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Sobre a Democracia

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Robert Alan Dahl

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  • FUNDAO UNIVERSIDADE DE BRASLIA

    Reitor Lauro M orhy

    Vice-Reitor Timothy Martin Mulholland

    E d i t o r a U n i v e r s i d a d e d e B r a s l i a D iretor

    Alexandre Lima

    C o n s e l h o E d i t o r ia l

    Airton Lugarinho de Lima Camara,Alexandre Lima, Elizabeth Cancelli, Estevo Chaves de

    Rezende Martins, Henryk Siewierski, Jos Maria Gonalves de Almeida Jnior, Moema Malheiros Pontes, Reinhardt Adolf o

    Fuck, Srgio Paulo R ouanet e Sylvia Ficher

    40 anos

  • Robert A. Dahl

    Sobre a democracia

    Traduo Beatriz Sidou

    EDITORA

    UnB

  • Equipe editorial: A ir to n L u g a r in h o (Superviso editorial); R e j a n e de M eneses (A co m p a n h a m en to editoria l); W ilma Gonalves R osas Saltare l l i

    (Preparao de orig inais); G i lv a m Joaquim Cosmo e W ilm a G o n a l v e s Rosas Saltarelli (R ev is o ); E u g n io Felix Braga (Editorao e le tr n ica ) ;

    Cleide Passos, Rejane de M e n e s e s e Rbia Pereira ( ndice); M a u r c ioB o r g e s (Capa)

    Copyright 1998 by Y a le U n iv ers i tyCopyright 2001 by Editora U n ivers idade de Braslia, pela traduo

    Ttulo original: On dem ocracy

    Im presso n o B ra sil

    Direitos exclusivos para esta edio:

    Editora Universidade de B ras liaSC S Q. 02 B lo co C N" 78 Ed. O K 2 andar703 0 0 -5 0 0 - Braslia. D FTel: (Oxxl) 2 2 6 -6 8 7 4Fax: (0x x 6 1 ) 2 2 5 [email protected]

    T odos os direitos reservados. N e n h u m a parte desta publicao p o d er ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autor izao por e s crito da Editora.

    F icha ca ta logrfica elaborada pela Bib l io teca Central da Universidade de Braslia

    Dahl. Robert A .D131 Sobre a d em o c ra c ia / Robert A. Dahl: traduo de

    Beatriz S id o u . - Braslia : Editora U n ivers idade de Braslia. 2001

    2 3 0 p.T raduo de: O n democracy IS B N : 8 5 - 2 3 0 - 0 6 2 1 - 4

    1. D e m o c r a c ia I. Sidou. Beatriz II. Ttulo.

    C D U 3 2 1 . 7

    *

  • Sumrio

    A g r a d e c i m e n t o s , 9

    C a p t u l o 1P r e c i s a m o s r e a l m e n t e d e u m g u i a ?, 11

    P a r t e I O C O M E O

    C a p t u l o 2O n d e s u r g i u e c o m o se d e s e n v o l v e u a d e m o c r a c i a ? U ma BREVE HISTRIA, 17

    O Mediterrneo, 21 A Europa do Norte, 27Democratizao: a caminho, apenas a caminho..., 32

    C a p t u l o 3O Q U E H P E L A FRENTE?, 3 7

    Objetivos democrticos e realidades, 39Dos julgamentos de valor aos julgamentos empricos, 42

    P a r t e II A d e m o c r a c i a i d e a l

    C a p t u l o 4O Q U E D E M O C R A C IA ?, 47

    Os critrios de um processo democrtico, 4 9 Por que esses critrios?, 50 Algum as questes decisivas, 52

    C a p t u l o 5P o r q u e a d e m o c r a c i a ?, 5 7

    As vantagens da democracia: resumo, 73

  • 6 Sumrio

    C a p t u l o 6P o r q u e a i g u a l d a d e p o l t i c a I? I g u a l d a d e i n t r n s e c a , 75

    A igualdade bvia?, 75 Igualdade intrnseca: um julgamento moral, 77 Por que devemos adotar este princpio, 79

    C a p t u l o 7P O R Q U E IG U A L D A D E POLTICA I I ? C O M P E T N C I A C VIC A, 83

    A tutela: uma alegao em contrrio, 83 A competncia dos cidados para governar, 89 Urna quinta norma democrtica: a incluso, 91 Problemas no-resolvidos, 92 Comentrios conclusivos e apresentao, 94

    P a r t e IIIA VERDADEIRA D E M O C R A C IA

    C a p t u l o 8Q u e i n s t i t u i e s p o l t i c a s r e q u e r a d e m o c r a c i a e m

    G R A N D E E S C A L A ? , 97Como podemos saber?, 98As instituies polticas da moderna democraciarepresentativa, 99As instituies polticas em perspectiva, 100 O fator tamanho, 105Por que (e quando) a democracia exige representantes eleitos?, 106Por que a democracia exige eleies livres, justas e freqentes?, 109Por que a democracia exige a livre expresso?, 110Por que a democracia exige a existncia de fontes alternativase independentes de informao?, 111Por que a democracia exige associaes independentes?, 111 Por que a democracia exige uma cidadania inclusiva?, 112

    C a p t u l o 9V a r i e d a d e s I: d e m o c r a c i a e m e s c a l a s d i f e r e n t e s , 115

    Em todo caso, as palavras importam, sim..., 115 Democracia: grega x moderna, 117Democracia de assemblia x democracia representativa, 118

  • Sobre a democracia 7

    A representao j existia, 119Mais uma vez: tamanho e democracia, 120Os limites democrticos do governo representativo, 124Um dilema bsico da democracia, 125O negcio s vezes ser pequeno, 125s vezes o negcio ser grande, 127O lado sombrio: a negociao entre as elites, 128Organizaes internacionais podem ser democrticas?, 129Uma sociedade pluralista vigorosa nos pasesdemocrticos, 132

    C a p t u l o 10V a r i e d a d e s II: c o n s t i t u i e s , 135

    Variaes constitucionais, 136Quanta diferena fazem as diferenas?, 145

    C a p t u l o 11V a r i e d a d e s III: p a r t i d o s e s i s t e m a s e l e i t o r a i s , 147

    Os sistemas eleitorais, 1 4 7Algumas opes bsicas para as constituiesdemocrticas, 154Algumas orientaes sobre as constituies democrticas, 1 5 6

    PARTE IVA S CONDIES F A V O R V E IS E AS DESFAVORVEIS

    C a p t u l o 12Q U E CONDIES S U B J A C E N T E S FAVORECEM A

    DEM OCRACIA?, 161A falha das alternativas, 162Interveno estrangeira, 163Controle dos militares e da Polcia, 165Conflitos culturais fracos ou ausentes, 166Cultura e convices democrticas, 173Desenvolvimento econm ico e economia de mercado, 175Um resumo, 175 *ndia: uma democracia improvvel, 176Por que a democracia se espalhou pelo mundo inteiro, 180

  • 8 Sum rio

    C a p t u l o 13P O R QUE O CAPITALISMO DE M E R C A D O FAVORECE A

    D E M O CRACIA, 183Algumas ressalvas, 186

    CAPTULO 14P O R QUE O CAPITALISMO DE M E R C A D O PREJUDICA A

    DE M O CRACIA, 191

    C a p t u l o 15A VIAGEM INACABADA, 199

    Dificuldade 1: a ordem econmica, 2 00 Dificuldade 2: a internacionalizao, 202 Dificuldade 3: a diversidade cultural, 202 Dificuldade 4: a educao cvica, 2 0 4

    A p n d ic e AO s s i s t e m a s e l e i t o r a i s , 209

    A p n d ic e BA ACOMODAO POLTICA N OS P A S E S TNICA OU

    CULTURALMENTE DIVIDIDOS, 2 1 3

    A p n d ic e CA CONTAGEM DOS PASES D E M O C R T IC O S , 217

    R e f e r n c i a s b i b l i o g r f i c a s , 221

    N DIC E , 227

  • Agradecimentos

    Pelo que m e lembro, foi para minha mulher, Ann Sale Dahl, que mencionei que talvez estivesse interessado.em escrever mais um livro sobre a teoria e a prtica da democracia. Dessa vez. o livro que eu tinha em mente seria menos acadmico do que a maioria dos outros j publicados. Eu no escreveria o livro para outros acadmicos nem especialmente para os norte-americanos. Eu gostaria de ser til para qualquer pessoa, em qualquer lugar, seriamente interessada em aprender mais sobre um assunto vasto, que pode facilmente tornar-se to complicado que as nicas pessoas desejando investig-lo em profundidade so os tericos polticos, filsofos e outros estudiosos. Confesso que encontrar o estilo exalo seria dificlimo. A entusistica reao de Ann me incentivou a seguir em frente. Ela tambm foi a primeira leitora de um esboo quase completo; suas atiladas sugestes editoriais melhoraram bastante a m inha exposio do assunto.

    Dois ocupadssim os colegas da universidade, Jam es Fishkin e Michael W alzer, generosamente fizeram comentrios detalhados a meu rascunho terminado - bom, no exatamente terminado, no final das contas . Suas crticas e sugestes foram to importantes e to teis que adotei quase todas; tive de deixar algumas de lado. pois me p a rec iam exigir um livro bem mais com prido do que o que eu tinha em mente. Tambm devo a Hans D aalder, Arend Lipjhart e Hans Blockland por seus importantes comentrios sobre a Holanda.

    Sou grato a Charles Hill, David Mayhew, lan Shapiro e Norma Thompson por responderem a meu pedido de nomes de obras que servissem aos leitores desejosos de prosseguir estudando o tema. Suas sugestes enriqueceram a lista intitulada Mais leituras".

  • 10 Robert A. Dahl

    Bem antes de completar o original, mencionei-o a John CovelI, editor snior na Yale University Press, que imediatamente expressou grande interesse nele. Depois de lhe entregar uma cpia do manuscrito, as perguntas e sugestes que ele ofereceu me ajudaram a aperfeio-lo em muitos pontos.

    Sinto-me feliz porque este livro a continuao de um longo relacionamento com a Yale University Press. Para mim, especialmente prazeroso que a Yale University Press o esteja publicando, porque ao escrev-lo no hesitei em consultar trabalhos antigos meus que a Yale publicou no correr de muitos anos. Tambm me senti encantado com o diretor John Ryden, a diretora associada Tina Weiner e a diretora administrativa Meryl Lanning, que no apenas expressaram seu entusiasm o pela publicao do livro, mas avalizaram energicamente m inha proposta de que ele fosse rapidamente traduzido e publicado em outros pases, de modo a torn-lo disponvel a leitores em outros cantos do mundo.

    Por fim, o trabalho de editorao de Laura Jones Dooley, ed itora assistente, foi rpido e maravilhoso. Sua contribuio invisvel para o leitor, mas o autor sabe muito bem que o livro est melhor por causa desse trabalho - e espera que ela tambm saiba...

  • Captulo 1

    Precisamos realmente de um guia?

    Durante esta ltima metade do sculo XX, o mundo testemunhou uma extraordinria alterao poltica, sem precedenles. Todas as principais alternativas para a democracia desapareceram, transformaram-se em sobreviventes excntricos ou recuaram, para se abrigarem em seus ltimos basties. No incio do sculo, os inimigos pr-modernos da democracia - a monarquia centralizada, a aristocracia hereditria, a oligarquia baseada no sufrgio limitado e exclusivo - haviam perdido sua legitimidade aos olhos de boa parte da humanidade. Os mais importantes regimes antidem ocrticos do sculo XX - o comunista, o fascista, o nazista - desapareceram nas runas de uma guerra calamitosa ou. como aconteceu na Unio Sovitica, desmoronaram internamente. As ditaduras militares foram totalmente desacreditadas por suas falhas, especialmente na Amrica Latina; onde conseguiram sobreviver, em geral adotaram uma fachada pseudodemocrtica.

    Assim, teria a democracia pelo menos conquistado o apoio dos povos e das pessoas pelo mundo afora? No. Continuaram a existir convices e movimentos antidemocrticos, muitas vezes associados ao nacionalismo fantico ou ao fundamentalismo religioso. Existiam governos democrticos (em variados graus de democracia) para menos da metade da populao do mundo. Um quinto dos habitantes do mundo vivia na China - que, em seus ilustres 4 mil anos de histria, jamais experimentou um governo democrtico. Na Rssia, que s fez a transio para o governo democrtico na ltima dcada do sculo, a democracia era frgil e j in h a fraco apoio. Mesmo nos pases em que h muito a democracia fora esta

  • 12 Robert A. Dahl

    belecida e parecia segura, alguns observadores sustentavam que a democracia estava em crise ou, no mnimo, gravemente distorcida pela reduo na confiana dos cidados de que os lderes eleitos, os partidos polticos e os funcionrios do governo conseguiriam ou realmente tratariam corretamente 0 1 1 pelo menos teriam algum sucesso em questes como o persistente desemprego, os programas de bem-estar, a imigrao, os impostos e a corrupo.

    Suponha que dividamos os cerca de duzentos pases do mundo entre os que tm governos no-democrticos, os que tm novos governos democrticos e os que tm governos democrticos longos e relativamente bem estabelecidos. Deve-se reconhecer que cada um desses grupos abrange um conjunto imensamente diversificado de pases. No obstante, essa trplice simplificao nos ajuda a perceber que, de uma perspectiva democrtica, cada grupo enfrenta uma dificuldade diferente. Para os pases recentemente democratizados, a dificuldade saber se e com o as novas instituies e as prticas democrticas podem ser reforadas ou, como diriam alguns cientistas polticos, consolidadas, para que venham a suportar o teste do tempo, o conflito poltico e a crise. Para as democracias mais antigas, o problema aperfeioar e aprofundai a sua democracia.

    A esta altura, pode-se muito bem perguntar: o que realmente entendemos por democracia? O que distingue um governo democrtico de um governo no-democrtico? Se um pas no-democrtico faz a transio para a democracia, transio para o qu! Com referncia consolidao da democracia, o que exatamente consolidado? E o que significa falar de aprofundar a democracia num pas democrtico? Se um pas j uma democracia, como ele poder se tornar mais democrtico! E assim por diante...

    A democracia, de vez em quando, discutida h cerca de 2.500 anos - tempo mais do que suficiente para reunir um bom conjunto de idias sobre o qual todos ou quase todos possam concordar. Aqui no tratamos de saber se para o bem ou para o mal.

    Os 25 sculos em que tem sido discutida, debatida, apoiada, atacada, ignorada, estabelecida, praticada, destruda e depois s vezes restabelecida aparentemente no resultaram em concordncia sobre algumas das questes fundamentais sobre a democracia.

  • Sobre a democracia 13

    O prprio fato de ter uma histria to comprida ironicamente contribuiu para a confuso e a discordncia, pois dem ocrac ia tem significados diferentes para povos diferentes em d iferentes tempos e diferentes lugares. Por longos perodos 11a histria humana, na prtica, a democracia realmente desapareceu, mal sobrevivendo como valiosa idia ou memria entre poucos. A t dois sculos atrs apenas (digamos, h dez geraes), a histria tinha pouqussimos exemplos de verdadeiras democracias. A dem ocracia era mais assunto para teorizao de filsofos do que um verdadeiro sistema a ser adotado e praticado pelos povos. M esm o nos raros casos em que realmente existia uma democracia ou um a repblica, a maioria dos adultos no estava autorizada a participar da vida poltica.

    Embora em seu sentido mais geral seja antiga, a forma da democracia que discutirei neste livro um produto do sculo XX. Hoje, pressupe-se que a democracia assegure v irtualm ente a todo cidado adulto o direito de voto. No entanto, h cerca de quatro geraes - por volta de 1918, mais ou menos ao final da Primeira Guerra Mundial - , em todas as democracias ou repblicas independentes que at ento existiam, uma boa metade de toda a populao adulta sempre estivera excluda do pleno direito de cidadania: a metade das mulheres.

    Temos ento algo impressionante a pensar: se aceitssemos o sufrgio universal com o exigncia da democracia, haveria algumas pessoas, em praticamente todos os pases democrticos, que seriam mais velhas do que seu sistema democrtico de governo. A democracia no sentido moderno talvez no seja l muito jovem, mas tambm no to antiga...

    Pode-se fazer um a objeo: os Estados Unidos no se tornaram uma dem ocracia da Revoluo norte-americana em diante - uma dem ocracia num a repblica , como a c h a m o u Abraham Lincoln? O ilustre francs Alexis de Tocqueville, depois de visitar os Estados Unidos nos anos 1830, no chamou seu fam oso livro de A democracia na A m rica? Os atenienses no cham avam de rfftio-*' cracia seu sistema no sculo V a.C.? E o que era a repblica romana, se no um a espcie de democracia? Se dem ocracia significou diferentes coisas em pocas diferentes, como poderem os ns concordar sobre o que signifique hoje?

  • 1 4 Robert A. Dahl

    Uma vez comeado, pode-se insistir: por que, afinal, a d em o cracia desejvel? E quo democrtica a democracia nos p a ses hoje chamados democrticos - Estados Unidos, Inglaterra, Frana, Noruega, Austrlia e muitos outros? Alm do mais, ser possvel explicar por que esses pases so democrticos e tantos outros no? Poderamos fazer muitas perguntas mais.

    Assim, a resposta pergunta no ttulo deste captulo est razoavelmente clara. Quando se est interessado em procurar respostas para as perguntas essenciais sobre democracia, um guia pode ajudar.

    Nesta pequena excurso, voc no encontrar respostas para todas as perguntas que gostaria de fazer. Para manter a nossa v iagem relativamente curta e acessvel, teremos de passar por cim a de incontveis trilhas que voc talvez preferisse explorar. E las realmente deveriam ser exploradas... Espero que depois desta nossa excurso voc comece a explor-las por sua conta. Para ajud-lo nesse empreendimento, no final deste livro darei uma rpida lista de obras pertinentes.

    Nossa viagem comea pelo comeo: as origens da democracia.

  • Farte I

    0 comeo

  • Captulo 2

    Onde surgiu e como se desenvolveu a democracia?

    Uma breve histria

    Voc deve lembrar que iniciei dizendo que a democracia,(de vez em quando) discutida h 2.500 anos. Ser realmente to velha a democracia? Muitos norte-americanos e outros acreditam que a democracia comeou h duzentos anos, nos Estados Unidos. Outros, cientes de suas razes clssicas, afirmariam que ela teria comeado na Grcia ou na Roma antiga. Onde com eou e como teria evoludo a democracia?

    Talvez fosse agradvel vermos a democracia progredindo mais ou menos continuamente desde sua inveno, por assim dizer, na Grcia antiga h 2.500 anos e aos poucos se expandindo a partir daquele nfimo comeo at os dias de hoje, quando chegou a todos os continentes e a uma boa parte da humanidade.

    Belo quadro - mas falso, no mnimo por duas razes.Em primeiro lugar, como sabe qualquer conhecedor da histria

    europia, depois de seus primeiros sculos na Grcia ou em Roma, a ascenso do governo popular transformou-se em declnio e queda. Ainda que nos permitssemos uma razovel liberdade para decidir quais governos contaramos como populares , democrticos ou republicanos , sua ascenso e sua queda no poderiam ser descritas como ascenso firme at um pico distante, pontilhada aqui e ali por breves descidas. Ao contrrio, o rumo da histria democrtica mais parece a trilha de um viajante atravessando um deserto plano

  • MD

    emocrticos

    Todos os pases

    Nmero dc pases

    -* -* ro ro

  • Sobre a democracia 19

    e quase interminvel, quebrada por apenas alguns morrinlios, at finalmente iniciar a longa subida at sua altura no presente (Fig. 1).

    Em segundo lugar, seria um equvoco pressupor que a democracia houvesse sido inventada de uma vez por todas como, por exemplo, foi inventada a mquina a vapor. Q uando descobrem que prticas ou ferramentas surgiram em momentos diferentes e em diferentes lugares, antroplogos e historiadores em geral desejam saber como esses aparecimentos isolados foram produzidos. Ser que as ferramentas ou as prticas se espalharam por divulgao a partir de seus inventores para outros grupos - ou teriam sido inventadas de maneira independente por grupos diferentes? Muitas vezes difcil ou at impossvel encontrar uma resposta. O mesmo acontece com o desenvolvimento da democracia no mundo. Quanto de sua disseminao pode ser explicado sim plesmente por sua difuso a partir das origens e quanto (se que isto aconteceu) por ter sido criado de modo independente em diferentes pocas e diferentes lugares?

    Em bora no caso da democracia a resposta este ja sempre rodeada por muita incerteza, minha leitura do registro da histria essencialmente esta: parte da expanso da democracia (talvez boa parte) pode ser atribuda diluso de idias e prticas democrticas, mas s a difuso no explica tudo. Como o fogo, a pintura ou a escrita, a democracia parece ter sido inventada mais de uma vez, em mais de um local. Afinal de contas, se houvesse condies favorveis para a inveno da democracia em um momento, num s lugar(por exemplo, em Atenas, mais ou menos 5 00 anos a.C.), no poderiam ocorrer semelhantes condies favorveis em qualquer outro lugar?

    Pressuponho que a democracia possa ser inventada e reinventada de maneira autnoma sempre que existirem as condies adequadas. Acredito que essas condies adequadas existiram em diferentes pocas e em lugares diferentes. Assim como uma terra que pode ser cultivada e a devida quantidade de chuva estimularam o desenvolvimento da agricultura, determinadas condies favorveis, sempre apoiaram uma tendncia para o desenvolvimento de um governo democrtico. Por exemplo, devido a condies favorveis, bem provvel que lenha existido alguma forma de democracia em governos tribais muito antes da histria registrada.

  • 20 Robert A. Dahl

    Imagine esta possibilidade: pressuponhamos que certos povos constituam um grupo bastante unido: ns e eles, ns e outros, a minha gente e o povo deles, a minha tribo e as outras tribos. A lm do mais, pressuponhamos que o grupo (a tribo, digamos) bastante independente de controle exterior; os membros da tribo mais ou menos conseguem dirigir o seu prprio espetculo, por assim dizer, sem a interferncia de gente de fora. Por fim, suponhamos que um bom nmero de membros do grupo, talvez os mais idosos da tribo, vejam-se como bastante iguais, estando bem qualificados para dar uma palavra em seu governo. Em tais circunstncias, acredito que seja provvel emergirem tendncias democrticas. Um impulso para a participao democrtica desenvolve-se a partir do que p o deramos chamar de lgica da igualdade.

    Durante todo o longo perodo em que os seres humanos v iveram juntos em pequenos grupos e sobreviveram da caa e da coleta de razes, frutos e outras ddivas da natureza, sem a menor dvida, s vezes - talvez habitualmente teriam criado um sistema em que boa parte dos membros, animados por essa lgica da igualdade (certamente os mais velhos ou os mais experientes), par tic iparia de quaisquer decises que tivessem de tomar como grupo. Isto realmente aconteceu, conform e est bastante comprovado pelos estudos de sociedades tribais grafas. Portanto, durante m uitos milhares de anos. alguma form a primitiva da democracia pode muito bem ter sido o sistema poltico mais natural .

    Entretanto, sabemos que esse longo perodo teve um fim. Quando os seres humanos comearam a se estabelecer por d em o rados perodos em comunidades fixas para tratar da agricultura e do comrcio, os tipos de circunstncias favorveis participao popular no governo que acabo de mencionar - a identidade do g ru po. a pouca interferncia exterior, um pressuposto de igualdade - parecem ter rareado. As formas de hierarquia e dominao to rnaram-se mais naturais . Em conseqncia, os governos populares desapareceram entre os povos estabelecidos por milhares de anos. No entanto, eles foram substitudos por monarquias, despotismos, aristocracias ou oligarquias, todos com base em alguma forma de categorizao ou hierarquia.

    Ento, por volta de 500 a.C., parece terem ressurgido co n d ies favorveis em diversos lugares, e alguns pequenos grupos de

    JeffersonHighlight

  • Sobre a democracia 21

    pessoas com earam a desenvolver sistemas de governo que proporcionavam oportunidades bastante amplas para participar em decises de grupo. Pode-se dizer que a dem ocracia primitiva foi reinventada em uma forma mais avanada. Os avanos mais decisivos ocorreram na Europa - trs na costa do Mediterrneo, outros na Europa do Norte.

    O M editerrneo

    Os sis tem as de governo que permitiam a participao popular de um significativo nmero de cidados foram estabelecidos pela primeira v ez na Grcia clssica e em Rom a, p o r volta do ano 500 a.C., em bases to slidas que resistiram por sculos, com algumas m udanas ocasionais.

    Grcia

    A G rcia clssica no era um pas no sentido moderno, uni lugar em que todos os gregos vivessem num nico estado, com um governo nico. Ao contrrio, a Grcia era com posta por centenas de cidades independentes, rodeadas de reas rurais. Diferente dos Estados U nidos, da Frana, do Japo e de outros pases modernos, os estados soberanos da Grcia eram cidades-estado. A mais famosa desde o perodo clssico foi Atenas. Em 507 a.C., os atenienses adotaram um sistema de governo popular que durou aproximadamente dois sculos, at a cidade ser subjugada por sua vizinha mais poderosa ao norte, a Macednia. (Depois de 321 a.C.. o governo ateniense tropeou sob o domnio macednio por geraes; mais tarde, a c idade foi novamente subjugada, desta vez por Roma.)

    Foram os gregos - provavelmente os atenienses - que cunharam o term o demoh-aiur. demos, o povo, e kra o s , governar. Por falar nisso, interessante saber que. em Atenas, embora a palavra demos em g era l se referisse a todo o povo ateniense, s vezes, significava apenas a gente comum ou apenas o pobre. As vezes, dem okraiia era utilizada por seus crticos aristocrticos como uma espcie de epteto, para mostrar seu desprezo pelas pessoas comuns

  • 22 Robert A. Dahl

    que haviam usurpado o controle que os aristocratas tinham sobre o governo. Em quaisquer dos casos, demokralia era aplicada pelos atenienses e por outros gregos ao governo de Atenas e ao de muitas outras cidades gregas.1

    Entre as democracias gregas, a de Atenas era de longe a mais importante, a mais conhecida na poca e, ainda hoje, de incom parvel influncia na filosofia poltica, muitas vezes considerada um exemplo primordial de participao dos cidados ou, c o i d o diriam alguns, era uma democracia participante.

    O governo de Atenas era complexo - por demais com plexo para ser devidamente descrito aqui. Em seu mago havia um a a ssemblia a que todos os cidados estavam autorizados a participar. A assemblia elegia alguns funcionrios essenciais - generais, por exemplo, por mais estranho que parea. O principal mtodo para selecionar os cidados para os outros deveres pblicos era um a espcie de loteria em que os cidados que poderiam ser e le itos detinham a mesma chance de ser escolhidos. Segundo algumas e s timativas, um cidado comum tinha uma boa chance de ser esco lhido por essa loteria pelo menos uma vez na vida para servir com o o funcionrio mais importante a presidir o governo.

    Embora algumas cidades gregas se reunissem, formando rudimentares governos representativos por suas alianas, ligas e co n federaes (essencialmente para defesa comum), pouco se sabe sobre esses sistemas representativos. Praticamente no deixaram nenlnima impresso sobre idias e prticas democrticas e, com certeza, nenhuma sobre a forma tardia da democracia representativa. O sistema ateniense de seleo dos cidados para os deveres pblicos por sorteio tambm jamais se tornou uma alternativa aceitvel para as eleies como maneira de escolher os representantes.

    Assim, as instituies p o ltica s da Grcia, por mais inovadoras que tenham sido em sua poca, foram ignoradas ou mesmo c lara

    1 Para uma descrio minuciosa da democracia em Atenas, veja Mogens H erm an Hansen. The Alhenian D em ocracv in the A ge o f Demosthenes: S tm ctare . P r in cipies and Ideologv, traduzida para o ingls por J. A. Crook, Oxford, Blackwell . 1991.

  • Sobre a democracia 23

    mente rejeitadas durante o desenvolvimento da moderna democracia representativa.

    Roma

    Mais ou menos na poca em que foi introduzido na Grcia, o governo popular apareceu 11a pennsula italiana 11a cidade de Roma. Os romanos preferiram chamar seu sistema de repblica: res, que em latim significa coisa ou negcios, e publicas - ou seja, a repblica poderia ser interpretada como a coisa pblica ou os negcios do po v o . (Voltarei a essas duas palavras, dem ocracia e repblica .)

    O direito de participar 110 governo da repblica inicialmente estava restrito aos patrcios, os aristocratas. Numa etapa da evoluo da dem ocracia que encontraremos mais adiante, depois de muita luta, o povo (a plebe) tambm adquiriu esse direito. Como em Atenas, o direito a participar restringia-se aos homens, o que tambm aconteceu em todas as democracias que apareceram depois, at o sculo XX.

    Desde seu incio como urbe de tamanho bastante modesto, a repblica rom ana expandiu-se por meio da anexao ou da conquista muito alm dos limites da velha cidade, chegando a dominar toda a Itlia e regies bem mais distantes. A repblica, muitas vezes, conferia a valorizadssima cidadania romana aos povos conquistados, que assim se tornavam cidados romanos 110 pleno gozo dos direitos e dos privilgios de 11111 cidado, e no simples sditos.

    Ainda que esse dom parecesse generoso e sbio, se a julgarmos da perspectiva atual, descobriremos um enorme defeito: Roma jamais adaptou adequadamente suas instituies de governo popular ao descomunal aumento no nmero de seus cidados e seu enorme distanciamento geogrfico da cidade. Por estranho que parea de nosso ponto de vista, as assemblias a que os cidados romanos estavam autorizados a participar continuavam se reunindo, como antes, na cidade de Roma - exatamente nesse mesmo Frum, hoje em runas, visitado pelos turistas. No entanto, para a maioria dos cidados romanos que viviam 1 10 vastssimo territrio da rep

  • 24 Robert A. Dahl

    blica, a cidade era muito distante para que pudessem assistir s assemblias, pelo menos sem esforo extraordinrio e altssimos custos. Conseqentemente, era negada a um nmero cada vez maior (e mais tarde esmagador) de cidados a oportunidade de participar das assemblias que se realizavam 110 centro do sistema de governo romano. Era como se a cidadania norte-americana fosse conferida a pessoas em diversos estados, conforme 0 pas se expandia, embora a populao desses novos estados s pudesse exercer seu direito de voto nas eleies nacionais se comparecesse a assemblias realizadas em Washington, D. C.

    Em muitos aspectos, os romanos eram um povo criativo e pragmtico, mas no inventaram ou adotaram uma soluo que hoje nos parece bvia: um sistema vivel de governo represeilativo, fundamentado em representantes eleitos democraticamente.

    Antes que saltemos para a concluso de que os romanos eram menos criativos ou menos capazes do que ns, devemos nos lembrar que as inovaes e as invenes a que nos habituamos em geral nos parecem to bvias que comeamos a nos perguntar por que nossos predecessores no as introduziram antes. Em geral, aceitamos prontamente, sem discutir coisas que algum tempo antes esta- vam por ser descobertas. Da m esma forma, geraes que vierem mais tarde podero tambm se perguntar como no enxergamos determinadas inovaes que viro a considerar bvias... Devido ao que ns, hoje, aceitamos sem discutir, ser que, assim como os rom anos, seremos insuficientemente criativos na reformulao de nossas instituies polticas?

    Embora a repblica rom ana tenha durado consideravelmente mais tempo do que a democracia ateniense e mais tempo do que qualquer democracia m oderna durou at hoje, por volta do ano 130 a.C., ela comeou a enfraquecer pela inquietude civil, pela mi- litarizao, pela guerra, pela corrupo e por um decrscimo 1 10 esprito cvico que existira entre os cidados. O que restava das prticas republicanas autnticas terminou perecendo com a ditadura de Jlio Csar. Depois de seu assassinato em 44 a.C., uma repblica outrora governada por seus cidados tornou-se um imprio, comandado por imperadores.

  • Sobre a democracia 25

    Com a queda da repblica, o governo popular desapareceu inteiramente 1 10 sul da Europa. Excetuando-se os sis tem as polticos de pequenas tribos esparsas, ele desapareceu da face da terra por cerca de mil anos.

    Itlia

    Como uma espcie extinta ressurgindo depois de uma grande mudana climtica, o governo popular comeou a reaparecer em muitas cidades do norte da Itlia por volta do ano 1100 d.C. Mais uma vez, foi em cidades-estado relativamente pequenas que se desenvolveram os governos populares, no em grandes regies ou em grandes pases. Num padro conhecido em R om a e mais tarde repetido durante o surgimento dos modernos governos representativos. a participao nos corpos governantes das cidades-estado foi inicialmente restrita aos membros das famlias da classe superior: nobres, grandes proprietrios e afins. Com o tem po, os residentes nas cidades, que estavam abaixo na escala socioeconmica, comearam a exigir 0 direito de participar. M em b ro s do que hoje chamamos classes mdias - novos ricos, pequenos mercadores, banqueiros, pequenos artesos organizados em guildas, soldados das infantarias comandadas por cavaleiros no apenas eram mais numerosos do que as classes superiores dominantes, mas tambm capazes de se organizar. Eles ainda podiam am eaar violentas rebelies e, se necessrio, lev-las adiante. Conseqentemente, em muitas cidades, essas pessoas - 0 popolo, como eram chamadas - ganharam o direito de participar do governo local.

    Durante mais de dois sculos, essas repblicas floresceram em uma srie de cidades italianas. Uma boa parte dessas repblicas, como Florena e Veneza, eram centros de ex trao rd inria prosperidade, refinado artesanato, arte e arquitetura soberbas, desenho urbano incomparvel, msica e poesia magnficas, e a entusistica redescoberta do mundo antigo da Grcia e de Rom a. Encerrava-se o que as geraes posteriores vieram a cham ar Idade Mdia e chegou aquela inacreditvel exploso de brilhante criatividade, 0 Renascimento.

  • 26 Robert A. Dahl

    Infelizmente, para o desenvolvimento da democracia, entretanto, depois de meados do sculo XIV, os governos republicanos de algumas das maiores cidades cada vez mais deram lugar aos eternos inimigos do governo popular: o declnio econmico, a corrupo, a oligarquia, a guerra, a conquista e a tomada de poder por governantes autoritrios, fossem prncipes, monarcas ou soldados. Isso no foi tudo. Vista 110 vasto panorama das tendncias histricas, a cidade-estado foi condenada como base para o governo popular pelo surgimento de um rival com foras esmagadoramente superiores: o estado nacional, ou pas. Vilas e cidades estavam destinadas a ser incorporadas a essa entidade maior e mais poderosa, tornando-se. 11a melhor das hipteses, unidades subordinadas do governo.

    Por gloriosa que tenha sido, a cidade-estado estava obsoleta.

    Palavras sobre palavras

    Voc talvez tenha notado que m e referi a governos populares na Grcia, em Roma e na Itlia. Como vimos, para designar seus governos populares, os gregos inventaram o termo democracia. Os romanos tiraram do latim 0 nome de seu governo, a repblica , e mais tarde os italianos deram este nome para os governos populares de suas cidades-estado. Voc poderia muito bem lembrar que democracia e repblica se referem a tipos fundamentalmente diferentes de sistemas constitucionais. Ou ser que essas duas palavras refletem justamente as diferenas nas lnguas de que vieram?

    A resposta correta foi toldada em 1787, num ensaio influente que James Madison escreveu para ganhar apoio constituio norte-americana recentemente proposta. Um dos principais arquitetos dessa constituio e estadista excepcionalmente conhecedor da cincia poltica de seu tempo, M adison fazia uma distino entre uma democracia pura, que uma sociedade consistindo num nmero pequeno de cidados, que se renem e administram o governo pessoalmente, e uma repblica, que um governo em que h um sistema de representao .2

    2 James Madison, The Federalist: A C onnnentarv on lhe Constitutions o f the United S ta tes .... Nova York, Modern Library [ 1937?]. n 10. p. 59.

  • Sobre a democracia 27

    Essa distino no tinha base alguma na histria anterior: nem em Roma nem em Veneza, por exemplo, havia um sistema de representao . Para falar a verdade, todas as prim eiras repblicas cabiam muito b em na definio de Madison para democracia. Alm do mais, essas duas palavras foram usadas com o sinnimos nos Estados Unidos durante o sculo XVIII. A distino de Madison tambm no encontrada numa obra do conhecido filsofo poltico francs M ontesquieu, a quem Madison admirava imensamente e muitas vezes elogiou. 0 prprio Madison, provavelm ente, sabia que sua distino no tinha nenhuma base.histrica firme: assim, devemos concluir que ele a criou para desacreditar crticos que discutiam o fato de a constituio proposta no ser suficientemente democrtica .

    Entretanto (a questo no est clara), talvez as palavras democracia e repb lica (apesar de Madison) no designassem diferenas nos tipos de governo popular. Elas apenas refletiam, ao preo da confuso posterior, uma diferena entre o grego e o latim, as lnguas de que se originaram.

    A Europa do N orte

    Quer se cham assem democracias ou repblicas, os sistemas de governo popular na Grcia, em Roma e na Itlia no possuam inmeras das caractersticas decisivas do moderno governo representativo. A Grcia clssica e a Itlia medieval e renascentisla compunham-se de governos populares locais, m as no possuam um governo nacional eficaz. Por assim dizer, R om a tinha apenas um governo local baseado na participao popular, mas nenhum parlamento nacional de representantes eleitos.

    Da perspectiva de hoje, evidentemente ausente de todos esses sistemas, estavam pelo menos trs instituies polticas bsicas: mu parlamento nacional composto por representantes eleitos e governos locais eleitos p e lo povo que, em ltima anlise, estavam subordinados ao governo nacional. Um sistema combinando a democracia em nveis locais com um parlamento eleito pelo povo no nvel mais elevado ainda estava para ser criado.

  • 28 Robert A. Dahl

    Essa combinao de instituies polticas originou-se na Inglaterra, na Escandinvia, nos Pases Baixos, na Sua e em qualquer outro canto ao norte do Mediterrneo.

    Embora os padres do desenvolvimento poltico divergissem amplamente entre essas regies, uma verso bastante simplificada seria muito parecida com essa. Em vrias localidades, homens l ivres e nobres comeariam a partic ipar diretamente das assem blias locais. A essas, foram acrescentadas assemblias regionais e nacionais, consistindo em representantes a serem eleitos.

    Assem blias locais

    Comeo com os vikings, no apenas por sentimentalismo, mas porque sua experincia no muito conhecida, embora importantssima. Visitei algumas vezes a fazenda norueguesa a cerca de 130 quilmetros a nordeste de Trondheim, de onde emigrou meu av paterno (e que, para meu encanto, ainda conhecida como Dahl Vestre, ou Dahl do Oeste). Na cidadezinha prxima, Steinkjer, ainda se pode ver um anel de grandes pedras em forma de barco, onde, periodicamente, se reuniam os vikings livres entre mais ou menos o ano 600 d.C. a 1000 d.C., para uma assemblia judicial chamada Ting, em noruegus. Lugares como esse, alguns ainda mais antigos, podem ser encontrados por toda a vizinhana.

    Por volta do ano 900 d.C., as assemblias de vikings livres no se encontravam apenas na regio de Trondheim, mas tambm em muitas reas da Escandinvia. Como acontecia em Steinkjer, a Ting caracteristicamente se reunia num campo aberto, marcado por grandes pedras verticais. Na reunio da Ting, os homens livres resolviam disputas; discutiam, aceitavam ou rejeitavam leis; adotavam ou derrubavam uma proposta de mudana de religio (por exemplo, aceitaram a religio crist em troca da antiga religio nrdica); e at elegiam ou davam aprovao a um rei - que em geral devia jurar fidelidade s leis aprovadas pela Ting.

    Os vikings pouco ou nada sabiam e menos ainda se importavam com as prticas polticas democrticas e republicanas de mil anos antes na Grcia e em Roma. Dentro da lgica da igualdade que aplicavam aos homens livres, eles parecem ter criado suas pr

  • Sobre a democracia 29

    prias assemblias. Entre os vikings livres existia a idia da igualdade, como dem onstra a resposta dada por alguns vikings dinamarqueses quando um mensageiro lhes perguntou da margem do rio que subiam na Frana: Qual nome de vosso senhor?

    - Nenhum. Som os todos iguais.'1Em todo caso, temos de resistir tentao de exagerar. A igual

    dade de que se gabavam os vikings aplicava-se apenas aos homens livres, e mesmo estes variavam em riqueza e sfafus. Abaixo dos homens livres estavam os escravos. Como os gregos e os romanos ou, sculos depois, os europeus e os americanos, os vikings possuam escravos: inimigos capturados em batalhas, vtimas desafortunadas de incurses pelos povos das vizinhanas ou simplesmente pessoas compradas 1 10 ve lh o comrcio de escravos que havia por toda parte. Ao contrrio dos homens nascidos livres, quando libertados, os escravos continuavam na dependncia de seus antigos proprietrios. Se os escravos constituam uma classe abaixo dos homens livres, acima destes havia uma aristocracia de famlias com riqueza, geralmente em terras, e status hereditrio. No pice dessa pirmide social havia um rei, cujo poder era limitado por sua eleio, pela obrigao de obedecer s leis e pela necessidade de reter a lealdade dos nobres e o apoio dos homens livres.

    Apesar dessas graves limitaes 11a igualdade, a classe dos homens livres (camponeses livres, pequenos proprietrios, agricultores) era grande o bastante para impor uma duradoura influncia democrtica nas instituies e nas tradies polticas.

    Em diversas outras partes da Europa, as condies locais s vezes tambm favoreciam o surgimento da participao popular no governo. Os vales das altas montanhas dos Alpes, por exemplo, proporcionavam uma medida de proteo e autonomia para os homens livres empenhados em atividades pastoris. Um escritor moderno descreve a Rcia (m ais tarde, o canto suo de Graubnden), por volta do ano 800 d.C.:

    C a m p o n e s e s l iv re s . . . e n co n t rav am -se n u m a s in g u la r s i tu a o ig u a l i t r ia . L ig a d o s pelo sta tu s em c o m u m . . . e p e lo s d i r e i to s c o m u n s d e u s o d o s pastos das m o n ta n h a s , e le s d e s e n v o lv e r a m

    3 Joliannes Brtfndsted, The Vikings, Nova York, Penguin. 1960. p. 241.

  • 30 Robert A. Dahl

    um sen t ido de i g u a ld a d e t o t a l m e n t e em d e sa co rd o c o m o im p u l so h ier rqu ico e v o l ta d o p a r a o s ta h is do feu d a l ism o m e d ie v a l . Este esp r i to m ais t a r d e d o m i n a r i a o poste r io r s u rg im e n to da d e m o crac ia na r e p b l i c a r e c i a n a . 4

    Das assemblias aos parlam entos

    Quando se aventuraram a oeste, na direo da Islndia, os vikings transplantaram suas prticas polticas e recriaram em diversos locais uma Ting. Foram alm: prenunciando o posterior aparecimento de parlamentos nacionais em todos os cantos, no ano 930 d.C., criaram uma espcie de supra Ting, a A lth ing , assemblia nacional que permaneceu a fonte da legislao islandesa por trezentos anos, at a Islndia ser finalmente subjugada pelos noruegueses.5

    Enquanto isso, na Noruega, na Dinamarca e na Sucia, foram criadas assemblias regionais que, depois, como aconteceu 1 1a Islndia, se transformaram em assemblias nacionais. Embora o subseqente aumento do poder do rei e das burocracias centralizadas sob seu controle reduzisse a importncia dessas assemblias nacionais, elas deixaram sua marca no que veio a acontecer mais tarde.

    Na Sucia, por exemplo, a tradio da participao popular nas assemblias do perodo viking levou, no sculo XV, a um precursor do parlamento representativo moderno, quando o rei comeou a convocar reunies de representantes de diferentes setores da sociedade sueca: nobreza, clero, burguesia e povo. Posteriormente, essas reunies evoluram, transformando-se no riksdag , ou parlamento/'

    No ambiente radicalmente diferente da Holanda e de Flandres. a expanso da indstria, do comrcio e do setor financeiro ajudou a criar classes mdias urbanas, compostas de indivduos que dom inavam recursos econmicos de bom tamanho. Os governantes, que

    4 Benjamin R. Barber, The Death o f C o n m n m a l Liberty: A History o f Freedom in a S m :ss M ountam Contou , Princeton, Princeton University Press. 1974. p. 1 15.

    5 Gwyn Jones, A History o f the V ikings, 2. ed.. Oxford, Oxford Universily Press. 1985, p. 150, 152, 282-284.Franklin D. Scolt, Sweden: The N atio tTs H istory. Minneapolis. University of Minnesota Press, 1977, p. 111-.1-12.

  • Sobre a democracia 31

    ansiavam eternamente por rendimentos, no podiam ignorar* este rico filo nem tax-lo sem o consentimento de seus proprietrios. Para obter esse consentimento, convocavam reunies de representantes vindos das cidadezinhas e das classes sociais mais importantes. Essas assemblias, esses parlamentos ou esses estados, como eram s vezes chamados, no resultaram diretamente nas legislaturas nacionais de hoje, mas estabeleceram tradies, prticas e idias que favoreceram intensamente esse resultado.

    Enquanto isso, de origens obscuras, aos poucos surgiu um parlamento representativo, que nos sculos futuros viria a exercer, de longe, a maior e mais importante influncia sobre a idia e a prtica do governo representativo: o Parlamento da Inglaterra m edieval. Menos um produto intencional e planejado do que uma evoluo s cegas, o Parlamento emergiu das assemblias convocadas esporadicamente, sob a presso de necessidades, durante o reinado de Eduardo I, de 1272 a 1307.

    A evoluo do Parlamento a partir de suas origens uma histria muito demorada e bastante complexa para ser aqui resumida. No obstante, mais ou menos no sculo XVIII, essa evoluo havia levado a um sistema constitucional em que o rei e o Parlamento eram limitados um pela autoridade do outro; no Parlamento, o poder da aristocracia hereditria na Casa dos Lordes era con traba lan ado pelo poder do povo na Casa dos Comuns. As leis p rom ulgadas pelo rei e pelo Parlamento eram interpretadas por juizes que, de modo geral (embora no sempre), independ iam tanto do rei quanto do Parlamento.

    No sculo XVII, esse aparentemente maravilhoso sistema de pesos e contrapesos entre as grandes foras sociais do pas e a separao dos poderes dentro do governo era amplamente admirado na Europa. Ele foi louvado, entre outros, por Montesquieu, o famoso filsofo poltico francs, e admirado nos Estados Unidos pelos elaboradores da constituio, muitos dos quais esperavam criar na Amrica do Norte uma repblica que teria as virtudes do sistema ingls, sem os vcios da monarquia. Em seu devido tempo, a repblica que eles ajudaram a formar proporcionaria uma espcie de modelo para muitas outras repblicas.

  • 32 Robert A. Dahl

    Democratizao: a cam inho, apenas a cam in h o ...

    Olhando para trs com todas as vantagens de uma viso panormica do passado, facilmente conseguimos ver que 1 10 incio do sculo XVIII j haviam surgido na Europa idias e prticas polticas que se tornariam importantes elementos nas convices e nas instituies democrticas posteriores. Usando uma linguagem mais moderna e abstrata do que empregariam as pessoas dessa poca, deixem-me resumir 0 que seriam esses elementos.

    Favorecida por condies e oportunidades locais em muitas reas da Europa (especialmente 1 1a Escandinvia, em Flandres, na Holanda, na Sua e na Inglaterra), a lgica da igualdade estimulou a criao de assemblias locais, em que os homens livres pudessem participar do governo, pelo menos at certo ponto. A idia de que os governos precisavam do consenso dos governados, que no incio era uma reivindicao sobre o aumento dos impostos, aos poucos se tornou uma reivindicao a respeito das leis em geral. Numa rea grande demais para assemblias diretas de homens livres, como acontece numa cidade, numa regio ou num pas muito grande, 0 consenso exigia representao no corpo que aumentava os impostos e fazia as leis. Muito diferente do costume ateniense, a representao devia ser g a ran t id a pela eleio em vez de sorteio ou alguma outra forma de seleo pelo acaso. Para garantir o consenso de cidados livres em um pas. nao ou estado- nao, seriam necessrios legislativos ou parlamentos representativos eleitos em diversos nveis: local, nacional e talvez at provinciano, regional ou ainda outros nveis intermedirios.

    Essas idias e essas prticas polticas europias proporcionaram uma base para o surgimento da democracia. Enlre os proponentes de uma democratizao maior, as descries de governos populares na Grcia clssica, em Roma e nas cidades italianas s vezes em prestavam maior plausibilidade sua defesa. Essas experincias histricas demonstraram que os governos sujeitos vontade do povo eram mais do que esperanas ilusrias. Elas realmente aconteceram e duraram muitos sculos; valia a pena tirar proveito delas.

  • Sobre a democracia 33

    O que fa ltou rea lizar

    Se as idias, as tradies, a histria e os costum es que acabo de descrever continham uma promessa de dem ocratizao .. . na melhor das hipteses, seria apenas uma promessa. A in d a faltavam peas decisivas.

    Em primeiro lugar, mesmo nos pases com os m ais auspiciosos incios, imensas desigualdades impunham enormes obstculos democracia: d iferenas entre direitos, deveres, in f lu n c ia e a fora de escravos e homens livres, ricos e pobres, proprietrios e no-proprietrios de terras, senhores e servos, hom ens e mulheres, trabalhadores independentes e aprendizes, artesos em pregados e donos de oficinas, burgueses e banqueiros, sen h o res feudais e rendeiros, nobres e gente do povo, monarcas e seus s d i to s , funcionrios do rei e seus subordinados. Mesmo os h o m en s livres eram muito desiguais em status, fortuna, trabalho, obrigaes, conhecimento, liberdade, influncia e poder. Em m uitos lugares, a mulher de um hom em livre era considerada propriedade sua por lei, pelo costume e na prtica. Assim, como sempre acontecia em todos os cantos, a lgica da igualdade mergulhava d e cabea na desigualdade irracional.

    Em segundo lugar, mesmo onde existiam, as assem blias e os parlamentos estavam muito longe de corresponder a m n im os padres democrticos. Muitas vezes os parlamentos no eram preo para um monarca; deveriam passar muitos sculos an tes que o controle sobre os ministros do rei mudasse de um m o n arca para um parlamento ou que um presidente tomasse o lugar de um rei. Os parlamentos em si eram basties de privilgio, especia lm ente em cmaras reservadas para a aristocracia e o alto clero. N a m elhor das hipteses, os representantes eleitos pelo povo tinham apenas uma influncia parcial 1 1a legislao.

    Em terceiro lugar os representantes do povo , na verdade, no representavam todo o povo. Afinal de contas, os h o m en s livres eram homens. C om a exceo da mulher que ocasionalm ente ocupasse 0 posto de monarca, metade da populao adulta estava excluda da vida poltica. Muitos - ou melhor, a m aioria - dos

  • 34 Robert A. Dahl

    homens adultos tambm estavam excludos. Somente em 1832 o direito de voto foi estendido a apenas 5% da populao acima dos vinte anos de idade. Naquele ano foi preciso uma tempestuosa luta para expandir o sufrgio a pouco mais de 7% (Fig. 2)! Na Noruega, apesar do promissor aparecimento da participao popular nas T ings dos tempos dos vikings, a porcentagem era um pouco melhor.7

    F IG U R A 2. Eleitorado da G r-B retanha , 1831-193] (dados da E n ciclopdia Britnica [1970], verbete Parlamento)

  • Sobre a democracia 35

    expresso era seriamente restrita, especialmente se exercida para criticar o rei. No havia legitimidade ou legalidade na oposio poltica. A Leal Oposio a Sua Majestade era uma idia cujo momento ainda no havia chegado. Os partidos polticos foram amplamente condenados por ser considerados perigosos e indesejveis. As eleies eram notoriamente corrompidas por agentes da Coroa.

    O avano das idias e dos costumes democrticos dependia da existncia de determinadas condies favorveis ainda inexistentes. Enquanto som ente uns poucos acreditassem na democracia e estivessem prontos para lutar por ela, o privilgio existente se manteria com a ajuda de governos no-democrticos. Mesmo no momento em que muitos passaram a acreditar nas idias e nas metas democrticas, outras condies ainda seriam necessrias para uma democratizao maior. Mais adiante, na Parte IV, descreverei algumas das mais importantes dessas condies.

    Entretanto, temos de lembrar que, depois do promissor incio esboado nes te captulo, a democratizao no seguiu a trilha ascendente at o presente. Havia altos e baixos, movimentos de resistncia, rebelies, guerras civis, revolues. Por muitos sculos, a ascenso das monarquias centralizadas inverteu alguns dos antigos avanos ainda que essas mesmas monarquias talvez tenham ajudado a criar a lgum as das condies favorveis democratizao a longo prazo.

    Examinando-se a ascenso e a queda da democracia, est claro que no podem os contar com as foras histricas para assegurar que a democracia avanar para sempre - ou sobreviver, como nos fazem lem brar os longos perodos em que desapareceram da face da Terra os governos populares.

    Aparentemente, a democracia um fantinho incerta. Em todo caso, suas chances tambm dependem do que fazemos. Ainda que no possamos contar com foras histricas benevolentes para favorecer a dem ocrac ia , no somos simples vtimas de foras cegas sobre as quais no temos nenhum controle. Com uma boa compreenso do que a democracia exige e a vontade para satisfazer essas exigncias, podem os agir para preservar e levar adiante as idias e os costumes democrticos.

  • Captulo 3

    O que h pela frente?

    Quando se discute a democracia, talvez nada proporcione confuso maior do que o simples fato de democracia referir-se ao mesmo tempo a um ideal e a uma realidade. Muitas vezes essa distino no muito clara. Por exemplo, Alan diz:

    - Penso que a democracia a melhor forma possvel de governo.Beth retruca:- Voc deve estar doido, para acreditar que o chamado governo

    democrtico deste pas seja o melhor que poderamos ter! A meu ver, no chega a ser uma grande dem ocracia . ..

    Naturalmente, Alan fala de um a democracia ideal, e Beth se refere a um governo de verdade, do tipo chamado democracia. Al conseguirem esclarecer o significado que cada um dos dois tem em mente, A lan e Beth muito discutiro. De minha vasta experincia, sei como isso pode acontecer facilmente - at mesmo (sinto ter de acrescentar) entre acadmicos profundamente conhecedores das idias e das prticas democrticas.

    Em geral, podemos evitar esse tipo de confuso esclarecendo o significado que tencionamos dar expresso - Alan continua:

    - Ah, mas eu no falava do governo real... Quanto a isso. estaria inclinado a concordar com v o c . ..

    E Beth replica:- Muito bem, se voc est falando de governos ideais, creio

    que est certssimo. Acredito que, no plano ideal, a democracia a melhor forma de governo. E por isso que eu gostaria que o nosso governo fosse bem mais democrtico do que realmente .

  • 38 Robert A. Dahl

    Os filsofos empenharam-se em interminveis discusses a respeito das diferenas entre as nossas opinies sobre metas, fins, valores e assim por diante, alm de nossas opinies sobre realidade, verdade e por a afora... temos opinies do primeiro tipo em resposta a perguntas do tipo O que eu deveria fazer? Qual a coisa certa a fazer? Formamos opinies do segundo tipo em resposta a perguntas do tipo O que posso fazer? Que opinies esto abertas para mim? Quais sero as provveis conseqncias, se eu escolher fazer X e no Y ? As opinies do primeiro tipo so os julgamentos de valor, ou julgamentos morais; as do segundo, so os julgamentos empricos.

    Palavras sobre palavras

    Em bora os filsofos se tenham empenhado em interminveis discusses sobre a natureza dos julgamentos de valor, dos julgamentos empricos e sobre as diferenas entre esses dois tipos de julgamentos, aqui no precisamos preocupar com essas questes filosficas, pois na vida cotidiana estamos bastante habituados a distinguir entre o real e o ideal. No obstante, devemos ter sempre em mente que bom haver uma distino entre os julgamentos de valor e os julgamentos empricos, desde que no forcemos demais. Quando afirmamos que um governo deveria dedicar semelhante considerao ao bem e aos interesses de todas as pessoas ligadas por suas decises ou que a felicidade o bem maior, estamos o mais prximo possvel de julgamentos puros de valor. Um exemplo no extremo oposto a proposio estritamente emprica da famosa lei da gravitao universal de Newton. que afirma que a fora entre dois corpos diretamente proporcional ao produto de suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distncia entre elas. N a prtica, mviitas afirmaes contm ou implicam elementos dos dois tipos de julgamentos, o que aContece quase sempre em relao s opinies sobre a poltica pblica. Por exemplo, algum que diz que o governo deveria estabelecer um programa de seguro de sade universal , na verdade, estar afirmando que:

  • Sobre a democracia 39

    (1) a sade um bom objetivo; (2) o governo deveria esorar-se para atingir este objetivo: e (3) o seguro de sade universal a melhor maneira de atingir esse objetivo. Alm do mais, fazemos uma enorme srie de julgamentos empricos, como o (3), que re presentam nossa melhor opinio diante de grandes incertezas. N um sentido estrito, no so concluses cientficas . Muitas vezes b a seiam-se num misto de evidncias concretas, evidncias subjetivas, evidncia nenhuma e incerteza. Julgamentos desse tipo s vezes so chamados prticos ou em pricos . Por fim, um tipo im portante de julgamento prtico pesar os ganhos de um determinado valor, indivduo ou grupo de indivduos em relao aos custos de outro valor, indivduo ou grupo. Para descrever situaes dessa espcie, s vezes tomarei de em prstim o uma expresso f r e qentemente adotada pelos economistas, para dizer que temos de escolher enlre as diversas negociaes possveis entre os nossos objetivos. Conforme avanarm os, iremos deparando com todas essas variantes de julgamentos de valor e julgamentos empricos.

    Objetivos democrticos e realidades

    Embora valha a pena distinguir entre ideais e realidades, tam bm precisamos entender com o as realidades e as metas ou os ideais democrticos esto ligados entre si. Nos captulos mais adiante, explicarei mais completamente essas conexes. Enquanto isso, permitam-me usar um grfico como guia para o que teremos frente.

    Cada uma das quatro questes sobre Ideal e Realidade fu n damental:

    O que democracia? O que significa a democracia? Em outros palavras, que critrios deveram os utilizar para determinar se e at que ponto - um governo dem ocrtico?

  • 40 Robert A. Dahl

    FIGURA 3. Os elementos mais im portantes

    Id e a l

    M etas e ideais

    O q u e Por que democracia?dem o cra c ia

    Q u e inst i tu ies Que condiesp o l t ica s a favorecem ad em o c ra c ia democracia? e x ig e ?

    Governos democrticos reaisR e a l i d a d e

    C aptu lo 4 Captulos 5 -7 Parte III Parte IV

    Creio que um sistema como esse teria de satisfazer cinco critrios e que um sistema que satisfaa a esses critrios seria plenamente democrtico. No Captulo 4, descrevo quatro desses critrios e nos Captulos 6 e 7 mostro por que precisamos de um quinto critrio. No entanto, lembre-se de que esses critrios descrevem um sistema democrtico ideal ou perfeito. Imagino que nenhum de ns acredita que realmente possamos chegar a um sistema perfeitamente democrtico, dados os inmeros limites que o mundo real nos impe. Contudo, esses critrios nos do padres em relao aos quais podemos comparar as realizaes e as imperfeies restantes dos sistemas polticos existentes e suas instituies, e assim podem nos orientar para as solues que nos aproximariam do ideal.

    Por que a democracia? Que razes podem os dar para acreditar que a democracia o melhor sistem a poltico? Que valores so mais bem atendidos pela dem ocracia?

    Ao responder a essas perguntas, essencial que nos lembremos de que no estamos apenas perguntando por que as pessoas hoje apiam a democracia, por que a apoiaram no passado ou como surgiram os sistemas democrticos. Pode-se preferir a democracia por inmeras razes. Por exemplo, algumas pessoas preferem a democracia sem pensar muito por qu; em seu tempo e lugar, falsos louvores democracia podem ser o mais convencional ou o mais tradicional a fazer. Alguns preferiro a democracia por acreditarem que um governo democrtico lhes dar maior oportunidade

  • Sobre a democracia 41

    de enriquecer, por pensarem que a poltica democrtica poder abrir uma promissora carreira poltica ou porque a lgum que admiram lhes diz que a democracia melhor - e assim por d ia n te . ..

    Existiro razes para apoiar a democracia de im portncia mais geral ou, quem sabe, mais universal? Acredito que sim. Essas razes sero discutidas do Captulo 5 ao Captulo 7.

    Dados os limites e as possibilidades do unindo rea l, que instituies polticas so necessrias para corresponder d a m elhor m aneira possvel aos p a dres ideais ?

    Como verem os no prximo captulo, em te m p o s e lugares variados, sistemas polticos dotados de instituies polticas significativamente diferentes tm sido chamados de repb licas ou democracias. No captulo anterior, descobrimos uma razo pela qual diferem as instituies polticas: elas foram adaptadas a enormes diferenas no tam anho ou na escala das unidades polticas - populao, territrio, ou ambas. Algumas unidades polticas, como uma aldeia inglesa, so minsculas em rea e populao; outras, como a China, o Brasil ou os Estados Unidos, so gigantescas em ambas. Uma pequena cidade poder satisfazer razoavelmente bem aos critrios democrticos sem algumas das instituies que seriam necessrias em um grande pas, por exemplo.

    Entretanto, desde o sculo XVIII. a idia de democracia foi aplicada a pases inteiros: os Estados Unidos, a Frana, a Gr- Bretanha, a Noruega, o Japo, a ndia. Instituies polticas que pareceriam necessrias ou desejveis para a dem ocracia na pequena escala de uma cidadezinha ou de uma vila mostraram ser totalmente imprprias para a escala muito maior de um pas moderno. As instituies polticas adequadas para uma cidadezinha seriam tambm totalmente imprprias at mesmo para pases pequenos na escala global, como a Dinamarca ou a Holanda. N os sculos XIX e XX, surgiu um novo conjunto de instituies parcialmente assemelhado s instituies polticas nas democracias e nas repblicas antigas; mas, visto na ntegra, ele constitui um sistem a poltico inteiramente novo.

    O Captulo 2 apresentou um rpido esboo desse desenvolvimento histrico.-Na Parte III, descrevo mais p lenam ente as insti

  • 42 Robert A. Dahl

    tuies polticas das verdadeiras democracias e como elas variam em pontos importantes.

    Uma palavra de advertncia: dizer que determinadas instituies so necessrias no dizer que elas sejam suficientes para atingir a democracia perfeita. Em todos os pases democrticos h uma grande lacuna entre a democracia real e a democracia ideal. Esta lacuna oferece uma dificuldade: poderamos encontrar m aneiras de tornar os pases democrticos mais democrticos?

    Se at mesmo os pases democrticos no so totalmente democrticos, o que poderem os dizer de pases que no dispem das grandes instituies polticas da democracia moderna - os pases no-democrticos? C om o seria possvel torn-los mais dem ocrticos, se que isto seria possvel? Por que razo alguns pases se tornaram mais democrticos do que outros? Essas questes nos levaro a outras. Que condies em um pas (ou qualquer outra unidade poltica) favorecem o desenvolvimento e a estabilidade das instituies democrticas? Inversamente, poderamos perguntar: quais condies tm probabilidade de evitar ou impedir seu surgimento e sua estabilidade?

    No mundo de hoje, essas questes tm extraordinria importncia. Felizmente, neste final do sculo XX, temos respostas muito melhores do que se poderia obter h poucas geraes e muito m elhores do que em qualquer outro momento da histria. Na Parte IV. indicarei as respostas que temos para essas questes decisivas 1 10 momento em que se encerra o sculo XX.

    As respostas que temos no deixam de ser um tanto incertas. No obstante, elas proporcionam um ponto de partida mais firme do que nunca para procurarmos as solues.

    Dos julgamentos de va lor aos julgamentos empricos

    Antes de abandonar o grfico, desejo chamar ateno para uma importante mudana quando passamos da esquerda para a d ireita. Ao responder pergunta O que democracia?, fazemos ju l gamentos exclusivamente baseados em nossos valores ou no que acreditamos ser um objetivo bom, correto ou desejvel. Quando passamos para a pergunta Por que democracia?, nossos ju lga

  • Sobre a democracia 43

    mentos continuam dependendo muito de valores ideais, mas tambm de nossas convices relacionadas a conexes causais, a limites e a possibilidades no mundo real nossa volta - ou seja, em julgamentos empricos. Comeamos a confiar b em mais nas interpretaes das evidncias, dos fatos e dos fatos implcitos. Quando tentamos decidir que instituies polticas a democracia realmente exige, confiamos ainda mais nas evidncias e nos julgamentos empricos. No entanto, aqui tambm o que tem im portncia para ns em parte depende de nossas opinies anteriores sobre o significado e o valor da democracia. A razo pela qual talvez nos preocupemos com a form a das instituies polticas no m undo real que os valores da democracia e seus critrios so importantes para ns.

    Q uando chegamos ao lado direito do grfico e procuramos de term inar as condies que favorecem o desenvolvim ento e a estabilidade das instituies democrticas, nossas opinies so diretamente empricas, dependem inteiramente da maneira como interpretamos as evidncias de que dispomos. Por exemplo: as convices democrticas contribuem ou no contribuem de maneira significativa para a sobrevivncia das instituies polticas democrticas?

    Assim , nossa trilha nos levar da explorao de ideais, metas e valores, na Parte II, para as descries muito mais empricas das instituies polticas, na Parte III. Com isso, estaremos em posio para, na Parte IV, passarmos a uma descrio das condies favorveis ou desfavorveis para as instituies polticas democrticas, em que nossas opinies sero de natureza quase exclusivamente em prica . Por fim, no ltimo captulo, desc revere i algumas das dificuldades que as democracias tero de enfrentar nos prximos anos.

  • Parte II

    A democracia ideal

  • Captulo 4

    O que democracia?

    Todos ns temos objetivos que no conseguimos atingir sozinhos. N o entan to , cooperando com outras pessoas que visam a objetivos semelhantes, podemos atingir alguns deles.

    Suponham os ento que, para atingir certas metas em comum, voc e m uitas centenas de outras pessoas concordam em formar uma associao. Podemos deixar de lado os objetivos especficos dessa associao para nos concentrarmos na pergunta que serve de ttulo para este captulo: O que dem ocracia?

    Na prim eira reunio, continuaremos supondo, diversos membros dizem que a associao precisar de um a constituio. A opinio deles bem recebida. J que voc considerada pessoa dotada de certa habilidade em questes desse tipo, um membro prope que seja convidado para fazer a minuta de um a constituio, que depois levaria a um a prxima reunio para ser discutida pelos membros. A proposta adotada por aclamao.

    Ao aceitar a incumbncia, voc diz algo mais ou menos assim:- Creio que compreendo os objetivos que temos em comum,

    mas no sei muito bem como deveramos tomar nossas decises. Por exemplo: queremos uma constituio que entregue a muitos dos mais capazes e mais instrudos entre ns a autoridade para tomar todas as nossas decises mais importantes? Esse arranjo garantiria decises mais sbias, alm de poupar muito tempo e esforo para os outros.

    Os m em bros rejeitam em massa uma soluo desse tipo. Um deles, a quem chamarei de Principal Falante, argumenta o seguinte:

  • 48 Robert A. Dahl

    - Nas questes mais importantes de que esta assemblia tratar, nenhum de ns to m ais sbio do que os outros, para que automaticamente prevaleam as idias de um ou de outro. Ainda que alguns membros saibam mais sobre uma questo em determ inado momento, somos todos capazes de aprender o que precisamos saber. Naturalmente, terem os de discutir as questes e deliberar entre ns antes de chegar a qualquer deciso. Deliberar, discutir e depois tomar as decises polticas uma das razes pelas quais estamos formando essa associao. Mas todos estamos igualmente qualificados para participar da discusso das questes e discutir as polticas que a nossa associao deve seguir. Conseqentemente, a nossa constituio deve basear-se nesse pressuposto, ela ter de assegurar a todos ns o direito de participar das tomadas de d ec iso da associao. P ara ser bem claro: porque estamos todos igualmente qualiftcados, devemos nos governar democraticamente.

    O prosseguimento da discusso revela que as idias apresentadas pelo Principal Falante esto de acordo com a viso prevale- cente. Todos concordam em fazer o esboo de uma constituio, segundo esses pressupostos.

    Entretanto, ao comear a tarefa, descobre-se que diversas associaes e organizaes que se chamam democrticas adotaram muitas constituies d iferentes. Descobre-se que, m esm o entre pases democrticos , as constituies diferem em pontos im portantes. Por exemplo, a Constituio dos Estados Unidos prev um poderoso chefe executivo na presidncia e, ao mesmo tem po, um poderoso legislativo no Congresso; cada um bastante independente do outro. Em compensao, a maioria dos pases europeus preferiu um sistema parlamentar, em que o chefe do Executivo, o primeiro-ministro, escolhido pelo Parlamento. Pode-se facilmente apontar muitas outras diferenas importantes. Aparentemente, no existe uma s constituio democrtica (voltarei a essa questo 110 Captulo 10).

    Comeamos en to a nos perguntar se essas d iferen tes c o n s tituies tm algo em comum que justifique intitularem-se dem ocrticas. Talvez algumas sejam mais democrticas do que outras? O que significa d em o cra c ia ? Logo os leitores aprendero que a palavra usada de m aneiras pasmosamente diferentes. Sabiamente, voc decidir ignorar essa infinita variedade de definies, pois a

  • Sobre a democracia 49

    tarefa que tem pela frente mais especfica: criar um conjunto de regras e princpios, uma constituio, que determ inar como sero tomadas as decises da associao. Alm disso, a sua associao dever estar de acordo com um princpio elementar: todos os membros devero ser tratados (sob a constituio) como se estivessem igualmente qualificados para participar do processo de tomar decises sobre as polticas que a associao seguir. Sejam quais forem as outras questes, no governo desta associao todos os membros sero considerados politicamente iguais.

    Os critrios de um processo democrtico

    No espesso matagal das idias sobre a democracia, s vezes impenetrvel, possvel identificar alguns critrios a que um processo para o governo de uma associao teria de corresponder, para satisfazer a exigncia de que todos os membros estejam igualmente capacitados a participar nas decises da associao sobre sua poltica? Acredito que existam pelo menos cinco desses critrios (Fig. 4).

    Participao efetiva. Antes de ser adotada um a poltica pela associao, todos os membros devem ter oportunidades iguais e efetivas para fazer os outros membros conhecerem suas opinies sobre qual deveria ser esta poltica.

    Igualdade de voto. Quando chegar o momento em que a deciso sobre a poltica for tomada, todos os membros devem ter oportunidades iguais e efetivas de voto e todos os votos devem ser contados como iguais.

    Entendim ento esclarecido. Dentro de limites razoveis de tempo, cada membro deve ter oportunidades iguais e efetivas de aprender sobre as polticas alternativas importantes e suas provveis conseqncias.

    Controle do programa de planejamento. Os membros devem ter a oportunidade exclusiva para decidir como e, se preferirem, quais as questes que devem ser colocadas no planejamento. Assim, o processo democrtico exigido pelos trs critrios anteriores jamais encerrado. As polticas da associao esto sempre abertas para a mudana pelos membros, se assim estes escolherem.

    JeffersonHighlightParticipao Efetiva

    Antes de ser adotada uma poltica pela associao, todos os membros devem ter oportunidades iguais e efetivas para fazer os outros membros conhecerem suas opitnies sobre a qual deveria ser esta poltica.

    JeffersonHighlightIgualdade de voto

    JeffersonHighlightEntendimento esclarecido

    JeffersonHighlightControle do programa de planejamento.

  • 50 Robert A. Dahl

    Incluso dos adultos. Todos ou, de qualquer maneira, a m aioria dos adultos residentes permanentes deveriam ter o pleno direito de cidados implcito no primeiro de nossos critrios. Antes do sculo XX, este critrio era inaceitvel para a maioria dos defensores da democracia. Justific-lo exigiria que examinssemos por que devemos tratar os outros como nossos iguais polticos. Depois de explorarmos essa questo nos Captulos 6 e 7, voltarei ao critrio de incluso.

    FlGURA 4 . O que dem ocracia?

    A democracia proporciona oportunidades para:

    1. Participao efetiva

    2. Igualdade de voto

    3. Aquisio de entendimento esclarecido

    4 . Exercer o controle definitivo do planejamento

    5. Incluso dos adultos

    Enquanto isso, voc poderia comear a se perguntar se os quatro primeiros critrios so apenas selees muitssimo arbitrrias de vrias possibilidades. Terem os boas razes para adotar esses padres especiais para um processo democrtico?

    Porque esses critrios?

    A resposta mais curta simplesmente esta: cada um deles necessrio, se os membros (por mais limitado que seja seu nmero) forem politicamente iguais para determinar as polticas da associao. Em outras palavras, quando qualquer das exigncias violada, os membros no sero politicamente iguais.

    Por exemplo, se alguns membros recebem maiores oportunidades do que outros para expressar seus pontos de vista, provvel que suas polticas prevaleam. No caso extremo, restringindo as oportunidades de discutir as propostas constantes no programa, uma pequena minoria poder realmente determinar as polticas da

    JeffersonHighlightIncluso dos adultos

    JeffersonHighlightEm outras palavras, quando qualquer das exigncias violada, os membros no sero politicamente iguais.

  • Sobre a democracia 51

    associao. O critrio da participao efetiva visa evitar que isso acontea.

    Suponhamos que os votos de diferentes m em bros sejam contados desigualm ente . Por exemplo, imagine que aos votos seja atribudo um peso proporcional quantidade de propriedades dos membros e estes possuam quantidades imensamente diferentes de propriedades. Se acreditamos que todos os m em bros esto igualmente bem qualificados para participar das decises da associao, por que os votos de alguns deveriam ser contados mais do que os votos de outros?

    Embora os dois primeiros critrios paream q u ase evidentes, o critrio do entendimento esclarecido poderia ser questionado: ser necessrio ou adequado? Se os membros no fo rem igualmente qualificados, por que ento criar uma constituio baseada no pressuposto de que so iguais?

    Contudo, como disse o Principal Falante, o princp io da igualdade poltica pressupe que os membros estejam todos igualmente qualificados para participar das decises, desde q u e tenham iguais oportunidades de aprender sobre as questes da associao pela investigao, pela discusso e pela deliberao. O terceiro critrio visa assegurar essas oportunidades para cada um do s membros. Sua essncia foi apresentada no ano 431 a.C. pelo a teniense Pricles, numa famosa orao comemorativa dos mortos da guerra da cidade:

    N o s s o s c idados comuns, embora o c u p a d o s c o m as atividades da indstria, ainda so bons juizes das q u e s t e s pblicas . . . e. e m v e z de ver a discusso corno um im p e d im e n t o da ao. pens a m o s ser um preliminar indispensvel para q u a lq u er ao judi- c i o s a . 1

    Reunidos, os trs primeiros critrios pareceriam suficientes. Imagine que alguns membros se oponham secretam ente idia de que todos devam ser tratados como iguais polticos no governo dos negcios da associao. Os interesses dos m aiores proprietrios, dizem eles, so bem mais importantes do que os interesses dos

    1 Tuedides. C om plete })'rilings: The Pelopoimesicm t raduo Crawley (parao ing ls ) no -re su m id a , com introduo de John H. F i n l e y Jr .. Nova York, Random House. 1951, p. 105.

  • 52 Robert A. Dahl

    outros. Argumentam que, embora fosse melhor se os vo tos dos maiores proprietrios recebessem maior peso, eles sem p re v en ceriam, o que parece estar fora de questo. Consequentemente, seria necessrio haver um dispositivo que lhes permitisse prevalecer, no importa o que a maioria dos associados adote em voto livre e justo.

    Eles apresentam uma soluo criativa: uma constituio que corresponderia satisfatoriamente aos trs primeiros critrios e que, at este ponto, pareceria plenamente democrtica. No entanto, para anular esses critrios, propem exigir que nas reunies gerais os membros pudessem apenas discutir e votar sobre questes j includas no programa por uma comisso executiva: a participao nesse comit executivo estar aberta apenas para os m aiores p ro prietrios. Controlando o programa do governo, essa minscula igrejinha teria a certeza de que a associao jamais atuar contra seus interesses, porque jam ais permitir qualquer proposta que se mostre contrria a seus interesses.

    Depois de refletir, voc rejeitar a proposta deles, por violar o princpio da igualdade poltica que deveria sustentar. Em vez disso, voc levado a buscar arranjos constitucionais que satisfaam o quarto critrio, garantindo assim que o controle final permanea em mos do conjunto dos associados.

    Para que os m em bros sejam iguais polticos no governo dos negcios da associao, seria preciso corresponder a todos os quatro critrios. Parece ento que descobrimos os critrios que devem ser correspondidos por um a associao regida por princpios democrticos.

    Algumas questes decisivas

    Ser que respondemos pergunta o que dem ocrac ia? ... Seria to fcil responder a essa pergunta! A resposta que apresentei um bom lugar para comearmos, mas ela sugere m uitas outras perguntas.

    Para comear: mesmo que os critrios sejam bem aplicados ao governo de uma associao voluntria muito pequena, seriam aplicveis ao governo de um estado . ..?

  • Sobre a democracia 53

    Palavras sobre palavras

    Como a palavra estado muitas vezes utilizada de maneira livre e am bgua, eu gostaria de dizer rapidamente o que entendo sobre ela. A m eu ver, estado um tipo muito especial de associao que se distingue pelo tanto que pode garantir a obedincia s regras sobre as quais reivindica jurisdio, por seus m eios superiores de coero. Q uando as pessoas falam sobre governo , normalmente se referem ao governo do estado sob cuja jurisdio vivem. Por toda a histria, com raras excees, os estados exerceram sua jurisdio sobre pessoas que ocupam um determinado territrio (s vezes incerto ou contestado). Podemos ento pensar no estado como entidade territorial. Embora em alguns m omentos ou lugares o territrio de um estado no seja maior do que um a cidade, nos ltimos sculos em geral reclamaram jurisdio sobre pases inteiros.

    Pode-se pensar que uso subterfgios em minha rpida tentativa de transmitir o significado da palavra estado. Os textos de filsofos conhecedores da poltica e das leis provavelmente exigiriam o consumo de um a pequena floresta, mas o que eu disse servir para nossos objetivos.2

    V oltem os nossa questo. Podemos aplicar os critrios ao governo de um estado? claro que sim! H muito tempo, o foco essencial das idias democrticas o estado. Embora outros tipos de associaes, em especial algumas organizaes religiosas, tenham mais tarde desempenhado um papel na histria das idias e das praticas democrticas, desde o incio da dem ocracia na Grcia e na Roma antiga, as instituies polticas, que normalmente consideramos caractersticas da democracia, foram criadas, em essncia, como um meio de democratizar o governo dos estados.

    T alvez valha a pena repetir: nenhum estado jam ais possuiu um governo que estivesse plenamente de acordo com os critrios de um processo democrtico. provvel que isso no acontea. No

    2 Os leitores norte-americanos acostumados a aplicar a expresso estado para os estados que constituem o sistema federal dos E stados Unidos podero achar confuso este uso. A expresso amplamente usada na legislao internacional, nas c inc ias polticas, na filosofia, e em outros pases, incluindo diversos com sistemas de federao, constitudos de partes c h am ad as prov n c ia s (como o Canad), ccm tes (a Sua), Lande (a Alemanha), e assim por diante.

    JeffersonHighlightEstado

  • 54 Robert A. Dahl

    entanto, como espero demonstrar, esses critrios proporcionam configuraes altamente vantajosas para se avaliar as realizaes e as potencialidades do governo democrtico.

    Uma segunda questo: seria realista pensar que uma assoc iao poderia satisfazer plenam ente a esses critrios? Em outras palavras, poderia algum a associao verdadeira ser plenam ente democrtica? No m undo real, ser provvel que todos os m em bros de uma associao tenham iguais oportunidades de participar, de adquirir informao para compreender as questes envolv idas e assim influenciar o programa?

    No, no provvel. Se fosse, seriam teis esses critrios? Ou sero apenas esperanas utpicas pelo impossvel? A resposta mais simples que so to teis quanto podem ser modelos ideais e mais importantes e teis do que muitos. Eles nos proporcionam padres para medirmos o desem penho de associaes reais que af irm am ser democrticas. Podem servir como orientao para a m o ldagem e a remoldagem de instituies polticas, constituies, prticas e arranjos concretos. Para todos os que aspiram democracia, eles tam bm podem gerar questes pertinentes e ajudar na busca de respostas.

    Assim como se conhece o bom cozinheiro provando a comida, espero mostrar nos prxim os captulos como esses critrios podem nos orientar para as solues de alguns dos principais p rob lem as da teoria e da prtica democrtica.

    Uma terceira questo: considerando que nos sirvam de orientao, bastariam esses critrios para o planejamento de instituies polticas democrticas? Se, como imaginei anteriormente, houvesse recebido o encargo de planejar uma constituio dem ocrtica e propor instituies verdadeiras de um governo democrtico, voc conseguiria passar diretamente dos critrios ao plano? Ev iden temente, no. Um arquiteto munido apenas dos critrios d ados pelo cliente - localizao, tamanho, estilo geral, nmero e tipo de peas, custo, cronograma e assim por diante - s poderia desenhar o projeto depois de levar em conta uma srie enorme de fatores especficos. O mesmo acontece com as instituies polticas.

    No nada simples encontrarmos a melhor maneira de interpretar os nossos padres democrticos, aplic-los a um a associao especfica e criar as prticas e as instituies polticas que eles exigiriam. Para isto, devemos mergulhar de cabea nas realidades po

  • Sobre a democracia 55

    lticas, em que nossas opes exigiro incontveis julgamentos tericos e opinies prticas. Entre outras dificuldades, quando tentamos aplicar muitos critrios (neste caso, pelo menos quatro), provvel que venhamos a descobrir que s vezes entram em conflito uns com os outros e teremos de ponderar os valores conflitantes, como descobriremos no exame das constituies democrticas no Captulo 10.

    Por fim, uma questo ainda mais fundamental: aparentemente, as idias do Principal Falante foram aceitas sem discusso. Por qu? Por que deveramos acreditar que a democracia desejvel, especialmente no governo de uma associao importante como o estado? Se a caracterstica desejvel da democracia pressupe a desejvel caracterstica da igualdade poltica, por que deveramos acreditar em algo que, diante disso, parece bastante absurdo? E se no acreditamos em igualdade poltica, como poderemos apoiar a democracia? Se acreditamos em igualdade poltica entre os cidados de um estado, isto no exigiria que adotssemos algo como o quinto critrio at mesmo a cidadania?

    Agora nos voltaremos para essas complicadas questes.

  • Captulo 5

    Por que a democracia?

    Por que deveramos apoiar a democracia? Por que deveramos apoiar a democracia no governo do estado? Lembremos: o estado um a associao singular, cujo governo possui uma extraordinria capacidade de obter obedincia a suas regras pela fora, pela coero e pela violncia, entre outros meios. N o haver melhor maneira de governar um estado? Um sistema no-democrtico de governo no seria melhor?

    Palavras sobre palavras

    Em todo esse captulo, usarei a palavra democracia livremente para me referir a governos de verdade (no governos ideais) que at certo ponto, mas no completamente, correspondam aos critrios apresentados no ltimo captulo. As vezes, usarei tambm governo p o p u la r como expresso abrangente, incluindo os sistemas democrticos do sculo XX e ainda sistemas que so democrticos de maneira diferente, nos quais boa parte da populao adulta est excluda do sufrgio e de outras formas de participao poltica.

    At o sculo XX, a maior parte do mundo proclamava a superioridade dos sistemas no-democrticos, na teoria e na prtica. At bem pouco tempo, uma preponderante maioria dos seres humanos - s vezes, todos - estava sujeita a governantes no-democrticos. Os chefes dos regimes no-democrticos em geral tentaram justificar seu domnio recorrendo velha exigncia persistente de que, em geral, as pessoas simplesmente no tm competncia para parti

    JeffersonHighlight

  • 58 Robert A. Dahl

    cipar do governo de um estado. Segundo esse argumento, a maioria estaria bem melhor se deixasse o complicado problema do governo nas mos dos mais sbios - no mximo, a minoria, s vezes apenas urna pessoa... Na prtica, esse tipo de racionalizao nunca era suficiente, e, assim, onde a argumentao era deixada de lado, a coero assumia o controle. A maioria jamais consentia em ser governada pelos autonomeados superiores, era obrigada a aceit-los. Esse tipo de viso (e prtica) ainda no terminou. Mesmo nos dias de hoje. De uma forma ou de outra, a discusso sobre o governo de um, de poucos ou de muitos ainda existe entre ns.

    FIGURA 5 . P o r que a d e m o c ra c ia ?

    A democracia apresenta conseqncias desejveis:

    1. Evita a tirania

    2. Direitos essenciais

    3. Liberdade geral

    4. Autodeterminao

    5. Autonomia moral

    6. Desenvolvimento humano

    7. Proteo dos interesses pessoais essenciais

    8. Igualdade poltica

    Alm disso, as democracias modernas apresentam:

    9. A busca pela paz

    10. A prosperidade

    Diante de tanta histria, por que acreditaramos que a democracia a melhor maneira de governar um estado do que qualquer opo no-democrtica? Contarei por qu. A democracia tem pelo menos dez vantagens (Fig. 5) em relao a qualquer alternativa vivel.

  • Sobre a democracia 59

    A democracia ajuda a evitar o governo de autocratas cruis e corruptos

    0 problema fundam en ta l e mais persistente na po l t ic a talvez seja evitar o d o m n io autocrtico. Em toda a h is t r ia registrada, incluindo este nosso tem po , lderes movidos por m eg a lo m a n ia , p a rania, interesse pessoal, ideologia, nacionalismo, f religiosa, convices de superioridade inata, pura emoo ou simples impulso exploraram as ex cep c io n a is capacidades de coero e v io lnc ia do estado para a tender a seus prprios fins. Os custos h u m a n o s do g o verno desptico r iva lizam com os custos da doena , da fom e e da guerra.

    Pense em alguns exem plos do sculo XX. S o b o governo de Joseph Stalin, na U nio Sovitica (1929-1953), m i lh e s de pessoas foram encarceradas por motivos polticos, muitas v ezes devido ao medo paranico que ele tinha de conspiraes c o n tra si. Estim a-se que vinte m ilhes m orre ram nos campos de t rab a lh o , fo ram ex e cutados por razes po lticas ou morreram da fom e (1 9 3 2 -1 9 3 3 ) que aconteceu quando S ta l in obrigou os camponeses a se inscrever nas fazendas adm in is tradas pelo estado. Embora o u tro s vinte milhes talvez tenham co n seg u id o sobreviver ao governo d e Stalin , todos sofreram c ru e lm e n te .1 Pense tambm em A dolph H itler , o governante autocrata da A lem an h a nazista (1933-1945). S e m con tar as dezenas de m ilhes de baixas militares e civis re su ltan tes da Segunda Guerra M u nd ia l , Hitler foi diretamente re sp o n sv e l pela morte de seis m ilh es de judeus nos campos de co n c e n tra o , alm de milhares de oposito res , poloneses, ciganos, h o m o sse x u a is e membros de ou tros g rupos que ele desejava ex te rm in a r . Sob o governo desptico de Pot Pol, no Cambodja (1 9 7 5 -1 9 7 9 ) , o K hm er Vermelho m atou u m quarto da populao cam b o d jan a : pode-se dizer que um e x e m p lo de genocdio auto-infligido. T o grande era o temor de Pol Pol das classes instrudas, que e la s fo ram p ra ticamente e lim inadas - u sa r culos ou no ter calos n as m os era quase uma sentena de m orte .

    1 F.sses n m ero s