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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO SOBRE A APRENDIZAGEM: Ressonâncias entre a Abordagem Enativa de F.Varela e a Psicologia Histórico- Cultural de L.S.Vygotski Beatriz Sancovschi Rio de Janeiro 2005

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

SOBRE A APRENDIZAGEM:

Ressonâncias entre a Abordagem Enativa de F.Varela e a Psicologia Histórico-

Cultural de L.S.Vygotski

Beatriz Sancovschi

Rio de Janeiro

2005

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BEATRIZ SANCOVSCHI

SOBRE A APRENDIZAGEM:

Ressonâncias entre a Abordagem Enativa de F.Varela e a Psicologia Histórico-

Cultural de L.S.Vygotski

Dissertação apresentada à banca examinadora da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, como exigência parcial para obtenção do

título de Mestre em Psicologia.

Orientador: Profª. Drª.Virgínia Kastrup

Rio de Janeiro

2005

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S211 Sancovschi , Beatriz.

Sobre a aprendizagem : ressonâncias entre a abordagem enativa de F.Varela e

a psicologia histórico-cultural de L.S.Vygotski / Beatriz Sancovschi. – Rio de

Janeiro : UFRJ , 2005.

144f.

Orientador : Virgínia Kastrup

Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Federal do Rio de

Janeiro. Instituto de Psicologia / Programa de Pós- Graduação em Psicologia ,

2005.

1. Aprendizagem . 2. Mecanismo circular . 3. Varela, Francisco, 1946. 4.

Vygotsky, Lev Semenovich, 1896-1936. I . Kastrup, VIRGÍNIA . II Universidade

Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia.

CDD 153.15

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4

BEATRIZ SANCOVSCHI

SOBRE A APRENDIZAGEM:

Ressonâncias entre a Abordagem Enativa de F.Varela e a Psicologia Histórico-

Cultural de L.S.Vygotski

Aprovado em ____de_________ de ______.

Banca examinadora,

__________________________

Profª. Drª. Virgínia Kastrup

Universidade Federal do Rio de Janeiro

__________________________

Profª. Drª. Andréa Vieira Zanella

Universidade Federal de Santa Catarina

__________________________

Prof. Dr. Francisco Portugal

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro

2005

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AGRADECIMENTOS

À minha família, sobretudo aos meus pais e irmãs pela paciência e pelo apoio prestados nos

momentos mais difíceis de meu trabalho e, pela alegria compartilhada nos êxitos obtidos.

À minha orientadora, prof.ªVirgínia Kastrup por acreditar no meu trabalho e pela atenciosa

orientação.

Aos colegas de pós-graduação pelas valiosas contribuições nas orientações coletivas e

também nas “conversas nos corredores”.

Ao professor do IP-UFRJ Amandio pelos grupos de estudo e pelas discussões fomentadas.

Aos funcionários da pós-graduação Ana e Gian pela ajuda em relação à parte burocrática e

operacional do mestrado.

À Capes por ter fornecido o auxílio financeiro que me permitiu a dedicação necessária a

elaboração de minha dissertação.

A todos,

Muito obrigada.

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RESUMO

O objetivo desta dissertação é trabalhar as ressonâncias entre a abordagem enativa de

F.Varela e a psicologia histórico-cultural de L.S.Vygotski, a partir da questão da

aprendizagem. Procede-se examinar as possibilidades de repensar a aprendizagem através

do modo singular como Varela e Vygotski concebem a construção da cognição. A noção de

uma cognição inventiva orienta este trabalho. O primeiro capítulo é dedicado à análise da

abordagem enativa. Examina-se aí o mecanismo autopoiético, a aprendizagem pensada no

domínio humano através do exemplo do aprendiz da flauta e a aprendizagem da prática do

devir-consciente. Estas idéias ajudam a recolher indicações a fim de repensar a noção de

aprendizagem. O segundo capítulo é dedicado à psicologia histórico-cultural. Examina-se aí

o mecanismo histórico-dialético de formação das funções psíquicas superiores (mediação e

internalização), a Zona de Desenvolvimento Proximal e as vias colaterais de

desenvolvimento. Na análise da teoria vygotskiana, verifica-se que a idéia da apropriação

da cultura como um destino para o desenvolvimento poderia constituir-se num limite. A

relativização desta noção foi, então, fundamental para potencializar os achados da

psicologia histórico-cultural. A partir dessas discussões, analisa-se, no terceiro capítulo as

ressonâncias entre ambas as abordagens. Aí a questão do mecanismo circular para pensar a

construção da cognição ganha destaque. Por fim conclui-se que, ainda que existam muitas

diferenças entre a abordagem enativa e a psicologia histórico-cultural, o encontro entre

Varela e Vygotski aponta para novas orientações para a psicologia da aprendizagem. Trata-

se da ênfase no mecanismo circular. Tal mecanismo aproxima a aprendizagem da idéia de

produção de subjetividades e de mundos e, torna necessária a inclusão da dimensão política

nos estudos da aprendizagem.

Palavras-chave: Varela – Vygotski – aprendizagem - circularidade

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7

ABSTRACT

The purpose of this dissertation is to analyze the enactive approach of F. Varela and the

historical-cultural psychology of L. S. Vygotski, and compare their views on the cognitive

problem of learning. We propose an examination of the possibilities of rethinking learning

according to Varela’s and Vygotski’s singular conceptions of the cognitive construction.

The notion of inventive cognition is the basic orientation of our work. In the first chapter,

dedicated to the analysis of the enactive approach, we examine the autopoietic mechanism,

and consider learning in the human domain through the example of the flute apprentice and

through the practice of becoming-aware. These ideas suggest indications that will

contribute to rethink learning. In the second chapter, devoted to the historical-cultural

psychology, we examine the historical-dialectical mechanism responsible for the formation

of superior psychic functions (mediation and internalization), the Proximal Development

Zone and the collateral paths of development. Within the analysis of Vygotski’s theory, we

verify that the idea of the appropriation of culture as a destination of cognitive development

might represent a limitation. We were then lead to emphasize the relativity of this notion in

order to consider, in their full potential, the findings of the historical-cultural psychology.

Based on these discussions, we analyze, in the third chapter, the resonances of Varela’s and

Vygotski’s approaches, in which the circular mechanism related to the construction of

cognition plays a very important role. At last we conclude that, in spite of the various

differences between these two cognitive approaches, their encounter in this investigation

suggests new directions to research in cognitive psychology, based on the circular

mechanism. Such mechanism indicates a convergence of learning and the idea of

production of subjectivities and worlds, and requires the consideration of the political

dimension in the investigation of the learning process.

Key-words: Varela – Vygotski – learning - circularity.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

CAPÍTULO 1

A abordagem enativa e o problema da aprendizagem 23

1.1 – Abordagem enativa: a terceira via no campo das ciências cognitivas 25

1.2 – Circularidade: uma exigência epistemológica 30

1.3 – Aprendizagem na abordagem enativa 32

1.3.1 – Sobre o mecanismo autopoiético: circularidade e co-engendramento 34

1.3.2 – O aprendiz: a aprendizagem no domínio humano 48

1.3.3 – A prática do devir-cosnciente: contribuições para a aprendizagem 54

1.4 - Política e fazer científico 62

1.5 – Contribuições da abordagem enativa ao tema da aprendizagem: algumas sínteses 63

CAPÍTULO 2

A teoria histórico-cultural e o problema da aprendizagem 67

2.1 – Uma promessa de síntese no campo da psicologia 69

2.2 – A questão do desenvolvimento: antes de tudo um problema de método 75

2.3 – Funções elementares e funções superiores 80

2.4 – Aprendizagem e desenvolvimento: processos de transformação temporal 83

2.4.1 – Sobre o mecanismo histórico-dialético: mediações e internalizações 88

2.4.2 – Aprendizagem e a Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) 95

2.4.3 – Aprendizagem e as vias colaterais de desenvolvimento: sobre a teoria

compensatória em defectologia 101

2.5 – Política e fazer científico 108

2.6 - Contribuições da psicologia histórico-cultural ao tema da aprendizagem: algumas

sínteses 109

CAPÍTULO 3

Algumas Ressonâncias entre a abordagem enativa e a psicologia histórico-cultural 112

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CONCLUSÃO 128

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 139

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INTRODUÇÃO

“O que ocorreu comigo, penso que sucede com freqüência na vida de todos os que se dedicam à psicologia. Seria melhor dizer, de todos os que se dedicam à história de qualquer ciência. Sempre acontece a oportunidade para uma incursão no passado, pela descoberta de semelhanças entre algumas idéias que pensamos atuais, e outras que se produziram em épocas recuadas” (PENNA, 2003, p.10).

A psicologia é um saber híbrido que se constitui pela aproximação com diversos

saberes como a física, a fisiologia, a sociologia, a biologia, a cibernética, etc. Ela é uma

ciência que se faz nas interfaces, por conexões. A prática de alianças está na base do “fazer

psicologia” (KASTRUP, 2000). Neste sentido, é apenas, nas interfaces, através de conexões

ou ainda pelas articulações (LATOUR, 2004) que podemos ir além dos limites da

psicologia constituída, caminhando em direção a um fazer da psicologia. Cito: “A

expressão ‘fazer psicologia’ ganha força quando evoca um compromisso não apenas com a

aplicação do saber psicológico constituído, mas envolve o processo de produção deste

campo, a invenção da própria psicologia...” (KASTRUP, 2000, p.13). Certamente este é um

caminho que não se faz sem riscos. Novas articulações implicam, ao mesmo tempo,

inúmeras possibilidades, e também muitas incertezas. “Se ‘fazemos psicologia’ não

podemos aguardar o veredicto da história, o aval do conhecimento passado” (Ibidem, p.19).

Tendo em vista estas colocações, propomos nesta dissertação, uma articulação entre

a abordagem enativa de F.Varela e a psicologia histórico-cultural de L.S.Vygotski1. Mais

especificamente, buscamos ressonâncias entre elas, tomando como foco a questão da

aprendizagem. Interessa-nos examinar a possibilidade de repensar a aprendizagem através

do modo singular como Varela e Vygotski concebem a construção da cognição. Nos

situamos, neste empreendimento, na interface entre a psicologia e as ciências cognitivas.

1 A grafia do nome do autor russo Lev S. Vygotski é uma questão curiosa. Conforme explica Duarte “Em decorrência de o idioma russo possuir um alfabeto distinto do nosso, têm sido utilizadas muitas formas de escrever o nome desse autor com o alfabeto ocidental. Os americanos e os ingleses adotam a grafia Vygotsky. Muitas edições em outros idiomas, por resultarem de traduções de edições norte-americanas, adotam essa mesma grafia. Na edição espanhola das obras escolhidas desse autor tem sido adotada a grafia Vygotski. Os alemães adotam a grafia Wygotski. Em obras da e sobre a psicologia soviética publicadas pela então editora estatal soviética, a Editora Progresso, de Moscou, traduzidas diretamente do russo para o espanhol, como, por exemplo, Davidov & Shuare (1987), é adotada a grafia Vigotski. A mesma grafia tem sido adotada em publicações recentes, no Brasil, de partes da obra desse autor” (2001, p.2-3). No presente trabalho seguirei a grafia Vygotski, uma vez que estamos nos baseando, principalmente, nas publicações espanholas. No entanto respeitarei nas referências e citações a grafia da edição utilizada.

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11

Varela, em seu livro Conhecer (s.d), propõe uma visão geral das ciências cognitivas,

distinguindo quatro estágios de seu desenvolvimento: o primeiro corresponde aos anos de

fundação (1943-1953); o segundo, ao paradigma cognitivista (cognitivismo

computacional); o terceiro apresenta-se como uma alternativa à manipulação simbólica

(movimento conexionista); e finalmente o quarto, é uma alternativa à representação

(abordagem da enação). Estes estágios, ressalta o autor, não excluem uns aos outros.

Embora o cognitivismo computacional tenha sido a abordagem hegemônica durante os anos

de 1960 e 1970, as noções de uma cognição emergente e de uma cognição enativa ganham

força na atualidade, o que justifica nossa proposta de trazê-las para o debate com a

psicologia.

Optamos por nos referir ao trabalho de Varela pelo nome “abordagem enativa”, no

entanto é importante destacar que não serão excluídas da investigação nem as obras

anteriores à formulação deste conceito, nem as posteriores. Neste sentido trabalharemos

com os três momentos da obra de Varela: o da autopoiese, o da enação e o da pragmática da

experiência.

A psicologia “histórico-cultural” de Vygotski2 é uma teoria que, em função do

contexto sócio-político em que foi concebida e de seu embasamento teórico-filosófico,

comporta complexidades e tensões. Não é nosso objetivo realizar a totalização de trabalhos

vygotskianos, mas pensar com o autor russo, novas possibilidades para a psicologia na

interface com as ciências cognitivas, em particular com a abordagem enativa. Desse modo,

trabalharemos com as virtualidades de seus textos de modo a trazer contribuições para a

noção de aprendizagem.

Ainda que nem Varela e nem Vygotski apresentem uma teoria pronta de

aprendizagem, através da análise de seus textos e, em especial, da forma como concebem a

cognição como um processo em construção, percebemos que esta temática atravessa seus

trabalhos. Neste sentido, justifica-se nosso interesse de fazê-los dialogar a partir deste tema.

Através dos conceitos de autopoiese (MATURANA e VARELA, 1995), enação

(VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2003) e breakdown (VARELA, 2003), a teoria de

2 A escolha pela designação histórico-cultural para nomear a psicologia vygotskiana tem por objetivo marcar uma diferença em relação à psicologia realizada pelo grupo de psicólogos brasileiros que nomeia seus trabalhos de psicologia sócio-histórica. Note-se que a chamada psicologia sócio-histórica, embora tome por base os textos vygotskianos, reúne outras referências como Leontiev, Politzer, Luria e outros, além de situar-se no campo da psicologia social (Bock, Gonçalves e Furtado, 2002).

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F.Varela, desenvolvida no domínio das ciências cognitivas, propõe uma concepção de

cognição que se afirma em oposição ao paradigma informacional e representacional.

Segundo este paradigma haveria um mundo previamente dado que transmitiria informações

– na forma de inputs – ao sujeito e esse as representaria de modo a poder agir

adequadamente (VARELA, s.d). Para este autor, ao contrário, a cognição é entendida como

uma ação ou um fazer que torna possível a emergência co-engendrada de sujeito e mundo.

Neste contexto, não faz sentido falar em informação. O mundo pode apenas oferecer

ocasiões de breakdowns, ou seja, possibilitar perturbações no acoplamento sujeito-mundo.

O resultado de um breakdown é sempre imprevisível. Desse modo, Varela nos fornece uma

concepção de cognição bastante singular – que se afasta dos invariantes, aproximando-se da

criação – nos forçando a repensar conceitos da psicologia, como é o caso do de

aprendizagem.

Kastrup (1999) e Alvarez (1999) apontam a teoria de F.Varela como uma

alternativa para pensar uma cognição em variação e diferenciação, que comporte o tempo e

a invenção. Ao mesmo tempo, debruçam-se sobre a Epistemologia Genética, em busca de

aliados no campo da psicologia que possam ajudar a pensar este tipo de cognição. De

acordo com Kastrup, o construtivismo piagetiano, na medida em que introduz a idéia de

construção contribui para pensar uma cognição em transformação. No entanto, ao submeter

o problema do conhecimento a sua lógica, Piaget deixa de poder enxergar a invenção na

transformação. Nas palavras da autora:

A forma de colocação do problema psicológico do conhecimento – entre a biologia e a lógica – impõe sua marca na teoria da cognição elaborada por Piaget e determina a ausência de um estudo efetivo da invenção como potência da cognição de diferir em relação a si mesma (KASTRUP, 1999, p.83).

Essa lógica tem por base um tempo seqüencial e sucessivo que marca os estágios do

desenvolvimento da criança. Esses são sempre os mesmos e seguem uma ordem invariante.

Para Piaget (2001) todo desenvolvimento segue o caminho que vai do sensório-motor ao

lógico formal. Neste sentido, conclui Kastrup, o construtivismo piagetiano é um

“construtivismo de caminho necessário” (KASTRUP, 1999, p.95), portanto, não nos

permite pensar a invenção, que é sempre imprevisível.

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Alvarez (1999) com base no trabalho de M.Ceruti (1986) propõe uma comparação

entre o construtivismo piagetiano e o construtivismo de Varela e Maturana. Conclui que o

construtivismo piagetiano, embora se afirme como um processo de transformação que

envolve a ação, na medida em que tem por base invariantes funcionais: assimilação e

acomodação, não pode ser concebido como um construtivismo radical. Ou seja, o

construtivismo piagetiano se faz no interior de um espectro de variações possíveis,

mantendo identidade e produzindo resultados idênticos. Nas palavras de Alvarez: “O que

move a atividade construtiva, seu invariante funcional, não descarta um aspecto previsível e

determinista, que aponta desde cedo os caminhos de tal construção, caminhos necessários

para a formação das estruturas próprias ao conhecimento científico avançado” (ALVAREZ,

1999, p.19).

Dessa forma, tanto Kastrup quanto Alvarez concluem seus trabalhos apontando a

insuficiência da Epistemologia Genética no que diz respeito a uma concepção de cognição

que comporte a invenção. Restava, contudo, uma pesquisa a ser feita, incluindo a teoria

histórico-cultural. É neste contexto que propomos este trabalho. Portanto, este trabalho de

busca por ressonâncias entre a abordagem enativa e a psicologia histórico-cultural, estará

sendo perspectivado pela noção de cognição inventiva (KASTRUP, 1999)

Para Vygotski, a cognição, ou em seus termos, o psiquismo, só pode ser

compreendido como resultado de construções. Chamamos atenção para o sentido singular

atribuído aqui à palavra construção. A afirmação de que Vygotski trabalha com uma

concepção de cognição em construção, não significa que devamos confundi-lo com o

construtivismo piagetiano (SOUZA e KRAMER, 1991). A construção aqui não resulta de

uma lógica invariante ou mesmo de um amadurecimento biológico, mas se faz ao longo da

vida, com a vida e, principalmente, no encontro com os outros. Ela também não é resultado

da atividade de um sujeito já formado. Aí reside a especificidade da psicologia histórico-

cultural que entende que a formação do psiquismo não se dá de forma dissociada dos

aspectos históricos, sociais e culturais. Neste sentido a concepção de construção da

cognição com a qual esta teoria trabalha parece aproximar-se da de Varela, apontando,

então para um caráter transformador e inventivo da cognição.

A respeito da palavra invenção é importante esclarecer que ela não é um processo

cognitivo a mais, mas uma outra perspectiva, a partir da qual todos os processos cognitivos

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– inclusive a aprendizagem – são revistos e repensados (KASTRUP, 1999). A invenção é,

então, resultado do movimento de transformação próprio da cognição e não pressupõe um

inventor. Não se trata de uma perspectiva subjetivista ou idealista. A invenção faz parte de

um funcionamento cotidiano da cognição e diz respeito à capacidade que ela tem, no seu

funcionamento concreto, de diferir de si mesma, sendo também alterada por fatores sociais

e históricos.

Note-se que N.Duarte (2001) nega o caráter construtivista da obra de Vygotski.

Para ele, considerar a teoria histórico-cultural construtivista é realizar uma apreensão

neoliberal e pós-moderna dos trabalhos vygotskianos. No entanto, seguindo sua

argumentação percebemos que sua crítica incide sobre um certo uso que a pedagogia faz do

construtivismo e que gerou no Brasil grandes equívocos (SAVIANI, 2001). Embora este

tipo de crítica seja importante no campo da educação, nosso desafio é trazer Vygotski para

a discussão com uma noção mais ampla de construtivismo levando em consideração a

ampliação deste conceito no campo das ciências cognitivas contemporâneas.

No campo dos estudos da cognição, as teorias construtivistas têm o mérito de evitar

concepções totalitárias ou naturalizantes. Por outro, fornecem recursos para compreender e

explicar os movimentos de transformação nas formas de ser e de conhecer que não são

definidas de antemão. Latour (2003), em um texto onde analisa a idéia de construtivismo,

afirma: “O construtivismo pode ser nossa única defesa contra o fundamentalismo, definido

como uma tendência a negar as características construídas e mediadas das entidades cuja

existência pública não mais tem sido discutida” (Ibidem, p.1). Esclarece que defender a

construção ou o construtivismo não implica uma oposição em relação à realidade. Saber se

algo é real ou construído é, segundo ele, um falso problema. Quanto mais construído, mais

real. Uma outra questão importante é que a construção ou o construtivismo devem ser

pensados para além da dicotomia criador-criatura. O que está em jogo nas construções não

são representações, mas articulações com coletivos. Nas palavras de Latour:

O que é interessante no construtivismo é exatamente o oposto do que inicialmente parece implicar: não há construtor, não há mestre, não há criador que poderia ser dito dominar materiais, ou, pelo menos, uma nova incerteza é introduzida tanto para o que será construído como para quem é responsável pela emergência de virtualidades do material à mão (Ibidem, p.3).

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15

Parece justificado e importante considerar que tanto Varela quanto Vygotski

pensem a cognição como um processo de construção. Ressaltar o aspecto de construção da

cognição nestas duas abordagens é uma questão que não pode ser separada de sua dimensão

política. Esta observação ganha aqui um sentido especial. Estamos trabalhando com dois

autores que não se furtaram a discutir e apontar a dimensão política de seus trabalhos. Isto

não implicou menor rigor científico, mas possibilitou formas diferentes de colocar os

problemas, bem como de resolvê-los, e isso nos interessa particularmente.

Em psicologia, dois são os processos que nos permitem abordar a transformação

temporal ou a construção da cognição: o desenvolvimento e a aprendizagem. Estes

processos introduzem o tempo no estudo da cognição. No entanto como bem mostra

Vygotski (Vygotski, 1931/2000, p.139 a 141), a noção de desenvolvimento tornou-se uma

noção desgastada, confundindo-se, muitas vezes, com a idéia de amadurecimento biológico

ou de um caminho pré-traçado. É interessante destacar que a concepção de

desenvolvimento com a qual Vygotski trabalha funda-se na unidade dialética

aprendizagem-desenvolvimento. Tal fato sugere mais uma vez a compatibilidade entre a

psicologia histórico-cultural e a concepção de cognição inventiva que caracteriza, conforme

apontam Kastrup (1999) e Alvarez (1999) a abordagem enativa.

Solange Jobim e Souza afirma sobre as teorias do desenvolvimento:

A característica marcante das teorias do desenvolvimento, do século XIX em diante, é se constituírem como saberes que engendram conceitos universalizantes e abordagens teleológicas que demarcam a natureza e o lugar social dos sujeitos, segundo estágios ou etapas unidirecionais de desenvolvimento, ou segundo sua idade cronológica (SOUZA, 1996, p.44).

Assim, optamos por buscar as ressonâncias entre a abordagem enativa e a teoria

histórico-cultural a partir da noção de aprendizagem, ainda que esta apareça de forma

indireta nos dois autores. Um dos nossos desafios é trabalhar nos limites dessas duas

abordagens da cognição e pensar com elas, e para além delas, como poderiam contribuir

para pensar o conceito de aprendizagem a partir da forma como concebem a construção da

cognição. Na medida em que esta construção é concebida por Varela e, parece ser por

Vygotski, como um processo que comporta transformação, variação e invenção, então a

concepção de aprendizagem que aparecerá deverá ser diferente daquela proposta

tradicionalmente pela psicologia da aprendizagem. A noção de uma cognição inventiva faz

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16

ver que a aprendizagem pensada como solução de problemas ou adaptação a um mundo

dado é insuficiente. Portanto, será nosso objetivo verificar como a aprendizagem pode ser

entendida em ambas as abordagens e em seus diferentes momentos. Através dela

buscaremos as ressonâncias entre a psicologia histór ico-cultural e a abordagem enativa.

De saída, a questão das lógicas circulares que estão presentes em ambos os autores

nos chama a atenção. É recorrendo a essas lógicas que Varela e Vygotski procuram escapar

das tradicionais dicotomias que impregnam a maioria das teorias científicas, incluindo aí a

psicologia. Assim, as diferenças entre o mecanismo histórico-dialético proposto por

Vygotski (VYGOTSKI, 1931/2000) para compreender a formação social da mente e o

mecanismo da circularidade criadora (DUPUY E VARELA, 1995) proposto por Varela

para dar conta da mente corporificada, merecerão especial atenção. A dimensão política de

ambas as posições também será alvo de interesse.

Embora os trabalhos de Vygotski sejam mais conhecidos e comentados no campo

da Educação, a interface com as ciências cognitivas têm se apresentado como um novo

campo de trabalho. Alguns autores apontam a teoria histórico-cultural como uma teoria

capaz de contribuir para o campo das ciências cognitivas. William Frawley publicou um

livro em 1997 nos EUA, cujo título é Vygotsky and cognitive science: language and the

unification of the social and computational mind (FRAWLEY, 2000). No entanto, na maior

parte das vezes, e este é exatamente o caso do livro citado, os autores indicam possíveis

compatibilidades entre a teoria vygotskiana e a teoria antes hegemônica no campo das

ciências cognitivas que é o cognitivismo computacional. Frawley parte da idéia de que o

cognitivismo computacional e a teoria histórico-cultural constituem dois modos de entender

o ser humano. Um daria conta da dimensão interna e o outro da dimensão externa. Neste

sentido, afirma que a mente computacional e a sócio-cultural seriam complementares.

Assim, propõe construir em seu livro algo como uma “ciência cognitiva vygotskyana”

(Ibidem) que teria no computacionalismo sua chave de leitura. Embora não seja nosso

interesse fazer uma análise detalhada da posição defendida por esse autor, nos parece haver

aí uma compreensão da teoria vygotskiana pouco aprofundada. Em outras palavras, o

mecanismo circular histórico-dialético, fundamento de toda a teoria histórico-cultural,

parece ter sido deixado em segundo plano, como se fosse secundário e não essencial.

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O computacionalismo ou cognitivismo computacional define a cognição como uma

computação de representações simbólicas ou ainda como manipulação simbólica por regras

lógicas (VARELA, s.d). Com base no modelo computacional, os cognitivistas concebem a

cognição como uma operação que se realiza num nível formal, lógico, abstrato,

encapsulado em relação aos fatores sócio-históricos e psico-fisiológicos (GARDNER,

1996). O funcionamento cognitivo é um processamento de informações que chegam do

meio (inputs) e voltam ao meio através de respostas (outputs), sem que haja alteração das

regras de processamento. Fatores sócio-históricos, biológicos, emoções, são, segundo

H.Gardner, colocados entre parênteses, não chegando a afetar o funcionamento cognitivo,

que resta invariante. Como seria possível conciliar cognitivismo computacional e teoria

histórico-cultural? Consideramos que a dimensão sócio-histórica para Vygotski não é

apenas um complemento do funcionamento cognitivo, mas é o que garante o próprio

funcionamento. É a partir dos processos históricos e culturais que os processos psíquicos se

constituem.

Há, contudo, alguns artigos como o de J.V.Wertsch e M.Cole (2004) que apontam

para uma aproximação entre as formulações da teoria de Vygotski e o movimento

conexionista, que se caracteriza por uma cognição distribuída e uma aprendizagem situada.

Frawley, embora se posicione contra, cita alguns autores das ciências cognitivas que

trabalham com concepções de cognição diferentes do computacionalismo - como a teoria

da ação situada de Schuman – que recorrem a Vygotski em seus trabalhos.

No presente trabalho tomaremos como foco a comparação com a abordagem

enativa. Embora existam na atualidade muitas formas de entendimento da cognição no

campo das ciências cognitivas, Varela nos adverte que a escolha de uma certa perspectiva é

uma tarefa fundamental: “Esta tarefa não pode ser neutra: deve ser cumprida a partir de um

determinado ponto de vista, de preferência o de um interveniente no meio em questão”

(VARELA, s.d, p.9). A forma como colocamos o problema da cognição não é portanto sem

importância, mas pressupõe uma certa posição no campo. Pois há uma diferença entre

ciências da cognição e cognitivismo que não deve ser perdida de vista. O cognitivismo é

apenas uma das abordagens no interior do campo mais amplo das ciências cognitivas.

Desse modo, propor uma articulação entre a abordagem enativa e a teoria histórico-cultural

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não constitui uma adesão à concepção cognitivista mas, ao contrário, reforça a crítica a tal

modelo de entendimento da cognição.

O presente trabalho de comparação e busca de ressonâncias entre as abordagens

enativa e histórico-cultural é realizado com base nas indicações metodológicas fornecidas

por Y.Clot por ocasião da coletânea de textos reunida no livro Avec Vygotski3 (1999), bem

como na metodologia apresentada por B.Latour em seu texto How to talk about the body? –

The normative dimension of science studies (2004).

Y.Clot, ao justificar a escolha do título de seu livro, explicita dois motivos. O

primeiro refere-se ao fato de que o trabalho de Vygotski sempre foi realizado em diálogo

com outros autores. Com relação a isso, é interessante constatar que toda a obra

vygotskiana foi construída sobre a base de um referencial filosófico-metodológico

(materialismo histórico-dialético) que orientava sua política de alianças teóricas. Era a

partir de uma certa concepção do que deveria ser a psicologia e do que ela deveria estudar

que Vygotski ia dialogando com os autores e construindo sua própria teoria. O segundo

motivo remete a um outro sentido que a obra de Vygotski ganha nos dias atuais, “não

apenas aquele da ciência feita, mas daquele da ciência que se faz”(CLOT, 1999, p.8)4.

Assim o “Com” (Avec), que aparece no título, sinaliza um tipo de postura – um método -

adotada pelos autores, que se caracteriza por um afastamento em relação a uma exegese dos

textos e da obra de Vygotski. “Na leitura e releitura de Vygotski estamos diante de um

início de trabalho e não diante de um santuário” (Ibidem, p.9). Note-se que tal postura é

adotada pelo próprio Vygotski em relação aos autores com os quais trabalhava, e aponta

para um tipo de posição teórica a ser mantida, na medida em que faz avançar as teorias

através do encontro com novas questões. Tal encontro coloca em movimento e suscita, no

autor, um processo que poderia ser dito de aprendizagem.

Latour (2004) desenvolve a noção de articulação para falar de um tipo de

aprendizagem que se diferencia do modelo de aprendizagem sujeito-objeto. Aprender,

3 Avec Vygotski é um livro organizado por Yves Clot que reúne artigos de diferentes autores. Nesses artigos comparece o diálogo ou a articulação das idéias de Vigotski com a de outros pensadores como Piaget, Freud, Wallon e Marx. 4 A tradução é nossa, assim como a de todos os outros textos citados em idioma estrangeiro.

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segundo o modelo das articulações, significa aprender a afetar e ser afetado, ou seja

aprender a tornar-se sujeito de modo co-engendrado com o mundo. Nas palavras de Latour:

Um sujeito inarticulado é alguém que independentemente do que o outro diga ou faça, sempre sente, age e diz a mesma coisa. Oposto a isso, um sujeito articulado é alguém que aprende a ser afetado pelas outras pessoas - e não por ele mesmo. Não há nada de interessante, profundo em um sujeito ‘por ele mesmo’ [...] – um sujeito só se torna interessante, profundo, quando ele ressoa com outros, é efetuado, mexido, colocado em ação por novas entidades cujas diferenças estão registradas de maneiras novas e inesperadas (Ibidem, p.6).

Neste sentido, “A articulação não significa a habilidade de falar com autoridade (...)

mas ser afetado pelas diferenças” (Ibidem, p.6).

Assim, buscaremos utilizar neste trabalho a idéia de articulação apresentada por

Latour, como um método para o estabelecimento das ressonâncias entre Vygotski e Varela.

Neste sentido propomos uma co-afetação entre os dois autores, incluindo-nos neste

processo. Não se trata, portanto, de desvelar a verdade de Vygotski ou a verdade de Varela,

mas da construção de uma forma possível de entender essas duas teorias de modo que

possam contribuir para pensar uma outra concepção de aprendizagem que se afaste da idéia

de solução de problemas e de adaptação a um mundo prévio. É pela articulação que tal

construção poderá ser realizada.

Uma última colocação a respeito da metodologia adotada neste trabalho refere-se à

ordem de apresentação dos autores. Ao invés de seguirmos a ordem histórica, optamos por

seguir a ordem pela qual os encontros com os autores ocorreram. Tal ordem marca nossas

leituras e questões. Neste sentido apresentaremos no primeiro capítulo a abordagem enativa

e no segundo, a teoria histórico-cultural, invertendo a ordem histórica.

Começaremos o primeiro capítulo fazendo uma breve apresentação da abordagem

enativa, explicitando os três momentos da obra de F.Varela que serão contemplados neste

trabalho: o da autopoiese (MATURANA e VARELA, 1995), o da enação (VARELA,

THOMPSON e ROSCH, 2003) e o da pragmática da experiência (VARELA, DEPRAZ e

VERMERSCH, 2002). Mostraremos, então, como esta abordagem afirma-se como uma

terceira via no campo das ciências cognitivas, situando-se para além tanto do cognitivismo

quanto do conexionismo. Será interessante verificar como a proposição da terceira via não

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implica uma síntese das diferentes abordagens da cognição, mas apresenta-se como uma

alternativa. Há portanto uma aposta em uma multiplicidade no campo científico. Antes de

entrar na questão da aprendizagem propriamente dita, que é o foco do nosso trabalho,

discutiremos brevemente o lugar da circularidade na abordagem de Varela. Veremos como

esta questão constitui uma exigência epistemológica (VARELA, THOMPSON e ROSCH,

2003) em função de uma certa forma de colocar o problema da cognição que toma como

base a fenomenologia de Merleau-Ponty e as práticas do budismo tibetano. Após esta

introdução inicial nos centraremos na questão da aprendizagem, analisando três momentos

em que essa temática parece aparecer na obra do Varela. Esses três momentos apontam

para um refinamento da noção. Cada um deles nos coloca diante de novas questões e

desafios, através dos quais buscaremos contribuições para repensar a aprendizagem na

psicologia. No primeiro momento trabalharemos o mecanismo circular autopoiético,

propondo pensar a aprendizagem a partir desse mecanismo. Aí discutiremos noções

importantes como as de acoplamento estrutural e perturbação, explicitando o mecanismo

circular. No segundo momento, nos centraremos na aprendizagem pensada a partir do

exemplo do aprendiz da flauta. Neste momento aparece na teoria de Varela, a questão do

humano e da experiência. Abordaremos também o trabalho de H.Dreyfus (1998), que

contribui para a discussão. Veremos que pensada como prática, a aprendizagem nos

permitirá distinguir o iniciante do perito. Por fim, analisaremos a aprendizagem pensada a

partir da prática do devir-consciente. A idéia de aprendizagem como cultivo ganhará

importância especial. Enfim, encerraremos o capítulo analisando como o co-engendramento

entre ciência e política marca os trabalhos do autor chileno.

O segundo capítulo será o momento de apresentação e discussão da teoria histórico-

cultural de L.S.Vygotski. Iniciaremos com uma breve apresentação em que

contextualizaremos os trabalhos do autor russo, explicitando a singularidade de sua obra.

Destacaremos, em seguida, a filiação da teoria histórico-cultural ao materialismo histórico-

dialético de Marx. Em função desta filiação, a teoria de Vygotski se afirmará como uma

promessa de síntese no campo da psicologia, procurando reunir as contribuições das

principais escolas de psicologia da época. Desse modo, o gestaltismo e a reflexologia se

constituirão em interlocutores importantes. Há, por parte de Vygotski, uma aposta em uma

possível unificação no campo científico. Unificação esta que se afirma como subsunção

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(Aufhebung). A filosofia de Marx marcará também o método pelo qual Vygotski estudará

as funções psíquicas. Neste sentido discutiremos como a questão do desenvolvimento é

antes de tudo um método para estudar o psiquismo humano. Analisaremos, então, as

diferenças entre as funções psíquicas elementares e superiores, preparando o campo para

introduzirmos o problema da aprendizagem, que é o nosso foco. Procuraremos demonstrar

que é em função da forma singular de colocação do problema do desenvolvimento, que a

questão da aprendizagem pode surgir. Neste sentido o que está em questão é uma unidade

dialética aprendizagem-desenvolvimento. Assim, analisaremos a aprendizagem em três

pontos que não obedecem a uma ordem histórica. O que estará nos interessando não é um

possível progresso do pensamento vygotskiano, mas, buscar através destes três pontos

contribuições para o entendimento da aprendizagem para além da solução de problemas e

da adaptação a um mundo prévio. Primeiro nos centraremos, com base no exemplo do gesto

indicativo (VYGOTSKI, 1931/2000), na idéia de uma aprendizagem que se faz pelas

mediações. Aqui destacaremos não apenas o mecanismo circular histórico-dialético, mas

também os principais conceitos, como é o caso dos de mediação, “choques” e

internalização. No segundo momento nos centraremos nas contribuições para a

aprendizagem pensada a partir da Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP)

(VYGOTSKI, 1934/2001). Aqui a dimensão processual da aprendizagem será destacada. O

terceiro momento será a ocasião de discussão da aprendizagem pensada a partir da idéia de

vias colaterais (VYGOTSKI, 1927/1997b). Neste momento trabalharemos com os textos

relativos à defectologia, mais especificamente acerca da teoria da compensação. Enfim,

encerraremos o capítulo analisando como também na teoria histórico-cultural a articulação

entre política e fazer científico é fundamental para a compreensão de seu alcance teórico.

O terceiro capítulo será dedicado à construção das ressonâncias entre a abordagem

enativa de Varela e a teoria histórico-cultural de Vygotski. É importante esclarecer que

cada uma delas está inserida em um contexto específico, o que implica modos singulares de

colocar as questões, bem como de resolvê-las. Neste sentido, encontrar ressonâncias não

significa encontrar o igual, apagando as diferenças entre uma e outra concepção, mas

verificar a existência de tendências que indicam um mesmo sentido ou direção. Não

podemos ignorar que Vygotski era um pesquisador do início do século XX. Embora seu

principal problema de investigação fosse saber e explicar como se desenvolve o psiquismo

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humano (PUZIREI, 2000), sua teoria é anterior à revolução cognitiva (GARDNER, 1996),

sendo portanto, anterior tanto ao movimento cibernético quanto às ciências cognitivas. O

campo com o qual Vygotski dialoga é a psicologia. Do mesmo modo, não podemos

esquecer que Varela era um pesquisador do final do século XX e início do XXI. Sua teoria

situa-se, portanto, num momento quando a ciência vive a ruptura de antigos paradigmas,

abrindo novas possibilidades para o fazer científico. Seu campo de interlocução é o das

ciências cognitivas. Buscaremos compor as ressonâncias sem desconsiderar as

particularidades de cada uma das abordagens. Desta forma, nos centraremos no material

discutido nos capítulos anteriores a fim de examinar em que medida estas abordagens se

aproximam e se afastam, tendo como eixo a questão da construção da cognição e, por

conseguinte da aprendizagem.

A conclusão da dissertação será o momento de realização de um balanço de tudo o

que foi examinado. Analisaremos não apenas aquilo que ficou para nós como sendo as

principais contribuições de cada abordagem ao tema da aprendizagem, mas também o que a

articulação entre Varela e Vygotski nos traz de novidade. Sobre isso nos referimos à aposta

na fecundidade do mecanismo circular para as discussões sobre a aprendizagem. Tal

mecanismo implica a inclusão da política nos estudos de aprendizagem e, possibilita uma

aproximação entre a aprendizagem e a idéia de produção de subjetividades e de mundos.

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A ABORDAGEM ENATIVA E O PROBLEMA DA APRENDIZAGEM

Este capítulo é dedicado ao exame de como a construção da cognição na abordagem

enativa pode fornecer indicações para uma concepção de aprendizagem distinta das

concepções tradicionais. Estamos particularmente interessados em seu mecanismo. Embora

não exista nesta abordagem uma teoria pronta da aprendizagem, a referência ao “aprender”

comparece nos três momentos da obra de F.Varela: o da autopoiese, o da enação e o da

pragmática da experiência. Dessa forma, seguindo a indicação metodológica de Y.Clot

(1999) parece possível pensar com

Varela um processo de aprendizagem. Procuraremos,

então, examinar as contribuições desse autor para o problema da aprendizagem.

O termo autopoiese vem do grego e significa auto-produção. Humberto Maturana e

Francisco Varela lançam mão dessa noção, na década de 1970, para definir aquilo que

julgam ser a especificidade do vivo, ou seja sua capacidade de se auto-produzir

(MATURANA e VARELA, 1997; 1995). A partir do movimento cognitivista, a teoria da

informação constituiu-se em modelo para o entendimento não apenas da cognição, como

também do vivo e do humano. Desse modo, cognição, vivo e homem, passaram a ser

entendidos e explicados a partir de mecanismos de processamento de informação, ou seja

como máquinas de entradas e saídas (inputs – outputs). Insatisfeito com esta extrapolação e

acreditando que a teoria da informação estava longe de poder dar conta da complexidade do

vivo e de sua cognição, Varela, junto com Maturana criaram a teoria da autopoiese.

Portanto, são as discussões sobre a especificidade do biológico em relação às máquinas que

permeiam a construção desta teoria. A autopoiese é, portanto, um conceito criado no

contexto de uma biologia do conhecimento que se afirma como crítica à teoria da

informação.

A autonomia constitui-se como um conceito de transição entre o momento da

autopoiese, onde Varela está trabalhando com Maturana e, o da enação, quando passa a

trabalhar sozinho. É importante marcar que nesta passagem, Varela vai aos poucos

deslocando seu interesse dos vivos em geral, para o humano. A autonomia, portanto,

representa também a passagem onde, gradualmente, a questão do humano ganha

importância. O conceito de autonomia diz respeito à capacidade de todo o ser vivo de criar

para si suas próprias regras (VARELA, 1989). Varela distingue, então, os sistemas

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autônomos dos heterônomos, que têm suas regras dadas pelo exterior. O exemplo

paradigmático de sistemas heterônomos seriam as máquinas de entradas e saídas. Como

exemplo podemos citar os programas dos computadores que são inseridos pelos

programadores, e que vão determinar o modo de funcionamento dos mesmos.

A noção de enação constitui um neologismo inspirado no termo inglês enact que

significa trazer à mão ou fazer emergir (MATURANA e VARELA, 1997)5. A teoria da

enação é desenvolvida por F.Varela na continuidade de seus trabalhos, no final da década

de 1980, quando passa a trabalhar separado de H.Maturana. Embora reconheça os avanços

no campo científico possibilitados pelo conceito de autopoiese, em função de sua crítica ao

modelo da representação, Varela ainda a considerava uma alternativa fraca (COSTA,

1993). Para ele era preciso enfatizar mais o aspecto do co-engendramento organismo-meio,

bem como o aspecto da corporificação do conhecimento. Destaca então a idéia de que o

conhecer é em princípio uma ação, onde as formas ou os pólos são apenas efeitos. Neste

sentido, o conhecimento não é representação, mas invenção recíproca e simultânea de si e

do mundo.

A autopoiese poderia acabar conduzindo, segundo Varela, a uma leitura “solipsista”

por não enfatizar suficientemente a natureza circular, co-engendrada do fenômeno da vida e

do conhecer. A postura solipsista ou idealista encontra-se no extremo oposto à postura

objetivista ou representacional e toda vez que evitamos o extremo representacional, o

solipsismo aparece como risco (MATURANA e VARELA, 1995, p.259). O ponto de vista

enativo constitui-se, portanto, para além tanto da postura solipsista ou idealista, quanto da

postura objetivista ou representacional. O não fundamento é a base da enação. Assim, a

enação abarca as questões colocadas pela autopoiese, inclusive seu mecanismo, porém

destaca com maior ênfase a questão da autonomia, ressaltando o não fundamento e frisando

noções como co-engendramento, circularidade e criação simultânea do organismo e do

meio, ou do si e do mundo. Adotar o ponto de vista enativo implica assumir o risco de

pensar sem fundamentos internos ou externos, deixando de lado toda comodidade do

modelo da representação. Neste contexto a idéia da emergência de coerência e de sentido a

5 Em alguns textos esse termo aparece traduzido pela palavra atuação (Varela, Thompson e Rosch, 2003). Atuação como aquilo que é trazido à cena pela ação. Contudo, optamos por utilizar o neologismo enação, uma vez que a palavra atuação em português pode ser confundida com representação, e é justamente contra a representação que a enação se afirma.

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partir de fluxos dispersos ganha importância. Voltaremos à esta questão ao longo do

trabalho, na medida em que a noção de emergência nos auxilia na compreensão da

abordagem enativa.

A pragmática da experiência refere-se ao último momento da obra de Varela, onde

este irá dirigir sua investigação para o estudo da consciência. Ressaltamos que este

momento deve ser compreendido no contexto de seu percurso. Portanto, é após a crítica à

representação, que Varela vai estudar a consciência. Neste sentido é a dimensão pré-

reflexiva da consciência, mais do que a reflexiva, que atrai seu interesse. O que está em

questão nestes últimos trabalhos é a busca por uma metodologia que dê conta da

especificidade do estudo da experiência. Neste sentido, Varela, Depraz e Vermersch (2002)

lançam mão da idéia de um aprendizado que se faz no caminho (“leaning on the go” ou

“learning on the job”). A metodologia para o estudo da experiência só pode ser encontrada

no próprio estudo da experiência. Desse modo, afirmam que o objetivo da abordagem

pragmática da experiência é descrever uma atividade ou uma práxis, e não criar uma nova

teoria sobre a experiência (Ibidem, p.1-2).

Chamamos atenção para a inflexão produzida no trabalho do autor chileno. No

trajeto que vai da autopoiese à pragmática da experiência não há mudança na forma de

colocação dos problemas que continuam tendo por base as idéias de circularidade que

define a autonomia, bem como de transformação sem direção pré-definida. Contudo há

nestes últimos trabalhos uma aproximação com a fenomenologia e com a filosofia budista

e, o que é mais interessante, o deslocamento de interesse pelo vivo em geral para o domínio

do humano.

1.1 – Abordagem enativa: a terceira via no campo das ciências cognitivas

O campo das ciências cognitivas tem sua origem a partir do movimento cibernético

nos anos de 1940 (DUPUY, 1996), A máquina de Turing, e o computador, representaram

importantes passos na construção desse campo. De acordo com Varela as ciências

cognitivas produziram uma mudança no campo dos estudos da cognição ao construírem

seus conhecimentos de forma atrelada a uma tecnologia. Cito: “O conhecimento se tornou

tangível e inextrincavelmente ligado a uma tecnologia que transforma as próprias práticas

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sociais que possibilitam aquele verdadeiro conhecimento” (VARELA, THOMPSON e

ROSCH, 2003, p.23)

De acordo com Gardner (1996) e Varela (s.d) isto que chamamos de campo das

ciências cognitivas afirma-se como um híbrido composto por várias disciplinas que vão

desde a engenharia, passando pela economia, psicologia, até a filosofia. Cada disciplina

possui seus próprios interesses, e é de acordo com eles que conduz seus estudos e

pesquisas, construindo dessa forma esse campo heterogêneo. Em função disso, em um

determinado momento, tornou-se possível delinear um quadro das principais orientações

das ciências cognitivas. Varela (Ibidem) aponta a existência de três abordagens que não se

excluem. São elas: o cognitivismo computacional, o conexionismo e a enação.

Para o cognitivismo computacional a cognição é concebida como uma computação

simbólica por regras lógicas, que se realiza de maneira invariante. Neste sentido, conhecer

diz respeito à capacidade que um agente tem de processar informações que vêm do meio

(inputs) e de emitir respostas (outputs) adequadas. O processamento é sempre o mesmo.

Varela explica: “A intuição central por detrás do cognitivismo é que a inteligência –

incluindo a inteligência humana – assemelha-se à computação em suas características

essenciais de que a cognição pode ser efetivamente definida como computações de

representações simbólicas” (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2003, p.55). É

interessante notar como o paradigma cognitivista foi ganhando espaço no campo científico,

passando a fornecer o entendimento do funcionamento cerebral e da cognição humana.

Varela afirma: “A idéia geral de que o cérebro é um dispositivo de tratamento de

informação reagindo de modo seletivo perante os aspectos discriminativos do ambiente

persiste no mundo das neurociências modernas e na idéia que delas tem o público”

(VARELA, s.d, p.41).

A aprendizagem não aparece como questão para o cognitivismo. Todo o

funcionamento cognitivo é atualização de regras previamente dadas. No entanto, em função

de sua hegemonia nos anos de 1960 e 1970, o modelo cognitivista passou a ser adotado

como modelo para o entendimento do funcionamento cognitivo em muitos campos, como

por exemplo, no campo da Educação. Desse modo, a pedagogia passou a entender a

aprendizagem como internalização de representações - a partir dos inputs – que permitem o

sujeito agir adequadamente. Neste sentido, a aprendizagem tomada a partir do modelo

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cognitivista, não implica alteração no modo de conhecer, apenas garante acumulação de

informações a respeito do mundo. Aprender nada mais é do que representar adequadamente

o mundo através de regras fornecidas por ele.

O conexionismo surge, segundo Varela como uma crítica à concepção cognitivista.

Os primórdios do conexionismo são encontrados nos primeiros anos do movimento

cibernético, nas discussões sobre o feedback e a auto-organização (DUPUY, 1996).

Segundo esta abordagem, não é o computador que fornece o modelo para pensar os

processos cognitivos e o cérebro, mas o cérebro é quem fornece o modelo tanto para pensar

a cognição, quanto para pensar as computações mais complexas. Segundo Varela:

As arquiteturas cognitivas tinham-se distanciado demasiado das raízes biológicas, não porque se deva reduzir o cognitivo ao biológico, mas porque a tarefa mais banal cumprida pelo menor dos insetos, será sempre efetuada mais rapidamente do que por intermédio da estratégia computacional proposta pela ortodoxia cognitivista (Varela s.d, p.45-46)

Neste sentido o conhecimento afirma-se como emergência. O conceito de

emergência, colocado inicialmente pelos conexionistas, opõe-se à idéia defendida pelos

cognitivistas de que a cognição caracteriza-se como um processamento simbólico por

regras lógicas. A emergência afirma-se, então, contra duas idéias que são pilares da

concepção cognitivista: a de que o tratamento da informação é baseado na aplicação

seqüencial de regras lógicas, e a de que a cognição constitui-se como um tratamento

simbólico (Ibidem, p.45). A concepção emergencista, ao contrário, aponta para um

funcionamento não simbólico e distribuído da cognição. A emergência diz respeito a isto

que surge sem uma causa específica – trata-se de fluxos dispersos – e que assume em

determinado momento uma coerência, aparecendo como uma forma distinta. Trata-se agora

de elementos a-significantes, não-inteligentes, que ao se ligarem de uma determinada forma

tornam possíveis a emergência de um certo comportamento cognitivo (Ibidem, p.49). Essas

ligações não são pré-definidas, mas se constituem através de aprendizagem. Portanto é com

o conexionismo que a questão da aprendizagem aparece como problema no campo das

ciências cognitivas. Para os conexionistas a aprendizagem é fundamental na explicação do

funcionamento da cognição.

É importante, contudo, destacar que algumas correntes dentro do conexionimo, as

mais ortodoxas, em geral trabalham com a idéia de um atrator que teria como função

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otimizar ou direcionar as configurações que surgem a partir do funcionamento distribuído.

Tal idéia decorre da manutenção do paradigma representacional pelos conexionistas. Note-

se que a idéia de atrator mina a força e o alcance que a noção de emergência poderia

assumir. Vincular a idéia de atrator à noção de emergência impede de enxergar neste

processo a produção de novidade como surpresa.

Voltando a questão da aprendizagem tal como concebida pelos conexionistas, eles

referem-se às regras de aprendizagem, por exemplo citamos a regra de Hebb que afirma:

“Se dois neurônios tentarem ativar-se em simultâneo, a sua união é reforçada, se assim não

for, é diminuída” (Ibidem, p.46), ou ainda, conexões já estabelecidas tendem a repetir-se.

Note-se que a aprendizagem não é explicada por regras e representações que orientariam os

comportamentos. As regras garantem que, a cada momento, e em função da situação, uma

certa configuração apareça e um certo comportamento torne-se possível. A configuração

das conexões está intimamente relacionada à história do ser em questão. Portanto, para os

conexionistas o conhecimento não pode ser pensado fora de uma história de aprendizagem.

O conhecimento não é um processar invariante e abstrato, mas apresenta-se momento a

momento, a partir das conexões que são estabelecidas pela aprendizagem.

O modelo paradigmático para pensar a aprendizagem na abordagem conexionista é

o bebê que faz surgir um mundo coerente a partir de fluxos dispersos. Nas palavras de

Varela: “Ficou claro que a forma de inteligência mais profunda e fundamental é a de um

bebê, que adquire a linguagem a partir de emissões vocais diárias e dispersas e delineia

objetos significativos a partir de um mundo não especificado previamente” (VARELA,

2003, p.73). Assim, os conexionistas iniciaram um trabalho de reaproximação entre as

discussões sobre a cognição e as raízes biológicas da vida, que foi continuado e

aprofundado pelos pesquisadores da abordagem enativa.

Embora Varela veja no conexionismo um significativo avanço em relação ao

cognitivismo, tendo inclusive mantido a noção de emergência em seu referencial teórico,

ele considera necessário dar um passo adiante, a fim de recuperar a investigação do sentido

comum da cognição. A crítica de Varela em relação aos conexionistas refere-se a

manutenção da linguagem do modelo da representação. Ainda que os conexionistas

refiram-se a uma representação ativa, ou seja uma representação que envolve a

aprendizagem, eles ficam restritos a idéia de um mundo exterior pré-determinado. Assim,

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aprender seria resolver problemas colocados pelo mundo (VARELA, s.d). Varela (Ibidem)

e Dupuy (1998) criticam o conexionismo por não ter conseguido ver o alcance

epistemológico de suas pesquisas. É neste contexto que o autor chileno formula a

abordagem enativa que se estabelece como a terceira via para os estudos da cognição, a

partir da crítica ao modelo da representação.

Varela, a partir da abordagem enativa, procura recuperar o sentido comum da

cognição, fazendo ver que o próprio da cognição não é representar um mundo dado, mas

fazer emergir um mundo a partir da colocação de problemas momento a momento. Vale

citar:

Nossa atividade cognitiva cotidiana revela que esta imagem é demasiada incompleta. A faculdade mais importante de qualquer cognição viva é precisamente, em larga mediada colocar as questões pertinentes que surgem a cada momento da nossa vida. Estas não são pré-definidas, mas en-agidas, nós fazêmo-la emergir sobre um pano de fundo, sendo os critérios de pertinência ditados pelo nosso senso comum, sempre de maneira contextual (VARELA, s.d, p.72-73).

A abordagem enativa apresenta-se como alternativa, e não como uma síntese desse

campo, ou como uma forma superior de entendimento. Embora ela se afirme para além do

cognitivismo e do conexionismo em função da crítica à representação, Varela não rompe

totalmente com o conexionismo, compondo com muitos de seus exemplos e conceitos

como é o caso da emergência. Neste sentido ele concorda com os conexionistas em tomar o

modelo do bebê como exemplo paradigmático para pensar a cognição e, como veremos, a

aprendizagem (Ibidem; VARELA, 2003). Sobre a emergência, é importante observar que

Varela, ao trabalhar este conceito na abordagem enativa, ressalta que é preciso desvinculá-

lo da idéia de um atrator responsável pela otimização das formas que emergem. A

abordagem enativa trabalha, portanto, com uma concepção de emergência independente de

preocupações com finalidade ou otimização. Citamos:

O meu argumento é que as propriedades cognitivas emergem dos sistemas vivos independentemente de tais preocupações de otimização. Elas procedem do historial de compensações viáveis que cria regularidades, mas não é evidente que elas possam estar associadas a um único referente (VARELA, s.d).

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1.2 – Circularidade: uma exigência epistemológica

A questão da circularidade acompanha toda a obra de Varela. Desde os trabalhos em

conjunto com Maturana, onde eles desenvolvem a teoria da autopoiese, passando pelo

momento da autonomia, da enação, indo até os trabalhos relativos à pragmática da

experiência. Trata-se de uma exigência epistemológica, em função da necessidade de

pensar a cognição para além dos extremos subjetivista e objetivista, ou seja, para além do

paradigma representacional. Neste sentido, a noção de co-engendramento, que já está

presente na autopoiese, torna-se chave para esta abordagem.

Assim, a circularidade aparece na abordagem enativa em função de uma certa forma

de colocar o problema da cognição que recusa a representação e que tem por base a

fenomenologia de M. Ponty e a filosofia budista. A intuição fundamental é que todo estudo

da cognição só pode ser realizado a partir da própria cognição. Assim, ciência e experiência

estabelecem entre si uma relação paradoxal, que para Varela está encarnada na idéia de

circularidade. Sobre isso adverte:

Não podemos evitar, por uma questão de consistência, a implicação lógica de que sob esse mesmo ponto de vista quaisquer dessas descrições científicas, de fenômenos tanto biológicos quanto mentais, devem por sua vez ser um produto da estrutura do nosso próprio sistema cognitivo (VARELA, THOMSON e ROSCH, 2003, p.27).

A circularidade opõe-se tanto ao ponto de vista do observador ou posição objetivista

(Ibidem, MATURANA e VARELA, 1995), quanto a posição subjetivista. O ponto de vista

do observador diz respeito à forma como tradicionalmente o cientista coloca-se diante dos

fenômenos a serem estudados. Refere-se a uma atitude desincorporada ou abstrata e

pressupõe uma realidade objetiva à qual se poderia ter acesso através de metodologias em

terceira pessoa. Cito:

Quando nos voltamos para nós mesmos para fazer de nossa própria cognição nosso tema científico, que é precisamente o que a nova ciência da cognição parece fazer, nenhuma dessas posições – a que supõe um observador desincorporado ou a que supõe uma mente desterrada (dis-worlded) – é adequada (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2003, p.22).

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Por outro lado, a circularidade nos impede de pensar uma posição subjetivista na

medida em que não se trata de partir de um “Eu” já constituido. Justamente a circularidade

chama a atenção para o engendramento do si e do mundo a partir da ação.

Outra questão importante que aparece quando nos propomos a estudar a cognição e

que exige a utilização da lógica circular é o encontro entre as ciências naturais e humanas.

A cognição só pode ser devidamente entendida se levarmos em conta as conseqüências

desse tipo de encontro – biológico e social -, que está na base da nossa constituição.

Segundo Varela:

Quando é a cognição ou a mente que estão sendo examinadas, a recusa da experiência torna-se insustentável, até mesmo paradoxal. A tensão vem à tona, especialmente nas ciências cognitivas, pelo fato de estarem no cruzamento das ciências naturais e ciências humanas. Conseqüentemente, as ciências cognitivas são como Janus, pois olham ambas as vias simultaneamente: uma de suas faces está voltada para a natureza e vê os processos cognitivos como comportamento. A outra está voltada para o mundo humano (ou para aquilo que os fenomenologistas chamam de ‘mundo da vida’) e vê a cognição como experiência (Ibidem, p.30).

Assim percebemos que a idéia de círculos criadores ou de uma circularidade

fundamental marca não só as explicações dos fenômenos estudados, mas a própria estrutura

da teoria. A circularidade é “uma necessidade epistemológica”

(Ibidem, p.27) para a

concepção enativa.

Note-se que a circularidade que está em questão é uma circularidade criadora, uma

circularidade que, ao se fazer, abre-se para a diferenciação. Nas palavras de Varela:

“...círculos viciosos; eles são considerados como aquilo que deve ser evitado. Eu sugiro, ao

contrário, que estes círculos caminham em direção à criação. Em sua aparente estranheza

são a chave para a compreensão dos sistemas naturais e dos fenômenos cognitivos”

(VARELA, 1989, p.19). Sua forma paradigmática encarna-se na produção autônoma do

vivo, ou, em outros termos, em sua autopoiese. A autopoiese, é uma organização dinâmica

que, ao se realizar através da clausura operacional, garante a emergência do vivo e de um

meio correlato. Mas a dinâmica não é primeira em relação ao vivo ou ao seu meio. Trata-se

de uma lógica paradoxal onde não há hierarquia, mas concomitância (Ibidem; DUPUY e

VARELA, 1995).

É em seu caminho em busca pelo começo da cognição que Varela postula a

circularidade. Não existe um lugar em que se possa ancorar a cognição, ela não vem do

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mundo, mas também não é propriedade de um sujeito. Neste sentido a circularidade aparece

como uma solução possível para pensar o processo cognitivo e, por conseguinte, a

aprendizagem de forma não dicotômica. Não se trata nem de objetivismo e nem de

subjetivismo, nem de um processo natural e nem social mas de um processo circular. De

acordo com Varela, a dialética encarnaria um outro tipo de solução possível para esse

problema:

Hegel com Descartes em mente percebeu o mesmo tipo de aporia na descrição do impasse que todos os filósofos subjetivos enfrentavam na descrição do início (origem). Para lidar com esta dificuldade Hegel inventou a dialética a qual podemos nomear ‘lógica especulativa de aprendizagem no caminho’. No nosso caso levando a fundo o slogan husserliano do ‘eterno iniciante’ é uma questão de nada menos que uma lógica empírico-transcendental de aprendizado no caminho (VARELA, DEPRAZ e VERMERSCH, 2002, p.22-23).

É interessante perceber que aqui a idéia de origem afirma-se como emergência, e

não como gênese. Voltaremos a essa questão no capítulo onde trabalharemos as

ressonâncias entre a abordagem enativa e a psicologia histórico-cultural. Por hora

ressaltamos apenas que embora a abordagem enativa se pergunte sobre o começo da

cognição, ela não se caracteriza como uma teoria do desenvolvimento. Se quisermos fazer a

classificação da abordagem enativa deverá ser como uma teoria emergencista da cognição

(Ibidem, p.156).

1.3 - Aprendizagem na Abordagem Enativa

Ao construírem a teoria da autopoiese sobre o axioma ser = fazer = conhecer

(MATURANA e VARELA, 1995), Maturana e Varela ampliam a noção de cognição,

obrigando-nos a repensar o problema da aprendizagem. Se o ato cognoscente não é algo

que se faz sobre as bases seguras de um ser já pré-suposto, ou de um mundo dado, mas sim

algo que se confunde com a própria criação do ser e do mundo, então o que é o aprender?

E qual é o seu estatuto no domínio do viver?

De acordo com Eirado e Passos (2004) o modo como Varela concebe a cognição

ultrapassa a questão cognitiva, nos colocando diante do problema da existência, ou em

outros termos, nos colocando diante do problema da produção da subjetividade. Na

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abordagem enativa não há dissociação entre cognição, ser e mundo. Esses três elementos

nascem juntos, em um mesmo movimento. Nas palavras de Maturana e Varela:

Na base de tudo o que diremos está essa constante consciência de que o fenômeno do conhecer não pode ser equiparado à existência de ‘fatos’ ou objetos lá fora, que podemos captar e armazenar na cabeça. A experiência de qualquer coisa ‘lá fora’ é válida de modo especial pela estrutura humana, que torna possível ‘a coisa’ que surge na descrição (MATURANA e VARELA, 1995, p.68).

Assim, pensar a aprendizagem a partir da obra de Varela pressupõe, por um lado,

considerá-la não apenas como uma capacidade do sujeito de representar algo que está dado

no mundo, e por outro, implica um afastamento entre a idéia de aprendizagem e a de

adaptação. Conforme explicitado na citação anterior, não se pode considerar o

conhecimento como captação e armazenamento de fatos que estão dados lá fora. O

conhecimento implica o ser em questão, com sua história - tanto biológica quanto cultural –

que por sua vez vincula-se a existência de um mundo de sentido6. Assim, o aprender se faz

sobre os limites do si e do seu mundo, tornando possível o surgimento ou, em outros

termos, a invenção de outros si e mundo. Note-se que a invenção ou a criação de novos

sujeitos e mundos se faz sobre a base de uma história. Maturana e Varela afirmam: “A

criação é sempre uma nova etapa, mas construída com materiais ‘velhos’” (Ibidem, p.26).

Por outro lado, no que diz respeito à adaptação, é preciso notar que este conceito ganha na

obra do autor chileno um sentido singular. A adaptação é pensada para além da otimização

de formas (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2003). A abordagem enativa não trabalha

com a idéia de um mundo pré-dado ao qual o organismo deveria ajustar-se. Dessa forma, a

adaptação é pensada muito mais como composição ou sintonia do que como adequação ou

ajustamento (SANCOVSCHI, 2003). Portanto, a idéia de um aprendizado que possibilita a

adaptação torna-se sem sentido. Para a abordagem enativa não aprendemos para nos

adaptarmos a um mundo pré-estabelecido, mas aprendemos e neste processo

experimentamos a adaptação.

6 A idéia de mundo de sentido é trabalhada por Varela através das noções de domínio de comportamento e de domínio cognitivo (Maturana e Varela, 1995, p.161-162). Nas palavras de Maturana e Varela: “Nós, seres de carne e osso, não somos alheios ao mundo em que vivemos e a que demos à luz com nosso existir cotidiano” (Ibidem, p.162).

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É interessante observar que em função da forma singular de colocar o problema da

cognição, a questão da aprendizagem ganha outros contornos, desvinculando-se da idéia de

representação e de adaptação, e aproximando-se da noção de produção de sentido, ou seja

da produção de si e de um mundo correspondente.

Vejamos como através de alguns dos trabalhos de Varela a aprendizagem pode ser

pensada. Voltamos a lembrar que o que está nos interessando aqui é a contribuição deste

autor para pensarmos uma noção de aprendizagem mais ampla, ou seja que não se limite a

idéia de solução de problemas dados, mas que aponte para um movimento de transformação

da cognição. Escolhemos três momentos da obra de Varela para trabalhar a questão da

aprendizagem: o da autopoiese, o da enação e o da pragmática da experiência. Esta

periodização toma como referência respectivamente, três livros: A árvore do conhecimento

(MATURANA e VARELA, 1995), A mente incorporada (VARELA, THOMPSON e

ROSCH, 2003) e On becoming aware (VARELA, DEPRAZ e VERMERSCH, 2002).

Ao acompanhar esse percurso percebemos que as questões vão ganhando nuances e

refinamento. Cada livro, nos coloca diante de novos problemas e de novos desafios. Ao

final deste percurso, procuraremos ter elementos para apontar a contribuição da abordagem

enativa para a redefinição da noção de aprendizagem. Ressaltamos que neste trajeto

buscaremos subsídios para a análise de possíveis ressonâncias entre a abordagem enativa e

a teoria histórico-cultural.

1.3.1 – Sobre o mecanismo autopoiético da cognição: circularidade e co-engendramento

Uma primeira formulação da aprendizagem pode ser pensada a partir do

desenvolvimento da noção de autopoiese. Nesta ocasião Varela propõe pensar o viver como

um processo de auto-produção que se faz sobre os limites do que se é. Esta só é realizada

no encontro com o mundo e com outros seres vivos, portanto, a autopoiese não pressupõe

isolamento, mas sim contato com um coletivo.

Note-se que o mundo ao qual Varela se refere é diferente do meio behaviorista. Para

o behaviorismo o mundo é dado como realidade independente dos organismos. O mundo

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behaviorista7 é composto por objetos que emitem estímulos. A partir dos estímulos, os

organismos reagem. Caso reajam em conformidade com os estímulos dizemos que os

organismos estão adaptados. Cada estímulo pressupõe certas reações. Trata-se portanto, de

um modelo linear determinista. Para Varela, ao contrário, o mundo só pode ser definido de

modo co-engendrado com os organismos vivos. O mundo não estimula, mas perturba. A

perturbação não orienta, mas desestabiliza. Neste sentido, os efeitos da perturbação não

podem ser previstos. Estas idéias serão esclarecidas ao longo do capítulo.

Maturana afirma que é a aprendizagem o que está em jogo neste movimento de

auto-produção, uma aprendizagem que se confunde com o próprio viver: “Digo que existe

aprendizagem quando a conduta de um organismo varia durante sua ontogenia de maneira

congruente com as variações do meio, e o faz seguindo um curso contingente a suas

interações nele” (MATURANA, 1998, p.31). E continua:

Explicar o fenômeno da aprendizagem vai consistir, em princípio, em mostrar como, do operar do organismo e seu sistema nervoso como sistemas determinados estruturalmente surge o que o observador vê como uma mudança condutal do organismo com as mudanças do meio e contingente em sua interação com ele (Ibidem, p.34).

Assim, propomos pensar o mecanismo circular, como havia proposto a teoria da

autopoiese como um mecanismo de aprendizagem. Neste ponto nos interessa chamar a

atenção para o mecanismo e para a circularidade inerente ao processo.

Para Maturana e Varela (1995) todos os seres vivos são sistemas autopoiéticos, ou

seja, são seres que se organizam de modo a se auto-produzirem. No entanto, existem níveis

de complexidade no mundo vivo. Embora todos os seres vivos sejam sistemas

autopoiéticos, isto é possuem um mesmo mecanismo que os define, existem diferenças de

complexidade que não podem ser ignoradas. Tanto a célula quanto o homem estão

submetidos a uma mesma organização, a um mesmo mecanismo, no entanto a estrutura

humana permite ao homem experimentar situações impensáveis para a célula. Desse modo

Maturana e Varela se referem à existência de sistemas autopoiéticos de primeira, segunda e

talvez até de terceira ordem (Ibidem, p.124; 206). Os de primeira ordem são as células. Os

7 Aqui não estamos trabalhando com o behaviorismo de Skinner. O behaviorismo skinneriano, embora não questione a idéia de mundo dado, introduz a questão do reforço, complexificando um pouco mais o modelo linear estímulo-resposta (S-R).

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de segunda ordem são os organismos multicelulares, uma vez que são compostos por uma

reunião de células. Neste nível encontram-se os animais e os homens. Os sistemas

autopoiéticos de segunda ordem formam como um todo uma unidade autopoiética, no

entanto, eles são compostos por várias unidades autopoiéticas menores, as células. Os

sistemas de terceira ordem seriam os sistemas sociais, na medida em que são compostos por

uma reunião de seres multicelulares. Neste sentido os sistemas de terceira ordem podem

apresentar-se como uma unidade autopoiética, que por sua vez é composta por unidades

menores, os sistemas de segunda ordem e estes, são compostos por unidades menores, os

sistemas de primeira ordem.

Ao pensar o homem como um sistema autopoiético formado por vários outros

sistemas autopoiéticos (células) e formador de um sistema autopoiético mais abrangente (a

sociedade), Maturana e Varela avançam sobre os limites que definem indivíduo e

sociedade. O indivíduo, seja ele uma célula, um homem ou um sistema social emergem de

uma rede de processos. Portanto, a cognição é pensada não a partir do indivíduo

constituído, mas implica a consideração de sua constituição ou emergência, a partir de uma

rede processual. Melo (2004) propõe a noção de coletivo como forma de superação desta

dicotomia. Célula, homem e sociedade, tratam-se de diferentes coletivos, possibilitados por

diferentes processos. Neste sentido há um coletivo além e aquém do homem que

possibilitam sua existência. Note-se que o social é uma forma de pensar o coletivo.

Passemos agora ao mecanismo autopoiético, entendendo-o como um mecanismo de

aprendizagem. A célula é a menor unidade autopoiética, sendo tomada como exemplo

paradigmático do mecanismo autopoiético (MATURANA e VARELA, 1995). Em função

dos objetivos deste trabalho que não se restringem à questão da aprendizagem, mas que está

buscando também ressonâncias entre a abordagem enativa e a teoria histórico-cultural, será

importante considerarmos as conseqüências trazidas pelo sistema nervoso e pela linguagem

ao mecanismo. Se Varela concebe a presença da cognição em todos os seres vivos,

Vygotski considera que os processos cognitivos são especificamente humanos, na medida

em que são constituídos pelas mediações semióticas, em especial pela linguagem. É

importante observar que para Maturana e Varela (Ibidem), embora o mecanismo básico seja

o mesmo, ou seja trata-se de autopoiese, a entrada em cena do sistema nervoso e da

linguagem complexificam o sistema mínimo, abrindo novas possibilidades para o fazer, o

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conhecer e o existir do organismo, e é isso que precisaremos analisar. Qual o papel do

sistema nervoso para estes autores, e qual o estatuto da linguagem?

Note-se que não apenas o sistema nervoso e a linguagem imprimem suas marcas ao

mecanismo autopoiético. Na passagem da célula (organismo unicelular) para os organismos

multicelulares dotados de mobilidade, o mecanismo autopoiético passa a ser marcado pela

questão da ação. Na célula o que está em questão não é a ação, mas sim os processos físico-

químicos. Assim, embora seja sempre o mesmo mecanismo, é importante ressaltar que ele

sofre inflexões em função de sua encarnação em diferentes estruturas.

O mecanismo: O primeiro conceito importante para entender o mecanismo autopoiético é o da

clausura operacional. A clausura responde pela invenção dos limites que constituem o vivo

e seu mundo. A partir de uma rede de transformações dinâmicas que ocorrem na “sopa

molecular” de processos físico-químicos torna-se possível a emergência de uma membrana.

Esta cria de forma simultânea o sistema cognitivo e seu mundo (VARELA, 1988). Não

existe mundo sem referência a um sistema, uma vez que eles são constituídos num mesmo

movimento e num mesmo tempo.

Esse mecanismo de emergência de limites, conhecido como clausura operacional

(Ibidem, VARELA, 1989; MATURANA e VARELA, 1995; 1997), é o protótipo da

constituição autônoma do vivo. A clausura é resultado de múltiplos fatores que juntos

possibilitam a criação de limites, definindo não só o organismo, com sua organização e

estrutura, mas seu meio. Um é limite do outro. Desse modo não é possível conceber um

meio absoluto. Antes do fechamento possibilitado pela clausura há apenas uma rede

química fluida, apenas a “sopa molecular”.

Chamo atenção para a singularidade do mecanismo circular em questão. A clausura

não é determinada por um fato especifico, mas é conseqüência de uma multiplicidade de

elementos que, em determinado momento, possibilitam sua emergência. Assim não faz

sentido pensarmos em uma gênese da clausura, trata-se de emergência. Cito:

Em uma unidade constituída por uma clausura operacional, um comportamento coerente e distinto apresenta uma natureza particular: de um lado aparece como uma operação da unidade. De outro quando tentamos examinar sua origem não encontramos nada além de uma interação infinita desta operação. Ela não começa e nem termina em parte alguma. A coerência não é localizada, mas distribuída

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através de um círculo sempre recomeçado, infinito em sua circulação, mas entretanto finito no momento em que percebemos seus efeitos ou resultados como propriedade da unidade (VARELA, 1989, p.25).

É importante esclarecer que o fechamento significa distinção e autonomia, e não

isolamento. Kastrup esclarece:

A membrana é um limite capaz de manter a unidade em condições de estabilidade relativa, mas trata-se de um limite sempre possível de redefinição e ultrapassamento, já que a própria membrana é plástica e ligada ao meio por relações de osmose, o que assegura o devir permanente da unidade (KASTRUP, 1999, P.122).

De acordo com a teoria da autopoiese é fundamental que uma vez constituído o

sistema, ele esteja em constante interação com seu meio. O conceito utilizado para falar

dessas relações é o de acoplamento estrutural (VARELA, 1988). Os acoplamentos

possibilitam as variações estruturais e o estabelecimento contínuo dos limites. O isolamento

e a rigidez das formas implicariam a morte da autopoiese, portanto a morte do sistema vivo.

A autopoiese é então condição da vida.

Em função da interface com a psicologia, somos forçados a ir além de Maturana e

Varela e afirmar aqui, que em termos psicológicos a interrupção da autopoiese implicaria a

morte da dimensão viva e saudável do sujeito, mas não necessariamente acarretaria sua

morte biológica. Esta observação aponta para uma diferença importante no mecanismo

autopoiético da célula e do homem. Embora esta diferença seja importante para nós, que

queremos pensar a autopoiese no campo da psicologia, para Maturana e Varela (1995), que

são biólogos, não o é. No entanto, em seus últimos trabalhos, Varela, se verá obrigado a

enfrentar estas diferenças, na medida em que estará interessado pelo estudo da experiência

em sua dimensão humana.

É importante não perder de vista que a idéia de autopoiese ou de auto-produção não

exclui a participação do mundo, e dos outros seres vivos. Não se trata de um processo de

“ensimesmamento”, mas de um processo que pressupõe encontros com o meio e com

outros seres autopoiéticos. Estes encontros constituem-se como perturbações no

acoplamento já formado, tornando possível uma redefinição das fronteiras, fazendo

aparecer um novo si e seu mundo correspondente. Aliás, é apenas através dos encontros

com o meio que o movimento autopoiético se afirma.

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O segundo e terceiro conceitos a serem considerados são os de organização e

estrutura autopoiética. O vivo emerge desde o seu primeiro tempo acoplado com seu meio,

apresentando uma organização mínima autopoiética, que deve manter-se ao longo do

tempo, e uma estrutura variante. O que confere a identidade autopoiética ao sistema é sua

organização, é o modo como seus elementos relacionam-se, e não sua estrutura. A

organização autopoiética é o único invariante no vivo, sua manutenção é a condição para

que ele possa manter-se em variação. Caso ela seja rompida o sistema perde seu

funcionamento autônomo, desintegrando-se.

A estrutura do vivo é a base sobre a qual se farão as variações. A estrutura varia não

só de ser vivo para ser vivo, mas também ao longo da história de um mesmo organismo.

Ela varia não porque existe uma passagem de tempo que permitiria uma maturação, mas

porque o tempo permite ao ser uma história de interações (Ibidem). Afirma-se que o

organismo é determinado estruturalmente pois a sua estrutura presente é a base para as

futuras interações e variações. O vivo é a história de suas variações estruturais com a

manutenção da autopoiese.

Será interessante analisar no capítulo onde trataremos das ressonâncias entre a

abordagem enativa e a teoria histórico-cultural a aproximação entre essa idéia e a noção de

desenvolvimento de Vygotski.

O quarto conceito é o de acoplamento estrutural. O acoplamento diz respeito a

modos de interação estabelecidos entre a estrutura do organismo e a estrutura do meio, que

possibilitam que ambos entrem em variação, em deriva de forma congruente, desde que a

autopoiese do organismo seja mantida (MATURANA, 2001). Os acoplamentos não

estabelecem ligações invariantes, sendo estas sempre temporárias, relativas e locais, que

podem ser problematizadas nos encontros com o meio, incluindo aí o encontro com outros

seres autopoiéticos. A relação estabelecida no acoplamento não pode ser entendida como

adequação ou conformação do organismo ao meio e tampouco como interação entre pólos

pré-existentes cujo resultado seria a síntese dos dois, mas trata-se de interações que criam

pólos distintos. Organismo e meio nascem de um mesmo movimento que garante a eles um

acoplamento, de um em relação ao outro, desde o início. Note-se que o acoplamento

organismo-meio não pressupõe nenhuma mediação entre eles. Trata-se de uma relação

imediata, de uma fina sintonia. A partir de então, no caso da célula, o movimento da vida

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fará com que ocorram perturbações que colocarão em movimento o organismo e seu meio,

modificando tanto a estrutura do vivo quanto seus acoplamentos. Assim, o vivo, sua

cognição e sua vida são resultado da história de acoplamentos realizados, ou seja são

resultados de uma história de aprendizados. Cito: “A aprendizagem é uma expressão do

acoplamento estrutural, que sempre manterá uma compatibilidade entre o operar do

organismo e do meio” (MATURANA e VARELA, 1995, p.199). As perturbações

constituem, portanto, disfuncionalidades inerentes à funcionalidade do sistema vivo e

cognitivo. Sem elas a vida torna-se rígida e perde aquilo que a define como tal, que é sua

autopoiese.

É importante observar que pensar este mecanismo funcionando em organismos

multicelulares dotados de mobilidade exige a consideração da ação. Assim, o fazer, que no

caso da célula afirmava-se como processos físico-químicos (VARELA, 1988), assume aqui

o caráter de ação. Neste sentido, afirmamos que o meio, assim como o organismo são co-

definidos a partir da ação. Em relação à perturbação, a ação também produz uma inflexão.

A perturbação torna-se possível não apenas em função do movimento da vida, mas a ação

do organismo pode também suscitar perturbações nos acoplamentos antes realizados.

O quinto e último conceito é o de perturbação. Este é concebido como uma

alternativa à idéia de informação, cara às teorias cognitivas e em especial ao cognitivismo

computacional. Ele difere também do conceito de estímulo das teorias comportamentais.

Tanto a noção de informação quanto à de estímulo pressupõem a distinção clara entre

organismo e meio, estes considerados dados antes de qualquer relação. Em função disto, a

única relação possível entre eles será a do tipo estímulo-resposta, input-output. O meio

emite estímulos e o organismo emite respostas adequadas ao estímulo. O meio informa ao

organismo sobre suas características para que esse possa agir de modo adequado. Todo

estímulo ou informação pressupõe uma resposta. Por sua vez, a resposta já está implícita no

estímulo e na informação. Nesse sentido tanto o conceito de estímulo quanto o de

informação seguem um modelo ambientalista, determinista, marcado pela causalidade

linear, portanto previsível. A teoria da autopoiese, por sua vez, trabalha com um modelo

circular inventivo (KASTRUP, 1999).

De acordo com a teoria da autopoiese o meio não informa, ele perturba. Apesar de

falar em uma perturbação do meio, é apenas em relação ao organismo que ela pode ser

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concebida. Não existe perturbação em si, toda a perturbação precisa ser sentida como tal

pelo organismo. A perturbação não é, portanto, algo sem sentido, mas possui o mínimo de

sentido para que possa ser percebida e estranhada. Maturana e Varela (1995) formulam da

seguinte forma: a perturbação é do meio, mas determinada estruturalmente pelo organismo.

Não que a conseqüência da perturbação seja previsível, mas é apenas a partir da estrutura

do vivo que a perturbação ganhará sentido. A perturbação responde pela desestabilização

dos acoplamentos e das formas estabelecidas, colocando organismo e meio em movimento.

Em havendo perturbação duas possibilidades se colocam: é possível que se

estabeleça uma interação inovadora ou inventiva entre organismo e meio, havendo um novo

acoplamento estrutural, ocorrendo mudanças no domínio estrutural de ambos, uma vez que

eles são co-definidos; a outra alternativa é a de uma interação destrutiva. Após a

perturbação, organismo e meio entram em variação, contudo há uma destruição da

organização minimal, ou seja da autopoiese, rompendo dessa forma a manutenção da vida

(Ibidem).

Apesar da ênfase na invenção, é fundamental considerar a existência de

regularidades e recorrências no viver autopoiético / enativo. Elas são tão importantes para a

vida quanto as perturbações. Caso não existissem, nenhuma vida seria possível. As

regularidades significam a construção de uma história, Maturana e Varela afirmam:

“Dotados ou não de sistema nervoso, todos os organismos, incluindo o nosso, funcionam

como funcionam e estão onde estão a cada instante devido a seu acoplamento estrutural”

(Ibidem, p.156). Sob tal perspectiva, a aprendizagem diz respeito a uma corporificação na

estrutura do sistema autopoiético de sua história de acoplamentos. É devido à recorrência

de certos acoplamentos que o conhecimento é inscrito na estrutura do organismo. E ainda:

“Se as estruturas que tornam possível uma certa conduta entre os membros de uma espécie

se desenvolvem somente se há uma história particular de interações, diz-se que as estruturas

são ontogênicas e que as condutas são aprendidas” (Ibidem, p.198).

A vida está longe de ser um problematizar incessante, ela é feita também de muitas

regularidades. A crítica da abordagem enativa localiza-se na ênfase que as teorias

tradicionais dão às regularidades. Do ponto de vista enativo as regularidades e

estabilizações não são objetivos ou metas, mas aquisições subordinadas à invenção. A vida

que se quer viva deve permanecer aberta às perturbações apesar das regularidades. Aquilo

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que nos tornamos em função do nosso viver, ou em outros termos, em função de nossos

processos de aprendizagem, as regularidades, nossa história, não constitui um fechamento

completo. O processo de aprender deve nos possibilitar tanto a constituir uma história –

pólo de regularidades -, quanto a reinventar essa história, abrindo para ela novas

possibilidades – pólo invenção.

Isso nos remete à diferença entre os sistema autopoiéticos e os alopoiéticos

(MATURANA e VARELA, 1995), e ainda entre os sistemas autônomos e heterônomos

(VARELA, 1989). A diferença em questão em relação aos sistemas autopoiéticos e

alopoiéticos é que os primeiros, em seu processo de produção, produzem-se a si mesmos,

enquanto os segundos produzem sempre algo diferente de si. Já a distinção entre autonomia

e heteronomia diz respeito, no primeiro caso, a sistemas que em seu funcionar criam para si

suas próprias regras, e no segundo caso, têm suas regras de funcionamento determinadas

pelo exterior. Dessa forma tanto a autopoiese quanto a autonomia pressupõe a manutenção

de uma dimensão processual no engendramento de suas formas. E a alopoiese e a

heterônomia pressupõe um sistema de entradas e saídas, onde o que é produzido se dissocia

do processo de produção. O computador é o exemplo típico de um sistema alopoiético e

heterônomo.

Os computadores, uma vez constituídos, perdem sua dimensão processual. Eles não

possuem a possibilidade de se recriarem a partir das novas informações que recebem. Ao

contrário, os sistemas autopoiéticos e autônomos, como por exemplo os seres vivos e os

humanos, definem-se por produzirem sempre um produto que nunca perde a dimensão

processual (VARELA, 1989, MATURANA e VARELA, 1997, KASTRUP, 1999), estando

sempre se refazendo e se transformando. Neste sentido, afirma-se que as regularidades e as

recorrências são fundamentais para que a vida caminhe estabelecendo novos domínios de

problemas assim como os breakdowns e as perturbações.

A entrada do sistema nervoso:

Sobre o aparecimento do sistema nervoso, Maturana e Varela afirmam: “É para

esses seres vivos, cuja deriva natural levou ao estabelecimento da mobilidade, que o

sistema nervoso adquiriu importância” (MATURANA e VARELA, 1995 p.176).

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Até aqui tratamos do mecanismo autopoiético - concebendo-o como um mecanismo

de aprendizagem - em seu nível mais simples. O que acontece nos seres multicelulares

dotados de sistema nervoso? Qual o papel do sistema nervoso no processo de

aprendizagem?

A primeira consideração a ser feita é que o sistema nervoso faz parte do organismo,

desse modo, assim como os outros órgãos, participa da dinâmica que possibilita a

determinação estrutural desse organismo. Isso não significa que todos os órgãos sejam

equivalentes. Cada um imprime singularidade ao processo de determinação estrutural. O

sistema nervoso, por exemplo introduz no organismo uma maior plasticidade estrutural.

Vale a citação:

Para cada organismo sua história de interações resulta num caminho específico de mudanças estruturais. Estas, por sua vez, constituem uma história particular de transformações a partir de uma estrutura inicial, em que o sistema nervoso participa ampliando o domínio de estados possíveis (Ibidem, p.158).

Há portanto um afastamento em relação a uma visão mais comum a respeito da

participação do sistema nervoso no processo de aprendizagem. Sobre isso Maturana e

Varela afirmam:

A aprendizagem é uma expressão do acoplamento estrutural, que sempre manterá uma compatibilidade entre o operar do organismo e do meio. Quando nós, como observadores, examinamos uma seqüência de perturbações compensadas pelo sistema nervoso de uma das muitas maneiras possíveis, parece-nos que ele internalizou algo do meio. Mas como sabemos, adotar essa descrição seria perder a contabilidade lógica: seria tratar algo que é útil para nossa comunicação entre observadores como um elemento operacional do sistema nervoso. Descrever a aprendizagem como uma internalização do meio confunde as coisas, pois sugere que na dinâmica estrutural do sistema nervoso há fenômenos que existem apenas no domínio de descrições de alguns organismos capazes de linguagem, como nós (Ibidem, p.199).

Para a abordagem enativa o sistema nervoso não é condição da cognição ou da

aprendizagem, mas seu aparecimento amplia em muito as possibilidades tanto da cognição

quanto da aprendizagem na medida em que permite um acoplamento entre as superfícies

sensoriais e motoras através de uma rede de neurônios que pode apresentar inúmeras

configurações. Desse modo:

A conduta dos seres vivos não é uma invenção do sistema nervoso, e não está associada exclusivamente a ele, pois o observador observará condutas em qualquer ser vivo em seu meio. O que o sistema nervoso faz é expandir o domínio

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de possíveis condutas, ao dotar o organismo de uma estrutura tremendamente versátil e plástica (Ibidem, p.167).

Ou seja, nos seres dotados de sistema nervoso, a ligação entre o pólo sensorial - vias

aferentes - e o pólo motor - vias eferentes - não é direta, mas se faz mediante uma rede

neuronal, que no caso humano é extremamente complexa.

Aqui a palavra rede ganha uma dimensão especial, pois esta impede pensar numa

linearidade neste processo. Maturana e Varela se valem de uma metáfora para explicar a

rede neuronal:

Basta considerar essa estrutura do sistema nervoso para nos convencermos de que o efeito de projetar uma imagem sobre a retina não é como uma linha telefônica ligada a um receptor. Seria mais como uma voz (perturbação) somada a muitas vozes numa agitada tarde de transações na bolsa de valores em que cada participante ouve o que lhe interessa (Ibidem, p.191).

É importante não perder de vista que o sistema nervoso, ao mesmo tempo em que

participa da determinação estrutural do organismo, ele próprio constitui um todo “fechado”

- clausura operacional - com determinação estrutural, estando também, como todo sistema

autopoiético em contínua mudança estrutural, daí sua plasticidade (Ibidem; VARELA,

1989).

Desse modo, podemos pensar o ser humano como um conjunto de bonecas russas,

uma dentro da outra, que teriam o poder de se afetarem umas às outras. Assim, o homem

constitui um sistema autopoiético, composto por diversos sistemas menores, os órgãos, que

por sua vez são compostos por células. Todos esses sistemas, na medida em que são

autopoiéticos, apresentam determinismo estrutural e seguem, como um todo, o mesmo

mecanismo descrito acima. Note-se que a característica autopoiética do humano não

decorre de ele ser uma reunião de elementos autopoiéticos, mas de ele ser um todo que

funciona segundo um determinismo estrutural. Assim, todo acoplamento, em qualquer

ponto desse sistema afetará a dinâmica do sistema como um todo. Nas palavras de

Maturana e Varela: “Toda interação, todo acoplamento afeta o operar do sistema nervoso

devido às mudanças estruturais que desencadeia nele. Toda experiência particularmente nos

modifica, ainda que às vezes as mudanças não sejam de todo visíveis” (MATURANA e

VARELA, 1995, p.197).

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Portanto o sistema nervoso, na medida em que se constitui como uma rede que se

interpõe entre o pólo sensorial e o motor, possibilita aos organismos multicelulares uma

ampliação dos acoplamentos e de estados possíveis - é por aí que se deve pensar a

participação do sistema nervoso no processo de aprendizagem. No caso do humano, a rede

não apenas existe, mas é dotada de extrema complexidade, possibilitando inúmeros e

diversos domínios de interação. Em função disto novos fenômenos tornam-se possíveis,

abrindo espaço para novos acoplamentos. É neste contexto que vemos surgir no homem a

linguagem e a autoconsciência. A linguagem e a autoconsciência são portanto,

conseqüências do ser autopoiético do homem. Sobre o aparecimento da linguagem Varela

afirma: “Porque tinha, entre todas as possibilidades, a de emergir. É um efeito de situação.

Isso poderia ter acontecido ou não” (VARELA, 2004, p.8).

É interessante notar que a abordagem enativa trabalha com uma concepção singular

de evolução. Trata-se da deriva natural, que Maturana e Varela explicam da seguinte forma:

A evolução se assemelha mais a um escultor vagabundo que perambula pelo mundo recolhendo um fio aqui, um pedaço acolá, e os combinando de maneira que sua estrutura e circunstância permitem, sem mais razão do que a possibilidade de combiná-las. E assim, enquanto ele vagueia, vão se produzindo formas intrincadas, compostas de partes harmonicamente interligadas, que são produtos não de um desígnio, mas de uma deriva natural (MATURANA e VARELA, 1995, p.149).

A deriva natural afasta-se da idéia de evolução pensada como progresso ou

otimização de formas. Isto implica uma inversão na forma de explicação da vida e da

aprendizagem. Há uma passagem da lógica prescritiva, característica do pensamento

evolutivo, para uma proscritiva. A lógica prescritiva afirma que o que não está permitido,

está proibido, já a proscritiva considera que o que não está proibido, está permitido

(VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2003). Neste sentido o sistema nervoso, o homem, a

linguagem são vistos, não como um aprimoramento, mas como possibilidades viáveis.

O aparecimento da linguagem: novos acoplamentos

Embora Varela não estabeleça um corte entre os humanos e os outros seres vivos,

considera que o humano, em função de sua singular história de acoplamentos possibilitou

que novos fenômenos como a linguagem e a consciência, aparecessem, e passassem a fazer

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parte de sua forma de ser e estar no mundo. Sobre isso Varela afirma: “O que vale é que o

aparecimento da mente simbólica não é um salto catastrófico, mas sobretudo a continuidade

necessária à encarnação” (VARELA 2004, p.3). Tanto a linguagem quanto a consciência,

em sua dimensão reflexiva, são entendidas por Varela como fenômenos especificamente

humanos (Ibidem, MATURANA e VARELA, 1995).

Conforme argumenta o autor chileno, o surgimento da linguagem no homem pode

estar relacionada às novas formas de vida adotadas por ele, como por exemplo a coleta, a

vida em grupos, as relações interpessoais afetivas, associadas ao colher e compartilhar

alimentos. Neste sentido a “invenção” da linguagem foi uma solução possível para esta

necessidade de viver junto. Dito de outra forma, a linguagem foi uma solução possível para

a vida comunitária, em sociedade. A linguagem possibilitou ao humano tecer uma trama

recursiva de descrições, na qual passou a se constituir. Vale a citação:

Nos insetos, como já vimos, a coesão da unidade social se dá por uma interação química, a trofolaxes. No caso dos seres humanos, a ‘trofolaxes’ social é a linguagem, que faz com que existamos num mundo sempre aberto de interações lingüísticas recorrentes. A partir da existência da linguagem, não há limites para o que podemos descrever, imaginar, relacionar. Ela permeia de modo absoluto toda a nossa ontogenia como indivíduos, desde o caminhar e a postura até a política (Ibidem, p.234).

Podemos pensar que a partir da linguagem ocorre uma ressignificação do ser

autopoiético do homem. Há alguns estudos que apontam a possibilidade de macacos e

chimpanzés conseguirem relacionar-se através de linguagem (Ibidem, p.234 a 243). Sobre

isso Varela não fornece qualquer resposta definitiva, apenas assinala que, ainda que

macacos e chimpanzés possam se utilizar de linguagem, a linguagem humana apresenta

uma especificidade que deve ser considerada. Ela permite a quem opere nela descrever-se a

si mesmo e às suas circunstâncias, de maneira a tornar possível fenômenos como a reflexão

e a consciência. “O domínio lingüístico do homem é muito mais abrangente e envolve

muito mais aspectos de sua vida do que ocorre com qualquer outro animal” (Ibidem, p.233)

Chama a atenção a expressão “operar na linguagem”. A linguagem é um meio, tal

como apresentado acima, com o qual realizamos acoplamentos, e que torna possível o

aparecimento de novos fenômenos, como a consciência. “Trata-se, efetivamente, de uma

deriva cultural em que – como na deriva filogenética dos seres vivos – não há um desígnio,

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e sim um arcabouço ad hoc que vai se fazendo com os elementos disponíveis a cada

momento” (Ibidem, p.232-233 – grifo nosso).

Ainda sobre o estatuto da linguagem na abordagem enativa, Varela e Flores

esclarecem que ela traz à cena mundos, e não representa um mundo dado:

No espaço cartesiano a linguagem é um instrumento de transmissão de informação de uma mente para outra. Para o ponto de vista ontológico (que é o da abordagem enativa) a linguagem é uma coordenação de ações que traz à mão mundos, que gera as realidades que habitamos. A dimensão básica da linguagem não é a adequação semântica a uma realidade dada, mas atenção e encadeamentos de atos de fala (as declarações, promessas e petições) que constituem o miolo do espaço da vida social humana (Flores e Varela, 2003, p.8).

Ou ainda:

A linguagem permite a geração, sempre mutante, da identidade de um ‘Eu’ que é privado e público, engendrado, não como uma substância ou uma localização cerebral, mas como um estilo de recorrências transitórias dentro de uma rede de conversações narrativas (Ibidem, p.9).

Poderíamos continuar apontando as novidades possibilitadas pela deriva cultural, e

pelas formas singulares de acoplamento da espécie humana. Poderíamos traçar ainda como

essas formas encarnam-se em um ser humano concreto. No entanto, nos parece já ser

possível a partir do que foi apresentado ter uma idéia de como o humano, a linguagem e a

consciência são entendidos na obra do Varela. Trata-se sempre de novos fenômenos

possibilitados por acoplamentos que, por sua vez, abrem novos mundos com novas

possibilidades. O que está na base de tudo é o mecanismo de aprendizagem ou mecanismo

autopoiético apresentado acima. Portanto é importante não perder de vista o encadeamento

desse mecanismo. O que está em questão aqui não é, portanto, um processo de aquisição da

linguagem. Não se trata da colocação do problema a partir do desenvolvimento. Varela está

interessado em explicar como a partir do mecanismo autopoiético a linguagem surgiu, ou

emergiu, como possibilidade, produzindo variações.

Assim, a linguagem, ao aparecer na estrutura autopoiética do homem possibilitou

que ele criasse novos e praticamente infinitos domínios de ação (Maturana e Varela, 1995).

No entanto, para Varela, isto não pressupõe corte entre o domínio humano e os seres vivos.

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Uma questão importante a ser ressaltada é que embora Varela se refira à linguagem

e a complexificação que esta introduz na forma de ser e conhecer do homem, ele não se

detém nestas questões. A linguagem não é o fundamental da sua teoria, mas sim o fazer ou,

a ação. A linguagem torna-se importante na medida em que constitui uma forma de ação

singular, podendo constituir também um espaço comum de interação entre os homens. Um

outro aspecto importante trazido pela linguagem é a possibilidade de produzirmos

descrições de nós mesmos e de nossas ações. Neste sentido a linguagem faz com que o

fenômeno da consciência se torne uma possibilidade para os humanos.

1.3.2 – O Aprendiz: a aprendizagem no domínio humano

Uma segunda formulação da aprendizagem na abordagem enativa pode ser pensada

a partir do caso do aprendiz. No tópico anterior, através do exemplo da célula (organismo

unicelular), procuramos trabalhar o mecanismo autopoiético. Alí identificamos o

mecanismo circular que nos permite pensar a aprendizagem de uma forma mais ampla,

para além da solução de problemas e da adaptação. Aqui, através do exemplo do aprendiz,

veremos como este mecanismo encarna-se num aprendizado específico. Note-se que no

caso do aprendiz, a aprendizagem já é pensada no domínio do humano e não do vivo em

geral. Comporta, portanto, as singularidades que as histórias de acoplamentos

possibilitaram à espécie humana, como o sistema nervoso e a linguagem. Contudo,

conforme foi visto acima, tanto o sistema nervoso, quanto a linguagem complexificam o

mecanismo, ou seja, permitem outros tipos de interações ou acoplamentos, mantendo-se o

mesmo mecanismo. Trata-se portanto de um caso especial de acoplamentos estruturais e

perturbações.

É interessante observar que ao abordar o domínio humano, Varela introduz em sua

abordagem a temática da experiência. Assim, alguns conceitos, como por exemplo o de

perturbação sofrem algumas transformações. Trabalhar a abordagem enativa no domínio

humano implica considerar não apenas a perturbação, mas a experiência de perturbação.

Neste sentido, Varela lança mão do conceito de breakdown. O breakdown representa a

experiência de ruptura, de quebra, ou ainda de perda de sentido que pode aparecer no

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interior de uma experiência cognitiva. Tal experiência caracteriza-se tanto por um colapso

(VARELA, 2003), quanto pela possibilidade de emergência de novas experiênias.

Varela trabalha neste momento (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2003) com o

exemplo do aprendiz da flauta e da meditação. A questão que está na base de seu

pensamento aí, é mostrar que corpo e mente não necessariamente encontram-se separados

na experiência. A separação corpo-mente é resultado de hábitos ou de certos tipos de

aprendizagens. E como Varela afirma “esses hábitos podem ser quebrados” (Ibidem, p.42).

Neste sentido, o aprendizado da flauta e, o da meditação aparecem como modelos para

pensar uma outra relação no processo de aprender, que implica um desaprender e que

conduza não a uma atitude abstrata, mas a um saber corporificado. Esta outra relação

envolve um trabalho sobre a atenção e a consciência e pode conduzir ao desenvolvimento

da “reflexão incorporada” (Ibidem, p.45). A reflexão incorporada, nada mais é do que a

reunião de mente e corpo na experiência que permite ao aprendiz estar presente e sensível

às novidades que poderão surgir no processo.

Note-se que para Varela, os hábitos têm a possibilidade de produzir uma segunda

natureza. Às vezes achamos que certas atitudes ou certas dicotomias que utilizamos na

nossa compreensão do mundo e de nós mesmos são naturais, sem nos dar conta de que elas

são também resultados de certas histórias de aprendizagem. Neste sentido, podem ser

desaprendidas.

Sobre o aprendizado da flauta, Varela descreve:

Consideremos o aprendizado da flauta. Mostra-se à pessoa as posições básicas dos dedos, diretamente ou sob a forma de um desenho do dedilhado. Ela então pratica essas notas em diferentes combinações várias vezes até que adquire uma habilidade básica. No início, a relação entre intenção mental e ato físico está bem pouco desenvolvida – mentalmente sabemos o que fazer, mas fisicamente somos incapazes de fazê-lo. Ao longo da prática, a conexão entre intenção e ato torna-se mais próxima, até que, eventualmente, a sensação de descompasso desaparece quase por completo. Alcança-se uma certa condição que, em termos fenomenológicos, parece nem puramente mental nem puramente física; ela é, ao contrário, um tipo específico de unidade mente-corpo. E, é claro, existem muitos níveis de interpretações possíveis, como se pode ver pela variedade de flautistas virtuosos (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2003, p.45).

Vemos, através da descrição que o desafio para o aprendiz é conseguir, ao longo do

processo de aprendizado, afastar-se de uma atitude abstrata ou desincorporada que Varela

aponta como sendo um hábito. O processo de aprendizagem pressupõe que ao final o

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aprendiz consiga estabelecer uma relação consigo e com o que foi aprendido de presença

plena, tornando-se sensível as nuances do processo. Esclarecemos que a expressão

“presença plena” é uma referência ao budismo, que conforme já mencionamos, compõe

uma das bases teórico-filosóficas da abordagem enativa. A presença plena refere-se a uma

atitude de atenção ao presente, implica um “estar aí”. Assim, o destino do aprendiz não é o

saber sobre algo, mas o saber fazer algo. O destino do aprendiz é a realização de um

acoplamento. Por acoplamento entende-se uma relação sem mediações de representações

ou regras fornecidas a priori. O acoplamento refere-se, assim a uma relação íntima ou uma

fina sintonia que não pressupõe mediação. Este acoplamento não é dado, mas é conquistado

ao longo do processo de aprendizagem.

Por exemplo, em relação ao aprendiz da flauta, afirmamos que ele aprendeu a tocar

esse instrumento apenas quando estabelece com este objeto uma fina sintonia, ou um

acoplamento que garante um fluir do movimento sempre aberto às imprevisibilidades que

poderão surgir e com as quais deverá compor. A analogia portanto para pensar esse

processo é a de afinar um instrumento onde existe uma justa medida que não é nem muito

frouxa e nem muito justa (Ibidem, p.45). O que está em questão em qualquer aprendizado é

portanto a aquisição desta justa medida ou, em outros termos, do acoplamento, que permite

ao aprendiz deixar fluir suas ações, compondo com o contexto. Note-se que diferente da

célula, este acoplamento é para o aprendiz uma conquista. O acoplamento é resultado de

um processo que envolve a passagem do abstrato – das regras – para o corporificado. Este

processo não se faz sem rupturas, perturbações ou breakdowns. Lembramos que por

breakdown entende-se a experiência de problematização no seio da ação ou do fazer, que

possibilita a emergência de novas relações no aprender. O resultado desse acoplamento

aparece na conduta, que se apresenta como precisa e graciosa. Uma imagem que pode

ajudar a pensar isto é a da bailarina, que após um longo período de ensaios e exercícios

consegue realizar os movimentos mais difíceis com graça e precisão que chegam a parecer

fáceis para o espectador. Dessa forma uma outra possibilidade da aquisição de hábitos,

refere-se ao desenvolvimento da atenção ao presente, ou em termos budistas à presença

plena:

Podemos desenvolver hábitos nos quais o corpo e a mente estejam plenamente coordenados. O resultado é um controle que não é apenas conhecido pelo próprio

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indivíduo [...], mas que é também visível para os outros – por sua precisão e graça, nós facilmente reconhecemos um gesto motivado por total consciência. Tipicamente, associamos essa atenção com as ações de um especialista, como um atleta ou um músico (Ibidem, p.44).

O aprendiz é aquele para quem o aprendizado afirma-se como uma prática, um

fazer que implica dedicação e repetição, sem contudo abdicar da reflexão ou da

consciência. No entanto reflexão e consciência ganham contornos singulares.

É importante não perder de vista que, em função da interlocução com a

fenomenologia, a consciência adquire um estatuto especial. Nesta direção, Varela distingue

entre consciência pré-reflexiva e reflexiva. A consciência reflexiva só é possível em função

do aparecimento da linguagem, na medida em que é apenas por meio da linguagem que a

autodescrição tornou-se possível (VARELA, 2004). No entanto esta é apenas uma

dimensão da consciência. Existe outra, na qual vivemos a maior parte dos nossos dias, que

é a pré-reflexiva ou não reflexiva. Nas palavras de Varela:

A reflexividade é algo absolutamente crucial e a grande mutação surgiu com o aparecimento da linguagem no homem. Contudo, temos problemas quando tentamos ligar a consciência a essa capacidade reflexiva, sem nos darmos conta do enorme background que representa a experiência. Alguns pesquisadores utilizam a expressão ‘consciência primária’ para designar a consciência não reflexiva. É interessante, porque na vida cotidiana noventa por cento da experiência é primária, não reflexiva. Caminha-se, anda-se de metrô, pode-se até ter pensamentos sem que haja reflexão (Ibidem, p.6).

Assim quando Varela propõe que o aprendizado pressupõe reflexão e consciência,

não significa que seja necessária uma consciência reflexiva, ou seja, um saber sobre si.

Algumas vezes o próprio aprendizado proporcionará que se chegue a uma consciência

reflexiva, e é justamente isto que está em questão na prática do devir-consciente que será

trabalhada no próximo tópico (VARELA, DEPRAZ e VERMERSCH, 2002). Note-se que

este saber sobre si, ou consciência reflexiva não é algo dado, mas sim algo que se altera em

função do aprendizado. Na medida em que a experiência de si é alterada, também o é a

experiência que esse si tem do mundo. Daí podermos, mais uma vez, afirmar que o

aprendizado contribui para a invenção de si e do mundo e, portanto, não se limita a ser um

processo adaptativo de solução de problemas dados. Já em relação ao tipo de reflexão que

comparece na aprendizagem, Varela explica que se trata de uma dimensão da reflexão que

não é abstrata, não é sobre o processo de aprender, mas caminha junto com o processo, em

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sintonia com ele. Portanto não é uma reflexão sobre a experiência, mas que se dá na

experiência. A reflexão é, ela mesma, uma experiência. Varela esclarece:

O que estamos sugerindo é uma mudança na natureza da reflexão de uma atividade abstrata desincorporada para uma reflexão incorporada (atenta) aberta. Por incorporada queremos nos referir à reflexão na qual corpo e mente foram unidos. O que essa formulação pretende veicular é que a reflexão não é apenas sobre a experiência, mas ela própria é uma forma de experiência – e a forma reflexiva de experiência pode ser desempenhada com atenção/consciência (VARELA THOMPSON e ROSCH, 2003, p.43).

Neste sentido, esta concepção de aprendizagem não se confunde com a concepção

behaviorista, pautada no mecanismo linear estímulo-resposta. A reflexão, ainda que numa

dimensão pré-lingüista, possibilita que o aprendizado seja conduzido para além dos limites

da habilidade. Cito:

Quando a reflexão é feita dessa forma, ela pode interromper a cadeia de padrões de pensamentos habituais e preconcepções, de forma a ser uma reflexão aberta – aberta a possibilidades diferentes daquelas contidas nas representações comuns que uma pessoa tem do espaço da vida (Ibidem, p.43).

Tal forma de conceber a aprendizagem situa-se na contramão da maior parte das

teorias filosóficas (Dreyfus, 1998) e psicológicas que acreditam que o aprendizado caminha

na direção de uma abstração onde o perito ou o expert é alguém que tem seu

comportamento guiado exclusivamente por regras ou representações. O expert segundo a

abordagem enativa não é aquele que está no mundo guiado por representações e regras, mas

alguém que, a partir de sua atuação, possibilita a criação de um mundo de sentido.

Dreyfus afirma:

Deve-se estar pronto para abandonar a idéia tradicional segundo a qual um principiante começa por casos particulares para, em seguida, na medida em que ele progride, se liberar por abstração e interiorizar regras cada vez mais sofisticadas. Pode ser que seja precisamente o contrário: a aquisição de uma habilidade consistiria em passar de regras abstratas a casos particulares (Ibidem, p.306).

A contribuição de H.Dreyfus possibilita um melhor entendimento disto que Varela

chama de corporificação do conhecimento. Dreyfus distingue cinco etapas no processo de

aprendizagem que vão do principiante ao perito. Os exemplos com os quais trabalha são o

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do aprendiz automobilista e do aprendiz do xadrez. No entanto continuaremos trabalhando

com o exemplo do aprendiz da flauta.

Principiante: Freqüentemente o aprendizado começa com a decomposição pelo

instrutor ou professor da tarefa a ser realizada. São apresentados os traços gerais e

acontextuais que o principiante poderá reconhecer mesmo sem possuir experiência. Por

outro lado, são fornecidas as regras gerais e abstratas para lidar com a situação. Voltando

ao exemplo do aprendiz da flauta trata-se do momento em que se mostra ao aprendiz as

posições básicas dos dedos.

Principiante avançado: A medida em que o aprendiz começa a praticar, ele vai se

deparando com situações concretas e com os limites das regras que lhe foram transmitidas.

Estas situações concretas possibilitam ocasiões para que o aprendiz discrimine outros

componentes que são significativos para, por exemplo tocar bem um instrumento como a

flauta. Desse modo o aprendiz enriquece sua experiência. Este é o momento em que o

flautista pratica as notas em diferentes combinações várias vezes, até que adquire uma

habilidade básica.

Competente: Neste momento do aprendizado o aprendiz já possui uma experiência

bastante aumentada. Inúmeros são os aspectos aos quais é sensível. A fim de possibilitar

uma conduta eficiente é preciso aprender a realizar um plano de ação. Criam-se certas

regras que são agora fruto da experiência e que devem ser levadas em consideração na

ação. Em relação ao aprendizado da flauta, este momento mostra-se na inicial dissociação

entre intenção mental e ato físico. Nas palavras de Varela: “No início, a relação entre

intenção mental e ato físico está bem pouco desenvolvida – mentalmente sabemos o que

fazer, mas fisicamente somos incapazes de fazê-lo” (VARELA, THOMPSON e ROSCH,

2003, p.45).

A proficiência é a penúltima etapa. Esta se faz pela conquista de uma nova

percepção, em função da competência adquirida. De repente novos elementos ganham

sentido, impondo uma mudança em relação às antigas regras e prioridades. O perito não age

por regras, mas decide caso a caso o que fazer com base em sua experiência. Muitas vezes

não tem consciência (no sentido reflexivo) de porque tomou tal ou qual decisão, apenas

decide de modo imediato. Note-se que esta imediatidade implica um longo processo, não se

trata de reflexo. No aprendizado da flauta este é o momento em que a conexão entre

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intenção e ato torna-se próxima, até que a sensação de descompasso desaparece quase por

completo, e parece para o observador que flautista e flauta estão unidos num fluir que

lembra uma dança.

Ao colocarmos o problema da aprendizagem a partir do aprendiz, algumas questões

novas surgem e merecem ser pensadas. A primeira, conforme foi apontada acima, é que o

acoplamento, ou seja, a relação imediata, aparece como uma conquista que é ela própria

resultado de uma aprendizagem. A segunda é que o aprendiz, assim como o bebê do

exemplo trabalhado no início do capítulo, constituirá um mundo de sentido a partir de

fluxos dispersos. Neste sentido, pensar a aprendizagem como uma relação sujeito objeto é

insuficiente. O processo de aprendizagem produz mundos e sujeitos a partir de uma

dimensão processual. A terceira e última consideração a ser feita é que pensar a

aprendizagem a partir do aprendiz faz aparecer um tipo de relação que no mecanismo

autopoiético não estava contemplada que é a relação ensino-aprendizagem. Aqui vemos

aparecer na teoria de Varela uma dimensão social e intersubjetiva na aprendizagem. Parece

que pensar a aprendizagem no domínio humano nos força considerar a questão do ensino.

Além disso, considerar a relação ensino-aprendizagem torna possível distinguir etapas no

processo de aprendizagem que não são estágios invariantes, mas modos diferentes de se

relacionar consigo e com o mundo, até que se chegue a uma relação de acoplamento direto

e imediato. Note-se que aí não está o fim da aprendizagem, mas sim o grau mais alto da

relação que pode se estabelecer consigo e com o mundo num processo de aprendizagem.

1.3.3 – A pratica do devir-consciente: contribuições para a aprendizagem

Através do último trabalho de Varela vemos a terceira formulação para a questão da

aprendizagem na abordagem enativa. Aí, o biólogo chileno junto com a filósofa N.Depraz e

com o psicólogo P.Vermersch desenvolvem a prática do devir-consciente (becoming

aware) (VARELA, DEPRAZ e VERMERSCH, 2002). Esta prática afirma-se, por um lado,

como uma metodologia para o estudo da experiência em primeira pessoa. Neste sentido tem

por objetivo complementar as tradicionais metodologias de segunda e de terceira pessoa

(VARELA e SHEAR, 2000). A idéia é que é apenas pela combinação das diferentes

metodologias que se pode compreender a experiência. Por outro lado, a prática do devir-

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consciente surge como uma prática de aprendizagem e de subjetivação8. Ou seja, na prática

do devir- consciente o que está em questão também é o estabelecimento de uma certa

relação a si que se torna possível a partir de uma relação de aprendizagem. Assim, a

aprendizagem envolve um trabalho que implica a modificação da experiência,

transformando tanto a forma de experimentarmos o mundo, quanto a forma de nos

experimentarmos. Nas palavras dos autores: A prática do devir-consciente “implica a

pessoa como um todo uma vez que será uma questão de trabalhar sua própria auto-reflexão,

nos detalhes de sua própria experiência” (VARELA, DEPRAZ e VERMERSCH, 2002,

p.101).

Como a aprendizagem não pode ser pensada fora de um contexto, estes autores

propõem sete exemplos – que não são os únicos possíveis, mas que têm a ver com a história

de cada um deles - para pensar e desenvolver a prática do devir-consciente. São eles:

entrevista de explicitação, meditação, visão esterioscópica, oração do coração, sessão

psicoanalítica, sessão de escrita e iniciante no curso de filosofia. A partir destes diferentes

contextos Varela, Depraz e Vermersch procuram extrair o que seria o ciclo básico da

prática do devir-consciente. A partir dos diferentes exemplos, chegam à formulação de que

o ciclo básico é composto por duas fases: a epochè e a evidência intuitiva. A epochè refere-

se ao método de redução inspirado na fenomenologia de Husserl. Este método implica a

“colocação entre parênteses” de qualquer julgamento ou pré-concepção a respeito do

mundo. Dessa forma a epochè ou método de redução fenomenológica diz respeito à

suspensão de nossa atitude natural, ou seja de nossos preconceitos “realistas” a fim de que

possamos nos encontrar com a experiência. Varela, Depraz e Vermersch chamam atenção

para o fato de que a epochè envolve também um trabalho sobre a atenção, englobando três

movimentos: a suspensão da atitude natural, a redireção da atenção do exterior para o

interior e, o “deixar vir” (letting go), que envolve uma mudança na qualidade da atenção, da

atenção que busca para a atenção que encontra (Ibidem, p.24-25).

A noção de consciência que está na base do trabalho dos três autores tem por

inspiração a fenomenologia. Ela não se restringe à consciência reflexiva (saber sobre si),

8 Em função dos objetivos e limites desta dissertação, não nos deteremos na questão metodológica envolvida na prática do devir-consciente. Estaremos, portanto interessados no desenvolvimento da idéia da prática do devir-consciente como uma prática de aprendizagem e de subjetivação.

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mas é composta por uma dimensão pré-reflexiva. Na fenomenologia a distinção que se faz

não é entre consciência e inconsciente, mas entre consciência reflexiva e pré-reflexiva.

Trata-se de uma distinção entre a consciência que pressupõe a linguagem e outra que

prescinde dela. A consciência pré-reflexiva é uma dimensão da consciência em relação à

qual não possuímos um saber prévio. Ela é composta de experiências opacas, pré-refletidas,

etc. Note-se que esta dimensão pré-reflexiva faz parte da cognição, sendo um elemento

importante para pensarmos a cognição em sua dimensão processual e de transformação. O

objetivo da prática do devir-consciente é acessar, através de um aprendizado, essa dimensão

pré-reflexiva da consciência fazendo “deixar vir” (letting go) à consciência clara aspectos

antes desconhecidos. É importante ressaltar que acessar a dimensão pré-reflexiva da

consciência é, na realidade, acessar uma dimensão coletiva e processual em nós. O ‘Eu’ ou

o ‘Si’ são apenas efeitos emergentes dessa rede :

Se você realmente quer chegar próximo do entendimento do que significa ser um sujeito, é melhor entender o que é esse gerador constante do que se trata o sujeito – uma vez que ele não é uma entidade estável, sólida, uma vez que ele não está dentro da cabeça, uma vez que ele não é apenas linguagem. Ele não é nenhuma dessas dimensões, mas sim está de algum modo numa figura de múltiplos níveis de emergência, mas é sempre frágil (VARELA e SCHARMER, 2000, p.10).

Nos interessa aqui realizar um exame de algumas questões envolvidas no

aprendizado da prática do devir-consciente, de modo a podermos contribuir para a

formulação de uma noção de aprendizagem na abordagem enativa. No primeiro tópico

vimos a questão do mecanismo, em seguida analisamos a aprendizagem pensada no

domínio humano e neste terceiro momento destacaremos a discussão da noção de um

aprendizado que se faz no caminho (“learn on the going” ou “learn on the job”) e que

envolve o cultivo de uma certa atitude em relação a si e ao mundo.

A idéia de que aprender é algo que se faz no caminho do fazer ressalta o aspecto

circular e indeterminado do processo de aprendizagem. A aprendizagem é, então, concebida

mais como um processo, do que como uma atividade de solucionar problemas. Dessa forma

desloca-se a discussão da aprendizagem de um referencial linear de resolução de

problemas, ou de tarefas pré-definidas para outro, onde o que está em questão é a

circularidade e a realização de um processo sempre inacabado. A aprendizagem deixa de

ser pensada em termos de processo e produto. Em função da circularidade, os produtos não

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perdem sua dimensão processual podendo ser constantemente afetados e transformados por

ela. Uma conseqüência importante é que assim, deixamos de poder nos referir a um início e

a um fim do processo de aprender. Onde começa e onde termina um processo que é

circular?

Varela, Depraz e Vermersch referem-se à aprendizagem como uma prática que

envolve tanto um antes quanto um depois. Trata-se de um processo contínuo que acontece

tanto “rio acima” (upstream), quanto “rio abaixo” (downstream). Ressaltamos que afirmar

um antes ou um depois, fazer a distinção entre “rio acima” (upstream) e “rio abaixo”

(downstream), não é o mesmo que falar de um início e um fim do processo de

aprendizagem. Antes e depois, “rio acima” e “rio abaixo” dizem respeito a marcações

temporais que tomam como referência a sessão. Sobre a sessão, os autores explicam:

Uma sessão é um elemento de uma prática social incorporada, isto é, sedimentada e reativada dentro das instituições, significações e esforços que a causam e a fazem tornar-se parte integrante de um laboratório, de um curso de treinamento para pesquisadores, ou tema de teses acadêmicas (VARELA, DEPRAZ e VERMERSCH, 2002, p.97).

A sessão diz respeito, portanto, ao momento do fazer, do treino ou da prática

propriamente dita. No entanto, o que lógica circular faz ver é que embora a aprendizagem

aconteça na prática, ela se estende para além dela, não se limitando a uma solução de

problemas dados. Embora o aprendizado implique a prática, ele não se limita a ela. Antes:

“O aprendizado tem sua própria lógica temporal, na qual você está sempre à frente de você

mesmo” (Ibidem, p.98). Continuamos aprendendo quando, após a sessão, paramos para

falar ou refletir sobre o processo, seja sozinho, seja junto com um professor ou treinador.

Dito de outra forma:

A lógica temporal única do aprendizado, que extrai sua força de sua verificação incessante e de sua própria práxis, significa que o gesto de devir-consciente nunca cessa de se auto-antecipar quando está verdadeiramente no trabalho. Assim, cada nova sessão abre para um novo aprendizado e, não obstante, permanece embebida do que você obteve na sessão anterior (Ibidem, p.98-99).

Este falar e refletir é ao mesmo tempo o momento “rio abaixo” (downstream) da

sessão que passou, quanto o momento “rio acima” (upstream) da sessão que virá. Note-se

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que este antes e depois são fundamentais para a aprendizagem, sendo considerados parte

dela.

É neste sentido que Varela, Depraz e Vermersch afirmam que a aprendizagem

pensada como uma prática que se faz no caminho, é marcada por uma dupla temporalidade:

a da sedimentação e enraizamento e, a da novidade e surpresa (Ibidem, p.99). Sedimentação

e enraizamento dizem respeito à repetição das sessões, a prática, ao treino. A idéia é que a

repetição é essencial para que se desenvolva uma sensibilidade capaz de acolher as

experiências de breakdown. Kastrup explica: “O sentido do treino é criar um campo estável

de sedimentação e acolhimento de experiências afetivas inesperadas, que fogem ao controle

do eu” (KASTRUP, 2005, p.6). Por sua vez, as experiências de breakdown trazem a

surpresa e a novidade nos colocando diferentemente no processo circular. Assim, aprender

não se resume à aquisição de conteúdos ou habilidades por um sujeito já constituído, mas

envolve um trabalho sobre si, em outros termos, envolve o cultivo.

A aprendizagem pensada a partir do cultivo revela uma dimensão paradoxal. A idéia

de cultivo implica trabalhar sobre algo que já estava aí, produzindo com este trabalho algo

novo. Assim aprender a prática do devir-consciente é cultivar uma certa experiência que já

possuímos. Sobre essa idéia:

Os cantores não precisam criar seus próprios aparatos sonoros, mas eles certamente necessitam criar, com base neste aparato, o hábil instrumento que lhes permite cantar. Os pianistas não precisam construir mãos para tocar, mas levam anos criando as mãos de um pianista (VARELA, DEPRAZ e VERMERSCH, 2002, p.100).

O aprendizado do devir-consciente envolve o cultivo de uma certa atenção, através

da prática da redução (epochè). Ultrapassa, portanto, o plano do desempenho e da ação

sensório-motora: “O problema da redução é que você não está apenas aprendendo uma

habilidade sensório-motora (embora a redução seja isso também), mas está cultivando a

habilidade consciente de mudar da atitude natural para a suspensão e redireção” (Ibidem,

p.99).

Também neste último trabalho de Varela, o que está em questão é um aprendizado

pensado no domínio humano. Vemos aparecer questões não tratadas por ocasião do

mecanismo autopoiético, como é o caso da necessidade de um engajamento voluntário no

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processo de aprender. É preciso que o sujeito se engaje na atividade a fim de que consiga

suspender sua atitude natural e redirecionar sua atenção. Cito: “Você deve mudar

voluntariamente sua atenção do exterior para o interior, para o simples acolhimento e

escuta” (Ibidem, p.31). Conforme advertem os autores: “Algumas vezes é bastante difícil

passar da nossa atividade cognitiva cotidiana, a qual na maioria das vezes está trancada no

mundo que nos rodeia. Mas não se preocupe: isso pode ser feito” (Ibidem, p.31). Dessa

forma, algumas vezes a ajuda de um mestre, professor ou treinador pode ser fundamental.

Nas palavras de Varela:

Os seres humanos não são espontaneamente dotados desse processo (abandonar a atitude natural). Assim a mediação social é absolutamente fundamental. Você pode dizer que isso não é nenhuma surpresa, sendo essencial para a linguagem e assim por diante. É também essencial para outros valores e para a aprendizagem social (VARELA e SCHARMER, 2000, p.8).

Este tipo de aprendizagem pode se fazer ou não sobre uma relação mestre-aluno,

isto é, através de uma relação intersubjetiva. Contudo, o papel do mestre não é o de

conduzir o aluno em direção à apreensão de um determinado conteúdo, mas direcioná-lo a

uma nova forma de se posicionar em relação a si e ao mundo. Em outros termos, o mestre é

aquele que ajudará o aluno no processo de aprendizagem a experimentar-se diferentemente,

abrindo a possibilidade para que novos mundos surjam, assim como novas subjetividades.

Este é um processo para o qual não existem resultados antecipáveis, e onde os resultados

em termos de desempenhos não são a questão mais importante. Por exemplo, - usando um

dos exemplos fornecidos pelos autores – no caso de um iniciante do curso de filosofia,

saber o que Descartes, Kant, etc. disseram é importante, mas será que este é o resultado

principal deste processo?

O mestre não é aquele que sabe a resposta, mas sim aquele que adquiriu mestria em

determinada tarefa, através de sua prática, podendo fornecer ao aluno alguns pontos que

servirão de balizadores em seu caminho. Assim, por exemplo, no caso da visão

estereoscópica, Varela, Depraz e Vermersch afirmam: “Você tem a ajuda de um professor

que não apenas viu (as figuras se juntarem), mas ele é alguém que adquiriu uma mestria

estável sobre esse processo, e pode, assim, fornecer apontamentos sobre o que você deverá

fazer” (VARELA, DEPRAZ e VERMERSCH, 2002, p.46). Já no caso do papel do

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professor na sua relação com o aluno num curso de filosofia, os autores afirmam que ele

ajuda o aluno no processo de escolha do assunto, através da orientação da reflexão. Para

tanto, ele estimula discussões entre o aluno e o resto da classe, intervindo ocasionalmente.

E ainda: “O professor encaminha o processo problematizando uma questão ou texto. Você

(aluno) escuta e toma notas. O objetivo do professor é provocar uma resposta em você,

mas, a princípio ela permanece não expressada” (Ibidem, p.60). Desse modo podemos

afirmar com os autores que o mestre é alguém que guia sem dar respostas (Ibidem, p. 102).

Ele acompanha o aluno em seu caminhar, mas aquilo que o aluno vai encontrando, - o que

ele acessa no caminho e que passa a constituí-lo - é de responsabilidade do aluno. Neste

sentido é que se afirma: “Você só será um aprendiz se sujar as mãos: o aprendizado no livro

não substitui o fazer por si” (Ibidem, p.97). É apenas no fazer, na prática concreta que o

inesperado pode acontecer. O professor acompanha, mas quem faz é o aluno. Desse modo,

não existe aprendizagem sem experimentação, sem a prática. Note-se que mesmo no caso

de um aprendizado teórico a questão da experimentação e da prática comparecem como

essenciais. Voltamos ao exemplo do aprendiz de filosofia, é apenas usando os pensadores,

pensando e experimentando com

eles, que o aprendizado se efetiva. Aprender é mais do

que reprodução, é produção. Na entrevista de explicitação, técnica criada por P. Vermersch

(1994) cujo objetivo é acessar a experiência em processo, e não seu conteúdo - não o que se

pensa ou imagina que se faz, mas sim o que se faz - o entrevistador pode formular

perguntas ao aluno tendo em vista explicitar o processo empregado em seu fazer. Citamos:

A experimentação mostra que em escolas ou no treinamento profissional a maioria das pessoas irá responder ‘eu não sei’ à pergunta ‘como você fez isso?’. A principal dificuldade para os entrevistadores é evitar que as pessoas reflitam dessa forma onde elas só podem responder aquilo que já sabem e dessa forma ficarem presas naquilo que elas acreditam sobre a forma que fazem as coisas (Ibidem, p.28).

Em função dessa forma de colocar o problema da aprendizagem, como algo que se

define no caminho, vemos modificarem-se não apenas a relação mestre-aluno, mas também

a relação do sujeito com o objeto a ser conhecido e do sujeito com ele mesmo. De modo

mais radical, essa outra forma de pensar a aprendizagem nos força a repensar as dicotomias,

na medida em que elas não mais funcionam como definidoras do processo de conhecimento

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e nem de aprendizagem. Aprender não é captar algo já dado, não se trata de uma atividade

de recognição. Ensinar, por sua vez, não é transmitir um saber pronto:

Queremos enfatizar o fato de que tal capacidade está aberta a todos. Ainda assim, apesar de dado a todos, não é dado no sentido de que você teria apenas que sair e comprá-lo. Necessita de um esforço real a fim de ser alcançável, mas, novamente, cada um de nós pode realmente fazê-lo (Ibidem, p.100).

Aprender não é apreender algo pronto e acabado, mas envolve esforço e prática, em

outros termos envolve um cultivo. Esta idéia, a nosso ver, deve ser a base de qualquer

processo de aprendizagem que privilegie a criação.

A aposta em um aprendizado que se faz no caminho implica acolher a

indeterminação e a transformação. Neste tipo de relação de aprendizagem que se encontra

para além da recognição, é inevitável a transformação do mundo e de nós mesmos. Neste

sentido os autores referem-se a uma aposta ética como aquilo que sustenta o engajamento

neste tipo de aprendizado.

A aposta ética refere-se ao estabelecimento de uma certa atitude no encontro com o

mundo que pressupõe o abandono do “preconceito realista”. Cito: “Suspensão dos

preconceitos ‘realistas’ que definem que o que aparece para você é o verdadeiro estado do

mundo, essa é a única forma de poder mudar a forma de prestar atenção na experiência”

(Ibidem, p.25). Em outro momento os autores sugerem: “Você deve romper com a ‘atitude

natural’” (Ibidem, p.25). Esta atitude possibilita experimentar um estranhamento ou, em

outros termos, experimentar uma “zona de silêncio provisória e relativa” (Ibidem, p.41) e,

assim, deixar vir novos conhecimentos, transformando a si e ao mundo. Note-se que aqui

aparece a questão de uma dimensão coletiva no processo de aprender que não é óbvia.

Trata-se do acesso ao coletivo, ou à dimensão processual que nos constitui ou o acesso a

nossas virtualidades.

Aprender implica também desaprender. A aprendizagem não é só aquisição de algo,

mas é também abandono tanto de uma atitude realista e objetivista, quanto “ensimesmada”

e subjetivista. Afirmar que aprender implica desaprender não significa abandonar nossa

história. Somos quem somos em função de nossa história e é somente com ela que o

aprendizado torna-se possível. Não é rompendo com a cultura e com a tradição que um

aprendizado se faz, mas compondo tanto com a cultura quanto com a tradição. Apenas no

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interior de uma tradição ou cultura teremos a possibilidade de experimentar os breakdowns,

as surpresas que poderão nos conduzir para além de nós mesmos.

1.4 – Política e fazer científico

Conforme foi possível perceber ao longo deste capítulo, a questão política atravessa

toda a obra de Varela. Desde a colocação das questões, passando pelos conceitos até a

aposta na possibilidade de transformação de nós mesmos e do mundo. Assim, a

indissociabilidade entre o fazer científico e a política é um aspecto importante da obra desse

autor. É sobretudo através das entrevistas que Varela concedeu ao longo de sua vida, que

nos damos conta da importância de tal relação para o entendimento do alcance de sua obra.

Note-se que o que está em questão aí é a consideração não apenas da política em seu

sentido maior - a política de um país -, mas também uma de uma política epistemológica

que se concretiza na colocação dos problemas e na forma de resolvê-los. Esta relação

indissociável entre política e fazer científico, conforme veremos, também está na base da

teoria de Vygotski.

Em entrevista concedida a Rogério Costa, em 1992 (COSTA, 1993), Varela

apresenta um interessante panorama de como suas idéias foram sendo gestadas em parceria

com seus companheiros, com as teorias científicas e com o cenário político do Chile da

época. Varela fala do início de seu trabalho como cientista nos anos de 1965/1966. Relata

que em princípio o problema que lhe interessava era formulado ainda de forma bastante

difusa como problema de mentalidade. Fala da influência que seu professor H.Maturana

exerceu sobre ele, fazendo-o ver que na neurobiologia o problema filosófico e

epistemológico não estavam dissociados. Refere-se aos anos de 1970 e a sua insatisfação

com o paradigma do sistema nervoso como processador de informações, dominante na

época. Relata:

Nesse momento eu retornei ao Chile muito entusiasmado com o projeto socialista de Salvador Allende e, então pela primeira vez, sinto que houve uma ruptura epistemológica, para falar em termos de filosofia da ciência. Essa ruptura se deu com o trabalho que fiz com H. Maturana, já como amigos, que foi o de pensar o problema do conhecimento (Ibidem, p.78-79).

Goleman acrescenta:

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Em 1970, Francisco recusou uma oferta de emprego em Harvard para assumir um cargo na Universidade de Santiago – mudança motivada, em parte, pela eleição de Allende, a quem Francisco, ele mesmo de tendências esquerdistas, apoiava. Foi uma época de esperança e abertura no Chile, com um socialismo igualitário que prometia uma nova ordem social e econômica. [...] O otimismo do momento também se expressava na abertura de pensamento no clima da universidade (GOLEMAN, 2003, P.306).

É neste momento que Varela e Maturana concebem a noção de autopoiese.

“Autopoiese como a forma mínima de um ser vivo definir-se a si mesmo” (COSTA, 1993,

p.79). Note-se que a noção de autopoiese é indissociável da idéia de autonomia, que foi

desenvolvida posteriormente por Varela (VARELA, 1989). E aqui vem a passagem da

entrevista onde o co-engendramento entre ciência e política é evidenciada:

Ao mesmo tempo, havia todo o fenômeno que se passava no Chile e, sinceramente, creio que não seria possível o repensar da autonomia se eu não estivesse nessa situação de contexto político-social. Caso eu estivesse nos EUA, como queria um dos meus professores, receio que nada disso teria se passado. Isso foi muito interessante, porque não acredito que teria tido coragem de fazer essa ruptura de pensamento senão porque havia todo esse contexto, esse movimento popular (COSTA, 1993, p.80).

Com esta fala Varela exemplifica o que mais tarde formulou como a circularidade

do cientista reflexivo, ou seja que o fazer científico não se dá de modo desencarnado, mas

se faz sobre um “background” que não exclui a estrutura do sistema cognitivo do cientista

(VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2003).

1.5 – Contribuições da abordagem enativa ao tema da aprendizagem: algumas sínteses

Em um primeiro momento tomamos o mecanismo circular autopoiético para pensar

o mecanismo da aprendizagem. Assim, a aprendizagem passou a ser concebida para além

das tradicionais dicotomias que caracterizam este conceito. Aprender é mais do que o

estabelecimento de uma relação sujeito-objeto ou de uma relação sujeito-mundo. Sujeito e

objeto são sempre co-engendrados. A idéia de co-engendramento é fundamental para o

entendimento do mecanismo autopoiético e revela-se bastante fecunda para pensar a

aprendizagem. Para a autopoiese, a ação ou o fazer é primeiro em relação aos pólos. Assim,

transpondo essa idéia para a aprendizagem, o aprender como um processo que produz tanto

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o aprendiz como aquilo que é aprendido ganha destaque. A aprendizagem começa pela

ação.

O mecanismo circular, tal como apresentado no desenvolvimento da teoria da

autopoiese impede a consideração, tanto de um mundo dado, quanto de um sujeito pré-

suposto. Sujeito e mundo são co-engendrados, um define-se somente na relação com o

outro.

Os conceitos de acoplamento estrutural e o de perturbação revelaram-se importantes

nas discussões sobre a aprendizagem. A partir da ação emergem sujeito e mundo. Estes

apresentam um acoplamento inicial sobre o qual outros se farão. Cada acoplamento produz

variações na estrutura do organismo, e conseqüentemente altera tanto o organismo quanto o

seu mundo. Assim, somos o resultado de uma história de acoplamentos. Note-se, a partir

desta idéia que a aprendizagem ganha um caráter corporificado. No processo de aprender,

produzimos variações na estrutura, em outros termos, produzimos um corpo. A noção de

perturbação é fundamental na realização da história de acoplamentos. Cabe a perturbação

colocar problemas aos acoplamentos já estabelecidos, gerando movimento e possibilitando

novos encontros, e por conseguinte a possibilidade de novos acoplamentos. Portanto,

acoplamento e perturbação não podem ser pensados de forma dissociada. Sem o

acoplamento, a vida torna-se um problematizar incessante, não possibilitando a criação de

regularidade e de história. Por outro lado, sem as perturbações, a vida torna-se rígida.

Aprender implica, assim, uma dimensão acoplamento e uma dimensão perturbação.

Sobre o conceito de perturbação é importante ressaltar que ele surge como uma

alternativa à noção de informação, no campo das ciências da cognição, e no campo da

psicologia ele constitui-se como uma alternativa ao estímulo da teoria behaviorista.

Em um segundo momento, trouxemos para a discussão sobre a aprendizagem o

humano. Vimos como as perturbações, os acoplamentos e as variações estruturais implicam

em formas diferentes de experimentarmos o mundo e a nós mesmos. Dessa forma, pensar

com

Varela a aprendizagem no domínio humano pressupõe a consideração do tema da

experiência. A aprendizagem ao mesmo tempo em que produz modificações na

experiência, é modificada por ela.

Chamou-nos atenção, nesta ocasião, a idéia defendida por Varela de que as

tradicionais dicotomias que caracterizam o pensamento ocidental são resultados de certos

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hábitos ou de certos tipos de aprendizagens. Assim, por exemplo, a separação corpo-mente

que atravessa a psicologia e as ciências cognitivas, ou ainda, a separação sujeito-objeto que

atravessa a psicologia cognitiva e, por conseguinte os estudos sobre a aprendizagem, são

resultados de certas aprendizagens. Varela defende, então que como todo hábito, essas

dicotomias ou separações, podem ser quebradas. Em outros termos, elas podem ser

desaprendidas. Assim, ao incorporar o tema da experiência à aprendizagem, passamos a

poder considerar também o desaprender como parte de um processo mais amplo de

aprendizagem.

Através do exemplo do aprendiz da flauta observamos uma mudança interessante

nos conceitos de acoplamento e de perturbação. O acoplamento, entendido como uma

relação imediata ou direta, aparece nesta ocasião como uma conquista no processo de

aprendizagem. No caso do humano a relação imediata apresenta-se como uma conquista

que se efetiva através da imersão na dimensão contextual da prática. Trata-se do abandono

das regras e das representações. No processo que vai do iniciante ao perito (DREYFUS,

1998), o aprendiz da flauta experimenta diversas relações com a flauta, porém o

acoplamento só é obtido quando flautista e flauta estabelecem entre si uma fina sintonia que

se revela como um fluir da conduta. A perturbação, por sua vez, aparece no humano, como

experiência de breakdown. O breakdown pode ser sentido pelo sujeito como uma

experiência de perda de sentido, a partir da qual podem advir novos sentidos. Trata-se de

uma experiência de quebra ou de bifurcação. No caso do aprendiz da flauta essas

experiências aparecem durante o movimento progressivo de imersão na dimensão

contextual do aprendizado. O breakdown aparece como a surpresa naquilo que é repetição.

É interessante observar que quando Varela começou a trabalhar a aprendizagem no

domínio humano, ele fez aparecer a figura do professor ou do mestre. A aprendizagem

concebida no domínio humano parece, então, envolver um aspecto intersubjetivo e social.

Assim, considerar a aprendizagem no domínio humano implica a consideração também da

dimensão do ensinar.

No terceiro momento trabalhamos a aprendizagem a partir do aprendizado da

prática do devir-consciente. Aí, duas questões nos chamaram atenção: a primeira, refere-se

a circularidade e, a segunda, que está relacionada a primeira, refere-se à idéia de cultivo. A

aprendizagem pensada a partir da prática do devir-consciente aparece por um lado como

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um processo circular que se faz no caminho. Portanto não possui um início e um fim bem

delimitados. E por outro lado, apresenta-se como uma prática de cultivo. O cultivo revela

um aspecto paradoxal: cultivamos algo que já estava lá, mas nesta atividade produzimos o

novo.

A circularidade e o cultivo chamam atenção para a dupla temporalidade que marca o

processo de aprender: a da sedimentação ou enraizamento e a da novidade ou surpresa.

Note-se a semelhança entre os pares enraizamento-surpresa, acoplamento-perturbação e

acoplamento-breakdown. O acoplamento refere-se, portanto, à dimensão de enraizamento

ou de sedimentação da aprendizagem. No entanto a aprendizagem não pode ser apenas

sedimentação, é constituída também por uma dimensão de surpresa e inovação, que

aparece, nos trabalhos de Varela, através da noção, num primeiro momento de perturbação,

e num segundo momento, de breakdown e, num terceiro momento, de surpresa. Assim,

aprender pressupõe tanto acoplamentos quanto breakdowns, tanto enraizamento quanto

surpresa, tanto sedimentação quanto novidade. Estas idéias, junto com os exemplos

escolhidos para trabalhar a aprendizagem e, a circularidade são, talvez, as principais

contribuições da abordagem enativa para a temática da aprendizagem.

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67

A PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E O PROBLEMA DA

APRENDIZAGEM

A teoria histórico-cultural será analisada a partir principalmente dos trabalhos de

Vygotski. Com isso não excluímos as contribuições de colaboradores e comentadores – que

muitas vezes são fundamentais, inclusive em função dos problemas de tradução. Tais

problemas devem-se principalmente a questões políticas que perpassam a obra desse autor.

Vygotski construiu sua teoria sob a inspiração da filosofia marxista (materialismo histórico

e dialético) tendo sido durante muito tempo alvo de censura. Conforme aponta J.Glick

(1997), A.Alvarez e P.Rio (1997), embora Vygotski tenha morrido em 1934, muitos de

seus textos só foram publicados e tornados conhecidos recentemente – década de 1960, nos

EUA, e década de 1970, no Brasil. Mesmo as traduções mais antigas, como por exemplo, a

primeira versão do livro Pensamento e Linguagem para o inglês, em 1962, não permitem ao

público de fato conhecer a obra do autor russo, uma vez que no processo de tradução

muitas passagens foram omitidas, especialmente aquelas relacionadas ao materialismo

histórico-dialético (BEZERRA, 1999; DUARTE, 2001).

Hoje, contudo, vamos, aos poucos, tendo acesso a melhores e mais completas

traduções. Como exemplo, podemos citar as traduções de Teoria e método em psicologia

(1999), e O desenvolvimento psicológico na infância (2003), realizadas por Claudia

Berliner; e as traduções de Psicologia da Arte (2001), e A construção do pensamento e da

linguagem (2001), realizadas por Paulo Bezerra. Há uma preocupação por parte de

tradutores e de alguns comentadores de tentar apreender os trabalhos de Vygotski em toda a

sua complexidade. Com relação ao trabalho dos comentadores, isto que estamos chamando

de apreensão da obra de Vygotski em sua complexidade, nem sempre produz consenso.

Uma das dificuldades diz respeito ao mecanismo dialético que está na base de todo o seu

pensamento.

Na tentativa de esclarecer as peculiaridades da posição vygotskiana, comentadores

como F.Newman e L.Holzman (2002), N.Duarte (2001), L.Sève (1999), B.Schneuwly

(1999) e P.Bezerra (1999) dedicam parte de seus trabalhos a explicitar e explicar a dialética

intrínseca à concepção histórico-cultural, de modo a evitar reduções ou simplificações

indevidas.

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Neste cenário, a idéia da realização de uma exegese completa do pensamento

vygotskiano ou da apresentação de sua teoria como um sistema fechado e coerente torna-se

não apenas difícil, mas um contra-senso. Entretanto há muito a ser descoberto da obra desse

autor russo. Neste capítulo examinaremos como a construção da cognição aparece na teoria

histórico-cultural, tomando como foco a questão da aprendizagem. Estamos especialmente

interessados no exame de seu mecanismo de funcionamento. Nosso objetivo é pensar com a

teoria vygotskiana contribuições para uma discussão sobre um processo de aprendizagem

que não se restrinja à solução de problemas ou à recognição. Assim como Varela, Vygotski

não nos fornece um conceito pronto de aprendizagem, no entanto é pensando com

ele

(CLOT, 1999) que poderemos avançar.

Vygotski é um autor cuja obra ultrapassa os limites do momento histórico em que

foi concebida, sem contudo deixar de pertencer ao seu contexto histórico-cultural (Glick,

1997). Ao mesmo tempo em que sua obra é marcada pelos acontecimentos e debates de sua

época, ela carrega uma potência que nos permite ver nele, ainda hoje, novidades. Para

Glick: “Seus textos [de Vygotski] parecem transcender sua localização histórica e parecem

falar diretamente a nós sobre temas que são do aqui e agora” (Ibidem, p.vi).

Esta posição é compartilhada por A.Zanella (2001), que afirma:

Vygotski apresenta uma obra marcada pelos acontecimentos de sua época, pelos debates e polêmicas que caracterizavam o pensamento científico de então e um léxico igualmente datado, o que apresenta para os leitores contemporâneos um grande desafio: entender suas contribuições considerando essa condição histórica e resgatando o que há de contemporâneo e inovador em sua obra (Ibidem, p.15-16).

Foi através da psicologia do desenvolvimento que Vygotski se tornou conhecido, no

entanto, contemporaneamente, ele está sendo relido em outros domínios. O livro

organizado por Y.Clot (1999) oferece uma boa amostra. Sem dúvida a contribuição de

Vygotski para o campo da psicologia da criança é notável; no entanto, seus textos estão

longe de se limitarem a esse domínio. Por outro lado, de acordo com Clot, a concepção de

psicologia com a qual Vygotski trabalha acomoda-se mal nas fronteiras que a história dessa

disciplina traçou entre psicologia experimental, cognitiva, social e clínica.

Quando Vygotski se interessa pelo desenvolvimento é tanto o dos conceitos quanto das emoções. Quando ele procura explicar os movimentos da consciência

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é do ponto de vista do inconsciente e inversamente. Quando ele insiste sobre as determinações sócio-históricas da aprendizagem é para compreender a singularidade do desenvolvimento pessoal. Portanto seu olhar sobre a vida subjetiva interior, ele a encontra, transformada e posta em cena, nas relações sociais externas entre os sujeitos (CLOT, 1999, p.9).

No Brasil, a maioria das publicações sobre a obra desse autor tem sido realizada na

interlocução com o campo da educação (MAINARDES e PINO, 2000). O presente trabalho

pretende contribuir para um alargamento do campo de interlocução dos trabalhos de

Vygotski, explorando sua interface com o domínio das ciências cognitivas, em especial

com o trabalho de F.Varela.

2.1 - Uma promessa de síntese no campo da psicologia

Vygotski escreve seus trabalhos na primeira metade do século XX, preocupado com

a constituição de uma psicologia científica. Neste sentido, a preocupação com a questão

metodológica comparece como um problema fundamental. Era preciso não abrir mão do

que considerava próprio da psicologia - a mente e a consciência.- mas estudá-los de modo

que pudesse ser reconhecido pela ciência da época.

No texto El significado histórico de la crisis de la psicología (1927/1997a),

Vygotski parte da idéia de que há uma crise neste campo que se manifesta pela existência

de diferentes metodologias e, por conseguinte de diferentes psicologias. “A

psicologia” não

existia, mas precisava ser inventada. O que existiam eram diversas psicologias, que

poderiam ser reunidas, em função de seus embasamentos teórico-metodológicos, em duas

grandes correntes: a materialista, ou naturalista - que interpretava os fenômenos segundo

princípio de causalidade, mantendo basicamente o mesmo tipo de conexão e a mesma linha

de sentido para todos - e a idealista – que interpretava seus fenômenos concebendo-os como

atividades espirituais e orientadas para um objetivo, isentas de qualquer conexão material

(Ibidem, p.352).

Para Vygotski, a metodologia é o modo através do qual a filosofia participa do fazer

científico. Segundo suas palavras:

A metodologia é a alavanca por meio da qual a filosofia dirige a ciência. As tentativas de exercer essa direção sem metodologia, de aplicar diretamente a força

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sem alavanca no ponto de aplicação – desde Hegel até E.Meuman – dá lugar a que a ciência se torne impossível (Ibidem, p,388).

Dessa forma, o método não é neutro, mas implica um posicionamento teórico-

filosófico. Em outras palavras, diríamos que a metodologia pressupõe também uma política,

pois não há discurso neutro. Conforme explica Vygotski:

Os naturalistas acreditam que se libertam da filosofia quando a ignoram, mas não são mais do que escravos, prisioneiros da mais detestável filosofia, composta por uma mistura de concepções fragmentárias e carentes de sistema, uma vez que os investigadores não podem dar um passo sem pensar, e o pensamento exige definições lógicas (Ibidem, p.337).

Considerando a existência de crise na psicologia, evidenciada pela presença de

múltiplas abordagens teóricas, muitas delas dissonantes e antagônicas, Vygotski examina

teorias que, ao se constituírem de modo distinto desses extremos, poderiam apontar para a

resolução desse problema. Denominou esses empreendimentos de sistemas de terceira via,

onde localizou a teoria da gestalt, o personalismo e a psicologia marxista.

As três escolas estão unidas pela convicção comum de que a psicologia como ciência não é possível nem sobre a base da psicologia empírica9, nem sobre a base do behaviorismo, e que existe um terceiro caminho que está mais além desses dois caminhos e que permite levar a cabo a psicologia científica sem renunciar a nenhuma de suas colocações, mas unindo-as em um todo (Ibidem, p.363-364).

É através do conceito de estrutura que Vygotski vê no gestaltismo uma abertura para

pensar a terceira via. A estrutura é um conceito psicofísico que reúne tanto o aspecto

funcional quanto descritivo. Neste sentido, através dele, o gestaltismo poderia reunir corpo

e psique, e assim escapar dos extremos. Contudo, conforme analisa Vygotski, ao submeter

as estruturas às lei da física, o gestaltismo acabou por cair no pólo da psicologia científico-

natural (Ibidem, p.364-365).

O personalismo - teoria que surge das investigações de psicologia diferencial, cujo

principal representante é W.Stern - segue o caminho contrário, caindo no pólo idealista. A

princípio o personalismo teria possibilitado à psicologia pensar a personalidade, conceito

9 Vygotski nomeia psicologia empírica a psicologia elementarista associacionista de Wundt. Em alguns momentos, Vygotski refere-se a ela como psicologia empírica subjetiva. O que parece estar em relevo neste tipo de nomeação é um reconhecimento desta psicologia como uma prática científica legítima, como uma prática de experimentação. Neste sentido a psicologia empírica não se confunde com o behaviorismo (Vygotski, 1931/2000, p.49-50).

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que para Vygotski é fundamental para se estudar e compreender o comportamento. Mas

esse conceito acaba perdendo a sua força ao abarcar todos os tipos de individualidades,

incluindo não apenas o homem, mas também os animais, plantas e suas partes (Ibidem,

p.365).

Já a psicologia marxista, na medida em que tem por base a dialética, poderia apontar

para uma solução de terceira via. Contudo, ela falha nesta missão por se manter ainda em

um plano abstrato. De acordo com Vygotski esta psicologia que nasce e se desenvolve em

solo russo, constitui uma aplicação abstrata da teoria marxista, considerando apenas o

aspecto da lógica dialética e desconsiderando o aspecto histórico. Note-se que menos do

que um sistema fechado, a psicologia marxista reúne diversos autores, em sua maioria

russos, que procuraram aplicar à psicologia a filosofia marxista. Como exemplo Vygotski

cita dentre outros, os nomes de K.N. Kornílov e de Yu.V. Frankfurt (Ibidem, p.366).

É interessante constatar que após ter afirmado pertencerem à terceira via a teoria da

gestalt, o personalismo e a psicologia marxista, Vygotski analisa-as procedendo em seguida

a sua crítica. Essas teorias tentaram de alguma forma unir os dois caminhos (materialista e

idealista), contudo acabam subordinando um ao outro e recaindo em um dos dois pólos.

Assim, a verdadeira terceira via, encarnada pela psicologia histórico-cultural, apresenta-se,

como uma síntese (COLE e SCRIBNER, 1998) daquilo que vinha se fazendo no campo da

psicologia científica, tendo como base filosófica o materialismo histórico-dialético de

Marx. Cito: “Nossa tarefa não consiste em absoluto em diferenciar nosso trabalho de todo o

trabalho psicológico passado, mas em uni-lo num só conjunto sobre uma nova base com

tudo que foi estudado cientificamente pela psicologia” (VYGOTSKI, 1927/1997a, p.405).

No entanto, ao contrário da psicologia marxista que procurava em Marx uma teoria

psicológica, a psicologia histórico-cultural tinha no marxismo uma inspiração. Sobre isso

Vygotski adverte:

Há que saber o que se pode e o que se deve buscar no marxismo [...] o que precisamos encontrar em nossos autores é uma teoria que ajude a conhecer a psique, mas de modo algum a solução do problema da psique, a fórmula que contenha e resuma a totalidade da verdade científica (Ibidem, p.390).

E ainda:

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O que sim pode ser buscado previamente nos mestres do marxismo não é a

solução da questão, e nem mesmo uma hipótese de trabalho (porque estas são obtidas sobre a base da própria ciência), mas o método de construção [da hipótese – R.R.]. Não quero obter sem trabalho, pescando aqui e ali algumas citações, o que é a psique, o que desejo é aprender na globalidade do método de Marx como se constrói a ciência, como enfocar a análise da psique (Ibidem, p.391 – grifo do autor).

Chamamos atenção para a originalidade na forma de colocação do problema do

método na teoria vygotskiana. Sabendo ver na metodologia um problema, Vygotski não se

furtou em discuti-lo e avançar no sentido de uma formulação inovadora, sem se abster das

questões epistemológicas. O texto La consciencia como problema de la psicología del

comportamiento (1925/1997), é um exemplo da postura adotada em relação à questão

metodológica e ao problema da ciência. A idéia é que a psicologia, apesar de se querer

objetiva e de precisar atender a certos critérios de cientificidade, não pode abandonar o seu

objeto de estudo por excelência, que é a consciência. A questão passa a ser como estudar a

consciência cientificamente. Segundo Clot (1999), Vygotski poderia ter escrito como

G.Canguilhem (1973) que a psicologia tem necessidade de conhecimentos objetivos, mas

que uma pesquisa que perde de vista seu objeto não é, de modo algum objetiva. O próprio

Vygotski reconhece que:

Na criação e na investigação científica, a colocação correta de uma pergunta não é um ato de menor importância do que a elaboração da resposta adequada, e exige muito mais responsabilidade. A imensa maioria das investigações psicológicas modernas anota com sumo cuidado e exatidão a última fração decimal da resposta a uma pergunta formulada erroneamente em sua base (VYGOTSKI, 1927/1997a, p.293).

O método da teoria histórico-cultural é fundado na dialética marxista. Ela atravessa

toda a teoria, embora não seja uma mera aplicação da dialética marxista à teoria histórico-

cultural. Conforme a citação anterior, Vygotski quer apreender o método marxista em sua

totalidade, para a partir de então construir sua teoria, levando em consideração as

singularidades de seu campo.

A dialética, em seu sentido moderno, nasce com Hegel. Este pensador considera que

as oposições existem, não apenas na natureza, mas também no pensamento, e que estas

oposições não são simplesmente externas, entre termos, mas são intrínsecas a um mesmo

termo (“identidade de contrários”). No pensamento hegeliano tal oposição recebe o nome

de contradição. Neste sentido a contradição dialética diferencia-se da oposição mecânica.

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De acordo com Sève (1999), a contradição dialética pressupõe de início, como conteúdo

essencial, a “unidade indissolúvel dos contrários” e, em seguida, é posto em cena o

“trabalho do negativo”. Cabe ao trabalho do negativo o papel motor na circularidade

dialética. Cito:

A contradição do idêntico e do diferente, por exemplo, não é uma inerência estática de um negativo (o diferente) em relação a um positivo (o idêntico), mas sobretudo uma dinâmica negação da negação (aqui, a diferenciação do idêntico) onde se opera seu deslocamento (diferenciação, o idêntico torna-se determinado) (Ibidem, p.222).

Deste modo, o movimento dialético comporta quatro momentos: o imediato inicial,

a mediatização com a qual ele faz par, seu redobramento em mediatizante e o novo

momento no qual se resume todo o processo (Aufhebung, que é traduzido para o português

às vezes como síntese, superação, subsunção ou suspensão). Ao entender o movimento

dialético dessa forma, torna-se equivocadas as leituras da dialética como a tríade tese,

antítese e síntese. Neste último tipo de leitura perde-se o essencial que é o “incessante ato

produtivo da negatividade em cena na contradição, até que haja a subsunção.” (Ibidem,

p.223).

Para Sève, embora haja muitas concepções que se dizem dialéticas, apenas aquelas

que contemplam em suas explicações a questão da unidade dos contrários e do trabalho do

negativo são dignas de receberem tal nomeação. Neste sentido, tanto Hegel quanto Marx

trabalham com a dialética, ainda que esta compareça de forma singular nestes dois autores.

Hegel trabalha com uma “dialética genética” e Marx com uma “dialética apropriativa”

(Ibidem).

Em função da perspectiva idealista que atravessa a obra de Hegel, onde o

movimento do pensamento possui um modo de proceder universal que produz todo um

sistema de essencialidades puras da Lógica, a dialética hegeliana acaba sendo marcada por

uma orientação genética. A metáfora aí é a do engendramento em cadeia a partir da

semente, ou seja, um processo circular posto em cena por uma necessidade interna que o

orienta até um fim. Lembramos aqui a citação de Varela, Depraz e Vermersch a respeito da

lógica circular na dialética hegeliana10. Segundo Varela, Hegel cria a “lógica especulativa

10 Cf. 32.

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de aprendizagem no caminho” (VARELA, DEPRAZ e VERMERSCH, 2002, p.23), à qual

Varela irá se contrapor propondo uma lógica circular pragmática.

De acordo com Sève, Marx, ao desenvolver a dialética hegeliana sobre uma base

materialista, produz um desarranjo na concepção de dialética. A dialética não é mais autora

(no sentido idealista), mas tradutora do real. Ela se efetiva pela práxis, no concreto. Neste

sentido, não mais se trata de um desenvolvimento circular genético, mas de um

desenvolvimento transformador em uma história aberta. O caráter transformador advém da

práxis, que pressupõe uma atividade concreta no mundo. Pino explica: “O objeto de

conhecimento não é o real em si, tampouco um mero objeto da razão. Ele é um real

transformado pela atividade produtiva do homem, o que lhe confere um modo humano de

existência” (PINO, 2000, p.51). Note-se que a idéia de práxis, cara à teoria marxista,

também está na base da abordagem enativa. Sobre a noção de práxis, Varela, Depraz e

Vermersch esclarecem:

Sem entrar nos detalhes do conceito marxista de práxis [...] poderíamos dizer que a práxis corresponde à atividade humana, às transformações sociais e materiais da natureza e da sociedade, através das quais o processo mesmo de conhecimento e de teorização aparece sobre uma apropriação pratica pelo mundo e por si. Então, com Marx, o mito de um conhecimento puramente contemplativo ou representacional definitivamente desaparece, pela simples razão que toda teoria baseia sua dinâmica em uma prática (VARELA, DEPRAZ e VERMERSCH, 2002, p.161).

A distinção entre a dialética hegeliana e a marxista é fundamental para o nosso

trabalho, na medida em que queremos investigar as ressonâncias entre Vygotski e Varela, e

também a possibilidade de contribuições da teoria vygotskiana para uma concepção de

aprendizagem que tenha por base a noção de cognição inventiva, portanto que se afirme

para além da recognição ou da solução de problemas. Assim, interessa-nos investigar onde

na obra de Vygotski há elementos para pensarmos um processo que comporte a

transformação no sentido de criação. Nos parece, então, que a filiação da teoria histórico-

cultural à dialética marxista pode nos apontar um caminho. Note-se que:

Dizer que o pensamento dialético de Vygotski é marxista, significa sublinhar que ele não se reduz a um pensamento hegeliano. Não que Vygotski desconhecesse Hegel [...]. Mas a dialética de Hegel não poderia ser para ele (Vygotski) a referência principal, em particular por esta razão maior: sob sua poderosa universalidade de princípio, ela recobre como essencial uma forma particular de desenvolvimento – precisamente a forma genética [...]. É toda uma outra dialética

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que Vygotski quer revelar no desenvolvimento cultural do psiquismo humano [...] uma dialética não mais unicamente genética, mas apropriativa (SÉVE, 1999, p.238).

2.2- A questão do desenvolvimento: antes de tudo um problema de método

A questão do desenvolvimento aparece na obra vygotskiana mais como um

problema de método, do que como objeto de estudo. É em decorrência das exigências que o

materialismo histórico e dialético coloca ao estudo psicológico que Vygotski irá se

debruçar sobre o desenvolvimento. Assim, Cole e Scribner afirmam:

Quando Vygotsky fala de sua abordagem como privilegiadora do ‘desenvolvimento’, isso não deve ser confundido com uma teoria do desenvolvimento da criança. Na concepção de Vygotsky, essa abordagem constitui o método fundamental da ciência psicológica (COLE e SCRIBNER, 1998, p.9).

Para o autor russo a perspectiva histórica é a única possibilidade de estudo do

humano, na medida em que considera, com base no materialismo histórico-dialético, que é

apenas em movimento que um corpo manifesta sua existência e mostra o que é. Assim,

estudar algo historicamente é estudar seu movimento. Para Vygotski, o estudo histórico

requer a aplicação das categorias de desenvolvimento à investigação dos fenômenos

psicológicos. Ele escreve:

São ainda muitos os que seguem interpretando erroneamente a psicologia histórica. Identificam a história com o passado. Para eles, estudar algo historicamente significa o estudo obrigatório de um ou outro fato do passado. Consideram ingenuamente que há um limite impossível de transpor entre o estudo histórico e o estudo das formas existentes. Sem dúvida o estudo histórico significa simplesmente aplicar as categorias do desenvolvimento à investigação dos fenômenos. Estudar algo historicamente significa estudá-lo em movimento. Esta é a exigência fundamental do método dialético (VYGOTSKI, 1931/2000, p.67).

Portanto a história tem menos a ver com o passado do que com a dimensão temporal

do psiquismo.

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Vygotski (1929-2000) estabelece ainda uma diferença entre evolução e história11.

Enquanto a evolução está relacionada a regularidades, a história refere-se a uma postura

ativa no interior do tempo. Para Vygotski a peculiaridade do humano reside em que nele,

evolução e história estabelecem entre si uma relação dialética. O homem não é

simplesmente um produto passivo da evolução, porém, também não é, uma invenção

subjetiva. O homem é resultado de uma construção, ou poderíamos falar de uma invenção,

que se faz sobre limites e constrangimentos. Sua história escreve-se sobre o tênue equilíbrio

entre o passivo e o ativo, entre a regularidade biológica e a ativa produção de novidade.

A fim de esclarecer esta relação entre evolução e história no contexto da teoria

vygotskiana, trazemos uma passagem do artigo de Pino em que tece um comentário a

respeito do manuscrito de 1929 (VIGOTSKI, 1929/2000):

Na evolução das espécies ocorre um momento de ruptura quando a espécie homo desenvolve novas capacidades que lhe permitem transformar a natureza pelo trabalho, criando suas próprias condições de existência. Isto, por sua vez, permite ao homem transformar seu próprio modo de ser (cf.Marx, 1977, I, cap.7; Marx & Engels, 1982, pp. 70-71). Esse momento de ruptura não interrompe o processo evolutivo mas dá ao homem o comando da própria evolução. A história do homem é a história dessa transformação, a qual traduz a passagem da ordem da natureza à ordem da cultura (PINO, 2000, p.51 – grifo do autor).

É interessante observar que na distinção entre evolução e história revela-se uma

marca importante do pensamento vygotskiano. Trata-se da diferença entre o biológico e o

social ou entre a natureza e a cultura. Note-se que o que está em questão são diferenças e

não dicotomias (NUERNBERG e ZANELLA, 2003; PINO, 1992, 2000). No nível

biológico o tempo que passa afirma-se como evolução e é definido por Vygotski como um

processo marcado por regularidade e linearidade. O tempo que marca a dimensão social é o

tempo da história. Este tempo implica a atividade dos homens, sendo caracterizado não por

linearidade, mas por saltos e revoluções. Os saltos e revoluções que singularizam a história

são, portanto, conseqüências da ação do homem.

11 É importante não perder de vista o contexto no qual foi concebida a teoria histórico-cultural. Tal contexto marca as discussões sobre o tema da evolução e uso que essa teoria faz dessa noção (Nuernberg e Zanella, 2003). Hoje, contudo as discussões sobre essa temática têm assumido novos caminhos. Contemporaneamente, a evolução têm sido pensada menos como o progresso ou otimização e mais como produção de variações viáveis. Para maiores detalhes ver: Gould (2001), Varela, Thompson e Rosch (2003). Mais adiante discutiremos algumas conseqüências trazidas pelo pensamento evolucionista à teoria vygotskiana.

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P.P.Blonski foi um importante aliado de Vygotski na elaboração de tais idéias. Para

Blonski, assim como para Vygotski, “a conduta só pode ser compreendida como história da

conduta. Esta é a verdadeira concepção dialética em psicologia” (VYGOTSKI, 1931/2000,

p.68). A tese defendida por esses autores é que todo o estudo psicológico do homem deve

ser feito levando em conta a função do tempo. Isto porque é apenas no tempo que o homem

se constitui. Assim, entender o homem hoje implica estudar seu processo de formação.

Cabe considerar a observação realizada por B. Schneuwly (1999) a respeito do

conceito de desenvolvimento na obra vygotskiana. Ao propor a análise da teoria

vygotskiana a partir dos conceitos e referenciais utilizados pelo próprio Vygotski, coloca

que “podemos ler a obra vygotskiana como ilustração de sua própria concepção” (Ibidem,

p.268). Schneuwly afirma que o próprio conceito de desenvolvimento deve ser entendido

como estando em processo de desenvolvimento. Neste sentido, defende a existência de dois

momentos principais na obra do autor russo, que seriam marcados tanto por uma ruptura,

quanto por uma continuidade. Após apresentar como o conceito de desenvolvimento

comparece nestes dois momentos, Schneuwly propõe que este conceito se apresenta como

um projeto inacabado. O inacabamento deve-se a uma certa idéia de “(...)‘caminho

inelutável’ em direção a um fim, que será sempre o mesmo, e não como podendo assumir

formas diferentes e caminhar em direção a fins diferentes” (Ibidem, p.273). Ao adjetivar o

caminho do desenvolvimento pelo termo inelutável, o autor enfatiza a idéia de uma

tendência ou direção que pressupõe a apropriação da cultura e que limitaria o alcance do

conceito.

No entanto, argumenta Schnewly, a introdução da noção de significação, nos

últimos trabalhos de Vygotski, representa um avanço do conceito de desenvolvimento, na

medida em que traz à cena a possibilidade de pensar o psiquismo como um sistema. A

significação permite conceber não apenas a existência de agenciamentos e articulações no

psiquismo que se afirmam como rupturas e revoluções, dando origem a novas unidades, ou

novas formas de ser do psiquismo, como também colocam a questão dos diferentes ritmos

de desenvolvimento. Nas palavras de Vygotski:

Ao postular a unidade funcional da consciência, a psicologia assumia como fundamento de suas investigações (...) o postulado completamente falso, porém aceito tacitamente por todos mesmo sem formulá-lo com claridade, que consiste em reconhecer a invariabilidade e a constância das conexões interfuncionais da

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consciência e supor que a percepção está sempre e do mesmo modo ligada com a atenção, a memória está sempre e do mesmo modo com a percepção, o pensamento com a memória, etc. Isto implicou, naturalmente, que as conexões interfuncionais ficassem fora do parêntese na qualidade de constantes, sem ser levadas em consideração nas operações de investigação das diferentes funções isoladas. Como conseqüência, o problema das relações é, como temos dito, a parte menos estudada de toda a problemática da psicologia atual (Vygotski, 1934/2001, p.16).

No entanto, ressalta Schnewly, apesar dos avanços, o desenvolvimento resta ainda

como um processo que carece de um sentido verdadeiramente histórico ou cultural para que

possa ser apreendido em sua radicalidade. Cito:

Ele não o pensa (o desenvolvimento) como verdadeiramente histórico ou cultural, mas como um processo geral e universal da humanidade que iria de formas rudimentares de comportamento até as formas mais evoluídas, com uma ruptura essencial constituída pela aparição da escrita. A história é lida sobretudo verticalmente, e não horizontalmente como um processo de diferenciação (SCHNEWLY,1999, p.273).

Pino (1992, 2000) e Zanella (2004), assim como Schneuwly, vêem na significação a

possibilidade de ir além no conceito vygotskiano de desenvolvimento. Para os autores,

embora a cultura se apresente como destino no processo de constituição do psiquismo

humano, na medida em que se coloca o problema da significação e do desenvolvimento do

significado (VYGOTSKI, 1934/2001) abre-se espaço para se pensar processos de

desenvolvimento que conduzam a singularidades. Ainda que o que esteja em questão seja

um processo de apropriação da cultura, na medida em que esta apropriação é feita a partir

da ação e da produção de significados, então o resultado será sempre diferenciado.

Voltaremos a esta questão mais adiante.

Assim, embora para Vygotski estudar a formação do homem seja entender como ele

sai de um estado de primitivismo em direção a um estado de cultura, o modo como

entenderemos esse processo pode ser mais ou menos marcado pelo pensamento

evolucionista – em seu sentido de otimização de formas. Contudo, ainda que possamos

matizar o pensamento evolucionista na teoria vygotskiana, ele resta sendo um aspecto

problemático, como é o caso do estabelecimento de distinções entre o primitivo e o cultural.

Portanto, sem ignorar as contribuições de Pino e Zanella, acreditamos que a ressalva feita

por Schneuwly é, muitas vezes, pertinente. Ao considerar a história verticalmente, Vygotski

fez entrar um telos em sua rede teórica. O “estado desenvolvido de cultura”, representa

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assim um importante atrator para todo o desenvolvimento histórico-cultural. Sobre isso nos

parece interessante e esclarecedora a observação de Knox no prefácio do livro Escritos

sobre a história do comportamento: o macaco, o primitivo e a criança, escrito por

Vygotski e Luria: “O modo como Vygotsky trata o estágio superior de desenvolvimento

cultural é, contudo, essencialmente eurocêntrico” (1996, p.27).

Ainda em relação a esta discussão, é fundamental considerarmos o aspecto político

que subjaze tanto ao pensamento evolucionista que acredita no progresso, quanto à idéia de

desenvolvimento como apropriação da cultura. Neste sentido, é importante compreender

em que contexto essas idéias aparecem. A psicologia histórico-cultural assumiu como

compromisso a transformação da sociedade soviética. Dessa forma, as idéias de progresso e

apropriação da cultura objetivavam a democratização dos bens culturais a fim de que todos

os homens pudessem participar igualmente da nova sociedade que surgia. Visto desse

modo, o desenvolvimento como apropriação da cultura assume o caráter de um projeto

político. A apropriação da cultura está relacionada a um compromisso com a existência

humana que acredita na possibilidade de uma vida digna para todos. Cito Newman e

Holzman:

O objetivo prático de Vygotsky durante sua vida foi reformular a psicologia de acordo com a metodologia marxista, a fim de desenvolver modos concretos de lidar com as tremendas tarefas que se impunham à União Soviética – uma sociedade que tentava mover-se rapidamente do feudalismo para o socialismo (NEWMAN e HOLZMAN, 2002, p.16).

E ainda:

O trabalho empírico de Vygotsky e seus seguidores se concentrou em educação e prevenção, e se viu às voltas com analfabetismo, diferenças culturais entre as centenas de grupos étnicos que formavam a nova nação e ausência de serviços para os incapazes de participar plenamente da nova sociedade (Ibidem, p.17).

No mesmo sentido argumenta J.E. Knox:

Além disso, os tempos difíceis da Revolução Russa, os anos que se seguiram de guerra civil e a intranqüilidade política não tornavam o trabalho de pesquisador científico uma coisa fácil e grande parte do trabalho tinha que estar orientado para a solução de problemas sociais concretos, por exemplo o número crescente de bandos de crianças órfãs ou incapacitadas que precisavam ser educadas e

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transformadas em membros produtivos da nova sociedade soviética (KNOX, 1996, p.23).

2.3- Funções elementares e funções superiores

Vygotski não utiliza o conceito de cognição para se referir à linguagem, percepção,

memória, etc., mas sim o de funções psicológicas (ou psíquicas ou mentais). Estas se

diferenciam entre elementares e superiores, e, em seu conjunto, vão constituir a

personalidade, esta sendo entendida como uma unidade dialética. A fim de esclarecer a

noção de função, tal como utilizada por Vygotski, e também a dinâmica que ela engendra

cujo resultado final é a constituição de um psiquismo dinâmico, Pino afirma:

Se o caráter vago do termo ‘função’, tal como é usado por Vigotski, coloca certas dificuldades conceituais, por outro lado ajuda a conceber o psiquismo como algo dinâmico, que está sempre se (re)fazendo e em perpétuo movimento. Algo nos faz pensar na criação initerrupta no velho do novo, do significado dado na flutuação do sentido. Entendido assim, o termo função permite ver as ‘funções mentais’ de que fala Vigotski como um acontecer permanente. Conservando um certo grau de consistência e de continuidade, apresentam-se sempre sob o signo do novo. É claro que a capacidade de pensar, de falar, de registrar em memória, etc. são funções permanentes da pessoa, mas sujeitas às leis históricas das condições da sua produção [...]. Essas funções são portanto função dessas condições de produção, as quais não permanecem sempre necessariamente as mesmas (PINO, 2000, p.70).

De acordo com Vygotski, são as funções psicológicas superiores as que são, de

direito, do interesse da investigação psicológica, na medida em que possuem origem social,

sendo próprias do homem.

Para Vygotski, a diferença entre as funções elementares e as superiores é

fundamental para a compreensão adequada do problema. A confusão entre elas fez com que

muitas vezes, na história da psicologia, acabasse se estudando o homem, e o psiquismo

humano como quem estuda o animal. Vygotski adverte:

Quem vai discutir o fato de que a peculiaridade específica das formas superiores pode passar desapercebida, que é possível não se dar conta dela? Também a linguagem humana pode ser considerada como similar às reações fônicas dos animais e não perceber desde um certo ponto de vista suas diferenças principais. Talvez seja suficiente descobrir nas formas superiores do comportamento a existência de outras inferiores subordinadas, auxiliares. Mas toda a questão radica precisamente em conhecer qual é o valor cognitivo científico de semelhante postura de fazer vista grossa ante o específico, o distintivo e superior da conduta

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humana. Se pode, claro, fechar um olho, mas é preciso saber que ao fazê-lo o campo de visão inevitavelmente se restringe (VYGOTSKI, 1931/2000, p.75).

É interessante notar que ao longo de seus textos e em especial nas discussões sobre

as diferenças entre as funções psíquicas superiores e elementares, revela-se o diálogo entre

Vygotski e a reflexologia.

A reflexologia é uma corrente da psicologia - bastante influente na Rússia do século

XIX - que se constitui principalmente a partir dos estudos de I.P.Pavlov. Seu objetivo é

estudar a totalidade do comportamento humano tendo como base os reflexos (VYGOTSKI,

1931/2000, p.86). Vygotski, assim como grande parte dos psicólogos russos dos anos 20,

achava-se sob forte influência dos trabalhos de Pavlov. Se em seus primeiros trabalhos

Pavlov era uma referência importante, aos poucos foi sendo deixado de lado (VYGOTSKI,

1934/2001, p.90). No entanto, embora tenha se afastado da reflexologia pavloviana,

Vygotski construiu algumas das idéias mais importantes da psicologia histórico-cultural

com base em Pavlov. Neste sentido, Vygotski atribui ao método da “dupla sinalização”

pavloviano, uma intuição importante de sua teoria. Com base no método pavloviano

Vygotski elaborou o método da “dupla estimulação”.

Sobre a base de um mecanismo linear do tipo estímulo-resposta, Pavlov trabalha a

possibilidade de transformação de um estímulo neutro em estímulo condicionado, a partir

de seu pareamento com um estímulo não condicionado. O método vygotskiano da dupla

estimulação, também trabalha com a idéia da apresentação de dois estímulos na situação

experimental: um que se refere à tarefa a ser resolvida e outro, que a princípio não tem

função, mas que pode ser utilizado como estímulo auxiliar. O que está em questão para

Vygotski não é a realização do condicionamento, mas a possibilidade de construção de um

comportamento mediado através da utilização dos estímulos auxiliares. Trata-se portanto de

explicar como se constituem as funções psicológicas superiores.

Assim, através do método da dupla estimulação era possível reunir o plano físico e

mental e explicar como um se constitui de modo imbricado com o outro. Da reflexologia

interessa-lhe o materialismo. No entanto este ganha um novo sentido, em função da

filosofia materialista histórico-dialética. O homem não pode ser concebido apenas a partir

do mecanismo linear estímulo-resposta, ou seja, como um organismo que responde aos

estímulos do meio, como queria a reflexologia. Como ser histórico, o homem modifica

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ativamente o meio, modificando a si. Trata-se de um mecanismo circular. Citando Marx,

Vygotski afirma: “Ao atuar sobre a natureza externa mediante esse movimento, ao

modificá-la, o homem modifica ao mesmo tempo sua própria natureza – diz Marx –

Desperta as forças que dormiam nela e subordina a dinâmica dessas forças a seu próprio

poder” (Ibidem, p.85). É neste contexto que são desenvolvidas as principais noções da

teoria histórico-cultural, como por exemplo a de mediação e de autodomínio. É, portanto

com e contra a reflexologia que a teoria histórico-cultural se afirma. Cito Vygotski:

Mas por si só o princípio do reflexo condicionado resulta insuficiente para explicar a conduta do homem desde o ponto de vista psicológico porque, como já foi dito, este mecanismo ajuda apenas a compreender como as conexões naturais regulam a formação de conexões no cérebro e na conduta, quer dizer, nos ajudam a compreender a conduta em um plano puramente natural, mas não histórico (Ibidem, p.86).

As funções psicológicas elementares caracterizam-se por serem lineares e diretas. A

cada estímulo do mundo corresponde uma resposta. Estímulo e resposta são, neste sentido,

respectivamente, causa e efeito. Já as funções psicológicas superiores são indiretas e

apontam para uma circularidade, ou seja, pressupõem mediação entre o sujeito e o mundo.

Elas caracterizam-se pelo uso de signos e /ou instrumentos (ações instrumentais). Nelas, a

relação entre o estímulo e a resposta não é direta o que significa que estímulo e resposta

não desempenham papel de causa e efeito. A mediação estabelece um intervalo no esquema

S-R, fazendo aparecer a circularidade.

Enquanto as funções psicológicas elementares são de origem biológica, as

superiores são de origem social, ou seja constituem resultados das ações instrumentais (ou

mediações). Nas palavras de Vygotski:

As funções elementares têm como característica fundamental o fato de serem total e diretamente determinadas pela estimulação ambiental. No caso das funções superiores, a característica essencial é a estimulação autogerada, isto é, a criação e o uso de estímulos artificiais que se tornam a causa imediata do comportamento (VIGOTSKI, 1998, p.53).

Cabe apontar aí uma diferença entre o que Vygotski considera biológico e a

concepção de Varela da biologia. Conforme foi visto no capítulo anterior, para Varela o

biológico já é impregnado de história. Não é, portanto, um biológico natural, mas um

biológico histórico. Nas palavras de Maturana e Varela: “Para entendermos os seres vivos

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em todas as suas dimensões, e assim entendermos a nós mesmos, é necessário entender os

mecanismos que os tornam seres históricos” (MATURANA e VARELA, 1995, p. 96). Por

fenômeno histórico, Varela e Maturana entendem: mudança de estado decorrente de uma

modificação anterior. Neste sentido, na medida em que os seres vivos são definidos como

seres autopoiéticos, ou seja, seres que se auto-produzem dando origem a outras estruturas

autopoiéticas, diferentes da primeira, eles são seres históricos. Portanto, para Varela a

história não é um privilégio do humano, mas é próprio do vivo. O que define o vivo em

geral é sua possibilidade de ação que tem como conseqüência a transformação não apenas

do meio, mas do próprio ser vivo. Neste sentido, a adaptação de todo o ser vivo pressupõe a

atividade. Para Vygotski, diferentemente, é apenas o homem que é capaz de atividade,

apenas o homem possui uma adaptação ativa em relação ao meio (VYGOTSKI, 1931/2000,

p.84-85).

2.4 – Aprendizagem e desenvolvimento: processos de transformação temporal

A aprendizagem, diferentemente de outros processos cognitivos ou funções

psicológicas, não possui, na obra de vygotskiana, um capítulo específico. Ela é tematizada

principalmente nas relações ensino-aprendizagem e aprendizagem-desenvolvimento. Na

apresentação do conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) (VYGOTSKI,

1934/2001; VIGOTSKI, 1998, 2001b), Vygotski explicita que aprendizagem e

desenvolvimento não são sinônimos, mas que estabelecem entre si uma complexa relação

dialética que nunca deve ser perdida de vista. Esta relação é esclarecida quando o psicólogo

russo se refere às diferenças entre o processo de desenvolvimento dos conceitos científicos

e espontâneos. Note-se que os conceitos espontâneos são constituídos como resultado da

experiência da criança no mundo, já os conceitos científicos se constituem através de um

processo de ensino sistematizado (VYGOTSKI, 1934/2001, P.182). Vejamos:

Devemos admitir que a aparição de conceitos de tipo mais elevado, como são os conceitos científicos, não pode deixar de acusar a influência dos conceitos espontâneos surgidos anteriormente, já que nem uns, nem outros, estão encapsulados na consciência da criança, nem estão separados por uma parede intransponível. Não fluem por canais isolados, mas encontram-se imersos em um processo de contínua interação, que deverá ter como resultado inevitável o fato de que as generalizações da estrutura superior, próprias dos conceitos científicos,

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produzam mudanças estruturais nos conceitos espontâneos (VYGOTSKI, 1934/2001, p.194).

Tal forma de colocar o problema amplia em muito tanto as possibilidades do

conceito de desenvolvimento, como do de aprendizagem. Vygotski avança em relação a

maior parte dos teóricos do desenvolvimento e da aprendizagem na medida em que

considera o desenvolvimento não apenas como resultado de um amadurecimento biológico,

mas como um processo que, em função da atividade humana (ação instrumental), implica

saltos e revoluções (VYGOTSKI, 1931/2000). Por outro lado, afirma que a “boa

aprendizagem” é aquela que se antecipa ao desenvolvimento, orientando-o (VIGOTSKI,

1998; 2001b): “Todo o processo de aprendizagem é uma fonte de desenvolvimento que

ativa numerosos processos, que não poderiam desenvolver-se por si mesmos sem a

aprendizagem” (VIGOTSKI, 2001b, p.115).

De acordo com Vygotski, para que possamos estudar o desenvolvimento em toda a

sua complexidade, é preciso que sejam superadas duas formas de pensar: o preformismo e o

evolucionismo12.

O preformismo ou teoria da preformação origina-se na embriologia e tem como

suposição básica a idéia de que o embrião carrega em si um organismo plenamente

acabado, já formado, porém em proporções reduzidas. Este tipo de teoria deu origem, num

período pré-psicologia científica (ARIÈS,1986), à idéia de que as diferenças entre crianças

e adultos são apenas quantitativas. A criança é, portanto, um adulto em miniatura. Vygotski

ressalta que embora o preformismo não apareça explicitamente nas teorias psicológicas, ele

segue estando na base de muitas investigações. Nas palavras do autor:

Apesar de que na formulação científica geral sobre a criança já se abandonou faz tempo a idéia de que a criança diferencia-se do adulto apenas por suas proporções de corpo, por seu volume, esta idéia segue existindo na psicologia infantil de forma encoberta. Nenhum tratado de psicologia infantil pode repetir agora abertamente as verdades há tempo refutadas de que a criança é um adulto em miniatura, entretanto, semelhante concepção perdura, na forma oculta, em quase todas as investigações psicológicas (Vygotski, 1931/2000, p.140).

12 Quando Vygotski refere-se ao desenvolvimento este é tanto ontogenético quanto sociogenético, ou seja diz respeito tanto à história de desenvolvimento do ser, quanto à história de desenvolvimento cultural. Estes dois desenvolvimentos são indissociáveis para a concepção histórico-cultural (Vygotski, 1931/2000).

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Para Vygotski a orientação preformista que subsiste na base de muitas teorias do

desenvolvimento faz com que elas não consigam dar conta das especificidades positivas do

comportamento infantil.

O mesmo se passa em relação ao comportamento das pessoas a quem hoje

nomeamos “portadoras de necessidades especiais”. Para o autor russo o estudo do

desenvolvimento deve debruçar-se justamente sobre as peculiaridades positivas, e não

sobre o que falta a criança para se tornar um adulto, ou sobre o que falta a pessoa com

deficiência para se tornar mais parecida com a normalidade. A questão orientadora dos

estudos de desenvolvimento deixa de ser “o que ainda não tem essa criança?”, “o que falta

a ela desenvolver?”, e passa a ser “como através daquilo que ela apresenta e do contexto

sócio-histórico em que está inserida, ela se constrói?” ou “como a partir do que ela tem ela

constrói uma vida?”. Dessa forma Vygotski afirma:

Todos os métodos nos falam daquilo que não tem a criança em comparação com o adulto e do que não tem a criança anormal em comparação com a normal. Temos sempre presente o ‘negativo’ de sua personalidade, o negativo que nada nos diz das peculiaridades positivas que diferenciam a criança do adulto e a criança anormal da normal (Ibidem, p.141).

A passagem de um enfoque negativo do desenvolvimento para um positivo implica

uma radical mudança naquilo que se entende por desenvolvimento. Neste sentido a

concepção vygotskiana rompe com a idéia hegemônica de desenvolvimento como um

processo simplesmente orgânico de amadurecimento, que segue um caminho linear e

seqüencial, e passa a concebê-lo como um processo dialético. Ou seja, o desenvolvimento

para Vygotski é um processo que se faz através de ‘choques’ ou contradições, no embate

com o mundo. Estes decorrem da diferença entre aquilo que se sabe, e aquilo que ainda não

se sabe. Trata-se do problema da aprendizagem, que está na base da concepção vygotskiana

de desenvolvimento. Assim, Vygotski define o desenvolvimento infantil:

Trata-se de um complexo processo dialético que se distingue por uma complicada periodicidade, a desproporção no desenvolvimento das diversas funções, as metamorfoses ou transformação qualitativa de umas em outras, um entrelaçamento complexo de processos evolutivos e involutivos, o complexo cruzamento de fatores externos e internos, um complexo processo de superação de dificuldades e de adaptação (Ibidem, p.141).

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O evolucionismo é o segundo momento a ser superado. Ele veicula uma concepção

de desenvolvimento que pressupõe que esse se faça por uma acumulação lenta e gradual de

mudanças isoladas (Ibidem, p.141). A metáfora das concepções evolucionistas de

desenvolvimento é a do crescimento das plantas. Para Vygotski as concepções de

desenvolvimento pautadas no evolucionismo acabam por não enxergar os momentos mais

importantes, que são aqueles de mudanças cruciais e revolucionárias, quando o que vinha

antes não é capaz de explicar o que apareceu depois. Uma questão importante a ser

ressaltada é que para Vygotski esses momentos revolucionários não são a exceção, mas a

regra no desenvolvimento. É ai que se encontra o próprio desse processo.

Assim, embora Vygotski não desconsidere a idéia de evolução, que é inclusive uma

noção importante no conjunto de sua teoria, ele a concebe sobre bases outras que não a do

evolucionismo. A evolução diz respeito menos à noção de um caminho reto de

acumulações graduais e mais a uma idéia de um caminho que se faz por rupturas e saltos, e

que tende à apropriação da cultura. Nas palavras de Vygotski:

Uma consciência ingênua considera que são incompatíveis a revolução e a evolução, que o desenvolvimento histórico segue produzindo-se a medida em que se atém a uma linha reta. A consciência ingênua não vê mais do que catástrofes, ruína e ruptura quando se rompe uma trama histórica e produzem-se mudanças e saltos bruscos. A história deixa de existir para ela enquanto não retome o caminho reto e uniforme (Ibidem, 141).

As rupturas não são paradas do processo histórico, mas garantias de sua

continuidade. Elas fazem parte do processo de desenvolvimento. Elas são condição da

manutenção do desenvolvimento e da história. É neste sentido que Vygotski afirma que o

desenvolvimento infantil afasta-se de um processo estereotipado que caminha na direção de

formas estabelecidas. De acordo com Vygotski:

O processo de desenvolvimento infantil não se parece em absoluto a um processo estereotipado, ao resguardo de influências externas; o desenvolvimento e a mudança da criança, produzem-se em uma ativa adaptação ao meio exterior. Neste processo originam-se cada vez formas novas e não se reproduzem simplesmente de modo estereotipado os elos da cadeia antes formada (Ibidem, p.142).

O desenvolvimento afirma-se na medida em que cada nova etapa surge em

decorrência, não de potencialidades implícitas na fase anterior, mas de um “choque real

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entre o organismo e o meio, o resultado da ativa adaptação ao meio” (Ibidem, p.143).

Portanto, o desenvolvimento só se efetiva se o sujeito estiver no mundo, - agindo - sujeito a

“choques”. Sobre isso Vygotski afirma: “Há de se introduzir na história do

desenvolvimento infantil o conceito de conflito, quer dizer, de contradição ou choque entre

o natural e o histórico, o primitivo e o cultural, o orgânico e o social” (Ibidem, p.303).

Uma conseqüência importante dessa nova forma de colocar o problema é que não

existe referência a uma seqüência invariante de estágios no processo de desenvolvimento.

Note-se que desde a definição do que seja o desenvolvimento até a impossibilidade da

enumeração de estágios pré-estabelecidos, Vygotski vai afastando-se da maioria das

concepções sobre o desenvolvimento, e em especial da teoria piagetiana. É interessante

observar que ao longo da construção de sua teoria, Vygotski dialoga com Piaget, e explicita

as diferenças entre as suas concepções (Ibidem, p.151; Vygotski, 1934/2001, p.192) 13.

A nosso ver, a forma vygotskiana de pensar o desenvolvimento só é possível pois

pressupõe que haja um aprendizado na base do desenvolvimento, um aprendizado que

pressupõe a ação (instrumental) e que responde pela interiorização de novas formas

culturais, transformando o que é aprendido e quem aprende. A aprendizagem, portanto, não

se esgota num processo de aquisição e acumulação de conteúdos, ela também produz

desenvolvimento. Com isso não reduzimos a importância dos conteúdos, mas consideramos

que a aprendizagem em sua potência maior revela-se quando saímos diferentes desse

processo. Vygotski chama isto de “boa aprendizagem”.

Assim, o que está em questão no processo de desenvolvimento ou mais

especificamente, na unidade dialética aprendizagem-desenvolvimento, é um processo de

construção de si. Este não pode ser concebido sem seu correlato que é a construção do

mundo. Neste sentido, com base tanto na idéia da unidade dialética aprendizagem-

desenvolvimento quanto na noção de construção da cognição ou do psiquismo, buscaremos

em Vygotski contribuições para repensar a aprendizagem. Escolhemos três pontos para

serem examinados: a) a discussão sobre a formação das funções psíquicas superiores pelas

mediações e internalizações, b) a noção de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) e, c)

13 Não nos deteremos na análise das relações entre as teorias piagetiana e vygotskiana. Embora seja um tema interessante, foge dos objetivos desta dissertação.

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os textos sobre defectologia, onde é apresentada a noção de vias colaterais de

desenvolvimento.

2.4.1– Sobre o mecanismo histórico-dialético: mediações e internalizações

Tendo por base a afirmação de Zanella, iniciamos este tópico:

O que vem a ser aprendizagem e desenvolvimento para Vygotski? Em vários contextos Vygotski refere-se à aprendizagem em contexto escolar, porém suas discussões a respeito da constituição do psiquismo levam a crer que, para o autor, aprender não se resume à apropriação de conteúdos científicos em um contexto de escolarização formal, apesar da importância que assume em nossa sociedade. Ao invés dessa limitação, podemos entender que o aprender, na perspectiva histórico-cultural, consiste na apropriação da cultura (ZANELLA, 2001, p.94-95).

Embora Vygotski não explicite de modo claro o mecanismo da unidade dialética

aprendizagem-desenvolvimento, acreditamos ser possível avançar nos apoiando no

exemplo do desenvolvimento do gesto indicativo (VYGOTSKI, 1931/2000, p.149-150).

Sobre o gesto indicativo Vygotski afirma que ele constitui a base primitiva de

desenvolvimento de todas as formas superiores de comportamento. Neste sentido ele

constitui a unidade mais simples para compreendermos o mecanismo de formação ou de

construção das funções psíquicas superiores. O gesto indicativo é em princípio uma

tentativa fracassada de agarrar algo. A mãe aparece e interpreta o gesto da criança,

atribuindo a ele uma significação. A criança passa, então, a se relacionar com o mundo a

partir da significação da mãe. Só mais tarde, a criança internaliza a significação. Nas

palavras de Vygotski:

A criança, portanto, é a última a tomar consciência de seu gesto. Seu significado e funções determinam-se a princípio pela situação objetiva e depois pelas pessoas que rodeiam a criança. O gesto indicativo começa a ser definido pelo movimento que os demais compreendem, apenas mais tarde converte-se em indicativo para a própria criança (Ibidem, p.150).

A aprendizagem estará sendo pensada neste momento, então, a partir das noções de

mediação e de internalização. Conforme vimos, a mediação é uma conseqüência do ser

social do homem, ou seja, decorre do fato de que o homem não se relaciona de maneira

direta nem com a natureza e nem com outros homens. É apenas através das mediações ou,

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em outros termos, das ações instrumentais, que o mundo vai ganhando sentido e que o

homem vai se constituindo. As ações instrumentais são ações que utilizam instrumentos ou

signos – inventados pelo homem (PINO, 2000, p.57) - na relação com o mundo. Elas

caracterizam-se pela possibilidade de alterar a natureza, e dessa forma alterar o próprio

homem: “Para a adaptação do homem tem especial importância a transformação ativa da

natureza do homem, que constitui a base de toda a história humana e pressupõe também

uma imprescindível mudança ativa da conduta do homem” (VYGOTSKI, 1931/2000,p.84-

85). Newman e Holzman (2002) explicam esse processo de constituição do sujeito

afirmando que os instrumentos são inicialmente “externos”, ou seja, são inicialmente

usados sobre a natureza ou na comunicação com “outros”. No entanto, na medida em que

agem sobre a natureza ou sobre os outros homens, eles afetam o próprio usuário,

modificando-o.

Embora instrumentos e signos possam ser equiparados no que diz respeito a sua

função mediadora, eles portam uma diferença importante. Os instrumentos agem

fundamentalmente sobre a natureza, enquanto os signos agem sobre outros homens e sobre

si mesmo (VIGOTSKI, 1998). Neste sentido, é apenas por meio dos signos que se pode

compreender o processo de internalização, ou da constituição do psiquismo a partir das

ações mediadas. Dito diferentemente, é apenas por meio dos signos que se pode explicar a

importante frase de Vygotski: “O homem é um agregado de relações sociais encarnadas

num indivíduo” (VYGOTSKI, 1929/2000, p.33).

A linguagem é, para o homem, o principal sistema de signos. Assim, ela ocupa na

teoria vygotskiana um lugar central e é por meio dela que será explicada a constituição do

psiquismo:

A um novo tipo de conduta deve corresponder forçosamente um novo princípio regulador da mesma, e o encontramos na determinação social do comportamento que se realiza com ajuda dos signos. Dentre todos os sistemas de relação social o mais importante é a linguagem (VYGOTSKI, 1931/2000, p.86).

Dito de maneira mais específica, é em sua dimensão de significação que a

linguagem ou os signos possibilitam a construção de um sujeito e de um mundo. Pino

explica:

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A problemática colocada pelo papel das relações sociais na constituição cultural do homem nos conduz à outra questão: a do mecanismo que possibilita a conversão dessas relações em função do indivíduo e em formas da sua estrutura. Esse mecanismo é a significação veiculada-produzida pela ‘palavra do outro’. Como mostrei em outro lugar (Pino, 1992), o objeto a ser internalizado é a significação das coisas, não as coisas em si mesmas. Portanto o que é internalizado das relações sociais não são as relações matérias mas a significação que elas têm para as pessoas. Significação que emerge na própria relação (PINO, 2000, p.66).

Note-se que a significação emerge de um processo que envolve a participação de

um outro, sendo portanto social e relacional. Em seus últimos trabalhos Vygotski

(1934/2001) centra-se especificamente na questão da significação, mostrando que o

significado também se desenvolve. Assim, a significação nos permite explicar como nos

constituímos na e pela cultura de maneira singular.

Voltemos à questão das mediações e ao mecanismo de constituição do sujeito. As

mediações são, a princípio externas (interpsíquicas) mas, em um determinado momento,

por um processo de internalização, tornam-se intrapsíquicas. É importante esclarecer que a

internalização tem aqui um caráter bastante singular. De acordo com Pino (1992), a noção

de internalização traz implícita a idéia de uma dicotomia entre o externo e o interno, que

por sua vez está relacionada a um certo entendimento do homem e das relações entre

natureza e cultura, que não se encaixa ao referencial teórico utilizado por Vygotski. Nas

palavras de Pino:

O ponto de vista sustentado aqui é que o conceito de internalização veicula uma visão dualista e naturalista do homem e do social, a qual não corresponde à visão que deles tem o modelo histórico-cultural de psicologia. Trata-se, portanto, de um conceito inadequado, pois o que se quer dizer com ele não corresponde ao que ele realmente diz (Ibidem, p.316).

Partindo do pressuposto de que as funções psíquicas são de origem social, o autor

russo contrapõe-se à maior parte das psicologias que vêem no indivíduo a origem destas

funções. Assim, a internalização de que fala Vygotski diz respeito a uma reconstrução no

plano pessoal (o que está em questão aqui é o problema da significação tal como abordado

acima) daquilo que antes era social, portanto realizado no encontro com os outros através

das mediações. É importante esclarecer que essa reconstrução não é guiada por um sujeito

(por um si), mas a própria reconstrução produz o si (ZANELLA, 2003; VIGOTSKI, 1929-

2000, p.25). O processo de apropriação faz-se entre

sujeitos, e o de internalização entre

o

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91

sujeito e si mesmo, não podendo nunca ser atribuído a um si já constituído (ZANELLA,

2003). Pino explica: “A significação não pertence nem à ordem das coisas nem à das suas

representações, mas à ordem da intersubjetividade anônima em que ao mesmo tempo que é

por ela constituída é constituinte de toda a subjetividade” (PINO, 1992, p.322 – grifo

nosso). Além disso, esse processo não é resultado de um caminho espontâneo ou

necessário, mas faz-se a partir de choques e contradições que ocorrem a partir das ações.

Trata-se de construções. Cito Vygotski: “A história da personalidade só pode ser afirmada e

relatada como história onde inúmeros fios se cruzam e é apenas nesse cruzamento que a

história se faz” (VYGOTSKI, 1931/2000, p.330). E ainda: “O mais básico consiste em que

a pessoa não somente se desenvolve, mas também constrói a si. Construtivismo. Mas

‘contra’ o intelectualismo (compare construção artística) e o mecanicismo (compare

construção semântica)” (VIGOTSKI, 1929/2000, p.33).

No princípio não há sujeito constituído, há apenas reflexos (funções elementares) e

há inserção em um contexto social. Poderia-se falar em uma situação ideal inicial onde

houvesse apenas reflexos na criança e, então, as ligações da criança com o mundo

decorreriam apenas desses reflexos. Ideal pois desde o nascimento, desde o primeiro

minuto de vida, a criança está lançada em um contexto sócio-cultural. É Vygotski quem

afirma: “Para o homem de hoje inclusive o meio natural só pode ser parte do meio social e

não pode haver nexo algum fora das relações sociais” (VYGOTSKI, 1926/1997, p.157). A

partir do momento em que a criança nasce, a relação dela com o mundo nunca é direta, mas

mediada. E é através dessas mediações que a subjetividade da criança vai se constituindo.

Em um primeiro momento a mediação é feita principalmente pelos adultos que a cercam e

que vão olhar para ela, falar com ela, alimentá-la, etc. Esses adultos conferem um primeiro

significado para o mundo, fornecendo as primeiras conexões que serão utilizadas. É através

desses adultos, mais especificamente do olhar, da fala que a criança será apresentada ao

mundo. A mediação feita pelo adulto, neste momento, é talvez a criação do mundo mais

fundamental e a partir do qual a criança vai se fazer.

A “descoberta” dos instrumentos e posteriormente da linguagem, conforme

adiantamos, constituem momentos cruciais para a constituição e desenvolvimento do

sujeito cultural. Essas descobertas fazem-se sobre a base das mediações iniciais, e implicam

na apropriação de novos mediadores, que modificarão a um só tempo a criança, o mundo e

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a relação desta com o mundo. É interessante observar que Vygotski, ao comentar os

experimentos de Köhler, refere-se ao uso de instrumentos como um processo de invenção.

Nas palavras do autor russo: “As ‘invenções’ dos macacos na preparação e uso de

instrumentos ou no emprego de vias indiretas (rodeios) durante a resolução de diferentes

tarefas, constituem indubitavelmente uma fase inicial no desenvolvimento do pensamento,

mas uma fase pré-linguística” (VYGOTSKI, 1934/2001, p.91). Caberia perguntar se o que

está em questão no processo de apropriação de novos mediadores não é também um

processo de invenção? Não apenas invenção de mediadores, mas principalmente do sujeito

e de seu mundo.

Chamamos atenção para o fato de que o processo de descoberta de novos

mediadores implica uma atividade, ou um agir que possibilita a criança a viver os choques e

as contradições necessárias a seu desenvolvimento que estamos procurando entender como

um processo de invenção ou criação. Cito Vygotski: “Esta faculdade de compor um edifício

com esses elementos, de combinar o antigo com o novo, estabelece as bases da criação”

(VYGOTSKI, 2003, p.12). E ainda: “A compreensão científica desta questão nos faz ver na

função criadora mais uma regra que uma excessão” (Ibidem, p.11).

Tais mediações básicas são comuns a todos que estejam inseridos em um contexto

sócio-cultural humano e que sejam dotados dos cinco sentidos:

Todo o aparato da cultura, tanto exterior como relacionado com as formas de comportamento, está pensado para seres humanos normais psíquica e fisiologicamente. Toda nossa cultura está destinada a pessoas dotadas de certos órgãos, mãos, olhos, ouvidos e determinadas funções cerebrais. Todas nossas ferramentas, toda a técnica, todos os signos e símbolos estão idealizados para um tipo humano normal. A isso deve-se a ilusão da convergência da transição espontânea das formas naturais às culturais que, de fato, não pode existir pela própria natureza das coisas (VYGOTSKI, 1931/2000, p.310).

Um outro salto ocorre quando esses mediadores são internalizados. É curioso

observar que muitas vezes, por terem as mediações internalizadas, confunde-se o

comportamento do adulto com o da criança. Parece, do ponto de vista do observador, que

tanto o adulto quanto a criança agem no mundo sem mediações. Contudo a aparente

imediatidade no comportamento adulto decorre, não de uma relação direta com o mundo,

do tipo S-R, mas em função de uma internalização da mediação. A aparente imediatidade

do comportamento adulto apresenta-se como uma conquista, resultado de um longo

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processo de aprendizagem, este entendido em sentido mais amplo. O comportamento do

adulto permanece mediado, no entanto, os signos são agora, internos. Isso não significa que

os adultos não possam fazer uso de mediadores externos, e muitas vezes, dependendo da

tarefa em questão, eles o fazem. Sobre isso Vygotski observa:

A última fase, superior, no desenvolvimento de algum processo revela uma semelhança puramente fenotípica com as fases primárias ou inferiores e quando o processo é abordado desde o ângulo fenotípico perde-se a possibilidade de distinguir a forma superior da inferior (VYGOTSKI, 1931/2000, p.105).

Assim o desenvolvimento das funções psíquicas superiores, ou a aprendizagem que

implica a criação ou transformação do sujeito e do mundo, caminha, na teoria vygotskiana,

no sentido de um arraigamento do social em si, através das mediações. Vemos assim

confundirem-se os planos individual e social: “A personalidade torna-se para si aquilo que

ela é em si, através daquilo que ela antes manifesta como seu em si para os outros”

(VIGOTSKI, 1929/2000, p.25).

A idéia de um arraigamento do social em si faz Tudge (1996) referir-se à presença

de uma “teleologia relativista” na teoria de Vygotski. Embora o desenvolvimento implique

e pressuponha a aprendizagem, ele caminha em direção à apropriação da cultura através das

mediações. O desenvolvimento cultural seria alcançado quando o sujeito, através da

internalização das mediações, antes externas, desenvolvesse a capacidade de autodomínio

(VYGOTSKI, 1931/2000). Conforme já discutimos, embora não possamos desconsiderar

este tipo de observação que aponta para um certo limite da teoria vygotskiana, é preciso

relativisá-la.

Sobre a noção de autodomínio é importante esclarecer que ela se refere ao fato do

sujeito ser determinado socialmente, e não pelo ambiente. O autodomínio pressupõe a

capacidade de criação de mediadores na relação com os outros e com o mundo de modo a

poder “controlar” a própria conduta. Cito Vygotski: “Nosso domínio sobre os próprios

processos de comportamento se constrói, em essência, da mesma maneira que nosso

domínio sobre os processos da natureza, já que o homem que vive em sociedade está

sempre sujeito à influência de outras pessoas” (Ibidem, p.290). Note-se que este “controlar

a própria conduta” não se faz a partir de um “Eu” senhor da vontade, mas pressupõe o uso

de mediadores. Portanto é apenas através do social que o controle sobre a própria conduta

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acontece. Cito Vygotski: “O ‘Eu’ consciente, ou participa muito pouco nessas reações, ou

não participa em absoluto” (Ibidem, p. 292). E ainda: “O paradoxo da vontade está em que

formamos graças a sua ajuda, um mecanismo que não atua voluntariamente” (Ibidem,

p.293).

É interessante perceber que embora Vygotski, diferentemente de Piaget, não

trabalhe com a idéia de estágios fixos pré-estabelecidos, ele estabelece, por um lado,

algumas etapas ou estágios gerais para o desenvolvimento, e por outro, realiza uma certa

periodização do desenvolvimento (VYGOTSKI, 1932/1996). Com relação às etapas gerais,

elas referem-se a tipos de relações que se estabelecem entre o sujeito e o mundo, entre o

sujeito e os outros e entre o sujeito e si, ao longo do processo de aprendizagem-

desenvolvimento, que possibilitam a constituição do próprio sujeito. “Neste sentido, todo o

desenvolvimento cultural passa por três estágios: em si, para outros, para si” (VYGOTSKI,

1929/2000, p.24). Neste sentido estas etapas ou estágios gerais aparecem como invariantes

que possibilitam a variação. Ou seja, o que está definido aí não é o conteúdo de cada etapa,

mas um certo movimento que torna possível a produção da subjetividade. Já a idéia de uma

periodização causa um certo estranhamento em face da própria colocação do problema do

desenvolvimento na teoria vygotskiana. Como pensar uma periodização possível se o

desenvolvimento se faz por choques e contradições que acarretam saltos e revoluções?

Como pensar uma periodização em um processo de desenvolvimento que pressupõe o

aprender? Em que a periodização de Vygotski diferencia-se da de Piaget? Aqui duas

hipóteses são possíveis: Poderíamos pensar que a periodização decorre da teleologia

relativista, a qual Tudge se refere, e que conforme ressaltamos no início do capítulo, acaba,

algumas vezes, por minar a originalidade dos conceitos vygotskianos. A segunda hipótese é

pensar que esta periodização decorre de uma possibilidade gerada pela realização das

pesquisas em um contexto de uma certa estabilidade sócio-cultural. Se Vygotski tivesse

desenvolvido suas investigações em uma outra época, talvez ele não pudesse ter concebido

a referida periodização. Note-se que o que está na base da concepção vygotskiana de

desenvolvimento é a idéia de revolução, então, como conciliar revolução e previsibilidade?

Assim, embora não pudesse afirmar como Piaget quatro estágios, sua ordenação e suas

características, Vygotski conseguiu delinear alguns períodos que se definem por suas crises.

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As duas hipóteses não são excludentes e chamam atenção para certas singularidades da

teoria vygotskiana.

2.4.2 – Aprendizagem e a Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP)

O conceito de ZDP é um dos conceitos mais conhecidos e comentados da teoria

histórico-cultural (MOLL, 1996; ZANELLA, 2001; NEWMAN e HOLZMAN, 2002). Ele

foi cunhado por Vygotski para dar conta da relação entre aprendizagem e desenvolvimento.

De maneira mais específica poderíamos dizer que a preocupação de Vygotski era dar conta

das relações entre a educação e o desenvolvimento14 (VYGOTSKI, 1934/2001).

Através da ZDP o psicólogo russo enfatiza o papel crucial e transformador que a

educação ou a aprendizagem – em sentido mais geral – exerce sobre o processo de

desenvolvimento. Note-se que a ZDP é trabalhada não apenas no contexto escolar, mas

também quando Vygotski se refere à imitação e a brincadeira (Ibidem; VIGOTSKI, 1998;

2001b). Portanto, a relação entre aprendizagem e desenvolvimento faz parte da vida, sendo

essencial na explicação do modo como nos constituímos.

Para Vygotski, a relação entre aprendizagem e desenvolvimento, fundamental para

entender e explicar a gênese das funções psíquicas superiores, foi estudada de modo vago,

obscuro e pouco crítico (VIGOTSKI, 1998). Assim, ele dividia as teorias psicológicas em

três grupos em função da forma como entendiam as relações entre aprendizagem e

desenvolvimento (Ibidem; Vigotski, 2001b):

Para o primeiro grupo, aprendizagem e desenvolvimento eram considerados

processos independentes entre si. O desenvolvimento era explicado e entendido apenas

como um processo de maturação, e a aprendizagem era a utilização das oportunidades

criadas pelo desenvolvimento. Nas palavras de Vygotski: “Admite-se, portanto, a existência

de uma relação unilateral: a aprendizagem depende do desenvolvimento, mas o curso do

desenvolvimento não é afetado pela aprendizagem” (VIGOTSKI, 1998, p.118). É este tipo

14 Note-se que aqui estamos diante de mais um problema de tradução. Conforme observa Newman e Holzman (2002): “Vygotsky usou o termo russo obuchenie, que se refere tanto a ensinar como a aprender. Desde Vygotsky (1978 – tradução de Cole et al.), tornou-se convenção referir-se à relação entre aprendizagem (learning) e desenvolvimento, em vez de instrução (ou ensino) e desenvolvimento” (Ibidem, p.71). Contudo, nas traduções espanholas o termo usado é ensino e/ou instrução. Neste trabalho não procuraremos fazer diferença entre ensino e aprendizagem, trabalhando com os dois no mesmo sentido.

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de concepção que, segundo Vygotski, está na base da teoria piagetiana (VIGOTSKI, 2001b,

p.103). Para Piaget a construção da inteligência da criança segue necessariamente certas

fases e estágios, independente de qualquer tipo de instrução, ensino ou aprendizagem.

O segundo grupo iguala os processos de aprendizagem e desenvolvimento,

entendendo os dois, como processos de associação concorrendo para a formação de hábitos.

Para Vygotski, tanto as teorias do primeiro grupo quanto as desse segundo grupo vêem o

desenvolvimento como um processo de elaboração e substituição de respostas inatas,

cabendo à educação apenas organizar os hábitos de conduta e as tendências

comportamentais adquiridas. Vygotski propõe como representante desse segundo grupo

W.James.

O terceiro grupo é representado pela teoria gestaltista. De acordo com Vygotski há,

por parte dos gestaltistas, uma tentativa de dar conta da relação entre aprendizagem e

desenvolvimento através da reconciliação dos dois grupos apresentados acima. No entanto

para os gestaltistas, em especial para Koffka, o desenvolvimento é sempre maior do que o

aprendizado, uma vez que esta teoria pressupõe haver uma certa ordem intelectual capaz de

tornar possível a transferência dos aprendizados em uma certa área, ou de uma certa tarefa,

para outras áreas ou tarefas.

Portanto é contra essas três posições que o psicólogo russo afirma o conceito de

ZDP. Para Vygotski a solução adequada para o problema da relação entre desenvolvimento

e aprendizagem deveria comportar a análise da relação geral entre esses dois processos, e as

mudanças que se produzem em função da entrada da criança na escola. Assim, Vygotski

considera importante a distinção entre o aprendizado formal ou escolar, do aprendizado

espontâneo.

Conforme vimos no ponto anterior, desde o primeiro dia de vida da criança as

relações entre aprendizagem e desenvolvimento se fazem sentir (Ibidem, p.110). O

aprendizado não tem início na escola, mas começa a partir do momento em que a vida se

inicia. O aprendizado espontâneo, diferentemente do aprendizado formal, tem por base a

experiência concreta da criança, sua vivência. Quando a criança entra em uma instituição

de ensino formal uma transformação importante acontece na forma como ela passa a

aprender. Na escola o que está em jogo é o aprendizado de conhecimentos científicos, que é

estruturado e sistematizado para que as crianças possam se apropriar dele da melhor forma.

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Toda a apropriação do conhecimento científico fornecido pela escola, ou, em outros termos,

todo o aprendizado formal faz-se com base no aprendizado espontâneo e, por outro lado o

aprendizado formal implica o estabelecimento de uma outra relação da criança com o

conhecimento espontâneo (VYGOTSKI, 1934/2001, p.250). Através do aprendizado

formal, a criança passa a reconhecer no conhecimento espontâneo um conhecimento, isto é,

ela passa a lidar com o conhecimento fruto da experiência de modo consciente. Assim, a

idéia aqui é que o aprendizado se faz sempre sobre os limites daquilo que se sabe e do que

se é, transformando-nos. A aprendizagem em seu sentido mais amplo, ou a unidade

dialética aprendizagem-desenvolvimento afirma-se como um processo contínuo que se faz

no viver. Portanto torna-se difícil determinar o início ou o fim de um processo de

aprendizagem, pois início e fim passam a ser recortes arbitrários de um processo de

transformação maior. A ZDP é, então uma tentativa de conceituar a relação entre

aprendizagem e desenvolvimento, que se afirma como um processo circular orientado para

o futuro.

Dito de outro modo, a ZDP diz respeito a uma região, a um campo que aparece no

presente, a partir do auxílio do outro (cooperação), e aponta para o futuro. Nas palavras de

Vygotski: “A discrepância entre a idade mental real de uma criança e o nível que ela atinge

para resolver problemas com o auxílio de outra pessoa indicam a Zona de Desenvolvimento

Proximal” (VIGOTSKI,1998, p.128-129). Assim, Vygotski trabalha com a idéia de dois

níveis de desenvolvimento, um que diz respeito às atividades que as crianças realizam

sozinhas (funções já adquiridas), e outro, que se refere as atividades que só são realizadas

com o auxílio do outro. O desenvolvimento propriamente dito está neste segundo nível, que

se refere não aos ciclos já alcançados, mas aqueles que serão alcançados no futuro. É neste

contexto que aparece a idéia de “boa aprendizagem”. A ‘boa aprendizagem’ é aquela que se

faz nessa zona ou região que se instaura entre os sujeitos. Cito Vygotski: “O ensino

(aprendizagem) deve orientar-se não para o ontem, mas para o amanhã do desenvolvimento

infantil. Só então a instrução poderá provocar os processos de desenvolvimento que se

acham na ZDP” (VYGOTSKI, 1934/2001, p.242).

Chamamos atenção para a idéia de limite que está presente na ZDP. Ao referir-se à

imitação como lugar de criação da ZDP, Vygotski, observa que existem limites para o

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imitar. As crianças não conseguem imitar tudo, mas sim, apenas aquilo que está dentro dos

limites de sua ZDP. Cito Vygotski:

Temos afirmado que a criança é capaz de realizar em colaboração muito mais do que por si só. Mas temos que advertir que não infinitamente mais, mas dentro de suas possibilidades intelectuais. Em colaboração a criança resulta mais forte e mais inteligente que quando atua sozinha, se eleva mais no que diz respeito ao nível das dificuldades intelectuais que supera, mas sempre existe uma determinada distância estritamente regulada, que determina a divergência entre o trabalho independente e a colaboração (Ibidem, p.240).

Assim, embora a aprendizagem deva ser orientada para o futuro, é preciso que seja

um futuro não muito distante, caso contrário a situação perde o sentido e não se produz

nada de novo. Assim, Vygotski adverte: “As possibilidades de aprendizagem são

determinadas na ZDP” (Ibidem , p.242). Mas note-se que a ZDP não é dada pronta e nem é

a mesma para diferentes crianças de uma mesma idade (Ibidem, p.239-240). A ZDP

apresenta-se como uma região construída com um outro, sendo constantemente alterada.

Neste sentido numa situação de ensino-aprendizagem devemos nos concentrar na ZDP, de

modo a expandi-la. Comparando com a idéia apresentada por Varela, de que não existe

breakdown em geral, mas que toda a perturbação implica a criação de um tipo específico de

sensibilidade, poderíamos pensar a ZDP como uma zona de sensibilidade que se cria

coletivamente e que tem a possibilidade de nos conduzir para além de nós mesmos através

da aprendizagem.

A partir deste tipo de argumentação, autores que trabalham com a teoria histórico-

cultural na interface da psicologia com a educação, afirmam que a teoria vygotskiana nos

apresenta uma visão prospectiva do desenvolvimento. Desenvolver-se não é realizar bem

aquilo que se sabe, não é recognição, mas é através do auxílio do outro, do aprendizado, ir

além, trabalhar sobre os limites do que se é (SANCOVSCHI, 2004). Assim, a ZDP

apresenta-se não apenas como um importante conceito para pensarmos a construção da

cognição, como também aponta para a dimensão coletiva dessa construção.

No entanto quando atentamos para o estatuto desse outro que auxilia na criação da

ZDP, vemos aparecer um problema. A questão é que, para Vygotski, esse outro é um outro

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mais experiente, podendo ser tanto um adulto ou uma criança15 e assume como tarefa

conduzir o desenvolvimento em direção à apropriação da cultura existente. Cito:

A Zona de Desenvolvimento proximal “é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes (Ibidem, p.112 – grifo nosso).

Esta idéia está em consonância com a colocação do problema do desenvolvimento

para Vygotski. Conforme procuramos demonstrar, a idéia da apropriação da cultura está no

cerne da teoria histórico-cultural. Já discutimos o quanto esta idéia é ambígua, podendo nos

conduzir tanto a afirmação de uma certa teleologia no pensamento vygotskiano (TUDGE,

1996), quanto à afirmação de uma indeterminação no processo de construção, em função da

noção de significação.

Não resta dúvida que Vygotski avança muito em relação aos outros teóricos do

desenvolvimento, postulando um desenvolvimento que não se antecipa à aprendizagem,

mas que se faz com a aprendizagem. No entanto, ainda que possamos relativizar aquilo que

se entende como apropriação da cultura, ainda que enxerguemos aí um certo

posicionamento político, resta existindo uma direção que pressupõe uma orientação ao

processo de desenvolvimento. Em última análise o fim, o objetivo último do

desenvolvimento seria conduzir o indivíduo à apropriação da cultura, onde esta, conforme

aponta Knox (1996, p.27), é marcada por um referencial eurocêntrico. Sem dúvida, é

importante observar que a idéia de uma orientação no processo de desenvolvimento ganha

aqui um sentido bastante singular. Esta seria algo que se faz nas interações e cujo caminho

seria definido pelo(s) outro(s), pelo desenvolvimento sócio-cultural e cognitivo do(s)

outro(s). Isto é muito diferente, por exemplo, da perspectiva piagetiana, que propõe um

desenvolvimento de “caminho necessário”, onde o telos é pressuposto desde sempre de

modo absoluto. Para Piaget o destino de todo o desenvolvimento e de toda a aprendizagem

é o pensamento lógico-formal (PIAGET, 2001).

Zanella (2001) apresenta alguns estudos recentes sobre a Z.D.P que se constituem

como desdobramentos do conceito vygotskiano. Em especial está nos interessando o estudo

15 Zanella (2001) salienta que, Vygotski ateve-se, em seus escritos, à interação adulto/criança, embora esse outro mais experiente possa ser tanto um adulto quanto uma criança.

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de Olivera & Rosseti-Ferreira (1993), que investiga as relações entre pares (criança/criança)

em um contexto em que não há um objetivo específico. A interação entre as crianças não

está delimitada por nenhum problema a ser resolvido – assim, diríamos que esta interação

está mais próxima da situação de brincadeira. O que está em foco é a própria interação.

Neste caso o que se passa no espaço intermediário? Ao descrever esse estudo, Zanella,

diferencia-o de outros, que também irão estudar a Z.D.P entre pares, mas onde há um

objetivo específico e prévio à interação. Segundo a autora, este último tipo de relação entre

pares muito se aproxima da relação adulto/criança, uma vez que é prevista a existência de

alguém mais experiente que guiaria a menos experiente. Zanella, coloca, então, uma

interrogação importante: “Faz-se mister que haja, sempre, uma considerável assimetria

entre os indivíduos em interação para que esta promova o desenvolvimento? Tal assimetria

implica, necessariamente, que o sujeito menos competente irá aprender com o sujeito mais

competente?” (ZANELLA, 2001, p.107).

Essas são, para nós, algumas das questões que precisam ser pensadas para que

possamos conduzir o conceito de Z.D.P à sua maior potência, podendo revelar na teoria

vygotskiana contribuições para pensarmos uma noção de aprendizagem que não se restrinja

à atividade recognitiva. Assim nos perguntamos: Por que conceber o aprendizado na Z.D.P

como caminhando em uma direção única? Se se trata de um campo, de uma zona, não seria

mais acertado pensarmos a aprendizagem nesta região como a criação de um campo de

articulações, de espaços de afetações, onde o que muda, na medida em que muda, também é

mudado? Será que a pessoa mais experiente, aquela que já se apropriou da cultura, será que

ela não se modifica nesta relação que se cria na ZDP? Note-se que não estamos com isso

desprezando o papel do professor ou daquele que já caminhou um pouco mais e que por

isso provavelmente detém mais conhecimento. No entanto, nos parece fundamental que

mesmo a pessoa mais experiente possa experimentar os choques e as contradições numa

situação de ZDP, ainda que esta tenha sido estabelecida com pessoas menos experientes.

Vygotski em seus trabalhos (VYGOTSKI, 1934/2001) não se preocupa com estas

questões, talvez em função de seu contexto sócio-cultural, talvez em função das questões

que estivesse procurando resolver. Desse modo, para o psicólogo russo parece que não

restavam dúvidas que a assimetria é importante para o desenvolvimento na medida em que

o sujeito menos experiente sempre aprende com o mais experiente. Zanella (2001), ao

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resgatar a discussão de Tudge (1996), aponta autores que afirmam que embora nas

interações adulto/criança a posição de Vygotski pareça correta, isto é, a assimetria é

importante e ela conduz ao desenvolvimento, na relação entre pares a variável “confiança”

pode intervir e alterar a direção da relação. A idéia é que uma criança menos competente,

porém mais confiante, pode acabar guiando a dinâmica da Z.D.P, ao invés da mais

competente, porém menos confiante. Nos parece que esta colocação é importante, pois abre

uma nova via de análise, mas esta excede os limites do trabalho.

Acreditamos que o que foi dito e discutido a respeito da Zona de Desenvolvimento

Proximal é suficiente para fazer ver que a cognição é para Vygotski o resultado de uma

construção, e que esta pressupõe a constante participação do social. Nossa forma de

conhecer é constantemente alterada por aquilo que passamos a conhecer. Trata-se da

dialética aprendizagem-desenvolvimento, onde um não se define sem o outro. Neste

sentido, Vygotski vai além da maioria dos teóricos tanto do desenvolvimento quanto da

aprendizagem. A idéia da “boa aprendizagem” como sendo aquela que se antecipa ao

desenvolvimento, revela-se preciosa, especialmente quando estamos interessados em pensar

com Varela e Vygotski contribuições para uma nova forma de abordar a aprendizagem em

psicologia que não se limite à solução de problemas ou a um processo puramente

adaptativo no sentido forte deste termo.

2.4.3 – Aprendizagem e as vias colaterais de desenvolvimento: sobre a teoria

compensatória em defectologia

Embora trabalhar a temática da aprendizagem através das vias colaterais - ou vias de

rodeio - possa parecer redundante, uma vez que poderíamos explicá-las a partir das

discussões anteriores, acreditamos haver aí sutilezas que são de elevado interesse para o

presente trabalho. Certamente, pensar o mecanismo da aprendizagem através das vias

colaterais possui pontos em comum com considerar a aprendizagem por meio de mediações

e internalizações, ou mesmo com as questões levantadas a respeito da ZDP. No entanto,

através da noção de vias colaterais de desenvolvimento, nos parece que Vygotski acaba por

enfatizar os aspectos da singularidade, e risco do processo de construção da mente.

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O tema das vias colaterais de desenvolvimento aparece na obra vygotskiana por

ocasião dos estudos de defectologia, mais especificamente em função da teoria da

compensação. A defectologia, conforme explica Vygotski, é um campo que se dedica a

estudar a variabilidade qualitativa do processo de desenvolvimento de pessoas com

deficiências. A teoria da compensação considera que o defeito ou a deficiência, mais do que

uma falta ou um limite intransponível, representa a possibilidade de criação de novas vias,

capazes de superá-los. Nas palavras de Vygotski: “A teoria da compensação descobre o

caráter criativo do desenvolvimento orientado para esse caminho” (VYGOTSKI,

1927/1997b, p.16). Note-se que foi pela via da defectologia que Vygotski iniciou seus

estudos sobre o desenvolvimento cultural. Dessa forma percebemos aí o germe de algumas

idéias que ele desenvolveu mais tarde, como é o caso de sua noção singular de

desenvolvimento, e o papel do social neste processo (ZDP).

O interesse por trazer a noção das vias colaterais de desenvolvimento e a teoria da

compensação para a discussão não é pensar a especificidade que pode haver no processo de

aprendizagem de pessoas com deficiências. Nossa proposta é pensar aqui esta idéia das vias

colaterais e da compensação como sendo o funcionamento “normal” ou funcional da

cognição. É Vygotski quem fornece o caminho: “A lei da compensação é aplicável tanto no

desenvolvimento normal quanto no agravado” (Ibidem, p.15). E ainda:

A supercompensação não é um fenômeno raro ou excepcional na vida do organismo. Podemos citar uma infinidade de exemplos da mesma. É, em alto grau, um traço comum dos processos orgânicos, amplamente difundido e vinculado às leis fundamentais da matéria viva (Ibidem, p.41).

Tendo por base essas frases e a presença no texto Historia Del desarrollo de las

funciones psíquicas superiores (VYGOTSKI, 1931/2000) de inúmeras referências às vias

colaterais de desenvolvimento , acreditamos ser possível e interessante fazer este tipo de

extrapolação.

É em função da forma singular com que Vygotski coloca o problema do deficiente

que torna possível postular a noção de vias colaterais. Para ele:

Todo defeito cria estímulos para elaborar uma compensação. Por isso o estudo dinâmico da criança deficiente não pode limitar-se a determinar o nível de gravidade da insuficiência, mas inclui obrigatoriamente a consideração dos processos compensatórios, quer dizer, substitutivos, sobreestruturados e

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niveladores, no desenvolvimento e na conduta da criança (VYGOTSKI, 1927/1997b, p.14).

As vias colaterais ou vias de rodeio representam formas possíveis de contornar o

problema em questão. As vias colaterais são portanto invenção de novas condutas diante de

uma impossibilidade.

Um aspecto trazido pela teoria da compensação, que depois acaba perdendo-se na

obra vygotskiana, é a idéia de que a compensação pode não acontecer. Nas palavras do

autor russo: “Crer que qualquer defeito se compensará inelutavelmente é tão ingênuo como

pensar que qualquer enfermidade termina sempre na recuperação” (Ibidem, p.53). Ou seja

as vias colaterais são soluções possíveis, porém elas não estão garantidas de antemão. A

existência de uma deficiência aponta para um componente de indeterminação e de risco no

processo de desenvolvimento. Cito:

Seria um erro supor que o processo de compensação sempre termina em uma vitória, em um êxito, conduz sempre a formação de talento a partir do defeito. Como qualquer processo de superação e de luta, também a compensação pode ter dois desenlaces extremos: a vitória e a derrota, entre os quais situam-se todos os outros graus possíveis de transição de um pólo ao outro. O desenlace depende de muitas causas, mas no fundamental, da correlação entre o grau de insuficiência e a riqueza da torrente compensatória (Ibidem, p.16).

Uma vez que no desenvolvimento das funções psíquicas superiores também está em

jogo uma luta – faço referência as noções de choque e contradição trabalhadas

anteriormente – porque considerar o risco apenas aqui? Lembrando que Vygotski define o

desenvolvimento como sendo um processo onde o que está em questão são revoluções e

não evolução, como um processo revolucionário poderia fazer-se sem riscos e sem

indeterminação quanto a seus resultados?

Outra questão que aparece nas discussões sobre a teoria compensatória é a ênfase no

fato de que a formação da personalidade da criança nada mais é do que um processo de

criação e recriação. Cito:

Mas seja qual for o desenlace que se espere, o processo de compensação sempre e em todas as circunstâncias o desenvolvimento agravado por um defeito constitui um processo (orgânico e psicológico) de criação e recriação da personalidade da criança sobre a base da reorganização de todas as funções de adaptação da formação de novos processos sobreestruturados, substitutivos, niveladores, que são gerados pelo defeito, e da abertura de novos caminhos de rodeio para o

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desenvolvimento. Um mundo de formas e vias novas de desenvolvimento, ilimitadamente diverso, abre-se diante da defectologia (Ibidem, p.16-17).

Não parece destituído de sentido perguntar se no desenvolvimento da criança

“normal” também não ocorre algo da mesma natureza.

As vias colaterais são constituídas a partir de mediações singulares, permitindo o

desenvolvimento cultural de pessoas com deficiências, conduzindo-as para além de seus

limites biológicos. No entanto, nos parece possível afirmar que mais do que o conceito de

mediação, a noção de vias colaterais ou vias de rodeio abre a possibilidade de pensar a

unidade dialética aprendizagem-desenvolvimento como a realização ou a criação de

caminhos singulares. As vias colaterais não seriam, neste sentido, atalhos para chegar a um

mesmo lugar, mas aberturas para vidas possíveis em um determinado contexto sócio-

histórico. Parece que esta noção nos permite colocar em evidência o momento necessário e

fundamental para o desenvolvimento, que é a invenção de mediadores. As vias colaterais

chamam atenção para o fato de que as mediações não são dadas desde sempre. Neste

sentido, elas possibilitam inclusive que se entenda a construção ou invenção da cultura.

Na criança normal, o plano cultural de desenvolvimento e o plano biológico

convergem. Do ponto de vista do observador parece haver uma passagem espontânea, sem

contradições ou conflitos, do plano biológico para o cultural. Mediadores como

instrumentos e linguagem, que são frutos de aprendizagem, parecem aparecer como

resultados necessários. No entanto, se analisarmos mais de perto o processo veremos que se

tratam apenas de vias facilitadas pela inserção em um certo tipo de cultura. Quando

trazemos à cena a temática da aprendizagem-desenvolvimento de crianças cegas ou surdas,

por exemplo, é preciso que sejam pensadas vias colaterais em substituição dessas vias

facilitadas. Assim, afirma Vygotski (Ibidem), como substituição da linguagem escrita (via

facilitada) é preciso criar o Braile (via colateral) e, ao invés da linguagem oral, a linguagem

de sinais.

Note-se que Vygotski ainda fica restrito às vias colaterais comuns, aquilo que já está

difundido na nossa cultura. Mas, a nosso ver, seria o caso de ir mais longe e colocar o

problema das vias colaterais singulares. Em função da ênfase na dimensão inventiva da

cognição e por conseguinte da aprendizagem, interessa-nos pensar se tais vias colaterais

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não conferem à aprendizagem um papel ainda mais relevante, complicando a

horizontalidade já entrevista na linha vertical do desenvolvimento.

Para nos ajudar a pensar tais questões trazemos um exemplo de um caso relatado

pelo neurocientista Oliver Sacks (1997)16. Trata-se do caso do Dr.P. O Dr.P. era um

homem, professor de música, que em sua juventude havia sido não só um músico excelente,

mas também um ótimo cantor. A música fazia parte de sua constituição. Em determinado

momento de sua vida, viu-se diante de uma complicada e embaraçosa situação, não

conseguia mais reconhecer as coisas e nem a si mesmo. Estava com um problema nas

partes visuais de seu cérebro. Recuperamos o relato de Sacks:

Assim que o vi, em poucos segundos ficou evidente que não havia traço algum de demência na acepção comum do termo. Ele era um homem muito culto e simpático, falava bem, com fluência, imaginação e humor. Eu não podia imaginar por que ele tinha sido encaminhado à nossa clínica (Ibidem, p.23).

Embora Dr.P não pudesse reconhecer mais nada, ele tinha uma vida aparentemente

“normal”, conforme relata Sacks. Como poderia ser? A solução encontrada por Dr. P diante

dos impasses colocados pela vida cotidiana e pela impossibilidade de realização das tarefas,

as mais ordinárias, pelos caminhos antes aprendidos, foi “criar” novas mediações. As

mediações (ações instrumentais) antes realizadas e que conferiam a ele uma identidade e

um mundo de sentido, não mais lhe serviam em função de sua doença. Ele agora cantava, e

a música permitia a ele criar uma continuidade em suas ações de modo que era ela, e não

mais a visão, que orientava suas ações. Eis o relato de Sacks:

Segui sua esposa até a cozinha e perguntei como, por exemplo, ele conseguia vestir-se. ‘Do mesmo modo como ele come’, ela explicou. ‘Eu deixo fora suas roupas de costume, em todos os lugares de costume, e ele se veste sem dificuldade, cantando para si mesmo. Faz tudo cantando para si mesmo. Mas, se for interrompido, ele perde o fio da meada, pára completamente, não reconhece suas roupas – nem seu corpo. Ele canta o tempo todo – canções de comer, canções de vestir, canções de banho, de tudo. Não consegue fazer uma coisa se não a transformar em uma canção (Ibidem, p.31).

16 Sacks em seu livro O homem que confundiu sua mulher com um chapéu faz referência à A.Luria afirmando algumas continuidades entre seus trabalhos. A.Luria foi, não apenas, um importante colaborador de Vygotski, como em vários momentos afirma ter seguido as orientações vygotskianas no desenvolvimento de suas pesquisas (Luria, 1992).

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106

A música e as canções nada mais são do que mediadores possíveis para que Dr.P.

pudesse continuar vivendo em um mundo que não mais tinha sentido para ele. Ele precisou

reinventar seus mediadores, descobrir novas ferramentas para se relacionar com o mundo,

com os outros e consigo. Aquelas que haviam lhe servido até então, em função de sua

doença, não mais lhe serviam. As vias facilitadas não mais o ajudavam a se relacionar com

o mundo, com as pessoas e consigo mesmo. As vias colaterais apresentaram-se como

saídas. Chamo atenção aqui para o caráter singular dessa via colateral17. A música serviu

para o Dr,P, mas pode não servir como regra geral. Neste sentido o caso do Dr.P aponta

para um aspecto importante da invenção de mediadores, ela não faz do nada - não se trata

de uma invenção ex-nihilo -, mas se faz a partir daquilo que o constituía. Assim a invenção

afirma-se principalmente como recombinação daquilo já estava presente em sua história,

jamais partimos do zero.

Esse exemplo, assim como grande parte dos casos relatados por Sacks são

interessantes para pensarmos a teoria vygotskiana e conduzi-la além de seus limites. Trata-

se de um caso onde, depois de uma vida já constituída, ocorre um corte em função de uma

doença. Neste sentido, chama-nos atenção o caráter de invenção ou construção que

caracterizam nossos mediadores. Através da pesquisa transcultural, Luria chegou a

conclusões semelhantes: “Todas as categorias a que fomos acostumados a pensar como

naturais são, na verdade, sociais” (LURIA, 1990, p.87).

Por outro lado este exemplo traz à cena o papel fundamental do social neste

processo de aprendizagem-desenvolvimento. Foi pelo confronto de Dr.P. com o social, com

outras pessoas que ele pode reinventar seus mediadores, inventando-se novamente a si e a

seu mundo. As vias colaterais são respostas possíveis para os impasses enfrentados pelas

pessoas que apresentam algum tipo de deficiência. Estes impasses, ou limites em geral são

impostos pelo convívio social. Cito:

Se ao desenvolvimento de uma criança deficiente não se lhe colocasse exigências sociais (objetivos), se esses processos fossem entregues ao domínio das leis biológicas, se a criança anormal não se visse ante a necessidade de converter-se em uma unidade social determinada, em um tipo social de personalidade, então seu desenvolvimento conduziria à criação de uma nova espécie de homens. Mas como os objetivos lhe estão colocados de antemão ao desenvolvimento (pela necessidade de adaptar-se a um meio sociocultural destinado a um tipo humano

17 Ver também o caso Madaleine J. (Sacks, 1997, p.75).

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normal), tampouco a compensação flui livremente, mas por um determinado caminho social (VYGOTSKI, 1927/1997, p.19).

Neste sentido a idéia de uma heterogeneidade do social é fundamental para

pensarmos os processos tanto de aprendizagem quanto de desenvolvimento: “Essas

coletividades heterogêneas, no que diz respeito a seu nível intelectual são as mais

desejáveis” (VYGOTSKI, 1932/1997, p.224). E ainda: “O idiota que se encontre entre

outros idiotas, ou o imbecil que se acha entre outros imbecis, vê-se privado desta fonte

vivificante de desenvolvimento” (Ibidem, p. 225). Aqui uma idéia importante é a da

diferença entre os planos biológico e social da deficiência. Cito Vygotski:

O defeito e a falta de desenvolvimento das funções superiores encontram-se em uma relação distinta quando comparadas com o defeito ou desenvolvimento insuficiente das funções elementares. É preciso captar esta diferença para encontrar a chave de todo o problema da psicologia da criança anormal. Enquanto o desenvolvimento incompleto das funções elementares é, com freqüência, conseqüência direta de algum defeito (por exemplo, o desenvolvimento incompleto da motricidade na cegueira, o desenvolvimento incompleto da linguagem na mudez, e o desenvolvimento incompleto do pensamento no retardo mental, etc.), o desenvolvimento incompleto das funções superiores na criança anormal aparece, em geral, como um fator secundário, suplementar, que se erige sobre a base de suas particularidades primárias (VYGOTSKI, 1932/1997, p.221).

Para Vygotski é no plano social onde estão as possibilidades de superação da

deficiência (Ibidem, p.221). Trata-se do desenvolvimento das vias colaterais, a partir da

invenção ou criação de outros mediadores: “A dialética do desenvolvimento e da educação

da criança anormal consiste, entre outras coisas, que não se realiza por via direta, mas

indireta” (Ibidem, p.222). Assim, a criança cega utiliza-se do Braile, ao invés da linguagem

escrita convencional; a criança surda utiliza-se da linguagem dos sinais, ao invés da fala,

etc.

Uma outra questão que o exemplo de Sacks nos força a pensar é que a invenção ou

criação dos novos mediadores, na maioria dos casos, são resultado não da genialidade dos

pacientes, mas de construções coletivas. Embora referindo-se à questão da imaginação e da

arte na infância, Vygotski chega a esta mesma formulação. Vejamos:

Existe criação não apenas ali onde tem origem os acontecimentos históricos, mas também onde o ser humano imagina, combina, modifica e cria algo novo, por mais insignificante que esta novidade pareça ao ser comparada com as realizações dos grandes gênios. Se agregamos a isto a existência da criação coletiva que agrupa todas essas contribuições insignificantes da criação individual, compreenderemos quão imensa

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é a parte de tudo o que foi criado pelo gênero humano correspondente, precisamente a criação anônima coletiva de inventores anônimos (VYGOTSKI, 2003, p.11).

Por fim, o exemplo nos coloca diante da questão da dialética aprendizagem-

desenvolvimento pensada para além da questão da criança. O problema não é apenas de

apropriação da cultura por uma criança. Certamente pensar o processo de aprendizagem e

desenvolvimento a partir da criança coloca-nos diante de certas singularidades no processo.

Para a criança, o sentido do mundo e o próprio sentido de si ainda está sendo construído.

No entanto, isso não significa que não se possa pensar processos de aprendizagem e

desenvolvimento em adultos e até mesmos em idosos. Neste sentido, o exemplo acima

ajuda a sustentar a idéia de que o processo de aprendizagem-desenvolvimento é um

processo sempre inacabado, passível de ser desestabilizado a qualquer momento.

2.5- Política e fazer científico

Vimos, no capítulo anterior como para Varela, a proposição da abordagem enativa

deveu-se não só ao contexto científico no qual estava inserido, mas também ao contexto

político e a uma certa política epistemológica que orientava o autor chileno na colocação

dos problemas. Tal relação íntima entre fazer ciência e política encontra-se também no seio

da teoria histórico-cultural. Esta surge no contexto das mudanças ocorridas na Rússia após

a revolução de 1917. Tal revolução teve um caráter bastante peculiar, pois foi

eminentemente popular. Ela não foi obra de uns poucos insatisfeitos, mas fruto de uma

vontade coletiva. Citamos: “Esta revolução do início de 1917 foi, na concepção de

Marabini, resultante do levante popular frente aos desmandos do governo. Não existiam

mentores, não existiam heróis isolados. Houve um único responsável:o povo russo”

(ZANELLA, 2001, p.37). Neste sentido, havia no território russo ao mesmo tempo uma

grande insatisfação com a situação vigente e um entusiasmo revolucionário. É neste clima

que surge a concepção histórico-cultural.

Luria, um importante colaborador de Vygotski afirma:

A Revolução nos libertou – especialmente a geração mais jovem – para a discussão de novas idéias, novas filosofias e sistemas sociais (...). Fomos arrebatados por um grandioso movimento histórico (...). A atmosfera que se

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seguiu imediatamente à Revolução proporcionou a energia para muitos empreendimentos ambiciosos (LURIA, 1992, p.24-25).

Neste sentido a revolução, ao remexer nas bases da sociedade, acabou reverberando

em muitos campos. Nas palavras de Luria: “A partir da Revolução soviética, pelo tempo

aproximado de uma década, houve muita experimentação e improvisação na condução da

ciência, da educação e da política econômica soviéticas” (Ibidem, p.17). A psicologia não

passou ilesa por esse processo. Era preciso construir uma psicologia inspirada na filosofia

marxista, ou seja uma psicologia que não se limitasse às discussões entre as correntes

materialista mecanicista e subjetivista no interior dos laboratórios, mas que pudesse intervir

no mundo contribuindo na construção de uma sociedade socialista (Ibidem). Assim nasceu

a psicologia vygotskiana. O objetivo de Vygotski era construir uma psicologia concreta

sobre referenciais marxistas de modo a poder contribuir tanto para a superação da crise que

este campo vinha enfrentando, quanto para a construção de uma nova sociedade.

Assim, a política interferiu na psicologia vygotskiana na medida em que a

possibilitou colocar diferentemente os problemas, abrindo-a para novas soluções. A

concepção histórico-cultural está impregnada por uma certa forma de pensar que acredita

na potência do fazer humano. Conceitos como o de desenvolvimento, o de mediação, o de

Zona de Desenvolvimento Proximal e o de vias colaterais de desenvolvimento não são

apenas elaborações científicas, mas constituem-se sobre uma aposta que é ético-política. A

saber: que o homem é um ser histórico e social, isto é, ele se constitui na cultura e participa

ativamente desta construção (ZANELLA, 2004). Neste sentido, se quisermos compreender

o alcance desta psicologia é preciso considerar a dimensão política que a compõe e

atravessa.

2.6 – Contribuições da psicologia histórico-cultural ao tema da aprendizagem: algumas

sínteses

Em um primeiro momento, procuramos pensar o mecanismo da aprendizagem

através das relações entre os processos de mediação e de internalização. Neste sentido

através da relação mediação - internalização explicamos como as relações sociais

encarnam-se em uma pessoa, e, ao mesmo tempo, como esta pessoa constitui o social, a

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partir das ações instrumentais. Vimos como a linguagem assume um papel de destaque

neste processo, desse modo, as mediações semióticas são essenciais para a explicação da

constituição do sujeito. Chamamos atenção para a circularidade do mecanismo. O sujeito

cria-se a si e ao seu mundo em um mesmo movimento. Tal movimento deve ser

compreendido a partir das ações instrumentais. Através do uso de instrumentos e de signos,

o homem altera a natureza, alterando a si próprio. A circularidade funda-se, portanto, no

pressuposto de que o homem é um ser que possui uma adaptação ativa. Ou seja, o homem

não é determinado pelo ambiente. Neste sentido pensar a aprendizagem a partir da

concepção vygotskiana implica um afastamento de concepções pautadas no determinismo

ambiental. Note-se aqui a aposta ético-política na colocação do problema. Embora a idéia

de constituição de um mundo para o sujeito não seja evidente nos textos vygotskianos, ela

nos parece compatível com a teoria do psicólogo russo. É através da noção de significação

que vemos surgir tanto o sujeito quanto seu mundo. As discussões a respeito das vias

colaterais do desenvolvimento, conforme vimos, também permitem que caminhemos nesta

formulação.

Através dos conceitos de Zona de Desenvolvimento Proximal - num segundo

momento -, e das vias colaterais de desenvolvimento - num terceiro momento -, analisamos

como o(s) outro(s) é essencial para a concepção de aprendizagem pensada a partir da teoria

de Vygotski. Aqui surge a questão da intersubjetividade no processo de aprendizagem.

Conforme vimos também com Varela, parece que a aprendizagem no domínio humano, nos

força a pensar o problema do ensino. Sobre isso é interessante notar que a palavra utilizada

por Vygotski para referir-se à aprendizagem pode também significar ensino. Assim,

algumas traduções, como é o caso da espanhola (VYGOTSKI, 1934/2001), referem-se à

ZDP como relação ensino-desenvolvimento, e outras, como é o caso da brasileira, referem-

se à relação aprendizagem-desenvolvimento (VIGOTSKI, 1998, 2001b).

Voltando a questão do(s) outro(s) fundamental no processo, vimos que ele(s) força

os limites daquilo que já está constituído, implicando o sujeito em um processo de

aprendizagem. A aprendizagem não pode ser explicada, portanto, como uma simples

relação entre um sujeito – já constituído – e um objeto – dado para ser conhecido -, uma

vez que é ela que constitui o próprio sujeito e o próprio mundo. Lembramos aqui a

formulação vygotskiana da “boa aprendizagem”, que foi trabalhado por ocasião da ZDP. A

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111

boa aprendizagem é aquela que se antecipa ao desenvolvimento, conduzindo para além do

que se é. Note-se que existe um limite de sensibilidade que garante a eficácia ou não de

uma aprendizagem na condução do desenvolvimento. Este limite é determinado pela ZDP.

Conforme mostra Vygotski – nas discussões sobre a imitação -, existe um limite entre

aquilo que ainda não se sabe fazer sozinho, mas que se pode fazer em colaboração,

imitando, etc. e aquilo que aparece completamente sem sentido e que não produz

transformação alguma. A boa aprendizagem faz-se neste limite, portanto ela não é nem

recognição e nem nonsense.

Através das vias colaterais discutimos a questão da singularidade e do risco no

processo de aprendizagem e desenvolvimento. Neste sentido, fomos um pouco além de

Vygotski e procuramos entender as vias colaterais não apenas como desvios para se

alcançar um mesmo desenvolvimento, mas como uma produção de formas singulares de se

inventar a si e ao mundo a partir da criação de mediadores singulares. Embora o tema das

vias colaterais apareça na obra vygotskiana no contexto de discussão que envolve o

desenvolvimento das pessoas portadoras de necessidades especiais, propusemos extrapolá-

lo e trazê-lo para uma discussão sobre o próprio do processo de aprendizagem.

Através da discussão do caso do Dr.P (SACKS, 1997) mostramos o papel

fundamental do social (outros) na dialética aprendizagem-desenvolvimento. Neste sentido

apontamos para a importância da heterogeneidade do social em contextos de aprendizagem,

e para as possibilidades que a dimensão social traz para a superação de dificuldades que são

biológicas. A questão da invenção dos mediadores mostrou-se como um ponto importante.

Através do exemplo argumentamos que esta invenção se faz sempre a partir de uma

história. Por fim discutimos a impossibilidade de pensarmos um fim para o processo de

aprendizagem-desenvolvimento.

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112

ALGUMAS RESSONÂNCIAS ENTRE A ABORDAGEM ENATIVA E A

PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL

Buscar ressonâncias não é o mesmo que encontrar o igual, mas identificar sintonias

ou vibrações numa certa direção. Assim, encontrar ressonâncias entre a abordagem enativa

e a psicologia histórico-cultural não significa apagar as diferenças e as singularidades de

cada uma delas. Pelo contrário, as ressonâncias só poderão ser encontradas, ou melhor,

construídas, admitindo-se as particularidades de cada uma. Neste sentido, ao longo deste

capítulo, realizaremos um percurso em zigue-zague, de idas e vindas em relação aos pontos

de aproximação e afastamento das duas abordagens. Acreditamos que é apenas nesse

movimento que as ressonâncias poderão ser definidas.

De saída, chamamos atenção para algumas diferenças que marcam os contextos em

que a teoria histórico-cultural do psiquismo humano e a abordagem enativa da cognição

foram produzidas.

Insatisfeito com a situação da psicologia no final do século XIX e início do XX

(VYGOTSKI, 1927/1997a) e preocupado com o destino da sociedade soviética (LURIA,

1992), Vygotski lançou as bases para o que tempos depois ficou conhecido como teoria

histórico-cultural do psiquismo humano. Neste sentido, esta teoria apresentava-se com um

duplo propósito: por um lado, pretendia solucionar a “crise da psicologia” (VYGOTSKI,

1927/1997a), constituindo-se como uma síntese de tudo aquilo que vinha se fazendo no

campo dos estudos psicológicos; por outro lado esta nova psicologia tinha por base um

projeto ético-político de construção de uma sociedade socialista (LURIA, 1992). É apenas

considerando este duplo propósito que podemos compreender o alcance desta nova forma

de conceber o psiquismo, que não se reduz nem a um simples processo corporal e nem a um

simples processo psíquico, mas que reúne de forma dialética os dois (VYGOTSKI,

1926/1997). Neste sentido a psicologia vygotskiana afasta-se tanto das teorias

comportamentalistas (reflexologia e behaviorismo), quanto das teorias subjetivistas ou

idealistas (VYGOTSKI, 1931/2000), embora ambas tenham fornecido importantes

contribuições para a formulação da psicologia histórico-cultural.

Varela, por sua vez, propõe a abordagem enativa da cognição no final do século XX

e início do XXI, a partir da interface entre a biologia e as ciências cognitivas. Seu trabalho

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113

ficou inicialmente conhecido como Biologia do Conhecimento. A insatisfação do autor

chileno residia na forma como, a partir do movimento cognitivista, passou-se a conceber a

cognição e, por extensão, o vivo em geral e o homem, em particular (COSTA, 1993). A

teoria da informação estava longe de poder dar conta da complexidade da cognição viva

(VARELA, 1989). Por outro lado, a sociedade chilena atravessava uma fase de grande

entusiasmo possibilitado pelo projeto socialista de Salvador Allende, que o forçava a pensar

a questão da autonomia (COSTA, 1993; MATURANA E VARELA, 1997; GOLEMAN,

2003). Neste sentido, entender a complexidade da abordagem enativa implica considerar

tanto a sua critica ao paradigma informacional (modelo inputs-outputs) e representacional,

bem como levar às últimas conseqüências a idéia de autonomia como definidora de

qualquer sistema vivo.

A noção de uma cognição em construção é, neste trabalho, o principal fio que nos

ajudará a tecer a trama das ressonâncias, bem como a repensar a noção de aprendizagem.

Conforme foi visto nos capítulos anteriores, tanto Varela quanto Vygotski concebem a

cognição como algo que se faz no tempo – implica, portanto a ação ou a atividade – e

também, com o tempo. Não porque o tempo permite um amadurecimento das estruturas

cognitivas, mas porque é apenas com e no tempo que as interações ou os encontros com os

outros e com o mundo tornam-se possíveis. É apenas com e no tempo que se concretizam

as aprendizagens que possibilitam as transformações nas formas de ser e de conhecer.

Para Varela a atividade cognitiva pressupõe a organização autopoiética ou auto-

produtora. Esta implica o contato imediato com o mundo, incluindo aí outros organismos

vivos. Não existe auto-produção sem contato com outros organismos e com o mundo. A

autopoiese revela-se, portanto, como uma produção de si que só se realiza com os outros,

seja o mundo, sejam os organismos. Este contato aparece na teoria de Varela através do

conceito de acoplamento estrutural. O acoplamento, uma vez estabelecido, produz

variações na estrutura do organismo, criando novas formas de ser e de estar no mundo.

Note-se, a partir do que foi dito, que para a abordagem enativa a atividade cognitiva não se

restringe a uma capacidade cerebral, mas está encarnada no corpo ou, em outros termos, na

estrutura do organismo. Neste sentido, uma mudança na estrutura implica a modificação

das formas de ser e de conhecer. As mudanças estruturais criam novos campos de

sensibilidade que serão determinantes na realização dos novos acoplamentos, e por

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114

conseguinte de novas aprendizagens. Como esclarece Maturana não se trata de adaptação a

um mundo dado:

A aprendizagem, como a diferenciação celular, não é um fenômeno de adaptação do organismo ao meio, é a conseqüência da epigênese do organismo com conservação de sua adaptação em um meio particular no qual a conservação da organização e a adaptação têm sido os referenciais operacionais para o caminho seguido pela mudança estrutural. O organismo está onde está porque manteve sua organização e sua adaptação em um meio mutável ou estático, e dizemos que aprendeu porque, comparativamente, vemos que sua conduta é diferente à de um momento anterior de uma maneira contingente a sua história de interações. Sem comparação histórica não podemos dizer nada: somente veríamos um organismo em congruência condutal com seu meio no presente (MATURANA, 1998, p.42).

Por sua vez, para Vygotski, o psiquismo não nasce pronto e acabado, mas envolve

um processo de desenvolvimento e transformação que pressupõe o uso e invenção de

instrumentos, possível somente no contato com os outros homens. Em outros termos

diríamos que o desenvolvimento implica a atividade humana. Trata-se de um processo que

envolve mediações e internalizações, que modificam os sujeitos e seus mundos. Dessa

forma, a noção de desenvolvimento assume, na teoria histórico-cultural um sentido que se

afasta das concepções tradicionais, como é o caso, por exemplo da teoria de J.Piaget. Ao

fundar o desenvolvimento sobre a ação instrumental (uso de mediadores), Vygotski opera

uma inflexão no conceito fazendo ver os momentos de ruptura e transformação. Através da

ação o homem modifica a natureza, modificando-se a si mesmo. Aí reside a singularidade

da concepção vygotskiana que passa a trabalhar com uma noção de desenvolvimento que

inclui a aprendizagem implicando rupturas e revoluções neste processo. Portanto, para

Vygotski o desenvolvimento não caminha na direção da realização de estruturas

estereotipadas, não se trata de um caminho necessário, portanto não se define pela

linearidade. Nas palavras de Zanella:

A psique humana, portanto, não é dada e nem tampouco tem seu desenvolvimento caracterizado por etapas que pressupõem o seu ápice: necessário referir-se ao processo de sua constituição, social já em sua origem e marcado tanto pelas conquistas históricas do gênero humano quanto pelas singularidades que socialmente produzimos ( ZANELLA, 2005, prelo).

É interessante perceber que tanto Varela quanto Vygotski trabalham com

mecanismos que funcionam por lógicas circulares e desse modo escapam das tradicionais

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115

dicotomias que marcam o campo científico. Através da “circularidade criadora” (VARELA

e DUPUY, 1995) e do mecanismo histórico-dialético (VYGOTSKI, 1931/2000), Varela e

Vygotski propõem uma concepção de cognição e, por extensão, de aprendizagem, que não

tem por base a dicotomia sujeito-objeto. O que está em questão tanto na abordagem enativa

quanto na teoria histórico-cultural não é como o sujeito conhece o mundo, como ele

aprende e assim torna-se capaz de viver em um mundo dado. Pelo contrário, em ambas as

teorias o que se quer investigar é como os sujeitos se constituem e neste movimento

constituem mundos. Trata-se portanto de examinar o processo

de produção de um sujeito e

de seu mundo de sentido. Chamamos atenção aqui para a ênfase na dimensão processual

que permeia ambas as abordagens. No que concerne à teoria histórico-cultural, as palavras

de Pino são esclarecedoras:

Trata-se de um processo dialético, pois tanto os termos produtor <> produto, quanto os termos sujeito <> objeto, ao mesmo tempo que se opõem e se negam, constituem-se reciprocamente. Assim concebida, a atividade produtiva (produção de artefatos e de conhecimento) tem o caráter de um processo circular teoricamente ilimitado. O fundamento deste processo reside, na perspectiva da corrente histórico-cultural de psicologia, na mediação técnica e semiótica que caracteriza a atividade humana (PINO, 1995, p.35).

Já no que diz respeito à abordagem enativa:

Ao tentar conhecer o conhecer, acabamos por nos encontrar com nosso próprio ser. O conhecer do conhecer não se ergue como uma árvore com um ponto de partida sólido, que cresce gradualmente até esgotar tudo o que há para conhecer. Parece-me mais com a situação do rapaz na Galeria dos quadros, de Escher, que admira um quadro que, de modo gradual e imperceptível, se transforma na cidade e na galeria onde ele próprio se encontra (MATURANA e VARELA, 1995, p.260-261).

Continuando a tecer a trama das ressonâncias, vemos que este processo de

construção da cognição ou do psiquismo que pressupõe tanto o tempo como o(s) outro(s) e

que segue uma lógica circular, evitando dessa forma o pensamento dicotômico, tem por

base um posicionamento ético-político. Tanto Varela quanto Vygotski ao formularem suas

teorias se recusam a aceitar a determinação ambiental, enfatizando a dimensão ativa dos

seres vivos (Varela) e dos humanos (Vygotski). Desse modo Varela lança mão da noção de

autonomia para pensar a cognição viva, e Vygotski traz a idéia de autodomínio, como

sendo aquilo que singulariza o psiquismo humano. Autonomia e autodomínio revelam-se

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116

como uma aposta ético-política, ou, em outros termos, revelam-se como uma política

epistemológica presente no pensamento desses dois autores.

Note-se que autonomia e autodomínio estão longe de nomear um mesmo processo,

no entanto, apontam para uma outra forma de se conceber a relação do sujeito com o

mundo e, do sujeito com ele mesmo no processo de aprendizagem. Tanto a autonomia,

quanto o autodomínio, referem-se a um tipo de relação consigo, que não se reduz a um

processo de “ensimesmamento” ou de fechamento sobre si. Ambos os conceitos

pressupõem que nesta relação consigo seja acessado não o “Eu” ou o “Si” constituídos, mas

o campo processual de onde o “Si” ou o “Eu” surgiram. Os dois incluem, portanto, o(s)

outro(s) que são fundamentais na constituição do “Si”.

A fim de explicar a noção de autonomia, Varela a diferencia da de heteronomia

(VARELA, 1989). Enquanto a autonomia refere-se à capacidade presente em todos os seres

vivos de funcionarem de modo a gerar suas próprias leis ou regras, a heteronomia implica o

funcionamento a partir de regras exteriores (Ibidem, p.7). O exemplo paradigmático dos

sistemas heterônomos seriam as máquinas que funcionam segundo o modelo de entradas e

saídas (input-output). Neste sentido os sistemas heterônomos trabalham com a idéia de

informação e de erro. O meio informa ao sistema suas características e, se suas respostas

forem insatisfatórias ou incongruentes com as informações recebidas, diremos que houve

erro do sistema. Já no caso dos sistemas autônomos nos referimos a uma espécie de

conversa entre o meio e o sistema. Diante de uma resposta insatisfatória, falamos em

incompreensão (Ibidem, p.8). Note-se que tanto o sistema autônomo quanto o heterônomo

estão em constante contato com o mundo - incluindo aí tanto o meio físico quanto o meio

social - e este desempenha um papel importante para ambos. No entanto, enquanto para os

sistemas heterônomos o mundo determina as regras do sistema, para os sistemas autônomos

o mundo fornece o contexto com o qual o sistema comporá ou “conversará”, de modo a

construir suas próprias regras. Assim, a autonomia implica a criação de leis ou regras

próprias a partir do contato com o mundo. As leis e as regras produzidas pelos sistemas

autônomos não podem ser compreendidas fora da relação com o contexto onde são

produzidas. O conceito de autonomia refere-se, portanto, a capacidade de produção das

próprias regras, onde estas são sempre imanentes a um contexto específico. As regras são

produzidas de forma co-engendrada com o contexto.

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117

O conceito de autodomínio também pressupõe a participação dos outros para a sua

realização. O autodomínio representa uma conquista no desenvolvimento humano. Através

dele os seres humanos deixam de ser determinados pelo ambiente – o que está em questão

aqui é a recusa do modelo linear estímulo-resposta (S-R) – e passam a assumir o controle

sobre suas ações. No entanto, não se trata de um controle exercido por um “Eu” senhor da

vontade, mas da criação de estímulos auxiliares (mediações) que ajudam o homem a

controlar suas ações18. Desse modo o controle sobre si é feito sempre por meio de outros,

trata-se da criação de mediadores. Através dos mediadores – que são por definição sociais -

o homem tem o poder de criar para si novos estímulos, passando a determinar sua própria

conduta.

Até aqui fomos costurando alguns pontos que parecem sinalizar uma mesma direção

na colocação dos problemas por parte da abordagem enativa e da psicologia histórico-

cultural, no que diz respeito aos temas da cognição e que nos ajudam a repensar a

aprendizagem. Para que esta costura pudesse se realizar, deixamos temporariamente de lado

algumas diferenças importantes. É sobre essas diferenças que nos deteremos agora.

Para Varela a construção da cognição já faz parte da célula, estendendo-se para os

animais, os humanos e para as sociedades através de um mesmo mecanismo, que assume

diferentes complexidades. A partir desta colocação, algumas questões importantes

aparecem. Percebemos um afastamento da idéia de que a cognição ou o conhecimento

sejam processos exclusivos do aparato do sistema nervoso e da linguagem e vemos que não

há um privilégio do humano sobre as outras formas vivas. Por fim, concluímos que, no que

tange ao mecanismo circular, não há uma ruptura que separa o domínio do biológico ou da

natureza e o domínio do humano ou do social. Note-se que não se trata de uma

“antropologização” do vivo ou de uma “biologização” do homem. Não se trata de

“reducionismos” seja ao homem, seja ao biológico. O que Varela faz é complexificar a

biologia, levando em conta as noções de história e autonomia. Dessa forma, o autor chileno

embaralha as fronteiras entre o homem e os demais seres vivos, escolhendo falar da vida e

dos homens a partir de um mesmo referencial. O vivo, seja ele célula, animal ou homem

define-se por sua capacidade de se auto-produzir nos encontros com o mundo a partir da

ação. Note-se que no caso da célula, não se trata especificamente da ação, mas da rede de

18 Cf. 93.

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118

transformações químicas. Citamos Varela: “A rede tem como particularidade estar

‘dobrada’ sobre si mesma: ela própria conduz os seus próprios componentes e engendra

assim uma unidade distinta, separável da retaguarda química” (VARELA, 1988). Assim, a

procura pelo comum que subsiste e define o vivo complexifica a biologia, revelando-se

como uma importante estratégia do biólogo chileno para impedir que se fale dos animais ou

dos humanos como máquinas de processamento de informações, que era a abordagem

dominante tanto no domínio da biologia quanto no domínio das ciências cognitivas da

época.

Em seus últimos trabalhos (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2003 e VARELA,

DEPRAZ e VERMERSCH, 2002), Varela vai, aos poucos, afastando-se das discussões a

respeito dos modelos teóricos (cognitivista, conexionista ou enativo). Desse modo, a

questão do comum que subsiste entre os homens e os outros seres vivos vai perdendo

espaço para um exame que passa a ter como foco a questão da experiência humana e suas

singularidades. Isso não significa que as idéias que marcaram os trabalhos iniciais do

pesquisador chileno tenham desaparecido. Elas passaram para segundo plano, mas

continuaram presentes nos textos, como idéias diretrizes. A questão que permeia os últimos

trabalhos de Varela não é mais a defesa do modelo da enação em oposição ao modelo

informacional e representacional da cognição, mas sim o exame da contribuição da

abordagem enativa para a discussão de questões como a separação mente-corpo, a

experiência, a atenção (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2003), e a questão de uma

metodologia capaz de estudar a consciência, que conduz à proposta de articulação de duas

abordagens complementares a de primeira e terceira pessoa e a criação do campo da

neurofenomenologia (VARELA, DEPRAZ e VERMERSCH, 2002; VARELA e SHEAR,

1999).

Vemos, então, nestes últimos trabalhos, que o mecanismo autopoiético inicial,

embora permaneça o mesmo, ganha nuances. A entrada do sistema nervoso e, mais

especificamente, da questão da linguagem, introduzem nova complexidade. Contudo, e esta

é uma questão importante, a linguagem, mesmo no domínio humano não ganha lugar de

destaque. A linguagem entra na abordagem enativa como uma possibilidade bem sucedida

na história da “deriva natural” dos seres vivos (VARELA, 2004). Com ela a vida social

torna-se possível. A linguagem é responsável pela construção de um espaço comum de

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119

interação entre os homens, na mesma medida em que na trofolaxe é uma substância

química (um ferormônio) que cria um espaço comum de interação entre os insetos

(MATURANA e VARELA, 1995, p.234). Certamente, e Varela reconhece isto, a

linguagem possibilita ao homem interações mais complexas que aquelas possibilitadas pela

trofolaxe. No entanto, para a abordagem enativa, a linguagem não é a condição da cognição

e nem mesmo da história e da invenção. Cognição, história e invenção são possibilidades de

todos os seres vivos.

Para Vygotski, por outro lado, a cognição ou a atividade de conhecimento só é

possível na linguagem, sendo portanto, própria do homem. A palavra linguagem reúne em

si a idéia de mediações semióticas (VYGOTSKI, 1931/2000; 1934/2001). Portanto, quando

afirmamos que para Vygotski a cognição só é possível na linguagem, queremos dizer que a

atividade cognitiva pressupõe uma atividade mediada por signos, envolvendo assim a

questão da significação e do social.

Lembramos que o que está em questão nos trabalhos do autor russo é a investigação

e explicação do desenvolvimento das funções psíquicas superiores ou psiquismo humano.

Desse modo, o ponto de partida de Vygotski difere do de Varela. A colocação do problema

da cognição começa em Varela no vivo em geral e em Vygotski, no humano. Tal diferença

deve ser compreendida à luz do interesse de Vygotski pelos processos superiores que

singularizaria, a seu ver o estudo psicológico e seu embate com a teoria reflexológica.

Para Vygotski as funções psíquicas superiores tornaram-se possíveis na história

filogenética a partir do uso e invenção de instrumentos e, de forma mais específica, dos

signos. As funções superiores diferem das elementares por serem construídas através da

história e na cultura. Neste sentido, afirma-se que o conhecimento só é possível a partir das

relações sociais. É apenas através das relações sociais que nos apropriamos da cultura já

produzida, e nesta apropriação, através do processo de significação, criamos uma

subjetividade singular e re-significamos a própria cultura. Cito:

Na abordagem histórico-cultural, a construção de conhecimentos é concebida como processo constituído nas relações sociais, implicando o funcionamento interpessoal e a linguagem. O conhecimento envolve mediação pelo outro e produção de significados e sentidos em relação a objetos culturalmente configurados (GÓES, 1995, p.23).

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120

Segundo o psicólogo russo foi apenas através dos instrumentos e dos signos que o

homem pode intervir sobre a natureza, criando para si uma segunda natureza ou, em outros

termos, criando uma cultura. Através da atividade instrumental – inclui-se aí a atividade

semiótica – o homem deixou de ficar à mercê dos estímulos ambientais. Pino explica:

Na evolução das espécies ocorre um momento de ruptura quando a espécie homo desenvolve novas capacidades que lhe permitem transformar a natureza pelo trabalho, criando suas próprias condições de existência. Isto, por sua vez, permite ao homem transformar seu próprio modo de ser (cf. Marx, 1997, I, cap.7; Marx & Engels, 1982, pp.70-71). Esse momento de ruptura não interrompe o processo evolutivo mas dá ao homem o comando da própria evolução. A história do homem é a história dessa transformação, a qual traduz a passagem da ordem da natureza à ordem da cultura (PINO, 2000, p.51).

Assim, para Vygotski existe uma ruptura entre o domínio humano ou social e o

domínio biológico ou natural que é introduzido pela linguagem e pela consciência. Isso não

significa que Vygotski conceba o homem fora do domínio da natureza. No entanto, a

linguagem, ao tornar-se parte da constituição humana, possibilitou uma outra relação com a

natureza. Cito Pino: “As funções biológicas não desaparecem com a emergência das

culturais mas adquirem uma nova forma de existência: elas são incorporadas na história

humana” (Ibidem, p.51 – grifo do autor). Note-se que a ruptura não implica em dicotomia,

mas se trata de uma relação dialética onde a novidade que aparece é resultado de uma

atividade que implica síntese ou subsunção (Aufhebung). Sobre a síntese Vygotski

esclarece:

Hegel diz que há que lembrar o duplo significado da expressão alemã ‘snimat (superar)’. Entendemos esta palavra em primeiro lugar como ‘ustranit (eliminar)’, ‘otritsat (negar)’ e dizemos, segundo isto, que as leis estão anuladas, ‘uprazdneni (suprimidas)’, mas esta mesma palavra significa também ‘storanit (conservar)’ e dizemos que algo ‘sorjranim (conservamos)’. O duplo significado do termo ‘snimat (superar)’ transmite-se habitualmente bem no idioma russo com ajuda da palavra ‘sjoronit (esconder ou enterrar) que tem sentido negativo e positivo – destruição e conservação (VYGOTSKI, 1931/2000, p.117-118).

Zanella comenta:

Destaca-se aqui a dimensão materialista-histórica da teoria marxista: existe um mundo material que antecede à existência do próprio homem; este mundo, porém, uma vez conhecido/transformado pela ação humana, deixa de ser natureza em si para se transformar em natureza significada e, portanto, cognoscível (ZANELLA, 2004, p.4).

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121

Neste sentido Vygotski, assim como Varela, escapa dos reducionismos ao se referir

às relações entre o domínio biológico ou natural e o domínio humano ou social. Assim

como na abordagem enativa, a solução encontrada por Vygotski para este problema deve

ser entendida à luz do contexto de constituição de sua teoria. Conforme vimos no segundo

capítulo, a reflexologia era a teoria mais influente na Rússia no século XIX, momento em

que Vygotski, junto com seus companheiros, conceberam a psicologia histórico-cultural. A

reflexologia, mais especificamente, e a teoria comportamental, de modo geral, prendendo-

se à questão da busca por uma psicologia científica – isto é, uma psicologia que assumisse

como critério de cientificidade a física – acabou reduzindo a psicologia à análise da relação

entre estímulos e respostas. A tese de base era que todo o comportamento, inclusive o

humano, é resultado da determinação ambiental. É, portanto, contra esta idéia que Vygotski

afirma sua psicologia. Para Vygotski, a determinação ambiental e o modelo linear estímulo-

resposta, só poderiam dar conta das funções elementares ou estritamente biológicas. As

funções superiores, por outro lado, apresentam uma especificidade que se resume em seu

caráter mediado, que revela, a nosso ver, a circularidade do processo de constituição do

sujeito e seu mundo. Neste sentido, a ruptura proposta por Vygotski para pensar o humano

está diretamente relacionada à filosofia marxista, e à sua insatisfação com a psicologia de

sua época. Citamos:

Nosso comportamento é um dos processos naturais cuja lei fundamental é a lei do estímulo-resposta de modo que a lei fundamental para dominar os processos naturais é dominá-los através dos estímulos. Somente criando o estímulo correspondente se pode provocar um processo de conduta e orientá-lo em outra direção (VYGOTSKI, 1931/2000, p.289).

Portanto, para Vygotski, a atividade cognitiva, por definição, pressupõe mediação,

sendo a linguagem o principal mediador. Aqui precisamos ir além das palavras se

quisermos encontrar as ressonâncias entre Vygotski e Varela. Para Varela o conhecimento e

a aprendizagem caracterizam-se por uma relação imediata com o mundo e com os outros

organismos vivos ou sujeitos. Mediado e imediato, será que se trata de uma diferença

radical?

Na psicologia vygotskiana, conforme vimos, a mediação afirma-se em oposição a

uma certa concepção de imediatidade que se relaciona à idéia de reflexo. A mediação

pressupõe que a atividade cognitiva, incluindo aí a aprendizagem, não se restringe ao par

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estímulo-resposta, o contato com o mundo passa pelas construções de significações, a partir

da utilização de signos e instrumentos. As mediações não são, portanto, regras ou

representações de um mundo dado, mas são possibilidades de criação das regras e de um

mundo de sentido. Lembramos que as significações não são construídas por um sujeito

dado, mas é a condição de constituição de um sujeito. Para Varela, contudo, a imediatidade

está relacionada à idéia de “dança estrutural” (MATURANA e VARELA, 1995) ou fina

sintonia (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2003), afirmando-se contra a representação.

A imediatidade implica uma atenção ao presente que impede de a concebermos como

automatismo. Ela é uma conquista e não um dado. Para a abordagem da enação a idéia de

mediação pressupõe regras pré-estabelecidas e representações que mediariam o contato do

organismo com o mundo (incluindo aí outros organismos) conduzindo-os sempre em uma

mesma direção. Assim, nos afastando das palavras e nos aproximando das idéias, vemos

que a mediação, na obra de Vygotski, e a imediatidade, na obra de Varela, embora guardem

diferenças, possuem ressonâncias. Mediação e imediato constituem-se como noções que se

opõem à representação e à possibilidade de determinação ambiental na atividade cognitiva.

A nosso ver, portanto, menos que uma diferença, mediação e imediato aproximam-se.

Outro ponto a ser discutido refere-se às diferenças entre os dois mecanismos

circulares que caracterizam a construção da cognição nos dois autores. Embora ambos se

afastem de concepções dicotômicas, eles não são idênticos, mas apresentam singularidades.

Levantando como hipótese a idéia de que essas singularidades podem ser entendidas

através da diferença entre as noções de gênese - que está na base do mecanismo circular

histórico-dialético de Vygotski -, e a de emergência - que pertence a circularidade criadora

de Varela -, procuraremos examinar as duas noções: gênese e emergência.

Gênese e emergência são noções cunhadas para explicar o momento inicial do

mecanismo, a partir do qual toda a circularidade se engendra de modo a produzir as

diferenças que nos permitem afirmar a construção da cognição como um processo de

criação. Neste sentido, tanto a gênese quanto a emergência afirmam-se como noções que

suplantantam a idéia de um dado prévio. Ambas as noções apontam para a consideração de

uma temporalidade e da transformação na cognição. Outro aspecto comum entre essas duas

noções é o seu caráter paradoxal. Tanto a gênese quanto a emergência procuram dar conta

do momento inicial de um processo que é circular, e que portanto, por definição tem seu

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início e seu fim ligados de maneira indissociável. Como falar a respeito do início de algo

que é processual? Trata-se de um paradoxo. Considerando a existência do paradoxo na base

desses conceitos, apontaremos algumas orientações fornecidas por Varela e por Vygotski a

respeito deles. Desse modo procuraremos compreender as diferenças entre eles, e por

extensão, entre a circularidade criadora e a circularidade histórico-dialética.

Vygotski, no capítulo onde trata da questão da gênese das funções psíquicas

superiores, fornece algumas pistas para o entendimento daquilo que entende por gênese.

Em suas palavras:

A análise e a estrutura dos processos psíquicos superiores nos levam ao esclarecimento da questão básica de toda a história do desenvolvimento cultural da criança, o esclarecimento da gênese das formas superiores de comportamento, quer dizer, da origem e do desenvolvimento daquelas formas psíquicas que são objeto de nossa investigação (VYGOTSKI, 1931/2000, p.139 – grifo nosso).

A partir da citação percebemos que, para Vygotski, o conceito de gênese está

intimamente relacionado às noções de origem e de desenvolvimento. A gênese como sendo

o momento inicial, a origem de um processo de desenvolvimento. É importante não perder

de vista que para o autor russo o plano ontogenético – gênese do sujeito - não pode ser

concebido separado do filogenético – gênese da espécie - e sociogenético – gênese da

sociedade. Trata-se de um processo histórico, onde a história de um indivíduo está inserida

numa história maior que inclui a história da espécie e da sociedade a qual pertence,

afetando e sendo afetada por ela. Assim, a gênese das funções psíquicas superiores de um

indivíduo, está inserida num contexto mais amplo de gênese por um lado da espécie e, por

outro, da sociedade e da cultura. Note-se aí o aspecto circular e paradoxal.

O enfoque genético da psicologia histórico-cultural, relaciona-se à filosofia

materialista-dialética. Discutimos esta questão no segundo capítulo quando trabalhamos a

idéia de que o desenvolvimento é para a teoria vygotskiana antes de tudo um método. É

apenas através do desenvolvimento - estudo histórico - que as funções psíquicas superiores

podem ser explicadas. É importante destacar que a dialética que está na base do

pensamento vygotskiano é a marxista, fundada no materialismo e que entende a gênese

como práxis, e não a dialética hegeliana, que tem por base a lógica. A dialética que está,

portanto, na base da psicologia histórico-cultural é uma dialética encarnada. Ela implica a

atividade concreta, caso contrário, não se realiza.

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Esta distinção é fundamental para a compreensão do alcance do conceito de gênese

na obra de Vygotski. Para o autor russo a gênese deve ser concebida de modo articulado

com sua concepção de desenvolvimento. Portanto o processo genético não deve ser

entendido, como em Hegel a partir da metáfora da semente que contém em si todas as

características da árvore (SÈVE, 1999). O processo genético em Vygotski implica a práxis

ou a atividade, incluindo a produção das contradições e sua resolução na forma de

revoluções. A gênese aponta, neste sentido uma abertura para a criação do novo. No

entanto, ela resta sendo ainda um problema de origem e de desenvolvimento.

Aqui parece que a idéia de desenvolvimento cultural, tal como argumentamos no

segundo capítulo, ainda que guarde um projeto político, representa um importante atrator

para o desenvolvimento. Neste sentido a crítica de Schnewly (1999) ao conceito

vygotskiano de desenvolvimento mostra-se pertinente. A saber: o conceito vygotskiano de

desenvolvimento está ainda em desenvolvimento. Portanto, somos forçados a avançar em

relação a ele, a fim de dotá-lo de um sentido radicalmente histórico, isto é, pensá-lo como

um processo horizontal e distribuído que produz diferenciações.

A noção de emergência é incorporada aos textos de Varela em função de sua

interlocução com o campo das ciências cognitivas. Embora o conceito de emergência tenha

sido cunhado pelos autores conexionistas para dar conta da explicação de comportamentos

globais coerentes que surgem a partir de processos distribuídos, ele já estava presente nos

primeiros anos da cibernética, através da noção de auto-organização (VARELA, s.d).

Contudo, em função da hegemonia assumida pela posição cognitivista, durante os anos de

1960 e 1970, as noções de processos distribuídos e de auto-organização foram deixadas de

lado, sendo recuperadas anos depois, primeiro pela abordagem conexionista, e depois pela

enativa.

A noção de emergência surge em oposição à idéia defendida pelos cognitivistas de

que o funcionamento cognitivo caracteriza-se como um processamento simbólico por

regras lógicas. A emergência afirma-se, então, contra duas idéias: a de que o tratamento da

informação se baseia em regras aplicadas seqüencialmente, e a de que a cognição efetiva-se

como um tratamento simbólico (Ibidem, p.45). A metáfora da concepção emergencista

aponta para um funcionamento distribuído da cognição, e não simbólico. Citamos Varela:

A idéia do funcionamento distribuído é a do “bebê que adquire a linguagem a partir de um

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fluxo cotidiano de palavras dispersas, ou reconstitui ainda objetos significantes a partir de

um fluxo difuso de luz” (Ibidem, p.45). Neste sentido, a emergência diz respeito a algo que

surge sem uma causa específica – trata-se de fluxos dispersos – e que assume em

determinado momento uma coerência, aparecendo como uma forma distinta, destacando-se

do fluxo. Assim a noção de emergência trabalha com a idéia de constituintes sub-

simbólicos e não-inteligentes que, em função de certas interações contextuais, acabam

produzindo uma coerência global. É importante observar que a noção de emergência

quando trabalhada pela abordagem conexionista freqüentemente é associada ao

cumprimento de certa tarefa, neste sentido torna-se necessário acoplar a idéia de um atrator

que teria como função orientar os padrões que emergem à noção de emergência. Quando

esta noção passa a servir de instrumental teórico para a abordagem enativa, a idéia de tarefa

pré-determinada é abandonada, e a noção de emergência é concebida em toda a sua

radicalidade (Ibidem). Varela explica:

A aproximação entre a emergência e a enação depende da idéia que temos da função de um sistema distribuído. Ao insistir no fato de que um processo histórico faz emergir regularidades sem estar sujeito a uma finalidade determinada, conserva-se a noção biológica de um mundo não circunscrito. Realçando, pelo contrário, a aquisição por uma rede de uma faculdade bem específica num domínio definido, voltamos a encontrar o princípio da representação, bem como uma apreensão mais habitual dos modelos conexionistas (Ibidem, p.92).

A metáfora do bebê ganha em nosso trabalho uma importância especial. Vygotski

também comenta o aparecimento da linguagem. No entanto, se para a abordagem enativa a

aquisição da linguagem é efeito de emergência - trata-se de uma possibilidade que pode ou

não ocorrer - para Vygotski ela é resultado de um processo de desenvolvimento que se faz a

partir do encontro de dois planos. É no encontro do plano de desenvolvimento da

linguagem pré-intelectual com o plano de desenvolvimento do pensamento pré-verbal, que

vemos aparecer a linguagem, tal como a entendemos. É no encontro entre os dois planos

que aparece a função simbólica da linguagem. Portanto, ao se referir ao surgimento da

linguagem, Vygotski procura explicar a articulação entre ambos os planos. Ele afirma,

então, que a linguagem surge primeiro sobre um plano biológico (processos de

diferenciação), e depois, através da participação no mundo cultural, ela assume novas

funções, relacionando-se com o pensamento, tornando-se articulada. Vale citar Vygotski:

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Ao longo de seu primeiro ano de vida a linguagem infantil está inteiramente baseada no sistema de reações incondicionadas, preferentemente instintivas e emocionais sobre as que, por meio da diferenciação, se elabora a reação vocal condicionada mais ou menos independente. Graças a isso, modifica-se também a própria função da reação: se antes essa função formava parte da reação geral orgânica e emocional manifestada pela criança, agora, a mudança, começa a cumprir a função de contato social (VYGOTSKI, 1931/2000, p.171).

Em outro livro ele explica:

As raízes genéticas e os cursos do desenvolvimento do pensamento e da linguagem resultam também aqui até certo ponto diferentes. A novidade consiste na interseção das duas linhas de desenvolvimento, que ninguém discute. Que isto suceda em um ou uma série de pontos, de uma vez, repentinamente, ou que se vá crescendo lenta e paulatinamente e só depois abra-se passagem, que seja resultado de um descobrimento ou simplesmente da ação estrutural e prolongada de uma mudança funcional, que coincida com a idade de dois anos ou com a idade escolar, independentemente destas questões todavia discutíveis, segue sendo indubitável o fato fundamental da interseção de ambas as linhas de desenvolvimento (Vygotski, 1934/2001, p.116).

Portanto considerar o momento inicial do mecanismo circular como um efeito

emergente impede de localizar uma origem ou um destino precisos. A emergência é

conseqüência de múltiplos fatores que juntos, e em função de certas configurações,

possibilitam o aparecimento de um determinado fenômeno. Se quiséssemos correlacionar a

noção de emergência com a de gênese, poderíamos afirmar que a emergência deve ser

pensada como gêneses incessantes. Ela faz e se desfaz, possuindo um caráter local. A fim

de esclarecer a idéia de emergência trago uma imagem que Varela usa para explicar esse

processo: “O comportamento de todo o sistema assemelha-se mais a uma conversa animada

do que a uma seqüência de comandos” (VARELA, s.d, p.61).

Na medida em que Vygotski pensa a circularidade a partir da gênese, ele acaba por

entender a construção da cognição como um processo que vai da criança ao adulto, do

primitivo ao cultural. No entanto, não se pode perder de vista que o que caracteriza o adulto

ou o estado cultural não é definido a priori, mas implica a história e a cultura. Em outros

termos, implica as ações instrumentais e o encontro com outros homens. Trata-se ainda de

criação. Porém, tal forma de colocar o problema difere daquela realizada por Varela. Para

Varela a circularidade é pensada como emergência, afastando-se portanto da noção de

desenvolvimento. Para o autor chileno o processo de construção da cognição não se

confunde com um processo de desenvolvimento.

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A partir do que foi dito, construir ressonâncias ou ressaltar as diferenças são duas

possibilidades que se apresentam quando colocamos lado a lado a abordagem enativa e a

teoria histórico-cultural. Certamente, muitas diferenças devem existir, afinal quase um

século separa as duas teorias que nasceram em contextos e campos bastante distintos. No

entanto, a nosso ver, mais importante do que enfatizar as diferenças e os limites dessa

articulação, é enxergar o que esta aproximação nos traz de novidade. Quais as novas

orientações para a psicologia que este tipo de articulação sugere? Como pensar a psicologia

da aprendizagem a partir das novas orientações extraídas das ressonâncias entre a abordagem

enativa e a psicologia histórico-cultural?

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CONCLUSÃO

Propusemos nesta dissertação uma articulação (LATOUR, 2004) entre a abordagem

enativa de F.Varela e a psicologia histórico-cultural de L.S. Vygotski. Estávamos

interessados na produção de ressonâncias entre elas, tomando como foco a questão da

aprendizagem. Com base na orientação metodológica de Y.Clot (1999), diríamos que o

nosso objetivo era pensar Vygotski com

Varela de modo a fazê-los contribuir para as

discussões da psicologia contemporânea, e em especial para a psicologia da aprendizagem.

Suspeitávamos que em função da forma singular com que estes autores pensam o processo

de construção da cognição, encontraríamos neles novas possibilidades para o conceito de

aprendizagem. Note-se que foi a noção de uma cognição inventiva (KASTRUP, 1999) que

nos orientou neste trabalho.

Tradicionalmente a psicologia pensa a aprendizagem como um processo adaptativo

de solução de problemas dados. Aprender é, neste sentido, responder corretamente a uma

pergunta ou a uma tarefa pré-estabelecida. Sobre isso, é interessante analisar os tradicionais

experimentos de aprendizagem. Trata-se, na maioria das vezes, da apresentação de uma

tarefa pelo experimentador, que já conhece de antemão a resposta adequada. Cabe ao

sujeito do experimento realizar a tarefa ou solucionar o problema. Assim, caso esta resposta

seja compatível com aquilo que é considerado correto ou adequado, diz-se que houve

aprendizagem. Neste sentido a aprendizagem caminha sempre numa direção que é

antecipada pelo experimentador. Trata-se de um processo linear e de mão única.

No entanto, se concebemos a construção da cognição como sendo marcada pela

variação e transformação, sem que haja otimização de formas, tal forma de pensar a

aprendizagem, como um processo de solução de problemas ou de adaptação a um mundo

dado, torna-se insuficiente. Se a aprendizagem for apenas solução de problemas dados,

nada de diferente ou inesperado se produz, pois a aprendizagem é um processo de

reconhecimento. Assim, foi buscando contribuições para uma noção mais ampla de

aprendizagem que nos lançamos neste trabalho.

No primeiro capítulo nos dedicamos ao exame da construção da cognição na

abordagem enativa, procurando nela indicações para o tema da aprendizagem. Através da

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análise dos textos de Varela e dos conceitos de autopoiese, enação e breakdown,

verificamos que esta abordagem apresenta-se, como diz Alvarez (1999), como um

construtivismo radical. Ou seja, a abordagem enativa, ao constituir-se a partir das críticas

ao paradigma representacional e informacional, desloca o problema de um fundamento para

a cognição, seja ele interno ou externo. Varela trabalha com uma concepção de construção

da cognição que se afirma como pura diferenciação, sem otimização de formas. Desse

modo, ela nos impede de adotar uma noção de aprendizagem tão restrita quanto aquela da

solução de problemas ou de adaptação a um mundo dado. Assim, neste primeiro capítulo

examinamos com Varela novas contribuições ao tema da aprendizagem.

Analisamos nos três momentos da obra de Varela - o da autopoiese, o da enação e o

da pragmática da experiência -, idéias que nos ajudaram nesta tarefa de repensar a

aprendizagem. Assim, primeiro apresentamos o mecanismo circular autopoiético, propondo

pensá-lo como um mecanismo de aprendizagem. Em seguida trabalhamos a encarnação

deste mecanismo através do caso do aprendiz da flauta, onde a aprendizagem foi pensada

no domínio humano. Por fim, trouxemos a contribuição da aprendizagem da prática do

devir-consciente.

Para além das singularidades que cada um desses momentos trouxe à temática da

aprendizagem, concluímos que as principais contribuições da abordagem enativa foram: o

mecanismo circular, o par de conceitos acoplamento estrutural e breakdown, os exemplos

escolhidos por Varela para trabalhar a aprendizagem e a idéia de cultivo. Conforme vimos,

o par de conceitos acoplamento e breakdown, aparece no primeiro momento da obra de

Varela através do par acoplamento e perturbação e no terceiro momento, através do par

enraizamento e surpresa.

Através do mecanismo circular sujeito e mundo são co-engendrados no processo de

aprendizagem. Dessa forma, não há nem sujeito e, nem tampouco mundo dados que

garantiriam uma direção ao processo de aprender. Os problemas não são dados e não há

telos a ser alcançado. Pelo contrário, conforme vimos no caso do aprendiz da flauta, os

problemas são criados no próprio processo de aprender. Assim, longe da aprendizagem

caracterizar-se como uma solução de problemas, ela aparece aí como um processo de

contínua problematização.

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No percurso que vai do iniciante ao perito (DREYFUS, 1998), o aprendizado torna-

se cada vez mais contextualizado. Cada vez mais nuances no tocar flauta aparecem para o

flautista. Como então pensar o tocar flauta como a resolução de um problema? Não se trata

de apenas cumprir uma tarefa, mas sim de passar a habitar um novo mundo. Assim, o

aprendizado da flauta está longe de poder ser definido através do parâmetro da solução de

problemas ou da adaptação, entendida como adequação a um mundo. O aprendiz da flauta,

em seu processo de aprendizagem, vê-se cada vez mais imerso em questões que

possibilitam a ele fazer da sua relação com a flauta uma relação intima e imediata. Em

outros termos diríamos que em seu processo de aprendizagem, o flautista inventa um novo

mundo e neste mesmo movimento inventa-se a si. Note-se que, assim como o exemplo do

flautista, os outros exemplos escolhidos por Varela para pensar o aprender - aprendizado

da meditação, do piano, da oração do coração, da filosofia - nos forçam a questionar a idéia

da aprendizagem como um processo de solução de problemas ou ainda como algo

puramente adaptativo, no sentido forte desta palavra (SANCOVSCHI, 2003).

O caso do aprendiz de filosofia é bastante interessante para a nossa análise. A

princípio, poderíamos pensá-lo – como tradicionalmente se faz - com base no modelo

adaptativo e de solução de problemas. Neste sentido, o que estaria em questão para o

aprendiz de filosofia seria simplesmente adquirir um saber. No entanto o que Varela faz ver

é que embora tenhamos que considerar a aquisição do saber, ela não se faz sobre as bases

de um sujeito constituído ou de um mundo dado e, nem tampouco de um saber pronto. O

sujeito não é uma base que processa e armazena as informações contidas no mundo. Pelo

contrário, neste processo de aquisição de saberes nos transformamos, transformamos nosso

mundo e, também nossa relação com o mundo. E, o que é mais interessante, não se pode

saber de antemão a forma que esta transformação vai adquirir. Esta transformação de si e

do mundo é imprevisível. Mas note-se que isto não significa que qualquer coisa seja

possível, todas as transformações ocorrem a partir do nosso corpo presente.

Sobre o par de conceitos acoplamento-breakdown, em suas diferentes versões -

acoplamento-perturbação e enraizamento-surpresa -, afirmamos que sua contribuição para

repensar a aprendizagem reside sobretudo na indissociabilidade entre seus termos. Toda a

surpresa só se faz a partir daquilo que nos enraiza no presente. Nos termos da autopoiese,

diríamos que toda perturbação só é sentida a partir de uma estrutura que encarna nossa

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história de acoplamentos. Note-se que esta indissociabilidade entre acoplamento e

breakdown, permite a Varela fazer do mecanismo circular um mecanismo criador que, na

repetição, tem a possibilidade de se abrir às diferenças. Esta relação indissociável entre os

termos torna impossível, ao menos de direito, um fechamento total do processo de

aprendizagem. De direito porque, conforme vimos no aprendizado da prática do devir-

consciente, no caso do humano, as experiências de perturbação ou os breakdowns podem

ou não ser cultivadas. Dessa forma, nós humanos temos a possibilidade de, através do

cultivo, nos tornarmos mais ou menos abertos a este tipo de experiência. Tal afirmação nos

conduz, então, à consideração de uma política cognitiva (KASTRUP, 1999; 2005)

resultante de um processo de aprendizagem. O cultivo de experiências de problematização

produz uma política cognitiva da invenção, em lugar de uma política de recognição. Esta é

certamente uma questão que fica aberta para nós, apontando para trabalhos futuros.

No segundo capítulo nos detivemos na análise da construção da cognição, tal como

concebida pela psicologia histórico-cultural. Em relação a esta teoria foi necessária a

realização de uma análise cuidadosa. Diferentemente da abordagem enativa, a psicologia

vygotskiana mostra-se algumas vezes ambígua em suas colocações, apontando tanto para

uma compatibilidade com a idéia de uma cognição inventiva, quanto revelando algumas

limitações em relação a ela. No entanto, menos do que um problema, vimos na

ambigüidade a possibilidade de trabalhar sobre estes limites. Note-se que é o próprio

Vygotski quem nos orienta nesta apreensão de sua teoria, que não se conforma aos limites

estabelecidos (CLOT, 1999). Cito Newman e Holzman: “Fica claro que, para se beneficiar

plenamente do trabalho de Vygotsky, os psicólogos contemporâneos teriam que continuar

numa tradição cientificamente revolucionária. Em outras palavras, simplesmente aplicar

Vygotsky não é vygotskyano” (NEWMAN e HOLZMAN, 2002, P.29).

Embora para Vygotski a construção do psiquismo seja concebida a partir de um

mecanismo histórico-dialético que implica choques, rupturas, saltos e revoluções, este

caminha em direção à apropriação da cultura. A apropriação da cultura, neste sentido, pode

aparecer como um telos que orientaria o desenvolvimento. Assim, o problema de pensar a

cognição na psicologia histórico-cultural a partir da invenção, ou seja como um movimento

de transformação e diferenciação sem otimização de formas, reside na aposta vygotskiana

de que o desenvolvimento caminha em direção à apropriação da cultura. Esta idéia permite

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Schnewly (1999) afirmar que o conceito vygotskiano de desenvolvimento está ainda em

desenvolvimento, na medida em que falta a ele uma apreensão radicalmente histórica e

cultural desse processo. Na mesma direção, Tudge (1996) afirma que a psicologia

vygotskiana caracteriza-se como uma teleologia relativista. Trata-se ainda de uma

teleologia, embora esta seja definida através das aprendizagens ou dos encontros com os

outros.

Sem desconsiderar essas críticas, procuramos relativizá-las em nosso trabalho e

assim forçar os limites da teoria vygotskiana, concebendo-a a partir da invenção. Para tanto

foram fundamentais os comentários de A.Zanella (2004) e A.Pino (1992;2000) e, a

interlocução com O.Sacks (1997). Embora a idéia de apropriação da cultura possa ser

entendida como um telos, se analisamos o que é essa cultura, como ela se constitui e, como

acontece o processo de apropriação, vemos que a noção telos se enfraquece, dando

visibilidade a um processo interminável de produção da cultura e de sujeitos. Note-se que

esta inflexão no pensamento de Vygotski foi de extrema importância para encontrar nele

ressonâncias com a abordagem enativa e para propor com

ele contribuições para uma

concepção de aprendizagem mais ampla.

Contudo, conforme destacamos ao longo do segundo capítulo, a idéia da

apropriação da cultura como um telos freqüentemente invade os conceitos vygotskianos,

minando deles parte de sua potência e produzindo diferenças impensáveis em nossa

atualidade, como por exemplo é o caso da diferença entre o primitivo e o cultural.

Sobre os conceitos cujas forças são minadas em função da consideração de um

telos, podemos citar o caso da assimetria necessária para a condução do desenvolvimento

na Zona de Desenvolvimento Proximal. Para Vygotski, o outro que auxilia na criação da

ZDP é um outro mais experiente e assume como tarefa conduzir o desenvolvimento em

direção à apropriação da cultura existente. Podemos citar também o caso das vias colaterais

de desenvolvimento. As vias colaterais representam formas possíveis de contornar um

problema – uma deficiência. Neste sentido, poderiam ser concebidas como caminhos de

abertura para a invenção de vidas possíveis a partir da criação de novos mediadores.

Contudo, Vygotski fica restrito, em suas análises, às vias colaterais comuns, aos

mediadores que já estão difundidos na nossa cultura, como por exemplo o Braile para os

cegos e a linguagem de sinais para os surdos. Dessa forma, ele restringe a discussão das

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vias colaterais à busca de meios alternativos para se chegar a um fim semelhante. Mas

parece que as idéias e conceitos de Vygotski têm uma potência maior.Foi diluindo a idéia

de apropriação da cultura, através da ênfase num processo de produção de cultura e de

sujeitos que conduzimos nossas discussões no segundo capítulo. Assim, embora tenhamos

sinalizado em alguns momentos certos limites e singularidades da teoria vygotskiana, foi

possível encontrar no autor russo contribuições para pensarmos uma aprendizagem mais

ampla.

Examinamos três idéias apresentadas ao longo dos textos de Vygotski que nos

ajudaram a formular o que seria sua contribuição ao tema da aprendizagem. Note-se que

estas idéias não foram apresentadas seguindo uma ordem histórica. Assim, analisamos,

primeiro, com base no gesto indicativo o mecanismo de formação das funções psíquicas

superiores. Aí interessou-nos pensar o mecanismo da aprendizagem a partir da dupla de

conceitos mediação e internalização. Depois nos centramos na relação entre aprendizagem

e desenvolvimento na Zona de Desesnvolvimento Proximal e, por fim propusemos pensar a

aprendizagem a partir da noção das vias colaterais de desenvolvimento que aparece nos

textos de defectologia por ocasião da discussão da teoria da compensação.

A nosso ver, as principais contribuições da psicologia histórico-cultural ao tema da

aprendizagem foram: o mecanismo circular histórico-dialético, a colocação do problema da

construção do psiquismo que vai do social para o indivíduo e, a idéia de “boa

aprendizagem”. Note-se que embora não tenhamos destacado a noção de vias colaterais

como uma contribuição importante para o desenvolvimento da idéia de aprendizagem, ela

nos deu uma chave de leitura importante. Através dela foi possível junto com Vygotski

pensar não apenas uma aprendizagem através de mediações, mas também considerar a

invenção dos mediadores no processo de aprendizagem. Neste sentido, foi através das vias

colaterais de desenvolvimento que concluímos que a idéia de apropriação da cultura pode e

deve ser concebida não como um telos, mas como um processo interminável.

Embora o mecanismo circular vygotskiano funcione de modo distinto do

mecanismo circular proposto na abordagem enativa, ele também nos fornece subsídios para

recolocar o problema da aprendizagem. Assim como o mecanismo circular da abordagem

enativa, o mecanismo vygotskiano, que pode ser dito histórico-dialético, também aponta

para um processo de constituição do sujeito e de seu mundo. Neste sentido, os conceitos de

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mediação e internalização são fundamentais. A consideração das mediações aponta, por um

lado, para a constituição do sujeito pelas relações sociais, e, por outro, para uma forma

indireta desse sujeito se relacionar com o mundo. Não se trata de estímulos e respostas. O

mundo não determina o comportamento do sujeito. Através das mediações (ações

instrumentais) o homem tem a possibilidade de alterar o mundo e, assim alterar a si mesmo.

Neste sentido Vygotski afirma que o homem possui uma adaptação ativa em relação ao

meio. Como então pensar a aprendizagem como solução de problemas? Ou ainda, como

pensar a aprendizagem como adequação ao mundo? O que é próprio do homem não é a

transformação de si e do mundo? Pensar a aprendizagem a partir desse mecanismo implica,

então, na recusa em concebê-la como uma relação entre dois pólos pré-existentes. Outra

questão trazida pelo mecanismo da psicologia histórico-cultural é a ênfase no papel do

outro na constituição do sujeito.

Em geral, a psicologia coloca seus problemas a partir do sujeito constituído ou, em

outros termos do indivíduo. Note-se que esta forma de colocar o problema marca também a

psicologia da aprendizagem. Assim, a aprendizagem é entendida apenas como acumulação

de saberes, habilidades ou hábitos, sem que estes saberes, hábitos ou habilidades cheguem a

afetar a constituição do sujeito e assim, a forma como ele aprende. Quando Vygotski

inverte a seta, perguntando-se como, a partir das relações sociais, constituem-se indivíduos,

ele abre todo um novo universo de possibilidades para a psicologia. Neste sentido tal

colocação do problema apareceu também como uma contribuição importante para repensar,

com

Vygotski, a aprendizagem. Através dela, enfatizamos a dimensão processual que

subsiste em cada sujeito constituído. Nos termos de Vygotski: somos todos um agregado de

relações sociais.

Pensando a partir dessas idéias e acrescentando as questões discutidas acerca da

ZDP e das vias colaterais, nos foi possível questionar a idéia da cultura como algo dado de

antemão. Foi neste processo que a idéia de apropriação da cultura como um telos foi se

diluindo, dando origem a idéia de uma produção da cultura. Neste sentido, o sujeito, ao

mesmo tempo em que se constitui através das relações sociais, constitui também o mundo

social. Aprender implica, portanto este movimento de criação. No aprender criamos a

cultura e nos criamos. Assim, por exemplo, sobre a relação que se estabelece na ZDP, é

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preciso que consideremos a possibilidade de transformação de ambos os elementos da

relação, numa via de mão dupla.

Através da relação entre aprendizagem e desenvolvimento, discutida por ocasião da

ZDP e que ganha destaque com a idéia de “boa aprendizagem”, Vygotski faz ver não

apenas novas possibilidades para o conceito de desenvolvimento, mas também para o

conceito de aprendizagem. Chamamos atenção para duas idéias importantes colocadas por

esta relação: a primeira é que a aprendizagem implica desenvolvimento. Aprender é

portanto um processo que se encarna na nossa estrutura. E a segunda é que, ao conceber

esta relação, Vygotski permite pensar a aprendizagem como um processo sem fim, que se

faz ao longo da vida, com a vida e no encontro com os outros. Sobre isso o diálogo com

O.Sacks (1997) a propósito das vias colaterais foi de grande importância.

Após esse primeiro momento do nosso trabalho, nos foi possível, construir as

ressonâncias entre a abordagem enativa e a psicologia histórico-cultural. Este se constituiu

em nosso terceiro capítulo. Note-se que as ressonâncias tiveram por base o material

apresentado e discutido nos dois primeiros capítulos. Neste sentido a concepção de ambos

os autores a respeito da construção da cognição constituiu-se no nosso fio condutor.

De saída, sabíamos que não conseguiríamos chegar às ressonâncias se

desconsiderássemos as diferenças e singularidades de cada uma das abordagens. Quase um

século separa a abordagem enativa da psicologia histórico-cultural, além de contextos e

culturas distintas. Seria um contra-senso achar que poderíamos encontrar uma igualdade

entre elas. Assim, nosso objetivo era examinar sintonias entre elas e não igualdades.

A questão dos mecanismos circulares nos chamou atenção e passou a constituir a

principal ressonância. Estes mecanismos introduzem complexidade em ambas as

abordagens, impedido-nos de trabalhar com as dicotomias sujeito-objeto, sujeito-mundo e,

biológico-social. Isto não significa que a solução para estas tradicionais dicotomias sejam

as mesmas na abordagem enativa e na psicologia histórico-cultural. Em função das

singularidades de cada mecanismo as soluções são diferentes.

Ao nos dedicarmos à análise das ressonâncias vimos aparecer uma questão

interessante. Quando nos centrávamos nos pontos que pareciam aproximar-se nestas

abordagens, víamos aparecer diferenças importantes entre elas e, ao contrário, quando nos

centrávamos nas diferenças, víamos aparecer aproximações. Assim, ao final do capítulo

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uma questão: ressaltamos os pontos de ressonância, afirmando a possibilidade de produção

de uma articulação entre a abordagem enativa e a psicologia histórico-cultural ou

enfatizamos as diferenças e abandonamos qualquer tentativa de diálogo entre elas?

Conforme argumentamos na introdução, “fazer psicologia” implica a realização de

conexões, alianças e articulações. Nestas práticas o que está em questão é um trabalho

sobre os limites da psicologia constituída. Este, por sua vez fornece ao mesmo tempo

inúmeras possibilidades, mas também muitas incertezas. Assim, a partir da aposta nas

possibilidades que surgem a partir da articulação entre Varela e Vygotski aceitamos o

desafio de ressaltar as ressonâncias. Quais as novas possibilidades que surgem diante de

nós?

Conforme vimos, tradicionalmente a psicologia trabalha com mecanismos lineares

para estudar e explicar os processos de aprendizagem. A questão é sempre resolver um

problema dado seja adequando-se ao mundo, seja adequando o mundo ao sujeito dado.

Trata-se, na maioria das vezes de um caminho de mão única, onde aquilo que é aprendido

não interfere no processo de aprender. Caminha-se sempre em uma mesma direção que não

é definida durante o processo de aprendizagem, mas é estabelecida de fora e de antemão.

Assim, ao colocar o problema da construção da cognição a partir de mecanismos

circulares, a abordagem enativa e a psicologia histórico-cultural possibilitaram a produção

de um desarranjo em relação às concepções tradicionais de aprendizagem. Dessa forma, a

circularidade constitui-se não apenas num ponto importante de ressonância entre a

abordagem enativa e a psicologia histórico-cultural mas também, apresenta-se como um

ponto interessante para fecundar as discussões sobre a aprendizagem. Como pensar a

aprendizagem a partir de mecanismos circulares? Quais as conseqüências desta inflexão

para a psicologia da aprendizagem?

A circularidade aponta para uma concepção de aprendizagem que se define mais

pelo processo do que por seus resultados. Não que não haja resultados, ou que eles não

sejam importantes, no entanto a ênfase recai sobre os processos. Dito de outra forma,

pensar os resultados da aprendizagem a partir de uma concepção circular implica que estes

sejam considerados sempre em processo. Os resultados são sempre inacabados.

O inacabamento da aprendizagem surge da circularidade. No entanto, conforme

vimos com Varela e com Vygotski, o acesso ao inacabamento não está garantido. Podemos

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nos fechar aos movimentos de transformação, rompendo o circulo e fazendo dele uma linha

com início e fim bem delimitados.

Note-se que pensar a aprendizagem a partir da circularidade nos impede de

delimitar com precisão um início e um fim do processo, uma vez que o fim está sempre

ligado ao início. Ao conceber a aprendizagem como desempenho ou resolução de tarefas

pré-estabelecidas, delimita-se um início e um fim para ela. Se, contudo, ampliamos o

horizonte, vemos que todo início e fim de um aprendizado estão sempre inseridos em uma

história mais ampla, sempre sendo refeita. Outra direção trazida pela circularidade é que

aprender é mais do adquirir conteúdos ou habilidades. Aprender é um processo de produção

de subjetividades e de seus mundos correspondentes.

Assim, a articulação que busca ressonâncias entre a abordagem enativa e a

psicologia histórico-cultural, faz aparecer outra contribuição importante não apenas à

psicologia da aprendizagem, mas à psicologia de uma forma geral. Trata-se da

indissociabilidade entre política e fazer científico.

Nos dois primeiros capítulos quando analisamos a abordagem enativa e a psicologia

histórico-cultural destacamos como o contexto político em que estas duas abordagens

foram concebidas afetaram as formulações teóricas tanto de Varela quanto de Vygotski.

Assim, através do relato de Luria (1992) tomamos conhecimento de como a revolução russa

foi importante para a constituição da psicologia histórico-cultural. Por outro lado, através

das entrevistas de Varela (COSTA, 1993; GOLEMAN, 2003) e do prefácio ao livro De

Máquinas e seres vivos (MATURANA e VARELA, 1997) ficamos sabendo quão

importante foi para a concepção da teoria da autopoiese a situação do Chile na época das

eleições de Salvador Allende.

No entanto, para além desta política maior que atravessa a obra dos dois autores,

fomos percebendo ao longo de nosso trabalho, que subsiste em ambos uma certa política

epistemológica. Tal política revela-se através da análise da colocação dos problemas a

serem estudados por cada abordagem que aponta para uma certa concepção do que seja o

fazer científico, bem como revela um certo entendimento do mundo, do vivo, do humano e

da subjetividade.

Note-se que, entendida deste modo, seria preciso afirmar a existência de políticas

epistemológicas em todas as teorias. No entanto o que Varela e Vygotski trazem de

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novidade é explicitar esta dimensão em seus textos, não se furtando a discuti-la, e ao

mesmo tempo cuidando do rigor científico. A política em seus trabalhos não é, portanto um

resíduo a ser eliminado no percurso do conhecimento científico.

Por caminhos diversos Varela e Vygotski nos mostraram que fazer ciência

pressupõe método, rigor, disciplina e estudo, mas também implica a colocação de perguntas

e de problemas. Indo mais além, diríamos que esses autores fazem ver que a atividade

cognitiva implica uma política. Desdobrando esta idéia, diríamos que a atividade cognitiva

implica, por um lado, uma política em relação aquilo que será conhecido – política

epistemológica -, e por outro, uma política em relação à própria atividade de conhecimento

– política cognitiva.

Portanto, ao final deste trabalho talvez possamos apostar na fecundidade que o

mecanismo circular pode trazer para as discussões sobre a aprendizagem. Este mecanismo

não apenas torna necessária a inclusão da dimensão política nos estudos da aprendizagem,

mas também possibilita a aproximação das discussões da aprendizagem da idéia de

produção de subjetividade e de produção de mundos.

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