Sobre Justiça de Transição (1)

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    Dezembro 2012 [REVISTA PROJEO, DIREITO E SOCIEDADE]

    Revista Projeo, Direito e Sociedade | vol. 3 | n 2 30

    O que justia de transio ?

    Jozely Tostes de Lima

    Resumo

    Durante o Estado autoritrio do perodo 1964-1985 a represso, aos opositores do regime,ensejou gravssimas violaes aos direitos humanos perpetradas pelos agentes do Estado.Aps a Constituio de 1988, a abertura de arquivos de rgos pblicos encarregados darepresso, a reparao de danos por meio de indenizaes pecunirias aos familiares dosanistiados mortos, desaparecidos ou aos sobreviventes e a instalao da Comisso Nacionalda Verdade, configuram-se como algumas das medidas que se enquadram na denominadaJustia de Transio. Assim, o objetivo deste trabalho discutir, por meio de anlisebibliogrfica, conceitos sobre justia de transio, assim como, analisar medidas de justiade transio no mbito da Comisso de Anistia do Ministrio da Justia.Palavras-chave: Justia de transio. Estado autoritrio. Anistia poltica.

    Abstract

    During the period 1964-1985 the authoritarian state repression, the regime's opponents, this

    led most serious human rights violations perpetrated by state agents. After the 1988

    Constitution, opening files from public agencies in charge of repression, the repair of damage

    by pecuniary compensation to the families of the dead and the survivors amnestied andinstallation of the National Truth Commission, appear as some of the measures implemented

    State that fall under the so-called Transitional Justice. Thus, the aim of this paper is to

    discuss, by means of literature, concepts about transitional justice, as well as analyze

    transitional justice measures under the Amnesty Commission of the Ministry of Justice.

    Keywords: Transitional justice. State authoritarian. Amnesty policy.

    1 Introduo

    A histria republicana brasileira marcada por vrios perodos de quebra da ordem

    constitucional e instaurao de regimes de exceo. No perodo 1964-1985 a repressodesencadeada pelos agentes do Estado ensejou gravssimas violaes aos direitos humanos.Os avanos e conquistas da sociedade, no ps-ditadura, em relao proteo aos direitoshumanos, expressam a busca por uma resposta do Estado quanto aos crimes perpetrados. Adinmica histrica subjacente ao processo de consolidao do Estado Democrtico deDireito e dos direitos fundamentais estabelecidos a partir da Constituio de 1988 englobamas demandas de justia de transio.O caminho percorrido pelo Estado brasileiro, nos moldes de uma justia de transio dembito cvel, ocorreu por medidas como abertura de arquivos de rgos pblicos, reparaode danos por meio de indenizaes pecunirias aos familiares daqueles que morreram e aos

    sobreviventes e a instalao da Comisso Nacional da Verdade.

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    Por outro lado, questionamentos jurdicos e polticos recolocam na cena histrica a anistiaaos crimes de tortura, sequestro, estupro e homicdio, entre outros, cometidos pelosagentes do Estado. Em 2008, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil,ingressou no Supremo Tribunal Federal, com uma Arguio de Descumprimento de Preceito

    Fundamental, onde indagou sobre a recepo pela Constituio de 1988 do 1 do Art. 1da Lei n. 6.683/1979, - conhecida como Lei de Anistia. Em linhas gerais, a arguio dedescumprimento de preceito fundamental impetrada pela OAB reacendeu o debate jurdicoe poltico sobre a responsabilizao criminal dos agentes pblicos quanto aos atos praticadosdurante o regime autoritrio, assim como, sobre o conjunto de medidas configuradas como

    justia de transio. Nesse sentido, ao longo deste estudo pretende-se responder o que justia de transio e analisar algumas medidas, nesse mbito, executadas pela Comisso deAnistia do Ministrio da Justia.

    2 O que justia de transio

    O termo justia de transio indica uma distino entre a ideia de justia, de modo geral, e aespecificidade poltico-jurdica do conceito contida no termo transio. Nesse sentido,Torelly aponta que:

    Verifica-se, portanto, que a ideia de justia presente no termo diferedaquela apresentada em conceituaes abstratas de justia, como, porexemplo, uma concepo rawlsiana (Rawls, 2002), uma vez que o ponto departida eminentemente concreto e contingente, de tal feita que oconhecimento do processo genealgico da ideia de justia de transioimporta para a localizao histrica de seus contedos, fontes denormatividade e referenciais no direito positivado, uma vez que os casosconcretos de transies que modularam, no tempo, o prprio escopo do

    conceito.(ALMEIDA; TORELLY. 2010, p. 39)

    Portanto, o conceito vincula-se aos processos histricos de transio de ditaduras pararegimes ps-ditatoriais. A origem, o termo atribudo aos estudos de Ruti Teitel. Ela a co-presidente-fundadora da Sociedade Americana de Direito Internacional - Grupo de Estudoem Justia de Transio e Estado de Direito. Nos estudos sobre justia de transio suasanlises so referncias essenciais, embora sem traduo no Brasil. Por isso, as citaesadiante foram extradas dos estudos brasileiros que mencionam suas contribuies, entreeles o de Ceclia Macdowell Santos, Pesquisadora do Centro de Estudos Sociais daUniversidade de Coimbra, Portugal e Professora da University of San Francisco, Estados

    Unidos . A autora, quanto a origem do termo, afirma:O termo transitional justice (justia de transio) foi cunhado pelaprofessora de direito Ruti Teitel em 1991, referindo-se aos processos detransformao poltica e jurdica nos contextos de transies para as novasdemocracias na Amrica Latina e na Europa do Leste. Teitel (2000) prope

    uma abordagem indutiva, construtivista e contextualizada da justia detransio.[...] Em sua genealogia da justia de transio desde o final da IIGuerra Mundial, Teitel (2003) identifica trs fases: a primeira, que marcada pelos Tribunais de Nuremberg, criou importantes precedentes

    jurdicos, mas foi sui generis. A segunda fase refere-se s transies para ademocracia na Amrica Latina e queda do comunismo no bloco sovitico

    a partir dos anos 1980. Esta fase caracterizou-se pela democratizao

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    combinada com algumas medidas de transio e a privatizao daeconomia, deixando-se a cargo da iniciativa individual a litigncia. A terceirae atual fase caracteriza-se pela normalizao e globalizao do paradigmade justia de transio, com um consenso em torno da necessidade de se

    lidar com o passado. (SANTOS, 2010, p.129)

    Assim, as peculiaridades histricas de cada sociedade influenciam no tipo de justia detransio que ir emergir, ou seja, no modo como o passado ser enquadrado, nas diversasinstncias do Estado e da sociedade. Entretanto, em termos gerais, quanto a Amrica Latina,algumas semelhanas so apontadas:

    A sucesso de regimes repressivos e autoritrios, ditatoriais e/outotalitrios que avassalaram a Amrica Latina, entre meados dos anos 60 e80, ainda no foi tratada de forma sistemtica por nenhum regimedemocrtico em processo de afirmao do continente. Isso se justifica, deuma parte porque todas as transies polticas para a democracia foram

    feitas sob compromisso. De outra porque a democracia expandiu-se maiscomo forma do que como substncia. Na verdade, nenhum dos regimes

    de fato foi derrotado ou derrubado por movimentos revolucionrios decarter popular; logo, os valores que sustentaram as ditaduras ainda soaceitos como razoveis para a poca da guerra fria, e tambm face s

    barbries tambm cometidas pelos resistentes de esquerda. (GENRO,

    2010, p.18)

    Justia de transio, portanto, no um modelo ou tratado a ser cumprido. produto deexperincias histricas de cada pas quanto aos caminhos trilhados para lidar com os legadosdos regimes autoritrios. Cabe ressaltar que no meio acadmico e jurdico o interesse pelotema recente, como revela o estudo que resultou numa dissertao de Mestrado emDireito, pela Universidade de Braslia. O autor aponta a novidade do assunto em mbitoacadmico:

    A ausncia de estudos tericos e empricos aprofundados sobre a justia detransio no Brasil faz prevalecerem anlises primrias que apenasrepercutem um senso comum baseado em dois diagnsticos: o primeiro, deque o processo de acerto de contas (accountability) do estado brasileiro

    com o passado priorizou apenas o dever de reparar, valendo- se de umparmetro reparatrio baseado em critrios de eminente naturezatrabalhista que seria impertinente e, um segundo, de que a ideia de

    anistia que, em sentido etimolgico significa esquecimento, deturparia asmedidas justransicionais do Estado brasileiro pois em ltima anlise faria opas viver um processo transicional que procura esquecer o passado, e nosuper-lo. (ABRO; TORELLY, 2010, p. 29)

    Integram os estudos um conjunto de direitos relativos justia de transio. O estudo deRoberta Camineiro Baggio, Professora Doutora da Faculdade de Direito da UniversidadeFederal de Uberlndia e Conselheira da Comisso de Anistia do Ministrio da Justia. Baggioacentua que:

    A concepo de justia de transio tem sido consolidada ao longo dasltimas dcadas, principalmente sob o ponto de vista acadmico, tendo

    atingido uma conformao normativa muito recente no cenrio

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    internacional, especialmente aps as decises da Corte Interamericana deDireitos Humanos, a instituio do Tribunal Penal Internacional e o relatriodo secretrio-geral da ONU sobre a temtica, apresentado ao Conselho deSegurana. Ainda que o termo justia de transio possa causar

    controvrsias, no h muitas dvidas sobre as dimenses englobadas pelosdebates instigados at hoje por esse tema, sendo possvel dividi-las emquatro: o direito memria e verdade, o direito reparao das vtimas,a responsabilizao dos agentes perpetradores das violaes aos direitoshumanos e a readequao democrtica das instituies que possibilitaramos abusos de poder.(BAGGIO, 2010 p.269).

    No citado relatrio do secretrio-geral da Organizao das Naes Unidas, Kofi Annan,intitulado O Estado de Direito e a justia de transio em sociedades em conflito ou ps-conflito, produzido em 2004, indica-se as perspectivas jurdicas e polticas que envolvem a

    questo do legado de violaes dos regimes autoritrios:A noo de justia de transio discutida no presente relatriocompreende o conjunto de processos e mecanismos associados stentativas da sociedade em chegar a um acordo quanto ao grande legadode abusos cometidos no passado, a fim de assegurar que os responsveisprestem contas de seus atos, que seja feita a justia e se conquiste areconciliao. Tais mecanismos podem ser judiciais e extrajudiciais, comdiferentes nveis de envolvimento internacional (ou nenhum), bem comoabarcar o juzo de processos individuais, reparaes, busca da verdade,reforma institucional, investigao de antecedentes, a destituio de umcargo ou a combinao de todos esses procedimentos (ANNAN, 2009,

    p.325)

    Contribui compreenso do tema anlises que abordam o entrelaamento jurdico epoltico que perpassam as experincias de justia de transio, sobretudo, quanto sestruturas de poder que sustentavam o regime anterior e remanescem no regime posterior.Diante da questo o estudo de Ceclia Macdowell Santos, pontua que:

    [...]a concepo de justia de transio apresenta algumas limitaestericas e analticas. Uma das questes a ser problematizada refere-se maneira como se pensa a relao entre o direito e a poltica. Ao contrriodo argumento de Teitel, no sentido de que o direito est mais influenciadopelo contexto poltico nos momentos de transio, os estudos crticos do

    direito mostram que o direito e a poltica esto intimamente ligados emqualquer contexto poltico. Os processos criminais que tramitaram naJustia Militar brasileira, entre maro de 1964 e abril de 1979, estavam toinfluenciados pelo contexto poltico repressivo daquele momento quanto aLei de Anistia de 1979 foi moldada pelo contexto poltico da chamadaabertura lenta, gradual e segura. No mesmo sentido, as recentes aesdeclaratrias contra torturadores, ajuizadas por ex-presos polticos e seusfamiliares, tambm so influenciadas pelo contexto poltico que atualmentese considera democrtico e que marcado pela globalizao dos direitos

    humanos e do paradigma de justia de transio. (SANTOS, 2010, p.131)

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    Em sntese, nas interpretaes sobre o que justia de transio evidencia-se que o passadode violaes de direitos humanos parte do processo de redemocratizao e precisa serdiscutido. Nesse sentido, as questes sobre o reconhecimento de vtimas e a perspectiva dereconciliao sobressaem:

    Justia transicional uma resposta concreta s violaes sistemticas ougeneralizadas aos direitos humanos. Seu objetivo o reconhecimento dasvtimas e a promoo de possibilidades de reconciliao e consolidaodemocrtica. A justia transicional no uma forma especial de justia, masuma justia de carter restaurativo, na qual as sociedades transformam a simesmas depois de um perodo de violao generalizada dos direitoshumanos. (GENRO, 2010, p.23)

    Outro aspecto fundamental que permeia os estudos diz respeito aos obstculos queimpedem os avanos das medidas de justia de transio. No caso brasileiro, lida-se com asconsequncias de determinada concepo de anistia que sustentou a transio da ditaduraao regime ps-ditadura, por meio da Lei de Anistia:

    O principal obstculo consecuo da regularizao das funes da justiaps-autoritarismo produto da persistncia histrica de uma interpretaodada pela prpria ditadura lei de anistia de 1979, pretensamente vistacomo uma anistia bilateral que camufla uma auto -anistia, e pela omisso

    judicial em promover sua adequada, ntegra e coerente interpretao, sob aluz dos princpios constitucionais democrticos e dos tratados e convenesinternacionais em matria de direitos humanos. Nesse sentido veio arealizao da Audincia Pblica Os limites e possibilidades para a

    responsabilizao jurdica de agentes pblicos que cometeram crimescontra a humanidade durante perodos de exceo promovida pela

    Comisso de Anistia do Ministrio da Justia em 31 de julho de 2008, queexps oficialmente a controvrsia jurdica relevante acerca desta auto-anistia aos atos cometidos pelos agentes de Estado envolvidos na prticasistemtica de tortura e desaparecimento forado como meios deinvestigao e represso. (ABRO; TORELLY, 2010 p.36)

    Tambm, as interpretaes em torno da represso e das relaes entre o judicirio e osmilitares explicam muito sobre o tipo de Justia de Transio que est em curso no Brasil.Assim, o trabalho de Antony W. Pereira, denominado Ditadura e Represso aponta certo

    grau de cooperao, consenso e integrao entre o alto oficialato das foras armadas e amagistratura civil. O autor acrescenta:

    As instituies legais adaptadas ou criadas pelos regimes militares no soirrelevantes: promulgam veredictos e sentenas, criam registros,influenciam o pblico, incitam animosidades por parte dos acusados egeram lealdades em meio aos quadros funcionais. Algumas delas soextintas aps o trmino do poder militar, enquanto outras so parcialmentepreservadas. (FERREIRA, 2010, p.27)

    Nesse sentido, Antony W. Pereira, (2010, p. 27) explica que as diferentes caractersticas dos

    sistemas legais so moldadas, em parte, pela histria da cooperao e do antagonismo

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    existente entre duas organizaes estatais de primeiro escalo: alto oficialato das forasarmadas e do poder judicirio. Por isso, entender as relaes entre poder judicirio e forasarmadas na vigncia do Estado autoritrio implica reconhecer que:

    As instituies legais do regime militar brasileiro deixaram atrs de si uma

    srie de consequncias. Uma delas foi a de, aps 1985, dar a muitaspessoas poderosos incentivos no sentido de preservar o status quo eminimizar as medidas de instaurao de uma justia transicional. Essesesforos foram em grande parte bem-sucedidos. A autoanistia ampladecretada pelo regime militar, embora no reconhecida pelo direitointernacional, foi respeitada no Brasil, enquanto anistias semelhantesadotadas na Argentina e no Chile foram revogadas ou sofreram restries.(FERREIRA, 2010, p.27)

    Antony W. Pereira, a partir de estudos dos autos de vrios processos e outros documentosda ditadura, refere-se ao silncio e a amnsia, em relao ao passado, como atitude oficial,

    em decorrncia da interpretao dada Lei de Anistia. Ao final, avalia:Alm de tentativas atrasadas e pouco divulgadas de investigar a morte e odesaparecimento de algumas vtimas do regime militar e de indenizar asfamlias, a atitude oficial do governo brasileiro com relao justiatransicional foi, principalmente, de silncio e amnsia. Como no desurpreender, tal tentativa de varrer pra baixo do tapete as animosidades daera militar no conseguiu promover nem a paz social nem um consensoamplo com relao ao passado. (FERREIRA, 2010, p.26)

    Em sntese, verifica-se convergncia nas anlises: justia de transio o conjunto demedidas destinadas a lidar com o legado de violaes aos direitos fundamentais perpetradospor agentes estatais, nos regimes autoritrios. Nesse sentido, sobressai o entrelaamento

    jurdico e poltico que perpassam as experincias de justia de transio. Assim, as estruturasde poder que sustentavam o regime anterior e remanescem no regime posterior e influemsobre o tipo de justia de transio que ser implementada por cada sociedade, conformesuas peculiaridades histricas:

    No Brasil, ocorreu uma transio sob controle, em que os militares

    apenas aceitaram a transio lenta, gradual e segura a partir de uma

    posio de retaguarda no regime, delegando aos polticos que osdefendiam a legitimao da transio em aliana com a elite burocrtica epoltica que emergiu do regime e orientou a conciliao com a maior parte

    da oposio legal. A partir da procurou-se impor burocraticamente umconceito de perdo pelo qual os ofensores perdoariam os ofendidos, o quelimitou a adeso subjetiva reconciliao, tentando-se transformar aanistia em um mero esquema de reparaes materiais com intuito de imporo esquecimento, como se isso fosse possvel. (ABRO; TORELLY, 2010p.128)

    Acrescente-se que as polticas de justia de transio sustentam-se em quatro pilares: direito memria e a verdade; o direito reparao s vtimas, a responsabilizao dos agentesperpetradores das violaes aos direitos humanos e a reforma das instituies que

    possibilitaram os abusos de poder.

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    No mbito do direito memria e a verdade, h uma corrente interpretativa que trata daincapacidade do poder pblico, do ponto de vista oramentrio entre outros aspectos, ematender as demandas em reas essenciais, quanto mais contemplar as medidas de justia detransio:

    A opo pela alocao de recursos oramentrios (geralmente escassos)para a realizao de um direito ligado justia de transio (por exemplo,direito verdade/criao da Comisso de Verdade) pode significar ainsuficincia de investimentos em outra rea essencial, com a sade, porexemplo. Mas no s isso. A incapacidade de os governos tutelarem osdireitos humanos na sua dimenso de indivisibilidade e interdependnciatambm ocorre em contextos com previso de recursos oramentrios. Umexemplo brasileiro: a previso de pagamento de reparao financeira svtimas de perseguies polticas de 1946 a 1988 (os anistiados polticos,nos termos da lei) enquanto torturas e maus tratos continuam integrando ocotidiano da populao carcerria brasileira. No que a reparao s

    vtimas de torturas e prises ilegais, dentre outras violncias praticadas nopassado recente, seja indevida. O que se quer ressaltar que uma iniciativapara a justia de transio (e para os direitos humanos) no contribuiu paraa mudana da condio desumana e degradante a que so submetidos,hoje, os presos por crimes comuns. Enfim, ao reparar as vtimas da ditaduramilitar, o governo no conseguiu influenciar a estrutura atual da polticaprisional. (SOARES,2012, p.61)

    O conceito de justia de transio presta-se tambm compreenso do processo deconsolidao do Estado Democrtico de Direito, principalmente, na essncia que o distancia

    do Estado autoritrio anterior a Constituio de 1988, ou seja, no respeito aos direitos egarantias fundamentais. Contudo, no mbito penal no houve, no Brasil, punio aosperpetradores das violaes aos direitos humanos.A persecuo penal como possibilidade a ser incorporada ao conjunto de medidasconfiguradas como Justia de Transio, foi debatida, por ocasio da Audincia PblicaLimites e Possibilidades para a Responsabilizao Jurdica dos Agentes Violadores de Direitos

    Humanos durante o Estado de Exceo no Brasil, ocorrida em 31 de julho de 2008 econvocada pela Comisso de Anistia do Ministrio da Justia. Em relao persecuo aosagentes perpetradores de violaes:

    A Comisso de Anistia tem sustentado a responsabilizao dos agentes quepraticaram crimes de tortura sistemtica em nome do regime: o sistema dedireitos do Brasil, para que seja ntegro e coerente, necessita condenar demodo peremptrio o uso de tortura em qualquer circunstncia . (ABRO;TORELLY, 2010, p. 30)

    Aps participao na citada Audincia Pblica, promovida pela Comisso de Anistia doMinistrio da Justia, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, ingressou em2008, no Supremo Tribunal Federal, com uma Arguio de Descumprimento de PreceitoFundamental, onde pediu interpretao luz da Constituio de 1988 do pargrafo 1 doArt. 1 da Lei de Anistia.Esperava-se, deciso no sentido de que a anistia concedida pela citada lei aos crimes

    polticos ou conexos no se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da

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    represso contra opositores polticos, durante o regime militar (1964-1985). Para o STF, seh necessidade de reviso da Lei de Anistia, esta tarefa ser do Congresso. Aps o

    julgamento da ADPF 153 constatou-se que o status quoda impunidade instituda em 1979sobrevive no Estado democrtico de direito como expresso das relaes de poder que

    sustentaram a transio lenta, gradual e segura e atravessaram o tempo.Em tese, o resultado de improcedncia da ADPF 153 por 7 votos a 2 eliminou a possibilidadede persecuo penal aos crimes da ditadura. Contudo, aps a deciso do STF, o MinistrioPblico Federal ajuizou a primeira ao penal, aceita pelo judicirio, contra SebastioRodrigues Curi, um coronel reserva. O militar foi o comandante das operaes militarescontra as aes de militantes opositores, conhecida como Guerrilha do Araguaia, no perodo1972 - 1974. Ento, pergunta-se: apesar da deciso do STF, na ADPF 153, possvelresponsabilizar e punir a conduta dos agentes estatais que perpetraram violaes aosdireitos humanos no exerccio de suas funes, na vigncia do Estado autoritrio entre1964/1985 ? Vejamos sob quais argumentos o Ministrio Pblico tem pautado sua atuao.

    O Ministrio Pblico, por sua vez, constituiu o Grupo de Trabalho Justia de Transio, pormeio do qual busca acatar as decises da Corte Interamericana de Direitos Humanos, nocaso Gomes Lund versus Brasil. Sobre o trabalho, em andamento, produziu o Relatrio

    preliminar de atos de persecuo penal desenvolvidos pelo MPF acerca de graves violaes

    de direitos humanos cometidas por agentes do Estado durante a ditadura. O documentotrata das aes impetradas, assim como as investigaes em curso:

    O GTJT reconhece que, inobstante as dificuldades ocasionadas por dcadasde omisso estatal, os dois anos que sucederam a edio da sentena daCorte IDH no caso Gomes Lund representam um inequvoco avano no quese refere ao cumprimento do dever estatal de promoo da persecuopenal das graves violaes a DH cometidas por agentes da repressopoltica durante o regime militar brasileiro. Em dois anos, foram instauradasnada menos do que 170 investigaes criminais dirigidas apurao doscrimes de sequestro, homicdio e ocultao de cadver, cometidos nocontexto de um ataque sistemtico e generalizado contra a populao civil.Quatro aes penais foram ajuizadas, e grupos de trabalho foraminstitudos nas PRs de So Paulo e Rio de Janeiro. Quase duas centenas detestemunhas foram ouvidas pelos procuradores naturais dessasinvestigaes, fato indito na histria do Brasil. A expectativa do GTJT deque novas aes sejam ajuizadas, em cumprimento sentena da Corte IDHno caso Gomes Lund. (MPF, 2013, p.100)

    Por meio da 2 Cmara de Coordenao e Reviso do Ministrio Pblico Federal que criou oGrupo de Trabalho Justia de Transio, estabeleceu-se as seguintes diretrizes com oobjetivo de avanar no terreno da persecuo penal:

    [...] fomentar ambiente propcio para a reflexo sobre o tema e para atomada de posies institucionais e no isoladas sobre a questo. Paratanto, a portaria atribuiu ao grupo as funes de: a) definir um plano inicialpara a persecuo penal; b) identificar os casos abrangidos pela sentenaaptos incidncia da lei penal; c) definir o juzo federal perante o qual seropropostas as aes penais, de acordo com as disposies internacionais e osdispositivos constitucionais e legais; d) examinar a investigao de crimes

    de quadrilha, nos casos em que os vnculos estabelecidos ainda durante a

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    ditadura militar permaneceram ntegros at momento recente.( MPF,2013,p.11)

    De quatro aes penais ajuizadas, trs foram aceitas pelo judicirio. Conforme argumentoscontidos no Relatrio do MPF a persecuo penal aos crimes da ditadura no colide com adeciso contida na ADPF 153 e est em sintonia com o Direito Internacional dos DireitosHumanos, com tratados de Direitos Humanos e com a jurisprudncia do sistemainteramericano e uma decorrncia histrica da importncia que a proteo aos direitoshumanos adquiriu nas ltimas dcadas.Assim sendo, outras questes podero ser enfrentadas. Por exemplo, como tratar os demaiscrimes que no foram contemplados nas aes ajuizadas pelo Ministrio Pblico? Almdisso, est em tramitao na Cmara dos Deputados um projeto de lei de autoria daDeputada Luiza Erundina que versa sobre a possibilidade da reviso da Lei de Anistia.Nesse mbito pergunta-se: as violaes aos direitos humanos praticadas por um Estado

    autoritrio podem ser ignoradas pelo processo de reconstruo democrtica do Estado dedireito? O princpio da irretroatividade da lei penal constitui obstculo ao avano da justiade transio, em mbito penal? Se faz justia de transio sem punio dos violadores?Diante dos limites acadmicos deste artigo, tais questes no sero desenvolvidas, masforam mencionadas com o objetivo de situar alguns problemas sobre justia de transio esalientar a necessidade de estudos sobre a questo.

    3Justia de transio e Comisso de AnistiaDo ponto de vista temporal e histrico, as polticas de justia de transio demarcam uma

    relao entre o passado e o presente e um dilogo entre o Direito e a Histria. Entre opassado de violaes aos direitos humanos e o presente estabelecido a partir daConstituio de 1988, at os dias atuais, consolidam-se esforos pela redemocratizao. Asaes do Estado no mbito de medidas efetivas de justia de transio, ainda que tardias,fazem parte deste processo.Em termos prticos, no mbito do Poder Executivo, a Comisso de Anistia do Ministrio daJustia administra e executa os procedimentos que resultam no reconhecimento dacondio de anistiado poltico e na reparao pecuniria. Conforme relatrio de 2009 osnmeros so os seguintes:

    At o presente momento, a Comisso j concedeu a declarao de

    anistiado (reconhecimento da condio de perseguido poltico) a 30.967pessoas, tendo ainda concedido algum tipo de reparao econmica a10.578 destas. Do total de 64.151 requerimentos hoje existentes naComisso, ainda restam 16.389 por serem apreciados.(ANISTIA POLTICA,2009, p.17)

    A Comisso de Anistia, instituda com base no artigo 8 do Atos das DisposiesConstitucionais Transitrias e regulamentada pela Lei 10.559/2002, desempenha umimportante papel no sentido de efetivar medidas de justia de transio. Porm, a prpriaComisso reconhece que:

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    Verifica-se facilmente o enorme decurso de tempo entre a garantiaconstitucional do direito e a regulamentao de sua implementao.Somando-se a isso o prprio reconhecimento estatal tardio do prejuzocausado a uma srie de brasileiros no perodo que se estende de 1946 e

    1988 (tempo de abrangncia da lei), percebe-se facilmente a necessidadede uma rpida efetivao desses direitos, de modo a que seja possvel areparao moral e o usufruto da reparao econmica pelo anistiado aindaem vida.(ANISTIA POLTICA, 2009, p.15)

    Do ponto de vista do Direito Civil os processos administrativos que tramitam na Comisso deAnistia do Ministrio da Justia tem sua justificativa no princpio de quem causa danorepara. Porm, na prtica, uma instncia deliberativa, j que, ela mesma, por meio dospareceres e votos de seus conselheiros, analisa os processos de reparao econmica porperseguio poltica, defere ou no os pedidos e determina o valor a ser pago aos ex-perseguidos polticos. (ROSITO, 2010, p.312) Nesse sentido, o editorial da Revista Anistia

    Poltica interpreta que:[...] A anistia representa, neste caso, o pedido oficial de desculpas doEstado brasileiro por ter perseguidos aqueles cidados que tinha obrigaode proteger, contribuindo, dessa maneira, para a consolidao de umacultura da legalidade, em que ningum privado de seus direitos sem odevido processo, e aqueles que tm seus direitos violados, por fora de lei,so reparados. .(ANISTIA POLTICA, 2009, p.17)

    Ao longo dos trabalhos desenvolvidos pela Comisso de Anistia foi gerado um acervodocumental, aberto aos pesquisadores e demais interessados, que tambm resultar em

    poltica pblica de justia de transio:Ainda, centenas de imagens, vdeos, livros e documentos foram trazidos aosautos ou produzidos pela Comisso de Anistia, seja como forma deinstruo processual, seja como registro de suas atividades julgadoras eeducativas. Todo esse patrimnio da democracia brasileira serdisponibilizado ao pblico em um grande centro de memria edocumentao: o Memorial da Anistia Poltica no Brasil. Rene-se nesseacervo os documentos com a expresso viva dos perseguidos polticos doBrasil. O pas ter dois grandes acervos: o acervo oficial do Estado,sistematizado pelo projeto Memrias Reveladas, sob responsabilidade doArquivo Nacional, e um outro acervo, do Memorial da Anistia, contando a

    histria do ponto de vista no oficial, vista pelos olhos daqueles que nopassado tiveram suas vozes caladas: os perseguidos polticos. Da que oMemorial, por si s, constitua um instrumento de reparao histrica.(ANISTIA POLTICA, 2009, p.19)

    Nesse sentido, a Comisso de Anistia, exerce a funo poltica de estimular o debate efomentar respostas jurdicas s exigncias histricas atuais. O trabalho desenvolvido nosltimos anos se pautou por uma perspectiva de mudana quanto ao papel quedesempenhava desde sua criao em 2001:

    Ora por conta dos valores concedidos como indenizao, ora por conta danotoriedade das pessoas indenizadas e, mais recentemente, por conta dadiscusso da possibilidade de responsabilizar os torturadores da poca da

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    ditadura militar, os trabalhos da Comisso de Anistia do Ministrio daJustia aparecem no noticirio desde sua criao, em 2001. A partir de2008, entretanto, o rgo passou a ter suas iniciativas mais presentes napauta da imprensa, como resultado de uma nova agenda poltica que

    coloca em prtica. (ROSITO, 2010, p.312)

    De acordo com Rosito,(2010,p ) os trabalhos da Comisso de Anistia devem ser visto comoaes que visam implementar novas disputas polticas e projetos de memria alusivos

    ditadura militar:Em resposta a manchetes que taxaram os valores concedidos como bolsa-represso, defenderam enfaticamente a legalidade das reparaes,

    chamaram jornalistas de inescrupulosos e discorreram sobre os porqus

    de a imprensa ater-se a casos isolados e divulgao de valores no lugarde dar visibilidade ao processo de reconhecimento e afirmao

    democrtica colocados em curso pelo rgo na viso daqueles que ointegram. Assim, os requerimentos e seus respectivos julgamentosconstituem-se em litgios de significado em que duelam no apenas ossujeitos envolvidos, mas sujeitos que analisam, defendem, criticam ereprovam as reparaes econmicas sem serem partes diretas nasdemandas. (ROSITO, 2010, p.327)

    A concepo de anistia que orienta os trabalhos da Comisso de Anistia diferesignificativamente do que se encontra nos manuais de Direito Penal. outra a conceposemntica e a dimenso poltica. O conceito deixa ser esquecimento para se tornar exercciode memria e reconhecimento:

    Assim, alm de suas atribuies de analisar e deliberar sobre osrequerimentos, a Comisso volta-se para a mobilizao da discusso deoutros sentidos da anistia, transformando o conceito at ento em vigor

    de extino da punibilidade dos crimes polticos em um pedido oficial dedesculpas do Estado brasileiro. H o objetivo declarado de se construir

    uma memria do perodo da ditadura militar que coloque em relevo asviolncias sofridas pelos militantes que foram perseguidos polticos e desublinhar as violaes de direitos humanos ocorridas no perodo. (ROSITO,2010, p.328).

    Contudo, verifica-se que o trabalho desenvolvido pela Comisso, no tem sensibilizado os

    demais poderes sobre as questes referentes justia de transio. Para DArajo, oreconhecimento das vtimas e as reparaes pecunirias ainda no foram capazes demobilizar amplos setores da sociedade sobre o legado de violaes que a Comisso deAnistia busca indenizar:

    Dos trs poderes no Brasil, ainda que precrio e pouco incisivo, o Executivofoi o que mais ousou no sentido de esclarecer e reparar danos provocadospela ditadura. O Legislativo tem sido o grande ausente, e o Judicirio temvalidado recorrentemente a interpretao de que a Lei de Anistiacontempla crimes como a tortura e outras formas de desrespeito aosdireitos humanos no que toca ao perodo ditatorial. neste cenrio depouco interesse da sociedade, de inapetncia dos Poderes, e de "cultura deconciliao", que se mantm intacta a Lei de Anistia aprovada em 1979,

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    ainda em plena ditadura. Mais do que isso, ao contrrio de outros pasesvizinhos, o Brasil no conseguiu levar a cabo outros recursos jurdicos que,contornando essa Lei, possibilitassem alguma forma de responsabilizaocriminal individual pelos crimes do perodo. (D'ARAUJO, 2012, p.577)

    Apesar do trabalho da Comisso de Anistia, pesquisadores do tema consideram que o Brasil o pas mais atrasado em relao ao encaminhamento de medidas de justia de transio,quando comparado com os vizinhos argentinos e chilenos, entre outros. Algumasexplicaes para o atraso est associado ao pouco entusiasmo da sociedade para asquestes relativas ao passado e pela cultura da conciliao. Por outro lado, no aspectosocial e acadmico, interpretaes de historiadores sobre o legado da ditadura indicam aelaborao de uma histria oficial de esquerda, alm de outras questes relativas torturacomo poltica de Estado:

    Est em curso, sem dvida, a elaborao de uma histria oficial deesquerda, um gnero sempre criticado por estas mesmas esquerdas, masagora retomado por elas, ou parte delas, uma vez entronizadas no poder.Nada de especialmente surpreendente, considerando-se o que j tinha sepassado nas experincias do socialismo realmente existente, mas que euno esperava presenciar em vida, embora compreenda a lgica subjacentee as motivaes. A contrapelo desta histria oficial, h muitos bas a seremabertos, e no vejo como isso possa fazer mal sade da democraciabrasileira. Mas h mais. que todo este debate sobre a ditadura poderiaensejar o enfrentamento de mais uma questo, especialmente sensvel ecrucial: a tortura como poltica de Estado. (REIS, 2010, p.179)

    Nesse sentido, a questo da tortura como poltica de Estado um tema que alcana odebate sobre justia de transio. De acordo com o historiador Daniel Aaro Reis, a prticada tortura o grande debate que deve ser encarado no mbito de uma possvel reviso daLei de Anistia:

    Questo profundamente inquietante. Desde 1935 at 1979 passaram-se 44anos. O pas ter vivido, entre 1935 e 1945 e entre 1964 a 1979, portanto,durante 25 anos, com a tortura como poltica de Estado. No o caso derefletirmos sobre isso? Sabemos bem que a tortura no foi inventada pelasditaduras. Ela uma trgica tradio, ancestral, que se ancora na sociedadecolonial, depois, j o pas independente, na sociedade escravista. Tambmsabemos que estas prticas infames continuaram depois das ditaduras, at

    os dias de hoje, largamente utilizada pelas polcias civil e militar, pormilcias privadas de diversa natureza, por bandidos comuns e incomuns,quando no pelas prprias foras armadas quando investigam supostoscrimes. (REIS, 2010, p.179)

    Ainda cabe salientar que entidades de direitos humanos, de representantes de familiares demortos e desaparecidos polticos e militantes que resistiram ao Estado de exceo, atuaramcontra as violaes perpetradas. Exemplo nesse sentido o fato de que comeou a tramitar,em 1970, um processo contra o Brasil na Comisso Interamericana de Direitos Humanos e adeciso sobre o caso de 1973. Nesse sentido, oportuno salientar que historicamente abusca pela justia est registrada nas peties ajuizadas na Comisso Interamericana de

    Direitos Humanos, portanto, no algo que veio baila em governos recentes.

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    Consideraes finais

    Ao longo da anlise buscou-se responder o que justia de transio. Salientou-se que otermo refere-se ao conjunto de medidas judiciais e no judiciais direcionadas a lidar com olegado de violaes aos direitos fundamentais, perpetrados por agentes estatais, na

    vigncia de um Estado autoritrio. Em termos de jurdicos, trata-se de crimes praticadospelo Estado. No caso brasileiro, quanto ao conjunto de medidas implementadas, destacou-seno mbito do Poder Executivo o trabalho desenvolvido pela Comisso de Anistia doMinistrio da Justia.Evidenciou-se que o tema tem complexidade e importncia de ordem histrica, jurdica epoltica. A dinmica histrica que envolve as medidas de justia de transio indicam que aquesto da punio e da impunidade sobre violaes aos direitos fundamentais praticadaspor agentes estatais est em discusso e deveria contemplar tambm a questo da torturacomo poltica de Estado. Sua importncia est associada ao fortalecimento das instituiese do Estado democrtico de direito, tendo em vista que nossa histria republicana

    marcada por recorrentes perodos de vigncia de Estado de exceo.Ao olharmos para o passado de violaes o fazemos a partir dos avanos dos direitos civis epolticos, mas sobretudo dos direitos fundamentais estabelecidos a partir da Constituio de1988. Assim, vlido indagar sobre quais caminhos so compatveis com os valores eprincpios da Constituio de 1988, quando se nomeia cada um dos crimes perpetrados poragentes do Estado de exceo, mesmo que no se possa nomear cada uma das vtimas ouidentificar e punir todos agentes violadores. Tal perspectiva reafirma as diferenasconstitucionais que estabelecem as distncias histricas e jurdicas, s vezes frgeis, entre oEstado de exceo do passado e o Estado democrtico de direito do presente e do futuro.Nesse sentido, so importantes para o avano de nossa justia de transio as pesquisas

    acadmicas interdisciplinares e o debate poltico sobre interpretaes da histria queensejam teses e decises jurdicas que referendam impunidades perpetradas por agentes doEstado, quer seja no passado, quer seja no presente.

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