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Sobre o cabra manoel

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Page 1: Sobre o cabra manoel
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Sumário:

Sentença Judicial Datada de 1833 – Província De Sergipe………………………………03

Cabra Manoel Duda e a Moita Maldita da História………………………………………… 04

Depoimento de Rosinha .................................................................................... 04

Depoimento de Lindalva .................................................................................... 05

Trinca ................................................................................................................. 06

Depoimento de Zé Boneca ................................................................................ 06

Depoimento de Padre Juscelino ........................................................................ 07

Carta de José Januário........................................................................................ 08

Depoimento de Ferdinando ............................................................................... 08

Depoimento de Rosalinda ................................................................................. 09

O que a curandeira tem a dizer ………………………………………………………………..…… 10

Depoimento de Pafuncia ………………………………………………………………………………10

Depoimento de Jupira ………………………………………………………………………………….11

Depoimento de Mariazinha …………………………………………………………………………. 12

Depoimento de Seu Leopoldo ……………………………………………………………………….13

Horla e eu …………………………………………………………………………………………………..14

Depoimento de Viriato …………..………………………………………………………………….. 14

Depoimento de Euclides …………….………………………………………………………………. 15

Travessa em Três Tempos …………………………………………………………………………....16

Page 4: Sobre o cabra manoel

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“...Vá de retro! – nanje os dias e as

noites não recordo. Digo os seis, e

acho que minto; se der por os cinco

ou quatro, não mais? Só foi um

tempo. Só que alargou demora de

anos – às vezes achei; ou às vezes

também, por diverso sentir, acho que

se perpassou, no zúo de um minuto

mito: briga de beija-flôr. Agora, que

mais idoso me vejo, e quanto mais

remoto aquilo reside, a lembrança

demuda de valor - se transforma ,se

compõe, em uma espécie de

decorrido formoso. Consegui o

pensar direito: penso como um rio

tanto anda: que as árvores das

beiradas mal nem vejo...Quem me

entende? O que eu queira. Os fatos

passados obedecem à gente; os em

vir, também. Só o poder do presente

é que é furiável? Não. Esse obedece

igual – e é o que é. Isto, já aprendi. A

bobeia? Pois, de mim, isto o que é, o

senhor saiba – é lavar ouro. Então,

onde é que está a verdadeira

lâmpada de Deus, a lisa e real

verdade? ...”

Riobaldo

Sentença Judicial Datada de 1833 – Província De Sergipe SÚMULA: Comete pecado mortal o indivíduo que confessa em

público suas patifarias e seus boxes e faz gogas de suas

víctimas desejando a mulher do próximo, para com ella fazer

suas chumbregâncias.

O adjunto de promotor público, representa contra o cabra

Manoel Duda, porque no dia 11 do mês de Nossa Senhora

Sant'Ana quando a mulher do Xico Bento ia para a fonte, já

perto dela, o supracitado cabra que estava em uma moita de

mato, saiu della de supetão e fez proposta a dita mulher, por

quem queria para coisa que não se pode trazer a lume, e como

ella se recuzasse, o dito cabra abrafolou-se dela, deitou-a no

chão, deixando as encomendas della de fora e ao Deus dará.

Elle não conseguiu matrimonio porque ella gritou e veio em

amparo della Nocreto Correia e Norberto Barbosa, que

prenderam o cujo em flagrante. Dizem as leises que duas

testemunhas que assistam a qualquer naufrágio do sucesso faz

prova.

Considero:

Que o cabra Manoel Duda agrediu a mulher de Xico Bento

para conxambrar com ella e fazer chumbregâncias, coisas que

só marido della competia conxambrar, porque casados pelo

regime da Santa Igreja Cathólica Romana; Que o cabra Manoel

Duda é um suplicante deboxado que nunca soube respeitar as

famílias de suas vizinhas, tanto que quis também fazer

conxambranas com a Quitéria e Clarinha, moças donzellas;

Que Manoel Duda é um sujetio perigoso e que se não tiver

uma cousa que atenue a perigança dele, amanhã está

metendo medo até nos homens.

Condeno:

O cabra Manoel Duda, pelo malifício que fez à mulher do Xico

Bento, a ser capado, capadura que deverá ser feita a macete

.A execução desta peça deverá ser feita na cadeia desta Villa.

Nomeio carrasco o carcereiro. Cumpra-se e apreguem-se

editais nos lugares públicos.

Homine debochado debochatus mulherorum inovadabus est

sentetia qibus capare est macete macetorim carrascus sine

facto nortre negare pote.

Cumpra-se a apregue-se editaes nos lugares públicos. Apelo

ex-officio desta sentença para juiz de Direito deste Comarca

Manoel Fernandes dos Santos.

Juiz de Direito da Vila de Porto da Folha Sergipe,

15 de Outubro de 1833.

Fonte: Instituto Histórico de Alagoas.***

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Depoimento de Rosinha:

Tentei abster-me de ferrenha

discussão, mas sinto que as

veias de meus dedos não irão

parar de pulsar enquanto não

opinar. Confesso que conheci

cabra Manoel Duda, há um

punhado de tempo atrás, ainda

mantinha intacto o orgão que

lhe conferia o certificado de

macho. É, tratando-se do povo

de Alagoas essas coisas fazem

diferença. O que sei é que o

cabra fazia juz ao mebro que

carregava, não que eu tenha

tido intimidade com tal parte

de seu corpo, mas, sabe como

é, as raparigas comentam.

Também sei que aquelazinha, a

mulher do Xico Bento, de santa

não tinha nada, talvez os

saiotes que ela provavelmente

roubava do guarda-roupa

empoeirado da tataravó. Veja

bem, os sinhô não ache que eu

estou defendendo o Duda, mas

que ela não prestava, ah, isso

não prestava. Eu até acho que

o Duda deve mesmo ter dado

uns apertões nas carnes

daquela sonsa, agora dizer por

aí que foi contra o gosto

daquela desavergonhada?! Isso

é demais para minha pessoa

doutô.

Depoimento transcrito por MB.

Cabra Manoel Duda e a Moita Maldita da História

Pobre do cabra Manoel Duda. Entrou para

História da pior maneira: capado. Isso é que nos

chega pelas fontes oficiais. O fato é que Xico

Bento, há meses não dava no coro por razões

desconhecidas em sua mulher. Durante um

segundo inquérito (este que não fora revelado),

após a execução da maldosa sentença ao cabra

Manoel Duda, a mulher de Xico Bento voltou atrás

arrependida e confessou o mal entendido. Dissera

que durante as missas de Pentecostes tratou de

atiçar o cabra sem o mínimo de pudor. E que o

caso era de excomungá-la, logo tivera praticado a

luxúria sob os olhos do crucificado.

Ela como integrante da irmandade do rosário

postava-se ao lado de outras companheiras nas

cadeiras dispostas no altar. De frente para

Manoel, sujeito de boa índole, familiar e afeito à

fé, insinuou abrir as pernas e pôr as vistas dele

toda sua densa moita. O pobre homem no

período da novena, ia para Igreja, mas rezava o

terço pro diabo. Esqueceu-se dos pecados com

tamanha oferta. Sorveu em seus íntimos desejos a

brasa daquela mulher. Danou a procurá-la depois

de cada missa.

Page 6: Sobre o cabra manoel

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Até que no nono dia recebera um bilhete

confirmando o encontro na fonte. Aquela região

da vila estaria deserta para as andanças da

procissão. Enquanto que o marido Xico Bento, dis-

traído, contaria nos dedos a rentabilidade da

venda no último dia dos festejos. Tudo riscado no

premeditado. Ás nove horas de lua cheia daquela

noite do dia 11, Manoel e Liodalva se amassavam

num lesco lesco caloroso. Quando Liodalva gritava

pelo incomodo das pedras que friccionavam suas

costas, apresentaram-se em tom de salvadores,

Nocreto Correia e Norberto Barbosa ao voltarem

duma briga de galos.

O desenrolar da confusão todos já sabem. Manoel

Duda indefeso, resignado em sua vergonha,

confuso por ser condenado somente por ter sido

homem. Depois de capado, não suportou a dor

maior de seu fim e matou-se. Liodalva linchada

pela cidade ganhou o apelido de Moita Maldita,

separou-se do marido frouxo, deixou a Vila só

com as sandálias nos pés e fora acolhida num

convento.

historieta narrada por [estradeiro-mor] de vereda

acima.

Depoimento de Lindalva

O povo da cidade sabe que

minha irmã é moça direita, um

poço de candura. Tinha por

desejo, quando moça, o de

entrar para o convento; o

próprio marido sabia disso

quando a tomou em

matrimônio. Pode parecer

estranho uma moça tão dada

aos assuntos da igreja se

enrabixar por algum cabra,

mas insisto em dizer que tal

romance foi, de certo,

abençoado pelos céus.

Xico Bento é um cabra

respeitador, passou um

perrengue pra conseguir

conquistar minha irmã. Depois

do casamento dedicou sua vida

para ela , ela também só tinha

olhos pra ele. É por isso que eu

digo doutô, aquele atrevido do

Manoel Duda merecia o

capamento, se o Seu Delegado

não tivesse feito eu faria com

minhas próprias mãos.

Depoimento Transcrito por MB

Page 7: Sobre o cabra manoel

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Trinca E Manoel Duda perdeu as bolas. Isso pra essas

estâncias é pecado mortal, é pior que mutilação.

Pior que perder braço, perna; comparado à vida

mesmo. Dizem que Deus não gosta dessas

sangrias; que o sangue de baixo é mais sagrado...

vai saber!

Mas pior que isso aqui, só ficar de

chumbregâncias com sujeito perto da fonte.

Nessas vilas pequenas, onde o que o pai fala deve

ser levado como missa, causos como esse sempre

levam esse fim.

Vê quem ia entender que Manoel Duda, cabra de

culhão respeitado, mulherengo de marca maior,

tava de paixonite pelo Nocreto Correia?! Só o

Norberto Barbosa, que também caía em dengos

com o bonitão. Afinal, Nocreto era fazendeiro,

viúvo, sem filhos, alto, com cheiro de cabra

macho... mas era só o cheiro.

Sucedeu que o Manoel Duda, depois do

imprevisto com Quitéria e Clarinha foi aparado

pelo nobre Nocreto. Duda passou a ser peão da

fazenda e já havia inté se mudado pra lá.

Norberto Barbosa, da vendinha da vila vizinha, já

tava enciumado e achando que ‘tinha caroço

nesse angu’. Quando descobriu as

chumbregâncias dos dois, foi tirar satisfação com

Nocreto – que era dele, antes de aparecer um

cabritinho mais moço.

Depoimento de Zé Boneca

É! Agora andam dizendo por aí

que Manoel Duda é baitola,

não me leve a mal, não tenho

nada com a vida do cabra e

também não sou dado a

preconceitos. A irmã da vizinha

de minha cunhada, contou, e

minha cunhada me contou que

o Duda andava de chamegos

com Nocreto Correia, sujeito

bem apessoado. Mas todo

mundo sabe que o Nocreto era

território de Norberto Barbosa,

tá certo, nem todo mundo, mas

os mais chegados, se é que o

sinhô me entende, certamente

sabiam.

Não sei como é que os três

foram parar de lesco-lesco

pelas pedras da fonte,

Norberto Barbosa é um homem

possessivo. É certo que Nocreto

tem o fogo de uma

salamandra, e Manoel Duda

também não é de se jogar fora,

mas se tratando do ciúmes de

Norberto uma safadeza a três

me parece uma idéia

insustentável.

Como eu já falei antes doutô

não tenho nada a ver com a

vidas dos outros, mas essa

história de Manoel Duda ficar

de chumbregâncias, não sei

não.

Depoimento transcrito por MB

Page 8: Sobre o cabra manoel

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Nocreto apresentou os dois. Depois de muito

ciúme, passaram a viver juntos; os três. E eles

iam, em muitas vezes, à fonte, onde conversavam

e, abraçados, ostentavam aquela natureza bonita

que Deus tinha dado pra eles...

No dia do ocorrido, tava quente por demais e eles

não pensaram duas vezes em ir à fonte, ouvir o

barulho da água e se refrescarem juntos. Mas não

agüentando os hormônios e a adoração, saíram os

três de ‘lesco-lesco’ pelas pedras. Liodalva, que ia

em direção da fonte pra fazer sua oração, ouviu

um barulho estranho. Chegou mais perto, atrás da

moita, e gritou com o que viu. Os três se

assustaram e logo trataram de explicar pra bela

Liodalva o que acontecia.

Liodalva, carola e intolerante que é, resolveu

acusar o primeiro que vira pela frente, e fazê-lo

pagar por aquele pecado-de-morte que

cometiam. E, em nome de Deus, rasgou as roupas

e berrou com todas as forças. A multidão que

vinha atrás dela correu para ver o que acontecia.

Duda tomou a culpa em amor aos dois e disse ser

o feitor daquilo. Os dois foram as testemunhas do

falso acontecido.

A história foi aceita, mas ainda muita coisa rolou;

inclusive, as bolas do Duda, coitado. E, por pouco,

não foi também a cabeça de Liodalva, que não

agüentando a pressão da consciência, fugiu; já

desquitada de Xico Bento.

Historieta Narrada por H.

Depoimento de Padre Juscelino

Meu filho, eu como homem de

Deus prefereria não falar mais

nesse assunto, o povo de minha

cidade já sofreu demais por

conta do acontecido. Eis aqui a

prova concreta de que o mal

tenta seduzir a todo instante,

aquele que não segue firme no

caminho do senhor está sujeito a

cair em tentação. Já fazia um

tempo que eu tentava alertar o

pobre Manoel Duda a respeito

de seus praticados, mas ele

insistia em não me dar ouvidos.

É o que falo em todos meus

sermões, quando o diabo não

vem manda o secretário e dessa

vez foi o Nocreto Correia que

assumiu tal papel. O Senhor me

avisou para orientar Manoel

Duda, e com essa intenção que

pedi para Lidoalva, moça que eu

conheço desde a infância, para

que tentasse aconselhar seu

irmão, já eu não tinha obtido

êxito nisso. Não é segredo que

Lidoalva queria ser freira

quando mais nova, eu

particularmente acho que ela

seria exemplar se tivesse

seguido essa vida, mas

apaixonou-se.

Depoimento transcrito por MB

Page 9: Sobre o cabra manoel

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Sergipe, 18 de novembro de 1837

Caros possíveis leitores,

Sei que circulou muita cascata pelo acontecimento

da prisão e posterior capação de Manuel Duda. A

história que contarei aqui é verdade verdadeira,

fato verissíssimo. Conheci por muito tempo Xico

Bento, desde a pequenagem já nos afeiçoamos, o

que nos levou a virarmos compadres. Só que essa

atrocidade toda mudou tudo, conto isso porque um

dia fomos como irmãos, hoje somos quase

desconhecidos. Compadeci-me de Manoel Duda,

cabra que pagou pela falta de hombridade de seu

contratante. Mas contemos a história completa,

vamos aos fatos. Xico Bento era comerciante rico,

desde pequeno já sonhava em casar com mulher

direita e ser homem de posses, deu dois tiros

certeiros. Transformou a velha mercearia de seu

falecido pai em um comércio abastado, ainda se

matrimoniou com Liodalva, moça bela e pura.

Enganou-se o que achava que a vida de Xico seria só

de encantos. Algum tempo depois do casamento,

no qual tornamos cumpadres, a prosperidade do

comércio diminuiu (acho que por olho gordo) e,

para piorar, Xico passou a desconfiar que Liodalva

tava lhe corneando.

Depoimento de Ferdinando

Lindoalva sempre foi dada aos

prazeres da carne, eu sei disso

porque tivemos um namorico

juvenil. É verdade que ela

gostava das coisas da Igreja,

mas gostava ainda mais do

lesco-lesco que a gente fazia por

detrás das moitas. Quando veio

me falar que iria ser freira eu lhe

disse que era uma coisa que não

ia durar, não durou. Ela trocou a

santidade pelo casamento, o que

pra mim não foi uma boa

escolha, mas cada um sabe do

que faz.

Se bem que Lindoalva não sabia,

eu sempre tive para mim que ela

não era mulher de um homem

só. Não que ela tenha me

metido um par na testa, comigo

ela era só amores, mas aquele

Xico Bento?! Ele não é homem

para segurar Lindoalva. Não

quero falar de assunto que não

me convém, mas quando

Adeovaldo me disse que ela

andava lhe conferindo olhares vi

logo o par enfeitando a cabeça

de Xico Bento.

O corno desconfiou e quem

acabou pagando o pato foi o

pobre do Manoel Duda que não

tinha nada com o assunto. Como

eu disse doutô, conheço a

rapariga de longa data.

Depoimento transcrito por MB.

Page 10: Sobre o cabra manoel

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Veio tratar comigo dessa história. Disse-lhe para

averiguar direito, pois, caso se confirmasse o

adultério, era caso para ser tratado a base do tiro.

Dias depois, Xico veio me dizer que contratara um

cabra para tratar do caso, nome dele, Manoel Duda.

Eis que na noite do dia 11 do mês de Nossa Senhora

de Sant'Ana, Manoel Duda, exercendo o ofício pelo

qual fora contratado, encontrou Liodalva em pleno

ato adultero com funcionário do comércio de Xico,

o Adeovaldo. Manoel Duda travou batalha com

Adeovaldo, no entanto, deixou o salafráio escapar.

Quando voltou para ter com Liodalva, apareceu a

dupla Norberto e Nocreto (dizem que eram

baitolas) que certamente se assustaram com a

cena. Logo que Manoel Duda iniciou a tentativa de

explicação, Xico Bento surgiu e o acusou de

estupro. Norberto e Nocreto o imobilizaram e o

levaram a cadeia pública, o resto da história todos

já conhecem. Sobre a atitude de meu ex-cumpadre,

penso que receou ser conhecido por corno, afinal,

Nocreto era fazendeiro conhecido e um cabra

muito fofoqueiro. Minha velha amizade com Xico

acabou depois disso, além de ter acusado um

inocente, ainda era corno. De Adeovaldo, soube

que andou disfarçado, era conhecido por Zé

Boneca. Tempos depois, Xico descobriu e tentou

matá-lo, não conseguiu e ainda voltou aleijado,

tomou tiro nas bolas. Concluo este breve relato a

dizer que o deixo, antes de partir para Pernambuco,

para fazer justiça. Apenas o descobri em detalhes

recentemente (como fiz não preciso contar) e o

transcrevo aqui com sinceridade.

José Januário

Carta transcrita por Zé do Trilho

Depoimento de Rosalinda

Não suporto mais falar da

desgraça que sucedeu com meu

marido doutô, mas como o sinhô

disse que isso pode ajudar meu

pobre Duda resolvi falar. Não

que seja possível recuperar o

que lhe tiraram, mas pelo menos

sua honra vai ficar lavada. Meu

marido é homem trabalhador e

honesto, o que fizeram com ele

foi mais que injustiça, foi uma

judiaria. A culpa não é dele se

aquela mulher do Xico Bento é

uma sem vergonha, e o próprio é

um covarde. Acho mesmo é que

foi merecido o chifre que lhe

colocou.

O que aconteceu é que o corno

tava com a testa coçando e

contratou meu marido para

vigiar a mulher. Quando o Duda

encontrou a desavergonhada em

pleno ato libidinoso com um tal

de Adeovaldo, ele se viu tomado

de uma raiva de um tamanho

que eu nem sei como explicar e

partiu para cima da pecadora.

Quando Xico Bento chegou e viu

meu Duda em cima da mulher

dele tratou de dizer que foi

tentativa de estupro pra escapar

da fama de corno.

Depoimento transcrito por MB.

Page 11: Sobre o cabra manoel

9

O que a curandeira tem a dizer.

Naquela noite do dia 11 do mês de Nossa

Senhora de Sant'ana, lembro-me bem! Estava eu

perto da fonte, donde se adrenta na mata. A lua era

cheia, e o silêncio do breu fora rasgado por uns

barulhos que ouvia-se de longe, será que era da

noite? Por vezes me pergunto se os barulhos que

ecoavam em meus ouvidos eram augúrios da mãe

noturna. Não sei se o Sr. sabe Doutô, quando a

noite grita, é por mô de que alguma desgraça vai se

assuceder, assim aprendi com minha finada vó que

era mulher que sabia das cousas, benzia que era

bonito de se ver, não tinha mal que vó não desse

jeito.

Naquela noite sagrada eu me preparava para o

ritual da mãe noturna, mãe noturna é a protetora

dos desvalidos, dos desesperados e também traz

desgramação pra vida das pessoa que manga dela,

o que graças a Deus não é o meu causo. Eu sou

muito Católica e devota de Sant'ana, mas apesar da

minha fé na Santa Madre Igreja, carrego em minhas

víceras o dom da magia que herdei de minha finada

vó, e que nunquinha tinha usado por mô de ter

medo do “povo do outro lado”, o causo é que há

dez anos atrás me vi numa encruzilhada, eu

emprenhei e não tinha concebido matrimônio, veja

só Doutô a desgramera em que me meti, minha

mãe e meu pai me expulsaram de casa, minha

vózinha já era finada, mas há tempos tinha me

passado seus “segredos”, carrego até hoje dentro

de mim seus ensinamentos, e de todos eles, o da

mãe noturna é o que mais me anima e me dá

forças pra aguentar as artimanhas dessa vida.

Depoimento de Pafuncia

A Dona Matilde? Ih Doutô,

aquela é mocumbeira. Não sei o

que ela andou dizendo pró

Sinhô, mas se eu fosse o Doutô

eu não dava trela pro que ela

fala não. Chegou aqui faz uns

anos com uma filha no bucho e

sem marido. Dizem que nem o

pai do bacuri quis saber dela, eu

já tenho minhas dúvidas se ela

sabe quem é o pai da cria dela. A

pobre da menina inté que é

ajeitadinha, dizem que é boa

moça, coitadinha não tem culpa

da mãe que tem.

Assim sobre o caso do Manoel

Duda eu não sei nada, não. Me

contaram que ele não é mais

macho, isso é mesmo uma

desgramera na vida de um

homem. Mas eu não conheço ele

não, nem a outra

desavergonhada que tava se

enroscando no cabra. Na

verdade não quero nem saber

dessa história, pra mim quem +e

metido com sem vergonhice tem

mesmo é que aprender o que é

bom pra tosse.

Eu vim aqui falar com o Doutô

porque fiquei sabendo que

aquela macumbeira andou vindo

aqui. Eu me arresolvi vir pra mó

de alertar o Sinhô pra não

acreditar em nada que aquela lá

falar.

Depoimento transcrito por MB.

Page 12: Sobre o cabra manoel

10

eu

Mãe noturna jamais deixa a mercê uma pobre alma

desgraçada! Saí de casa com a roupa do corpo e me

pus na vida, o pai da minha cria também não quis

saber da gente, disse que como eu tinha perdido

minha pureza com ele poderia ter sido com

qualquer um, e quem garantiria que ele era o

primeiro?

O fato é que minha barriga crescia e que

ninguém me queria por perto, assim deixei Olho

d’Água Grande pra traz e nunca mais regressei, vim

pra cá prenha e sozinha, e desde então tenho um

pacto com mãe noturna.

Como eu ia dizendo, me preparava pro ritual da

mãe noturna, pois graças a ela minha cria nasceu

com saúde e já tá menina-moça, ela é minha

alegria,esperta que só ela. Então na boca da noite

fui pra mata, lá pras banda da fonte, adentrei fundo

naquela escuridão, cheguei ao pé do cajueiro e fui

ter com mãe noturna como faço em toda lua cheia,

pois é quando ela aparece. Agradeci e me mantive

no coração da mata por um bom tempo, fazendo

minhas obrigações que não cabe relatar aqui, pois

segredo é segredo e com certeza mãe noturna não

ia gostar nada, nada, que eu desse com a língua nos

dentes sobre nossa ligação, que é muito íntima e

profunda, não posso contar os detalhes Doutô, mas

por fim, eu ia saindo da mata a lua estava lá há

lumiar, era tão linda, radiante, e o sereno que caía

de mansinho, banhando o verde da mata, servia pra

refrescar a quentura que fazia, seguia com meu

passo leve e tranquilo, quando derepente comecei

a ouvir uns barulhos que vinham da direção da

fonte,

Depoimento de Jupira

Pois é Doutô, eu tava lá embrenhada

no meio da mata na noite de

acontecido. O Sinhô sabe né Doutô

minha casa fica na entrada do mato,

e eu não sou dos luxos, minha casa

funciona na base do lampião

mesmo, e tenho um fogãozinho de

barro pra mó de esquenta minha

comida. E nesse noite eu tinha

entrado no mato pra buscar lenha.

O Sinhô sabe né Doutô, não me

serve a lenha de perto da fonte

porque ela é sempre muito úmida.

Mas eu tinha que passar por aquelas

bandas pra chegar onde tem a lenha

boa. Eu não vi nada Doutô, mas ouvi

uns barulhos meio estranhos, uns

respiro engraçado. O Sinhô entende

né?! Eu conheço bem a mata, mas

também não ou boba de ficar lá

esperando pra descobrir o que podia

ser aquele barulho. Me apressei pro

rumo da minha lenha e voltei pro

seguro da minha casa.

No outro dia é que encontrei a Dona

Matilde escondida no meio de uns

troncos, ela tava bem assustada.

Levei ela pra minha casa pra ela se

acalmar e aí é que ela me contou o

que se assussedeu. Eu não conheço

a Dona Matilde, e ela também não é

minha amiga, e também nem sei

quem é esse tal de Duda. Vivo no

meio do mato Doutô e não quero

saber dessas prezepada da cidade.

Vim aqui porque o Sinhô me pediu

para falar da Dona Matilde, e ela me

pareceu tá falando a verdade.

Depoimento transcrito por MB.

Page 13: Sobre o cabra manoel

11

parecia uma agonia, um respiro pesado, nesse

instante senti uma palpitação no peito, uma

gastura, olhe só Doutô me arrepio toda só de

lembrar, então resolvi segui em frente rumo à

fonte, com mais velocidade no andar, meu passo já

não era tão leve como fora a princípio, e até o som

do pisar nas folhas secas me intrigavam de alguma

forma que não sei explicar com as palavras, sei que

sentia... fui com o coração na boca, a mão tremia

toda e por hora me dava uns arrepios que

começava nas cadeiras e subia até o meu cangote,

mas fui, continuei, quando avistei a fonte, dei um

passo para tráz, parei, respirei fundo e firmei a

vista, tão logo apercebi um cabra e uma rapariga,

não sei dizer onde começava um e terminava o

outro, parecia cobra comendo cobra, nunca meus

olhos viram coisa dessa natureza, fiquei parada,

igual estáutua na surdina, há observar, não tive

dúvida eles eram amantes, e celebravam o amor, ao

menos naquele instante eles se amavam, só podiam

se amar! Eu Doutô por um momento me deixei

levar pela curiosidade e fiquei há assuntar, aquela

visão dos dois me deixou saudosa de minha

mocidade... tempo que não volta mais... Em meio

aos meus devaneios algo estranho aconteceu, de

um tudo os dois se apartaram e estavam como

vieram ao mundo, mas logo se recompuseram, mas

não tardou e voltaram a se arretar, tão logo se

enroscaram novamente e arrancaram suas roupas,

ele a dela e ela a dele, pareciam outra vez com as

cobras. E eu lá quase sem fôlego, paradinha,

pensando, há quanto tempo não me enrosco num

cabra? mas isso é outra estória! De repente a

rapariga começou a gritar, mas não era grito de

quem tá desesperada, era grito de outras cousas,

sabe como é né Doutô, era a influência da lua cheia

e da mãe noturna, que tava por aquelas bandas. A

rapariga gritava de praser, de praser Doutô!

Depoimento de Mariazinha

Boa tarde Doutô, me falaram

que o Sinhô queria falar com eu?

E também já sei que veio um

bando de gente falar mal da

minha mãezinha pró Sinhô.

Deixa eu falar Doutô tem muita

gente ruim aqui. Falam da

minha mãe por conta de eu ter

nascido sem pai. E se o Sinhô

quer saber, eu sou muito é feliz

de não ter conhecido aquele que

se diz homem e deixou minha

mãezinha sozinha com eu na

barriga.

E além de tudo tem essa cousa

de chamarem minha mãe de

macumbeira. Mainha é muito da

católica, faz suas rezas todas as

noites pra Senhora Sant´Ana. Ela

tem a ligação dela com a Mãe

Noturna, que só trouxe o bem

pra gente. Quem fala da Mãe

Noturna é porque não tem

conhecimento daquilo que tá

falando. Minha mãe só faz o

bem pras pessoas, posso inté te

apresentar o povo que ela curou

por conta dos conhecimentos

que ela herdou da vozinha dela.

Eu inté falei com ela pra nã se

meter nesse confusão da tal de

Lindoalva. Mas ela insistiu que a

pobrezinha não merecia passar

por toda essa desgrameira. Pra

tu ver Doutô como minha

mãezinha se apreocupa com os

outros.

Depoimento transcrito por MB.

Page 14: Sobre o cabra manoel

12

Só que o inesperado aconteceu, e da imensidão da

noite surgiu um par de vultos, eram dois cabras,

que foram ao encontro do casal que se enroscava,

mas foram de supetão chegaram gritando,

injuriados, um deles que vim a saber ser o tal do

Nocreto Correa, pegou o cabra que estava no

enrosco, e que vim saber se tratar de Manuel Duda,

pelo gogo e o arrastou dali, e o outro cabra, que

soube ser o Norberto Barbosa, chegou a esbofetear

a cara da rapariga, coitadinha, que soube se tratar

de D. Liodalva, ela pos-se a chorar e a gritar muito,

seus gritos e choros ecoavam pela mata, não se

ouvia nesse momento um piar de passarinho,

apenas a lamentação da rapariga, eu bem que

queria acudir, mas sei que fui covarde, já tive minha

má sorte na vida e tenho minha menina pra criar, só

sou eu e ela, fiquei com medo, aqueles cabras

pareciam endemoniados, eu sou tão miúda, não ia

dá conta deles, me refugiei na mata e chamei pela

minha mãe noturna, chorei calada até o

amanhecer, e só depois do raiar do dia retornei há

minha casa, porém agora eu vim cá Doutô pra falar

a verdade, sei que contaram muita mentira, sei que

já passou um mês do acontecido, sei que D.

Liodalva tá passando por maus bocados e que é

uma tristeza só, sei que é tarde, sei que Manoel

Duda já não é mais macho, pobre diabo, mas sei

também que era amor o que eu presenciei e que

quando a noite grita não tem salvação, agora é

entregar a sorte pra mãe noturna pois é ela quem

cuida da vida de quem a vida não quer cuidar*.

*Depoimento de Matilde Maria de Jesus, 35

anos, mãe solteira e curandeira. Registrado pelo

escrivão Sebastião Gumercino em 25 de novembro

de 1833 na Comarca da Vila de Porto de Sergipe.

Depoimento transcrito por Flor do Cerrado

Depoimento de Seu Leopoldo

Aquela Matilde é um bicho

estranho, vive imbricada dentro

do mato pra mó de fazer

aquelas coisas dela com a tal da

Mão Noturna. Eu não acredito

nessas coisas, mas o povo fala. E

pra não arriscar não me meto

com essas coisas do outro lado.

Dizem também que ela cura as

doenças do povo que procura

por ela, mas isso aí eu também

não acredito muito não. Pra mim

isso é cousa que o povo fala e só.

Tem gente que acredita em cada

cousa né Doutô.

Na verdade verdadeira Doutô

eu acho que aquela Matilde é

meio desmiolada, não dá pra

acreditar muito no que ela fala

não. Coitada, é boa gente. Mas

não conhece muito das cousa do

mundo não. Provavelmente ela

imaginou que viu o pobre do

Manuel Duda se enroscando no

meio do mato com a Dona

Lindoalva. Eu sou muito amigo

dos dois e sei que eles nunca

fariam uma cousa dessas. Isso

tudo foi uma grande confusão

que acabou na capação do

compadre Duda, fato que não

pode ser revertido, mas o que é

se pode fazer agora né Doutô.

Depoimento transcrito por MB.

Page 15: Sobre o cabra manoel

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Horla e eu

E o mundo jaz no maligno. E o maligno escureceu a

mente do cabra, do cabra Manoel, Manoel Duda.

Nocreto Correia e Norberto Barbosa são os que se

dizem testemunhas do fato. Esquecem-se eles do

ante-fato. A culpa é do outro! O outro é quem

engendrou a situação. Ele é quem... Vamos nos

ater, primeiramente, aos ante-fatos: Fala-se da

conduta promíscua do cabra, mas não se comenta

como foi sua vida - vida? semi-vida - e o que o levou

a “cometer” o delito. Não julgueis para que não

serdes julgado – disse um famoso judeu.

Rejeitado por quase toda família, o sujeito também

não foi lá muito do bem aceito com as moiçolas de

sua cidade. Também pudera: seus traços

rebuscados e seus gestos rudes não lhe conferiam o

título de gentleman que hoje se exige (culpem as

revistas de moda!). Longe de tudo e todos,

resignou-se na labuta. E para quem não sabe ou

ainda não se deu conta, a labuta é, por vezes, a arte

do não pensar. E continuando a não pensar foi

levando sua vidinha. Até que surge a desgraça. O

engenho em que trabalhava faliu. Assim como o

cabra. E como vovó já dizia: “cabeça vazia, meu

neto, é oficina do Diabo!”. E o vazio apareceu...

Vazio da cabeça, do estômago.

Além de desempregado, o autor desse causo quase

esquece de falar que o acusado era órfão de pai.

Com seu mísero ganha-pão (que, na verdade, era

um ganha-nada), sustentava a mãe e os dois irmãos

mais novos.

Mágoas precisavam ser despejadas. Rancores

também. E foi no bar do Equilibrista que se tornou

bêbado. E lá, além de ébrio, tornou-se amigo de

uma (e somente uma) pessoa:

Depoimento de Viriato

O tal do Horla? Conheço sim.

Não sei de onde o cabra vem

tampouco se tem família, ou

lugar donde morar, eu sei é que

vivia lá no Bar do Equilibrista.

Bebia feito ninguém, não sei

como o rim daquele cabra

aguentava tanta cachaça. Cabra

dos bom aquele, além da

garrafa na mão tava sempre

com uma moçoila à acompanhá-

lo.

Oh Doutô, o Sinhô não fala isso

pra minha mulher mas esse tal

de Horla é meu orgulho. Era

sempre uma cabritiha mais linda

do que a outra que tava do lado

dele. Cabra dos bons Doutô,

cabra dos bons.

Se eu frequentava o Bar do

Equilibrista? Não Sinhô Doutô,

cruz e credo se minha mulher

descobre que eu já entrei

naquele recinto. Eu só passava

pela frente daquele antro

quando tava voltando do

trabalho pra casa. Mas o povo

fala né Doutô, e é assim que a

gente fica sabendo das coisas.

Já o tal do Manoel Duda, nunca

dei muita trela pra ele não. Sei

que ele vivia colado na barra das

calças do Horla, parece que era

uma espécie de aprendiz. Um

mal aprendiz pelo que andam

dizendo: quem nem macho o

pobre é mais.

Depoimento transcrito por MB.

Page 16: Sobre o cabra manoel

14

Horla. Nos momentos difícies de sua vida,

conversas de botequim rolavam entre essa dupla.

Horla, o mesmo Horla que Manoel acreditava ser o

sobrinho de Xico Bento, ex-amigo de Nocreto e

Norberto. Foi através de Horla que o cabra Manoel

conheceu a vida. As francesinhas, as ruivinhas.

Todas foram apresentadas - através do inseparável

amigo Horla. Maria Madalena, mulher de Xico

Bento, fora também apresentada ao Manoel por

Horla. Pelo menos ele acreditava nisso.

A cobiça. Pecado capital que, aos olhos do cabra

Manoel, nunca tinha sido o seu favorito. Mas

começou a repensar no caso – e muito bem

repensado. Isso porque o sujeito começou a se

engraçar com Mª e seu todo: olhos de ressaca, jeito

casual. Não era bela, todavia o atraía – e bem

quisera possuí-la. Não como posse, nem

propriedade. Possuir a sua atenção. Um minuto,

apenas isso.

Noutro dia desses o Cabra Manoel se aprochegou a

Maria. Não tinha nada a perder (mas o que teria ele

a ganhar?) e, assim, foi. Ganhou o respeito dela e

comentários, entre os dois, surgiram. Certo

momento comentou o nome de Horla com a

mulher do sujeito Xico Bento. Não, dizia ela, eu não

conheço o raparigo; como não, Mª? Ele é quem nos

apresentou, disse Manoel. E agora, José? Nessas

horas, pensou o “acusado”, nem o José pode me

ajudar. Nem José, nem Nocreto, tampouco

Norberto.

Não, Horla não poderia ser um sonho. Maria talvez

fosse. Manoel também. A existência deles talvez

não fosse real. Talvez o real esteja em crise. Crise

de identidade – e por que não? Invenções podem

também não ser fictícias. Depende. A combinar...

Historieta narrada por L!

Depoimento de Euclides

Horla? Isso é história da

carochina Doutô. Não acredito

que o Sinhô, sendo assim tão

inteligente caiu nesse história

pra boi dormir.

O que aconteceu é que o tal do

Manoel Duda, esse que perdeu

as bolas, depois do acontecido

deu para beber. Também pudera

eu também iria passar o dia na

companhia da querida

amarguinha se eu tivesse na

situação desse vivente. Não tem

um dia que o Duda não passe no

Bar do Equilibrista pra esquecer

as mágoas dessa vida.

E o Sinhô sabe né Doutô, que o

vivente quando bebe demais não

sabe mais o que é verdade o que

não é. Tem sujeito que depois de

um litro de Velho Barreiro acha

que é Cristo e que tá na Terra

pra purgar os pecados da

humanidade, pobre alma, não

purga nem os dele. O Manuel

Duda inventou o Horla, e eu já

sei de um bando de bêbado que

já comprou essa história e anda

dizendo por aí que o Horla existe

mesmo e até que o conhece.

Cousa de bêbado né Doutô, o

Sinhô sabe.

Depoimento transcrito por MB.

Page 17: Sobre o cabra manoel

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Travessa em Três Tempos

Aquela “rua de mão única” do andarilho de

Benjamin dobrou a esquina e caiu na travessa Onde

a possibilidade da experiência se alargou “no zúo de

um minuto mito” pelo esbravejar de Riobaldo nos

chapadões. Então a visão do andarilho clareou

todas as palavras perdidas na rede do pescador. E

toda linguagem, deu conta de nomear tudo, como

Funes o memorioso não suportou e a narrativa

tornou-se o único sentido da existência.

Sentido que se confunde no tempo e, por vezes,

foge dele. Futuro, presente, pretérito; perfeito,

imperfeito, mais-que-perfeito: verdade fora do

tempo!

Insensatez perene, numa periodicidade recorrente

de revistas, vistas e revistas, visitadas e revisitadas.

Continuidade em um fluxo, como uma constante

que perpassa conhecimento, que divide

experiências que simbolicamente narra diferentes

caminhos, diferentes travessas, outros planos,

prismas, histórias em perspectivas.

Outros homens, mulheres, crianças; outras pessoas,

animais, trecos; outros malandros escondidos,

sujeitados a ter a cabeça nas nuvens e os pés no

chão, como outros tantos, como a gente, como o

clareamento na visão do andarilho, enrolando-se no

fio da memória e na linha do tempo.

Três aprendizes, um bocado de palavras sem

sentido, agregando outros aprendizes com diversos

sentidos e outras palavras. O encontro se dá na

travessa, regados à bebida amarela que traz

memórias, micros, macros, estas, outras, aquelas,

de antes, de agora, de depois; juntam-se, separam-

se.

"Chegou a conseguir palavras

belíssimas: palavras de ninguém

conhecidas, sons tropicais, tons

frágeis, significados equívocos,

de assonâncias inesperadas, de

ritmos únicos; palavras crípticas

e hermenêuticas, palavras

abertas como a claridade da

manhã, fonotemas noturnos,

sintagmas luminosos, verbos do

amanhecer, adjetivos marinhos,

superlativos desesperados,

expressões terríveis e vogais

transparentes"

Rafael Pérez Estrada, El ladrón

de atardeceres

Page 18: Sobre o cabra manoel

16

Assim vaga o andarilho à perder-se na travessa,

aquela que mesmo fugindo do pensar esquemático

da casa do andarilho se mantêm plena de pensar.

Eis o mistério da “rua de mão única” desvendado

pelo fluxo do narrar, visto da perspectiva dos olhos

do flaneur, tão bem descrito por Baudelaire, visto

de tantas outras perspectivas. Reside aí o mistério,

do olhar, do pensar, do narrar. Abstrai-se da

necessidade empírica do raciocinar, e se joga na via

das palavras. Assim versões, diferenças, contrastes,

se unem no propósito de desconstruir as teias da

verdade única, da história única; tecidas à custa de

séculos de visões unilaterais.

Nós aprendizes, rumamos até a travessa e lá

despojamos nossos métodos, meticulosamente

apreendidos. Livramo-nos desse peso, sem

esquecer que somente aquilo que é caro pesa, para

que possamos clarear o olhar, perceber novos

olhares. Desfrutar dessa capacidade de idear do

historiador, e se não do historiador, pelo menos do

andarilho de Benjamim.

O que sois vós além de andarilhos vagando sem

destino, até deparar-se com a travessa? Aquela

entranhada na miscelânea de tempos: futuro,

presente, pretérito. Aquela desvinculada da

supremacia da verdade. Aquela repleta de pensar.

Faço à vos um pedido, quando o mistério se

apresentar: perceba-o.

Travessa em Três Tempos

recomenda:

http://asaladosmedos.blogspot.com

http://hellenrios.blogspot.com

http://luccasneves.blogspot.com

http://letrasnoexilio.blogspot.com

http:/travessaemtrestempos.blogspot.com

Page 19: Sobre o cabra manoel

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