Sobre a Experiencia Poetica e Ritmica

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JOS RAFAEL MADUREIRA

MILE J AQUES -D ALCROZE S OBRE A E XPERINCIA POTICA DA RTMICA - UMA EXPOSIO EM 9 QUADROS INACABADOS -

UNICAMP 2008

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAO

MILE J AQUES -D ALC ROZE S OBRE A E XPERINCIA POTICA DA RTMICA - UMA EXPOSIO EM 9 QUADROS INACABADOS -

DOUTORADO EM EDUCAO

REA DE CONCENTRAO: EDUCAO, CONHECIMENTO, LINGUAGEM E ARTE

UNICAMP

2008III

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VI

Dedico este trabalho ao professor Iramar Rodrigues pois na ausncia de nosso fortuito encontro eu jamais teria compreendido o sentido profundamente mgico e potico da obra-prima de mile Jaques-DalcrozeVII

A G RA D E C I ME N T O S

Eliana Ayoub, Conrado Augustos Federici, Maria Fernanda Faigle, Carmen Soares, Milton Jos de Almeida, Franoise Dupuy, Agueda Bittencourt, Jnatas Manzolli, Mrcia Strazzacappa, Raul do Valle, Eugenia Casini Ropa, Marli Batista vila, Laurence Louppe, Andrea Moreno, Marlia Velardi, Ktia Danailof, Mrcia Cello e Joana LopesIX

Expresso reta no sonha (Manoel de Barros) Palavra morta no canta (Virginia Woolf)XI

RESUMO:

mile Jaques-Dalcroze (1865-1950), compositor austro-suo, o protagonista deste estudo. Suas andanas foram muitas assim como os temas de suas investigaes. Este um trabalho indito de traduo e discusso de parte substancial da obra terica de Jaques-Dalcroze, bem como um apontamento sobre as interfaces de seu sistema de educao musical denominado Rtmica (Rythmique) com o devir da modernidade na dana do sculo XX, na Europa como nos Estados Unidos, e com os sistemas ginsticos alemes que estiveram to perigosamente ligados ao totalitarismo europeu novecentista. Este trabalho foi organizado em 9 fragmentos que narram as incurses de Jaques-Dalcroze pelo universo da msica, do teatro, da dana e da ginstica. Os fragmentos aqui intitulados QUADROS encontram-se inacabados e, justamente por essa razo, guardam uma grande potncia germinativa que poder inspirar outras pesquisas acerca da temtica corpo-ritmo-movimento-expresso. Os 9 QUADROS so precedidos de um PRLOGO e esto organizados nos seguintes temas: 1. Panorama biogrfico de mile Jaques-Dalcroze; 2. Origens e princpios do sistema de educao musical denominado Rtmica; 3. A influncia das teorias da expresso de Franois Delsarte (1811-1871) na concepo da Rtmica; 4. A amizade com o cengrafo Adolphe Appia (1812-1928) e a relao da Rtmica com o conceito de obra de arte viva; 5. A experincia do Instituto Jaques-Dalcroze de Hellerau (1911-1914), situado nos arredores de Dresden (Alemanha); 6. O brutal fechamento do Instituto alemo devido ecloso da 1 Guerra Mundial; 7. A relao de Jaques-Dalcroze e de sua obra com o devir da dana do sculo XX; 8. A relao da Rtmica com a ginstica moderna especialmente a partir da figura do ex-aluno Rudolf Bode (1881-1971); 9. A permanncia da Rtmica na dana contempornea francesa a partir do trabalho de Franoise Dupuy. Ao final do texto terico encontra-se disponvel um material complementar de consulta organizado em 3 APNDICES: A. Cronologia da vida e das publicaes tericas de Jaques-Dalcroze; B. Dicionrio sobre as personalidades citadas ao longo do texto; C. Alguns aforismos esparsos de mile Jaques-Dalcroze. Em anexo, encontra-se disponvel o DVD mile Jaques-Dalcroze: Memrias em Msica (18 min.), no qual pode-se ouvir trechos das obras musicais engendradas por Dalcroze enquanto o olhar acompanha algumas imagens de suas andanas pelo mundo afora.ABSTRACT:

This work presents the concepts and practices of Eurhythmics (Rythmique) as conceived by the Swiss composer mile Jaques-Dalcroze (1865-1950). It discusses the relation of Eurhythmics with modern dance and gymnastics in Europe and in the U.S. It also stablishes a comparison between the poetic experience of Eurhythmics and the German employ of rhythm and expression gymnastics in the european totalitarism. This thesis is composed by 9 PICTURES which describe Dalcrozes exploration of the universe of dramatic arts (music, dance and theather) and gymnastics. These pictures are unfinished, and for this reason they may offer their potency to inspire future researches on the theme body-rhythmmovement-expression. The 9 pictures are preceded by a PROLOGUE and present the following approaches: 1. A biographical essay about mile Jaques-Dalcroze; 2. A synthesis about Dalcrozes system of musical education named Eurhythmics; 3. The influences of the theories of expression by Franois Delsarte (1811-1871) on the creation of Eurhythmics; 4. The friendship with the cenographer Adolphe Appia (1862-1928) and the relation between Eurhythmics and the Appias concept of living work of art; 5. The experience of the 1st Dalcrozes Eurhythmics Institute created at the garden-city of Hellerau (Germany); 6. The interruption of Helleraus school activities caused by the begining of the World War I; 7. The relation between Dalcrozes Eurhythmics and the conception of Modern Dance in Eupore and in the U.S.; 8. The relation between Eurhythmics and the germany gymnastics a special approach with the Expression-gymnastics created by Dalcrozes pupil Rudolf Bode (1881-1971); 9. The permanence of Eurhythmics at french contemporary dance with Franoise Dupuy. Annexed there is a video named mile Jaques-Dalcroze: Memory into Music, where its possible to hear Dalcrozes own compositions and see some images about his personal life and work.

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SU M R IOAPRESENTAO A Aventura de uma Pesquisa......................................................................................................................................... PRLOGO............................................................................................................................................................................ QUADRO 1 mile Jaques-Dalcroze Panorama Biogrfico........................................................................................................................................................ QUADRO 2 La Rythmique Uma Experincia Pessoal................................................................................................................................................. QUADRO 3 A Esttica Aplicada de Franois Delsarte Arcabouo Expressivo da Rtmica.................................................................................................................................... QUADRO 4 Adolphe Appia................................................................................................................................................................. QUADRO 5 Hellerau............................................................................................................................................................................ QUADRO 6 1914................................................................................................................................................................................... QUADRO 7 s voltas com a Dana..................................................................................................................................................... QUADRO 8 Memrias da Ginstica Moderna.................................................................................................................................. QUADRO 9 Franoise Dupuy Permanncia das Lies de Rtmica na Dana Contempornea.................................................................................... EPLOGO............................................................................................................................................................................. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS Textos de mile Jaques-Dalcroze..................................................................................................................................... Textos sobre mile Jaques-Dalcroze e sua obra.............................................................................................................. Bibliografia Geral............................................................................................................................................................. APNDICE A Cronologia........................................................................................................................................................................ APNDICE B Personalidades.................................................................................................................................................................. APNDICE C mile Jaques-Dalcroze e a Dana do Sculo XX (fluxograma)....................................................................................... APNDICE D mile Jaques-Dalcroze: Meditaes................................................................................................................................. DVD mile Jaques-Dalcroze: Memrias em Msica (material em anexo) 1 15

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XV

APRESENTAO

A AVENTURA DE UMA PESQUISA

Pode parecer ridculo ver um homem entreter um leitor com sua obra pessoal, supondo-se, desse modo, que ela merea ser analisada e admirada! geralmente aps a morte de um autor que o conjunto da crtica e do pblico ocupa-se de sua produo. s vezes, preciso aguardar por 100 anos at que algum manifeste algum interesse pelo seu legado artstico. Agora que envelheci, e isso sabido por todos, j comeo a me sentir um pouco morto e por essa razo que eu decidi falar sobre minha obra pedaggica, para prevenir falsas interpretaes que certamente sero feitas por crticos arrogantes, psiclogos confusos, pelo pblico pouco esclarecido e por todos aqueles que pessoas respeitveis no conheceram as evolues do meu pensamento e nem provaram as minhas experincias (JAQUES-DALCROZE. Petite Histoire de la Rythmique [1935], p. 3).

De fato, foi preciso esperar algum tempo at que o legado artstico-pedaggico de mile Jaques-Dalcroze chegasse ao Brasil luz de um trabalho acadmico, incompleto no resta dvida todavia realizado. No posso dizer que Jaques-Dalcroze um autor desconhecido por aqui e tampouco afirmar que ele seja uma figura notria. O sonoro sobrenome permanece vivo em muitos lbios, acoplado aos mltiplos discursos sobre a expressividade do corpo, na dana como na ginstica novecentista. No seria loucura imaginar que algumas de suas 1.200 canes tenham chegado ao Brasil na mala dos imigrantes, emaranhando-se ao cancioneiro nacional. Dalcroze um nome muito evocado em teses, artigos e estudos historiogrficos sobre as origens da modernidade na dana e na ginstica. No entanto, a referncia sua pessoa e sua obra limita-se ao formato enciclopdico notas de rodap que em nada contribuem para o entendimento esttico-filosfico de seu pensamento. Se no bastasse a insuficincia de dados concretos, as citaes apresentam-se num conjunto de informaes vagas e contraditrias. No incomum que se denomine o mtodo de educao musical por ele criado a Ginstica Rtmica ou simplesmente Rtmica (Rythmique) como Euritmia, sistema psicofsico integrante da teosofia de Rudolf Steiner. No existe sequer um texto de Jaques-Dalcroze traduzido em portugus. Isso poderia dificultar um pouco o acesso s suas idias, mas ainda assim no seria um impedimento definitivo. O francs, lngua original dos seus escritos, praticamente uma lngua oficial entre os intelectuais. Ademais, sua obra mais importante, Le Rythme, la Musique et lducation (O Ritmo, a Msica e a Educao), publicada pela primeira vez em 1920, foi quase simultaneamente traduzida em alemo (Basilia, 1921), ingls (Londres e Nova Iorque, 1921) e italiano (Milo, 1925). No se pode dizer tampouco que sua obra encontrava-se ausente das discusses acadmicas no Brasil. Em 1944, Mrio de Andrade posicionou-se publicamente sobre a qualidade

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dos estudos desenvolvidos por Jaques-Dalcroze afirmando tratar-se de um dos progressos tcnicos mais importantes do ensino musical da atualidade1. As investigaes de Jaques-Dalcroze causaram sempre muita controvrsia. Alguns, como o Prncipe russo Wolkonski, tinham por Dalcroze uma verdadeira adorao; outros, em sua maioria msicos que nunca experimentaram no corpo e muitas vezes nem mesmo no corao as inflexes da msica, desprezavam-no. Ainda hoje, muitos permanecem com a mesma idia apresentada por um crtico francs, conhecido como Levinson, para quem a Rtmica resume-se a marchar as notas2, ignorando a complexidade corporal e auditiva dos exerccios de Plstica Animada (Plastique Anime)3. Edgar Willems publicou, em 1954, a obra Le Rythme Musical (O Ritmo Musical), na qual ele destacou a influncia dos conceitos inaugurados por Jaques-Dalcroze, considerado por Willems como um inovador que lutou arduamente contra a esterilidade do ensino musical4. Algum tempo depois, por ocasio do centenrio de nascimento de mile Jaques-Dalcroze, o compndio Le Rythme, la Musique et lducation foi reeditado, juntamente com a publicao de uma obra coletiva organizada pelo compositor Frank Martin sobre a vida e a obra do criador da Rtmica5. Nos anos de 1980, Murray Schafer nomeou Dalcroze como o grande educador musical suo6, observando que ele estava muito frente de seu tempo7. Em 1996, Jos Eduardo Gramani publicou um caderno didtico curiosamente intitulado Rtmica Viva, no qual possvel encontrar vrios resqucios de uma tradio fundada por JaquesDalcroze. A viso contrapontstica do fenmeno rtmico8 apresentada por Gramani e o seu desejo manifesto em desenvolver a personalidade do msico so alguns exemplos dessa continuidade. Em consonncia com os ideais de Dalcroze, Gramani deixou registrado os seus anseios: Os exerccios deste livro so sugestes para que o msico conte menos e sinta mais9. Todas essas referncias so apenas um exemplo da visibilidade e da potncia das idias deixadas por mile Jaques-Dalcroze. Logo, como foi possvel que uma obra to instigante tenha ficado sombra de outros estudos? No se sabe.

* * *

Ouvi pela primeira vez o nome Jaques-Dalcroze em 1995, na disciplina de Histria da Dana ministrada por Joana Lopes no Departamento de Artes Corporais desta universidade.4

Apaixonei-me por aquele mundo que ela trazia flor da pele e matriculei-me consecutivamente em todas as disciplinas de sua responsabilidade: Histria da Dana II, Arte e Educao, Expresso Dramtica na Dana, Expresso e Movimento I e II. Por fim, acabei o seu grupo de pesquisa em teatro e dana, envolvendo-me na pesquisa sobre a Coreodramaturgia10. Depois de alguns anos dedicados ao Grupo Interdisciplinar de Teatro e Dana, fui escolhido, juntamente com outros estudantes, para realizar um estgio internacional no Centre dtudes et Recherches en Danse Contemporaine (Centro de Estudos e Pesquisas em Dana Contempornea), conhecido como Mas de la Danse (Casa da Dana) e localizado ao sul da Frana, na regio da Provena11. Embarquei com destino ao velho mundo e conheci Franoise Dupuy, algum que mantm viva uma tradio inaugurada por Jaques-Dalcroze na cidade-jardim de Hellerau (Alemanha), onde a Rtmica conquistou sua plenitude potica e impulsionou parte significativa da vanguarda artstica novecentista. Sob os preceitos de Franoise Dupuy, pude viver ainda sem muita conscincia a experincia potica da Rtmica, recebendo uma espcie de iniciao mstica de onde no se pode mais voltar.

* * *

s vsperas de finalizar o projeto de doutorado, em junho de 2003, soube que um professor do Instituto Jaques-Dalcroze de Genebra estaria em So Paulo ministrando um seminrio introdutrio de Rtmica. No hesitei em realizar minha inscrio convencido de que se tratava de uma manobra providencial. Custei a encontrar o local indicado e cheguei muito atrasado, mas a tempo de ouvir a enigmtica cano zimba papayuska em cnone a quatro vozes, afinadssimo em som e gestualidade. Disse a mim mesmo: Finalmente encontrei aquilo que venho buscando h muitos anos!. O coral de 80 vozes encontrava-se sob a regncia de Iramar Rodrigues, que por acaso brasileiro, nascido em Minas Gerais. Iramar Rodrigues graduou-se em piano pela Universidade Federal de Uberlndia, foi professor na Escola de Msica da Universidade Federal de Gois e, algum tempo depois, conquistou na Sua o certificado de rythmicien12. H mais de 30 anos ele ocupa-se da formao musical de crianas, jovens e profissionais nas mesmas salas ocupadas por Dalcroze no Instituto Jaques-Dalcroze de Genebra, situado na rua Terrassire, nmero 44, inaugurado em 1915. Como embaixador da Rtmica, Iramar Rodrigues viaja pelo mundo semeando os princpios da5

Rtmica, tendo passado pelo Brasil, Argentina, Estados Unidos, Japo, Tailndia, Uruguai, Espanha, Frana, entre outros pases. Com um talento artstico-pedaggico nico, Iramar Rodrigues reavivou em mim o prazer de ensinar, j um tanto embotado pelos dez anos de apatia escolar. Sob a sua orientao, as lies de Rtmica realizam-se como uma verdadeira experincia de conhecimento e amor. Aps o encerramento do seminrio introdutrio voltei para casa sentindo-me um tanto estranho13, mas em condies de concluir o projeto que me permitiu conquistar uma vaga no programa de ps-graduao da Faculdade de Educao desta universidade sob a orientao de Eliana Ayoub. Continuei participando dos seminrios de Rtmica ministrados por Iramar Rodrigues, sistematicamente organizados pela professora Marli Batista vila, diretora do Conservatrio Musical Brooklin Paulista e presidente da Associao Kodly do Brasil, a quem agradeo publicamente pelo empenho em divulgar a Rtmica no Brasil e pelo generoso emprstimo de alguns livros de seu acervo pessoal. Foram as lies presididas pelo embaixador da Rtmica que me permitiram compreender a potncia filosfica e potica da Rtmica. Como se os ensinamentos e conversas no bastassem para impulsionar esta aventura intelectual, Iramar Rodrigues disponibilizou-me um material inestimvel entre livros, vdeos, fotografias e peridicos originais, sem o qual este trabalho no teria alcanado os seus horizontes. No obstante a alegria de participar daqueles encontros, eu estava convencido de que seria preciso trazer o embaixador para Campinas e compartilhar com os meus companheiros de jornada potica o sabor daquelas lies de Rtmica. Somente em 2006 o desejo pde ser satisfeito. Graas ao desprendimento de Iramar Rodrigues, astcia de Vincius Terra e colaborao de Conrado Federici, Andrea Desiderio e Joice Curvelano Freire, realizamos nesta cidade o primeiro curso de Rtmica, totalmente gratuito, atravs da Faculdade de Educao Fsica da UNICAMP em parceria com o Instituto de Artes da UNICAMP. O evento, intitulado RTMICADALCROZE E A MUSICALIZAO DO CORPO,

foi calorosamente acolhido pela comunidade

acadmica, entre alunos e profissionais de pedagogia, msica, teatro, dana, educao fsica, fonoaudiologia e arquitetura, numa demanda que superou muitas vezes a capacidade do evento. No posso deixar de agradecer ao jornalista Manuel Alves Filho que escreveu uma bela matria de pgina inteira com fotos publicada no Jornal da UNICAMP14.6

No ano seguinte, realizei, juntamente com Joo Paulo de Oliveira, a segunda edio doRTMICA DALCROZE E A MUSICALIZAO DO CORPO,

uma verso mais modesta porm igualmente

memorvel aos inscritos. O evento foi realizado no teatro Dom Barreto sob a guarda das professoras Slvia Coelho e Vilma Nista. A vivacidade de Iramar Rodrigues encantou a jornalista Alice da Cruz que registrou o acontecimento num artigo com fotos publicado no Portal da UNICAMP15. Numa confluncia de acontecimentos, reencontrei novamente Franoise Dupuy durante aV BIENAL INTERNACIONAL DE DANA DE SANTOS,

realizada entre 14 e 18 de novembro de 2007,

em sua primeira e ltima viagem ao Brasil. Estive ao seu lado durante todo evento, atuando como professor assistente, tradutor e outros cuidados partilhados com Joo Paulo de Oliveira. Aos 82 anos e em grande forma, Franoise Dupuy presenteou a mim e aos demais participantes com lies poticas de dana, durante o ateli que ministrou, e com sua interpretao cnica no espetculo Sozinha?16, dirigido por Dominique Dupuy.

* * *

No difcil imaginar as dificuldades que envolveram a aventura desta pesquisa: a busca pelas fontes, as tradues e interpretaes, os acidentes de percurso, a perda de flego no meio da imerso, a insnia, os contrastes de excitao e apatia. De acordo com Murray Schafer: Na educao, fracassos so mais importantes que sucessos. Nada mais triste que uma histria de sucessos17. Isso bastante verdadeiro, mas devo confessar que fui favorecido por uma conjuno de encontros a conhecida conspirao csmica que me permitiu realizar um trabalho original com o mnimo de recursos. Excetuando-se algumas crises pessoais que no estabeleceram qualquer relao com este estudo, foi um grande prazer ler os escritos deixados por mile Jaques-Dalcroze, em todos os sentidos, um clssico da educao potica do corpo:A leitura de um clssico deve oferecer-nos alguma surpresa em relao imagem que dele tnhamos. Por isso, nunca ser demais recomendar a leitura direta dos textos originais, evitando o mais possvel bibliografia crtica, comentrios, interpretaes. A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questo; mas fazem de tudo para que se acredite no contrrio [...] O clssico no necessariamente nos ensina algo que no sabamos; s vezes descobrimos nele algo que sempre soubramos (ou acreditvamos saber) mas desconhecamos que ele o dissera primeiro (ou que de algum modo se liga a ele de maneira particular). E mesmo esta uma surpresa que d muita satisfao, como sempre d a descoberta de uma origem, de7

uma relao, de uma pertinncia [...] Os clssicos no so lidos por dever ou por respeito mas s por amor (CALVINO. Por que ler os Clssicos, p. 12-13).

Jaques-Dalcroze enfatizou: Existe apenas um meio para se compreender a Ginstica Rtmica: praticando-a18. Levei o aforismo muito a srio, uma idia que atravessa todas as vozes de seu pensamento. Procurei no ficar afundado em minha secretria, curvado sobre os livros e dicionrios. Sempre que possvel, nos intervalos entre a leitura dos textos tericos e a audio da obra musical engendrada por Jaques-Dalcroze, tentei provar na inteireza do corpo os conceitos que se revelavam sobre o papel sensivelmente marcado pelo tempo. Ao conscientizar-me de que a proficincia em msica era uma condio imprescindvel compreenso das sutilezas da Rtmica, busquei por lies complementares de msica, ritmo, piano, harmonia, improvisao e canto, recebendo preciosas orientaes de Beatriz Dokkedal, Dalga Larrondo, Neusa Sartori e Janice Pezoa, afinal: No se aprende a andar a cavalo lendo um tratado de equitao. A Rtmica, antes de mais nada, uma experincia pessoal19.

* * *

Debrucei-me sobre as andanas de um artista s voltas com os seus anseios, ideais e dvidas. Tentei seguir os rastros deixados por Jaques-Dalcroze e ler nas entrelinhas do seu discurso. Tropecei nas suas contradies, mas no ca. Busquei, desde o incio, alguns fios condutores. Encontrei-os somente ao final da jornada. Provei, na inteireza do corpo, o sabor das lies de Rtmica. Acompanhei, sem piscar os olhos, a narrao de suas peripcias. Observei as fotografias de sua pessoa, dos seus encontros e desencontros. Ouvi incontveis vezes a interpretao de suas composies: idlios, sutes, danas, canes e peras que me permitiram imergir na sua obra criativa e, por conseguinte, contemplar a sua alma de artista. No tive pretenses de historiador ou socilogo. Li as obras de Hobsbawm, Marc Bloch e Philippe Aris; estudei com os devotos de Michel Foucault e explorei o pensamento de Norbert Elias e Bourdieu. A experincia foi instigante, mas eu teria sido capaz de realizar uma Sociologia de mile Jaques-Dalcroze? No, no seria. Desejei realizar um estudo biogrfico sobre Dalcroze, mas no pude consultar o grande volume de cartas deixadas que, de acordo com os ensinamentos recebidos de Agueda Bittencourt, apresentam-se como um valioso material de investigao. Acredito que seria possvel, estando to longe da realidade europia, encontrar nessa8

correspondncia alguns pontos de tenso inexplorados pelos bigrafos suos. Quem sabe eu possa, um dia, viajar para Genebra e hospedar-me por alguns meses na biblioteca do Instituto Jaques-Dalcroze onde todos os documentos, partituras, livros e cartas encontram-se minuciosamente organizados, como se pode imaginar. Foram 5 anos inteiramente dedicados a recuperar uma obra esquecida. Sim, muito importante dizer que esta pesquisa excetuando-se a minha vida ntima constituiu o centro de minhas ocupaes, interesses e expectativas durante todo esse perodo. Entreguei-me por completo aos horrores e jbilos da vida acadmica. Vivi algumas delcias mundanas, isso certo, mas somente nos intervalos, e no o contrrio. Declinei vrias propostas de trabalho que me permitiriam uma vida mais confortvel por saber, devido ao meu temperamento passional, que elas iriam provocar um significativo desvio de rota. Com os meus ltimos recursos comprei um piano. Em conseqncia das minhas escolhas, minhas e de mais ningum, no acumulei honorrios e nem adquiri propriedades, no casei e no tive filhos, mas inaugurei esta pequena exposio de quadros inacabados. Ser o suficiente para um homem? No sei.

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Este estudo fundamentalmente um trabalho de traduo. Meu maior intuito foi revigorar os pensamentos de Jaques-Dalcroze fazendo-os cantar em portugus do Brasil. Trata-se de uma primeira traduo, arriscada e vivamente incompleta. Estou consciente de que as citaes aqui apresentadas to numerosas empanam consideravelmente o brilho desta narrativa. J ouvi dos lbios de Andrea Moreno, rememorando Walter Benjamin, que as citaes assaltam o leitor, pilhando as suas convices e extraindo de seus coraes o dom da iluso (illudere). Mas o que eu poderia ter feito? Era preciso dar voz ao compositor esquecido, um compromisso moral com aquele que despertou em mim o msico adormecido. No sou tradutor de profisso, mas poeta e artigiano del corpo dansante, nas palavras de Eugenia Casini Ropa. Contudo, a necessidade imps-se. Diante dos silncios e ausncias que se apresentavam diante da obra de Dalcroze, assumi a perigosa e igualmente mgica tarefa da traduo. A traduo um ofcio esttico. Todas as escolhas lingsticas so essencialmente escolhas polticas do tradutor, carregadas de pequenas traies: traduttore, traditore. De acordo9

com Humboldt: Cada tradutor deve infalivelmente encontrar um dos dois escolhos seguintes: ele se limitar com demasiada exatido seja ao original, em detrimento do gosto e da lngua de seu povo, seja originalidade de seu povo, em detrimento da obra a ser traduzida20. Em sua verso bastante ousada de Satyricon, Paulo Leminski apresentou mais uma possibilidade: Ao tradutor que quer devolver um vivo aos vivos, uma tarefa ingrata. Entre trair Petrnio e trair os vivos, escolhi trair os dois, nico modo de no trair ningum21. Bom, entre trair mile Jaques-Dalcroze e trair os leitores brasileiros... Estudei muitas lnguas, aquelas tidas como comerciais, as clssicas e algumas orientais. No me formei em nenhuma delas, mas a experincia permitiu-me uma certa fluncia nas incontveis viagens que envolveram esta aventura de traduo. Os estudos hermenuticos realizados sob a orientao de Jeanne Marie Gagnebin foram igualmente preciosos, assim como as Cenografias da Memria descritas por Milton Jos de Almeida que, entre imagens e textos, permitiram-me ultrapassar as zonas de segurana desta jovem e ambiciosa universidade. Arrisquei a minha prpria pele ao tentar fazer deste trabalho uma luta contra a indiferena, impedindo que as idias aqui presentes fossem subjugadas pela mquina cientfica, tornando-se inertes, desprovidas de qualquer humanidade e imaginao. Tentei no sucumbir diante de uma indstria acadmica que todos os anos produz milhes de trabalhos, teses e artigos que j nascem mortos, um insulto manifesto contra a vida. No tenho condio de avaliar os resultados dessa batalha, j no mais importa. Cumpri aquilo que havia proposto a mim mesmo e agora posso descansar um pouco antes da prxima viagem.

Amo todos os artistas e os compreendo (bando de surdos-mudos no metr). Eles so a minha famlia e sua existncia me impede de ser s. Ser artista uma garantia para nossos semelhantes de que as dificuldades da vida no deixaro que voc se torne um assassino. Deus inventou a arte (incluindo todas as formas) como dispositivo regulador, como dispositivo de sobrevivncia. O pblico merda, desnecessrio; a comunicao rara; a arte uma lngua, como a lngua chinesa. Quem entende? Os surdos-mudos do metr. Fao escultura por necessidade, no por diverso. No me divirto nem um pouco. Na verdade, tudo que eu fao um campo de batalha, uma luta at o fim (BOURGEOIS. Destruio do Pai/Reconstruo da Me, p. 131).

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A idia de organizar este estudo na forma de quadros veio-me da parte do compositor Jnatas Manzolli durante o exame de qualificao. Ao perceber a natureza fragmentada do trabalho, ele rememorou os Quadros de uma Exposio de Mussorgski, minuciosamente costurados em rond. No estou certo de ter realizado a ligao entre os fragmentos, mas devo afirmar que a imagem de uma exposio de quadros retirou-me de um preocupante estado de inrcia intelectual. Por muitos e muitos meses depois da qualificao, e tambm antes, naveguei deriva no oceano de fontes, tradues, idias e possibilidades que se apresentavam diante dos meus olhos. Ademais, muito me agradou a idia de uma exposio de quadros que, de alguma maneira, permitiu-me honrar uma tradio fundada por J. B. Madureira22, meu av, e mantida por meu pai. Desejo que este estudo seja lido e imaginado como uma exposio de quadros. Individualmente, os quadros talvez no revelem o empenho do artista em trazer luz uma histria esquecida. A fora desta exposio encontra-se no conjunto dos nove quadros expostos. Os quadros esto inacabados, inconclusos como diria Milton Almeida, mas era mister torn-los pblicos. Cada quadro carrega em si uma grande fora germinativa. Cultivados por mos habilidosas eles podero florescer em largos prados, o alimento para outras lembranas perdidas. Os visitantes, como numa exposio real, podem demorar-se mais num determinado quadro, menos em outro de acordo com suas necessidades, interesses ou desinteresses pessoais. O visitante poder passear livremente pela exposio, no sendo preciso aos mais corajosos seguir a ordem sugerida por este guia. Os quadros so suficientemente independentes entre si e, portanto, todas as escolhas so possveis. Ao final dos quadros, depois do EPLOGO, encontra-se um conjunto de 4 apndices; no APNDICE A, organizei, como se costuma fazer num estudo como este, uma cronologia da vida e das publicaes tericas de Jaques-Dalcroze; o APNDICE B constitui-se como uma pequena biografia das personalidades citadas ao longo dos quadros que no foram devidamente apresentadas, com suas datas de nascimento e morte, de modo a no embaraar a leitura23, como diria Mrio de Andrade; o APNDICE C um fluxograma das influncias de JaquesDalcroze sobre a dana do sculo XX; o APNDICE D uma seleo de aforismos escritos por mile Jaques-Dalcroze que no puderam ser includos ao longo do texto, mas que seria ingrato deix-los de lado observando-se a delicadeza com que eles acolheram-me nos momentos difceis.

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Realizei, juntamente com Conrado Federici, uma edio em vdeo na qual possvel ouvir fragmentos da obra musical engendrada por Jaques-Dalcroze enquanto o olhar acompanha imagens de algumas andanas do protagonista deste estudo. A maior parte das msicas apresentadas no DVD de autoria de mile Jaques-Dalcroze, extradas do programa Musique en Mmoire apresentado por Jean-Luc Rieder e Jacques Tchamkerten na Radio Suisse Romande durante a semana de 29 de agosto a 2 de setembro de 2005. A Rtmica, como todo pensamento de seu autor, uma experincia de vitalidade. O vdeo uma tentativa de compensar a linearidade do texto com imagens e sons capazes de sensibilizar o ouvido e a imaginao do leitor pois, privado dessas duas faculdades, o entendimento deste estudo torna-se bastante restrito. O vdeo inicia-se com uma narrativa in off, registrada em 1941 durante uma conferncia proferida por mile Jaques-Dalcroze, um raro registro de sua materialidade fsica. O discurso foi publicado no seu terceiro livro conforme o trecho que se segue:Um dos nossos maiores defeitos e o mais ignorado, no nos darmos conta, com exatido, das nossas fragilidades ou mesmo da verdadeira natureza dos nossos atos. Sem o fongrafo ns no conheceramos o verdadeiro timbre da nossa voz. Nossos olhos no teriam realmente conscincia dos jogos de luz registrados pelos raios X. Ns no conheceramos o nosso carter to bem quanto o fazem nossa me, nossa esposa e nossos filhos. Temos necessidade de estudos especiais que nos permitam sentir e diferenciar os atos mecnicos do nosso corpo. Do ponto de vista artstico, nosso julgamento necessita ser desenvolvido, refinado e afinado graas a numerosas experincias, e por essa razo bom que, diante da incapacidade em julgar a ns mesmos, ns recorramos aos bons ofcios de nossos familiares. Ns encontraremos neles pessoas muito amveis, completamente prontas para nos criticar (JAQUES-DALCROZE. Souvenir, Notes et Critiques [1942], p. 207).* * *IM PO R TA N T E A V I SO A O L E IT O R

A Rtmica, antes de mais nada, uma experincia pessoal de msica, ritmo, sensibilidade, movimento e expresso. Seus encantos no podem ser descritos. Como obra de arte viva, preciso estar disposto a entregar-se a ela com a inteireza do corpo. Somente um verdadeiro rythmicien poder conduzir a aventura de uma lio de Rtmica; isso no significa que preciso partir em busca de um certificado oficial (muitos rythmiciens credenciados falharam drasticamente ao tentar trazer tona os princpios criados por Jaques-Dalcroze). O verdadeiro rythmicien algum que foi generosamente cultivado nos domnios da arte especialmente aquelas presididas por Apolo e pelas Musas e que no tenha se esquecido de manter aquecidas as honrarias dedicadas ao deus do xtase, Dioniso. O verdadeiro rythmicien algum apaixonado pela arte de ensinar. As garbosas titulaes dos doutos no tm qualquer valor se o rythmicien no for capaz de traduzir atravs do prprio corpo as infinitas nuances da msica bem como suas dissonncias e fazer o caminho de volta.

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NOTAS ANDRADE. Pequena Histria da Msica [1944], p. 192. Apud WILLEMS. Le Rythme Musical [1954], p. 241. 3 A Plastique Anime um dos fundamentos da Rtmica de Jaques-Dalcroze, podendo ser imaginada como solfejo corporal, ou seja, uma leitura da escrita musical realizada atravs de gestos corporais. 4 WILLEMS. Le Rythme Musical [1954], p. 242. 5 MARTIN et al. mile Jaques-Dalcroze: lhomme, le compositeur, le crateur de la Rythmique (1965). 6 SCHAFER. O Ouvido Pensante, p. 304. 7 Ibidem, p. 305. 8 GRAMANI. Rtmica Viva, p. 13. 9 Ibidem. 10 Coreodramaturgia um sistema de escrita cnica para atores, atores-bailarinos, performers e arte-educadores. Conceito que nasceu da pesquisa denominada Do Movimento Palavra, da Palavra ao Movimento. Aplicado na criao dramatrgica do teatro-dana e nos eventos da arte do movimento. Define-se como contribuio a Coreologia de Rudolf Laban e fundamentado nos princpios desta teoria. Estilisticamente configura-se como neoexpressionismo e designa uma obra de perfil interdisciplinar (LOPES. Coreodramaturgia, p. 16). 11 Consultar a matria no boletim UNICAMP NOTCIAS (julho de 1997, ano VII, p. 5). 12 Rythmicien uma palavra francesa que indica o profissional ou o estudante do sistema de Jaques-Dalcroze conhecido como Rtmica (Rythmique). O termo ser utilizado ao longo deste trabalho na sua forma original com as relativas declinaes de gnero (rythmicien para o masculino e rythmicinne para o feminino) e nmero (rythmiciens e rythmicinnes). 13 Alguns dias depois da primeira aventura potica da Rtmica conheci Maria Fernanda Faigle, minha companheira Shakti, a quem agradeo mais uma vez pelo incondicional apoio, pela leitura atenta, pelas sugestes e pela reviso destas letras aqui colocadas ao abrigo da morte. 14 Consultar a matria no JORNAL DA UNICAMP (7 de agosto de 2006, ano XX, n. 332). 15 Consultar a matria no PORTAL DA UNICAMP (26 de julho de 2007). 16 Este espetculo uma rememorao potica de trs antigas e premiadas peas interpretadas por Franoise Dupuy: Marinada (Franoise Dupuy, 1954), Rostos de Mulheres (Dominique Dupuy, 1953) e Epitalmio (Deryk Mendel, 1957). 17 SCHAFER. Op. cit., p. 277. 18 JAQUES-DALCROZE. Notes Barioles [1948], p. 136. 19 Lducation par le Rythme [1909], p. 66. 20 Humboldt apud BERMAN. A Prova do Estrangeiro, p. 7. 21 Cf. Paulo Leminski no posfcio de PETRNIO. Satyricon, p. 190. 22 Jos Benevenuto De Madureira, nasceu no dia 28 de agosto de 1903 na cidade de Sorocaba (So Paulo). Ele foi artista plstico profissional e recebeu medalhas de ouro em diversas exposies oficiais em So Paulo e Santos. Ele lecionou artes em vrios colgios na capital paulista como, por exemplo, o Colgio Sion, e publicou livros didticos de desenho. Trabalhou na Secretaria de Educao de So Paulo e uma curiosa informao que recebi h pouco tempo formou-se na primeira turma da Escola de Educao Fsica do Exrcito situada na Praia Vermelha (Rio de Janeiro). Por sua obra artstica e pedaggica, ele foi homenageado pela prefeitura de Santos que conferiu a ele o nome de um colgio estadual de 1 e 2 graus, no mesmo modo que em Bertioga uma rua leva o seu nome. Seus quadros encontram-se expostos em diversas reparties pblicas em So Paulo, na Pinacoteca do Estado, no acervo do Ita Cultural e em galerias no Brasil e exterior. Faleceu na cidade de Santos, aos 73 anos de idade. 23 ANDRADE. Op. cit., p. 9.2 1

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PRLOGO

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mile Jaques-Dalcroze foi um homem complexo. Acompanhar suas andanas poticas e os volteios de seu pensamento no foi uma tarefa fcil. Dalcroze teve uma vida longa, viveu quase 85 anos plenamente capaz em suas faculdades artsticas e intelectuais. Quando menino, foi escola em bondes puxados por cavalos; na idade madura conheceu o cinema que, ao contrrio dos seus contemporneos, no lhe causou grande fascnio, excetuando-se as animaes de Walt Disney1 e Fred Astaire, que ele considerava genial2. E embora tenha sido nutrido por seios burgueses, Dalcroze criticou o esnobismo de uma burguesia hipcrita e estpida3 e no permitiu, como tantos homens de Toulouse, ser engolido pelo esprito econmico:Velho burocrata, meu companheiro aqui presente, ningum nunca fez com que te evadisses, e no s responsvel por isso. Construste tua paz tapando com cimento, como fazem as trmitas, todas as sadas para a luz. Ficaste enroscado em tua segurana burguesa, em tuas rotinas, nos ritos sufocantes de tua vida provinciana; ergueste essa humilde proteo contra os ventos, e as mars, e as estrelas. No queres te inquietar com os grandes problemas e fizeste um grande esforo para esquecer a tua condio de homem. No s o habitante de um planeta errante e no lanas perguntas sem soluo: s um pequeno-burgus de Toulouse. Ningum te sacudiu pelos ombros quando ainda era tempo. Agora a argila de que s feito j secou, e endureceu, e nada mais poder despertar em ti o msico adormecido, ou o poeta, ou o astrnomo que talvez te habitassem. No me queixo mais das lufadas de chuva. A magia do ofcio abre para mim um mundo em que enfrentarei dentro de duas horas, drages negros e cumes coroados por uma cabeleira de relmpagos azuis. Nesse mundo, quando vier a noite, livre, lerei meu caminhos nos astros (SAINT-EXUPRY. Terra dos Homens, p. 18-19).

Dalcroze colocou sua genialidade prova em inmeros papis: pianista, professor, diretor teatral, redator, maestro, cantor, ator, coregrafo, escritor, chansonnier (fazedor de canes). Em cada um deles aplicou-se com a mais apaixonada devoo. Suas ambies no eram nada modestas. Na juventude, sonhou em ocupar um lugar no Panteo dos grandes compositores, ao lado de Bach, Mozart e Beethoven, que ele considerava um pai espiritual4. Na idade madura, convenceu-se de que a Rtmica, sistema de educao musical por ele concebido, iria garantir a redeno da humanidade, sensivelmente empalidecida devido aos novos modos scioeconmicos de subsistncia. Ele acompanhou o desenrolar das duas guerras mundiais, um testemunho eloqente da misria humana. Ainda que tenha acreditado que os exerccios de Rtmica poderiam ser teis aos soldados5, ele era um pacifista declarado:Por que as pessoas, em cada pas, no protestam contra a guerra, responsvel por incontveis atos de barbrie? O militarismo inimigo da civilizao. A guerra uma vergonha para todo homem cultivado. Ah! Se outros intelectuais tivessem tido a coragem de protestar por todo lado. Oh! Quantas

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noites! Esta angstia de viver enquanto outros morrem, isso tudo insuportvel (Jaques-Dalcroze apud BERCHTOLD. mile Jaques-Dalcroze et son Temps, p. 109).

A cega devoo pelas belezas de sua dileta ptria no permitiu a ele compreender que era justamente o ufanismo nacionalista o responsvel pelos milhes de mortos que, conforme Wilfred Owen, acreditaram na velha mentira: dulce et decorum est pro patria mori6.* * *

Dalcroze teve a oportunidade de visitar as famosas Exposies Universais7 muito populares em seu tempo na Frana, na Alemanha, na Inglaterra como na Sua. Em 1889, ele estava em Paris realizando estudos com Mattis Lussy e pde integrar o nmero de 24 milhes de pessoas que visitou a grande exposio colonial comemorativa dos 100 anos da Revoluo Francesa. Dalcroze, um jovem europeu de 24 anos, foi uma presa fcil do discurso civilizatrio empregado pelos 61.722 expositores dos quais 25.364 eram estrangeiros. Com grande fascnio ele passeou pela Exposio, demorando-se com especial curiosidade nos pavilhes orientais onde era possvel observar, por trs das grades, alguns autctones especialmente trazidos para ilustrar o primitivismo lascivo de suas danas e cantos. A msica dos orientais transportou-o de volta a Argel, onde ele encontrou, havia alguns anos, a exuberncia rtmica e expressiva do corpo. Reviver aquele encantamento na confortvel condio de espectador fortaleceu nele a crena sobre a potncia vivificante dos ritmos puros:Minha convico foi reforada pela audio durante a Exposio de Paris em 1889 das orquestras rabes e depois, mais tarde, na exposio colonial de Wembley (Londres), onde uma orquestra birmane triunfava em sonoridades cristalinas reguladas por acentuaes rtmicas alternadas de 5 e 7 tempos. Eu tive a chance de conhecer esses ritmos na Arglia onde eu ouvi muita msica rabe e pude assistir a uma festa dos Aissaouahs, muulmanos fanticos cuja dana excita num nvel to alto que eles se tornam invulnerveis, lanando-se sobre as cinzas incandescentes, indiferentes ao seu ardor. Suas danas eram extremamente violentas, os saltos e contores de uma originalidade extraordinria e o instinto de acelerao era maravilhosamente desenvolvido. A dana deles pouco a pouco se anima, acompanhada de um crescendo dos tambores. O accelerando produz um efeito diablico, completado por um silncio sbito enquanto alguns danarinos atiram-se no cho. Eu reencontrei essas aceleraes num vilarejo hngaro (seu nome agora me escapa) onde as orquestras ciganas executavam os famosos temas que inspiraram Liszt a compor suas rapsdias (JAQUES-DALCROZE. La Musique et Nous [1945], p. 19-20).

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Em muitos aspectos, Dalcroze estava frente de seu tempo, mas ele no foi capaz de olhar atravs dos cenrios maquiados, da iluso construda pela perspectiva o trompe-lil, to mentirosa quanto a boa vontade dos colonizadores em dignificar a vida dos colonizados. Inteiramente convencido sobre os benefcios do processo civilizador, Dalcroze no percebeu que tinha diante de si um zoolgico humano, realizado com toda vulgaridade e frivolidade inerentes aos espetculos populares desde os tempos do poeta Juvenal. A experincia das exposies coloniais, somada educao que recebera, apenas atualizou as suas convices sobre a superioridade sociocultural dos europeus:Se desejarmos restituir ao corpo toda gama de ritmos que foram pouco a pouco esquecidos, no ser suficiente apresentar a ele como modelo os ritmos sacudidos e tumultuosos da msica selvagem. Ser preciso ainda inici-lo suavemente em todas as transformaes sucessivas que o tempo submeteu a esses ritmos elementares. No ser suficiente ao professor de Rtmica utilizar, durante suas lies, instrumentos de percusso como aqueles utilizados pelos negros ou pelos ndios. Ser preciso mais do que tudo conhecer profundamente os elementos da melodia e da harmonia, assim como suas relaes de dinmica. Ser preciso que ele seja um msico completo (JAQUES-DALCROZE. Dfinition de la Rythmique [1921], p. 4-5)* * *

No passado, a msica era quase sempre inspirada por sentimentos puros e nobres, e isso acontecia em todos os pases. No havia sequer uma grosseria ou blasfmia. Ah! Atualmente, um grande nmero de canes , nos cabars de Paris, impregnadas de uma revoltante obscenidade... Mas elas no mais sero cantadas no futuro, assim eu espero (JAQUES-DALCROZE. Notes Barioles [1948], p. 105).

Dalcroze era, no resta dvida, um defensor da moralidade e dos bons costumes, mas ao contrrio da maioria dos moralistas que, conforme Bertrand Russel, raramente so pessoas com coraes generosos8, ele tinha uma verdadeira empatia pelos sofrimentos da humanidade tendo lutado arduamente contra os pensamentos obtusos. importante ressaltar que sua noo de humanidade no se restringia aos limites do pequeno crculo familiar (esposa, filhos, amigos), o que geralmente acontece com os medalhes. A maneira desprendida como lidou com temas controversos da sociedade tambm o distancia daqueles moralistas endurecidos. A religio, por exemplo, no era uma tnica em sua vida como acontecia com boa parte de seus concidados suos; a famlia e o casamento, tampouco perturbavam a sua conscincia. Dalcroze era, em alguns aspectos, demasiado libertrio como possvel observar em suas crticas contra os usos econmicos da arte da msica:19

Encontrei uma antiga aluna e perguntei se ela ainda permanecia com seu interesse pela msica. Ah, No!, ela me respondeu, Casei-me e tenho filhos, no tenho mais tempo de abrir o piano!. Felizardo marido, pobres crianas9. Em outra passagem ele refora a mesma idia:Atualmente, todas as crianas so, digamos, condenadas a fazer msica sem que nunca tenham manifestado o menor desejo. Se elas no so capazes de tocar, aps um ano inteiro de turbulentas escalas, nem mesmo uma singela e graciosa pea musical na festa da tia Filomena, a senhora mame proclama aos soluos que a criana no tem gosto pela msica, esquecendo que ela prpria, depois de doze anos de estudos, renunciou subitamente ao piano s vsperas de seu casamento. Pois o piano, como se sabe, para algumas jovens o Ersatz10 do noivo (JAQUES-DALCROZE. Souvenir, Notes et Critiques [1948], p. 64).* * *

A Rtmica encontrava-se no limiar entre a arte e a cincia; s vezes Dalcroze escorregava em suas prprias ambigidades, aproximando-se de uma tradio ortopdica fundada por Nicolas Andry para quem a educao constitui-se como espao de correo, regulao e endireitamento das deformidades fsicas e morais da criana. Em alguns trechos, Dalcroze indicou a Rtmica como um tratamento mdico11 destinado aos adultos como aos jovens, crianas e bebs. Nos intervalos entre as fantasias musicais e os deveres pedaggicos, Dalcroze observou com entusiasmo as andanas da vanguarda cientfica de seu tempo, em especial os estudos de fisiologia clnica e psicologia comportamental. Suas concepes tericas aproximavam-se em grande medida dos experimentos realizados no hospital-laboratrio La Salptrire, em Paris, liderados pelo neurologista Jean-Martin Charcot e por seu aluno e colaborador Georges Gilles de la Tourette. Ao seu pensamento potico-pedaggico, Dalcroze valeu-se de conceitos oriundos da psicologia, sob a orientao de Edouard Claparde, e da medicina. A Rtmica foi teoricamente concebida em contraposio arritmia, que ele define como:[...] termo empregado pelos mdicos na constatao de uma irregularidade nas contraes cardacas, que tambm pode ser aplicado a toda irregularidade das funes nervosas e musculares (associaes e dissociaes de movimentos), aos antagonismos e resistncias de qualquer natureza, de todos os impulsos e reaes nervosas (JAQUES-DALCROZE. Remarques sur lArythmie [1932], p. 3).

Algumas dcadas depois das primeiras pesquisas de Charcot, as lies de Rtmica foram introduzidas no La Salptrire integrando, com grande xito, o programa de reabilitao psico-

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fsica de deficientes mentais. Ainda que o propsito inicial da Rtmica tenha sido a formao de msicos, Dalcroze ficou muito satisfeito com os usos teraputicos de seu sistema:Outro dia, ao assistir uma lio de Rtmica na cidade de Londres ministrada s crianas cegas da assistncia social, fui inundado de uma alegria incontrolvel e de uma coragem que ningum jamais poder abater: minha obra til aos menos afortunados! (Jaques-Dalcroze apud MAYOR. Rythme et Joie avec mile Jaques-Dalcroze, p. 93).

De qualquer modo, Jaques-Dalcroze no se concentrou nos mtodos cientficos para justificar suas idias ou mesmo para orientar suas investigaes sobre a expressividade do corpo. Para ele, a inspirao criativa e o senso intuitivo foram sempre preponderantes, o que o levou a manter-se confiante no empirismo de suas observaes extradas durante o exerccio do magistrio.* * *

Dalcroze observou com preocupao o nascimento de uma apoteose esportiva. Ele no negou as qualidades fsicas e morais do esporte, mas advertiu de modo ameaador: Se a educao for essencialmente esportiva, ela ultrapassar o seu objetivo e engendrar geraes inteiras desprovidas de sensibilidade12; ademais: No se espera quase nunca, infelizmente, que o esporte estabelea qualquer relao com o pensamento13. O culto ao esporte no se restringiu s arenas esportivas, culminando na esportivizao de todos os domnios da sociedade que passaram a ser regidos pelos imperativos olmpicos Altius, Citius, Fortius (de maneira mais alta, mais rpida e mais forte): Atualmente, a velocidade exerce um papel imperativo em todos os domnios14. Desde o perodo barroco at o romantismo, a msica acabou por se deslocar da vida ntima das pessoas tornando-se uma arte para virtuoses. Pouco a pouco o fazer musical distanciou-se do campo da sensibilidade na direo de um ofcio puramente tcnico e competitivo.Os especialistas em msica podem entender muito de msica e pouco de seres humanos, e fabricam ento uma marionete de um artista autnomo, um gnio que se desenvolve eminentemente. Mas, fazendo isso, eles meramente contribuem para uma falsa compreenso da prpria msica (ELIAS. Mozart, p. 121).

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Convencido de que a msica deveria seguir outra orientao, Jaques-Dalcroze afirmou: A exagerada preocupao com a agilidade dos dedos acaba por enfraquecer sensivelmente a musicalidade da criana. Se um artista alcanar a glria, com sinceridade ele dever responder queles que o aplaudem: No sou eu a tocar, so os meus dedos!15; uma opinio compartilhada por Nelson Freire, para quem: Fazer msica no uma competio16. No filme Gattaca17, possvel imaginar os resultados de uma produo de fastidiosos autmatas18, conforme a expresso de Franz Liszt trazida por Dalcroze. Nesse longa-metragem, h uma cena em que o protagonista, o invlido Vicent Freeman, assiste a um recital de piano realizado por um virtuose especialmente fabricado pelos laboratrios de gentica. O Impromptu em l bemol maior de Schubert (Op. 90) interpretado com algumas notas a mais pelo pianista generosamente dotado de um par extra de dedos; o pblico, como de costume, aplaude o virtuose como se estivesse numa arena romana19; Vicent, de sua parte, responde calmamente: Doze dedos ou um, o importante como se toca. Dalcroze buscou cultivar em seus estudantes o amor pela msica, muitas vezes preferindo os diletantes queles que estudam msica com o nico propsito de ganhar um prmio20, ou certos msicos profissionais que fazem concertos e ministram lies interessados apenas nos cachs21. Para Bertrand Russel:A vida virtuosa aquela inspirada pelo amor e guiada pelo conhecimento [...] Ainda que o amor e o conhecimento sejam ambos necessrios, em certo sentido o amor mais fundamental, na medida em que levar indivduos a buscar o conhecimento a fim de descobrir de que modo beneficiar aqueles a quem amam (RUSSEL. No que Acredito [1925], p. 44-45).* * *

Desde as duas ltimas dcadas do sculo XX, Jaques-Dalcroze vem sendo continuamente citado e discutido pela historiografia como personagem central da modernidade na dana, ao lado de Franois Delsarte e Rudolf Laban. Os estudos sobre as origens da ginstica moderna tambm elegeram Dalcroze como grande inspirador dos movimentos rtmicos e expressivos novecentistas. No entanto, importante ressaltar que Dalcroze no era danarino, fisiologista e muito menos mdico. Sua vocao, cultivada desde a meninice, era a msica, arte qual se entregou inteiramente por toda vida. Ele foi um msico virtuose, celebrado pelas suas habilidades na arte da improvisao ao piano num momento em que o jazz ainda encontrava-se em gestao. Na22

qualidade de compositor, ele produziu uma obra musical completa: peras, cantatas, idlios, oratrios, concertos, sonatas, poemas sinfnicos, bals, noturnos, suites, quartetos de cordas, peas para coral, peas para piano e centenas de canes internacionalmente premiadas e traduzidas em diversas lnguas. A necessidade criativa ocupou sempre um lugar preponderante em sua vida, basta observar a catalogao de sua obra musical que totaliza mais de 2 mil composies. Foi o desejo em se tornar compositor que o impulsionou, aos 19 anos, a deixar a Universidade de Genebra e buscar no estrangeiro os meios de realizar os seus anseios como artista. Apesar das expectativas e de todo o investimento realizado, a carreira como compositor no alcanou as dimenses almejadas. A criao de um sistema de educao musical aconteceu por acidente ou, para ser mais preciso, por fora da necessidade. As modestas condies financeiras de sua famlia obrigaram-no a retornar para os domnios da escolstica, que ele detestava. Aos 27 anos, tornou-se professor no mesmo conservatrio onde havia se formado com louros. Decidido a integrar seus conhecimentos e experincias, Dalcroze vislumbrou na formao de jovens musicistas um novo horizonte em que a atividade criativa e o ensino poderiam ser integrados num todo indissolvel. As extremas dificuldades dos futuros musicistas levaram-no a realizar investigaes acerca da relao msica-ritmo-movimento-expresso que culminaram na criao de um sistema completo de educao musical denominado Ginstica Rtmica ou simplesmente Rtmica. Inesperadamente, o engenho pedaggico acabou lanando-o numa visibilidade internacional que garantiu a Dalcroze o esperado reconhecimento pblico. A notoriedade atraiu olhares de desconfiana e inveja. Ao inaugurar um campo de pesquisa totalmente novo e igualmente arriscado, numa linha inabitada entre a dana e a msica literalmente uma terra de ningum, Dalcroze foi desprezado por ambos os lados. Suas aparies pblicas causavam reaes inflamadas no pblico que, como se sabe, raramente tem gosto pela novidade, amando somente aquilo que j conhecem e no fazendo qualquer esforo para conquistar novos conhecimentos22. Tanto nas demonstraes pblicas da Rtmica como na execuo de suas obras sinfnicas, podia-se ouvir uma polifonia de aplausos, bravos e uivos. Alguns, diante da complexidade rtmica de suas peras, vociferavam com indignao: Trata-se da msica de um selvagem!23. Na realidade, as obras dramticas escritas por Dalcroze fizeram muito sucesso, especialmente fora de sua ptria, como geralmente acontece com qualquer artista.23

Adolphe Appia, Jacques Coupeau, Stravinsky, Eugne Ysaye e Jacques Rouch, por exemplo, consideravam Dalcroze um gnio; outros diziam que ele havia escapado de um Vaudeville. Paul Claudel, em sua breve apario pelo Instituto Jaques-Dalcroze de Hellerau (Alemanha), acabou por se desentender com Dalcroze tendo afirmado num rompante de fria: Trata-se de um grotesco helvtico apoiado num mtodo que no se realiza apenas na arte como objeto, mas que possui algo de religioso, de moralizador24; Gordon Craig escreveu:Como instrutor de ginstica e diretor de uma instituio bastante ordinria para jovens senhoras somos absolutamente favorveis ao senhor Dalcroze. Como professor de arte consideramo-lo completamente desprovido de conscincia, uma vez que d falsos conselhos de um gnero verdadeiramente perigoso (Gordon Craig apud ROPA. Alle Origine della Danza Moderna, p. 232).

Claude Debussy, que ocupava para Dalcroze o mais alto posto entre os compositores modernos, ficou injuriado com o uso pedaggico de suas obras, considerando-o, ao lado de Nijinsky, como um dos mais terrveis inimigos da msica25. Rachmaninoff, ao contrrio, ficou to emocionado com a traduo plstica de seu Preldio (Opus 32, n. 12), realizada durante um ciclo de conferncias e demonstraes conduzidas por Dalcroze em Moscou, que escreveu uma melodia sobre o quadro negro dedicada s rythmicinnes que imediatamente a transpuseram em gestos. Todas essas negativas no foram produzidas pelo acaso, mas pelas vibraes revolucionrias de um homem que ousou abrir novos espaos de reflexo. Mrio de Andrade nos oferece algumas pistas sobre a natureza desses conflitos:A prpria histria humana toda prova que as reaes conservadoras derivam principalmente, so organizadas e dirigidas pelos que de fato conhecem uma determinada especialidade pois que a sabiam at o ponto em que a inovao veio contrariar o conhecimento, o hbito adquirido. Veja como conhecer e supor conhecer se confundem, pois. No o Manuel da venda que vai reagir contra Stravinsky nem vaiar o quadro cubista, mas os outros compositores e pintores, os estetas e os crticos, que iro gritar contra a ignorncia, a loucura, a burrice e o cabotinismo (ANDRADE. Cartas Oneyda Alvarenga, p. 268-9).

No possvel saber como Dalcroze manteve-se confiante em seus ideais mesmo sem dispor da cumplicidade de seus contemporneos e sem receber o reconhecimento nacional, que ele tanto almejava. O incmodo causado em seus contemporneos talvez fosse um sinal para ele seguir em frente:

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Sem dvida eram muito sinceros aqueles que julgavam a Rtmica com tanta severidade. Eles estavam absolutamente convencidos de sua nocividade ou, pelo menos, de sua inutilidade. Eles no eram capazes de ver com clareza, no possuam, tampouco, olhos que lhes permitissem uma viso do todo. Alguns consideravam apenas sua dimenso musical, outros observavam apenas a dimenso relativa aos exerccios ginsticos; havia ainda aqueles que compreendiam apenas o carter pedaggico geral do meu mtodo, e outros que observavam somente a expresso plstica e coreogrfica. Desta forma, eles no poderiam perceber a ao direta provocada por exerccios de naturezas diferentes teriam o mesmo objetivo: a intensificao da sensibilidade, a regularizao dos hbitos corporais, a criao de novos reflexos, o despertar das faculdades imaginativas, o desenvolvimento da capacidade de uma composio equilibrada, idias que reverberavam naturalmente umas sobre as outras. No se compreende que a direo geral de nosso esprito , no comeo dos estudos, mais importante do que o prprio progresso. Os mdicos acusavam meu mtodo de provocar uma grande fadiga; os ginastas o reprovavam pela complexidade dos movimentos e das nuances; os coregrafos censuravam a falta de uma tcnica para os saltos; os musicistas bradavam contra o abuso dos tempos desiguais; os pintores se queixavam a respeito do mai negro de ginstica e acusavam a Rtmica de arrasar o sentido da cor. Quanto aos pais, eles julgavam os ps desnudos absolutamente inconvenientes e os alunos deveriam esperar pela maioridade para ousar despir os seus braos (JAQUES-DALCROZE. Petite Histoire de la Rythmique [1935], p. 7-8).* * *

Dalcroze era um homem de idias, um pensador que desejou integrar as artes dramticas: Danarinos, conheceis a msica? Musicistas, conheceis a dana? Cantores, conheceis a poesia e a harmonia?26. Em casa, ele dispunha de uma considervel biblioteca. Entre seus autores preferidos destacavam-se Schiller, Goethe, Bergson, Rousseau, Nietzsche, Plato e squilo. Seu livro de cabeceira era Ensaios de Montaigne, de onde retirou vrios aforismos sistematicamente citados ao longo de seus escritos. Embora no tivesse pretenses acadmicas ou literrias, Dalcroze recebeu quatro honoris causa. Alm da obra criativa, Dalcroze publicou uma vasta obra terica entre ensaios, livros de carter autobiogrfico e cadernos didticos27. A produo de artigos cientficos ocupava para ele uma posio secundria, ocorrendo nos intervalos entre a composio e as lies de Rtmica. Dalcroze no poderia agir de outro modo observando-se que ele passou praticamente a vida inteira em trnsito, ministrando cursos e conferncias pela Sua, Frana, Esccia, ustria, Arglia, Holanda, Blgica, Itlia, Inglaterra, Sucia, Irlanda, Alemanha, Checoslovquia e Rssia. Entre 1898 e 1939, Dalcroze publicou cerca de 40 pequenos textos tericos onde as discusses didtico-pedaggicas, que eram o seu maior intuito, encontram-se emaranhadas a reflexes morais, estticas e filosficas. Parte desses escritos foi publicada no compndio Le

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Rythme, la Musique et lducation, sua obra mais importante que se tornou uma referncia para vrias geraes de artistas e pedagogos do corpo28. Os demais textos foram publicados na revista bilinge Le Rythme/Der Rhythmus (O Ritmo) que teve grande circulao pela Europa nas primeiras dcadas do sculo XX. Essa revista foi lanada em 1909 por Paul Boepple no formato de boletim. Seu objetivo principal era divulgar o pensamento de Jaques-Dalcroze, mas acabou por definir um espao de correspondncia entre os membros da Sociedade de Ginstica Rtmica que, naquele momento, contabilizava o nmero de 200 associados. Em 1915, atravs da iniciativa pessoal de alguns amigos, foi inaugurado o Instituto Jaques-Dalcroze de Genebra. A criao de uma matriz foi fundamental para concentrar os esforos de Dalcroze destinados formao de rythmiciens tanto na Sua como nas demais escolas espalhadas pelo mundo. Com o significativo aumento de assinantes, Le Rythme tornou-se uma revista temtica sobre a educao musical onde os rythmiciens poderiam, alm de publicar artigos tcnico-cientficos, relatar as atividades desenvolvidas nas escolas de Rtmica que haviam sido fundadas na Inglaterra, Frana, Blgica, Itlia, Alemanha, Espanha, Estados Unidos, Chile, Grcia, Holanda, Ilhas Britnicas, frica, Austrlia, Portugal, Sucia, Iugoslvia, Turquia e Japo. Em 1926, a Sociedade de Ginstica Rtmica tornou-se a Unio Internacional dos Professores do Mtodo Dalcroze (U.I.P.M.), substituda, em 1977, pela Federao Internacional dos Professores de Rtmica (F.I.E.R.), mantida assim at o presente momento.

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Dalcroze transitou com agilidade por domnios diversos: msica, teatro, dana, literatura, ginstica, pedagogia, esttica, poltica, filosofia, moral, cincia e medicina. Seus interesses eram mltiplos como os temas de seus textos. As idias por ele lanadas no eram nada triviais. Ainda assim, ele tinha grande expectativa em ter seus textos lidos pelos mais variados pblicos, entusiasmado com a possibilidade de universalizar o seu pensamento. Todavia, a complexidade das discusses e o emprego de termos e conceitos musicais extremamente especficos tornavam a leitura pouco inteligvel ao pblico leigo. Quem mais usufruiu desses textos didticos foram os prprios rythmiciens e, mais raramente, outros profissionais da educao, artistas e psiclogos. Apesar do grande nmero de temas contemplados, possvel observar no conjunto de sua obra terica alguns fios condutores muito bem definidos que orientam as suas preocupaes26

esttico-pedaggicas. Inquietaes que se convergem em trs palavras-chave: o RITMO, a MSICA eaEDUCAO,

que poderiam ainda ser subdivididas nas temticas

CRIANA, ALEGRIA, CORPO,

GINSTICA, TEATRO e DANA.

Dalcroze explorou cada um desses temas at a exausto, chegando a ser algumas vezes redundante, como se quisesse convencer a si mesmo da verdade de seus pensamentos. Esses temas, como as vozes de uma sinfonia, dialogam entre si, contrapem-se, esbarram-se, finalizando sempre em acordes consonantes de esperana no gnero humano. R IT MO

Conforme Murray Schafer, algumas civilizaes, como os rabes, os africanos e os asiticos, possuem uma certa aptido rtmica29. Os europeus, naturalmente, no possuem tais habilidades ou, se possuem, elas encontram-se num estado de profunda latncia. Diante da paralisia psicofsica de seus estudantes os puritanos fizeram muito bem o seu papel Dalcroze foi levado a desenvolver um sistema de educao musical inteiramente fundamentado no ritmo que, para ele, a prpria expresso da vida, o fundamento de toda arte, especialmente para a msica, uma arte rtmica por excelncia. Dalcroze no foi o nico a investigar a potncia esttico-filosfica do ritmo. Conforme Edgar Willems, a redescoberta do ritmo foi a tnica de uma poca: O ritmo ganhou, na msica do sculo XX, uma importncia capital. Por vezes ele acabou tornando-se objeto de um verdadeiro culto30. O culto ao ritmo no se limitou aos domnios dos compositores, envolvendo ainda filsofos, mdicos, artistas e intelectuais cuja idia central repousava no desejo em retornar aos ritmos da natureza, recuperar no ser humano a sua Eurritmia, um termo que Dalcroze traduz como um estado que assegura a todas as aes um perfeito equilbrio natural31. Dalcroze estava completamente absorvido pelo culto ao ritmo tendo afirmado que desde a origem do mundo, o ritmo que agrupou os homens32; ou ainda: A Rtmica a arte (e a cincia) de recuperar a liberdade dos impulsos naturais do corpo33. Outros autores, como Rudolf Steiner por exemplo, buscaram o sentido mstico-religioso do ritmo, agregando-o como fundamento teosfico. Rudolf Bode valeu-se da potncia psicolgica do ritmo para fundamentar a base esttica e ideolgica de sua Ginstica Expressiva (Ausdruksgymnastik), eleita como educao fsica oficial do Terceiro Reich.

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O discurso sobre o controle racional do tempo no trabalho foi um outro tema bastante presente entre os intelectuais progressistas nas primeiras dcadas do sculo XX. Disciplinar os movimentos do corpo, maximizar o uso de suas energias psicofsicas e organizar o tempo produtivo foram os imperativos da era industrial. Essas idias encontraram reverberao no pensamento de Dalcroze para quem o dispndio desnecessrio de energia, ocasionado pelos chamados gestos inteis34, deveriam ser rasteados e banidos do convvio social. Ainda que Dalcroze tenha sido favorvel ao livre emprstimo de suas idias, respeitandose os seus princpios ordenadores, elas no serviram a nenhum dos senhores daquele perodo. Devido ao seu requinte musical, a Rtmica foi considerada inadequada como pedagogia para o trabalho, tornando-se definitivamente ausente do cotidiano das fbricas, escolas e casernas.

M S I CA

A msica foi a maior paixo de Jaques-Dalcroze, desde a infncia at os seus ltimos dias. Como outros artistas e pedagogos de sua gerao, Dalcroze rememorou com nostalgia o sentido clssico da msica: . Nessa concepo helnica, ou mousik desdobra-se em vrios sentidos: ela entendida como cultura do esprito, conhecimento e cincia, responsvel pela formao do ethos humano na sua totalidade; ela compreende a linguagem articulada (logos) e todas as artes e habilidades presididas por Apolo e pelas Musas, quais sejam a pintura, a escultura e a poesia. Para Dalcroze, a msica exerce sobre o ser humano uma influncia redentora: Como magnfico o poder da msica em nos apaziguar quando estamos superexcitados, de nos despertar quando estamos adormecidos e de nos iluminar quando erramos por campos tenebrosos35; A msica revela-nos a ns mesmos, purifica-nos e completa-nos36; Introduzir a msica no corao dos artistas de teatro e dana fortalecer o poder de seus movimentos, pois a tcnica musical ir libertar, de uma s vez, seus corpos e almas37. Ao mesmo tempo em que celebrou o requinte musical dos helenos, Dalcroze revisitou o sentido mais arcaico da msica, sua fora mgica38, equilibrando-se no tnue fio que sustenta o fazer musical, estendido entre as foras da racionalidade solar de Apolo, e as pulses inconscientes do deus do xtase, Dioniso: Alguns afirmam com tristeza que a msica atual

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encontra-se em vias de cair num intelectualismo e que os compositores da nova escola tornaramse mais apolneos do que dionisacos, mais matemticos do que intuitivos39.EDUCAO

Ao empregar a palavra educao, Jaques-Dalcroze volta os olhos para o grande sculo de Pricles40, inspirando-se na Repblica de Plato que elegeu a msica e a ginstica como elementos centrais da formao do homem livre:Uma educao meramente ginstica cultiva demais a dureza e a fereza do homem; uma excessiva educao musical torna o homem muito mole e delicado. Quem deixar os sons da flauta derramarem-se constantemente na sua alma comear a abrandar como o ferro duro e a pr-se em condies de ser trabalhado; mas com o tempo se amolecer e se converter em papa, at que sua alma fique completamente sem nervo. Quem, pelo contrrio, submeter-se ao esforo da ginstica e comer abundantemente, sem em nada cultivar msica e a filosofia, sentir, a princpio, crescer em si a coragem e o orgulho, graas sua energia corporal, e ficar cada vez mais valente. Mas, ainda que se suponha que a sua alma abrigava de incio algum desejo natural de aprender, fora de no se alimentar com nenhuma cincia nem investigao, acabar por ficar cega e surda. Um tal homem se converter em mislogo, em inimigo do esprito e das musas; j no conseguir persuadir ningum nem se deixar persuadir pela palavra, e o nico recurso de que dispor para alcanar o que se propuser ser a fora bruta, exatamente como um bruto qualquer. Foi por isso que um deus deu aos homens a ginstica e a msica, formando a unidade indivisvel da paidea, no como educao separada do corpo e do esprito, mas como foras educadoras da parte corajosa e da parte da natureza humana que aspira sabedoria. Quem as souber combinar na harmonia prpria ser mais favorito das musas que aquele heri mtico da pr-histria que pela primeira vez soube combinar as cordas da lira (Plato apud JAEGER. Paidia, p. 799-800).

A Rtmica , antes de qualquer coisa, uma experincia pessoal. A afirmao atravessa, ostinato, todos os escritos de Jaques-Dalcroze. O aforismo revela o desejo de um artista sobre o carter emancipatrio de sua obra. A idia aproxima-se do sentido proposto por Walter Benjamin em cuja filosofia a noo da experincia (Erfahrung) ocupa um lugar central. Os dois, cada qual sua maneira, podem ser colocados lado a lado numa resistncia contra o enfraquecimento da experincia diante do desenvolvimento tcnico-cientfico da sociedade. Benjamin observou nos objetos produzidos industrialmente uma considervel perda de magnetismo: As coisas de vidro no tm nenhuma aura41. Para Dalcroze, a msica, ao ser industrialmente gravada em discos, perdia sua fora mgica, assemelhando-se mais a um fruto conservado em aguardente42.

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Conforme Benjamin, o enfraquecimento da experincia devia-se, em grande medida, ao declnio da arte de contar histrias e, por conseguinte, extino do narrador. Com muita sensibilidade Rainer Maria Rilke reconheceu o mesmo problema:De onde vem a histria que o senhor me contou recentemente? pediu afinal. De um livro? Sim respondi com tristeza os eruditos a enterraram nele, desde que morreu; isso no faz muito tempo. H cem anos ela ainda estava viva, certamente despreocupada, em muitos lbios. Mas as palavras que os homens usam agora, essas palavras pesadas, no cantveis, eram inimigas da histria e tiraram dela uma boca aps a outra, de tal modo que no fim ela vivia s em uns poucos lbios secos, muito retirada e pobre, como em parcos pertences de viva. Ali morreu, sem deixar descendentes, e como era previsvel foi sepultada com todas as honras em um livro, onde outras de sua espcie j se encontravam. E quantos anos ela tinha quando morreu? perguntou meu amigo. Entre 400 e 500 anos informei a verdade vrias de suas parentes atingiram idades incomparavelmente superiores (RILKE. Histrias do Bom Deus, p. 31-32).

Em consonncia com as inquietaes de Benjamin, Dalcroze concentrou seus esforos numa resistncia contra o declnio da arte de ouvir, sensivelmente abalada pelo advento do rdio que substituiu os concertos executados ao vivo impregnados de esprito ldico pela audincia passiva e surda das emisses radiofnicas:A rdio, que nos oferece generosamente tantas oportunidades de escutar boa msica, infelizmente contribui para a escassez da msica produzida at home, executada por amadores. Na familiaridade do lar, interpretava-se regularmente, uma noite por semana, quartetos de cordas ou trios com piano. Essas execues estabeleciam entre os participantes relaes deliciosamente fraternais. Todo domingo noite, trs pastores que viviam perto de Yverdon reuniam-se na casa do meu av, que era pastor e violinista, no vilarejo de Montagny, para fazer msica de cmara. meia-noite eles se separavam e caminhavam durante vrias horas na noite escura para regressarem s suas moradas. Hoje, o nmero de quartetos familiares pode ser contado nos dedos, e isso uma grande pena, pois a msica interpretada por ns mesmos responde mais diretamente do que aquela ouvida atravs do rdio (JAQUESDALCROZE. La Musique et Nous [1945], p. 98-99).

Dalcroze no criou um sistema de educao musical com o propsito de formar virtuoses da msica ou da arte coreogrfica. Ele estava consciente de que, como mtodo, a Rtmica no era suficientemente especializada para os domnios que desejou freqentar, quais sejam o canto, a dana e os estudos piansticos. Publicamente ele reconheceu as limitaes da Rtmica que no se constitua como arte independente, mas uma preparao para todas as artes:Na verdade, a Rtmica possui, com toda certeza, uma tcnica particular. No entanto, as relaes que estabelece com a arte coreogrfica no so suficientes para garantir o seu virtuosismo. Nosso sistema de solfejo tambm no completo o bastante como tcnica vocal destinada aos cantores profissionais, assim como os nossos estudos de improvisao no podem dispensar as tcnicas especializadas de piano. A Rtmica no , do ponto de vista corporal, uma arte para virtuoses, ela uma preparao para30

as artes especializadas. Ela realiza a educao do sistema nervoso, suaviza os msculos em todas as nuances de energia e durao e regula os movimentos corporais naturais no tempo e no espao (JAQUES-DALCROZE. La Grammaire de la Rythmique [1926], p. 2).

A potncia germinativa do sistema criado por Dalcroze revela-se no sentido de uma educao ou Bildung, um conceito-chave do romantismo alemo:O conceito Bildung um dos conceitos centrais da cultura alem no final do sculo XVIII. encontrado em toda parte: em Herder, em Goethe e Schiller, nos romnticos, em Hegel, Fichte, etc. Bildung significa geralmente cultura e pode ser considerada como a variante erudita da palavra Kultur, de origem latina. Mas, para a famlia lexical qual pertence (Bild, imagem Einbildungkraft, imaginao, Ausbildung, desenvolvimento, Bildsamkeit, flexibilidade, formabilidade, etc) esse termo significa muito mais e se aplica a muitos outros registros: assim, podemos falar da Bildung de uma obra de arte, de seu grau de formao. Da mesma maneira, Bildung tem uma fortssima conotao pedaggica e educativa: o processo de formao (BERMAN. A Prova do Estrangeiro, p. 79).

A figura de Mrio de Andrade poderia ser trazida para mais uma incurso a duas vozes. Dalcroze e o poeta brasileiro empenharam-se na construo de uma sociedade mais sensvel e cultivada. Como humanistas, eles estavam convencidos do valor da arte na formao do ser humano. Para Mrio de Andrade a cultura to necessria como o po43. Dalcroze pensava o mesmo: O progresso de um povo depende da educao oferecida s suas crianas44. A msica ocupou para ambos um lugar preponderante em suas vidas. A idia da formao de um msico completo uma tnica no discurso dos dois autores. Dalcroze considera um msico completo como aquele que transforma inconscientemente todos os fenmenos de sua vida e dos outros em manifestaes de ordem sonora45. Para ele, o msico completo, antes de mais nada, deveria ser um indivduo completo, plenamente cultivado em todas as suas faculdades sensveis, imaginativas e intelectuais. Conforme Mrio de Andrade:[...] a inobservncia do nosso msico quanto cultura geral, simplesmente inenarrvel. Nenhum no sabe nada, nenhum se preocupa de nada, os interesses completamente fechados, duma estreiteza inconcebvel, s exclusivamente entreaberto para as coisas da msica. Nem isso siquer! Cada qual traz a sua preocupao voltada apenas para a parte da msica em que se especializou. Quem quer que tenha convivido com nossos msicos, ou apenas seguido o ramerro dos concertos, sabe disso tanto quanto eu. Os violinistas vo aos recitais de seus prprios alunos ou dos violinistas clebres, os pianistas s se interessam por teclados. Essa a regra comum, quasi uma lei cultural entre ns (ANDRADE. Orao de Paraninfo, p. 266-67).

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No ano de 1935, Mrio de Andrade escreveu a Orao de Paraninfo destinada aos seus alunos do Conservatrio de Msica de So Paulo na qual possvel observar substanciosas simetrias com o pensamento de mile Jaques-Dalcroze:Como pois, senhores diplomandos, poderia dizer-vos apenas as palavras irresponsveis de prazer com que outras vezes tra? Poderia agradar-vos, saudando a vossa formatura, quando justamente agora principia o spero caminho? Poderei glorificar-vos por um diploma vencido, quando eu sei que no estais aparelhados para vencer? Poderia, disfarando a importncia desta solenidade, falar-vos sobre as grandezas da msica, quando a msica anda por todos desvirtuada?... Talvez estejais ainda lembrados da armadilha com que quase todos os anos inicio os meus cursos de Histria da Msica... pergunta que fao sobre o que os meus alunos vieram estudar no Conservatrio, todos respondem, um que veio estudar piano, outro canto, outro violino. H catorze anos fao tal pergunta. No tive at hoje um s aluno que me respondesse ter vindo estudar msica! Insistireis, senhores, sobre a dolorosa significao desta anedota. Ela exatamente o smbolo da situao precarssima da nossa cultura, digo mais: da nossa moral cultural. Porque no apenas a cultura que anda desnorteada por a, antes, a reao moral diante dos problemas da cultura que ainda no se elevou nada; anda rptil, viscosa, preguicenta, envenenando tudo. Si os alunos vm ao Conservatrio com o nico fim de estudar piano ou violino, se o ideal dessa juventude no passa duma confuso e tambm duma vaidade que sacrifica os valores nobres da arte pela esperana um aplauso pblico: a culpa dessa mocidade frgil? No . No sois vs os culpados, mas vossos pais, vossos professores e os poderes pblicos. O vosso engano proveio duma incultura muito mais escancarada e profunda, em que a confuso moral entre msica e virtuosidade est na prpria base. Qual o pai que desejou tornar o filho um msico completo? Talvez nenhum. Qual o pai que desejou ver o filho um pianista, ou cantor clebre? Talvez todos. Ns no andamos procura da vida, e por isso a vida nos surpreende e assalta a cada esquina. Ns andamos apenas suspirando pela glria. A glria uma palavra curta em nosso esprito, e significa apenas aplauso e dinheiro. Ns nem queremos ser gloriosos, ns desejamos ser apenas clebres (ANDRADE. Orao de Paraninfo, p. 262-3).

Para conquistar o propsito de uma educao completa, Dalcroze contava com a cumplicidade da famlia, bem como dos mdicos, psiclogos e pedagogos. Ele estava convencido sobre os benefcios de uma associao entre a escola e a famlia na forma de uma verdadeira cooperativa46:So inmeras as tentativas feitas por um bom professor para vivificar o seu ensino, para impulsionar o esprito dos alunos, para despertar sua imaginao e prepar-los nos atos da criao. Todavia, esses esforos arriscam-se em serem inteis se as famlias no cantarem no mesmo diapaso dos professores e se a vida escolar no vibrar em unssono com a vida familiar (JAQUES-DALCROZE. Notes Barioles [1948], p. 180).

Dalcroze reverenciou as andanas da pedagogia moderna mas observou que a inflao de mtodos de ensino poderia comprometer significativamente os avanos conquistados, era preciso unificar os diversos modos de educao: Um nmero excessivo de rvores na floresta impede a passagem da luz47. Para ele, o maior problema da escola era os professores que impediam o livre32

fluxo de suas idias: Antes de nos dedicarmos a ensinar o ritmo para as crianas preciso ensin-lo aos professores. Esse evidentemente o grande obstculo. difcil para os professores da escola realizar novos estudos numa idade em que se acredita ter o direito de repousar48.

C R IA N A

Tal qual o menino imaginrio de Rousseau, Jaques-Dalcroze foi batizado como Emlio. Por coincidncia ou no, a educao da criana foi uma de suas maiores preocupaes. Dalcroze tinha uma idia um tanto ingnua sobre a criana, considerando a denominao jardim da infncia49 muito propcia para denominar um local onde as crianas poderiam ser cultivadas como flores pelos educadores-jardineiros. Suas expectativas em relao s crianas eram grandes. Em diversas passagens ele as denominou homenzinhos do amanh, investindo nelas os seus anseios sobre o futuro da sociedade. Para Dalcroze, as crianas no so estpidas50, um posicionamento oposto quele apresentado por seus professores do Colgio Calvino que no tinham qualquer interesse nos estudantes. A apatia escolar provocava em Dalcroze um verdadeiro mal estar, e serviu como um exemplo do que no deveria jamais ser feito:Ao rememorar minha vida escolar, quando eu era um menininho, percebo com clareza que foram as recordaes da minha infncia e da minha adolescncia que me colocaram no caminho dos estudos de pedagogia. A maior parte dos professores do colgio, desde a tenra idade, impunha-nos deveres sem nos explicar o seu sentido e eles no faziam salvo raras excees qualquer esforo para nos conhecer, motivar ou ajudar (JAQUES-DALCROZE. Notes Barioles [1948], p. 195). Logo nos primeiros dias do colgio, eu acabara de entrar no 6o ano do clssico, eu pensava somente nas lies de msica que me aguardavam no final da semana. Eu era tomado de contentamento mas, oh! que desiluso! O ensino era baseado no mtodo de Galin (Paris-Chev), cujo iniciador parece ter sido Jean-Jacques Rousseau. A msica era numerada e os ritmos eram divididos pelas palavras ta, te, ti constantemente repetidas. Sequer uma palavra sobre as sonoridades musicais, sobre as melodias e harmonias, sobre as acentuaes dinmicas e temporais. No havia emoo ou estilo, nem qualquer citao das belas obras, em uma palavra: no havia msica. Recusei-me a cantar com os meus colegas e o austero professor me interrogou sobre a razo do meu silncio; respondi melodramaticamente: No canto por serem esses exerccios demasiado estpidos!. Fui severamente punido e classificado na categoria dos incapazes. Pobre msica! Quantum mutata ab illa! (JAQUES-DALCROZE. Notes Barioles [1948], p. 22).A LE G RIA

No possvel saber se Jaques-Dalcroze teve a oportunidade de ler o ensaio Homo Ludens de Johan Huizinga publicado em 1938, mas a sua compreenso de jogo (ludus), entendido como33

alegria e prazer, aproxima-se em grande medida daquilo que o historiador holands definiu como impulso primordial da humanidade. Para Huizinga: no jogo e pelo jogo que a civilizao surge e se desenvolve51. Na contramo de um saber meramente tcnico e acrobtico, Dalcroze buscou despertar na criana o seu jogo, recuperando o prazer inerente experincia da arte. Ao contrrio daquilo que viveu no perodo escolar, Dalcroze esmerou-se em garantir s crianas que as lies de msica fossem uma alegria, no mais uma tortura52. A alegria, o divertimento e jogo no eram apenas elementos desejveis numa lio de Rtmica, mas um axioma esttico-pedaggico pois a criana preferir sempre uma torta com gelia a um po seco53. C O R PO

Embora tenha nascido numa famlia de pastores, Dalcroze no era um beato, tampouco infiel. Seus avs entremeavam os ofcios religiosos com animados saraus musicais, o que talvez tenha proporcionado a ele uma compreenso menos repressiva dos fundamentos cristos. Para Dalcroze, existem muitas maneiras de expressar a religiosidade: Uns fazem-no por intuio, alguns por reflexo, e outros por submisso s injunes da escola ou da famlia; existem ainda aqueles que se revelam religiosos por medo do inferno54. Como compositor, Dalcroze no expressou grande devoo pelo celestial, compondo um nmero insignificante de peas sacras ao lado de obras dramticas muito bem humoradas. Seu corpo cheio e robusto indicava claramente que ele no era um asceta, tampouco seus pares: Um dos meus amigos convidou-me para assistir a uma palestra na qual ele pregava, convicto, sobre as virtudes do ascetismo. Ao final da sesso, ele pegou no meu brao e disse num tom radiante: E agora, ns vamos comer um suculento chucrute!55. Ao solicitar aos alunos para retirarem os sapatos durante as lies de Rtmica, Dalcroze incitou a fria dos puritanos. Na realidade, ele no tinha a inteno de ofender ningum, apenas quis proporcionar aos futuros musicistas um maior conforto durante os exerccios de marcha. importante ressaltar que a Rtmica foi inteiramente concebida a partir da relao da msica com as sensaes do corpo, uma questo ontolgica pois: Desde o seu nascimento, a msica registrou os ritmos corporais do organismo humano, apresentado a imagem sonora ampliada e idealizada56.

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G IN ST I CA

Dalcroze considerava a prontido corporal uma condio imprescindvel do fazer musical. Isso o levou a engendrar um sistema de educao musical inteiramente fundamentado nos exerccios corporais. A Rtmica foi criada em contraposio retido dos demais sistemas de ginstica demasiado incompletos e unicamente centrados numa perspectiva higinica. No resta dvida que ele tenha se apropriado de alguns exerccios do sistema de Ling como daqueles propostos por Mensendieck e Kallmeyer, mas era preciso seguir com as investigaes. Isadora Duncan, no obstante as crticas que Dalcroze dirigiu ao seu trabalho, tinha a mesma preocupao e a mesma crena na fora potica dos exerccios corporais:A ginstica deve ser a base de qualquer educao fsica. preciso inundar o corpo de ar e luz. essencial dirigir-lhe o desenvolvimento de uma maneira metdica. Faz-se necessrio captar todas as energias vitais em proveito desse mesmo desenvolvimento. Este o dever do professor de ginstica. Depois que vem a dana. Para o ginasta, o movimento e a cultura do corpo se bastam a si mesmos; para o danarino, so apenas recursos. Para este, convir at que o corpo seja esquecido. Quando muito, ele no ser mais do que um instrumento valioso e bem afinado, no qual ao contrrio do que lhe pede o ginasta, to s a expresso dos movimentos do corpo tambm se possam refletir os sentimentos e pensamentos da alma (DUNCAN. Minha Vida, p. 143)

A preparao corporal da Rtmica, ou ainda como sistema ginstico, aproxima-se do conceito de eutonia entendido como a justa afinao das tenses corporais. Desse modo, o sistema de Dalcroze acabou por orientar o devir das terapias corporais57 que se valiam do sentido da Eutonia como axioma de suas investigaes. Gerda Alexander foi a responsvel pela elaborao do conceito de Eutonia, empregandoo pela primeira vez em 1957 em substituio a relaxamento, considerado um termo vago e incompleto. Durante o 1 Congresso Internacional de Relaxamento e Movimento Funcional, realizado na Dinamarca no ano de 1959, o termo ganhou o domnio pblico e passou a definir um princpio dos sistemas teraputicos de ginstica. Alexander voltou-se para a cultura dos helenos e recuperou o termo eutonia (), no sentido de um tnus justo ou tnus equilibrado. Tonus uma variao latina para (do grego clssico: tenso). Originalmente, o termo foi empregado como tenso relativa s cordas da lira. Afinar as cordas de um instrumento musical significa ajust-las numa tenso precisa, para que possam vibrar na freqncia adequada sua tonalidade original (harmnicos). Tal qual um instrumento musical, o corpo, constitudo por feixes de msculos, precisa ser35

afinado numa tenso adequada, numa Eutonia, que justamente o ponto de equilbrio entre a hipertonicidade e a hipotonicidade que se constituem como disfunes psicofsicas. Gerda Alexander foi, em suas prprias palavras uma das primeiras alunas de JaquesDalcroze58 e atribuiu s lies de Rtmica o grande impulso esttico-pedaggico de suas investigaes sobre um sistema de educao psicofsica destinado a pacientes com grande comprometimento corporal. Ela indicou o sistema de Dalcroze como uma nova experincia de corporalidade59, adicionando na bibliografia de seus livros a traduo alem do compndio Le Rythme, la Musique et lducation (Rhythmus, Musik und Erziehung) e a obra organizada por Frank MARTIN (1965). A idia central da Rtmica como negao de um modelo pr-estabelecido e como experincia pessoal encontra-se muito presente no trabalho de Alexander, como pode ser observado, inclusive, no subttulo de sua obra mais importante: Eutonia: um caminho para a experincia pessoal da corporalidade60. No por acaso, a Eutonia de Gerda Alexander configura-se como contedo bsico da formao do rythmicien em todas as escolas de Rtmica espalhadas nos 5 continentes. T EA T RO

Dalcroze era apaixonado pela cultura dos helenos e pelos seus grandes trgicos, sobretudo squilo. A idia da trindade clssica msica-teatro-dana colocada a servio de uma arte profundamente social e democrtica causava-lhe torpor. Os estudos plsticos realizados pelas rythmicinnes foram inspirados nas evolues da (orquestik), termo usualmente empregado para descrever os movimentos realizados pelo coro no proscnio. Nas tragdias clssicas, o coro tinha um sentido potico muito significativo, realizando, entre danas e cantos, um contraponto dramtico com o protagonista. Com o suporte do amigo Adolphe Appia, Dalcroze pde realizar-se como diretor teat