões em função de sua encarnação em diferentes estruturas.
O mecanismo: O primeiro conceito importante para entender o mecanismo autopoiético é o da
clausura operacional. A clausura responde pela invenção dos limites que constituem o vivo
e seu mundo. A partir de uma rede de transformações dinâmicas que ocorrem na “sopa
molecular” de processos físico-químicos torna-se possível a emergência de uma membrana.
Esta cria de forma simultânea o sistema cognitivo e seu mundo (VARELA, 1988). Não
existe mundo sem referência a um sistema, uma vez que eles são constituídos num mesmo
movimento e num mesmo tempo.
Esse mecanismo de emergência de limites, conhecido como clausura operacional
(Ibidem, VARELA, 1989; MATURANA e VARELA, 1995; 1997), é o protótipo da
constituição autônoma do vivo. A clausura é resultado de múltiplos fatores que juntos
possibilitam a criação de limites, definindo não só o organismo, com sua organização e
estrutura, mas seu meio. Um é limite do outro. Desse modo não é possível conceber um
meio absoluto. Antes do fechamento possibilitado pela clausura há apenas uma rede
química fluida, apenas a “sopa molecular”.
Chamo atenção para a singularidade do mecanismo circular em questão. A clausura
não é determinada por um fato especifico, mas é conseqüência de uma multiplicidade de
elementos que, em determinado momento, possibilitam sua emergência. Assim não faz
sentido pensarmos em uma gênese da clausura, trata-se de emergência. Cito:
Em uma unidade constituída por uma clausura operacional, um comportamento coerente e distinto apresenta uma natureza particular: de um lado aparece como uma operação da unidade. De outro quando tentamos examinar sua origem não encontramos nada além de uma interação infinita desta operação. Ela não começa e nem termina em parte alguma. A coerência não é localizada, mas distribuída
38
através de um círculo sempre recomeçado, infinito em sua circulação, mas entretanto finito no momento em que percebemos seus efeitos ou resultados como propriedade da unidade (VARELA, 1989, p.25).
É importante esclarecer que o fechamento significa distinção e autonomia, e não
isolamento. Kastrup esclarece:
A membrana é um limite capaz de manter a unidade em condições de estabilidade relativa, mas trata-se de um limite sempre possível de redefinição e ultrapassamento, já que a própria membrana é plástica e ligada ao meio por relações de osmose, o que assegura o devir permanente da unidade (KASTRUP, 1999, P.122).
De acordo com a teoria da autopoiese é fundamental que uma vez constituído o
sistema, ele esteja em constante interação com seu meio. O conceito utilizado para falar
dessas relações é o de acoplamento estrutural (VARELA, 1988). Os acoplamentos
possibilitam as variações estruturais e o estabelecimento contínuo dos limites. O isolamento
e a rigidez das formas implicariam a morte da autopoiese, portanto a morte do sistema vivo.
A autopoiese é então condição da vida.
Em função da interface com a psicologia, somos forçados a ir além de Maturana e
Varela e afirmar aqui, que em termos psicológicos a interrupção da autopoiese implicaria a
morte da dimensão viva e saudável do sujeito, mas não necessariamente acarretaria sua
morte biológica. Esta observação aponta para uma diferença importante no mecanismo
autopoiético da célula e do homem. Embora esta diferença seja importante para nós, que
queremos pensar a autopoiese no campo da psicologia, para Maturana e Varela (1995), que
são biólogos, não o é. No entanto, em seus últimos trabalhos, Varela, se verá obrigado a
enfrentar estas diferenças, na medida em que estará interessado pelo estudo da experiência
em sua dimensão humana.
É importante não perder de vista que a idéia de autopoiese ou de auto-produção não
exclui a participação do mundo, e dos outros seres vivos. Não se trata de um processo de
“ensimesmamento”, mas de um processo que pressupõe encontros com o meio e com
outros seres autopoiéticos. Estes encontros constituem-se como perturbações no
acoplamento já formado, tornando possível uma redefinição das fronteiras, fazendo
aparecer um novo si e seu mundo correspondente. Aliás, é apenas através dos encontros
com o meio que o movimento autopoiético se afirma.
39
O segundo e terceiro conceitos a serem considerados são os de organização e
estrutura autopoiética. O vivo emerge desde o seu primeiro tempo acoplado com seu meio,
apresentando uma organização mínima autopoiética, que deve manter-se ao longo do
tempo, e uma estrutura variante. O que confere a identidade autopoiética ao sistema é sua
organização, é o modo como seus elementos relacionam-se, e não sua estrutura. A
organização autopoiética é o único invariante no vivo, sua manutenção é a condição para
que ele possa manter-se em variação. Caso ela seja rompida o sistema perde seu
funcionamento autônomo, desintegrando-se.
A estrutura do vivo é a base sobre a qual se farão as variações. A estrutura varia não
só de ser vivo para ser vivo, mas também ao longo da história de um mesmo organismo.
Ela varia não porque existe uma passagem de tempo que permitiria uma maturação, mas
porque o tempo permite ao ser uma história de interações (Ibidem). Afirma-se que o
organismo é determinado estruturalmente pois a sua estrutura presente é a base para as
futuras interações e variações. O vivo é a história de suas variações estruturais com a
manutenção da autopoiese.
Será interessante analisar no capítulo onde trataremos das ressonâncias entre a
abordagem enativa e a teoria histórico-cultural a aproximação entre essa idéia e a noção de
desenvolvimento de Vygotski.
O quarto conceito é o de acoplamento estrutural. O acoplamento diz respeito a
modos de interação estabelecidos entre a estrutura do organismo e a estrutura do meio, que
possibilitam que ambos entrem em variação, em deriva de forma congruente, desde que a
autopoiese do organismo seja mantida (MATURANA, 2001). Os acoplamentos não
estabelecem ligações invariantes, sendo estas sempre temporárias, relativas e locais, que
podem ser problematizadas nos encontros com o meio, incluindo aí o encontro com outros
seres autopoiéticos. A relação estabelecida no acoplamento não pode ser entendida como
adequação ou conformação do organismo ao meio e tampouco como interação entre pólos
pré-existentes cujo resultado seria a síntese dos dois, mas trata-se de interações que criam
pólos distintos. Organismo e meio nascem de um mesmo movimento que garante a eles um
acoplamento, de um em relação ao outro, desde o início. Note-se que o acoplamento
organismo-meio não pressupõe nenhuma mediação entre eles. Trata-se de uma relação
imediata, de uma fina sintonia. A partir de então, no caso da célula, o movimento da vida
40
fará com que ocorram perturbações que colocarão em movimento o organismo e seu meio,
modificando tanto a estrutura do vivo quanto seus acoplamentos. Assim, o vivo, sua
cognição e sua vida são resultado da história de acoplamentos realizados, ou seja são
resultados de uma história de aprendizados. Cito: “A aprendizagem é uma expressão do
acoplamento estrutural, que sempre manterá uma compatibilidade entre o operar do
organismo e do meio” (MATURANA e VARELA, 1995, p.199). As perturbações
constituem, portanto, disfuncionalidades inerentes à funcionalidade do sistema vivo e
cognitivo. Sem elas a vida torna-se rígida e perde aquilo que a define como tal, que é sua
autopoiese.
É importante observar que pensar este mecanismo funcionando em organismos
multicelulares dotados de mobilidade exige a consideração da ação. Assim, o fazer, que no
caso da célula afirmava-se como processos físico-químicos (VARELA, 1988), assume aqui
o caráter de ação. Neste sentido, afirmamos que o meio, assim como o organismo são co-
definidos a partir da ação. Em relação à perturbação, a ação também produz uma inflexão.
A perturbação torna-se possível não apenas em função do movimento da vida, mas a ação
do organismo pode também suscitar perturbações nos acoplamentos antes realizados.
O quinto e último conceito é o de perturbação. Este é concebido como uma
alternativa à idéia de informação, cara às teorias cognitivas e em especial ao cognitivismo
computacional. Ele difere também do conceito de estímulo das teorias comportamentais.
Tanto a noção de informação quanto à de estímulo pressupõem a distinção clara entre
organismo e meio, estes considerados dados antes de qualquer relação. Em função disto, a
única relação possível entre eles será a do tipo estímulo-resposta, input-output. O meio
emite estímulos e o organismo emite respostas adequadas ao estímulo. O meio informa ao
organismo sobre suas características para que esse possa agir de modo adequado. Todo
estímulo ou informação pressupõe uma resposta. Por sua vez, a resposta já está implícita no
estímulo e na informação. Nesse sentido tanto o conceito de estímulo quanto o de
informação seguem um modelo ambientalista, determinista, marcado pela causalidade
linear, portanto previsível. A teoria da autopoiese, por sua vez, trabalha com um modelo
circular inventivo (KASTRUP, 1999).
De acordo com a teoria da autopoiese o meio não informa, ele perturba. Apesar de
falar em uma perturbação do meio, é apenas em relação ao organismo que ela pode ser
41
concebida. Não existe perturbação em si, toda a perturbação precisa ser sentida como tal
pelo organismo. A perturbação não é, portanto, algo sem sentido, mas possui o mínimo de
sentido para que possa ser percebida e estranhada. Maturana e Varela (1995) formulam da
seguinte forma: a perturbação é do meio, mas determinada estruturalmente pelo organismo.
Não que a conseqüência da perturbação seja previsível, mas é apenas a partir da estrutura
do vivo que a perturbação ganhará sentido. A perturbação responde pela desestabilização
dos acoplamentos e das formas estabelecidas, colocando organismo e meio em movimento.
Em havendo perturbação duas possibilidades se colocam: é possível que se
estabeleça uma interação inovadora ou inventiva entre organismo e meio, havendo um novo
acoplamento estrutural, ocorrendo mudanças no domínio estrutural de ambos, uma vez que
eles são co-definidos; a outra alternativa é a de uma interação destrutiva. Após a
perturbação, organismo e meio entram em variação, contudo há uma destruição da
organização minimal, ou seja da autopoiese, rompendo dessa forma a manutenção da vida
(Ibidem).
Apesar da ênfase na invenção, é fundamental considerar a existência de
regularidades e recorrências no viver autopoiético / enativo. Elas são tão importantes para a
vida quanto as perturbações. Caso não existissem, nenhuma vida seria possível. As
regularidades significam a construção de uma história, Maturana e Varela afirmam:
“Dotados ou não de sistema nervoso, todos os organismos, incluindo o nosso, funcionam
como funcionam e estão onde estão a cada instante devido a seu acoplamento estrutural”
(Ibidem, p.156). Sob tal perspectiva, a aprendizagem diz respeito a uma corporificação na
estrutura do sistema autopoiético de sua história de acoplamentos. É devido à recorrência
de certos acoplamentos que o conhecimento é inscrito na estrutura do organismo. E ainda:
“Se as estruturas que tornam possível uma certa conduta entre os membros de uma espécie
se desenvolvem somente se há uma história particular de interações, diz-se que as estruturas
são ontogênicas e que as condutas são aprendidas” (Ibidem, p.198).
A vida está longe de ser um problematizar incessante, ela é feita também de muitas
regularidades. A crítica da abordagem enativa localiza-se na ênfase que as teorias
tradicionais dão às regularidades. Do ponto de vista enativo as regularidades e
estabilizações não são objetivos ou metas, mas aquisições subordinadas à invenção. A vida
que se quer viva deve permanecer aberta às perturbações apesar das regularidades. Aquilo
42
que nos tornamos em função do nosso viver, ou em outros termos, em função de nossos
processos de aprendizagem, as regularidades, nossa história, não constitui um fechamento
completo. O processo de aprender deve nos possibilitar tanto a constituir uma história –
pólo de regularidades -, quanto a reinventar essa história, abrindo para ela novas
possibilidades – pólo invenção.
Isso nos remete à diferença entre os sistema autopoiéticos e os alopoiéticos
(MATURANA e VARELA, 1995), e ainda entre os sistemas autônomos e heterônomos
(VARELA, 1989). A diferença em questão em relação aos sistemas autopoiéticos e
alopoiéticos é que os primeiros, em seu processo de produção, produzem-se a si mesmos,
enquanto os segundos produzem sempre algo diferente de si. Já a distinção entre autonomia
e heteronomia diz respeito, no primeiro caso, a sistemas que em seu funcionar criam para si
suas próprias regras, e no segundo caso, têm suas regras de funcionamento determinadas
pelo exterior. Dessa forma tanto a autopoiese quanto a autonomia pressupõe a manutenção
de uma dimensão processual no engendramento de suas formas. E a alopoiese e a
heterônomia pressupõe um sistema de entradas e saídas, onde o que é produzido se dissocia
do processo de produção. O computador é o exemplo típico de um sistema alopoiético e
heterônomo.
Os computadores, uma vez constituídos, perdem sua dimensão processual. Eles não
possuem a possibilidade de se recriarem a partir das novas informações que recebem. Ao
contrário, os sistemas autopoiéticos e autônomos, como por exemplo os seres vivos e os
humanos, definem-se por produzirem sempre um produto que nunca perde a dimensão
processual (VARELA, 1989, MATURANA e VARELA, 1997, KASTRUP, 1999), estando
sempre se refazendo e se transformando. Neste sentido, afirma-se que as regularidades e as
recorrências são fundamentais para que a vida caminhe estabelecendo novos domínios de
problemas assim como os breakdowns e as perturbações.
A entrada do sistema nervoso:
Sobre o aparecimento do sistema nervoso, Maturana e Varela afirmam: “É para
esses seres vivos, cuja deriva natural levou ao estabelecimento da mobilidade, que o
sistema nervoso adquiriu importância” (MATURANA e VARELA, 1995 p.176).
43
Até aqui tratamos do mecanismo autopoiético - concebendo-o como um mecanismo
de aprendizagem - em seu nível mais simples. O que acontece nos seres multicelulares
dotados de sistema nervoso? Qual o papel do sistema nervoso no processo de
aprendizagem?
A primeira consideração a ser feita é que o sistema nervoso faz parte do organismo,
desse modo, assim como os outros órgãos, participa da dinâmica que possibilita a
determinação estrutural desse organismo. Isso não significa que todos os órgãos sejam
equivalentes. Cada um imprime singularidade ao processo de determinação estrutural. O
sistema nervoso, por exemplo introduz no organismo uma maior plasticidade estrutural.
Vale a citação:
Para cada organismo sua história de interações resulta num caminho específico de mudanças estruturais. Estas, por sua vez, constituem uma história particular de transformações a partir de uma estrutura inicial, em que o sistema nervoso participa ampliando o domínio de estados possíveis (Ibidem, p.158).
Há portanto um afastamento em relação a uma visão mais comum a respeito da
participação do sistema nervoso no processo de aprendizagem. Sobre isso Maturana e
Varela afirmam:
A aprendizagem é uma expressão do acoplamento estrutural, que sempre manterá uma compatibilidade entre o operar do organismo e do meio. Quando nós, como observadores, examinamos uma seqüência de perturbações compensadas pelo sistema nervoso de uma das muitas maneiras possíveis, parece-nos que ele internalizou algo do meio. Mas como sabemos, adotar essa descrição seria perder a contabilidade lógica: seria tratar algo que é útil para nossa comunicação entre observadores como um elemento operacional do sistema nervoso. Descrever a aprendizagem como uma internalização do meio confunde as coisas, pois sugere que na dinâmica estrutural do sistema nervoso há fenômenos que existem apenas no domínio de descrições de alguns organismos capazes de linguagem, como nós (Ibidem, p.199).
Para a abordagem enativa o sistema nervoso não é condição da cognição ou da
aprendizagem, mas seu aparecimento amplia em muito as possibilidades tanto da cognição
quanto da aprendizagem na medida em que permite um acoplamento entre as superfícies
sensoriais e motoras através de uma rede de neurônios que pode apresentar inúmeras
configurações. Desse modo:
A conduta dos seres vivos não é uma invenção do sistema nervoso, e não está associada exclusivamente a ele, pois o observador observará condutas em qualquer ser vivo em seu meio. O que o sistema nervoso faz é expandir o domínio
44
de possíveis condutas, ao dotar o organismo de uma estrutura tremendamente versátil e plástica (Ibidem, p.167).
Ou seja, nos seres dotados de sistema nervoso, a ligação entre o pólo sensorial - vias
aferentes - e o pólo motor - vias eferentes - não é direta, mas se faz mediante uma rede
neuronal, que no caso humano é extremamente complexa.
Aqui a palavra rede ganha uma dimensão especial, pois esta impede pensar numa
linearidade neste processo. Maturana e Varela se valem de uma metáfora para explicar a
rede neuronal:
Basta considerar essa estrutura do sistema nervoso para nos convencermos de que o efeito de projetar uma imagem sobre a retina não é como uma linha telefônica ligada a um receptor. Seria mais como uma voz (perturbação) somada a muitas vozes numa agitada tarde de transações na bolsa de valores em que cada participante ouve o que lhe interessa (Ibidem, p.191).
É importante não perder de vista que o sistema nervoso, ao mesmo tempo em que
participa da determinação estrutural do organismo, ele próprio constitui um todo “fechado”
- clausura operacional - com determinação estrutural, estando também, como todo sistema
autopoiético em contínua mudança estrutural, daí sua plasticidade (Ibidem; VARELA,
1989).
Desse modo, podemos pensar o ser humano como um conjunto de bonecas russas,
uma dentro da outra, que teriam o poder de se afetarem umas às outras. Assim, o homem
constitui um sistema autopoiético, composto por diversos sistemas menores, os órgãos, que
por sua vez são compostos por células. Todos esses sistemas, na medida em que são
autopoiéticos, apresentam determinismo estrutural e seguem, como um todo, o mesmo
mecanismo descrito acima. Note-se que a característica autopoiética do humano não
decorre de ele ser uma reunião de elementos autopoiéticos, mas de ele ser um todo que
funciona segundo um determinismo estrutural. Assim, todo acoplamento, em qualquer
ponto desse sistema afetará a dinâmica do sistema como um todo. Nas palavras de
Maturana e Varela: “Toda interação, todo acoplamento afeta o operar do sistema nervoso
devido às mudanças estruturais que desencadeia nele. Toda experiência particularmente nos
modifica, ainda que às vezes as mudanças não sejam de todo visíveis” (MATURANA e
VARELA, 1995, p.197).
45
Portanto o sistema nervoso, na medida em que se constitui como uma rede que se
interpõe entre o pólo sensorial e o motor, possibilita aos organismos multicelulares uma
ampliação dos acoplamentos e de estados possíveis - é por aí que se deve pensar a
participação do sistema nervoso no processo de aprendizagem. No caso do humano, a rede
não apenas existe, mas é dotada de extrema complexidade, possibilitando inúmeros e
diversos domínios de interação. Em função disto novos fenômenos tornam-se possíveis,
abrindo espaço para novos acoplamentos. É neste contexto que vemos surgir no homem a
linguagem e a autoconsciência. A linguagem e a autoconsciência são portanto,
conseqüências do ser autopoiético do homem. Sobre o aparecimento da linguagem Varela
afirma: “Porque tinha, entre todas as possibilidades, a de emergir. É um efeito de situação.
Isso poderia ter acontecido ou não” (VARELA, 2004, p.8).
É interessante notar que a abordagem enativa trabalha com uma concepção singular
de evolução. Trata-se da deriva natural, que Maturana e Varela explicam da seguinte forma:
A evolução se assemelha mais a um escultor vagabundo que perambula pelo mundo recolhendo um fio aqui, um pedaço acolá, e os combinando de maneira que sua estrutura e circunstância permitem, sem mais razão do que a possibilidade de combiná-las. E assim, enquanto ele vagueia, vão se produzindo formas intrincadas, compostas de partes harmonicamente interligadas, que são produtos não de um desígnio, mas de uma deriva natural (MATURANA e VARELA, 1995, p.149).
A deriva natural afasta-se da idéia de evolução pensada como progresso ou
otimização de formas. Isto implica uma inversão na forma de explicação da vida e da
aprendizagem. Há uma passagem da lógica prescritiva, característica do pensamento
evolutivo, para uma proscritiva. A lógica prescritiva afirma que o que não está permitido,
está proibido, já a proscritiva considera que o que não está proibido, está permitido
(VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2003). Neste sentido o sistema nervoso, o homem, a
linguagem são vistos, não como um aprimoramento, mas como possibilidades viáveis.
O aparecimento da linguagem: novos acoplamentos
Embora Varela não estabeleça um corte entre os humanos e os outros seres vivos,
considera que o humano, em função de sua singular história de acoplamentos possibilitou
que novos fenômenos como a linguagem e a consciência, aparecessem, e passassem a fazer
46
parte de sua forma de ser e estar no mundo. Sobre isso Varela afirma: “O que vale é que o
aparecimento da mente simbólica não é um salto catastrófico, mas sobretudo a continuidade
necessária à encarnação” (VARELA 2004, p.3). Tanto a linguagem quanto a consciência,
em sua dimensão reflexiva, são entendidas por Varela como fenômenos especificamente
humanos (Ibidem, MATURANA e VARELA, 1995).
Conforme argumenta o autor chileno, o surgimento da linguagem no homem pode
estar relacionada às novas formas de vida adotadas por ele, como por exemplo a coleta, a
vida em grupos, as relações interpessoais afetivas, associadas ao colher e compartilhar
alimentos. Neste sentido a “invenção” da linguagem foi uma solução possível para esta
necessidade de viver junto. Dito de outra forma, a linguagem foi uma solução possível para
a vida comunitária, em sociedade. A linguagem possibilitou ao humano tecer uma trama
recursiva de descrições, na qual passou a se constituir. Vale a citação:
Nos insetos, como já vimos, a coesão da unidade social se dá por uma interação química, a trofolaxes. No caso dos seres humanos, a ‘trofolaxes’ social é a linguagem, que faz com que existamos num mundo sempre aberto de interações lingüísticas recorrentes. A partir da existência da linguagem, não há limites para o que podemos descrever, imaginar, relacionar. Ela permeia de modo absoluto toda a nossa ontogenia como indivíduos, desde o caminhar e a postura até a política (Ibidem, p.234).
Podemos pensar que a partir da linguagem ocorre uma ressignificação do ser
autopoiético do homem. Há alguns estudos que apontam a possibilidade de macacos e
chimpanzés conseguirem relacionar-se através de linguagem (Ibidem, p.234 a 243). Sobre
isso Varela não fornece qualquer resposta definitiva, apenas assinala que, ainda que
macacos e chimpanzés possam se utilizar de linguagem, a linguagem humana apresenta
uma especificidade que deve ser considerada. Ela permite a quem opere nela descrever-se a
si mesmo e às suas circunstâncias, de maneira a tornar possível fenômenos como a reflexão
e a consciência. “O domínio lingüístico do homem é muito mais abrangente e envolve
muito mais aspectos de sua vida do que ocorre com qualquer outro animal” (Ibidem, p.233)
Chama a atenção a expressão “operar na linguagem”. A linguagem é um meio, tal
como apresentado acima, com o qual realizamos acoplamentos, e que torna possível o
aparecimento de novos fenômenos, como a consciência. “Trata-se, efetivamente, de uma
deriva cultural em que – como na deriva filogenética dos seres vivos – não há um desígnio,
47
e sim um arcabouço ad hoc que vai se fazendo com os elementos disponíveis a cada
momento” (Ibidem, p.232-233 – grifo nosso).
Ainda sobre o estatuto da linguagem na abordagem enativa, Varela e Flores
esclarecem que ela traz à cena mundos, e não representa um mundo dado:
No espaço cartesiano a linguagem é um instrumento de transmissão de informação de uma mente para outra. Para o ponto de vista ontológico (que é o da abordagem enativa) a linguagem é uma coordenação de ações que traz à mão mundos, que gera as realidades que habitamos. A dimensão básica da linguagem não é a adequação semântica a uma realidade dada, mas atenção e encadeamentos de atos de fala (as declarações, promessas e petições) que constituem o miolo do espaço da vida social humana (Flores e Varela, 2003, p.8).
Ou ainda:
A linguagem permite a geração, sempre mutante, da identidade de um ‘Eu’ que é privado e público, engendrado, não como uma substância ou uma localização cerebral, mas como um estilo de recorrências transitórias dentro de uma rede de conversações narrativas (Ibidem, p.9).
Poderíamos continuar apontando as novidades possibilitadas pela deriva cultural, e
pelas formas singulares de acoplamento da espécie humana. Poderíamos traçar ainda como
essas formas encarnam-se em um ser humano concreto. No entanto, nos parece já ser
possível a partir do que foi apresentado ter uma idéia de como o humano, a linguagem e a
consciência são entendidos na obra do Varela. Trata-se sempre de novos fenômenos
possibilitados por acoplamentos que, por sua vez, abrem novos mundos com novas
possibilidades. O que está na base de tudo é o mecanismo de aprendizagem ou mecanismo
autopoiético apresentado acima. Portanto é importante não perder de vista o encadeamento
desse mecanismo. O que está em questão aqui não é, portanto, um processo de aquisição da
linguagem. Não se trata da colocação do problema a partir do desenvolvimento. Varela está
interessado em explicar como a partir do mecanismo autopoiético a linguagem surgiu, ou
emergiu, como possibilidade, produzindo variações.
Assim, a linguagem, ao aparecer na estrutura autopoiética do homem possibilitou
que ele criasse novos e praticamente infinitos domínios de ação (Maturana e Varela, 1995).
No entanto, para Varela, isto não pressupõe corte entre o domínio humano e os seres vivos.
48
Uma questão importante a ser ressaltada é que embora Varela se refira à linguagem
e a complexificação que esta introduz na forma de ser e conhecer do homem, ele não se
detém nestas questões. A linguagem não é o fundamental da sua teoria, mas sim o fazer ou,
a ação. A linguagem torna-se importante na medida em que constitui uma forma de ação
singular, podendo constituir também um espaço comum de interação entre os homens. Um
outro aspecto importante trazido pela linguagem é a possibilidade de produzirmos
descrições de nós mesmos e de nossas ações. Neste sentido a linguagem faz com que o
fenômeno da consciência se torne uma possibilidade para os humanos.
1.3.2 – O Aprendiz: a aprendizagem no domínio humano
Uma segunda formulação da aprendizagem na abordagem enativa pode ser pensada
a partir do caso do aprendiz. No tópico anterior, através do exemplo da célula (organismo
unicelular), procuramos trabalhar o mecanismo autopoiético. Alí identificamos o
mecanismo circular que nos permite pensar a aprendizagem de uma forma mais ampla,
para além da solução de problemas e da adaptação. Aqui, através do exemplo do aprendiz,
veremos como este mecanismo encarna-se num aprendizado específico. Note-se que no
caso do aprendiz, a aprendizagem já é pensada no domínio do humano e não do vivo em
geral. Comporta, portanto, as singularidades que as histórias de acoplamentos
possibilitaram à espécie humana, como o sistema nervoso e a linguagem. Contudo,
conforme foi visto acima, tanto o sistema nervoso, quanto a linguagem complexificam o
mecanismo, ou seja, permitem outros tipos de interações ou acoplamentos, mantendo-se o
mesmo mecanismo. Trata-se portanto de um caso especial de acoplamentos estruturais e
perturbações.
É interessante observar que ao abordar o domínio humano, Varela introduz em sua
abordagem a temática da experiência. Assim, alguns conceitos, como por exemplo o de
perturbação sofrem algumas transformações. Trabalhar a abordagem enativa no domínio
humano implica considerar não apenas a perturbação, mas a experiência de perturbação.
Neste sentido, Varela lança mão do conceito de breakdown. O breakdown representa a
experiência de ruptura, de quebra, ou ainda de perda de sentido que pode aparecer no
49
interior de uma experiência cognitiva. Tal experiência caracteriza-se tanto por um colapso
(VARELA, 2003), quanto pela possibilidade de emergência de novas experiênias.
Varela trabalha neste momento (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2003) com o
exemplo do aprendiz da flauta e da meditação. A questão que está na base de seu
pensamento aí, é mostrar que corpo e mente não necessariamente encontram-se separados
na experiência. A separação corpo-mente é resultado de hábitos ou de certos tipos de
aprendizagens. E como Varela afirma “esses hábitos podem ser quebrados” (Ibidem, p.42).
Neste sentido, o aprendizado da flauta e, o da meditação aparecem como modelos para
pensar uma outra relação no processo de aprender, que implica um desaprender e que
conduza não a uma atitude abstrata, mas a um saber corporificado. Esta outra relação
envolve um trabalho sobre a atenção e a consciência e pode conduzir ao desenvolvimento
da “reflexão incorporada” (Ibidem, p.45). A reflexão incorporada, nada mais é do que a
reunião de mente e corpo na experiência que permite ao aprendiz estar presente e sensível
às novidades que poderão surgir no processo.
Note-se que para Varela, os hábitos têm a possibilidade de produzir uma segunda
natureza. Às vezes achamos que certas atitudes ou certas dicotomias que utilizamos na
nossa compreensão do mundo e de nós mesmos são naturais, sem nos dar conta de que elas
são também resultados de certas histórias de aprendizagem. Neste sentido, podem ser
desaprendidas.
Sobre o aprendizado da flauta, Varela descreve:
Consideremos o aprendizado da flauta. Mostra-se à pessoa as posições básicas dos dedos, diretamente ou sob a forma de um desenho do dedilhado. Ela então pratica essas notas em diferentes combinações várias vezes até que adquire uma habilidade básica. No início, a relação entre intenção mental e ato físico está bem pouco desenvolvida – mentalmente sabemos o que fazer, mas fisicamente somos incapazes de fazê-lo. Ao longo da prática, a conexão entre intenção e ato torna-se mais próxima, até que, eventualmente, a sensação de descompasso desaparece quase por completo. Alcança-se uma certa condição que, em termos fenomenológicos, parece nem puramente mental nem puramente física; ela é, ao contrário, um tipo específico de unidade mente-corpo. E, é claro, existem muitos níveis de interpretações possíveis, como se pode ver pela variedade de flautistas virtuosos (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2003, p.45).
Vemos, através da descrição que o desafio para o aprendiz é conseguir, ao longo do
processo de aprendizado, afastar-se de uma atitude abstrata ou desincorporada que Varela
aponta como sendo um hábito. O processo de aprendizagem pressupõe que ao final o
50
aprendiz consiga estabelecer uma relação consigo e com o que foi aprendido de presença
plena, tornando-se sensível as nuances do processo. Esclarecemos que a expressão
“presença plena” é uma referência ao budismo, que conforme já mencionamos, compõe
uma das bases teórico-filosóficas da abordagem enativa. A presença plena refere-se a uma
atitude de atenção ao presente, implica um “estar aí”. Assim, o destino do aprendiz não é o
saber sobre algo, mas o saber fazer algo. O destino do aprendiz é a realização de um
acoplamento. Por acoplamento entende-se uma relação sem mediações de representações
ou regras fornecidas a priori. O acoplamento refere-se, assim a uma relação íntima ou uma
fina sintonia que não pressupõe mediação. Este acoplamento não é dado, mas é conquistado
ao longo do processo de aprendizagem.
Por exemplo, em relação ao aprendiz da flauta, afirmamos que ele aprendeu a tocar
esse instrumento apenas quando estabelece com este objeto uma fina sintonia, ou um
acoplamento que garante um fluir do movimento sempre aberto às imprevisibilidades que
poderão surgir e com as quais deverá compor. A analogia portanto para pensar esse
processo é a de afinar um instrumento onde existe uma justa medida que não é nem muito
frouxa e nem muito justa (Ibidem, p.45). O que está em questão em qualquer aprendizado é
portanto a aquisição desta justa medida ou, em outros termos, do acoplamento, que permite
ao aprendiz deixar fluir suas ações, compondo com o contexto. Note-se que diferente da
célula, este acoplamento é para o aprendiz uma conquista. O acoplamento é resultado de
um processo que envolve a passagem do abstrato – das regras – para o corporificado. Este
processo não se faz sem rupturas, perturbações ou breakdowns. Lembramos que por
breakdown entende-se a experiência de problematização no seio da ação ou do fazer, que
possibilita a emergência de novas relações no aprender. O resultado desse acoplamento
aparece na conduta, que se apresenta como precisa e graciosa. Uma imagem que pode
ajudar a pensar isto é a da bailarina, que após um longo período de ensaios e exercícios
consegue realizar os movimentos mais difíceis com graça e precisão que chegam a parecer
fáceis para o espectador. Dessa forma uma outra possibilidade da aquisição de hábitos,
refere-se ao desenvolvimento da atenção ao presente, ou em termos budistas à presença
plena:
Podemos desenvolver hábitos nos quais o corpo e a mente estejam plenamente coordenados. O resultado é um controle que não é apenas conhecido pelo próprio
51
indivíduo [...], mas que é também visível para os outros – por sua precisão e graça, nós facilmente reconhecemos um gesto motivado por total consciência. Tipicamente, associamos essa atenção com as ações de um especialista, como um atleta ou um músico (Ibidem, p.44).
O aprendiz é aquele para quem o aprendizado afirma-se como uma prática, um
fazer que implica dedicação e repetição, sem contudo abdicar da reflexão ou da
consciência. No entanto reflexão e consciência ganham contornos singulares.
É importante não perder de vista que, em função da interlocução com a
fenomenologia, a consciência adquire um estatuto especial. Nesta direção, Varela distingue
entre consciência pré-reflexiva e reflexiva. A consciência reflexiva só é possível em função
do aparecimento da linguagem, na medida em que é apenas por meio da linguagem que a
autodescrição tornou-se possível (VARELA, 2004). No entanto esta é apenas uma
dimensão da consciência. Existe outra, na qual vivemos a maior parte dos nossos dias, que
é a pré-reflexiva ou não reflexiva. Nas palavras de Varela:
A reflexividade é algo absolutamente crucial e a grande mutação surgiu com o aparecimento da linguagem no homem. Contudo, temos problemas quando tentamos ligar a consciência a essa capacidade reflexiva, sem nos darmos conta do enorme background que representa a experiência. Alguns pesquisadores utilizam a expressão ‘consciência primária’ para designar a consciência não reflexiva. É interessante, porque na vida cotidiana noventa por cento da experiência é primária, não reflexiva. Caminha-se, anda-se de metrô, pode-se até ter pensamentos sem que haja reflexão (Ibidem, p.6).
Assim quando Varela propõe que o aprendizado pressupõe reflexão e consciência,
não significa que seja necessária uma consciência reflexiva, ou seja, um saber sobre si.
Algumas vezes o próprio aprendizado proporcionará que se chegue a uma consciência
reflexiva, e é justamente isto que está em questão na prática do devir-consciente que será
trabalhada no próximo tópico (VARELA, DEPRAZ e VERMERSCH, 2002). Note-se que
este saber sobre si, ou consciência reflexiva não é algo dado, mas sim algo que se altera em
função do aprendizado. Na medida em que a experiência de si é alterada, também o é a
experiência que esse si tem do mundo. Daí podermos, mais uma vez, afirmar que o
aprendizado contribui para a invenção de si e do mundo e, portanto, não se limita a ser um
processo adaptativo de solução de problemas dados. Já em relação ao tipo de reflexão que
comparece na aprendizagem, Varela explica que se trata de uma dimensão da reflexão que
não é abstrata, não é sobre o processo de aprender, mas caminha junto com o processo, em
52
sintonia com ele. Portanto não é uma reflexão sobre a experiência, mas que se dá na
experiência. A reflexão é, ela mesma, uma experiência. Varela esclarece:
O que estamos sugerindo é uma mudança na natureza da reflexão de uma atividade abstrata desincorporada para uma reflexão incorporada (atenta) aberta. Por incorporada queremos nos referir à reflexão na qual corpo e mente foram unidos. O que essa formulação pretende veicular é que a reflexão não é apenas sobre a experiência, mas ela própria é uma forma de experiência – e a forma reflexiva de experiência pode ser desempenhada com atenção/consciência (VARELA THOMPSON e ROSCH, 2003, p.43).
Neste sentido, esta concepção de aprendizagem não se confunde com a concepção
behaviorista, pautada no mecanismo linear estímulo-resposta. A reflexão, ainda que numa
dimensão pré-lingüista, possibilita que o aprendizado seja conduzido para além dos limites
da habilidade. Cito:
Quando a reflexão é feita dessa forma, ela pode interromper a cadeia de padrões de pensamentos habituais e preconcepções, de forma a ser uma reflexão aberta – aberta a possibilidades diferentes daquelas contidas nas representações comuns que uma pessoa tem do espaço da vida (Ibidem, p.43).
Tal forma de conceber a aprendizagem situa-se na contramão da maior parte das
teorias filosóficas (Dreyfus, 1998) e psicológicas que acreditam que o aprendizado caminha
na direção de uma abstração onde o perito ou o expert é alguém que tem seu
comportamento guiado exclusivamente por regras ou representações. O expert segundo a
abordagem enativa não é aquele que está no mundo guiado por representações e regras, mas
alguém que, a partir de sua atuação, possibilita a criação de um mundo de sentido.
Dreyfus afirma:
Deve-se estar pronto para abandonar a idéia tradicional segundo a qual um principiante começa por casos particulares para, em seguida, na medida em que ele progride, se liberar por abstração e interiorizar regras cada vez mais sofisticadas. Pode ser que seja precisamente o contrário: a aquisição de uma habilidade consistiria em passar de regras abstratas a casos particulares (Ibidem, p.306).
A contribuição de H.Dreyfus possibilita um melhor entendimento disto que Varela
chama de corporificação do conhecimento. Dreyfus distingue cinco etapas no processo de
aprendizagem que vão do principiante ao perito. Os exemplos com os quais trabalha são o
53
do aprendiz automobilista e do aprendiz do xadrez. No entanto continuaremos trabalhando
com o exemplo do aprendiz da flauta.
Principiante: Freqüentemente o aprendizado começa com a decomposição pelo
instrutor ou professor da tarefa a ser realizada. São apresentados os traços gerais e
acontextuais que o principiante poderá reconhecer mesmo sem possuir experiência. Por
outro lado, são fornecidas as regras gerais e abstratas para lidar com a situação. Voltando
ao exemplo do aprendiz da flauta trata-se do momento em que se mostra ao aprendiz as
posições básicas dos dedos.
Principiante avançado: A medida em que o aprendiz começa a praticar, ele vai se
deparando com situações concretas e com os limites das regras que lhe foram transmitidas.
Estas situações concretas possibilitam ocasiões para que o aprendiz discrimine outros
componentes que são significativos para, por exemplo tocar bem um instrumento como a
flauta. Desse modo o aprendiz enriquece sua experiência. Este é o momento em que o
flautista pratica as notas em diferentes combinações várias vezes, até que adquire uma
habilidade básica.
Competente: Neste momento do aprendizado o aprendiz já possui uma experiência
bastante aumentada. Inúmeros são os aspectos aos quais é sensível. A fim de possibilitar
uma conduta eficiente é preciso aprender a realizar um plano de ação. Criam-se certas
regras que são agora fruto da experiência e que devem ser levadas em consideração na
ação. Em relação ao aprendizado da flauta, este momento mostra-se na inicial dissociação
entre intenção mental e ato físico. Nas palavras de Varela: “No início, a relação entre
intenção mental e ato físico está bem pouco desenvolvida – mentalmente sabemos o que
fazer, mas fisicamente somos incapazes de fazê-lo” (VARELA, THOMPSON e ROSCH,
2003, p.45).
A proficiência é a penúltima etapa. Esta se faz pela conquista de uma nova
percepção, em função da competência adquirida. De repente novos elementos ganham
sentido, impondo uma mudança em relação às antigas regras e prioridades. O perito não age
por regras, mas decide caso a caso o que fazer com base em sua experiência. Muitas vezes
não tem consciência (no sentido reflexivo) de porque tomou tal ou qual decisão, apenas
decide de modo imediato. Note-se que esta imediatidade implica um longo processo, não se
trata de reflexo. No aprendizado da flauta este é o momento em que a conexão entre
54
intenção e ato torna-se próxima, até que a sensação de descompasso desaparece quase por
completo, e parece para o observador que flautista e flauta estão unidos num fluir que
lembra uma dança.
Ao colocarmos o problema da aprendizagem a partir do aprendiz, algumas questões
novas surgem e merecem ser pensadas. A primeira, conforme foi apontada acima, é que o
acoplamento, ou seja, a relação imediata, aparece como uma conquista que é ela própria
resultado de uma aprendizagem. A segunda é que o aprendiz, assim como o bebê do
exemplo trabalhado no início do capítulo, constituirá um mundo de sentido a partir de
fluxos dispersos. Neste sentido, pensar a aprendizagem como uma relação sujeito objeto é
insuficiente. O processo de aprendizagem produz mundos e sujeitos a partir de uma
dimensão processual. A terceira e última consideração a ser feita é que pensar a
aprendizagem a partir do aprendiz faz aparecer um tipo de relação que no mecanismo
autopoiético não estava contemplada que é a relação ensino-aprendizagem. Aqui vemos
aparecer na teoria de Varela uma dimensão social e intersubjetiva na aprendizagem. Parece
que pensar a aprendizagem no domínio humano nos força considerar a questão do ensino.
Além disso, considerar a relação ensino-aprendizagem torna possível distinguir etapas no
processo de aprendizagem que não são estágios invariantes, mas modos diferentes de se
relacionar consigo e com o mundo, até que se chegue a uma relação de acoplamento direto
e imediato. Note-se que aí não está o fim da aprendizagem, mas sim o grau mais alto da
relação que pode se estabelecer consigo e com o mundo num processo de aprendizagem.
1.3.3 – A pratica do devir-consciente: contribuições para a aprendizagem
Através do último trabalho de Varela vemos a terceira formulação para a questão da
aprendizagem na abordagem enativa. Aí, o biólogo chileno junto com a filósofa N.Depraz e
com o psicólogo P.Vermersch desenvolvem a prática do devir-consciente (becoming
aware) (VARELA, DEPRAZ e VERMERSCH, 2002). Esta prática afirma-se, por um lado,
como uma metodologia para o estudo da experiência em primeira pessoa. Neste sentido tem
por objetivo complementar as tradicionais metodologias de segunda e de terceira pessoa
(VARELA e SHEAR, 2000). A idéia é que é apenas pela combinação das diferentes
metodologias que se pode compreender a experiência. Por outro lado, a prática do devir-
55
consciente surge como uma prática de aprendizagem e de subjetivação8. Ou seja, na prática
do devir- consciente o que está em questão também é o estabelecimento de uma certa
relação a si que se torna possível a partir de uma relação de aprendizagem. Assim, a
aprendizagem envolve um trabalho que implica a modificação da experiência,
transformando tanto a forma de experimentarmos o mundo, quanto a forma de nos
experimentarmos. Nas palavras dos autores: A prática do devir-consciente “implica a
pessoa como um todo uma vez que será uma questão de trabalhar sua própria auto-reflexão,
nos detalhes de sua própria experiência” (VARELA, DEPRAZ e VERMERSCH, 2002,
p.101).
Como a aprendizagem não pode ser pensada fora de um contexto, estes autores
propõem sete exemplos – que não são os únicos possíveis, mas que têm a ver com a história
de cada um deles - para pensar e desenvolver a prática do devir-consciente. São eles:
entrevista de explicitação, meditação, visão esterioscópica, oração do coração, sessão
psicoanalítica, sessão de escrita e iniciante no curso de filosofia. A partir destes diferentes
contextos Varela, Depraz e Vermersch procuram extrair o que seria o ciclo básico da
prática do devir-consciente. A partir dos diferentes exemplos, chegam à formulação de que
o ciclo básico é composto por duas fases: a epochè e a evidência intuitiva. A epochè refere-
se ao método de redução inspirado na fenomenologia de Husserl. Este método implica a
“colocação entre parênteses” de qualquer julgamento ou pré-concepção a respeito do
mundo. Dessa forma a epochè ou método de redução fenomenológica diz respeito à
suspensão de nossa atitude natural, ou seja de nossos preconceitos “realistas” a fim de que
possamos nos encontrar com a experiência. Varela, Depraz e Vermersch chamam atenção
para o fato de que a epochè envolve também um trabalho sobre a atenção, englobando três
movimentos: a suspensão da atitude natural, a redireção da atenção do exterior para o
interior e, o “deixar vir” (letting go), que envolve uma mudança na qualidade da atenção, da
atenção que busca para a atenção que encontra (Ibidem, p.24-25).
A noção de consciência que está na base do trabalho dos três autores tem por
inspiração a fenomenologia. Ela não se restringe à consciência reflexiva (saber sobre si),
8 Em função dos objetivos e limites desta dissertação, não nos deteremos na questão metodológica envolvida na prática do devir-consciente. Estaremos, portanto interessados no desenvolvimento da idéia da prática do devir-consciente como uma prática de aprendizagem e de subjetivação.
56
mas é composta por uma dimensão pré-reflexiva. Na fenomenologia a distinção que se faz
não é entre consciência e inconsciente, mas entre consciência reflexiva e pré-reflexiva.
Trata-se de uma distinção entre a consciência que pressupõe a linguagem e outra que
prescinde dela. A consciência pré-reflexiva é uma dimensão da consciência em relação à
qual não possuímos um saber prévio. Ela é composta de experiências opacas, pré-refletidas,
etc. Note-se que esta dimensão pré-reflexiva faz parte da cognição, sendo um elemento
importante para pensarmos a cognição em sua dimensão processual e de transformação. O
objetivo da prática do devir-consciente é acessar, através de um aprendizado, essa dimensão
pré-reflexiva da consciência fazendo “deixar vir” (letting go) à consciência clara aspectos
antes desconhecidos. É importante ressaltar que acessar a dimensão pré-reflexiva da
consciência é, na realidade, acessar uma dimensão coletiva e processual em nós. O ‘Eu’ ou
o ‘Si’ são apenas efeitos emergentes dessa rede :
Se você realmente quer chegar próximo do entendimento do que significa ser um sujeito, é melhor entender o que é esse gerador constante do que se trata o sujeito – uma vez que ele não é uma entidade estável, sólida, uma vez que ele não está dentro da cabeça, uma vez que ele não é apenas linguagem. Ele não é nenhuma dessas dimensões, mas sim está de algum modo numa figura de múltiplos níveis de emergência, mas é sempre frágil (VARELA e SCHARMER, 2000, p.10).
Nos interessa aqui realizar um exame de algumas questões envolvidas no
aprendizado da prática do devir-consciente, de modo a podermos contribuir para a
formulação de uma noção de aprendizagem na abordagem enativa. No primeiro tópico
vimos a questão do mecanismo, em seguida analisamos a aprendizagem pensada no
domínio humano e neste terceiro momento destacaremos a discussão da noção de um
aprendizado que se faz no caminho (“learn on the going” ou “learn on the job”) e que
envolve o cultivo de uma certa atitude em relação a si e ao mundo.
A idéia de que aprender é algo que se faz no caminho do fazer ressalta o aspecto
circular e indeterminado do processo de aprendizagem. A aprendizagem é, então, concebida
mais como um processo, do que como uma atividade de solucionar problemas. Dessa forma
desloca-se a discussão da aprendizagem de um referencial linear de resolução de
problemas, ou de tarefas pré-definidas para outro, onde o que está em questão é a
circularidade e a realização de um processo sempre inacabado. A aprendizagem deixa de
ser pensada em termos de processo e produto. Em função da circularidade, os produtos não
57
perdem sua dimensão processual podendo ser constantemente afetados e transformados por
ela. Uma conseqüência importante é que assim, deixamos de poder nos referir a um início e
a um fim do processo de aprender. Onde começa e onde termina um processo que é
circular?
Varela, Depraz e Vermersch referem-se à aprendizagem como uma prática que
envolve tanto um antes quanto um depois. Trata-se de um processo contínuo que acontece
tanto “rio acima” (upstream), quanto “rio abaixo” (downstream). Ressaltamos que afirmar
um antes ou um depois, fazer a distinção entre “rio acima” (upstream) e “rio abaixo”
(downstream), não é o mesmo que falar de um início e um fim do processo de
aprendizagem. Antes e depois, “rio acima” e “rio abaixo” dizem respeito a marcações
temporais que tomam como referência a sessão. Sobre a sessão, os autores explicam:
Uma sessão é um elemento de uma prática social incorporada, isto é, sedimentada e reativada dentro das instituições, significações e esforços que a causam e a fazem tornar-se parte integrante de um laboratório, de um curso de treinamento para pesquisadores, ou tema de teses acadêmicas (VARELA, DEPRAZ e VERMERSCH, 2002, p.97).
A sessão diz respeito, portanto, ao momento do fazer, do treino ou da prática
propriamente dita. No entanto, o que lógica circular faz ver é que embora a aprendizagem
aconteça na prática, ela se estende para além dela, não se limitando a uma solução de
problemas dados. Embora o aprendizado implique a prática, ele não se limita a ela. Antes:
“O aprendizado tem sua própria lógica temporal, na qual você está sempre à frente de você
mesmo” (Ibidem, p.98). Continuamos aprendendo quando, após a sessão, paramos para
falar ou refletir sobre o processo, seja sozinho, seja junto com um professor ou treinador.
Dito de outra forma:
A lógica temporal única do aprendizado, que extrai sua força de sua verificação incessante e de sua própria práxis, significa que o gesto de devir-consciente nunca cessa de se auto-antecipar quando está verdadeiramente no trabalho. Assim, cada nova sessão abre para um novo aprendizado e, não obstante, permanece embebida do que você obteve na sessão anterior (Ibidem, p.98-99).
Este falar e refletir é ao mesmo tempo o momento “rio abaixo” (downstream) da
sessão que passou, quanto o momento “rio acima” (upstream) da sessão que virá. Note-se
58
que este antes e depois são fundamentais para a aprendizagem, sendo considerados parte
dela.
É neste sentido que Varela, Depraz e Vermersch afirmam que a aprendizagem
pensada como uma prática que se faz no caminho, é marcada por uma dupla temporalidade:
a da sedimentação e enraizamento e, a da novidade e surpresa (Ibidem, p.99). Sedimentação
e enraizamento dizem respeito à repetição das sessões, a prática, ao treino. A idéia é que a
repetição é essencial para que se desenvolva uma sensibilidade capaz de acolher as
experiências de breakdown. Kastrup explica: “O sentido do treino é criar um campo estável
de sedimentação e acolhimento de experiências afetivas inesperadas, que fogem ao controle
do eu” (KASTRUP, 2005, p.6). Por sua vez, as experiências de breakdown trazem a
surpresa e a novidade nos colocando diferentemente no processo circular. Assim, aprender
não se resume à aquisição de conteúdos ou habilidades por um sujeito já constituído, mas
envolve um trabalho sobre si, em outros termos, envolve o cultivo.
A aprendizagem pensada a partir do cultivo revela uma dimensão paradoxal. A idéia
de cultivo implica trabalhar sobre algo que já estava aí, produzindo com este trabalho algo
novo. Assim aprender a prática do devir-consciente é cultivar uma certa experiência que já
possuímos. Sobre essa idéia:
Os cantores não precisam criar seus próprios aparatos sonoros, mas eles certamente necessitam criar, com base neste aparato, o hábil instrumento que lhes permite cantar. Os pianistas não precisam construir mãos para tocar, mas levam anos criando as mãos de um pianista (VARELA, DEPRAZ e VERMERSCH, 2002, p.100).
O aprendizado do devir-consciente envolve o cultivo de uma certa atenção, através
da prática da redução (epochè). Ultrapassa, portanto, o plano do desempenho e da ação
sensório-motora: “O problema da redução é que você não está apenas aprendendo uma
habilidade sensório-motora (embora a redução seja isso também), mas está cultivando a
habilidade consciente de mudar da atitude natural para a suspensão e redireção” (Ibidem,
p.99).
Também neste último trabalho de Varela, o que está em questão é um aprendizado
pensado no domínio humano. Vemos aparecer questões não tratadas por ocasião do
mecanismo autopoiético, como é o caso da necessidade de um engajamento voluntário no
59
processo de aprender. É preciso que o sujeito se engaje na atividade a fim de que consiga
suspender sua atitude natural e redirecionar sua atenção. Cito: “Você deve mudar
voluntariamente sua atenção do exterior para o interior, para o simples acolhimento e
escuta” (Ibidem, p.31). Conforme advertem os autores: “Algumas vezes é bastante difícil
passar da nossa atividade cognitiva cotidiana, a qual na maioria das vezes está trancada no
mundo que nos rodeia. Mas não se preocupe: isso pode ser feito” (Ibidem, p.31). Dessa
forma, algumas vezes a ajuda de um mestre, professor ou treinador pode ser fundamental.
Nas palavras de Varela:
Os seres humanos não são espontaneamente dotados desse processo (abandonar a atitude natural). Assim a mediação social é absolutamente fundamental. Você pode dizer que isso não é nenhuma surpresa, sendo essencial para a linguagem e assim por diante. É também essencial para outros valores e para a aprendizagem social (VARELA e SCHARMER, 2000, p.8).
Este tipo de aprendizagem pode se fazer ou não sobre uma relação mestre-aluno,
isto é, através de uma relação intersubjetiva. Contudo, o papel do mestre não é o de
conduzir o aluno em direção à apreensão de um determinado conteúdo, mas direcioná-lo a
uma nova forma de se posicionar em relação a si e ao mundo. Em outros termos, o mestre é
aquele que ajudará o aluno no processo de aprendizagem a experimentar-se diferentemente,
abrindo a possibilidade para que novos mundos surjam, assim como novas subjetividades.
Este é um processo para o qual não existem resultados antecipáveis, e onde os resultados
em termos de desempenhos não são a questão mais importante. Por exemplo, - usando um
dos exemplos fornecidos pelos autores – no caso de um iniciante do curso de filosofia,
saber o que Descartes, Kant, etc. disseram é importante, mas será que este é o resultado
principal deste processo?
O mestre não é aquele que sabe a resposta, mas sim aquele que adquiriu mestria em
determinada tarefa, através de sua prática, podendo fornecer ao aluno alguns pontos que
servirão de balizadores em seu caminho. Assim, por exemplo, no caso da visão
estereoscópica, Varela, Depraz e Vermersch afirmam: “Você tem a ajuda de um professor
que não apenas viu (as figuras se juntarem), mas ele é alguém que adquiriu uma mestria
estável sobre esse processo, e pode, assim, fornecer apontamentos sobre o que você deverá
fazer” (VARELA, DEPRAZ e VERMERSCH, 2002, p.46). Já no caso do papel do
60
professor na sua relação com o aluno num curso de filosofia, os autores afirmam que ele
ajuda o aluno no processo de escolha do assunto, através da orientação da reflexão. Para
tanto, ele estimula discussões entre o aluno e o resto da classe, intervindo ocasionalmente.
E ainda: “O professor encaminha o processo problematizando uma questão ou texto. Você
(aluno) escuta e toma notas. O objetivo do professor é provocar uma resposta em você,
mas, a princípio ela permanece não expressada” (Ibidem, p.60). Desse modo podemos
afirmar com os autores que o mestre é alguém que guia sem dar respostas (Ibidem, p. 102).
Ele acompanha o aluno em seu caminhar, mas aquilo que o aluno vai encontrando, - o que
ele acessa no caminho e que passa a constituí-lo - é de responsabilidade do aluno. Neste
sentido é que se afirma: “Você só será um aprendiz se sujar as mãos: o aprendizado no livro
não substitui o fazer por si” (Ibidem, p.97). É apenas no fazer, na prática concreta que o
inesperado pode acontecer. O professor acompanha, mas quem faz é o aluno. Desse modo,
não existe aprendizagem sem experimentação, sem a prática. Note-se que mesmo no caso
de um aprendizado teórico a questão da experimentação e da prática comparecem como
essenciais. Voltamos ao exemplo do aprendiz de filosofia, é apenas usando os pensadores,
pensando e experimentando com
eles, que o aprendizado se efetiva. Aprender é mais do
que reprodução, é produção. Na entrevista de explicitação, técnica criada por P. Vermersch
(1994) cujo objetivo é acessar a experiência em processo, e não seu conteúdo - não o que se
pensa ou imagina que se faz, mas sim o que se faz - o entrevistador pode formular
perguntas ao aluno tendo em vista explicitar o processo empregado em seu fazer. Citamos:
A experimentação mostra que em escolas ou no treinamento profissional a maioria das pessoas irá responder ‘eu não sei’ à pergunta ‘como você fez isso?’. A principal dificuldade para os entrevistadores é evitar que as pessoas reflitam dessa forma onde elas só podem responder aquilo que já sabem e dessa forma ficarem presas naquilo que elas acreditam sobre a forma que fazem as coisas (Ibidem, p.28).
Em função dessa forma de colocar o problema da aprendizagem, como algo que se
define no caminho, vemos modificarem-se não apenas a relação mestre-aluno, mas também
a relação do sujeito com o objeto a ser conhecido e do sujeito com ele mesmo. De modo
mais radical, essa outra forma de pensar a aprendizagem nos força a repensar as dicotomias,
na medida em que elas não mais funcionam como definidoras do processo de conhecimento
61
e nem de aprendizagem. Aprender não é captar algo já dado, não se trata de uma atividade
de recognição. Ensinar, por sua vez, não é transmitir um saber pronto:
Queremos enfatizar o fato de que tal capacidade está aberta a todos. Ainda assim, apesar de dado a todos, não é dado no sentido de que você teria apenas que sair e comprá-lo. Necessita de um esforço real a fim de ser alcançável, mas, novamente, cada um de nós pode realmente fazê-lo (Ibidem, p.100).
Aprender não é apreender algo pronto e acabado, mas envolve esforço e prática, em
outros termos envolve um cultivo. Esta idéia, a nosso ver, deve ser a base de qualquer
processo de aprendizagem que privilegie a criação.
A aposta em um aprendizado que se faz no caminho implica acolher a
indeterminação e a transformação. Neste tipo de relação de aprendizagem que se encontra
para além da recognição, é inevitável a transformação do mundo e de nós mesmos. Neste
sentido os autores referem-se a uma aposta ética como aquilo que sustenta o engajamento
neste tipo de aprendizado.
A aposta ética refere-se ao estabelecimento de uma certa atitude no encontro com o
mundo que pressupõe o abandono do “preconceito realista”. Cito: “Suspensão dos
preconceitos ‘realistas’ que definem que o que aparece para você é o verdadeiro estado do
mundo, essa é a única forma de poder mudar a forma de prestar atenção na experiência”
(Ibidem, p.25). Em outro momento os autores sugerem: “Você deve romper com a ‘atitude
natural’” (Ibidem, p.25). Esta atitude possibilita experimentar um estranhamento ou, em
outros termos, experimentar uma “zona de silêncio provisória e relativa” (Ibidem, p.41) e,
assim, deixar vir novos conhecimentos, transformando a si e ao mundo. Note-se que aqui
aparece a questão de uma dimensão coletiva no processo de aprender que não é óbvia.
Trata-se do acesso ao coletivo, ou à dimensão processual que nos constitui ou o acesso a
nossas virtualidades.
Aprender implica também desaprender. A aprendizagem não é só aquisição de algo,
mas é também abandono tanto de uma atitude realista e objetivista, quanto “ensimesmada”
e subjetivista. Afirmar que aprender implica desaprender não significa abandonar nossa
história. Somos quem somos em função de nossa história e é somente com ela que o
aprendizado torna-se possível. Não é rompendo com a cultura e com a tradição que um
aprendizado se faz, mas compondo tanto com a cultura quanto com a tradição. Apenas no
62
interior de uma tradição ou cultura teremos a possibilidade de experimentar os breakdowns,
as surpresas que poderão nos conduzir para além de nós mesmos.
1.4 – Política e fazer científico
Conforme foi possível perceber ao longo deste capítulo, a questão política atravessa
toda a obra de Varela. Desde a colocação das questões, passando pelos conceitos até a
aposta na possibilidade de transformação de nós mesmos e do mundo. Assim, a
indissociabilidade entre o fazer científico e a política é um aspecto importante da obra desse
autor. É sobretudo através das entrevistas que Varela concedeu ao longo de sua vida, que
nos damos conta da importância de tal relação para o entendimento do alcance de sua obra.
Note-se que o que está em questão aí é a consideração não apenas da política em seu
sentido maior - a política de um país -, mas também uma de uma política epistemológica
que se concretiza na colocação dos problemas e na forma de resolvê-los. Esta relação
indissociável entre política e fazer científico, conforme veremos, também está na base da
teoria de Vygotski.
Em entrevista concedida a Rogério Costa, em 1992 (COSTA, 1993), Varela
apresenta um interessante panorama de como suas idéias foram sendo gestadas em parceria
com seus companheiros, com as teorias científicas e com o cenário político do Chile da
época. Varela fala do início de seu trabalho como cientista nos anos de 1965/1966. Relata
que em princípio o problema que lhe interessava era formulado ainda de forma bastante
difusa como problema de mentalidade. Fala da influência que seu professor H.Maturana
exerceu sobre ele, fazendo-o ver que na neurobiologia o problema filosófico e
epistemológico não estavam dissociados. Refere-se aos anos de 1970 e a sua insatisfação
com o paradigma do sistema nervoso como processador de informações, dominante na
época. Relata:
Nesse momento eu retornei ao Chile muito entusiasmado com o projeto socialista de Salvador Allende e, então pela primeira vez, sinto que houve uma ruptura epistemológica, para falar em termos de filosofia da ciência. Essa ruptura se deu com o trabalho que fiz com H. Maturana, já como amigos, que foi o de pensar o problema do conhecimento (Ibidem, p.78-79).
Goleman acrescenta:
63
Em 1970, Francisco recusou uma oferta de emprego em Harvard para assumir um cargo na Universidade de Santiago – mudança motivada, em parte, pela eleição de Allende, a quem Francisco, ele mesmo de tendências esquerdistas, apoiava. Foi uma época de esperança e abertura no Chile, com um socialismo igualitário que prometia uma nova ordem social e econômica. [...] O otimismo do momento também se expressava na abertura de pensamento no clima da universidade (GOLEMAN, 2003, P.306).
É neste momento que Varela e Maturana concebem a noção de autopoiese.
“Autopoiese como a forma mínima de um ser vivo definir-se a si mesmo” (COSTA, 1993,
p.79). Note-se que a noção de autopoiese é indissociável da idéia de autonomia, que foi
desenvolvida posteriormente por Varela (VARELA, 1989). E aqui vem a passagem da
entrevista onde o co-engendramento entre ciência e política é evidenciada:
Ao mesmo tempo, havia todo o fenômeno que se passava no Chile e, sinceramente, creio que não seria possível o repensar da autonomia se eu não estivesse nessa situação de contexto político-social. Caso eu estivesse nos EUA, como queria um dos meus professores, receio que nada disso teria se passado. Isso foi muito interessante, porque não acredito que teria tido coragem de fazer essa ruptura de pensamento senão porque havia todo esse contexto, esse movimento popular (COSTA, 1993, p.80).
Com esta fala Varela exemplifica o que mais tarde formulou como a circularidade
do cientista reflexivo, ou seja que o fazer científico não se dá de modo desencarnado, mas
se faz sobre um “background” que não exclui a estrutura do sistema cognitivo do cientista
(VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2003).
1.5 – Contribuições da abordagem enativa ao tema da aprendizagem: algumas sínteses
Em um primeiro momento tomamos o mecanismo circular autopoiético para pensar
o mecanismo da aprendizagem. Assim, a aprendizagem passou a ser concebida para além
das tradicionais dicotomias que caracterizam este conceito. Aprender é mais do que o
estabelecimento de uma relação sujeito-objeto ou de uma relação sujeito-mundo. Sujeito e
objeto são sempre co-engendrados. A idéia de co-engendramento é fundamental para o
entendimento do mecanismo autopoiético e revela-se bastante fecunda para pensar a
aprendizagem. Para a autopoiese, a ação ou o fazer é primeiro em relação aos pólos. Assim,
transpondo essa idéia para a aprendizagem, o aprender como um processo que produz tanto
64
o aprendiz como aquilo que é aprendido ganha destaque. A aprendizagem começa pela
ação.
O mecanismo circular, tal como apresentado no desenvolvimento da teoria da
autopoiese impede a consideração, tanto de um mundo dado, quanto de um sujeito pré-
suposto. Sujeito e mundo são co-engendrados, um define-se somente na relação com o
outro.
Os conceitos de acoplamento estrutural e o de perturbação revelaram-se importantes
nas discussões sobre a aprendizagem. A partir da ação emergem sujeito e mundo. Estes
apresentam um acoplamento inicial sobre o qual outros se farão. Cada acoplamento produz
variações na estrutura do organismo, e conseqüentemente altera tanto o organismo quanto o
seu mundo. Assim, somos o resultado de uma história de acoplamentos. Note-se, a partir
desta idéia que a aprendizagem ganha um caráter corporificado. No processo de aprender,
produzimos variações na estrutura, em outros termos, produzimos um corpo. A noção de
perturbação é fundamental na realização da história de acoplamentos. Cabe a perturbação
colocar problemas aos acoplamentos já estabelecidos, gerando movimento e possibilitando
novos encontros, e por conseguinte a possibilidade de novos acoplamentos. Portanto,
acoplamento e perturbação não podem ser pensados de forma dissociada. Sem o
acoplamento, a vida torna-se um problematizar incessante, não possibilitando a criação de
regularidade e de história. Por outro lado, sem as perturbações, a vida torna-se rígida.
Aprender implica, assim, uma dimensão acoplamento e uma dimensão perturbação.
Sobre o conceito de perturbação é importante ressaltar que ele surge como uma
alternativa à noção de informação, no campo das ciências da cognição, e no campo da
psicologia ele constitui-se como uma alternativa ao estímulo da teoria behaviorista.
Em um segundo momento, trouxemos para a discussão sobre a aprendizagem o
humano. Vimos como as perturbações, os acoplamentos e as variações estruturais implicam
em formas diferentes de experimentarmos o mundo e a nós mesmos. Dessa forma, pensar
com
Varela a aprendizagem no domínio humano pressupõe a consideração do tema da
experiência. A aprendizagem ao mesmo tempo em que produz modificações na
experiência, é modificada por ela.
Chamou-nos atenção, nesta ocasião, a idéia defendida por Varela de que as
tradicionais dicotomias que caracterizam o pensamento ocidental são resultados de certos
65
hábitos ou de certos tipos de aprendizagens. Assim, por exemplo, a separação corpo-mente
que atravessa a psicologia e as ciências cognitivas, ou ainda, a separação sujeito-objeto que
atravessa a psicologia cognitiva e, por conseguinte os estudos sobre a aprendizagem, são
resultados de certas aprendizagens. Varela defende, então que como todo hábito, essas
dicotomias ou separações, podem ser quebradas. Em outros termos, elas podem ser
desaprendidas. Assim, ao incorporar o tema da experiência à aprendizagem, passamos a
poder considerar também o desaprender como parte de um processo mais amplo de
aprendizagem.
Através do exemplo do aprendiz da flauta observamos uma mudança interessante
nos conceitos de acoplamento e de perturbação. O acoplamento, entendido como uma
relação imediata ou direta, aparece nesta ocasião como uma conquista no processo de
aprendizagem. No caso do humano a relação imediata apresenta-se como uma conquista
que se efetiva através da imersão na dimensão contextual da prática. Trata-se do abandono
das regras e das representações. No processo que vai do iniciante ao perito (DREYFUS,
1998), o aprendiz da flauta experimenta diversas relações com a flauta, porém o
acoplamento só é obtido quando flautista e flauta estabelecem entre si uma fina sintonia que
se revela como um fluir da conduta. A perturbação, por sua vez, aparece no humano, como
experiência de breakdown. O breakdown pode ser sentido pelo sujeito como uma
experiência de perda de sentido, a partir da qual podem advir novos sentidos. Trata-se de
uma experiência de quebra ou de bifurcação. No caso do aprendiz da flauta essas
experiências aparecem durante o movimento progressivo de imersão na dimensão
contextual do aprendizado. O breakdown aparece como a surpresa naquilo que é repetição.
É interessante observar que quando Varela começou a trabalhar a aprendizagem no
domínio humano, ele fez aparecer a figura do professor ou do mestre. A aprendizagem
concebida no domínio humano parece, então, envolver um aspecto intersubjetivo e social.
Assim, considerar a aprendizagem no domínio humano implica a consideração também da
dimensão do ensinar.
No terceiro momento trabalhamos a aprendizagem a partir do aprendizado da
prática do devir-consciente. Aí, duas questões nos chamaram atenção: a primeira, refere-se
a circularidade e, a segunda, que está relacionada a primeira, refere-se à idéia de cultivo. A
aprendizagem pensada a partir da prática do devir-consciente aparece por um lado como
66
um processo circular que se faz no caminho. Portanto não possui um início e um fim bem
delimitados. E por outro lado, apresenta-se como uma prática de cultivo. O cultivo revela
um aspecto paradoxal: cultivamos algo que já estava lá, mas nesta atividade produzimos o
novo.
A circularidade e o cultivo chamam atenção para a dupla temporalidade que marca o
processo de aprender: a da sedimentação ou enraizamento e a da novidade ou surpresa.
Note-se a semelhança entre os pares enraizamento-surpresa, acoplamento-perturbação e
acoplamento-breakdown. O acoplamento refere-se, portanto, à dimensão de enraizamento
ou de sedimentação da aprendizagem. No entanto a aprendizagem não pode ser apenas
sedimentação, é constituída também por uma dimensão de surpresa e inovação, que
aparece, nos trabalhos de Varela, através da noção, num primeiro momento de perturbação,
e num segundo momento, de breakdown e, num terceiro momento, de surpresa. Assim,
aprender pressupõe tanto acoplamentos quanto breakdowns, tanto enraizamento quanto
surpresa, tanto sedimentação quanto novidade. Estas idéias, junto com os exemplos
escolhidos para trabalhar a aprendizagem e, a circularidade são, talvez, as principais
contribuições da abordagem enativa para a temática da aprendizagem.
67
A PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E O PROBLEMA DA
APRENDIZAGEM
A teoria histórico-cultural será analisada a partir principalmente dos trabalhos de
Vygotski. Com isso não excluímos as contribuições de colaboradores e comentadores – que
muitas vezes são fundamentais, inclusive em função dos problemas de tradução. Tais
problemas devem-se principalmente a questões políticas que perpassam a obra desse autor.
Vygotski construiu sua teoria sob a inspiração da filosofia marxista (materialismo histórico
e dialético) tendo sido durante muito tempo alvo de censura. Conforme aponta J.Glick
(1997), A.Alvarez e P.Rio (1997), embora Vygotski tenha morrido em 1934, muitos de
seus textos só foram publicados e tornados conhecidos recentemente – década de 1960, nos
EUA, e década de 1970, no Brasil. Mesmo as traduções mais antigas, como por exemplo, a
primeira versão do livro Pensamento e Linguagem para o inglês, em 1962, não permitem ao
público de fato conhecer a obra do autor russo, uma vez que no processo de tradução
muitas passagens foram omitidas, especialmente aquelas relacionadas ao materialismo
histórico-dialético (BEZERRA, 1999; DUARTE, 2001).
Hoje, contudo, vamos, aos poucos, tendo acesso a melhores e mais completas
traduções. Como exemplo, podemos citar as traduções de Teoria e método em psicologia
(1999), e O desenvolvimento psicológico na infância (2003), realizadas por Claudia
Berliner; e as traduções de Psicologia da Arte (2001), e A construção do pensamento e da
linguagem (2001), realizadas por Paulo Bezerra. Há uma preocupação por parte de
tradutores e de alguns comentadores de tentar apreender os trabalhos de Vygotski em toda a
sua complexidade. Com relação ao trabalho dos comentadores, isto que estamos chamando
de apreensão da obra de Vygotski em sua complexidade, nem sempre produz consenso.
Uma das dificuldades diz respeito ao mecanismo dialético que está na base de todo o seu
pensamento.
Na tentativa de esclarecer as peculiaridades da posição vygotskiana, comentadores
como F.Newman e L.Holzman (2002), N.Duarte (2001), L.Sève (1999), B.Schneuwly
(1999) e P.Bezerra (1999) dedicam parte de seus trabalhos a explicitar e explicar a dialética
intrínseca à concepção histórico-cultural, de modo a evitar reduções ou simplificações
indevidas.
68
Neste cenário, a idéia da realização de uma exegese completa do pensamento
vygotskiano ou da apresentação de sua teoria como um sistema fechado e coerente torna-se
não apenas difícil, mas um contra-senso. Entretanto há muito a ser descoberto da obra desse
autor russo. Neste capítulo examinaremos como a construção da cognição aparece na teoria
histórico-cultural, tomando como foco a questão da aprendizagem. Estamos especialmente
interessados no exame de seu mecanismo de funcionamento. Nosso objetivo é pensar com a
teoria vygotskiana contribuições para uma discussão sobre um processo de aprendizagem
que não se restrinja à solução de problemas ou à recognição. Assim como Varela, Vygotski
não nos fornece um conceito pronto de aprendizagem, no entanto é pensando com
ele
(CLOT, 1999) que poderemos avançar.
Vygotski é um autor cuja obra ultrapassa os limites do momento histórico em que
foi concebida, sem contudo deixar de pertencer ao seu contexto histórico-cultural (Glick,
1997). Ao mesmo tempo em que sua obra é marcada pelos acontecimentos e debates de sua
época, ela carrega uma potência que nos permite ver nele, ainda hoje, novidades. Para
Glick: “Seus textos [de Vygotski] parecem transcender sua localização histórica e parecem
falar diretamente a nós sobre temas que são do aqui e agora” (Ibidem, p.vi).
Esta posição é compartilhada por A.Zanella (2001), que afirma:
Vygotski apresenta uma obra marcada pelos acontecimentos de sua época, pelos debates e polêmicas que caracterizavam o pensamento científico de então e um léxico igualmente datado, o que apresenta para os leitores contemporâneos um grande desafio: entender suas contribuições considerando essa condição histórica e resgatando o que há de contemporâneo e inovador em sua obra (Ibidem, p.15-16).
Foi através da psicologia do desenvolvimento que Vygotski se tornou conhecido, no
entanto, contemporaneamente, ele está sendo relido em outros domínios. O livro
organizado por Y.Clot (1999) oferece uma boa amostra. Sem dúvida a contribuição de
Vygotski para o campo da psicologia da criança é notável; no entanto, seus textos estão
longe de se limitarem a esse domínio. Por outro lado, de acordo com Clot, a concepção de
psicologia com a qual Vygotski trabalha acomoda-se mal nas fronteiras que a história dessa
disciplina traçou entre psicologia experimental, cognitiva, social e clínica.
Quando Vygotski se interessa pelo desenvolvimento é tanto o dos conceitos quanto das emoções. Quando ele procura explicar os movimentos da consciência
69
é do ponto de vista do inconsciente e inversamente. Quando ele insiste sobre as determinações sócio-históricas da aprendizagem é para compreender a singularidade do desenvolvimento pessoal. Portanto seu olhar sobre a vida subjetiva interior, ele a encontra, transformada e posta em cena, nas relações sociais externas entre os sujeitos (CLOT, 1999, p.9).
No Brasil, a maioria das publicações sobre a obra desse autor tem sido realizada na
interlocução com o campo da educação (MAINARDES e PINO, 2000). O presente trabalho
pretende contribuir para um alargamento do campo de interlocução dos trabalhos de
Vygotski, explorando sua interface com o domínio das ciências cognitivas, em especial
com o trabalho de F.Varela.
2.1 - Uma promessa de síntese no campo da psicologia
Vygotski escreve seus trabalhos na primeira metade do século XX, preocupado com
a constituição de uma psicologia científica. Neste sentido, a preocupação com a questão
metodológica comparece como um problema fundamental. Era preciso não abrir mão do
que considerava próprio da psicologia - a mente e a consciência.- mas estudá-los de modo
que pudesse ser reconhecido pela ciência da época.
No texto El significado histórico de la crisis de la psicología (1927/1997a),
Vygotski parte da idéia de que há uma crise neste campo que se manifesta pela existência
de diferentes metodologias e, por conseguinte de diferentes psicologias. “A
psicologia” não
existia, mas precisava ser inventada. O que existiam eram diversas psicologias, que
poderiam ser reunidas, em função de seus embasamentos teórico-metodológicos, em duas
grandes correntes: a materialista, ou naturalista - que interpretava os fenômenos segundo
princípio de causalidade, mantendo basicamente o mesmo tipo de conexão e a mesma linha
de sentido para todos - e a idealista – que interpretava seus fenômenos concebendo-os como
atividades espirituais e orientadas para um objetivo, isentas de qualquer conexão material
(Ibidem, p.352).
Para Vygotski, a metodologia é o modo através do qual a filosofia participa do fazer
científico. Segundo suas palavras:
A metodologia é a alavanca por meio da qual a filosofia dirige a ciência. As tentativas de exercer essa direção sem metodologia, de aplicar diretamente a força
70
sem alavanca no ponto de aplicação – desde Hegel até E.Meuman – dá lugar a que a ciência se torne impossível (Ibidem, p,388).
Dessa forma, o método não é neutro, mas implica um posicionamento teórico-
filosófico. Em outras palavras, diríamos que a metodologia pressupõe também uma política,
pois não há discurso neutro. Conforme explica Vygotski:
Os naturalistas acreditam que se libertam da filosofia quando a ignoram, mas não são mais do que escravos, prisioneiros da mais detestável filosofia, composta por uma mistura de concepções fragmentárias e carentes de sistema, uma vez que os investigadores não podem dar um passo sem pensar, e o pensamento exige definições lógicas (Ibidem, p.337).
Considerando a existência de crise na psicologia, evidenciada pela presença de
múltiplas abordagens teóricas, muitas delas dissonantes e antagônicas, Vygotski examina
teorias que, ao se constituírem de modo distinto desses extremos, poderiam apontar para a
resolução desse problema. Denominou esses empreendimentos de sistemas de terceira via,
onde localizou a teoria da gestalt, o personalismo e a psicologia marxista.
As três escolas estão unidas pela convicção comum de que a psicologia como ciência não é possível nem sobre a base da psicologia empírica9, nem sobre a base do behaviorismo, e que existe um terceiro caminho que está mais além desses dois caminhos e que permite levar a cabo a psicologia científica sem renunciar a nenhuma de suas colocações, mas unindo-as em um todo (Ibidem, p.363-364).
É através do conceito de estrutura que Vygotski vê no gestaltismo uma abertura para
pensar a terceira via. A estrutura é um conceito psicofísico que reúne tanto o aspecto
funcional quanto descritivo. Neste sentido, através dele, o gestaltismo poderia reunir corpo
e psique, e assim escapar dos extremos. Contudo, conforme analisa Vygotski, ao submeter
as estruturas às lei da física, o gestaltismo acabou por cair no pólo da psicologia científico-
natural (Ibidem, p.364-365).
O personalismo - teoria que surge das investigações de psicologia diferencial, cujo
principal representante é W.Stern - segue o caminho contrário, caindo no pólo idealista. A
princípio o personalismo teria possibilitado à psicologia pensar a personalidade, conceito
9 Vygotski nomeia psicologia empírica a psicologia elementarista associacionista de Wundt. Em alguns momentos, Vygotski refere-se a ela como psicologia empírica subjetiva. O que parece estar em relevo neste tipo de nomeação é um reconhecimento desta psicologia como uma prática científica legítima, como uma prática de experimentação. Neste sentido a psicologia empírica não se confunde com o behaviorismo (Vygotski, 1931/2000, p.49-50).
71
que para Vygotski é fundamental para se estudar e compreender o comportamento. Mas
esse conceito acaba perdendo a sua força ao abarcar todos os tipos de individualidades,
incluindo não apenas o homem, mas também os animais, plantas e suas partes (Ibidem,
p.365).
Já a psicologia marxista, na medida em que tem por base a dialética, poderia apontar
para uma solução de terceira via. Contudo, ela falha nesta missão por se manter ainda em
um plano abstrato. De acordo com Vygotski esta psicologia que nasce e se desenvolve em
solo russo, constitui uma aplicação abstrata da teoria marxista, considerando apenas o
aspecto da lógica dialética e desconsiderando o aspecto histórico. Note-se que menos do
que um sistema fechado, a psicologia marxista reúne diversos autores, em sua maioria
russos, que procuraram aplicar à psicologia a filosofia marxista. Como exemplo Vygotski
cita dentre outros, os nomes de K.N. Kornílov e de Yu.V. Frankfurt (Ibidem, p.366).
É interessante constatar que após ter afirmado pertencerem à terceira via a teoria da
gestalt, o personalismo e a psicologia marxista, Vygotski analisa-as procedendo em seguida
a sua crítica. Essas teorias tentaram de alguma forma unir os dois caminhos (materialista e
idealista), contudo acabam subordinando um ao outro e recaindo em um dos dois pólos.
Assim, a verdadeira terceira via, encarnada pela psicologia histórico-cultural, apresenta-se,
como uma síntese (COLE e SCRIBNER, 1998) daquilo que vinha se fazendo no campo da
psicologia científica, tendo como base filosófica o materialismo histórico-dialético de
Marx. Cito: “Nossa tarefa não consiste em absoluto em diferenciar nosso trabalho de todo o
trabalho psicológico passado, mas em uni-lo num só conjunto sobre uma nova base com
tudo que foi estudado cientificamente pela psicologia” (VYGOTSKI, 1927/1997a, p.405).
No entanto, ao contrário da psicologia marxista que procurava em Marx uma teoria
psicológica, a psicologia histórico-cultural tinha no marxismo uma inspiração. Sobre isso
Vygotski adverte:
Há que saber o que se pode e o que se deve buscar no marxismo [...] o que precisamos encontrar em nossos autores é uma teoria que ajude a conhecer a psique, mas de modo algum a solução do problema da psique, a fórmula que contenha e resuma a totalidade da verdade científica (Ibidem, p.390).
E ainda:
72
O que sim pode ser buscado previamente nos mestres do marxismo não é a
solução da questão, e nem mesmo uma hipótese de trabalho (porque estas são obtidas sobre a base da própria ciência), mas o método de construção [da hipótese – R.R.]. Não quero obter sem trabalho, pescando aqui e ali algumas citações, o que é a psique, o que desejo é aprender na globalidade do método de Marx como se constrói a ciência, como enfocar a análise da psique (Ibidem, p.391 – grifo do autor).
Chamamos atenção para a originalidade na forma de colocação do problema do
método na teoria vygotskiana. Sabendo ver na metodologia um problema, Vygotski não se
furtou em discuti-lo e avançar no sentido de uma formulação inovadora, sem se abster das
questões epistemológicas. O texto La consciencia como problema de la psicología del
comportamiento (1925/1997), é um exemplo da postura adotada em relação à questão
metodológica e ao problema da ciência. A idéia é que a psicologia, apesar de se querer
objetiva e de precisar atender a certos critérios de cientificidade, não pode abandonar o seu
objeto de estudo por excelência, que é a consciência. A questão passa a ser como estudar a
consciência cientificamente. Segundo Clot (1999), Vygotski poderia ter escrito como
G.Canguilhem (1973) que a psicologia tem necessidade de conhecimentos objetivos, mas
que uma pesquisa que perde de vista seu objeto não é, de modo algum objetiva. O próprio
Vygotski reconhece que:
Na criação e na investigação científica, a colocação correta de uma pergunta não é um ato de menor importância do que a elaboração da resposta adequada, e exige muito mais responsabilidade. A imensa maioria das investigações psicológicas modernas anota com sumo cuidado e exatidão a última fração decimal da resposta a uma pergunta formulada erroneamente em sua base (VYGOTSKI, 1927/1997a, p.293).
O método da teoria histórico-cultural é fundado na dialética marxista. Ela atravessa
toda a teoria, embora não seja uma mera aplicação da dialética marxista à teoria histórico-
cultural. Conforme a citação anterior, Vygotski quer apreender o método marxista em sua
totalidade, para a partir de então construir sua teoria, levando em consideração as
singularidades de seu campo.
A dialética, em seu sentido moderno, nasce com Hegel. Este pensador considera que
as oposições existem, não apenas na natureza, mas também no pensamento, e que estas
oposições não são simplesmente externas, entre termos, mas são intrínsecas a um mesmo
termo (“identidade de contrários”). No pensamento hegeliano tal oposição recebe o nome
de contradição. Neste sentido a contradição dialética diferencia-se da oposição mecânica.
73
De acordo com Sève (1999), a contradição dialética pressupõe de início, como conteúdo
essencial, a “unidade indissolúvel dos contrários” e, em seguida, é posto em cena o
“trabalho do negativo”. Cabe ao trabalho do negativo o papel motor na circularidade
dialética. Cito:
A contradição do idêntico e do diferente, por exemplo, não é uma inerência estática de um negativo (o diferente) em relação a um positivo (o idêntico), mas sobretudo uma dinâmica negação da negação (aqui, a diferenciação do idêntico) onde se opera seu deslocamento (diferenciação, o idêntico torna-se determinado) (Ibidem, p.222).
Deste modo, o movimento dialético comporta quatro momentos: o imediato inicial,
a mediatização com a qual ele faz par, seu redobramento em mediatizante e o novo
momento no qual se resume todo o processo (Aufhebung, que é traduzido para o português
às vezes como síntese, superação, subsunção ou suspensão). Ao entender o movimento
dialético dessa forma, torna-se equivocadas as leituras da dialética como a tríade tese,
antítese e síntese. Neste último tipo de leitura perde-se o essencial que é o “incessante ato
produtivo da negatividade em cena na contradição, até que haja a subsunção.” (Ibidem,
p.223).
Para Sève, embora haja muitas concepções que se dizem dialéticas, apenas aquelas
que contemplam em suas explicações a questão da unidade dos contrários e do trabalho do
negativo são dignas de receberem tal nomeação. Neste sentido, tanto Hegel quanto Marx
trabalham com a dialética, ainda que esta compareça de forma singular nestes dois autores.
Hegel trabalha com uma “dialética genética” e Marx com uma “dialética apropriativa”
(Ibidem).
Em função da perspectiva idealista que atravessa a obra de Hegel, onde o
movimento do pensamento possui um modo de proceder universal que produz todo um
sistema de essencialidades puras da Lógica, a dialética hegeliana acaba sendo marcada por
uma orientação genética. A metáfora aí é a do engendramento em cadeia a partir da
semente, ou seja, um processo circular posto em cena por uma necessidade interna que o
orienta até um fim. Lembramos aqui a citação de Varela, Depraz e Vermersch a respeito da
lógica circular na dialética hegeliana10. Segundo Varela, Hegel cria a “lógica especulativa
10 Cf. 32.
74
de aprendizagem no caminho” (VARELA, DEPRAZ e VERMERSCH, 2002, p.23), à qual
Varela irá se contrapor propondo uma lógica circular pragmática.
De acordo com Sève, Marx, ao desenvolver a dialética hegeliana sobre uma base
materialista, produz um desarranjo na concepção de dialética. A dialética não é mais autora
(no sentido idealista), mas tradutora do real. Ela se efetiva pela práxis, no concreto. Neste
sentido, não mais se trata de um desenvolvimento circular genético, mas de um
desenvolvimento transformador em uma história aberta. O caráter transformador advém da
práxis, que pressupõe uma atividade concreta no mundo. Pino explica: “O objeto de
conhecimento não é o real em si, tampouco um mero objeto da razão. Ele é um real
transformado pela atividade produtiva do homem, o que lhe confere um modo humano de
existência” (PINO, 2000, p.51). Note-se que a idéia de práxis, cara à teoria marxista,
também está na base da abordagem enativa. Sobre a noção de práxis, Varela, Depraz e
Vermersch esclarecem:
Sem entrar nos detalhes do conceito marxista de práxis [...] poderíamos dizer que a práxis corresponde à atividade humana, às transformações sociais e materiais da natureza e da sociedade, através das quais o processo mesmo de conhecimento e de teorização aparece sobre uma apropriação pratica pelo mundo e por si. Então, com Marx, o mito de um conhecimento puramente contemplativo ou representacional definitivamente desaparece, pela simples razão que toda teoria baseia sua dinâmica em uma prática (VARELA, DEPRAZ e VERMERSCH, 2002, p.161).
A distinção entre a dialética hegeliana e a marxista é fundamental para o nosso
trabalho, na medida em que queremos investigar as ressonâncias entre Vygotski e Varela, e
também a possibilidade de contribuições da teoria vygotskiana para uma concepção de
aprendizagem que tenha por base a noção de cognição inventiva, portanto que se afirme
para além da recognição ou da solução de problemas. Assim, interessa-nos investigar onde
na obra de Vygotski há elementos para pensarmos um processo que comporte a
transformação no sentido de criação. Nos parece, então, que a filiação da teoria histórico-
cultural à dialética marxista pode nos apontar um caminho. Note-se que:
Dizer que o pensamento dialético de Vygotski é marxista, significa sublinhar que ele não se reduz a um pensamento hegeliano. Não que Vygotski desconhecesse Hegel [...]. Mas a dialética de Hegel não poderia ser para ele (Vygotski) a referência principal, em particular por esta razão maior: sob sua poderosa universalidade de princípio, ela recobre como essencial uma forma particular de desenvolvimento – precisamente a forma genética [...]. É toda uma outra dialética
75
que Vygotski quer revelar no desenvolvimento cultural do psiquismo humano [...] uma dialética não mais unicamente genética, mas apropriativa (SÉVE, 1999, p.238).
2.2- A questão do desenvolvimento: antes de tudo um problema de método
A questão do desenvolvimento aparece na obra vygotskiana mais como um
problema de método, do que como objeto de estudo. É em decorrência das exigências que o
materialismo histórico e dialético coloca ao estudo psicológico que Vygotski irá se
debruçar sobre o desenvolvimento. Assim, Cole e Scribner afirmam:
Quando Vygotsky fala de sua abordagem como privilegiadora do ‘desenvolvimento’, isso não deve ser confundido com uma teoria do desenvolvimento da criança. Na concepção de Vygotsky, essa abordagem constitui o método fundamental da ciência psicológica (COLE e SCRIBNER, 1998, p.9).
Para o autor russo a perspectiva histórica é a única possibilidade de estudo do
humano, na medida em que considera, com base no materialismo histórico-dialético, que é
apenas em movimento que um corpo manifesta sua existência e mostra o que é. Assim,
estudar algo historicamente é estudar seu movimento. Para Vygotski, o estudo histórico
requer a aplicação das categorias de desenvolvimento à investigação dos fenômenos
psicológicos. Ele escreve:
São ainda muitos os que seguem interpretando erroneamente a psicologia histórica. Identificam a história com o passado. Para eles, estudar algo historicamente significa o estudo obrigatório de um ou outro fato do passado. Consideram ingenuamente que há um limite impossível de transpor entre o estudo histórico e o estudo das formas existentes. Sem dúvida o estudo histórico significa simplesmente aplicar as categorias do desenvolvimento à investigação dos fenômenos. Estudar algo historicamente significa estudá-lo em movimento. Esta é a exigência fundamental do método dialético (VYGOTSKI, 1931/2000, p.67).
Portanto a história tem menos a ver com o passado do que com a dimensão temporal
do psiquismo.
76
Vygotski (1929-2000) estabelece ainda uma diferença entre evolução e história11.
Enquanto a evolução está relacionada a regularidades, a história refere-se a uma postura
ativa no interior do tempo. Para Vygotski a peculiaridade do humano reside em que nele,
evolução e história estabelecem entre si uma relação dialética. O homem não é
simplesmente um produto passivo da evolução, porém, também não é, uma invenção
subjetiva. O homem é resultado de uma construção, ou poderíamos falar de uma invenção,
que se faz sobre limites e constrangimentos. Sua história escreve-se sobre o tênue equilíbrio
entre o passivo e o ativo, entre a regularidade biológica e a ativa produção de novidade.
A fim de esclarecer esta relação entre evolução e história no contexto da teoria
vygotskiana, trazemos uma passagem do artigo de Pino em que tece um comentário a
respeito do manuscrito de 1929 (VIGOTSKI, 1929/2000):
Na evolução das espécies ocorre um momento de ruptura quando a espécie homo desenvolve novas capacidades que lhe permitem transformar a natureza pelo trabalho, criando suas próprias condições de existência. Isto, por sua vez, permite ao homem transformar seu próprio modo de ser (cf.Marx, 1977, I, cap.7; Marx & Engels, 1982, pp. 70-71). Esse momento de ruptura não interrompe o processo evolutivo mas dá ao homem o comando da própria evolução. A história do homem é a história dessa transformação, a qual traduz a passagem da ordem da natureza à ordem da cultura (PINO, 2000, p.51 – grifo do autor).
É interessante observar que na distinção entre evolução e história revela-se uma
marca importante do pensamento vygotskiano. Trata-se da diferença entre o biológico e o
social ou entre a natureza e a cultura. Note-se que o que está em questão são diferenças e
não dicotomias (NUERNBERG e ZANELLA, 2003; PINO, 1992, 2000). No nível
biológico o tempo que passa afirma-se como evolução e é definido por Vygotski como um
processo marcado por regularidade e linearidade. O tempo que marca a dimensão social é o
tempo da história. Este tempo implica a atividade dos homens, sendo caracterizado não por
linearidade, mas por saltos e revoluções. Os saltos e revoluções que singularizam a história
são, portanto, conseqüências da ação do homem.
11 É importante não perder de vista o contexto no qual foi concebida a teoria histórico-cultural. Tal contexto marca as discussões sobre o tema da evolução e uso que essa teoria faz dessa noção (Nuernberg e Zanella, 2003). Hoje, contudo as discussões sobre essa temática têm assumido novos caminhos. Contemporaneamente, a evolução têm sido pensada menos como o progresso ou otimização e mais como produção de variações viáveis. Para maiores detalhes ver: Gould (2001), Varela, Thompson e Rosch (2003). Mais adiante discutiremos algumas conseqüências trazidas pelo pensamento evolucionista à teoria vygotskiana.
77
P.P.Blonski foi um importante aliado de Vygotski na elaboração de tais idéias. Para
Blonski, assim como para Vygotski, “a conduta só pode ser compreendida como história da
conduta. Esta é a verdadeira concepção dialética em psicologia” (VYGOTSKI, 1931/2000,
p.68). A tese defendida por esses autores é que todo o estudo psicológico do homem deve
ser feito levando em conta a função do tempo. Isto porque é apenas no tempo que o homem
se constitui. Assim, entender o homem hoje implica estudar seu processo de formação.
Cabe considerar a observação realizada por B. Schneuwly (1999) a respeito do
conceito de desenvolvimento na obra vygotskiana. Ao propor a análise da teoria
vygotskiana a partir dos conceitos e referenciais utilizados pelo próprio Vygotski, coloca
que “podemos ler a obra vygotskiana como ilustração de sua própria concepção” (Ibidem,
p.268). Schneuwly afirma que o próprio conceito de desenvolvimento deve ser entendido
como estando em processo de desenvolvimento. Neste sentido, defende a existência de dois
momentos principais na obra do autor russo, que seriam marcados tanto por uma ruptura,
quanto por uma continuidade. Após apresentar como o conceito de desenvolvimento
comparece nestes dois momentos, Schneuwly propõe que este conceito se apresenta como
um projeto inacabado. O inacabamento deve-se a uma certa idéia de “(...)‘caminho
inelutável’ em direção a um fim, que será sempre o mesmo, e não como podendo assumir
formas diferentes e caminhar em direção a fins diferentes” (Ibidem, p.273). Ao adjetivar o
caminho do desenvolvimento pelo termo inelutável, o autor enfatiza a idéia de uma
tendência ou direção que pressupõe a apropriação da cultura e que limitaria o alcance do
conceito.
No entanto, argumenta Schnewly, a introdução da noção de significação, nos
últimos trabalhos de Vygotski, representa um avanço do conceito de desenvolvimento, na
medida em que traz à cena a possibilidade de pensar o psiquismo como um sistema. A
significação permite conceber não apenas a existência de agenciamentos e articulações no
psiquismo que se afirmam como rupturas e revoluções, dando origem a novas unidades, ou
novas formas de ser do psiquismo, como também colocam a questão dos diferentes ritmos
de desenvolvimento. Nas palavras de Vygotski:
Ao postular a unidade funcional da consciência, a psicologia assumia como fundamento de suas investigações (...) o postulado completamente falso, porém aceito tacitamente por todos mesmo sem formulá-lo com claridade, que consiste em reconhecer a invariabilidade e a constância das conexões interfuncionais da
78
consciência e supor que a percepção está sempre e do mesmo modo ligada com a atenção, a memória está sempre e do mesmo modo com a percepção, o pensamento com a memória, etc. Isto implicou, naturalmente, que as conexões interfuncionais ficassem fora do parêntese na qualidade de constantes, sem ser levadas em consideração nas operações de investigação das diferentes funções isoladas. Como conseqüência, o problema das relações é, como temos dito, a parte menos estudada de toda a problemática da psicologia atual (Vygotski, 1934/2001, p.16).
No entanto, ressalta Schnewly, apesar dos avanços, o desenvolvimento resta ainda
como um processo que carece de um sentido verdadeiramente histórico ou cultural para que
possa ser apreendido em sua radicalidade. Cito:
Ele não o pensa (o desenvolvimento) como verdadeiramente histórico ou cultural, mas como um processo geral e universal da humanidade que iria de formas rudimentares de comportamento até as formas mais evoluídas, com uma ruptura essencial constituída pela aparição da escrita. A história é lida sobretudo verticalmente, e não horizontalmente como um processo de diferenciação (SCHNEWLY,1999, p.273).
Pino (1992, 2000) e Zanella (2004), assim como Schneuwly, vêem na significação a
possibilidade de ir além no conceito vygotskiano de desenvolvimento. Para os autores,
embora a cultura se apresente como destino no processo de constituição do psiquismo
humano, na medida em que se coloca o problema da significação e do desenvolvimento do
significado (VYGOTSKI, 1934/2001) abre-se espaço para se pensar processos de
desenvolvimento que conduzam a singularidades. Ainda que o que esteja em questão seja
um processo de apropriação da cultura, na medida em que esta apropriação é feita a partir
da ação e da produção de significados, então o resultado será sempre diferenciado.
Voltaremos a esta questão mais adiante.
Assim, embora para Vygotski estudar a formação do homem seja entender como ele
sai de um estado de primitivismo em direção a um estado de cultura, o modo como
entenderemos esse processo pode ser mais ou menos marcado pelo pensamento
evolucionista – em seu sentido de otimização de formas. Contudo, ainda que possamos
matizar o pensamento evolucionista na teoria vygotskiana, ele resta sendo um aspecto
problemático, como é o caso do estabelecimento de distinções entre o primitivo e o cultural.
Portanto, sem ignorar as contribuições de Pino e Zanella, acreditamos que a ressalva feita
por Schneuwly é, muitas vezes, pertinente. Ao considerar a história verticalmente, Vygotski
fez entrar um telos em sua rede teórica. O “estado desenvolvido de cultura”, representa
79
assim um importante atrator para todo o desenvolvimento histórico-cultural. Sobre isso nos
parece interessante e esclarecedora a observação de Knox no prefácio do livro Escritos
sobre a história do comportamento: o macaco, o primitivo e a criança, escrito por
Vygotski e Luria: “O modo como Vygotsky trata o estágio superior de desenvolvimento
cultural é, contudo, essencialmente eurocêntrico” (1996, p.27).
Ainda em relação a esta discussão, é fundamental considerarmos o aspecto político
que subjaze tanto ao pensamento evolucionista que acredita no progresso, quanto à idéia de
desenvolvimento como apropriação da cultura. Neste sentido, é importante compreender
em que contexto essas idéias aparecem. A psicologia histórico-cultural assumiu como
compromisso a transformação da sociedade soviética. Dessa forma, as idéias de progresso e
apropriação da cultura objetivavam a democratização dos bens culturais a fim de que todos
os homens pudessem participar igualmente da nova sociedade que surgia. Visto desse
modo, o desenvolvimento como apropriação da cultura assume o caráter de um projeto
político. A apropriação da cultura está relacionada a um compromisso com a existência
humana que acredita na possibilidade de uma vida digna para todos. Cito Newman e
Holzman:
O objetivo prático de Vygotsky durante sua vida foi reformular a psicologia de acordo com a metodologia marxista, a fim de desenvolver modos concretos de lidar com as tremendas tarefas que se impunham à União Soviética – uma sociedade que tentava mover-se rapidamente do feudalismo para o socialismo (NEWMAN e HOLZMAN, 2002, p.16).
E ainda:
O trabalho empírico de Vygotsky e seus seguidores se concentrou em educação e prevenção, e se viu às voltas com analfabetismo, diferenças culturais entre as centenas de grupos étnicos que formavam a nova nação e ausência de serviços para os incapazes de participar plenamente da nova sociedade (Ibidem, p.17).
No mesmo sentido argumenta J.E. Knox:
Além disso, os tempos difíceis da Revolução Russa, os anos que se seguiram de guerra civil e a intranqüilidade política não tornavam o trabalho de pesquisador científico uma coisa fácil e grande parte do trabalho tinha que estar orientado para a solução de problemas sociais concretos, por exemplo o número crescente de bandos de crianças órfãs ou incapacitadas que precisavam ser educadas e
80
transformadas em membros produtivos da nova sociedade soviética (KNOX, 1996, p.23).
2.3- Funções elementares e funções superiores
Vygotski não utiliza o conceito de cognição para se referir à linguagem, percepção,
memória, etc., mas sim o de funções psicológicas (ou psíquicas ou mentais). Estas se
diferenciam entre elementares e superiores, e, em seu conjunto, vão constituir a
personalidade, esta sendo entendida como uma unidade dialética. A fim de esclarecer a
noção de função, tal como utilizada por Vygotski, e também a dinâmica que ela engendra
cujo resultado final é a constituição de um psiquismo dinâmico, Pino afirma:
Se o caráter vago do termo ‘função’, tal como é usado por Vigotski, coloca certas dificuldades conceituais, por outro lado ajuda a conceber o psiquismo como algo dinâmico, que está sempre se (re)fazendo e em perpétuo movimento. Algo nos faz pensar na criação initerrupta no velho do novo, do significado dado na flutuação do sentido. Entendido assim, o termo função permite ver as ‘funções mentais’ de que fala Vigotski como um acontecer permanente. Conservando um certo grau de consistência e de continuidade, apresentam-se sempre sob o signo do novo. É claro que a capacidade de pensar, de falar, de registrar em memória, etc. são funções permanentes da pessoa, mas sujeitas às leis históricas das condições da sua produção [...]. Essas funções são portanto função dessas condições de produção, as quais não permanecem sempre necessariamente as mesmas (PINO, 2000, p.70).
De acordo com Vygotski, são as funções psicológicas superiores as que são, de
direito, do interesse da investigação psicológica, na medida em que possuem origem social,
sendo próprias do homem.
Para Vygotski, a diferença entre as funções elementares e as superiores é
fundamental para a compreensão adequada do problema. A confusão entre elas fez com que
muitas vezes, na história da psicologia, acabasse se estudando o homem, e o psiquismo
humano como quem estuda o animal. Vygotski adverte:
Quem vai discutir o fato de que a peculiaridade específica das formas superiores pode passar desapercebida, que é possível não se dar conta dela? Também a linguagem humana pode ser considerada como similar às reações fônicas dos animais e não perceber desde um certo ponto de vista suas diferenças principais. Talvez seja suficiente descobrir nas formas superiores do comportamento a existência de outras inferiores subordinadas, auxiliares. Mas toda a questão radica precisamente em conhecer qual é o valor cognitivo científico de semelhante postura de fazer vista grossa ante o específico, o distintivo e superior da conduta
81
humana. Se pode, claro, fechar um olho, mas é preciso saber que ao fazê-lo o campo de visão inevitavelmente se restringe (VYGOTSKI, 1931/2000, p.75).
É interessante notar que ao longo de seus textos e em especial nas discussões sobre
as diferenças entre as funções psíquicas superiores e elementares, revela-se o diálogo entre
Vygotski e a reflexologia.
A reflexologia é uma corrente da psicologia - bastante influente na Rússia do século
XIX - que se constitui principalmente a partir dos estudos de I.P.Pavlov. Seu objetivo é
estudar a totalidade do comportamento humano tendo como base os reflexos (VYGOTSKI,
1931/2000, p.86). Vygotski, assim como grande parte dos psicólogos russos dos anos 20,
achava-se sob forte influência dos trabalhos de Pavlov. Se em seus primeiros trabalhos
Pavlov era uma referência importante, aos poucos foi sendo deixado de lado (VYGOTSKI,
1934/2001, p.90). No entanto, embora tenha se afastado da reflexologia pavloviana,
Vygotski construiu algumas das idéias mais importantes da psicologia histórico-cultural
com base em Pavlov. Neste sentido, Vygotski atribui ao método da “dupla sinalização”
pavloviano, uma intuição importante de sua teoria. Com base no método pavloviano
Vygotski elaborou o método da “dupla estimulação”.
Sobre a base de um mecanismo linear do tipo estímulo-resposta, Pavlov trabalha a
possibilidade de transformação de um estímulo neutro em estímulo condicionado, a partir
de seu pareamento com um estímulo não condicionado. O método vygotskiano da dupla
estimulação, também trabalha com a idéia da apresentação de dois estímulos na situação
experimental: um que se refere à tarefa a ser resolvida e outro, que a princípio não tem
função, mas que pode ser utilizado como estímulo auxiliar. O que está em questão para
Vygotski não é a realização do condicionamento, mas a possibilidade de construção de um
comportamento mediado através da utilização dos estímulos auxiliares. Trata-se portanto de
explicar como se constituem as funções psicológicas superiores.
Assim, através do método da dupla estimulação era possível reunir o plano físico e
mental e explicar como um se constitui de modo imbricado com o outro. Da reflexologia
interessa-lhe o materialismo. No entanto este ganha um novo sentido, em função da
filosofia materialista histórico-dialética. O homem não pode ser concebido apenas a partir
do mecanismo linear estímulo-resposta, ou seja, como um organismo que responde aos
estímulos do meio, como queria a reflexologia. Como ser histórico, o homem modifica
82
ativamente o meio, modificando a si. Trata-se de um mecanismo circular. Citando Marx,
Vygotski afirma: “Ao atuar sobre a natureza externa mediante esse movimento, ao
modificá-la, o homem modifica ao mesmo tempo sua própria natureza – diz Marx –
Desperta as forças que dormiam nela e subordina a dinâmica dessas forças a seu próprio
poder” (Ibidem, p.85). É neste contexto que são desenvolvidas as principais noções da
teoria histórico-cultural, como por exemplo a de mediação e de autodomínio. É, portanto
com e contra a reflexologia que a teoria histórico-cultural se afirma. Cito Vygotski:
Mas por si só o princípio do reflexo condicionado resulta insuficiente para explicar a conduta do homem desde o ponto de vista psicológico porque, como já foi dito, este mecanismo ajuda apenas a compreender como as conexões naturais regulam a formação de conexões no cérebro e na conduta, quer dizer, nos ajudam a compreender a conduta em um plano puramente natural, mas não histórico (Ibidem, p.86).
As funções psicológicas elementares caracterizam-se por serem lineares e diretas. A
cada estímulo do mundo corresponde uma resposta. Estímulo e resposta são, neste sentido,
respectivamente, causa e efeito. Já as funções psicológicas superiores são indiretas e
apontam para uma circularidade, ou seja, pressupõem mediação entre o sujeito e o mundo.
Elas caracterizam-se pelo uso de signos e /ou instrumentos (ações instrumentais). Nelas, a
relação entre o estímulo e a resposta não é direta o que significa que estímulo e resposta
não desempenham papel de causa e efeito. A mediação estabelece um intervalo no esquema
S-R, fazendo aparecer a circularidade.
Enquanto as funções psicológicas elementares são de origem biológica, as
superiores são de origem social, ou seja constituem resultados das ações instrumentais (ou
mediações). Nas palavras de Vygotski:
As funções elementares têm como característica fundamental o fato de serem total e diretamente determinadas pela estimulação ambiental. No caso das funções superiores, a característica essencial é a estimulação autogerada, isto é, a criação e o uso de estímulos artificiais que se tornam a causa imediata do comportamento (VIGOTSKI, 1998, p.53).
Cabe apontar aí uma diferença entre o que Vygotski considera biológico e a
concepção de Varela da biologia. Conforme foi visto no capítulo anterior, para Varela o
biológico já é impregnado de história. Não é, portanto, um biológico natural, mas um
biológico histórico. Nas palavras de Maturana e Varela: “Para entendermos os seres vivos
83
em todas as suas dimensões, e assim entendermos a nós mesmos, é necessário entender os
mecanismos que os tornam seres históricos” (MATURANA e VARELA, 1995, p. 96). Por
fenômeno histórico, Varela e Maturana entendem: mudança de estado decorrente de uma
modificação anterior. Neste sentido, na medida em que os seres vivos são definidos como
seres autopoiéticos, ou seja, seres que se auto-produzem dando origem a outras estruturas
autopoiéticas, diferentes da primeira, eles são seres históricos. Portanto, para Varela a
história não é um privilégio do humano, mas é próprio do vivo. O que define o vivo em
geral é sua possibilidade de ação que tem como conseqüência a transformação não apenas
do meio, mas do próprio ser vivo. Neste sentido, a adaptação de todo o ser vivo pressupõe a
atividade. Para Vygotski, diferentemente, é apenas o homem que é capaz de atividade,
apenas o homem possui uma adaptação ativa em relação ao meio (VYGOTSKI, 1931/2000,
p.84-85).
2.4 – Aprendizagem e desenvolvimento: processos de transformação temporal
A aprendizagem, diferentemente de outros processos cognitivos ou funções
psicológicas, não possui, na obra de vygotskiana, um capítulo específico. Ela é tematizada
principalmente nas relações ensino-aprendizagem e aprendizagem-desenvolvimento. Na
apresentação do conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) (VYGOTSKI,
1934/2001; VIGOTSKI, 1998, 2001b), Vygotski explicita que aprendizagem e
desenvolvimento não são sinônimos, mas que estabelecem entre si uma complexa relação
dialética que nunca deve ser perdida de vista. Esta relação é esclarecida quando o psicólogo
russo se refere às diferenças entre o processo de desenvolvimento dos conceitos científicos
e espontâneos. Note-se que os conceitos espontâneos são constituídos como resultado da
experiência da criança no mundo, já os conceitos científicos se constituem através de um
processo de ensino sistematizado (VYGOTSKI, 1934/2001, P.182). Vejamos:
Devemos admitir que a aparição de conceitos de tipo mais elevado, como são os conceitos científicos, não pode deixar de acusar a influência dos conceitos espontâneos surgidos anteriormente, já que nem uns, nem outros, estão encapsulados na consciência da criança, nem estão separados por uma parede intransponível. Não fluem por canais isolados, mas encontram-se imersos em um processo de contínua interação, que deverá ter como resultado inevitável o fato de que as generalizações da estrutura superior, próprias dos conceitos científicos,
84
produzam mudanças estruturais nos conceitos espontâneos (VYGOTSKI, 1934/2001, p.194).
Tal forma de colocar o problema amplia em muito tanto as possibilidades do
conceito de desenvolvimento, como do de aprendizagem. Vygotski avança em relação a
maior parte dos teóricos do desenvolvimento e da aprendizagem na medida em que
considera o desenvolvimento não apenas como resultado de um amadurecimento biológico,
mas como um processo que, em função da atividade humana (ação instrumental), implica
saltos e revoluções (VYGOTSKI, 1931/2000). Por outro lado, afirma que a “boa
aprendizagem” é aquela que se antecipa ao desenvolvimento, orientando-o (VIGOTSKI,
1998; 2001b): “Todo o processo de aprendizagem é uma fonte de desenvolvimento que
ativa numerosos processos, que não poderiam desenvolver-se por si mesmos sem a
aprendizagem” (VIGOTSKI, 2001b, p.115).
De acordo com Vygotski, para que possamos estudar o desenvolvimento em toda a
sua complexidade, é preciso que sejam superadas duas formas de pensar: o preformismo e o
evolucionismo12.
O preformismo ou teoria da preformação origina-se na embriologia e tem como
suposição básica a idéia de que o embrião carrega em si um organismo plenamente
acabado, já formado, porém em proporções reduzidas. Este tipo de teoria deu origem, num
período pré-psicologia científica (ARIÈS,1986), à idéia de que as diferenças entre crianças
e adultos são apenas quantitativas. A criança é, portanto, um adulto em miniatura. Vygotski
ressalta que embora o preformismo não apareça explicitamente nas teorias psicológicas, ele
segue estando na base de muitas investigações. Nas palavras do autor:
Apesar de que na formulação científica geral sobre a criança já se abandonou faz tempo a idéia de que a criança diferencia-se do adulto apenas por suas proporções de corpo, por seu volume, esta idéia segue existindo na psicologia infantil de forma encoberta. Nenhum tratado de psicologia infantil pode repetir agora abertamente as verdades há tempo refutadas de que a criança é um adulto em miniatura, entretanto, semelhante concepção perdura, na forma oculta, em quase todas as investigações psicológicas (Vygotski, 1931/2000, p.140).
12 Quando Vygotski refere-se ao desenvolvimento este é tanto ontogenético quanto sociogenético, ou seja diz respeito tanto à história de desenvolvimento do ser, quanto à história de desenvolvimento cultural. Estes dois desenvolvimentos são indissociáveis para a concepção histórico-cultural (Vygotski, 1931/2000).
85
Para Vygotski a orientação preformista que subsiste na base de muitas teorias do
desenvolvimento faz com que elas não consigam dar conta das especificidades positivas do
comportamento infantil.
O mesmo se passa em relação ao comportamento das pessoas a quem hoje
nomeamos “portadoras de necessidades especiais”. Para o autor russo o estudo do
desenvolvimento deve debruçar-se justamente sobre as peculiaridades positivas, e não
sobre o que falta a criança para se tornar um adulto, ou sobre o que falta a pessoa com
deficiência para se tornar mais parecida com a normalidade. A questão orientadora dos
estudos de desenvolvimento deixa de ser “o que ainda não tem essa criança?”, “o que falta
a ela desenvolver?”, e passa a ser “como através daquilo que ela apresenta e do contexto
sócio-histórico em que está inserida, ela se constrói?” ou “como a partir do que ela tem ela
constrói uma vida?”. Dessa forma Vygotski afirma:
Todos os métodos nos falam daquilo que não tem a criança em comparação com o adulto e do que não tem a criança anormal em comparação com a normal. Temos sempre presente o ‘negativo’ de sua personalidade, o negativo que nada nos diz das peculiaridades positivas que diferenciam a criança do adulto e a criança anormal da normal (Ibidem, p.141).
A passagem de um enfoque negativo do desenvolvimento para um positivo implica
uma radical mudança naquilo que se entende por desenvolvimento. Neste sentido a
concepção vygotskiana rompe com a idéia hegemônica de desenvolvimento como um
processo simplesmente orgânico de amadurecimento, que segue um caminho linear e
seqüencial, e passa a concebê-lo como um processo dialético. Ou seja, o desenvolvimento
para Vygotski é um processo que se faz através de ‘choques’ ou contradições, no embate
com o mundo. Estes decorrem da diferença entre aquilo que se sabe, e aquilo que ainda não
se sabe. Trata-se do problema da aprendizagem, que está na base da concepção vygotskiana
de desenvolvimento. Assim, Vygotski define o desenvolvimento infantil:
Trata-se de um complexo processo dialético que se distingue por uma complicada periodicidade, a desproporção no desenvolvimento das diversas funções, as metamorfoses ou transformação qualitativa de umas em outras, um entrelaçamento complexo de processos evolutivos e involutivos, o complexo cruzamento de fatores externos e internos, um complexo processo de superação de dificuldades e de adaptação (Ibidem, p.141).
86
O evolucionismo é o segundo momento a ser superado. Ele veicula uma concepção
de desenvolvimento que pressupõe que esse se faça por uma acumulação lenta e gradual de
mudanças isoladas (Ibidem, p.141). A metáfora das concepções evolucionistas de
desenvolvimento é a do crescimento das plantas. Para Vygotski as concepções de
desenvolvimento pautadas no evolucionismo acabam por não enxergar os momentos mais
importantes, que são aqueles de mudanças cruciais e revolucionárias, quando o que vinha
antes não é capaz de explicar o que apareceu depois. Uma questão importante a ser
ressaltada é que para Vygotski esses momentos revolucionários não são a exceção, mas a
regra no desenvolvimento. É ai que se encontra o próprio desse processo.
Assim, embora Vygotski não desconsidere a idéia de evolução, que é inclusive uma
noção importante no conjunto de sua teoria, ele a concebe sobre bases outras que não a do
evolucionismo. A evolução diz respeito menos à noção de um caminho reto de
acumulações graduais e mais a uma idéia de um caminho que se faz por rupturas e saltos, e
que tende à apropriação da cultura. Nas palavras de Vygotski:
Uma consciência ingênua considera que são incompatíveis a revolução e a evolução, que o desenvolvimento histórico segue produzindo-se a medida em que se atém a uma linha reta. A consciência ingênua não vê mais do que catástrofes, ruína e ruptura quando se rompe uma trama histórica e produzem-se mudanças e saltos bruscos. A história deixa de existir para ela enquanto não retome o caminho reto e uniforme (Ibidem, 141).
As rupturas não são paradas do processo histórico, mas garantias de sua
continuidade. Elas fazem parte do processo de desenvolvimento. Elas são condição da
manutenção do desenvolvimento e da história. É neste sentido que Vygotski afirma que o
desenvolvimento infantil afasta-se de um processo estereotipado que caminha na direção de
formas estabelecidas. De acordo com Vygotski:
O processo de desenvolvimento infantil não se parece em absoluto a um processo estereotipado, ao resguardo de influências externas; o desenvolvimento e a mudança da criança, produzem-se em uma ativa adaptação ao meio exterior. Neste processo originam-se cada vez formas novas e não se reproduzem simplesmente de modo estereotipado os elos da cadeia antes formada (Ibidem, p.142).
O desenvolvimento afirma-se na medida em que cada nova etapa surge em
decorrência, não de potencialidades implícitas na fase anterior, mas de um “choque real
87
entre o organismo e o meio, o resultado da ativa adaptação ao meio” (Ibidem, p.143).
Portanto, o desenvolvimento só se efetiva se o sujeito estiver no mundo, - agindo - sujeito a
“choques”. Sobre isso Vygotski afirma: “Há de se introduzir na história do
desenvolvimento infantil o conceito de conflito, quer dizer, de contradição ou choque entre
o natural e o histórico, o primitivo e o cultural, o orgânico e o social” (Ibidem, p.303).
Uma conseqüência importante dessa nova forma de colocar o problema é que não
existe referência a uma seqüência invariante de estágios no processo de desenvolvimento.
Note-se que desde a definição do que seja o desenvolvimento até a impossibilidade da
enumeração de estágios pré-estabelecidos, Vygotski vai afastando-se da maioria das
concepções sobre o desenvolvimento, e em especial da teoria piagetiana. É interessante
observar que ao longo da construção de sua teoria, Vygotski dialoga com Piaget, e explicita
as diferenças entre as suas concepções (Ibidem, p.151; Vygotski, 1934/2001, p.192) 13.
A nosso ver, a forma vygotskiana de pensar o desenvolvimento só é possível pois
pressupõe que haja um aprendizado na base do desenvolvimento, um aprendizado que
pressupõe a ação (instrumental) e que responde pela interiorização de novas formas
culturais, transformando o que é aprendido e quem aprende. A aprendizagem, portanto, não
se esgota num processo de aquisição e acumulação de conteúdos, ela também produz
desenvolvimento. Com isso não reduzimos a importância dos conteúdos, mas consideramos
que a aprendizagem em sua potência maior revela-se quando saímos diferentes desse
processo. Vygotski chama isto de “boa aprendizagem”.
Assim, o que está em questão no processo de desenvolvimento ou mais
especificamente, na unidade dialética aprendizagem-desenvolvimento, é um processo de
construção de si. Este não pode ser concebido sem seu correlato que é a construção do
mundo. Neste sentido, com base tanto na idéia da unidade dialética aprendizagem-
desenvolvimento quanto na noção de construção da cognição ou do psiquismo, buscaremos
em Vygotski contribuições para repensar a aprendizagem. Escolhemos três pontos para
serem examinados: a) a discussão sobre a formação das funções psíquicas superiores pelas
mediações e internalizações, b) a noção de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) e, c)
13 Não nos deteremos na análise das relações entre as teorias piagetiana e vygotskiana. Embora seja um tema interessante, foge dos objetivos desta dissertação.
88
os textos sobre defectologia, onde é apresentada a noção de vias colaterais de
desenvolvimento.
2.4.1– Sobre o mecanismo histórico-dialético: mediações e internalizações
Tendo por base a afirmação de Zanella, iniciamos este tópico:
O que vem a ser aprendizagem e desenvolvimento para Vygotski? Em vários contextos Vygotski refere-se à aprendizagem em contexto escolar, porém suas discussões a respeito da constituição do psiquismo levam a crer que, para o autor, aprender não se resume à apropriação de conteúdos científicos em um contexto de escolarização formal, apesar da importância que assume em nossa sociedade. Ao invés dessa limitação, podemos entender que o aprender, na perspectiva histórico-cultural, consiste na apropriação da cultura (ZANELLA, 2001, p.94-95).
Embora Vygotski não explicite de modo claro o mecanismo da unidade dialética
aprendizagem-desenvolvimento, acreditamos ser possível avançar nos apoiando no
exemplo do desenvolvimento do gesto indicativo (VYGOTSKI, 1931/2000, p.149-150).
Sobre o gesto indicativo Vygotski afirma que ele constitui a base primitiva de
desenvolvimento de todas as formas superiores de comportamento. Neste sentido ele
constitui a unidade mais simples para compreendermos o mecanismo de formação ou de
construção das funções psíquicas superiores. O gesto indicativo é em princípio uma
tentativa fracassada de agarrar algo. A mãe aparece e interpreta o gesto da criança,
atribuindo a ele uma significação. A criança passa, então, a se relacionar com o mundo a
partir da significação da mãe. Só mais tarde, a criança internaliza a significação. Nas
palavras de Vygotski:
A criança, portanto, é a última a tomar consciência de seu gesto. Seu significado e funções determinam-se a princípio pela situação objetiva e depois pelas pessoas que rodeiam a criança. O gesto indicativo começa a ser definido pelo movimento que os demais compreendem, apenas mais tarde converte-se em indicativo para a própria criança (Ibidem, p.150).
A aprendizagem estará sendo pensada neste momento, então, a partir das noções de
mediação e de internalização. Conforme vimos, a mediação é uma conseqüência do ser
social do homem, ou seja, decorre do fato de que o homem não se relaciona de maneira
direta nem com a natureza e nem com outros homens. É apenas através das mediações ou,
89
em outros termos, das ações instrumentais, que o mundo vai ganhando sentido e que o
homem vai se constituindo. As ações instrumentais são ações que utilizam instrumentos ou
signos – inventados pelo homem (PINO, 2000, p.57) - na relação com o mundo. Elas
caracterizam-se pela possibilidade de alterar a natureza, e dessa forma alterar o próprio
homem: “Para a adaptação do homem tem especial importância a transformação ativa da
natureza do homem, que constitui a base de toda a história humana e pressupõe também
uma imprescindível mudança ativa da conduta do homem” (VYGOTSKI, 1931/2000,p.84-
85). Newman e Holzman (2002) explicam esse processo de constituição do sujeito
afirmando que os instrumentos são inicialmente “externos”, ou seja, são inicialmente
usados sobre a natureza ou na comunicação com “outros”. No entanto, na medida em que
agem sobre a natureza ou sobre os outros homens, eles afetam o próprio usuário,
modificando-o.
Embora instrumentos e signos possam ser equiparados no que diz respeito a sua
função mediadora, eles portam uma diferença importante. Os instrumentos agem
fundamentalmente sobre a natureza, enquanto os signos agem sobre outros homens e sobre
si mesmo (VIGOTSKI, 1998). Neste sentido, é apenas por meio dos signos que se pode
compreender o processo de internalização, ou da constituição do psiquismo a partir das
ações mediadas. Dito diferentemente, é apenas por meio dos signos que se pode explicar a
importante frase de Vygotski: “O homem é um agregado de relações sociais encarnadas
num indivíduo” (VYGOTSKI, 1929/2000, p.33).
A linguagem é, para o homem, o principal sistema de signos. Assim, ela ocupa na
teoria vygotskiana um lugar central e é por meio dela que será explicada a constituição do
psiquismo:
A um novo tipo de conduta deve corresponder forçosamente um novo princípio regulador da mesma, e o encontramos na determinação social do comportamento que se realiza com ajuda dos signos. Dentre todos os sistemas de relação social o mais importante é a linguagem (VYGOTSKI, 1931/2000, p.86).
Dito de maneira mais específica, é em sua dimensão de significação que a
linguagem ou os signos possibilitam a construção de um sujeito e de um mundo. Pino
explica:
90
A problemática colocada pelo papel das relações sociais na constituição cultural do homem nos conduz à outra questão: a do mecanismo que possibilita a conversão dessas relações em função do indivíduo e em formas da sua estrutura. Esse mecanismo é a significação veiculada-produzida pela ‘palavra do outro’. Como mostrei em outro lugar (Pino, 1992), o objeto a ser internalizado é a significação das coisas, não as coisas em si mesmas. Portanto o que é internalizado das relações sociais não são as relações matérias mas a significação que elas têm para as pessoas. Significação que emerge na própria relação (PINO, 2000, p.66).
Note-se que a significação emerge de um processo que envolve a participação de
um outro, sendo portanto social e relacional. Em seus últimos trabalhos Vygotski
(1934/2001) centra-se especificamente na questão da significação, mostrando que o
significado também se desenvolve. Assim, a significação nos permite explicar como nos
constituímos na e pela cultura de maneira singular.
Voltemos à questão das mediações e ao mecanismo de constituição do sujeito. As
mediações são, a princípio externas (interpsíquicas) mas, em um determinado momento,
por um processo de internalização, tornam-se intrapsíquicas. É importante esclarecer que a
internalização tem aqui um caráter bastante singular. De acordo com Pino (1992), a noção
de internalização traz implícita a idéia de uma dicotomia entre o externo e o interno, que
por sua vez está relacionada a um certo entendimento do homem e das relações entre
natureza e cultura, que não se encaixa ao referencial teórico utilizado por Vygotski. Nas
palavras de Pino:
O ponto de vista sustentado aqui é que o conceito de internalização veicula uma visão dualista e naturalista do homem e do social, a qual não corresponde à visão que deles tem o modelo histórico-cultural de psicologia. Trata-se, portanto, de um conceito inadequado, pois o que se quer dizer com ele não corresponde ao que ele realmente diz (Ibidem, p.316).
Partindo do pressuposto de que as funções psíquicas são de origem social, o autor
russo contrapõe-se à maior parte das psicologias que vêem no indivíduo a origem destas
funções. Assim, a internalização de que fala Vygotski diz respeito a uma reconstrução no
plano pessoal (o que está em questão aqui é o problema da significação tal como abordado
acima) daquilo que antes era social, portanto realizado no encontro com os outros através
das mediações. É importante esclarecer que essa reconstrução não é guiada por um sujeito
(por um si), mas a própria reconstrução produz o si (ZANELLA, 2003; VIGOTSKI, 1929-
2000, p.25). O processo de apropriação faz-se entre
sujeitos, e o de internalização entre
o
91
sujeito e si mesmo, não podendo nunca ser atribuído a um si já constituído (ZANELLA,
2003). Pino explica: “A significação não pertence nem à ordem das coisas nem à das suas
representações, mas à ordem da intersubjetividade anônima em que ao mesmo tempo que é
por ela constituída é constituinte de toda a subjetividade” (PINO, 1992, p.322 – grifo
nosso). Além disso, esse processo não é resultado de um caminho espontâneo ou
necessário, mas faz-se a partir de choques e contradições que ocorrem a partir das ações.
Trata-se de construções. Cito Vygotski: “A história da personalidade só pode ser afirmada e
relatada como história onde inúmeros fios se cruzam e é apenas nesse cruzamento que a
história se faz” (VYGOTSKI, 1931/2000, p.330). E ainda: “O mais básico consiste em que
a pessoa não somente se desenvolve, mas também constrói a si. Construtivismo. Mas
‘contra’ o intelectualismo (compare construção artística) e o mecanicismo (compare
construção semântica)” (VIGOTSKI, 1929/2000, p.33).
No princípio não há sujeito constituído, há apenas reflexos (funções elementares) e
há inserção em um contexto social. Poderia-se falar em uma situação ideal inicial onde
houvesse apenas reflexos na criança e, então, as ligações da criança com o mundo
decorreriam apenas desses reflexos. Ideal pois desde o nascimento, desde o primeiro
minuto de vida, a criança está lançada em um contexto sócio-cultural. É Vygotski quem
afirma: “Para o homem de hoje inclusive o meio natural só pode ser parte do meio social e
não pode haver nexo algum fora das relações sociais” (VYGOTSKI, 1926/1997, p.157). A
partir do momento em que a criança nasce, a relação dela com o mundo nunca é direta, mas
mediada. E é através dessas mediações que a subjetividade da criança vai se constituindo.
Em um primeiro momento a mediação é feita principalmente pelos adultos que a cercam e
que vão olhar para ela, falar com ela, alimentá-la, etc. Esses adultos conferem um primeiro
significado para o mundo, fornecendo as primeiras conexões que serão utilizadas. É através
desses adultos, mais especificamente do olhar, da fala que a criança será apresentada ao
mundo. A mediação feita pelo adulto, neste momento, é talvez a criação do mundo mais
fundamental e a partir do qual a criança vai se fazer.
A “descoberta” dos instrumentos e posteriormente da linguagem, conforme
adiantamos, constituem momentos cruciais para a constituição e desenvolvimento do
sujeito cultural. Essas descobertas fazem-se sobre a base das mediações iniciais, e implicam
na apropriação de novos mediadores, que modificarão a um só tempo a criança, o mundo e
92
a relação desta com o mundo. É interessante observar que Vygotski, ao comentar os
experimentos de Köhler, refere-se ao uso de instrumentos como um processo de invenção.
Nas palavras do autor russo: “As ‘invenções’ dos macacos na preparação e uso de
instrumentos ou no emprego de vias indiretas (rodeios) durante a resolução de diferentes
tarefas, constituem indubitavelmente uma fase inicial no desenvolvimento do pensamento,
mas uma fase pré-linguística” (VYGOTSKI, 1934/2001, p.91). Caberia perguntar se o que
está em questão no processo de apropriação de novos mediadores não é também um
processo de invenção? Não apenas invenção de mediadores, mas principalmente do sujeito
e de seu mundo.
Chamamos atenção para o fato de que o processo de descoberta de novos
mediadores implica uma atividade, ou um agir que possibilita a criança a viver os choques e
as contradições necessárias a seu desenvolvimento que estamos procurando entender como
um processo de invenção ou criação. Cito Vygotski: “Esta faculdade de compor um edifício
com esses elementos, de combinar o antigo com o novo, estabelece as bases da criação”
(VYGOTSKI, 2003, p.12). E ainda: “A compreensão científica desta questão nos faz ver na
função criadora mais uma regra que uma excessão” (Ibidem, p.11).
Tais mediações básicas são comuns a todos que estejam inseridos em um contexto
sócio-cultural humano e que sejam dotados dos cinco sentidos:
Todo o aparato da cultura, tanto exterior como relacionado com as formas de comportamento, está pensado para seres humanos normais psíquica e fisiologicamente. Toda nossa cultura está destinada a pessoas dotadas de certos órgãos, mãos, olhos, ouvidos e determinadas funções cerebrais. Todas nossas ferramentas, toda a técnica, todos os signos e símbolos estão idealizados para um tipo humano normal. A isso deve-se a ilusão da convergência da transição espontânea das formas naturais às culturais que, de fato, não pode existir pela própria natureza das coisas (VYGOTSKI, 1931/2000, p.310).
Um outro salto ocorre quando esses mediadores são internalizados. É curioso
observar que muitas vezes, por terem as mediações internalizadas, confunde-se o
comportamento do adulto com o da criança. Parece, do ponto de vista do observador, que
tanto o adulto quanto a criança agem no mundo sem mediações. Contudo a aparente
imediatidade no comportamento adulto decorre, não de uma relação direta com o mundo,
do tipo S-R, mas em função de uma internalização da mediação. A aparente imediatidade
do comportamento adulto apresenta-se como uma conquista, resultado de um longo
93
processo de aprendizagem, este entendido em sentido mais amplo. O comportamento do
adulto permanece mediado, no entanto, os signos são agora, internos. Isso não significa que
os adultos não possam fazer uso de mediadores externos, e muitas vezes, dependendo da
tarefa em questão, eles o fazem. Sobre isso Vygotski observa:
A última fase, superior, no desenvolvimento de algum processo revela uma semelhança puramente fenotípica com as fases primárias ou inferiores e quando o processo é abordado desde o ângulo fenotípico perde-se a possibilidade de distinguir a forma superior da inferior (VYGOTSKI, 1931/2000, p.105).
Assim o desenvolvimento das funções psíquicas superiores, ou a aprendizagem que
implica a criação ou transformação do sujeito e do mundo, caminha, na teoria vygotskiana,
no sentido de um arraigamento do social em si, através das mediações. Vemos assim
confundirem-se os planos individual e social: “A personalidade torna-se para si aquilo que
ela é em si, através daquilo que ela antes manifesta como seu em si para os outros”
(VIGOTSKI, 1929/2000, p.25).
A idéia de um arraigamento do social em si faz Tudge (1996) referir-se à presença
de uma “teleologia relativista” na teoria de Vygotski. Embora o desenvolvimento implique
e pressuponha a aprendizagem, ele caminha em direção à apropriação da cultura através das
mediações. O desenvolvimento cultural seria alcançado quando o sujeito, através da
internalização das mediações, antes externas, desenvolvesse a capacidade de autodomínio
(VYGOTSKI, 1931/2000). Conforme já discutimos, embora não possamos desconsiderar
este tipo de observação que aponta para um certo limite da teoria vygotskiana, é preciso
relativisá-la.
Sobre a noção de autodomínio é importante esclarecer que ela se refere ao fato do
sujeito ser determinado socialmente, e não pelo ambiente. O autodomínio pressupõe a
capacidade de criação de mediadores na relação com os outros e com o mundo de modo a
poder “controlar” a própria conduta. Cito Vygotski: “Nosso domínio sobre os próprios
processos de comportamento se constrói, em essência, da mesma maneira que nosso
domínio sobre os processos da natureza, já que o homem que vive em sociedade está
sempre sujeito à influência de outras pessoas” (Ibidem, p.290). Note-se que este “controlar
a própria conduta” não se faz a partir de um “Eu” senhor da vontade, mas pressupõe o uso
de mediadores. Portanto é apenas através do social que o controle sobre a própria conduta
94
acontece. Cito Vygotski: “O ‘Eu’ consciente, ou participa muito pouco nessas reações, ou
não participa em absoluto” (Ibidem, p. 292). E ainda: “O paradoxo da vontade está em que
formamos graças a sua ajuda, um mecanismo que não atua voluntariamente” (Ibidem,
p.293).
É interessante perceber que embora Vygotski, diferentemente de Piaget, não
trabalhe com a idéia de estágios fixos pré-estabelecidos, ele estabelece, por um lado,
algumas etapas ou estágios gerais para o desenvolvimento, e por outro, realiza uma certa
periodização do desenvolvimento (VYGOTSKI, 1932/1996). Com relação às etapas gerais,
elas referem-se a tipos de relações que se estabelecem entre o sujeito e o mundo, entre o
sujeito e os outros e entre o sujeito e si, ao longo do processo de aprendizagem-
desenvolvimento, que possibilitam a constituição do próprio sujeito. “Neste sentido, todo o
desenvolvimento cultural passa por três estágios: em si, para outros, para si” (VYGOTSKI,
1929/2000, p.24). Neste sentido estas etapas ou estágios gerais aparecem como invariantes
que possibilitam a variação. Ou seja, o que está definido aí não é o conteúdo de cada etapa,
mas um certo movimento que torna possível a produção da subjetividade. Já a idéia de uma
periodização causa um certo estranhamento em face da própria colocação do problema do
desenvolvimento na teoria vygotskiana. Como pensar uma periodização possível se o
desenvolvimento se faz por choques e contradições que acarretam saltos e revoluções?
Como pensar uma periodização em um processo de desenvolvimento que pressupõe o
aprender? Em que a periodização de Vygotski diferencia-se da de Piaget? Aqui duas
hipóteses são possíveis: Poderíamos pensar que a periodização decorre da teleologia
relativista, a qual Tudge se refere, e que conforme ressaltamos no início do capítulo, acaba,
algumas vezes, por minar a originalidade dos conceitos vygotskianos. A segunda hipótese é
pensar que esta periodização decorre de uma possibilidade gerada pela realização das
pesquisas em um contexto de uma certa estabilidade sócio-cultural. Se Vygotski tivesse
desenvolvido suas investigações em uma outra época, talvez ele não pudesse ter concebido
a referida periodização. Note-se que o que está na base da concepção vygotskiana de
desenvolvimento é a idéia de revolução, então, como conciliar revolução e previsibilidade?
Assim, embora não pudesse afirmar como Piaget quatro estágios, sua ordenação e suas
características, Vygotski conseguiu delinear alguns períodos que se definem por suas crises.
95
As duas hipóteses não são excludentes e chamam atenção para certas singularidades da
teoria vygotskiana.
2.4.2 – Aprendizagem e a Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP)
O conceito de ZDP é um dos conceitos mais conhecidos e comentados da teoria
histórico-cultural (MOLL, 1996; ZANELLA, 2001; NEWMAN e HOLZMAN, 2002). Ele
foi cunhado por Vygotski para dar conta da relação entre aprendizagem e desenvolvimento.
De maneira mais específica poderíamos dizer que a preocupação de Vygotski era dar conta
das relações entre a educação e o desenvolvimento14 (VYGOTSKI, 1934/2001).
Através da ZDP o psicólogo russo enfatiza o papel crucial e transformador que a
educação ou a aprendizagem – em sentido mais geral – exerce sobre o processo de
desenvolvimento. Note-se que a ZDP é trabalhada não apenas no contexto escolar, mas
também quando Vygotski se refere à imitação e a brincadeira (Ibidem; VIGOTSKI, 1998;
2001b). Portanto, a relação entre aprendizagem e desenvolvimento faz parte da vida, sendo
essencial na explicação do modo como nos constituímos.
Para Vygotski, a relação entre aprendizagem e desenvolvimento, fundamental para
entender e explicar a gênese das funções psíquicas superiores, foi estudada de modo vago,
obscuro e pouco crítico (VIGOTSKI, 1998). Assim, ele dividia as teorias psicológicas em
três grupos em função da forma como entendiam as relações entre aprendizagem e
desenvolvimento (Ibidem; Vigotski, 2001b):
Para o primeiro grupo, aprendizagem e desenvolvimento eram considerados
processos independentes entre si. O desenvolvimento era explicado e entendido apenas
como um processo de maturação, e a aprendizagem era a utilização das oportunidades
criadas pelo desenvolvimento. Nas palavras de Vygotski: “Admite-se, portanto, a existência
de uma relação unilateral: a aprendizagem depende do desenvolvimento, mas o curso do
desenvolvimento não é afetado pela aprendizagem” (VIGOTSKI, 1998, p.118). É este tipo
14 Note-se que aqui estamos diante de mais um problema de tradução. Conforme observa Newman e Holzman (2002): “Vygotsky usou o termo russo obuchenie, que se refere tanto a ensinar como a aprender. Desde Vygotsky (1978 – tradução de Cole et al.), tornou-se convenção referir-se à relação entre aprendizagem (learning) e desenvolvimento, em vez de instrução (ou ensino) e desenvolvimento” (Ibidem, p.71). Contudo, nas traduções espanholas o termo usado é ensino e/ou instrução. Neste trabalho não procuraremos fazer diferença entre ensino e aprendizagem, trabalhando com os dois no mesmo sentido.
96
de concepção que, segundo Vygotski, está na base da teoria piagetiana (VIGOTSKI, 2001b,
p.103). Para Piaget a construção da inteligência da criança segue necessariamente certas
fases e estágios, independente de qualquer tipo de instrução, ensino ou aprendizagem.
O segundo grupo iguala os processos de aprendizagem e desenvolvimento,
entendendo os dois, como processos de associação concorrendo para a formação de hábitos.
Para Vygotski, tanto as teorias do primeiro grupo quanto as desse segundo grupo vêem o
desenvolvimento como um processo de elaboração e substituição de respostas inatas,
cabendo à educação apenas organizar os hábitos de conduta e as tendências
comportamentais adquiridas. Vygotski propõe como representante desse segundo grupo
W.James.
O terceiro grupo é representado pela teoria gestaltista. De acordo com Vygotski há,
por parte dos gestaltistas, uma tentativa de dar conta da relação entre aprendizagem e
desenvolvimento através da reconciliação dos dois grupos apresentados acima. No entanto
para os gestaltistas, em especial para Koffka, o desenvolvimento é sempre maior do que o
aprendizado, uma vez que esta teoria pressupõe haver uma certa ordem intelectual capaz de
tornar possível a transferência dos aprendizados em uma certa área, ou de uma certa tarefa,
para outras áreas ou tarefas.
Portanto é contra essas três posições que o psicólogo russo afirma o conceito de
ZDP. Para Vygotski a solução adequada para o problema da relação entre desenvolvimento
e aprendizagem deveria comportar a análise da relação geral entre esses dois processos, e as
mudanças que se produzem em função da entrada da criança na escola. Assim, Vygotski
considera importante a distinção entre o aprendizado formal ou escolar, do aprendizado
espontâneo.
Conforme vimos no ponto anterior, desde o primeiro dia de vida da criança as
relações entre aprendizagem e desenvolvimento se fazem sentir (Ibidem, p.110). O
aprendizado não tem início na escola, mas começa a partir do momento em que a vida se
inicia. O aprendizado espontâneo, diferentemente do aprendizado formal, tem por base a
experiência concreta da criança, sua vivência. Quando a criança entra em uma instituição
de ensino formal uma transformação importante acontece na forma como ela passa a
aprender. Na escola o que está em jogo é o aprendizado de conhecimentos científicos, que é
estruturado e sistematizado para que as crianças possam se apropriar dele da melhor forma.
97
Toda a apropriação do conhecimento científico fornecido pela escola, ou, em outros termos,
todo o aprendizado formal faz-se com base no aprendizado espontâneo e, por outro lado o
aprendizado formal implica o estabelecimento de uma outra relação da criança com o
conhecimento espontâneo (VYGOTSKI, 1934/2001, p.250). Através do aprendizado
formal, a criança passa a reconhecer no conhecimento espontâneo um conhecimento, isto é,
ela passa a lidar com o conhecimento fruto da experiência de modo consciente. Assim, a
idéia aqui é que o aprendizado se faz sempre sobre os limites daquilo que se sabe e do que
se é, transformando-nos. A aprendizagem em seu sentido mais amplo, ou a unidade
dialética aprendizagem-desenvolvimento afirma-se como um processo contínuo que se faz
no viver. Portanto torna-se difícil determinar o início ou o fim de um processo de
aprendizagem, pois início e fim passam a ser recortes arbitrários de um processo de
transformação maior. A ZDP é, então uma tentativa de conceituar a relação entre
aprendizagem e desenvolvimento, que se afirma como um processo circular orientado para
o futuro.
Dito de outro modo, a ZDP diz respeito a uma região, a um campo que aparece no
presente, a partir do auxílio do outro (cooperação), e aponta para o futuro. Nas palavras de
Vygotski: “A discrepância entre a idade mental real de uma criança e o nível que ela atinge
para resolver problemas com o auxílio de outra pessoa indicam a Zona de Desenvolvimento
Proximal” (VIGOTSKI,1998, p.128-129). Assim, Vygotski trabalha com a idéia de dois
níveis de desenvolvimento, um que diz respeito às atividades que as crianças realizam
sozinhas (funções já adquiridas), e outro, que se refere as atividades que só são realizadas
com o auxílio do outro. O desenvolvimento propriamente dito está neste segundo nível, que
se refere não aos ciclos já alcançados, mas aqueles que serão alcançados no futuro. É neste
contexto que aparece a idéia de “boa aprendizagem”. A ‘boa aprendizagem’ é aquela que se
faz nessa zona ou região que se instaura entre os sujeitos. Cito Vygotski: “O ensino
(aprendizagem) deve orientar-se não para o ontem, mas para o amanhã do desenvolvimento
infantil. Só então a instrução poderá provocar os processos de desenvolvimento que se
acham na ZDP” (VYGOTSKI, 1934/2001, p.242).
Chamamos atenção para a idéia de limite que está presente na ZDP. Ao referir-se à
imitação como lugar de criação da ZDP, Vygotski, observa que existem limites para o
98
imitar. As crianças não conseguem imitar tudo, mas sim, apenas aquilo que está dentro dos
limites de sua ZDP. Cito Vygotski:
Temos afirmado que a criança é capaz de realizar em colaboração muito mais do que por si só. Mas temos que advertir que não infinitamente mais, mas dentro de suas possibilidades intelectuais. Em colaboração a criança resulta mais forte e mais inteligente que quando atua sozinha, se eleva mais no que diz respeito ao nível das dificuldades intelectuais que supera, mas sempre existe uma determinada distância estritamente regulada, que determina a divergência entre o trabalho independente e a colaboração (Ibidem, p.240).
Assim, embora a aprendizagem deva ser orientada para o futuro, é preciso que seja
um futuro não muito distante, caso contrário a situação perde o sentido e não se produz
nada de novo. Assim, Vygotski adverte: “As possibilidades de aprendizagem são
determinadas na ZDP” (Ibidem , p.242). Mas note-se que a ZDP não é dada pronta e nem é
a mesma para diferentes crianças de uma mesma idade (Ibidem, p.239-240). A ZDP
apresenta-se como uma região construída com um outro, sendo constantemente alterada.
Neste sentido numa situação de ensino-aprendizagem devemos nos concentrar na ZDP, de
modo a expandi-la. Comparando com a idéia apresentada por Varela, de que não existe
breakdown em geral, mas que toda a perturbação implica a criação de um tipo específico de
sensibilidade, poderíamos pensar a ZDP como uma zona de sensibilidade que se cria
coletivamente e que tem a possibilidade de nos conduzir para além de nós mesmos através
da aprendizagem.
A partir deste tipo de argumentação, autores que trabalham com a teoria histórico-
cultural na interface da psicologia com a educação, afirmam que a teoria vygotskiana nos
apresenta uma visão prospectiva do desenvolvimento. Desenvolver-se não é realizar bem
aquilo que se sabe, não é recognição, mas é através do auxílio do outro, do aprendizado, ir
além, trabalhar sobre os limites do que se é (SANCOVSCHI, 2004). Assim, a ZDP
apresenta-se não apenas como um importante conceito para pensarmos a construção da
cognição, como também aponta para a dimensão coletiva dessa construção.
No entanto quando atentamos para o estatuto desse outro que auxilia na criação da
ZDP, vemos aparecer um problema. A questão é que, para Vygotski, esse outro é um outro
99
mais experiente, podendo ser tanto um adulto ou uma criança15 e assume como tarefa
conduzir o desenvolvimento em direção à apropriação da cultura existente. Cito:
A Zona de Desenvolvimento proximal “é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes (Ibidem, p.112 – grifo nosso).
Esta idéia está em consonância com a colocação do problema do desenvolvimento
para Vygotski. Conforme procuramos demonstrar, a idéia da apropriação da cultura está no
cerne da teoria histórico-cultural. Já discutimos o quanto esta idéia é ambígua, podendo nos
conduzir tanto a afirmação de uma certa teleologia no pensamento vygotskiano (TUDGE,
1996), quanto à afirmação de uma indeterminação no processo de construção, em função da
noção de significação.
Não resta dúvida que Vygotski avança muito em relação aos outros teóricos do
desenvolvimento, postulando um desenvolvimento que não se antecipa à aprendizagem,
mas que se faz com a aprendizagem. No entanto, ainda que possamos relativizar aquilo que
se entende como apropriação da cultura, ainda que enxerguemos aí um certo
posicionamento político, resta existindo uma direção que pressupõe uma orientação ao
processo de desenvolvimento. Em última análise o fim, o objetivo último do
desenvolvimento seria conduzir o indivíduo à apropriação da cultura, onde esta, conforme
aponta Knox (1996, p.27), é marcada por um referencial eurocêntrico. Sem dúvida, é
importante observar que a idéia de uma orientação no processo de desenvolvimento ganha
aqui um sentido bastante singular. Esta seria algo que se faz nas interações e cujo caminho
seria definido pelo(s) outro(s), pelo desenvolvimento sócio-cultural e cognitivo do(s)
outro(s). Isto é muito diferente, por exemplo, da perspectiva piagetiana, que propõe um
desenvolvimento de “caminho necessário”, onde o telos é pressuposto desde sempre de
modo absoluto. Para Piaget o destino de todo o desenvolvimento e de toda a aprendizagem
é o pensamento lógico-formal (PIAGET, 2001).
Zanella (2001) apresenta alguns estudos recentes sobre a Z.D.P que se constituem
como desdobramentos do conceito vygotskiano. Em especial está nos interessando o estudo
15 Zanella (2001) salienta que, Vygotski ateve-se, em seus escritos, à interação adulto/criança, embora esse outro mais experiente possa ser tanto um adulto quanto uma criança.
100
de Olivera & Rosseti-Ferreira (1993), que investiga as relações entre pares (criança/criança)
em um contexto em que não há um objetivo específico. A interação entre as crianças não
está delimitada por nenhum problema a ser resolvido – assim, diríamos que esta interação
está mais próxima da situação de brincadeira. O que está em foco é a própria interação.
Neste caso o que se passa no espaço intermediário? Ao descrever esse estudo, Zanella,
diferencia-o de outros, que também irão estudar a Z.D.P entre pares, mas onde há um
objetivo específico e prévio à interação. Segundo a autora, este último tipo de relação entre
pares muito se aproxima da relação adulto/criança, uma vez que é prevista a existência de
alguém mais experiente que guiaria a menos experiente. Zanella, coloca, então, uma
interrogação importante: “Faz-se mister que haja, sempre, uma considerável assimetria
entre os indivíduos em interação para que esta promova o desenvolvimento? Tal assimetria
implica, necessariamente, que o sujeito menos competente irá aprender com o sujeito mais
competente?” (ZANELLA, 2001, p.107).
Essas são, para nós, algumas das questões que precisam ser pensadas para que
possamos conduzir o conceito de Z.D.P à sua maior potência, podendo revelar na teoria
vygotskiana contribuições para pensarmos uma noção de aprendizagem que não se restrinja
à atividade recognitiva. Assim nos perguntamos: Por que conceber o aprendizado na Z.D.P
como caminhando em uma direção única? Se se trata de um campo, de uma zona, não seria
mais acertado pensarmos a aprendizagem nesta região como a criação de um campo de
articulações, de espaços de afetações, onde o que muda, na medida em que muda, também é
mudado? Será que a pessoa mais experiente, aquela que já se apropriou da cultura, será que
ela não se modifica nesta relação que se cria na ZDP? Note-se que não estamos com isso
desprezando o papel do professor ou daquele que já caminhou um pouco mais e que por
isso provavelmente detém mais conhecimento. No entanto, nos parece fundamental que
mesmo a pessoa mais experiente possa experimentar os choques e as contradições numa
situação de ZDP, ainda que esta tenha sido estabelecida com pessoas menos experientes.
Vygotski em seus trabalhos (VYGOTSKI, 1934/2001) não se preocupa com estas
questões, talvez em função de seu contexto sócio-cultural, talvez em função das questões
que estivesse procurando resolver. Desse modo, para o psicólogo russo parece que não
restavam dúvidas que a assimetria é importante para o desenvolvimento na medida em que
o sujeito menos experiente sempre aprende com o mais experiente. Zanella (2001), ao
101
resgatar a discussão de Tudge (1996), aponta autores que afirmam que embora nas
interações adulto/criança a posição de Vygotski pareça correta, isto é, a assimetria é
importante e ela conduz ao desenvolvimento, na relação entre pares a variável “confiança”
pode intervir e alterar a direção da relação. A idéia é que uma criança menos competente,
porém mais confiante, pode acabar guiando a dinâmica da Z.D.P, ao invés da mais
competente, porém menos confiante. Nos parece que esta colocação é importante, pois abre
uma nova via de análise, mas esta excede os limites do trabalho.
Acreditamos que o que foi dito e discutido a respeito da Zona de Desenvolvimento
Proximal é suficiente para fazer ver que a cognição é para Vygotski o resultado de uma
construção, e que esta pressupõe a constante participação do social. Nossa forma de
conhecer é constantemente alterada por aquilo que passamos a conhecer. Trata-se da
dialética aprendizagem-desenvolvimento, onde um não se define sem o outro. Neste
sentido, Vygotski vai além da maioria dos teóricos tanto do desenvolvimento quanto da
aprendizagem. A idéia da “boa aprendizagem” como sendo aquela que se antecipa ao
desenvolvimento, revela-se preciosa, especialmente quando estamos interessados em pensar
com Varela e Vygotski contribuições para uma nova forma de abordar a aprendizagem em
psicologia que não se limite à solução de problemas ou a um processo puramente
adaptativo no sentido forte deste termo.
2.4.3 – Aprendizagem e as vias colaterais de desenvolvimento: sobre a teoria
compensatória em defectologia
Embora trabalhar a temática da aprendizagem através das vias colaterais - ou vias de
rodeio - possa parecer redundante, uma vez que poderíamos explicá-las a partir das
discussões anteriores, acreditamos haver aí sutilezas que são de elevado interesse para o
presente trabalho. Certamente, pensar o mecanismo da aprendizagem através das vias
colaterais possui pontos em comum com considerar a aprendizagem por meio de mediações
e internalizações, ou mesmo com as questões levantadas a respeito da ZDP. No entanto,
através da noção de vias colaterais de desenvolvimento, nos parece que Vygotski acaba por
enfatizar os aspectos da singularidade, e risco do processo de construção da mente.
102
O tema das vias colaterais de desenvolvimento aparece na obra vygotskiana por
ocasião dos estudos de defectologia, mais especificamente em função da teoria da
compensação. A defectologia, conforme explica Vygotski, é um campo que se dedica a
estudar a variabilidade qualitativa do processo de desenvolvimento de pessoas com
deficiências. A teoria da compensação considera que o defeito ou a deficiência, mais do que
uma falta ou um limite intransponível, representa a possibilidade de criação de novas vias,
capazes de superá-los. Nas palavras de Vygotski: “A teoria da compensação descobre o
caráter criativo do desenvolvimento orientado para esse caminho” (VYGOTSKI,
1927/1997b, p.16). Note-se que foi pela via da defectologia que Vygotski iniciou seus
estudos sobre o desenvolvimento cultural. Dessa forma percebemos aí o germe de algumas
idéias que ele desenvolveu mais tarde, como é o caso de sua noção singular de
desenvolvimento, e o papel do social neste processo (ZDP).
O interesse por trazer a noção das vias colaterais de desenvolvimento e a teoria da
compensação para a discussão não é pensar a especificidade que pode haver no processo de
aprendizagem de pessoas com deficiências. Nossa proposta é pensar aqui esta idéia das vias
colaterais e da compensação como sendo o funcionamento “normal” ou funcional da
cognição. É Vygotski quem fornece o caminho: “A lei da compensação é aplicável tanto no
desenvolvimento normal quanto no agravado” (Ibidem, p.15). E ainda:
A supercompensação não é um fenômeno raro ou excepcional na vida do organismo. Podemos citar uma infinidade de exemplos da mesma. É, em alto grau, um traço comum dos processos orgânicos, amplamente difundido e vinculado às leis fundamentais da matéria viva (Ibidem, p.41).
Tendo por base essas frases e a presença no texto Historia Del desarrollo de las
funciones psíquicas superiores (VYGOTSKI, 1931/2000) de inúmeras referências às vias
colaterais de desenvolvimento , acreditamos ser possível e interessante fazer este tipo de
extrapolação.
É em função da forma singular com que Vygotski coloca o problema do deficiente
que torna possível postular a noção de vias colaterais. Para ele:
Todo defeito cria estímulos para elaborar uma compensação. Por isso o estudo dinâmico da criança deficiente não pode limitar-se a determinar o nível de gravidade da insuficiência, mas inclui obrigatoriamente a consideração dos processos compensatórios, quer dizer, substitutivos, sobreestruturados e
103
niveladores, no desenvolvimento e na conduta da criança (VYGOTSKI, 1927/1997b, p.14).
As vias colaterais ou vias de rodeio representam formas possíveis de contornar o
problema em questão. As vias colaterais são portanto invenção de novas condutas diante de
uma impossibilidade.
Um aspecto trazido pela teoria da compensação, que depois acaba perdendo-se na
obra vygotskiana, é a idéia de que a compensação pode não acontecer. Nas palavras do
autor russo: “Crer que qualquer defeito se compensará inelutavelmente é tão ingênuo como
pensar que qualquer enfermidade termina sempre na recuperação” (Ibidem, p.53). Ou seja
as vias colaterais são soluções possíveis, porém elas não estão garantidas de antemão. A
existência de uma deficiência aponta para um componente de indeterminação e de risco no
processo de desenvolvimento. Cito:
Seria um erro supor que o processo de compensação sempre termina em uma vitória, em um êxito, conduz sempre a formação de talento a partir do defeito. Como qualquer processo de superação e de luta, também a compensação pode ter dois desenlaces extremos: a vitória e a derrota, entre os quais situam-se todos os outros graus possíveis de transição de um pólo ao outro. O desenlace depende de muitas causas, mas no fundamental, da correlação entre o grau de insuficiência e a riqueza da torrente compensatória (Ibidem, p.16).
Uma vez que no desenvolvimento das funções psíquicas superiores também está em
jogo uma luta – faço referência as noções de choque e contradição trabalhadas
anteriormente – porque considerar o risco apenas aqui? Lembrando que Vygotski define o
desenvolvimento como sendo um processo onde o que está em questão são revoluções e
não evolução, como um processo revolucionário poderia fazer-se sem riscos e sem
indeterminação quanto a seus resultados?
Outra questão que aparece nas discussões sobre a teoria compensatória é a ênfase no
fato de que a formação da personalidade da criança nada mais é do que um processo de
criação e recriação. Cito:
Mas seja qual for o desenlace que se espere, o processo de compensação sempre e em todas as circunstâncias o desenvolvimento agravado por um defeito constitui um processo (orgânico e psicológico) de criação e recriação da personalidade da criança sobre a base da reorganização de todas as funções de adaptação da formação de novos processos sobreestruturados, substitutivos, niveladores, que são gerados pelo defeito, e da abertura de novos caminhos de rodeio para o
104
desenvolvimento. Um mundo de formas e vias novas de desenvolvimento, ilimitadamente diverso, abre-se diante da defectologia (Ibidem, p.16-17).
Não parece destituído de sentido perguntar se no desenvolvimento da criança
“normal” também não ocorre algo da mesma natureza.
As vias colaterais são constituídas a partir de mediações singulares, permitindo o
desenvolvimento cultural de pessoas com deficiências, conduzindo-as para além de seus
limites biológicos. No entanto, nos parece possível afirmar que mais do que o conceito de
mediação, a noção de vias colaterais ou vias de rodeio abre a possibilidade de pensar a
unidade dialética aprendizagem-desenvolvimento como a realização ou a criação de
caminhos singulares. As vias colaterais não seriam, neste sentido, atalhos para chegar a um
mesmo lugar, mas aberturas para vidas possíveis em um determinado contexto sócio-
histórico. Parece que esta noção nos permite colocar em evidência o momento necessário e
fundamental para o desenvolvimento, que é a invenção de mediadores. As vias colaterais
chamam atenção para o fato de que as mediações não são dadas desde sempre. Neste
sentido, elas possibilitam inclusive que se entenda a construção ou invenção da cultura.
Na criança normal, o plano cultural de desenvolvimento e o plano biológico
convergem. Do ponto de vista do observador parece haver uma passagem espontânea, sem
contradições ou conflitos, do plano biológico para o cultural. Mediadores como
instrumentos e linguagem, que são frutos de aprendizagem, parecem aparecer como
resultados necessários. No entanto, se analisarmos mais de perto o processo veremos que se
tratam apenas de vias facilitadas pela inserção em um certo tipo de cultura. Quando
trazemos à cena a temática da aprendizagem-desenvolvimento de crianças cegas ou surdas,
por exemplo, é preciso que sejam pensadas vias colaterais em substituição dessas vias
facilitadas. Assim, afirma Vygotski (Ibidem), como substituição da linguagem escrita (via
facilitada) é preciso criar o Braile (via colateral) e, ao invés da linguagem oral, a linguagem
de sinais.
Note-se que Vygotski ainda fica restrito às vias colaterais comuns, aquilo que já está
difundido na nossa cultura. Mas, a nosso ver, seria o caso de ir mais longe e colocar o
problema das vias colaterais singulares. Em função da ênfase na dimensão inventiva da
cognição e por conseguinte da aprendizagem, interessa-nos pensar se tais vias colaterais
105
não conferem à aprendizagem um papel ainda mais relevante, complicando a
horizontalidade já entrevista na linha vertical do desenvolvimento.
Para nos ajudar a pensar tais questões trazemos um exemplo de um caso relatado
pelo neurocientista Oliver Sacks (1997)16. Trata-se do caso do Dr.P. O Dr.P. era um
homem, professor de música, que em sua juventude havia sido não só um músico excelente,
mas também um ótimo cantor. A música fazia parte de sua constituição. Em determinado
momento de sua vida, viu-se diante de uma complicada e embaraçosa situação, não
conseguia mais reconhecer as coisas e nem a si mesmo. Estava com um problema nas
partes visuais de seu cérebro. Recuperamos o relato de Sacks:
Assim que o vi, em poucos segundos ficou evidente que não havia traço algum de demência na acepção comum do termo. Ele era um homem muito culto e simpático, falava bem, com fluência, imaginação e humor. Eu não podia imaginar por que ele tinha sido encaminhado à nossa clínica (Ibidem, p.23).
Embora Dr.P não pudesse reconhecer mais nada, ele tinha uma vida aparentemente
“normal”, conforme relata Sacks. Como poderia ser? A solução encontrada por Dr. P diante
dos impasses colocados pela vida cotidiana e pela impossibilidade de realização das tarefas,
as mais ordinárias, pelos caminhos antes aprendidos, foi “criar” novas mediações. As
mediações (ações instrumentais) antes realizadas e que conferiam a ele uma identidade e
um mundo de sentido, não mais lhe serviam em função de sua doença. Ele agora cantava, e
a música permitia a ele criar uma continuidade em suas ações de modo que era ela, e não
mais a visão, que orientava suas ações. Eis o relato de Sacks:
Segui sua esposa até a cozinha e perguntei como, por exemplo, ele conseguia vestir-se. ‘Do mesmo modo como ele come’, ela explicou. ‘Eu deixo fora suas roupas de costume, em todos os lugares de costume, e ele se veste sem dificuldade, cantando para si mesmo. Faz tudo cantando para si mesmo. Mas, se for interrompido, ele perde o fio da meada, pára completamente, não reconhece suas roupas – nem seu corpo. Ele canta o tempo todo – canções de comer, canções de vestir, canções de banho, de tudo. Não consegue fazer uma coisa se não a transformar em uma canção (Ibidem, p.31).
16 Sacks em seu livro O homem que confundiu sua mulher com um chapéu faz referência à A.Luria afirmando algumas continuidades entre seus trabalhos. A.Luria foi, não apenas, um importante colaborador de Vygotski, como em vários momentos afirma ter seguido as orientações vygotskianas no desenvolvimento de suas pesquisas (Luria, 1992).
106
A música e as canções nada mais são do que mediadores possíveis para que Dr.P.
pudesse continuar vivendo em um mundo que não mais tinha sentido para ele. Ele precisou
reinventar seus mediadores, descobrir novas ferramentas para se relacionar com o mundo,
com os outros e consigo. Aquelas que haviam lhe servido até então, em função de sua
doença, não mais lhe serviam. As vias facilitadas não mais o ajudavam a se relacionar com
o mundo, com as pessoas e consigo mesmo. As vias colaterais apresentaram-se como
saídas. Chamo atenção aqui para o caráter singular dessa via colateral17. A música serviu
para o Dr,P, mas pode não servir como regra geral. Neste sentido o caso do Dr.P aponta
para um aspecto importante da invenção de mediadores, ela não faz do nada - não se trata
de uma invenção ex-nihilo -, mas se faz a partir daquilo que o constituía. Assim a invenção
afirma-se principalmente como recombinação daquilo já estava presente em sua história,
jamais partimos do zero.
Esse exemplo, assim como grande parte dos casos relatados por Sacks são
interessantes para pensarmos a teoria vygotskiana e conduzi-la além de seus limites. Trata-
se de um caso onde, depois de uma vida já constituída, ocorre um corte em função de uma
doença. Neste sentido, chama-nos atenção o caráter de invenção ou construção que
caracterizam nossos mediadores. Através da pesquisa transcultural, Luria chegou a
conclusões semelhantes: “Todas as categorias a que fomos acostumados a pensar como
naturais são, na verdade, sociais” (LURIA, 1990, p.87).
Por outro lado este exemplo traz à cena o papel fundamental do social neste
processo de aprendizagem-desenvolvimento. Foi pelo confronto de Dr.P. com o social, com
outras pessoas que ele pode reinventar seus mediadores, inventando-se novamente a si e a
seu mundo. As vias colaterais são respostas possíveis para os impasses enfrentados pelas
pessoas que apresentam algum tipo de deficiência. Estes impasses, ou limites em geral são
impostos pelo convívio social. Cito:
Se ao desenvolvimento de uma criança deficiente não se lhe colocasse exigências sociais (objetivos), se esses processos fossem entregues ao domínio das leis biológicas, se a criança anormal não se visse ante a necessidade de converter-se em uma unidade social determinada, em um tipo social de personalidade, então seu desenvolvimento conduziria à criação de uma nova espécie de homens. Mas como os objetivos lhe estão colocados de antemão ao desenvolvimento (pela necessidade de adaptar-se a um meio sociocultural destinado a um tipo humano
17 Ver também o caso Madaleine J. (Sacks, 1997, p.75).
107
normal), tampouco a compensação flui livremente, mas por um determinado caminho social (VYGOTSKI, 1927/1997, p.19).
Neste sentido a idéia de uma heterogeneidade do social é fundamental para
pensarmos os processos tanto de aprendizagem quanto de desenvolvimento: “Essas
coletividades heterogêneas, no que diz respeito a seu nível intelectual são as mais
desejáveis” (VYGOTSKI, 1932/1997, p.224). E ainda: “O idiota que se encontre entre
outros idiotas, ou o imbecil que se acha entre outros imbecis, vê-se privado desta fonte
vivificante de desenvolvimento” (Ibidem, p. 225). Aqui uma idéia importante é a da
diferença entre os planos biológico e social da deficiência. Cito Vygotski:
O defeito e a falta de desenvolvimento das funções superiores encontram-se em uma relação distinta quando comparadas com o defeito ou desenvolvimento insuficiente das funções elementares. É preciso captar esta diferença para encontrar a chave de todo o problema da psicologia da criança anormal. Enquanto o desenvolvimento incompleto das funções elementares é, com freqüência, conseqüência direta de algum defeito (por exemplo, o desenvolvimento incompleto da motricidade na cegueira, o desenvolvimento incompleto da linguagem na mudez, e o desenvolvimento incompleto do pensamento no retardo mental, etc.), o desenvolvimento incompleto das funções superiores na criança anormal aparece, em geral, como um fator secundário, suplementar, que se erige sobre a base de suas particularidades primárias (VYGOTSKI, 1932/1997, p.221).
Para Vygotski é no plano social onde estão as possibilidades de superação da
deficiência (Ibidem, p.221). Trata-se do desenvolvimento das vias colaterais, a partir da
invenção ou criação de outros mediadores: “A dialética do desenvolvimento e da educação
da criança anormal consiste, entre outras coisas, que não se realiza por via direta, mas
indireta” (Ibidem, p.222). Assim, a criança cega utiliza-se do Braile, ao invés da linguagem
escrita convencional; a criança surda utiliza-se da linguagem dos sinais, ao invés da fala,
etc.
Uma outra questão que o exemplo de Sacks nos força a pensar é que a invenção ou
criação dos novos mediadores, na maioria dos casos, são resultado não da genialidade dos
pacientes, mas de construções coletivas. Embora referindo-se à questão da imaginação e da
arte na infância, Vygotski chega a esta mesma formulação. Vejamos:
Existe criação não apenas ali onde tem origem os acontecimentos históricos, mas também onde o ser humano imagina, combina, modifica e cria algo novo, por mais insignificante que esta novidade pareça ao ser comparada com as realizações dos grandes gênios. Se agregamos a isto a existência da criação coletiva que agrupa todas essas contribuições insignificantes da criação individual, compreenderemos quão imensa
108
é a parte de tudo o que foi criado pelo gênero humano correspondente, precisamente a criação anônima coletiva de inventores anônimos (VYGOTSKI, 2003, p.11).
Por fim, o exemplo nos coloca diante da questão da dialética aprendizagem-
desenvolvimento pensada para além da questão da criança. O problema não é apenas de
apropriação da cultura por uma criança. Certamente pensar o processo de aprendizagem e
desenvolvimento a partir da criança coloca-nos diante de certas singularidades no processo.
Para a criança, o sentido do mundo e o próprio sentido de si ainda está sendo construído.
No entanto, isso não significa que não se possa pensar processos de aprendizagem e
desenvolvimento em adultos e até mesmos em idosos. Neste sentido, o exemplo acima
ajuda a sustentar a idéia de que o processo de aprendizagem-desenvolvimento é um
processo sempre inacabado, passível de ser desestabilizado a qualquer momento.
2.5- Política e fazer científico
Vimos, no capítulo anterior como para Varela, a proposição da abordagem enativa
deveu-se não só ao contexto científico no qual estava inserido, mas também ao contexto
político e a uma certa política epistemológica que orientava o autor chileno na colocação
dos problemas. Tal relação íntima entre fazer ciência e política encontra-se também no seio
da teoria histórico-cultural. Esta surge no contexto das mudanças ocorridas na Rússia após
a revolução de 1917. Tal revolução teve um caráter bastante peculiar, pois foi
eminentemente popular. Ela não foi obra de uns poucos insatisfeitos, mas fruto de uma
vontade coletiva. Citamos: “Esta revolução do início de 1917 foi, na concepção de
Marabini, resultante do levante popular frente aos desmandos do governo. Não existiam
mentores, não existiam heróis isolados. Houve um único responsável:o povo russo”
(ZANELLA, 2001, p.37). Neste sentido, havia no território russo ao mesmo tempo uma
grande insatisfação com a situação vigente e um entusiasmo revolucionário. É neste clima
que surge a concepção histórico-cultural.
Luria, um importante colaborador de Vygotski afirma:
A Revolução nos libertou – especialmente a geração mais jovem – para a discussão de novas idéias, novas filosofias e sistemas sociais (...). Fomos arrebatados por um grandioso movimento histórico (...). A atmosfera que se
109
seguiu imediatamente à Revolução proporcionou a energia para muitos empreendimentos ambiciosos (LURIA, 1992, p.24-25).
Neste sentido a revolução, ao remexer nas bases da sociedade, acabou reverberando
em muitos campos. Nas palavras de Luria: “A partir da Revolução soviética, pelo tempo
aproximado de uma década, houve muita experimentação e improvisação na condução da
ciência, da educação e da política econômica soviéticas” (Ibidem, p.17). A psicologia não
passou ilesa por esse processo. Era preciso construir uma psicologia inspirada na filosofia
marxista, ou seja uma psicologia que não se limitasse às discussões entre as correntes
materialista mecanicista e subjetivista no interior dos laboratórios, mas que pudesse intervir
no mundo contribuindo na construção de uma sociedade socialista (Ibidem). Assim nasceu
a psicologia vygotskiana. O objetivo de Vygotski era construir uma psicologia concreta
sobre referenciais marxistas de modo a poder contribuir tanto para a superação da crise que
este campo vinha enfrentando, quanto para a construção de uma nova sociedade.
Assim, a política interferiu na psicologia vygotskiana na medida em que a
possibilitou colocar diferentemente os problemas, abrindo-a para novas soluções. A
concepção histórico-cultural está impregnada por uma certa forma de pensar que acredita
na potência do fazer humano. Conceitos como o de desenvolvimento, o de mediação, o de
Zona de Desenvolvimento Proximal e o de vias colaterais de desenvolvimento não são
apenas elaborações científicas, mas constituem-se sobre uma aposta que é ético-política. A
saber: que o homem é um ser histórico e social, isto é, ele se constitui na cultura e participa
ativamente desta construção (ZANELLA, 2004). Neste sentido, se quisermos compreender
o alcance desta psicologia é preciso considerar a dimensão política que a compõe e
atravessa.
2.6 – Contribuições da psicologia histórico-cultural ao tema da aprendizagem: algumas
sínteses
Em um primeiro momento, procuramos pensar o mecanismo da aprendizagem
através das relações entre os processos de mediação e de internalização. Neste sentido
através da relação mediação - internalização explicamos como as relações sociais
encarnam-se em uma pessoa, e, ao mesmo tempo, como esta pessoa constitui o social, a
110
partir das ações instrumentais. Vimos como a linguagem assume um papel de destaque
neste processo, desse modo, as mediações semióticas são essenciais para a explicação da
constituição do sujeito. Chamamos atenção para a circularidade do mecanismo. O sujeito
cria-se a si e ao seu mundo em um mesmo movimento. Tal movimento deve ser
compreendido a partir das ações instrumentais. Através do uso de instrumentos e de signos,
o homem altera a natureza, alterando a si próprio. A circularidade funda-se, portanto, no
pressuposto de que o homem é um ser que possui uma adaptação ativa. Ou seja, o homem
não é determinado pelo ambiente. Neste sentido pensar a aprendizagem a partir da
concepção vygotskiana implica um afastamento de concepções pautadas no determinismo
ambiental. Note-se aqui a aposta ético-política na colocação do problema. Embora a idéia
de constituição de um mundo para o sujeito não seja evidente nos textos vygotskianos, ela
nos parece compatível com a teoria do psicólogo russo. É através da noção de significação
que vemos surgir tanto o sujeito quanto seu mundo. As discussões a respeito das vias
colaterais do desenvolvimento, conforme vimos, também permitem que caminhemos nesta
formulação.
Através dos conceitos de Zona de Desenvolvimento Proximal - num segundo
momento -, e das vias colaterais de desenvolvimento - num terceiro momento -, analisamos
como o(s) outro(s) é essencial para a concepção de aprendizagem pensada a partir da teoria
de Vygotski. Aqui surge a questão da intersubjetividade no processo de aprendizagem.
Conforme vimos também com Varela, parece que a aprendizagem no domínio humano, nos
força a pensar o problema do ensino. Sobre isso é interessante notar que a palavra utilizada
por Vygotski para referir-se à aprendizagem pode também significar ensino. Assim,
algumas traduções, como é o caso da espanhola (VYGOTSKI, 1934/2001), referem-se à
ZDP como relação ensino-desenvolvimento, e outras, como é o caso da brasileira, referem-
se à relação aprendizagem-desenvolvimento (VIGOTSKI, 1998, 2001b).
Voltando a questão do(s) outro(s) fundamental no processo, vimos que ele(s) força
os limites daquilo que já está constituído, implicando o sujeito em um processo de
aprendizagem. A aprendizagem não pode ser explicada, portanto, como uma simples
relação entre um sujeito – já constituído – e um objeto – dado para ser conhecido -, uma
vez que é ela que constitui o próprio sujeito e o próprio mundo. Lembramos aqui a
formulação vygotskiana da “boa aprendizagem”, que foi trabalhado por ocasião da ZDP. A
111
boa aprendizagem é aquela que se antecipa ao desenvolvimento, conduzindo para além do
que se é. Note-se que existe um limite de sensibilidade que garante a eficácia ou não de
uma aprendizagem na condução do desenvolvimento. Este limite é determinado pela ZDP.
Conforme mostra Vygotski – nas discussões sobre a imitação -, existe um limite entre
aquilo que ainda não se sabe fazer sozinho, mas que se pode fazer em colaboração,
imitando, etc. e aquilo que aparece completamente sem sentido e que não produz
transformação alguma. A boa aprendizagem faz-se neste limite, portanto ela não é nem
recognição e nem nonsense.
Através das vias colaterais discutimos a questão da singularidade e do risco no
processo de aprendizagem e desenvolvimento. Neste sentido, fomos um pouco além de
Vygotski e procuramos entender as vias colaterais não apenas como desvios para se
alcançar um mesmo desenvolvimento, mas como uma produção de formas singulares de se
inventar a si e ao mundo a partir da criação de mediadores singulares. Embora o tema das
vias colaterais apareça na obra vygotskiana no contexto de discussão que envolve o
desenvolvimento das pessoas portadoras de necessidades especiais, propusemos extrapolá-
lo e trazê-lo para uma discussão sobre o próprio do processo de aprendizagem.
Através da discussão do caso do Dr.P (SACKS, 1997) mostramos o papel
fundamental do social (outros) na dialética aprendizagem-desenvolvimento. Neste sentido
apontamos para a importância da heterogeneidade do social em contextos de aprendizagem,
e para as possibilidades que a dimensão social traz para a superação de dificuldades que são
biológicas. A questão da invenção dos mediadores mostrou-se como um ponto importante.
Através do exemplo argumentamos que esta invenção se faz sempre a partir de uma
história. Por fim discutimos a impossibilidade de pensarmos um fim para o processo de
aprendizagem-desenvolvimento.
112
ALGUMAS RESSONÂNCIAS ENTRE A ABORDAGEM ENATIVA E A
PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL
Buscar ressonâncias não é o mesmo que encontrar o igual, mas identificar sintonias
ou vibrações numa certa direção. Assim, encontrar ressonâncias entre a abordagem enativa
e a psicologia histórico-cultural não significa apagar as diferenças e as singularidades de
cada uma delas. Pelo contrário, as ressonâncias só poderão ser encontradas, ou melhor,
construídas, admitindo-se as particularidades de cada uma. Neste sentido, ao longo deste
capítulo, realizaremos um percurso em zigue-zague, de idas e vindas em relação aos pontos
de aproximação e afastamento das duas abordagens. Acreditamos que é apenas nesse
movimento que as ressonâncias poderão ser definidas.
De saída, chamamos atenção para algumas diferenças que marcam os contextos em
que a teoria histórico-cultural do psiquismo humano e a abordagem enativa da cognição
foram produzidas.
Insatisfeito com a situação da psicologia no final do século XIX e início do XX
(VYGOTSKI, 1927/1997a) e preocupado com o destino da sociedade soviética (LURIA,
1992), Vygotski lançou as bases para o que tempos depois ficou conhecido como teoria
histórico-cultural do psiquismo humano. Neste sentido, esta teoria apresentava-se com um
duplo propósito: por um lado, pretendia solucionar a “crise da psicologia” (VYGOTSKI,
1927/1997a), constituindo-se como uma síntese de tudo aquilo que vinha se fazendo no
campo dos estudos psicológicos; por outro lado esta nova psicologia tinha por base um
projeto ético-político de construção de uma sociedade socialista (LURIA, 1992). É apenas
considerando este duplo propósito que podemos compreender o alcance desta nova forma
de conceber o psiquismo, que não se reduz nem a um simples processo corporal e nem a um
simples processo psíquico, mas que reúne de forma dialética os dois (VYGOTSKI,
1926/1997). Neste sentido a psicologia vygotskiana afasta-se tanto das teorias
comportamentalistas (reflexologia e behaviorismo), quanto das teorias subjetivistas ou
idealistas (VYGOTSKI, 1931/2000), embora ambas tenham fornecido importantes
contribuições para a formulação da psicologia histórico-cultural.
Varela, por sua vez, propõe a abordagem enativa da cognição no final do século XX
e início do XXI, a partir da interface entre a biologia e as ciências cognitivas. Seu trabalho
113
ficou inicialmente conhecido como Biologia do Conhecimento. A insatisfação do autor
chileno residia na forma como, a partir do movimento cognitivista, passou-se a conceber a
cognição e, por extensão, o vivo em geral e o homem, em particular (COSTA, 1993). A
teoria da informação estava longe de poder dar conta da complexidade da cognição viva
(VARELA, 1989). Por outro lado, a sociedade chilena atravessava uma fase de grande
entusiasmo possibilitado pelo projeto socialista de Salvador Allende, que o forçava a pensar
a questão da autonomia (COSTA, 1993; MATURANA E VARELA, 1997; GOLEMAN,
2003). Neste sentido, entender a complexidade da abordagem enativa implica considerar
tanto a sua critica ao paradigma informacional (modelo inputs-outputs) e representacional,
bem como levar às últimas conseqüências a idéia de autonomia como definidora de
qualquer sistema vivo.
A noção de uma cognição em construção é, neste trabalho, o principal fio que nos
ajudará a tecer a trama das ressonâncias, bem como a repensar a noção de aprendizagem.
Conforme foi visto nos capítulos anteriores, tanto Varela quanto Vygotski concebem a
cognição como algo que se faz no tempo – implica, portanto a ação ou a atividade – e
também, com o tempo. Não porque o tempo permite um amadurecimento das estruturas
cognitivas, mas porque é apenas com e no tempo que as interações ou os encontros com os
outros e com o mundo tornam-se possíveis. É apenas com e no tempo que se concretizam
as aprendizagens que possibilitam as transformações nas formas de ser e de conhecer.
Para Varela a atividade cognitiva pressupõe a organização autopoiética ou auto-
produtora. Esta implica o contato imediato com o mundo, incluindo aí outros organismos
vivos. Não existe auto-produção sem contato com outros organismos e com o mundo. A
autopoiese revela-se, portanto, como uma produção de si que só se realiza com os outros,
seja o mundo, sejam os organismos. Este contato aparece na teoria de Varela através do
conceito de acoplamento estrutural. O acoplamento, uma vez estabelecido, produz
variações na estrutura do organismo, criando novas formas de ser e de estar no mundo.
Note-se, a partir do que foi dito, que para a abordagem enativa a atividade cognitiva não se
restringe a uma capacidade cerebral, mas está encarnada no corpo ou, em outros termos, na
estrutura do organismo. Neste sentido, uma mudança na estrutura implica a modificação
das formas de ser e de conhecer. As mudanças estruturais criam novos campos de
sensibilidade que serão determinantes na realização dos novos acoplamentos, e por
114
conseguinte de novas aprendizagens. Como esclarece Maturana não se trata de adaptação a
um mundo dado:
A aprendizagem, como a diferenciação celular, não é um fenômeno de adaptação do organismo ao meio, é a conseqüência da epigênese do organismo com conservação de sua adaptação em um meio particular no qual a conservação da organização e a adaptação têm sido os referenciais operacionais para o caminho seguido pela mudança estrutural. O organismo está onde está porque manteve sua organização e sua adaptação em um meio mutável ou estático, e dizemos que aprendeu porque, comparativamente, vemos que sua conduta é diferente à de um momento anterior de uma maneira contingente a sua história de interações. Sem comparação histórica não podemos dizer nada: somente veríamos um organismo em congruência condutal com seu meio no presente (MATURANA, 1998, p.42).
Por sua vez, para Vygotski, o psiquismo não nasce pronto e acabado, mas envolve
um processo de desenvolvimento e transformação que pressupõe o uso e invenção de
instrumentos, possível somente no contato com os outros homens. Em outros termos
diríamos que o desenvolvimento implica a atividade humana. Trata-se de um processo que
envolve mediações e internalizações, que modificam os sujeitos e seus mundos. Dessa
forma, a noção de desenvolvimento assume, na teoria histórico-cultural um sentido que se
afasta das concepções tradicionais, como é o caso, por exemplo da teoria de J.Piaget. Ao
fundar o desenvolvimento sobre a ação instrumental (uso de mediadores), Vygotski opera
uma inflexão no conceito fazendo ver os momentos de ruptura e transformação. Através da
ação o homem modifica a natureza, modificando-se a si mesmo. Aí reside a singularidade
da concepção vygotskiana que passa a trabalhar com uma noção de desenvolvimento que
inclui a aprendizagem implicando rupturas e revoluções neste processo. Portanto, para
Vygotski o desenvolvimento não caminha na direção da realização de estruturas
estereotipadas, não se trata de um caminho necessário, portanto não se define pela
linearidade. Nas palavras de Zanella:
A psique humana, portanto, não é dada e nem tampouco tem seu desenvolvimento caracterizado por etapas que pressupõem o seu ápice: necessário referir-se ao processo de sua constituição, social já em sua origem e marcado tanto pelas conquistas históricas do gênero humano quanto pelas singularidades que socialmente produzimos ( ZANELLA, 2005, prelo).
É interessante perceber que tanto Varela quanto Vygotski trabalham com
mecanismos que funcionam por lógicas circulares e desse modo escapam das tradicionais
115
dicotomias que marcam o campo científico. Através da “circularidade criadora” (VARELA
e DUPUY, 1995) e do mecanismo histórico-dialético (VYGOTSKI, 1931/2000), Varela e
Vygotski propõem uma concepção de cognição e, por extensão, de aprendizagem, que não
tem por base a dicotomia sujeito-objeto. O que está em questão tanto na abordagem enativa
quanto na teoria histórico-cultural não é como o sujeito conhece o mundo, como ele
aprende e assim torna-se capaz de viver em um mundo dado. Pelo contrário, em ambas as
teorias o que se quer investigar é como os sujeitos se constituem e neste movimento
constituem mundos. Trata-se portanto de examinar o processo
de produção de um sujeito e
de seu mundo de sentido. Chamamos atenção aqui para a ênfase na dimensão processual
que permeia ambas as abordagens. No que concerne à teoria histórico-cultural, as palavras
de Pino são esclarecedoras:
Trata-se de um processo dialético, pois tanto os termos produtor <> produto, quanto os termos sujeito <> objeto, ao mesmo tempo que se opõem e se negam, constituem-se reciprocamente. Assim concebida, a atividade produtiva (produção de artefatos e de conhecimento) tem o caráter de um processo circular teoricamente ilimitado. O fundamento deste processo reside, na perspectiva da corrente histórico-cultural de psicologia, na mediação técnica e semiótica que caracteriza a atividade humana (PINO, 1995, p.35).
Já no que diz respeito à abordagem enativa:
Ao tentar conhecer o conhecer, acabamos por nos encontrar com nosso próprio ser. O conhecer do conhecer não se ergue como uma árvore com um ponto de partida sólido, que cresce gradualmente até esgotar tudo o que há para conhecer. Parece-me mais com a situação do rapaz na Galeria dos quadros, de Escher, que admira um quadro que, de modo gradual e imperceptível, se transforma na cidade e na galeria onde ele próprio se encontra (MATURANA e VARELA, 1995, p.260-261).
Continuando a tecer a trama das ressonâncias, vemos que este processo de
construção da cognição ou do psiquismo que pressupõe tanto o tempo como o(s) outro(s) e
que segue uma lógica circular, evitando dessa forma o pensamento dicotômico, tem por
base um posicionamento ético-político. Tanto Varela quanto Vygotski ao formularem suas
teorias se recusam a aceitar a determinação ambiental, enfatizando a dimensão ativa dos
seres vivos (Varela) e dos humanos (Vygotski). Desse modo Varela lança mão da noção de
autonomia para pensar a cognição viva, e Vygotski traz a idéia de autodomínio, como
sendo aquilo que singulariza o psiquismo humano. Autonomia e autodomínio revelam-se
116
como uma aposta ético-política, ou, em outros termos, revelam-se como uma política
epistemológica presente no pensamento desses dois autores.
Note-se que autonomia e autodomínio estão longe de nomear um mesmo processo,
no entanto, apontam para uma outra forma de se conceber a relação do sujeito com o
mundo e, do sujeito com ele mesmo no processo de aprendizagem. Tanto a autonomia,
quanto o autodomínio, referem-se a um tipo de relação consigo, que não se reduz a um
processo de “ensimesmamento” ou de fechamento sobre si. Ambos os conceitos
pressupõem que nesta relação consigo seja acessado não o “Eu” ou o “Si” constituídos, mas
o campo processual de onde o “Si” ou o “Eu” surgiram. Os dois incluem, portanto, o(s)
outro(s) que são fundamentais na constituição do “Si”.
A fim de explicar a noção de autonomia, Varela a diferencia da de heteronomia
(VARELA, 1989). Enquanto a autonomia refere-se à capacidade presente em todos os seres
vivos de funcionarem de modo a gerar suas próprias leis ou regras, a heteronomia implica o
funcionamento a partir de regras exteriores (Ibidem, p.7). O exemplo paradigmático dos
sistemas heterônomos seriam as máquinas que funcionam segundo o modelo de entradas e
saídas (input-output). Neste sentido os sistemas heterônomos trabalham com a idéia de
informação e de erro. O meio informa ao sistema suas características e, se suas respostas
forem insatisfatórias ou incongruentes com as informações recebidas, diremos que houve
erro do sistema. Já no caso dos sistemas autônomos nos referimos a uma espécie de
conversa entre o meio e o sistema. Diante de uma resposta insatisfatória, falamos em
incompreensão (Ibidem, p.8). Note-se que tanto o sistema autônomo quanto o heterônomo
estão em constante contato com o mundo - incluindo aí tanto o meio físico quanto o meio
social - e este desempenha um papel importante para ambos. No entanto, enquanto para os
sistemas heterônomos o mundo determina as regras do sistema, para os sistemas autônomos
o mundo fornece o contexto com o qual o sistema comporá ou “conversará”, de modo a
construir suas próprias regras. Assim, a autonomia implica a criação de leis ou regras
próprias a partir do contato com o mundo. As leis e as regras produzidas pelos sistemas
autônomos não podem ser compreendidas fora da relação com o contexto onde são
produzidas. O conceito de autonomia refere-se, portanto, a capacidade de produção das
próprias regras, onde estas são sempre imanentes a um contexto específico. As regras são
produzidas de forma co-engendrada com o contexto.
117
O conceito de autodomínio também pressupõe a participação dos outros para a sua
realização. O autodomínio representa uma conquista no desenvolvimento humano. Através
dele os seres humanos deixam de ser determinados pelo ambiente – o que está em questão
aqui é a recusa do modelo linear estímulo-resposta (S-R) – e passam a assumir o controle
sobre suas ações. No entanto, não se trata de um controle exercido por um “Eu” senhor da
vontade, mas da criação de estímulos auxiliares (mediações) que ajudam o homem a
controlar suas ações18. Desse modo o controle sobre si é feito sempre por meio de outros,
trata-se da criação de mediadores. Através dos mediadores – que são por definição sociais -
o homem tem o poder de criar para si novos estímulos, passando a determinar sua própria
conduta.
Até aqui fomos costurando alguns pontos que parecem sinalizar uma mesma direção
na colocação dos problemas por parte da abordagem enativa e da psicologia histórico-
cultural, no que diz respeito aos temas da cognição e que nos ajudam a repensar a
aprendizagem. Para que esta costura pudesse se realizar, deixamos temporariamente de lado
algumas diferenças importantes. É sobre essas diferenças que nos deteremos agora.
Para Varela a construção da cognição já faz parte da célula, estendendo-se para os
animais, os humanos e para as sociedades através de um mesmo mecanismo, que assume
diferentes complexidades. A partir desta colocação, algumas questões importantes
aparecem. Percebemos um afastamento da idéia de que a cognição ou o conhecimento
sejam processos exclusivos do aparato do sistema nervoso e da linguagem e vemos que não
há um privilégio do humano sobre as outras formas vivas. Por fim, concluímos que, no que
tange ao mecanismo circular, não há uma ruptura que separa o domínio do biológico ou da
natureza e o domínio do humano ou do social. Note-se que não se trata de uma
“antropologização” do vivo ou de uma “biologização” do homem. Não se trata de
“reducionismos” seja ao homem, seja ao biológico. O que Varela faz é complexificar a
biologia, levando em conta as noções de história e autonomia. Dessa forma, o autor chileno
embaralha as fronteiras entre o homem e os demais seres vivos, escolhendo falar da vida e
dos homens a partir de um mesmo referencial. O vivo, seja ele célula, animal ou homem
define-se por sua capacidade de se auto-produzir nos encontros com o mundo a partir da
ação. Note-se que no caso da célula, não se trata especificamente da ação, mas da rede de
18 Cf. 93.
118
transformações químicas. Citamos Varela: “A rede tem como particularidade estar
‘dobrada’ sobre si mesma: ela própria conduz os seus próprios componentes e engendra
assim uma unidade distinta, separável da retaguarda química” (VARELA, 1988). Assim, a
procura pelo comum que subsiste e define o vivo complexifica a biologia, revelando-se
como uma importante estratégia do biólogo chileno para impedir que se fale dos animais ou
dos humanos como máquinas de processamento de informações, que era a abordagem
dominante tanto no domínio da biologia quanto no domínio das ciências cognitivas da
época.
Em seus últimos trabalhos (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2003 e VARELA,
DEPRAZ e VERMERSCH, 2002), Varela vai, aos poucos, afastando-se das discussões a
respeito dos modelos teóricos (cognitivista, conexionista ou enativo). Desse modo, a
questão do comum que subsiste entre os homens e os outros seres vivos vai perdendo
espaço para um exame que passa a ter como foco a questão da experiência humana e suas
singularidades. Isso não significa que as idéias que marcaram os trabalhos iniciais do
pesquisador chileno tenham desaparecido. Elas passaram para segundo plano, mas
continuaram presentes nos textos, como idéias diretrizes. A questão que permeia os últimos
trabalhos de Varela não é mais a defesa do modelo da enação em oposição ao modelo
informacional e representacional da cognição, mas sim o exame da contribuição da
abordagem enativa para a discussão de questões como a separação mente-corpo, a
experiência, a atenção (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2003), e a questão de uma
metodologia capaz de estudar a consciência, que conduz à proposta de articulação de duas
abordagens complementares a de primeira e terceira pessoa e a criação do campo da
neurofenomenologia (VARELA, DEPRAZ e VERMERSCH, 2002; VARELA e SHEAR,
1999).
Vemos, então, nestes últimos trabalhos, que o mecanismo autopoiético inicial,
embora permaneça o mesmo, ganha nuances. A entrada do sistema nervoso e, mais
especificamente, da questão da linguagem, introduzem nova complexidade. Contudo, e esta
é uma questão importante, a linguagem, mesmo no domínio humano não ganha lugar de
destaque. A linguagem entra na abordagem enativa como uma possibilidade bem sucedida
na história da “deriva natural” dos seres vivos (VARELA, 2004). Com ela a vida social
torna-se possível. A linguagem é responsável pela construção de um espaço comum de
119
interação entre os homens, na mesma medida em que na trofolaxe é uma substância
química (um ferormônio) que cria um espaço comum de interação entre os insetos
(MATURANA e VARELA, 1995, p.234). Certamente, e Varela reconhece isto, a
linguagem possibilita ao homem interações mais complexas que aquelas possibilitadas pela
trofolaxe. No entanto, para a abordagem enativa, a linguagem não é a condição da cognição
e nem mesmo da história e da invenção. Cognição, história e invenção são possibilidades de
todos os seres vivos.
Para Vygotski, por outro lado, a cognição ou a atividade de conhecimento só é
possível na linguagem, sendo portanto, própria do homem. A palavra linguagem reúne em
si a idéia de mediações semióticas (VYGOTSKI, 1931/2000; 1934/2001). Portanto, quando
afirmamos que para Vygotski a cognição só é possível na linguagem, queremos dizer que a
atividade cognitiva pressupõe uma atividade mediada por signos, envolvendo assim a
questão da significação e do social.
Lembramos que o que está em questão nos trabalhos do autor russo é a investigação
e explicação do desenvolvimento das funções psíquicas superiores ou psiquismo humano.
Desse modo, o ponto de partida de Vygotski difere do de Varela. A colocação do problema
da cognição começa em Varela no vivo em geral e em Vygotski, no humano. Tal diferença
deve ser compreendida à luz do interesse de Vygotski pelos processos superiores que
singularizaria, a seu ver o estudo psicológico e seu embate com a teoria reflexológica.
Para Vygotski as funções psíquicas superiores tornaram-se possíveis na história
filogenética a partir do uso e invenção de instrumentos e, de forma mais específica, dos
signos. As funções superiores diferem das elementares por serem construídas através da
história e na cultura. Neste sentido, afirma-se que o conhecimento só é possível a partir das
relações sociais. É apenas através das relações sociais que nos apropriamos da cultura já
produzida, e nesta apropriação, através do processo de significação, criamos uma
subjetividade singular e re-significamos a própria cultura. Cito:
Na abordagem histórico-cultural, a construção de conhecimentos é concebida como processo constituído nas relações sociais, implicando o funcionamento interpessoal e a linguagem. O conhecimento envolve mediação pelo outro e produção de significados e sentidos em relação a objetos culturalmente configurados (GÓES, 1995, p.23).
120
Segundo o psicólogo russo foi apenas através dos instrumentos e dos signos que o
homem pode intervir sobre a natureza, criando para si uma segunda natureza ou, em outros
termos, criando uma cultura. Através da atividade instrumental – inclui-se aí a atividade
semiótica – o homem deixou de ficar à mercê dos estímulos ambientais. Pino explica:
Na evolução das espécies ocorre um momento de ruptura quando a espécie homo desenvolve novas capacidades que lhe permitem transformar a natureza pelo trabalho, criando suas próprias condições de existência. Isto, por sua vez, permite ao homem transformar seu próprio modo de ser (cf. Marx, 1997, I, cap.7; Marx & Engels, 1982, pp.70-71). Esse momento de ruptura não interrompe o processo evolutivo mas dá ao homem o comando da própria evolução. A história do homem é a história dessa transformação, a qual traduz a passagem da ordem da natureza à ordem da cultura (PINO, 2000, p.51).
Assim, para Vygotski existe uma ruptura entre o domínio humano ou social e o
domínio biológico ou natural que é introduzido pela linguagem e pela consciência. Isso não
significa que Vygotski conceba o homem fora do domínio da natureza. No entanto, a
linguagem, ao tornar-se parte da constituição humana, possibilitou uma outra relação com a
natureza. Cito Pino: “As funções biológicas não desaparecem com a emergência das
culturais mas adquirem uma nova forma de existência: elas são incorporadas na história
humana” (Ibidem, p.51 – grifo do autor). Note-se que a ruptura não implica em dicotomia,
mas se trata de uma relação dialética onde a novidade que aparece é resultado de uma
atividade que implica síntese ou subsunção (Aufhebung). Sobre a síntese Vygotski
esclarece:
Hegel diz que há que lembrar o duplo significado da expressão alemã ‘snimat (superar)’. Entendemos esta palavra em primeiro lugar como ‘ustranit (eliminar)’, ‘otritsat (negar)’ e dizemos, segundo isto, que as leis estão anuladas, ‘uprazdneni (suprimidas)’, mas esta mesma palavra significa também ‘storanit (conservar)’ e dizemos que algo ‘sorjranim (conservamos)’. O duplo significado do termo ‘snimat (superar)’ transmite-se habitualmente bem no idioma russo com ajuda da palavra ‘sjoronit (esconder ou enterrar) que tem sentido negativo e positivo – destruição e conservação (VYGOTSKI, 1931/2000, p.117-118).
Zanella comenta:
Destaca-se aqui a dimensão materialista-histórica da teoria marxista: existe um mundo material que antecede à existência do próprio homem; este mundo, porém, uma vez conhecido/transformado pela ação humana, deixa de ser natureza em si para se transformar em natureza significada e, portanto, cognoscível (ZANELLA, 2004, p.4).
121
Neste sentido Vygotski, assim como Varela, escapa dos reducionismos ao se referir
às relações entre o domínio biológico ou natural e o domínio humano ou social. Assim
como na abordagem enativa, a solução encontrada por Vygotski para este problema deve
ser entendida à luz do contexto de constituição de sua teoria. Conforme vimos no segundo
capítulo, a reflexologia era a teoria mais influente na Rússia no século XIX, momento em
que Vygotski, junto com seus companheiros, conceberam a psicologia histórico-cultural. A
reflexologia, mais especificamente, e a teoria comportamental, de modo geral, prendendo-
se à questão da busca por uma psicologia científica – isto é, uma psicologia que assumisse
como critério de cientificidade a física – acabou reduzindo a psicologia à análise da relação
entre estímulos e respostas. A tese de base era que todo o comportamento, inclusive o
humano, é resultado da determinação ambiental. É, portanto, contra esta idéia que Vygotski
afirma sua psicologia. Para Vygotski, a determinação ambiental e o modelo linear estímulo-
resposta, só poderiam dar conta das funções elementares ou estritamente biológicas. As
funções superiores, por outro lado, apresentam uma especificidade que se resume em seu
caráter mediado, que revela, a nosso ver, a circularidade do processo de constituição do
sujeito e seu mundo. Neste sentido, a ruptura proposta por Vygotski para pensar o humano
está diretamente relacionada à filosofia marxista, e à sua insatisfação com a psicologia de
sua época. Citamos:
Nosso comportamento é um dos processos naturais cuja lei fundamental é a lei do estímulo-resposta de modo que a lei fundamental para dominar os processos naturais é dominá-los através dos estímulos. Somente criando o estímulo correspondente se pode provocar um processo de conduta e orientá-lo em outra direção (VYGOTSKI, 1931/2000, p.289).
Portanto, para Vygotski, a atividade cognitiva, por definição, pressupõe mediação,
sendo a linguagem o principal mediador. Aqui precisamos ir além das palavras se
quisermos encontrar as ressonâncias entre Vygotski e Varela. Para Varela o conhecimento e
a aprendizagem caracterizam-se por uma relação imediata com o mundo e com os outros
organismos vivos ou sujeitos. Mediado e imediato, será que se trata de uma diferença
radical?
Na psicologia vygotskiana, conforme vimos, a mediação afirma-se em oposição a
uma certa concepção de imediatidade que se relaciona à idéia de reflexo. A mediação
pressupõe que a atividade cognitiva, incluindo aí a aprendizagem, não se restringe ao par
122
estímulo-resposta, o contato com o mundo passa pelas construções de significações, a partir
da utilização de signos e instrumentos. As mediações não são, portanto, regras ou
representações de um mundo dado, mas são possibilidades de criação das regras e de um
mundo de sentido. Lembramos que as significações não são construídas por um sujeito
dado, mas é a condição de constituição de um sujeito. Para Varela, contudo, a imediatidade
está relacionada à idéia de “dança estrutural” (MATURANA e VARELA, 1995) ou fina
sintonia (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2003), afirmando-se contra a representação.
A imediatidade implica uma atenção ao presente que impede de a concebermos como
automatismo. Ela é uma conquista e não um dado. Para a abordagem da enação a idéia de
mediação pressupõe regras pré-estabelecidas e representações que mediariam o contato do
organismo com o mundo (incluindo aí outros organismos) conduzindo-os sempre em uma
mesma direção. Assim, nos afastando das palavras e nos aproximando das idéias, vemos
que a mediação, na obra de Vygotski, e a imediatidade, na obra de Varela, embora guardem
diferenças, possuem ressonâncias. Mediação e imediato constituem-se como noções que se
opõem à representação e à possibilidade de determinação ambiental na atividade cognitiva.
A nosso ver, portanto, menos que uma diferença, mediação e imediato aproximam-se.
Outro ponto a ser discutido refere-se às diferenças entre os dois mecanismos
circulares que caracterizam a construção da cognição nos dois autores. Embora ambos se
afastem de concepções dicotômicas, eles não são idênticos, mas apresentam singularidades.
Levantando como hipótese a idéia de que essas singularidades podem ser entendidas
através da diferença entre as noções de gênese - que está na base do mecanismo circular
histórico-dialético de Vygotski -, e a de emergência - que pertence a circularidade criadora
de Varela -, procuraremos examinar as duas noções: gênese e emergência.
Gênese e emergência são noções cunhadas para explicar o momento inicial do
mecanismo, a partir do qual toda a circularidade se engendra de modo a produzir as
diferenças que nos permitem afirmar a construção da cognição como um processo de
criação. Neste sentido, tanto a gênese quanto a emergência afirmam-se como noções que
suplantantam a idéia de um dado prévio. Ambas as noções apontam para a consideração de
uma temporalidade e da transformação na cognição. Outro aspecto comum entre essas duas
noções é o seu caráter paradoxal. Tanto a gênese quanto a emergência procuram dar conta
do momento inicial de um processo que é circular, e que portanto, por definição tem seu
123
início e seu fim ligados de maneira indissociável. Como falar a respeito do início de algo
que é processual? Trata-se de um paradoxo. Considerando a existência do paradoxo na base
desses conceitos, apontaremos algumas orientações fornecidas por Varela e por Vygotski a
respeito deles. Desse modo procuraremos compreender as diferenças entre eles, e por
extensão, entre a circularidade criadora e a circularidade histórico-dialética.
Vygotski, no capítulo onde trata da questão da gênese das funções psíquicas
superiores, fornece algumas pistas para o entendimento daquilo que entende por gênese.
Em suas palavras:
A análise e a estrutura dos processos psíquicos superiores nos levam ao esclarecimento da questão básica de toda a história do desenvolvimento cultural da criança, o esclarecimento da gênese das formas superiores de comportamento, quer dizer, da origem e do desenvolvimento daquelas formas psíquicas que são objeto de nossa investigação (VYGOTSKI, 1931/2000, p.139 – grifo nosso).
A partir da citação percebemos que, para Vygotski, o conceito de gênese está
intimamente relacionado às noções de origem e de desenvolvimento. A gênese como sendo
o momento inicial, a origem de um processo de desenvolvimento. É importante não perder
de vista que para o autor russo o plano ontogenético – gênese do sujeito - não pode ser
concebido separado do filogenético – gênese da espécie - e sociogenético – gênese da
sociedade. Trata-se de um processo histórico, onde a história de um indivíduo está inserida
numa história maior que inclui a história da espécie e da sociedade a qual pertence,
afetando e sendo afetada por ela. Assim, a gênese das funções psíquicas superiores de um
indivíduo, está inserida num contexto mais amplo de gênese por um lado da espécie e, por
outro, da sociedade e da cultura. Note-se aí o aspecto circular e paradoxal.
O enfoque genético da psicologia histórico-cultural, relaciona-se à filosofia
materialista-dialética. Discutimos esta questão no segundo capítulo quando trabalhamos a
idéia de que o desenvolvimento é para a teoria vygotskiana antes de tudo um método. É
apenas através do desenvolvimento - estudo histórico - que as funções psíquicas superiores
podem ser explicadas. É importante destacar que a dialética que está na base do
pensamento vygotskiano é a marxista, fundada no materialismo e que entende a gênese
como práxis, e não a dialética hegeliana, que tem por base a lógica. A dialética que está,
portanto, na base da psicologia histórico-cultural é uma dialética encarnada. Ela implica a
atividade concreta, caso contrário, não se realiza.
124
Esta distinção é fundamental para a compreensão do alcance do conceito de gênese
na obra de Vygotski. Para o autor russo a gênese deve ser concebida de modo articulado
com sua concepção de desenvolvimento. Portanto o processo genético não deve ser
entendido, como em Hegel a partir da metáfora da semente que contém em si todas as
características da árvore (SÈVE, 1999). O processo genético em Vygotski implica a práxis
ou a atividade, incluindo a produção das contradições e sua resolução na forma de
revoluções. A gênese aponta, neste sentido uma abertura para a criação do novo. No
entanto, ela resta sendo ainda um problema de origem e de desenvolvimento.
Aqui parece que a idéia de desenvolvimento cultural, tal como argumentamos no
segundo capítulo, ainda que guarde um projeto político, representa um importante atrator
para o desenvolvimento. Neste sentido a crítica de Schnewly (1999) ao conceito
vygotskiano de desenvolvimento mostra-se pertinente. A saber: o conceito vygotskiano de
desenvolvimento está ainda em desenvolvimento. Portanto, somos forçados a avançar em
relação a ele, a fim de dotá-lo de um sentido radicalmente histórico, isto é, pensá-lo como
um processo horizontal e distribuído que produz diferenciações.
A noção de emergência é incorporada aos textos de Varela em função de sua
interlocução com o campo das ciências cognitivas. Embora o conceito de emergência tenha
sido cunhado pelos autores conexionistas para dar conta da explicação de comportamentos
globais coerentes que surgem a partir de processos distribuídos, ele já estava presente nos
primeiros anos da cibernética, através da noção de auto-organização (VARELA, s.d).
Contudo, em função da hegemonia assumida pela posição cognitivista, durante os anos de
1960 e 1970, as noções de processos distribuídos e de auto-organização foram deixadas de
lado, sendo recuperadas anos depois, primeiro pela abordagem conexionista, e depois pela
enativa.
A noção de emergência surge em oposição à idéia defendida pelos cognitivistas de
que o funcionamento cognitivo caracteriza-se como um processamento simbólico por
regras lógicas. A emergência afirma-se, então, contra duas idéias: a de que o tratamento da
informação se baseia em regras aplicadas seqüencialmente, e a de que a cognição efetiva-se
como um tratamento simbólico (Ibidem, p.45). A metáfora da concepção emergencista
aponta para um funcionamento distribuído da cognição, e não simbólico. Citamos Varela:
A idéia do funcionamento distribuído é a do “bebê que adquire a linguagem a partir de um
125
fluxo cotidiano de palavras dispersas, ou reconstitui ainda objetos significantes a partir de
um fluxo difuso de luz” (Ibidem, p.45). Neste sentido, a emergência diz respeito a algo que
surge sem uma causa específica – trata-se de fluxos dispersos – e que assume em
determinado momento uma coerência, aparecendo como uma forma distinta, destacando-se
do fluxo. Assim a noção de emergência trabalha com a idéia de constituintes sub-
simbólicos e não-inteligentes que, em função de certas interações contextuais, acabam
produzindo uma coerência global. É importante observar que a noção de emergência
quando trabalhada pela abordagem conexionista freqüentemente é associada ao
cumprimento de certa tarefa, neste sentido torna-se necessário acoplar a idéia de um atrator
que teria como função orientar os padrões que emergem à noção de emergência. Quando
esta noção passa a servir de instrumental teórico para a abordagem enativa, a idéia de tarefa
pré-determinada é abandonada, e a noção de emergência é concebida em toda a sua
radicalidade (Ibidem). Varela explica:
A aproximação entre a emergência e a enação depende da idéia que temos da função de um sistema distribuído. Ao insistir no fato de que um processo histórico faz emergir regularidades sem estar sujeito a uma finalidade determinada, conserva-se a noção biológica de um mundo não circunscrito. Realçando, pelo contrário, a aquisição por uma rede de uma faculdade bem específica num domínio definido, voltamos a encontrar o princípio da representação, bem como uma apreensão mais habitual dos modelos conexionistas (Ibidem, p.92).
A metáfora do bebê ganha em nosso trabalho uma importância especial. Vygotski
também comenta o aparecimento da linguagem. No entanto, se para a abordagem enativa a
aquisição da linguagem é efeito de emergência - trata-se de uma possibilidade que pode ou
não ocorrer - para Vygotski ela é resultado de um processo de desenvolvimento que se faz a
partir do encontro de dois planos. É no encontro do plano de desenvolvimento da
linguagem pré-intelectual com o plano de desenvolvimento do pensamento pré-verbal, que
vemos aparecer a linguagem, tal como a entendemos. É no encontro entre os dois planos
que aparece a função simbólica da linguagem. Portanto, ao se referir ao surgimento da
linguagem, Vygotski procura explicar a articulação entre ambos os planos. Ele afirma,
então, que a linguagem surge primeiro sobre um plano biológico (processos de
diferenciação), e depois, através da participação no mundo cultural, ela assume novas
funções, relacionando-se com o pensamento, tornando-se articulada. Vale citar Vygotski:
126
Ao longo de seu primeiro ano de vida a linguagem infantil está inteiramente baseada no sistema de reações incondicionadas, preferentemente instintivas e emocionais sobre as que, por meio da diferenciação, se elabora a reação vocal condicionada mais ou menos independente. Graças a isso, modifica-se também a própria função da reação: se antes essa função formava parte da reação geral orgânica e emocional manifestada pela criança, agora, a mudança, começa a cumprir a função de contato social (VYGOTSKI, 1931/2000, p.171).
Em outro livro ele explica:
As raízes genéticas e os cursos do desenvolvimento do pensamento e da linguagem resultam também aqui até certo ponto diferentes. A novidade consiste na interseção das duas linhas de desenvolvimento, que ninguém discute. Que isto suceda em um ou uma série de pontos, de uma vez, repentinamente, ou que se vá crescendo lenta e paulatinamente e só depois abra-se passagem, que seja resultado de um descobrimento ou simplesmente da ação estrutural e prolongada de uma mudança funcional, que coincida com a idade de dois anos ou com a idade escolar, independentemente destas questões todavia discutíveis, segue sendo indubitável o fato fundamental da interseção de ambas as linhas de desenvolvimento (Vygotski, 1934/2001, p.116).
Portanto considerar o momento inicial do mecanismo circular como um efeito
emergente impede de localizar uma origem ou um destino precisos. A emergência é
conseqüência de múltiplos fatores que juntos, e em função de certas configurações,
possibilitam o aparecimento de um determinado fenômeno. Se quiséssemos correlacionar a
noção de emergência com a de gênese, poderíamos afirmar que a emergência deve ser
pensada como gêneses incessantes. Ela faz e se desfaz, possuindo um caráter local. A fim
de esclarecer a idéia de emergência trago uma imagem que Varela usa para explicar esse
processo: “O comportamento de todo o sistema assemelha-se mais a uma conversa animada
do que a uma seqüência de comandos” (VARELA, s.d, p.61).
Na medida em que Vygotski pensa a circularidade a partir da gênese, ele acaba por
entender a construção da cognição como um processo que vai da criança ao adulto, do
primitivo ao cultural. No entanto, não se pode perder de vista que o que caracteriza o adulto
ou o estado cultural não é definido a priori, mas implica a história e a cultura. Em outros
termos, implica as ações instrumentais e o encontro com outros homens. Trata-se ainda de
criação. Porém, tal forma de colocar o problema difere daquela realizada por Varela. Para
Varela a circularidade é pensada como emergência, afastando-se portanto da noção de
desenvolvimento. Para o autor chileno o processo de construção da cognição não se
confunde com um processo de desenvolvimento.
127
A partir do que foi dito, construir ressonâncias ou ressaltar as diferenças são duas
possibilidades que se apresentam quando colocamos lado a lado a abordagem enativa e a
teoria histórico-cultural. Certamente, muitas diferenças devem existir, afinal quase um
século separa as duas teorias que nasceram em contextos e campos bastante distintos. No
entanto, a nosso ver, mais importante do que enfatizar as diferenças e os limites dessa
articulação, é enxergar o que esta aproximação nos traz de novidade. Quais as novas
orientações para a psicologia que este tipo de articulação sugere? Como pensar a psicologia
da aprendizagem a partir das novas orientações extraídas das ressonâncias entre a abordagem
enativa e a psicologia histórico-cultural?
128
CONCLUSÃO
Propusemos nesta dissertação uma articulação (LATOUR, 2004) entre a abordagem
enativa de F.Varela e a psicologia histórico-cultural de L.S. Vygotski. Estávamos
interessados na produção de ressonâncias entre elas, tomando como foco a questão da
aprendizagem. Com base na orientação metodológica de Y.Clot (1999), diríamos que o
nosso objetivo era pensar Vygotski com
Varela de modo a fazê-los contribuir para as
discussões da psicologia contemporânea, e em especial para a psicologia da aprendizagem.
Suspeitávamos que em função da forma singular com que estes autores pensam o processo
de construção da cognição, encontraríamos neles novas possibilidades para o conceito de
aprendizagem. Note-se que foi a noção de uma cognição inventiva (KASTRUP, 1999) que
nos orientou neste trabalho.
Tradicionalmente a psicologia pensa a aprendizagem como um processo adaptativo
de solução de problemas dados. Aprender é, neste sentido, responder corretamente a uma
pergunta ou a uma tarefa pré-estabelecida. Sobre isso, é interessante analisar os tradicionais
experimentos de aprendizagem. Trata-se, na maioria das vezes, da apresentação de uma
tarefa pelo experimentador, que já conhece de antemão a resposta adequada. Cabe ao
sujeito do experimento realizar a tarefa ou solucionar o problema. Assim, caso esta resposta
seja compatível com aquilo que é considerado correto ou adequado, diz-se que houve
aprendizagem. Neste sentido a aprendizagem caminha sempre numa direção que é
antecipada pelo experimentador. Trata-se de um processo linear e de mão única.
No entanto, se concebemos a construção da cognição como sendo marcada pela
variação e transformação, sem que haja otimização de formas, tal forma de pensar a
aprendizagem, como um processo de solução de problemas ou de adaptação a um mundo
dado, torna-se insuficiente. Se a aprendizagem for apenas solução de problemas dados,
nada de diferente ou inesperado se produz, pois a aprendizagem é um processo de
reconhecimento. Assim, foi buscando contribuições para uma noção mais ampla de
aprendizagem que nos lançamos neste trabalho.
No primeiro capítulo nos dedicamos ao exame da construção da cognição na
abordagem enativa, procurando nela indicações para o tema da aprendizagem. Através da
129
análise dos textos de Varela e dos conceitos de autopoiese, enação e breakdown,
verificamos que esta abordagem apresenta-se, como diz Alvarez (1999), como um
construtivismo radical. Ou seja, a abordagem enativa, ao constituir-se a partir das críticas
ao paradigma representacional e informacional, desloca o problema de um fundamento para
a cognição, seja ele interno ou externo. Varela trabalha com uma concepção de construção
da cognição que se afirma como pura diferenciação, sem otimização de formas. Desse
modo, ela nos impede de adotar uma noção de aprendizagem tão restrita quanto aquela da
solução de problemas ou de adaptação a um mundo dado. Assim, neste primeiro capítulo
examinamos com Varela novas contribuições ao tema da aprendizagem.
Analisamos nos três momentos da obra de Varela - o da autopoiese, o da enação e o
da pragmática da experiência -, idéias que nos ajudaram nesta tarefa de repensar a
aprendizagem. Assim, primeiro apresentamos o mecanismo circular autopoiético, propondo
pensá-lo como um mecanismo de aprendizagem. Em seguida trabalhamos a encarnação
deste mecanismo através do caso do aprendiz da flauta, onde a aprendizagem foi pensada
no domínio humano. Por fim, trouxemos a contribuição da aprendizagem da prática do
devir-consciente.
Para além das singularidades que cada um desses momentos trouxe à temática da
aprendizagem, concluímos que as principais contribuições da abordagem enativa foram: o
mecanismo circular, o par de conceitos acoplamento estrutural e breakdown, os exemplos
escolhidos por Varela para trabalhar a aprendizagem e a idéia de cultivo. Conforme vimos,
o par de conceitos acoplamento e breakdown, aparece no primeiro momento da obra de
Varela através do par acoplamento e perturbação e no terceiro momento, através do par
enraizamento e surpresa.
Através do mecanismo circular sujeito e mundo são co-engendrados no processo de
aprendizagem. Dessa forma, não há nem sujeito e, nem tampouco mundo dados que
garantiriam uma direção ao processo de aprender. Os problemas não são dados e não há
telos a ser alcançado. Pelo contrário, conforme vimos no caso do aprendiz da flauta, os
problemas são criados no próprio processo de aprender. Assim, longe da aprendizagem
caracterizar-se como uma solução de problemas, ela aparece aí como um processo de
contínua problematização.
130
No percurso que vai do iniciante ao perito (DREYFUS, 1998), o aprendizado torna-
se cada vez mais contextualizado. Cada vez mais nuances no tocar flauta aparecem para o
flautista. Como então pensar o tocar flauta como a resolução de um problema? Não se trata
de apenas cumprir uma tarefa, mas sim de passar a habitar um novo mundo. Assim, o
aprendizado da flauta está longe de poder ser definido através do parâmetro da solução de
problemas ou da adaptação, entendida como adequação a um mundo. O aprendiz da flauta,
em seu processo de aprendizagem, vê-se cada vez mais imerso em questões que
possibilitam a ele fazer da sua relação com a flauta uma relação intima e imediata. Em
outros termos diríamos que em seu processo de aprendizagem, o flautista inventa um novo
mundo e neste mesmo movimento inventa-se a si. Note-se que, assim como o exemplo do
flautista, os outros exemplos escolhidos por Varela para pensar o aprender - aprendizado
da meditação, do piano, da oração do coração, da filosofia - nos forçam a questionar a idéia
da aprendizagem como um processo de solução de problemas ou ainda como algo
puramente adaptativo, no sentido forte desta palavra (SANCOVSCHI, 2003).
O caso do aprendiz de filosofia é bastante interessante para a nossa análise. A
princípio, poderíamos pensá-lo – como tradicionalmente se faz - com base no modelo
adaptativo e de solução de problemas. Neste sentido, o que estaria em questão para o
aprendiz de filosofia seria simplesmente adquirir um saber. No entanto o que Varela faz ver
é que embora tenhamos que considerar a aquisição do saber, ela não se faz sobre as bases
de um sujeito constituído ou de um mundo dado e, nem tampouco de um saber pronto. O
sujeito não é uma base que processa e armazena as informações contidas no mundo. Pelo
contrário, neste processo de aquisição de saberes nos transformamos, transformamos nosso
mundo e, também nossa relação com o mundo. E, o que é mais interessante, não se pode
saber de antemão a forma que esta transformação vai adquirir. Esta transformação de si e
do mundo é imprevisível. Mas note-se que isto não significa que qualquer coisa seja
possível, todas as transformações ocorrem a partir do nosso corpo presente.
Sobre o par de conceitos acoplamento-breakdown, em suas diferentes versões -
acoplamento-perturbação e enraizamento-surpresa -, afirmamos que sua contribuição para
repensar a aprendizagem reside sobretudo na indissociabilidade entre seus termos. Toda a
surpresa só se faz a partir daquilo que nos enraiza no presente. Nos termos da autopoiese,
diríamos que toda perturbação só é sentida a partir de uma estrutura que encarna nossa
131
história de acoplamentos. Note-se que esta indissociabilidade entre acoplamento e
breakdown, permite a Varela fazer do mecanismo circular um mecanismo criador que, na
repetição, tem a possibilidade de se abrir às diferenças. Esta relação indissociável entre os
termos torna impossível, ao menos de direito, um fechamento total do processo de
aprendizagem. De direito porque, conforme vimos no aprendizado da prática do devir-
consciente, no caso do humano, as experiências de perturbação ou os breakdowns podem
ou não ser cultivadas. Dessa forma, nós humanos temos a possibilidade de, através do
cultivo, nos tornarmos mais ou menos abertos a este tipo de experiência. Tal afirmação nos
conduz, então, à consideração de uma política cognitiva (KASTRUP, 1999; 2005)
resultante de um processo de aprendizagem. O cultivo de experiências de problematização
produz uma política cognitiva da invenção, em lugar de uma política de recognição. Esta é
certamente uma questão que fica aberta para nós, apontando para trabalhos futuros.
No segundo capítulo nos detivemos na análise da construção da cognição, tal como
concebida pela psicologia histórico-cultural. Em relação a esta teoria foi necessária a
realização de uma análise cuidadosa. Diferentemente da abordagem enativa, a psicologia
vygotskiana mostra-se algumas vezes ambígua em suas colocações, apontando tanto para
uma compatibilidade com a idéia de uma cognição inventiva, quanto revelando algumas
limitações em relação a ela. No entanto, menos do que um problema, vimos na
ambigüidade a possibilidade de trabalhar sobre estes limites. Note-se que é o próprio
Vygotski quem nos orienta nesta apreensão de sua teoria, que não se conforma aos limites
estabelecidos (CLOT, 1999). Cito Newman e Holzman: “Fica claro que, para se beneficiar
plenamente do trabalho de Vygotsky, os psicólogos contemporâneos teriam que continuar
numa tradição cientificamente revolucionária. Em outras palavras, simplesmente aplicar
Vygotsky não é vygotskyano” (NEWMAN e HOLZMAN, 2002, P.29).
Embora para Vygotski a construção do psiquismo seja concebida a partir de um
mecanismo histórico-dialético que implica choques, rupturas, saltos e revoluções, este
caminha em direção à apropriação da cultura. A apropriação da cultura, neste sentido, pode
aparecer como um telos que orientaria o desenvolvimento. Assim, o problema de pensar a
cognição na psicologia histórico-cultural a partir da invenção, ou seja como um movimento
de transformação e diferenciação sem otimização de formas, reside na aposta vygotskiana
de que o desenvolvimento caminha em direção à apropriação da cultura. Esta idéia permite
132
Schnewly (1999) afirmar que o conceito vygotskiano de desenvolvimento está ainda em
desenvolvimento, na medida em que falta a ele uma apreensão radicalmente histórica e
cultural desse processo. Na mesma direção, Tudge (1996) afirma que a psicologia
vygotskiana caracteriza-se como uma teleologia relativista. Trata-se ainda de uma
teleologia, embora esta seja definida através das aprendizagens ou dos encontros com os
outros.
Sem desconsiderar essas críticas, procuramos relativizá-las em nosso trabalho e
assim forçar os limites da teoria vygotskiana, concebendo-a a partir da invenção. Para tanto
foram fundamentais os comentários de A.Zanella (2004) e A.Pino (1992;2000) e, a
interlocução com O.Sacks (1997). Embora a idéia de apropriação da cultura possa ser
entendida como um telos, se analisamos o que é essa cultura, como ela se constitui e, como
acontece o processo de apropriação, vemos que a noção telos se enfraquece, dando
visibilidade a um processo interminável de produção da cultura e de sujeitos. Note-se que
esta inflexão no pensamento de Vygotski foi de extrema importância para encontrar nele
ressonâncias com a abordagem enativa e para propor com
ele contribuições para uma
concepção de aprendizagem mais ampla.
Contudo, conforme destacamos ao longo do segundo capítulo, a idéia da
apropriação da cultura como um telos freqüentemente invade os conceitos vygotskianos,
minando deles parte de sua potência e produzindo diferenças impensáveis em nossa
atualidade, como por exemplo é o caso da diferença entre o primitivo e o cultural.
Sobre os conceitos cujas forças são minadas em função da consideração de um
telos, podemos citar o caso da assimetria necessária para a condução do desenvolvimento
na Zona de Desenvolvimento Proximal. Para Vygotski, o outro que auxilia na criação da
ZDP é um outro mais experiente e assume como tarefa conduzir o desenvolvimento em
direção à apropriação da cultura existente. Podemos citar também o caso das vias colaterais
de desenvolvimento. As vias colaterais representam formas possíveis de contornar um
problema – uma deficiência. Neste sentido, poderiam ser concebidas como caminhos de
abertura para a invenção de vidas possíveis a partir da criação de novos mediadores.
Contudo, Vygotski fica restrito, em suas análises, às vias colaterais comuns, aos
mediadores que já estão difundidos na nossa cultura, como por exemplo o Braile para os
cegos e a linguagem de sinais para os surdos. Dessa forma, ele restringe a discussão das
133
vias colaterais à busca de meios alternativos para se chegar a um fim semelhante. Mas
parece que as idéias e conceitos de Vygotski têm uma potência maior.Foi diluindo a idéia
de apropriação da cultura, através da ênfase num processo de produção de cultura e de
sujeitos que conduzimos nossas discussões no segundo capítulo. Assim, embora tenhamos
sinalizado em alguns momentos certos limites e singularidades da teoria vygotskiana, foi
possível encontrar no autor russo contribuições para pensarmos uma aprendizagem mais
ampla.
Examinamos três idéias apresentadas ao longo dos textos de Vygotski que nos
ajudaram a formular o que seria sua contribuição ao tema da aprendizagem. Note-se que
estas idéias não foram apresentadas seguindo uma ordem histórica. Assim, analisamos,
primeiro, com base no gesto indicativo o mecanismo de formação das funções psíquicas
superiores. Aí interessou-nos pensar o mecanismo da aprendizagem a partir da dupla de
conceitos mediação e internalização. Depois nos centramos na relação entre aprendizagem
e desenvolvimento na Zona de Desesnvolvimento Proximal e, por fim propusemos pensar a
aprendizagem a partir da noção das vias colaterais de desenvolvimento que aparece nos
textos de defectologia por ocasião da discussão da teoria da compensação.
A nosso ver, as principais contribuições da psicologia histórico-cultural ao tema da
aprendizagem foram: o mecanismo circular histórico-dialético, a colocação do problema da
construção do psiquismo que vai do social para o indivíduo e, a idéia de “boa
aprendizagem”. Note-se que embora não tenhamos destacado a noção de vias colaterais
como uma contribuição importante para o desenvolvimento da idéia de aprendizagem, ela
nos deu uma chave de leitura importante. Através dela foi possível junto com Vygotski
pensar não apenas uma aprendizagem através de mediações, mas também considerar a
invenção dos mediadores no processo de aprendizagem. Neste sentido, foi através das vias
colaterais de desenvolvimento que concluímos que a idéia de apropriação da cultura pode e
deve ser concebida não como um telos, mas como um processo interminável.
Embora o mecanismo circular vygotskiano funcione de modo distinto do
mecanismo circular proposto na abordagem enativa, ele também nos fornece subsídios para
recolocar o problema da aprendizagem. Assim como o mecanismo circular da abordagem
enativa, o mecanismo vygotskiano, que pode ser dito histórico-dialético, também aponta
para um processo de constituição do sujeito e de seu mundo. Neste sentido, os conceitos de
134
mediação e internalização são fundamentais. A consideração das mediações aponta, por um
lado, para a constituição do sujeito pelas relações sociais, e, por outro, para uma forma
indireta desse sujeito se relacionar com o mundo. Não se trata de estímulos e respostas. O
mundo não determina o comportamento do sujeito. Através das mediações (ações
instrumentais) o homem tem a possibilidade de alterar o mundo e, assim alterar a si mesmo.
Neste sentido Vygotski afirma que o homem possui uma adaptação ativa em relação ao
meio. Como então pensar a aprendizagem como solução de problemas? Ou ainda, como
pensar a aprendizagem como adequação ao mundo? O que é próprio do homem não é a
transformação de si e do mundo? Pensar a aprendizagem a partir desse mecanismo implica,
então, na recusa em concebê-la como uma relação entre dois pólos pré-existentes. Outra
questão trazida pelo mecanismo da psicologia histórico-cultural é a ênfase no papel do
outro na constituição do sujeito.
Em geral, a psicologia coloca seus problemas a partir do sujeito constituído ou, em
outros termos do indivíduo. Note-se que esta forma de colocar o problema marca também a
psicologia da aprendizagem. Assim, a aprendizagem é entendida apenas como acumulação
de saberes, habilidades ou hábitos, sem que estes saberes, hábitos ou habilidades cheguem a
afetar a constituição do sujeito e assim, a forma como ele aprende. Quando Vygotski
inverte a seta, perguntando-se como, a partir das relações sociais, constituem-se indivíduos,
ele abre todo um novo universo de possibilidades para a psicologia. Neste sentido tal
colocação do problema apareceu também como uma contribuição importante para repensar,
com
Vygotski, a aprendizagem. Através dela, enfatizamos a dimensão processual que
subsiste em cada sujeito constituído. Nos termos de Vygotski: somos todos um agregado de
relações sociais.
Pensando a partir dessas idéias e acrescentando as questões discutidas acerca da
ZDP e das vias colaterais, nos foi possível questionar a idéia da cultura como algo dado de
antemão. Foi neste processo que a idéia de apropriação da cultura como um telos foi se
diluindo, dando origem a idéia de uma produção da cultura. Neste sentido, o sujeito, ao
mesmo tempo em que se constitui através das relações sociais, constitui também o mundo
social. Aprender implica, portanto este movimento de criação. No aprender criamos a
cultura e nos criamos. Assim, por exemplo, sobre a relação que se estabelece na ZDP, é
135
preciso que consideremos a possibilidade de transformação de ambos os elementos da
relação, numa via de mão dupla.
Através da relação entre aprendizagem e desenvolvimento, discutida por ocasião da
ZDP e que ganha destaque com a idéia de “boa aprendizagem”, Vygotski faz ver não
apenas novas possibilidades para o conceito de desenvolvimento, mas também para o
conceito de aprendizagem. Chamamos atenção para duas idéias importantes colocadas por
esta relação: a primeira é que a aprendizagem implica desenvolvimento. Aprender é
portanto um processo que se encarna na nossa estrutura. E a segunda é que, ao conceber
esta relação, Vygotski permite pensar a aprendizagem como um processo sem fim, que se
faz ao longo da vida, com a vida e no encontro com os outros. Sobre isso o diálogo com
O.Sacks (1997) a propósito das vias colaterais foi de grande importância.
Após esse primeiro momento do nosso trabalho, nos foi possível, construir as
ressonâncias entre a abordagem enativa e a psicologia histórico-cultural. Este se constituiu
em nosso terceiro capítulo. Note-se que as ressonâncias tiveram por base o material
apresentado e discutido nos dois primeiros capítulos. Neste sentido a concepção de ambos
os autores a respeito da construção da cognição constituiu-se no nosso fio condutor.
De saída, sabíamos que não conseguiríamos chegar às ressonâncias se
desconsiderássemos as diferenças e singularidades de cada uma das abordagens. Quase um
século separa a abordagem enativa da psicologia histórico-cultural, além de contextos e
culturas distintas. Seria um contra-senso achar que poderíamos encontrar uma igualdade
entre elas. Assim, nosso objetivo era examinar sintonias entre elas e não igualdades.
A questão dos mecanismos circulares nos chamou atenção e passou a constituir a
principal ressonância. Estes mecanismos introduzem complexidade em ambas as
abordagens, impedido-nos de trabalhar com as dicotomias sujeito-objeto, sujeito-mundo e,
biológico-social. Isto não significa que a solução para estas tradicionais dicotomias sejam
as mesmas na abordagem enativa e na psicologia histórico-cultural. Em função das
singularidades de cada mecanismo as soluções são diferentes.
Ao nos dedicarmos à análise das ressonâncias vimos aparecer uma questão
interessante. Quando nos centrávamos nos pontos que pareciam aproximar-se nestas
abordagens, víamos aparecer diferenças importantes entre elas e, ao contrário, quando nos
centrávamos nas diferenças, víamos aparecer aproximações. Assim, ao final do capítulo
136
uma questão: ressaltamos os pontos de ressonância, afirmando a possibilidade de produção
de uma articulação entre a abordagem enativa e a psicologia histórico-cultural ou
enfatizamos as diferenças e abandonamos qualquer tentativa de diálogo entre elas?
Conforme argumentamos na introdução, “fazer psicologia” implica a realização de
conexões, alianças e articulações. Nestas práticas o que está em questão é um trabalho
sobre os limites da psicologia constituída. Este, por sua vez fornece ao mesmo tempo
inúmeras possibilidades, mas também muitas incertezas. Assim, a partir da aposta nas
possibilidades que surgem a partir da articulação entre Varela e Vygotski aceitamos o
desafio de ressaltar as ressonâncias. Quais as novas possibilidades que surgem diante de
nós?
Conforme vimos, tradicionalmente a psicologia trabalha com mecanismos lineares
para estudar e explicar os processos de aprendizagem. A questão é sempre resolver um
problema dado seja adequando-se ao mundo, seja adequando o mundo ao sujeito dado.
Trata-se, na maioria das vezes de um caminho de mão única, onde aquilo que é aprendido
não interfere no processo de aprender. Caminha-se sempre em uma mesma direção que não
é definida durante o processo de aprendizagem, mas é estabelecida de fora e de antemão.
Assim, ao colocar o problema da construção da cognição a partir de mecanismos
circulares, a abordagem enativa e a psicologia histórico-cultural possibilitaram a produção
de um desarranjo em relação às concepções tradicionais de aprendizagem. Dessa forma, a
circularidade constitui-se não apenas num ponto importante de ressonância entre a
abordagem enativa e a psicologia histórico-cultural mas também, apresenta-se como um
ponto interessante para fecundar as discussões sobre a aprendizagem. Como pensar a
aprendizagem a partir de mecanismos circulares? Quais as conseqüências desta inflexão
para a psicologia da aprendizagem?
A circularidade aponta para uma concepção de aprendizagem que se define mais
pelo processo do que por seus resultados. Não que não haja resultados, ou que eles não
sejam importantes, no entanto a ênfase recai sobre os processos. Dito de outra forma,
pensar os resultados da aprendizagem a partir de uma concepção circular implica que estes
sejam considerados sempre em processo. Os resultados são sempre inacabados.
O inacabamento da aprendizagem surge da circularidade. No entanto, conforme
vimos com Varela e com Vygotski, o acesso ao inacabamento não está garantido. Podemos
137
nos fechar aos movimentos de transformação, rompendo o circulo e fazendo dele uma linha
com início e fim bem delimitados.
Note-se que pensar a aprendizagem a partir da circularidade nos impede de
delimitar com precisão um início e um fim do processo, uma vez que o fim está sempre
ligado ao início. Ao conceber a aprendizagem como desempenho ou resolução de tarefas
pré-estabelecidas, delimita-se um início e um fim para ela. Se, contudo, ampliamos o
horizonte, vemos que todo início e fim de um aprendizado estão sempre inseridos em uma
história mais ampla, sempre sendo refeita. Outra direção trazida pela circularidade é que
aprender é mais do adquirir conteúdos ou habilidades. Aprender é um processo de produção
de subjetividades e de seus mundos correspondentes.
Assim, a articulação que busca ressonâncias entre a abordagem enativa e a
psicologia histórico-cultural, faz aparecer outra contribuição importante não apenas à
psicologia da aprendizagem, mas à psicologia de uma forma geral. Trata-se da
indissociabilidade entre política e fazer científico.
Nos dois primeiros capítulos quando analisamos a abordagem enativa e a psicologia
histórico-cultural destacamos como o contexto político em que estas duas abordagens
foram concebidas afetaram as formulações teóricas tanto de Varela quanto de Vygotski.
Assim, através do relato de Luria (1992) tomamos conhecimento de como a revolução russa
foi importante para a constituição da psicologia histórico-cultural. Por outro lado, através
das entrevistas de Varela (COSTA, 1993; GOLEMAN, 2003) e do prefácio ao livro De
Máquinas e seres vivos (MATURANA e VARELA, 1997) ficamos sabendo quão
importante foi para a concepção da teoria da autopoiese a situação do Chile na época das
eleições de Salvador Allende.
No entanto, para além desta política maior que atravessa a obra dos dois autores,
fomos percebendo ao longo de nosso trabalho, que subsiste em ambos uma certa política
epistemológica. Tal política revela-se através da análise da colocação dos problemas a
serem estudados por cada abordagem que aponta para uma certa concepção do que seja o
fazer científico, bem como revela um certo entendimento do mundo, do vivo, do humano e
da subjetividade.
Note-se que, entendida deste modo, seria preciso afirmar a existência de políticas
epistemológicas em todas as teorias. No entanto o que Varela e Vygotski trazem de
138
novidade é explicitar esta dimensão em seus textos, não se furtando a discuti-la, e ao
mesmo tempo cuidando do rigor científico. A política em seus trabalhos não é, portanto um
resíduo a ser eliminado no percurso do conhecimento científico.
Por caminhos diversos Varela e Vygotski nos mostraram que fazer ciência
pressupõe método, rigor, disciplina e estudo, mas também implica a colocação de perguntas
e de problemas. Indo mais além, diríamos que esses autores fazem ver que a atividade
cognitiva implica uma política. Desdobrando esta idéia, diríamos que a atividade cognitiva
implica, por um lado, uma política em relação aquilo que será conhecido – política
epistemológica -, e por outro, uma política em relação à própria atividade de conhecimento
– política cognitiva.
Portanto, ao final deste trabalho talvez possamos apostar na fecundidade que o
mecanismo circular pode trazer para as discussões sobre a aprendizagem. Este mecanismo
não apenas torna necessária a inclusão da dimensão política nos estudos da aprendizagem,
mas também possibilita a aproximação das discussões da aprendizagem da idéia de
produção de subjetividade e de produção de mundos.
139
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVAREZ, A. e RIO, P. “Prólogo a la edición em lengua castellana”. In: Obras Escogidas I. Madrid: Visor, 1997.
ALVAREZ, J. Por um construtivismo radical: a cognição e o tempo a partir dos estudos da epistemologia genética e da teoria da autopoiese. Dissertação de mestrado. IP-UFRJ: Rio de Janeiro, 1999.
ARIÈS, P. A História social da família e da criança. Rio de janeiro: Guanabara, 1986.
BEZERRA, P. “Apresentação”. In: Vigotski, L.S. A Construção do Pensamento e da Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
BOCK, A.; GONÇALVES,M.G; FURTADO,O. (orgs.). Psicologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica em psicologia. São Paulo: Cortez, 2002.
CANGUILHEM, G. “O que é a psicologia?”. Revista Tempo Brasileiro, 30/31, Epistemologia, 2, 1973.
CERUTI, M. O vínculo e a possibilidade. Lisboa: Instituto Piaget, 1986.
CLOT, Y(org.). Avec Vygotski. Paris: La Dispute, 1999.
COLE, M. E SCRIBNER, S. “Introdução”. In: Vigotski, L.S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
COLE, M. E WERTSCH, J. Beyond the individual-social antinomy in discussions of Piaget and Vygotsky. http://www.massey.ac.nz/~alock/virtual/colevyg.htm. Consultado em 18/08/04.
COSTA, R. (org.). Limiares do contemporâneo: entrevistas.São Paulo: Escuta, 1993.
DREYFUS, H. “A dimensão filosófica do conexionismo”. In: ANDLER, D. Introdução às ciências cognitivas. São Leopoldo: Unisinos, 1998.
DUARTE, N. Vigotski e o ‘aprender a aprender’: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. Campinas-SP: Ed. Autores Associados, 2001.
DUPUY, J.P. Nas origens das ciências cognitivas. São Paulo: Unesp, 1996.
EIRADO, A. E PASSOS, E. A noção de autonomia e a dimensão do virtual. Psicologia em Estudos, Maringá, v.9, n.1, p.77-85, 2004.
FLORES, F.; VARELA, F.Educación y Transformación. http://www.geocities.com/pluriversu/educacion. Consultado em 24/09/03.
140
FRAWLEY, W. Vygotsky e a ciência cognitiva: linguagem e integração das mentes social e computacional. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000.
GARDNER, H. A nova ciência da mente: uma história da revolução cognitiva. São Paulo: Edusp, 1996.
GÓES, M.C. A construção de conhecimentos: examinando o papel do outro nos processos de significação. Temas em Psicologia. n.2., p.31-40, 1995.
GLICK, J. “Prologue”. In: Vygotsky, L.S. The collected Works of L.S.Vygotsky.V.4. Nova York: Plenum Press, 1997.
GOLEMAN, D. “O estudo científico da consciência”. In: Como lidar com emoções destrutivas: diálogo com a contribuição do Dalai Lama. Riso de Janeiro: Campus, 2003.
KASTRUP, V. Políticas cognitivas na formação do professor: o problema do devir mestre. Educação e Sociedade, v.26, n.93, set/dez, 2005.
______. Aprendizagem arte e invenção. Psicologia em Estudo, v.6, n.1, 2001, p.17-27.
______. “A psicologia na rede e os novos intercessores”. In: FONSECA, T.G. e FRANCISCO, D.J.(orgs.). Formas de ser e habitar a contemporaneidade. Porto Alegre: Ed.UFRGS, 2000.
______.A invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Campinas-SP: Papirus, 1999.
KNOX, J. “Prefácio”. In: VYGOTSKY; LURIA, A.R. Estudos sobre a história do comportamento: o macaco, o primitivo e a criança. Artes Médicas: Porto Alegre, 1996.
LATOUR, B. “How to talk about the body: the normative dimension of science studies”. In: BERG, M. e AKRICH, M. (orgs.). Bodies on trial. v.10, n.2/3, 2004.
____. “Promisses of constructivism”. In: IHDE, D. (org). Chasing technology: matrix and materiality. Indiana series for philosophy of science, Indiana University Press, 2003.
LURIA, A.R. A construção da mente. São Paulo: Ícone, 1992.
______. Desenvolvimento cognitivo: seus fundamentos culturais e sociais. São Paulo: Ícone, 1990.
MAINARDES, J. e PINO, A. “Publicações brasileiras na perspectiva vigotskiana”. In: Educação e Sociedade. v.21, n.71, Campinas, Julho, 2000.
MATURANA, H. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.
141
______. Da biologia à psicologia. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
MATURANA, H. E VARELA, F. (1987). A árvore do conhecimento. Campinas-SP: Editorial Psy II,1995.
______. De máquinas e seres vivos: Autopoiese: a organização do vivo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
MELLO, L.E. O plano do coletivo. Tese de doutorado. IP-UFRJ, 2004.
Moll, L.C. (org). Vygotsky e a Educação: implicações da psicologia sócio-histórica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
NEWMAN, F.; HOLZMAN, L. Lev vygotsky: cientista revolucionário.São Paulo: Loyola, 2002.
NUERNBERG, A.H. E ZANELLA, A. “A relação natureza e cultura: o debate antropológico e as contribuições de Vygotski”. Interação: Curitiba, v.7, n.2, p.81-89, 2003.
OLIVEIRA, Z.M.R E ROSSETTI-FERREIRA, M.C. “O valor da interação criança-criança em creches no desenvolvimento infantil”. Cadernos de Pesquisa 87. São Paulo: Cortez, 1993, p.62-70.
PENA, A. “Por que história da psicologia?”. Revista do departamento de psicologia-UFF, v.15, n.2, dez. 2003.
PINO, A. “O social e o cultural na obra de Vigotski”. Educação & Sociedade, ano 21, n. 71, p.45-78, 2000.
___. “Semiótica e cognição na perspectiva histórico-cultural”. Temas em Psicologia. n.2., p.31-40, 1995.
___.“As categorias de público e privado na análise do processo de interação”. Educação e sociedade. n.42, agosto, p.315-327, 1992.
PIAGET, J. Seis estudos de psicologia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
PUZIREI, A.A. “Lev S. Vigotski: Manuscrito de 1929”. In: Educação e Sociedade. n.71, outubro, 2000, p.21-22.
SACKS, O. O homem que confundiu sua mulher com um chapéu. São Paulo: Companhia das letras, 1997.
SANCOVSCHI, B. “Devir-Mestre: ocasião de um encontro Deleuze / Vigotski”. In: CD-room II Colóquio Franco-Brasileiro de Filosofia da Educação, 2004.
142
______.Sobre o caminho dos riscos: repensando o conceito de adaptação. Monografia de conclusão de graduação. IP-UFRJ: 2003.
SAVIANI, D. Escola e Democracia. Campinas, SP: Autores Associados, 2001.
SCHNEUWLY, B. “Le développment du concept de development chez Vygotski”. In: Clot, Y (org.). Avec Vygotski. Paris: La Dispute, 1999.
SÈVE, L. “Quelles contradictions? A propôs de Piaget, Vygotski et Marx”. In: Clot, Y(org.). Avec Vygotski. Paris: La Dispute, 1999.
SOUZA, S.J. “Re-significando a psicologia do desenvolvimento: uma contribuição crítica à pesquisa da infância”. In: KRAMER, S.; LEITE,M.I. (orgs). Infância fios e desafios da pesquisa. Campinas, SP: Papirus, 1996.
SOUZA, S.J.; KRAMER, S. O debate Piaget/Vygotsky e as políticas educacionais. Cadernos de Pesquisa. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, n.77, maio, 1991.
VARELA, F. Entrevista com Francisco J.Varela por Hervé Kempf. La Recherche, n.308, Abril, 1998, p.109-112. http://geocities.com/pluriversu/varelaen.html. Consultado em 23/12/2004.
______.(1992). “O reencantamento do concreto”. In: Cadernos de subjetividade. São Paulo: Hucitec Educ, 2003.
______. (1989). Autonomie et connaissance: essai sur lê vivant. Paris: Seuil, 1989.
______. (1987). “A individualidade: a autonomia do ser vivo”. In: VEYNE, P.; VERNANT, J.P. et.al. Indivíduo e poder. Lisboa: Edições 70, 1988.
______. (1988). Conhecer. Lisboa: Instituto Piaget, s/d.
VARELA, F.; DUPUY, J.P.(1991). “Círculos viciosos criativos: para compreensão das origens”. In: Watzlawick, P. e Krieg, P. (orgs.). O olhar do observador. Campinas: Editorial Psy II, 1995.
VARELA, F. SCHARMER, C.O. Three gestures of becoming aware: conversation with Francisco Varela. Janeiro, 12, Paris, 2000.
VARELA, F.; SHEAR, J. Frirst-person methodologies: what, why, how?. http://web.ccr.jussieu.fr/varela/human_consciousness/JCSCHAP.htm. Consultado em 19/04/04.
VARELA, F., THOMPSON, E. E ROSCH, E. (1991). A mente Incorporada: Ciências Cognitivas e Experiência Humana. Porto Alegre: Artmed, 2003.
143
VARELA, F. DEPRAZ, N. E VERMERSCH, P. (2002). On becoming aware: a pragmatics of experiencing. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 2002.
VERMERSCH, P. L’entretien d’explicitation: en formation initiale et em formation continue. Paris: ESF, 1994.
VIGOTSKI, L.S. O Desenvolvimento Psicológico na Infância. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
______. Psicologia da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
______. “Aprendizagem e desenvolvimento intelectual na idade escolar”. In: VIGOTSKI, L.S.; LURIA, A.R.; LEONTIEV, A.N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone, 2001.
______. (1929). “Psicologia concreta do homem”. In: Educação e Sociedade. n.71, outubro, p.23-44, 2000.
______.A Construção do Pensamento e da Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
______.Teoria e Método em Psicologia. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ______.A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
VYGOTSKI, L.S. La imaginación y el arte em la infância. Akal:Madrid, 2003.
______. (1927). “El significado histórico de la crisis de la psicologia”. In: Vygotski, L.S Obras Escogidas I. Madrid: Visor, 1997a.
______. (1927). “Problemas generales de la defectologia”. In: Vygotski, L.S. Obras Escogidas V. Madrid: Visor, 1997b.
______. (1926). “Prólogo al libro de Thorndike ‘Principios de ense^nanza basados em la psicologia”. In: Obras Escogidas I. Madrid: Visor, 1997.
______. (1925). “La conciencia como problema de la psicología Del comportamiento”. In: Vygotski, L.S. Obras Escogidas I. Madrid: Visor, 1997.
______. (1934). “Pensamiento y Lenguaje”. In: Vygotski, L.S. Obras Escogidas II. Madrid: Visor, 2001.
___. (1931). “Historia Del desarrollo de lãs funciones psíquicas superiores”. In: Vygotski, L.S. Obras Escogidas III. Madrid: Visor, 2000.
144
TUDGE, J. “A Zona de Desenvolvimento Proximal e a colaboração de pares: implicações para a prática pedagógica”. In: Moll, L.C. (org). Vygotsky e a Educação: implicações da psicologia sócio-histórica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
ZANELLA, A. “Sujeito e alteridade: reflexões a partir da psicologia histórico-cultural”. Psicologia e Sociedade, 2005 (no prelo).
___. “Atividade, significação e constituição do sujeito: considerações à luz da psicologia histórico-cultural”. In: Psicologia em estudo. Maringá/PR, v.9, n.1, p.127-135, p.2004.
___. “Psicólogo na escola e as ‘dificuldades de aprendizagem’: algumas estratégias e muitas histórias”. In: Maraschin, C., Freitas, L.B., Carvalho, D. (orgs.). Psicologia e Educação: multiversos sentidos, olhares e experiências. Porto Alegre: Ed.UFRGS, 2003.
___. Vygotski: Contexto, contribuições à psicologia e o conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal. Itajaí: Ed.Univali, 2001.
This document was created with Win2PDF available at http://www.win2pdf.com.The unregistered version of Win2PDF is for evaluation or non-commercial use only.This page will not be added after purchasing Win2PDF.