Sobre a Noção de Rede e a Singularidade Das Ciências

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    Sobre a noo de rede e a singularidade das cinciasSobre a noo de rede e a singularidade das cincias

    Marcia Moraes

    Publicado em: Moraes, Mrcia Oliveira. Sobre a noo de rede e a singularidade dcincias Revista Documenta. Ano VIII, n 12/13, pp. 57-70, 2001-2002.

    Resumo: Este artigo tem o objetivo de analisar as relaes entre as discusses acerca

    singularidade das cincias propostas por Isabelle Stengers e a noo de rede tal comproposta nos trabalhos de Bruno Latour e Michel Callon. Colocar as cincias sob o signo dacontecimento, tese de Stengers, implica uma redefinio das noes de fato cientficverdade e razo. Trata-se de considerar as cincias como um processo de fabricao fatos, nos quais esto articulados atores heterogneos e dspares. A noo de rede o fcondutor que permite entender o sentido e o alcance da tese a respeito da singularidade dcincia. Por fim, so analisadas as conseqncias desse enfoque para o debate em torno dcientificidade da psicologia.

    Palavras-chave: singularidade da cincia, rede, psicologia.

    Sobre a noo de rede e a singularidade das cinciasAnalisar as cincias sob o signo dos acontecimentos, tese deleuziana de Isabelle Stenge(1993), aceitar - contra qualquer critrio a-histrico e a-poltico - a possibilidade de uparalelo com a maneira pela qual Deleuze & Guattari caracterizam a filosofia, isto , comum processo contingente. A tese de Stengers se baseia, numa grande medida, nos trabalhde Bruno Latour e, talvez por este motivo, ela lhe dedique o livro LInvention des SciencModernes.

    A inveno das cincias modernas decorre, de acordo com Stengers (ibid), da inveno dum dispositivo, cujo autor Galileu e cuja caracterstica a produo de um fato de art

    ou um artefato. Esse dispositivo se caracteriza principalmente por permitir a seu autor retirar da cena experimental, isto , no caso de Galileu, o movimento descrito pelo planinclinado prescinde da presena do seu autor. Assim, a lei do movimento independe de umobservao, ele depende de uma ordem de fato, criada a partir de um dispositivo dlaboratrio. Mas, Stengers (ibid) salienta, esse dispositivo tem uma peculiaridade: eproduz uma fico, um artefato s passvel de ser interpretado de um modo, isto ,dispositivo permite afirmar que a nica descrio fiel do movimento aquela que lhconfere Galileu. Produzida por um dispositivo experimental, a verdade apresenta-se comuma fico, uma produo peculiar que se define negativamente por no poder senunciada seno de acordo com os parmetros estabelecidos por aquele dispositiexperimental. A verdade de um enunciado experimental faz calar o ctico, faz calar qualqu

    adversrio. O mundo fictcio proposto por Galileu no somente o mundo que Galileu sacomo interrogar, um mundo que ningum pode interrogar diferentemente del(ibid, p. 100). O dispositivo experimental , nesse sentido, um operador que incidsimultaneamente sobre as coisas e sobre os humanos uma vez que ele prope, nummesma operao, uma encenao das coisas e uma desqualificao daqueles que, dentre homens, no aceitam o desafio dessa encenao. Esse enfoque de Stengers se coaduna coo de Latour (1994), uma vez que o plano inclinado ocupa em seu trabalho um lugsemelhante quele que Latour (ibid) confere bomba de ar, inventada por Boyle. Tanto nucaso quanto no outro importa salientar a funo mediadora do dispositivo experimentaaqui vale lembrar que o termo mediao implica uma operao de transformao,

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    traduo. Assim, os dois dispositivos em questo redistribuem e redefinem sujeito e objetsociedade e natureza[1] e funcionam, segundo Stengers, como dispositivos tutelares prtica terico-experimental (Stengers, op. cit., p. 116). Como mediadores, tadispositivos operam deslocamentos, desvios, tradues, operam, enfim, transformaes natores que, de um modo ou de outro, esto implicados na prtica experimental. Atorcertamente to heterogneos e dspares quanto uma bomba de ar e uma guerra ciiminente. Quais so as conseqncias de considerar desse modo a inveno das cincias?que significa, do ponto de vista de uma reflexo sobre as cincias, tratar os dispositivexperimentais como mediadores?

    De sada a concepo citada acima tem como conseqncia questionar a idia de que ucientista trabalha isolado em seu laboratrio. No se trata simplesmente de afirmar existncia de uma comunidade cientfica. mais do que isto. Dizer que um cientista nest isolado significa dizer que, em seu laboratrio, ele s faz existir um fato na medida eque mobiliza aliados. A cincia , nesse sentido, um processo de bricolage e negociaAssim, para fazer existir um fato, preciso estender, ampliar a rede[2]de aliados quesustentam. O acontecimento experimental levanta o problema poltico da co-existncia dcincia com outros atores que precisam ser mobilizados, aliados; em outras palavras,acontecimento experimental abre o problema das suas conseqncias, dos seus efeitsobre atores heterogneos. Esse modo de tratar a cincia requer um questionamento qualquer perspectiva filosfica ou epistemolgica que enquadre a cincia, atravs de sudistines e fronteiras, em relao ao contexto social, cultural ou poltico. Stengers, mesmo modo que Latour, afirma a estreita relao entre cincia e poltica, cincia redefinio dos laos sociais.

    A principal caracterstica da poltica inventada pelas cincias o vnculo por ela engendradentre apraxis- a sabedoria prtica - e apoiesis- o saber-fazer. Segundo Stengers (ibid),distino aristotlica entre praxis e poiesis diz respeito distino entre a ao humanaberta e ilimitada, por um lado, e o trabalho de fabricao de um produto, por outro. laboratrio o lugar de cruzamento da poiesis com apraxis. Poiesis, porque ele o lug

    de fabricao de um fato por meio de um dispositivo experimental. Praxisporque o fato n um fim em si mesmo; ao contrrio, ele abre um domnio de ao dspar, ele se endereaoutros atores e disso que depende a sua existncia.

    Com essa linha de argumentao, Stengers afirma que a questo do poder no uparasita da prtica das cincias(ibid, p.119). Stengers entende a questo do poder comuma das conseqncias do acontecimento experimental. Poder sinnimo de poder locapoder de interessar e mobilizar aliados. Numa palavra, poder sinnimo de redes de podeO acontecimento experimental no garante a um fato ser estabelecido como cientfico. Nh a priori nenhuma garantia acerca das conseqncias do acontecimento experimentacomo uma contingncia, ele no se justifica por qualquer ordem transcendente, mas s

    pelas ordens locais, pelas alianas performativas produzidas a partir de seu advento. acontecimento experimental se situa num ponto de cruzamento entre fato e histria, isporque um fato no possui uma identidade que o defina em si, isoladamente, ele dependde uma rede composta de atores mltiplos. O acontecimento experimental abre um camde negociao a partir do qual sero definidos a identidade do fato, o brilho do cientista,importncia de um laboratrio, enfim, desse campo de negociao emergem como pontlocais, a verdade do fato, a racionalidade da atividade cientfica, a natureza e a sociedade.

    Os laboratrios e suas redes

    http://www.necso.ufrj.br/MM/A%20nocao%20de%20rede%20e%20a%20singularidade%20das%20ciencias.htm#_edn2http://www.necso.ufrj.br/MM/A%20nocao%20de%20rede%20e%20a%20singularidade%20das%20ciencias.htm#_edn1
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    Stengers (ibid) faz uma leitura interessante de um trabalho clssico de Bruno Latour, o slivro Science in Action. Ela mostra que, nesse texto, Latour trabalha de maneira brilhancom a concepo de cincia como estratgia de mobilizao do mundo por meio de seprodutos, os fatos cientficos. Nesse livro, Latour lida com um exemplo: a descrio de umsemana na vida de um cientista, diretor de um laboratrio onde foi identificado uhormnio secretado pelo crebro, a pandorina. Esse hormnio um artefato. A pandoriisolada e purificada no mais do que uma molcula produzida pelo crebro. No entantdependendo da estratgia do cientista para mobilizar aliados, ela pode vir a ser um ponto dpartida para uma revoluo, pode valer um prmio Nobel, pode servir para colocar fim e

    uma controvrsia. O papel do cientista produzir interesse, intrigar, negociar. Um campo dnegociao aberto pelo advento da pandorina e a identidade desse artefato vai ser uefeito dos resultados de tal negociao. Da universidade industria, os deslocamentos snecessrios para definir a pandorina como um fato cientfico. As operaes de traduomediao efetuam as transformaes necessrias para que a pandorina possa interessaruma indstria, a uma universidade, a outros cientistas, aos alunos de ps-graduao, ajornalistas. O cientista deve fazer existir o fato nos mais dspares registros. Isso nsignifica que a pandorina dependa, para existir, nica e exclusivamente da estratgia cientista. certo que no laboratrio ela passa por rigorosas condies de prova. Masalienta Stengers,

    nada confere molcula em si, independentemente do cientista, o poder de suscitar essprovas das quais ela depende, de impor aos pesquisadores, aos industriais, aos jornacientficos, um interesse sem o qual ela permaneceria uma simples molcula, nua, copapel e possibilidades indeterminados. (...) O cientista constrangido a se interessar pemundo, a transform-lo, para que este mundo faa existir sua molcula. (Stengers,1993, 138).

    Enquanto as leituras epistemolgicas das cincias procuram, de um modo ou de outrestabelecer uma relao entre razo e verdade, a perspectiva aberta pela teoria ator-redendossada por Stengers, relaciona poltica e razo, ou seja, faz valer noo de rede um

    poltica da razo. O interesse parte constitutiva dessa poltica: interessar, convencenegociar, procurar aliados so as condies de possibilidade para um fato ser cientfico. Nh razo sem negociao, sem essa poltica inventada pela cincia. Da decorre importncia de investigar uma cincia em ao, isto , a cincia praticada pelos cientistnas bancadas dos laboratrios. Qual a importncia de uma etnografia de laboratrio, tcomo aquela que Latour e Woolgar (1997) propem a respeito do Instituto Salk?

    Na perspectiva da teoria ator-rede, um laboratrio est longe de ser um lugar isoladfechado e separado do mundo. Ele o locus onde so constantemente redistribudas natureza e a sociedade. Latour (1992) salienta que no h de um lado, um contexto sociade outro, um laboratrio. A questo fundamental diz respeito ao papel desestabilizador

    um laboratrio: a clonagem de uma ovelha mobiliza a Igreja, redefine as cincias biolgicalevanta questes ticas, polticas. Numa anlise do trabalho de Pasteur no sculo XIquando o grande cientista inventou uma vacina contra o antraz, uma doena que atacavagado e infernizava a vida dos criadores de animais, Latour afirma que: em seu prptrabalho cientfico, nas profundezas de seu laboratrio, Pasteur modifica a sociedade de stempo e o faz de maneira direta - e no indireta - por meio do deslocamento de alguns dseus atores mais importantes(ibid, p.156). Ao inventar uma vacina contra o antraz, Pastese tornou o nico porta-voz autorizado a falar em nome do micrbio, agente causador ddoena. Com isso, ele deslocou para o seu laboratrio interesses diversos: dos criadores danimais, dos veterinrios e dos higienistas, por exemplo. H uma srie de deslocamento

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    de operaes de traduo nas relaes entre o laboratrio e as propriedades agrcolimplicadas no problema do antraz. E Latour salienta: nessa sucesso de deslocamentoningum pode dizer onde fica o laboratrio e onde fica a sociedade (ibid, p. 154).dicotomia entre interior e exterior deixa de ter pertinncia quando o que est em jogo construo de uma rede capaz de fazer existir a vacina do antraz, a esperteza de Pasteos consumidores da vacina. Toda uma srie de tradues e desvios esto implicados mobilizao desses atores. As anlises da cincia como o exerccio de uma razo, ou comoinstituio de uma norma, deixa escapar uma estreita relao entre cincia e sociedadcincia e poltica e justamente sobre esse ponto que incide a teoria ator-rede. Em outr

    palavras, estudar a cincia em ao significa estudar a cincia como um processo dfabricao do mundo - social e natural. Ao aqui o mesmo que fabricao, inveno; nse trata da ao de um indivduo, mas de uma prtica coletiva, uma prtica de mediaque articula humanos e no-humanos. A noo de rede desloca o cerne dos estudos ecincia: da representao para a fabricao. Disso decorre a importncia das etnografias dlaboratrio. Estudar a cincia em ao questionar a distino entre o nvel macrossociaas cincias de laboratrio porque os resultados do trabalho experimental se deslocam numrede de ao cuja extenso alcana desde os laboratrios at os mais diversos atores. Pesse motivo, Callon (1989) prope tratar o laboratrio como uma rede que articula human- os cientistas, os tcnicos - a no humanos - os equipamentos, instrumentos, revista

    dados , etc.A cincia a poltica praticada por outros meios, diz Latour (op. cit., p. 168). poltica medida em que ela fonte de poder, isto , ela convence, interessa, mobiliza, desloca mais diversos atores. No exemplo de Pasteur, Latour mostra como, por meio dos maimprevisveis recursos, o cientista deslocou atores importantes na sociedade do sculo XILevando esse argumento s ltimas conseqncias, Latour considera que nas sociedadcontemporneas a maior parte do poder realmente novo vem das cincias e no processo poltico clssico (ibid). Por isso, os socilogos da cincia, quando investigam macronveis, isto , os contextos sociais, polticos, econmicos, excluem de ceexatamente o que forte nas cincias e na tecnologia: as polticas por elas inventadas,

    sociedade por elas definidas e a natureza por elas criadas. Para estudar o modo como cincias redefinem os laos sociais, para estudar a sociedade e a natureza que elfabricam, preciso, conforme indica Latour (ibid), estudar o contedo das cincias, estudas cincias em ao na bancada dos laboratrios.

    Fazer da cincia um acontecimento contingente implica levantar o problema da ssingularidade. Stengers (op. cit.)afirma que a singularidade das cincias consiste numinveno peculiar - o dispositivo experimental - que produz fices convincentes, fices qutm, conforme dito anteriormente, o poder de fazer calar qualquer adversrio. Para usar termos de Latour (1994), a singularidade das cincias diz respeito ao seu poder de produzassimetrias, produzir ns em uma rede de atores, de produzir pontos de passage

    obrigatria. A singularidade das cincias faz valer o carter coletivo, poltico da prticientfica porque, para produzir uma assimetria na rede de atores, necessrio buscaliados. Foi o que fez Pasteur com a vacina contra o antraz e o que faz qualquer cientista

    A singularidade das cincias ou as cincias como potncias de inovao

    A noo de singularidade das cincias, proposta por Stengers, encontra ressonncias nafilosofia deleuziana e um dos pontos-chave para traar o paralelo entre filosofia e cinciNa filosofia da diferena, o conceito de singularidade remete alegao de uma realidapr-individual para a gnese das formas individuadas. Nesse medida, a noo de indivduo

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    segunda e relativa em relao ao pr-individual. Buydens (1990) salienta que, por esse viDeleuze & Guattari ultrapassam o substancialismo atomista porque neste domnio os tomso unidades fechadas e delimitadas de tal maneira, que qualquer processo gentico parde uma realidade j determinada. Em outras palavras, est em jogo, nesse caso, uprocesso de gnese que consiste em passar de um indivduo a outro e ao contrrio disso,desafio da filosofia de Deleuze & Guattari tratar de um processo gentico cujo solo composto por uma realidade pr-individual. As singularidades so intensivas, nmades mveis, no havendo nenhuma relao de afinidade que, de antemo, estabelea critrios de seus agenciamentos. Dessas caractersticas decorrem o aspecto semp

    contingente das multiplicidades: sua forma no de modo nenhum necessria, mas resuldo agenciamento sempre espontneo e modificvel das singularidades(Buydens, ibip.23). Falar de uma singularidade das cincias, como faz Stengers, significa afirmar carter contingencial das prticas cientficas e, mais do que isto, significa consider-laspartir de distribuies de errncia, instveis por natureza.

    A idia de uma singularidade das cincias no se confunde com as discussepistemolgicas em torno de sua autonomia. A epistemologia de lngua francesa se basenum princpio geral de estabelecer as fronteiras entre cincia e no-cincia. Stengesalienta que a epistemologia tem uma preocupao dmarcationniste[3] e por isso npode prescindir das noes de corte e ruptura. Como conseqncia disso, a cincia viscomo um domnio autnomo, entendendo o termo autonomia como a constituio de umrealidade distinta do contexto social, poltico. Na perspectiva de sua singularidade, cincias so vistas como processos contingentes, polticos, instveis por natureza marcadas por uma deriva intrnseca; j na leitura epistemolgica, as cincias so vistcomo uma instituio de normas, como um domnio separado do contexto social, polticenfim, como um domnio autnomo em relao s demais prticas humanas. Umconseqncia importante desse enfoque epistemolgico ele impor uma desqualificadaquilo que fica fora do domnio cientfico. Desse modo, h um resduo - o contexto social,poltica, a ao humana, no sentido de uma praxis - que excludo do domnio da cinciaque, alm disso, destitudo de qualquer poder de colocar em risco os enunciad

    cientficos. O no-cientfico da ordem da opinio e, como tal, destitudo do poder interrogar a cincia quanto aos seus objetos e quanto sua dmarche. Em ltima instnca discusso em torno da autonomia das cincias visa a garantir-lhes um espao sem riscsem instabilidades. Enquanto a noo de singularidade faz desse risco uma pedra de toqua noo de autonomia tende a capturar numa norma qualquer contingncia. Nesse caso, enunciados cientficos se tornam categorias de julgamento isoladas da rede de sua prticDisso resulta que

    o fenmeno no mais apenas um testemunho confivel, mas torna-se objeto no sentidforte, quer dizer, que as categorias experimentais perdem sua referncia ceexperimental enquanto que prtica, para tornar-se categorias de julgamento, vlidos

    direito, independentemente do laboratrio onde elas poderiam ser colocadas prov(Stengers, 1993, p. 122).

    Um tipo assim de leitura das cincias acaba por fazer valer as categorias do verdadeiro paalm dos limites da prtica que as engendram. A cincia deixa ento de ser uma potncia inovao para se tornar um modelo a ser reproduzido. Stengers afirma que os termobjetividade, neutralidade, racionalidade so de fato estranhos prtica da cinc(Chevalier, 1997, p.3). Isso no significa dizer que os enunciados de uma cincia, comofsica, por exemplo, devem ser reduzidos a uma simples construo social. Antes, signifidizer que a existncia de um fato experimental, o neutrino, para tomar um exemplo e

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    fsica (ibid, p.5), responde aos critrios dos fsicos, critrios que, certamente, saltamente exigentes mas que no convm forosamente a todos os modos de existncpor ns encontrados (ibid). Consider-los como modelos o mesmo que propor que todas demais prticas cientficas deveriam se organizar de acordo com o estilo da fsica, acordo com as suas categorias prticas, com os seus riscos. A ontologia em rede, acontrrio, permite afirmar, conforme indica Stengers, que existir se diz em mltiplsentidos (ibid), logo, considerar as exigncias de uma prtica cientfica singular como upadro a seguir ignorar a multiplicidade dos problemas que os humanos so capazes levantar (ibid). Nessa perspectiva, no h como supor as diversas cincias se dirigindo

    objetivos comparveis, o que resulta na impossibilidade de afirmar uma relao dhierarquia entre as cincias. As questes de uma cincia s valem para aqueles que engajam em sua prtica ou, dito de outra forma , para aqueles atores que so mobilizadpela sua rede de ao. Ao invs de falar de uma hierarquia das cincias, ao invs considerar uma dmarchecientfica como modelo e paradigma para qualquer outra cinccabe afirmar a singularidade de cada uma, as exigncias e os riscos singulares de caprtica cientfica.

    Assim, parece-nos que entender as cincias por sua singularidade, como prope IsabeStengers, implica afirmar a noo de rede, isto , implica afirmar que as cincias sprticas que produzem efeitos na medida em que mobilizam aliados. Dito de outro modo,noo de rede tal como definida por Latour (1994), isto , como ontologia de geometvarivel, pode ser considerada como ponto de partida a partir do qual se pode entender cincias como singularidades. Tal anlise engendra conseqncias estticas, polticas ticas. Esttica no sentido de que uma prtica cientfica faz existir seres at ento indite, mais do que isto, a prtica cientfica produz, dentre os homens, aqueles que se engatana sua prtica. Desse modo, o efeito esttico da singularidade das cincias diz respeito a uprocesso de dupla produo: de um lado, os artefatos e de outro, os cientistas. Nas palavrde Stengers, esttica designa de incio uma produo de existncia que releva da potncde sentir: potncia de ser afetado pelo mundo sobre um modo que no aquele dinterao sofrida, mas de uma dupla criao de sentido, de si e do mundo (op. cit., p. 167

    Efeitos polticos: a cincia considerada a partir de relaes de interesse, de alianperformativas. O sentido de poltica remete, conforme dito anteriormente, s redes locaUm fato cientfico aberto, isto , comporta um grau de indeterminao a ser preenchide acordo com a rede da qual ele vai fazer parte.

    Efeitos ticos: est em jogo a construo de verdades locais, imanentes s suas redes ao. A verdade cientfica um efeito de uma ao dspar e paradoxal: a prtica cientficNesse sentido, ela a posteriori, local, temporria, instvel. No h nenhuma ordetranscendente que, como um lei moral, garanta de antemo os critrios sobre a veracidade um enunciado cientfico.

    Assim, do ponto de vista de sua singularidade, uma cincia avaliada a partir dos riscos dsuas prticas, os seus produtos so artefatos ou fices, as suas prticas so sempcoletivas e delas resultam a inveno do sujeito e do objeto. Diferentemente disso, do ponde vista de sua autonomia, as cincias so avaliadas por seus princpios que, grosso modpodem ser descritos como palavras de ordem, os resultados de sua prticas funcionacomo categorias de julgamento, sujeito e objeto so tomados como plos constitudodados.

    A psicologia e a questo da singularidade da cincia

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    A questo da singularidade da cincia toca em particular a psicologia. Porque, conformindica Stengers (Chevalier, op. cit), a psicologia experimental um timo exemplo dessdisciplinas que, para existir, tm necessidade da idia de que um conhecimento objetivo obtm suprimindo nos objetos aos quais elas se dirigem tudo aquilo que poderia coloc-lem risco. O problema do erro um desses casos: importa encontrar leis gerais qpermitam justificar porque o homem erra, seja na cognio, seja em suas prticas. psicologia, desde o sculo passado, est s voltas com o problema de sua justificativa, sua autonomia em relao, por um lado, s cincias naturais, por outro lado, em relaofilosofia. A polmica em torno de sua cientificidade, de sua disperso, dos seus mtodos

    objetos diz respeito a um certo modo de entender o que constitui uma prtica cientfica.

    possvel dizer que os debates em torno da cientificidade da psicologia giram em torno dum estilo epistemolgico de analisar as cincias. Um estilo caracterizado por: tomar comreferncia dada a dicotomia entre sujeito e objeto; situar o problema do conhecimento mbito da representao, isto , das relaes entre sujeito e objeto; por estabelecprincpios de demarcao entre cincia e no cincia, fazendo com que o no cientfico sedestitudo do poder de questionar e interrogar os enunciados de uma cincia.

    A insistncia do problema do erro no campo da psicologia assinala a insistncia de scampo problemtico que, longe de ser corrigido ou justificado, deve ser tomado como a s

    potncia de inovao. Uma das condies de formulao de uma psicologia afinada com nomadismo de seu campo problemtico envolve a sua afirmao como uma cincia erede, uma cincia hbrida. Nesse sentido, estamos diante de uma cincia que se define psuas relaes com o poltico, que se singulariza como prtica coletiva e que mantrelaes de devir - e no de autonomia - com as demais prticas: antropologia, informticcincias naturais. No se trata de considerar quaisquer dessas prticas como modelosserem seguidos, trata-se antes de dar aos diferentes tipos de prtica uma existnclegtima, fora hierarquia (ibid, p.07) - uma preocupao poltica. certo que esse estilo dcincia acompanha a ontologia em rede do real. Assim, no caso da psicologia, no imporestudar a cognio como um atributo de um sujeito, ou estudar uma prtica huma

    referida a um agente individual. A ontologia em rede engendra um deslocamento da node sujeito para subjetividade e da noo de objeto para coisa no sentido de sua variao. Nque toca cognio, a teoria ator-rede opera um deslocamento interessante: trata-se dentender a cognio como uma dupla articulao entre humanos e no-humanos. Nperspectiva das redes, a cognio distribuda a atores dspares, sejam eles humanosejam no-humanos. Uma cognio delegada, distribuda e no referida a um agencognitivo (Woolgar, 1996). Entender a psicologia a partir da noo de rede comporta umdupla exigncia: uma redefinio do sentido de uma cincia psicolgica e uma redefinio dseu campo de estudos. Ao e cognio no so no contexto das redes devidas a um agenindividual, elas remetem antes a um campo de multiplicidades dspares e heterogneas. Elso prticas coletivas, prticas de hibridao na qual esto sempre articulados humanos

    no-humanos.

    Notas

    [1] Para entender as distines entre os dois dispositivos, ver Stengers, 1993, p. 116.

    [2]A noo de rede remete a fluxos, circulaes, alianas, movimentos. A noo de rede datores no redutvel a um ator sozinho nem a uma rede. Ela composta de sri

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    heterogneas de elementos, animados e inanimados conectados, agenciados. Por um lado,rede de atores deve ser diferenciada dos tradicionais atores da sociologia, uma categoque exclui qualquer componente no-humano. Por outro lado, a rede tambm no pode sconfundida com um tipo de vnculo que liga de modo previsvel elementos estveis perfeitamente definidos, porque as entidades da quais ela composta, sejam elas naturasejam sociais, podem a qualquer momento redefinir sua identidade e suas mtuas relaetrazendo novos elementos para a rede. Neste sentido, uma rede de atores simultaneamente um ator cuja atividade consiste em fazer alianas com novos elementos,uma rede que capaz de redefinir e transformar seus componentes. Cf. Callon, 198

    pp.83-103.

    [3] Cf. Stengers 1993, p. 36. Ao tratar da epistemologia, a autora utiliza a expresstradition dmarcationniste. Optei por utilizar o termo no original por no encontrar eportugus um termo equivalente.

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