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SOBRE O MAL: da radicalidade à banalidade RESUMO Maria Olilia Serra' Cacilda Bonfim e Silva" Abordagem teórico-conceitual sobre a questão do mal em dois momentos específicos da história do pensamento, na modernidade, com lmmanuel Kant e na contemporaneidade com Hannah Arendt. Mostra-se o momento em que o problema do mal é deslocado das esferas da religião e da Teodicéia para a moral, propondo a retomada de sua reflexão no âmbito político. Infere-se ainda, os conceitos de Mal Radical e Banalidade do Mal mediante seus significados para a História. Palavras-Chave: Kant; Hannah Arendt; mal, Mal Radical; Banalidade do Mal; moral; política. ABSTRACT Theoric-conceptual approach about the question of evil in two specific moments of the thinking history, in the modernness with lmmanuel Kant and in the contemporaneousness with Hannah Arendt. The moment in which the evil problem is dislocated from Theodicea and religion spheres to the moral, is showed, suggesting the retaking of the reflection about the evil in the bounds of politics. Inferring still, the concepts of Radical Evil and Banality of Evil through it's meanings to the History, Key-word: Kant; Hannah Arendt; evil; Radical Evil; Banality ofEvil; moral; politics. 1 INTRODUÇÃO Desde que o homem toma cons- ciência de sua existência como ser-no- mundo, direciona suas interrogações para este, para si próprio e para Deus. Entretanto, é historicamente admitido que dessas interrogações, a que se re- fere ao próprio homem é a mais crucial, posto que engendra a significação para que as outras indagações possam ser formuladas. Perguntar a respeito do homem adquire toda sua relevância já entre os gregos, solo inaugural da Filosofia, prin- cipalmente no chamado período socrático. A questão que perpassa toda a filosofia de Sócrates: "o que é o ho- mem?", pode ser evidenciada em uma das passagens do diálogo Fedro, de • Professora Assistente do Departamento de Filosofia da UFMA. ** AJuna do Curso de Filosofia da UFMA. 106 Cad. Pesq., São Luís, V. 12, n. 1/2, p. 106-115, jan.Zdez. 2001.

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SOBRE O MAL: da radicalidade à banalidade

RESUMO

Maria Olilia Serra'Cacilda Bonfim e Silva"

Abordagem teórico-conceitual sobre a questão do mal em doismomentos específicos da história do pensamento, na modernidade,com lmmanuel Kant e na contemporaneidade com Hannah Arendt.Mostra-se o momento em que o problema do mal é deslocado dasesferas da religião e da Teodicéia para a moral, propondo a retomadade sua reflexão no âmbito político. Infere-se ainda, os conceitos deMal Radical e Banalidade do Mal mediante seus significados para aHistória.

Palavras-Chave: Kant; Hannah Arendt; mal, Mal Radical; Banalidadedo Mal; moral; política.

ABSTRACT

Theoric-conceptual approach about the question of evil in two specificmoments of the thinking history, in the modernness with lmmanuelKant and in the contemporaneousness with Hannah Arendt. Themoment in which the evil problem is dislocated from Theodicea andreligion spheres to the moral, is showed, suggesting the retaking ofthe reflection about the evil in the bounds of politics. Inferring still,the concepts of Radical Evil and Banality of Evil through it's meaningsto the History,

Key-word: Kant; Hannah Arendt; evil; Radical Evil; Banality ofEvil;moral; politics.

1 INTRODUÇÃO

Desde que o homem toma cons-ciência de sua existência como ser-no-mundo, direciona suas interrogaçõespara este, para si próprio e para Deus.Entretanto, é historicamente admitidoque dessas interrogações, a que se re-fere ao próprio homem é a mais crucial,posto que engendra a significação para

que as outras indagações possam serformuladas.

Perguntar a respeito do homemadquire toda sua relevância já entre osgregos, solo inaugural da Filosofia, prin-cipalmente no chamado períodosocrático. A questão que perpassa todaa filosofia de Sócrates: "o que é o ho-mem?", pode ser evidenciada em umadas passagens do diálogo Fedro, de

• Professora Assistente do Departamento de Filosofia da UFMA.** AJuna do Curso de Filosofia da UFMA.

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Platão. Passeando com seu mestreSócrates, Fedro ultrapassa as portas deAtenas. O mestre fica maravilhado coma paisagem e o discípulo pergunta:"nunca cruzais a fronteira?" Sócratesresponde:

É verdade, meu bom amigo, eespero que me desculpes quan-do ouvires o motivo, isto é, quesou um amante do conhecimen-to e os homens que habitam nacidade são meus mestres, e nãoárvores nem o campo.(CASSIRER, 1984, p.20).

Desde então, a preocupaçãodemarcada por Sócrates adquire forçae atualidade até o tempo presente insti-gando os autores das mais diversas áre-as a indagarem sobre o homem.Conhecer sua natureza significa, defato, refletir sobre a existência humanaem todas as suas dimensões, seja doponto de vista social, político, religioso,estético ou ético. Contudo, uma dasquestões mais desafiadoras para osestudiosos conceme à problemática domal, com toda a sua enigmaticidade, oseu "fundo tenebroso, nunca comple-tamente desrnistificado." (RICOEUR,1988, p. 26).

O questionamento sobre o malapresenta-se estruturado em diversosdiscursos nos níveis rnítico, filosófico eteológico. Mas todos têm como fio con-dutor as seguintes perguntas: O que éo mal? De onde vem o mal? Por quefazemos o mal?

O mal é o maior dos desafios para

a filosofia e a teologia, pois envolve oquestionamento das concepções deDeus vigentes na cultura ocidental, asaber: como um Ser onipotente e ab-solutamente Bom. É um desafio por-que nos coloca diante de umacontradição: a existência de Deus e aexistência do mal - sofrimento, dor,morte. Sendo assim, o mal é um enig-ma a ser decifrado nos planos do pen-samento, do sentimento e da ação, estaúltima, entendida no sentido moral epolítico.

Após essas considerações histó-ricas acerca da questão do mal, cum-pre ressaltar que nossa abordagem temem vista apresentar o conceito de malem dois momentos específicos da his-tória do pensamento filosófico e políti-co: na modernidade, com lmmanuelKant (1724-1804) e sua doutrina do MalRadical', e na contemporaneidade, comHannah Arendt (1906-1975) e sua re-flexão sobre a Banalidade do Mal nocontexto político.

O filósofo Immanuel Kant, em suadoutrina do Mal Radical recorre à nar-rativa bíblica do pecado original e utili-za-a como ilustração simbólica de algoque radica na própria natureza huma-na: uma propensão inextirpável para omal. Com a radicação do mal na natu-reza humana, o Autor coloca a origemdeste, na esfera inteligível do homem,na esfera da liberdade, ou seja, damoralidade.

Por essa via apontada por Kanto mal só pode emergir de uma decisão

I Para a formulação do Mal Radical, Kant recorre a duas tradições: a história das religiões e a filosófica. Naprimeira, encontra uma cnncepção pessimista do mundo pois este começa com a vida no Paraíso,portanto, com o Bem, estado que logo desaparece. a segunda, identifica a concepção otimista na qualo mundo progride do mal para o melhor, de forma in.interrupta, mesmo que não seja perceptível.

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nascida da liberdade em tomar comomáxima do livre-arbítrio, um motivocontrário à lei moraF. Em que peseportanto, o apelo à lei moral para o cum-primento do dever. O homem, por cau-sa do livre-arbítrio, pode escolher entreo bem e o mal. Aqui, o mal nasce dascondições do exercício da liberdadesendo responsabilidade do homem enão mais de Deus. Desse modo, Kantabala a base do discurso ontológico emque se edifica a Teodicéia', colocando-a na esfera da "Ilusão Transcendental"tal como se apresenta na Crítica daRazão Pura.

Para a pensadora contemporâneaHannah Arendt, a tradição filosóficanão pôde conceber um Mal Radicalsendo Kant, o único filósofo que sus-peitou de sua existência, embora, o ra-cionalizasse no conceito de "vontadepervertida", que poderia ser explicadapor motivos compreensíveis.

O verdadeiro mal radical, segun-do a Autora, surgiu em um sistema noqual os homens tomaram-se supérflu-os, ou seja, foram tratados como meiose não como fins em si mesmos. O sis-tema que transformou os homens emseres supérfluos é o totalitário, mais es-pecificamente o Estado Totalitário,cujos pilares são a ideologia e o terror.

A legitimidade totalitária, dizHannah Arendt, desafiando a legalida-de e pretendendo estabelecer direta-

mente o reino da justiça na terra, exe-cuta a lei da História ou da naturezasem convertê-Ia em critérios de certoe errado que norteiam a vida individu-al. Assim, em um regime totalitário tudoé possível, tudo é permitido; os homenstornam-se supérfluos, e conseqüente-mente os motivos também. Porém,quando os motivos se tomam supérflu-os, o mal é banal.

2 O MAL RADICAL: Kant

Kant (1974, p.224) afirma em suafilosofia moral e política que o homemé um valor absoluto, pois é fim e nãomeio - para ele todo ser racional existecomo fim em si mesmo e não comomeio para o uso arbitrário das vonta-des. Assim, só o homem possui valorabsoluto e o imperativo prático é: "agede tal maneira que uses a humanidade,tanto na tua pessoa como na pessoa dequalquer outro, sempre e simultanea-mente como fim e nunca simplesmentecomo meio" -, posto que como ser ra-cional e livre só obedece às leis que elepróprio se estabelece e nisto consiste asua dignidade.

Ora, se o homem é fim e nãomeio, deveria haver uma convivênciaharmoniosa e de respeito entre todos, oque não acontece na experiência. Po-rém, Kant detecta a seguinte queixa:que o mundo vai de mal a pior. É como

2 A lei moral é um princípio objetivo, válido pra todo ser racional, princípio segundo o qual ele deve agir;por isso a lei caracteriza-se pela universalidade. A fórmula fundamental do imperativo categórico, prin-cípio formal de todos os deveres, do qual se devem deduzir as máximas que regulam a ação humana é: "Agede tal modo que a máxima vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como principio de umalegislação universal." (KANT, 1994, pA2).

3 Expressão criada por Leibniz em sua obra: Estado de Teodicéia sobre a Bondade de Deus, a Liberdadedo Homem e a Origem do Mal (1710) para demonstrar que existe justiça divina na solução dos problemasdo mal e da liberdade humana.

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se o mundo começasse pelo Bem, mo-mento que é associado ao próprio Pa-raíso, lugar em que o homem vivia emcomunidade com seres divinos; e ago-ra, encontra-se em um processo de de-cadência acelerada para o mal,aproximando-se da ruína final.

Contrária a essa opinião, há os queacreditam que o mundo caminha, mes-mo imperceptivelmente, do mal para omelhor, de acordo com uma ordem ins-crita na própria natureza humana. Maspara Kant, essa crença não é tirada daexperiência, pois o moralmente bom oumau é um pressuposto, haja vista que afala da história depõe contra a nature-za humana. O que nos mostra a expe-riência é que os homens vivem emconstante antagonismo, deixando-selevar pelas inclinações, criando um es-tado em que reinam o capricho, a arbi-trariedade, enfim, um estado análogoao hobbesiano: de guerra de todos con-ta todos.

Tal condição evidencia uma pro-pensão perversa do homem, o que levaKant a formular a seguinte proposição:o homem é mau por natureza.

O homem é mau, porque tendoconsciência da lei moral admite quepode afastar-se dela. Essa afirmaçãoé feita por Kant na doutrina do MalRadical, que nos diz que o homem en-quanto gênero, não enquanto indivíduoparticular, é mau por natureza.

Significa que isto vale para eleconsiderado em sua espécie;não que tal qualidade pudesseser deduzida de seu conceito daespécie (de um homem em geral)pois então seria necessária, masque, na medida que o conhece-

mos por experiência, não podeser julgado de outro modo ...(KANT, 1974, p. 376)

Esta afirmação contida em suaobra: A Religião nos Limites da Sim-ples Razão escandalizou os contem-porâneos do filósofo, pois foiconsiderada como uma afronta aospressupostos da Aufklãrung (Esclare-cimento), já que viam na doutrina domal a restauração do dogma do peca-do original, considerado um inimigo doprogresso indefinido da espécie huma-na. Tal exposição, só deixou de pasmaros pensadores, já em pleno século XX,com as experiências das duas grandesguerras. Tristes experiências, com osuporte da ciência, da técnica, enfim,da razão ensandecida, que evidencioua crítica de Kant à própria razão, poisembora esta seja a instância supremado homem, apresenta seus limites, pos-to ser finita.

Sendo assim, o tema do mal emer-ge na filosofia kantiana como doutrinado Mal Radical na qual evidenciam-seos limites do agir moral e a insuficiên-cia da razão que, posta perante um ou-tro que a envolve, se descobre elamesma incompreensível. No entanto, éesta condição que constitui o cumpri-mento do destino do próprio filosofar,pois, desde o princípio, a razão temcomo tarefa certificar-se dos seus li-mites.

Como a propensão para o mal estáenraizada na própria humanidade, umapergunta deve ser feita: como se podeprovar a realidade do Mal Radical?Segundo Kant, basta recorrer à expe-riência com seus exemplos gritantes,dispensando, assim, qualquer prova for-

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mal. Pode-se também, tomar em con-sideração os povos em suas relaçõesexternas, pois há entre eles um gros-seiro estado de natureza ou constantedisposição de guerra que não seintenciona abandonar. Essa condiçãocomparada com os princípios das gran-des sociedades chamadas Estados, sócontradiz:

o quiliasmo filosófico, que es-pera um estado de paz perpétuafundado numa liga de povoscomo república mundial, é uni-versalmente moti vo de riso,como fanatismo, bem como oteológico, que espera uma me-lhora moral de todo gênerohumano. (KANT, 1974, p. 377).

Considera-se ainda, que para Kanta sensibilidade não pode fundamentaro mal moral, porque ela tomaria o ho-mem moralmente bestial. Mas, a razãoque libera da lei moral, o que seria umarazão ao mesmo tempo maligna, fariado sujeito um ser diabólico. Desse pon-to de vista, resta observar que há limi-tes para o mal radical. Isto porque ohomem é mal, porque existe maldadena natureza humana, mas não é malda-de pura e simplesmente, isto é, uma in-tenção de admitir o mal enquanto mal.A maldade é uma perversão radical docoração, que também é denominado umcoração mau. Este, provém da fragili-dade da natureza humana, unida à im-pureza, que consiste em não separar,segundo uma norma moral, os motivosque adota.

Assim, se o mal reside em algumlugar, só pode ser na ação do homem,na medida em que se dá prioridade aosmotivos da inclinação, sob o nome de

felicidade, situando o desejo acima dodever. Nesse sentido, o mal consistenuma subversão das máximas da ação.

Este mal é radical porque corrom-pe o fundamento de todas asmáximas; ao mesmo tempo tam-bém, como propensão naturalnão pode ser extirpado por for-ças humanas; porque nãopoderia ter lugar senão por in-termédio de máximas boas, o quenão se pode produzir quando ofundamento subjetivo supremode todas as máximas é pressu-posto como corrompido; damesma forma, é necessário po-der dominá-Ia porque seencontra no homem ente que agelivremente. (KANT, 1974,p. 379).

Se a reflexão de Kant sobre o MalRadical pareceu estranha aos filósofosde sua época, considerando o contextolluminista, na contemporaneidade, ser-viu de suporte para vários pensadores,dentre eles, Hannah Arendt.

3 A BANALIDADE DO MAL:Hannah Arendt

Hannah Arendt, pensadora judiaalemã que vivenciou as duas grandesguerras da contemporaneidade, princi-palmente a Segunda, dedicou todo ovigor de suas reflexões à condição hu-mana. Não é à toa que uma de suasobras mais brilhantes e de cunho es-sencialmente humanista intitula-se ACondição Humana.

Nessa obra a Autora examina achamada Vita Activa através das ativi-dades fundamentais que a integram:labor, trabalho e ação. Tais atividadestêm relação com as condições mais

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gerais da existência humana: a natali-dade e a mortalidade.

Labor, trabalho e ação têmraízes na natalidade, na medida emque esta tem como tarefa produzir epreservar o mundo para o constanteinfluxo de recém-chegados que vêmna qualidade de estranhos. Porém, aação é a atividade mais intimamenteligada com a condição humana da na-talidade. Tal ligação explicita-se por-que o novo começo inerente a cadanascimento pode fazer-se sentir nomundo somente porque o recém-che-gado possui a capacidade de iniciaralgo novo, isto é, de agir. Nesse senti-do, todas as atividades humanas pos-suem um elemento de ação e,portanto, de natalidade. Desse modo,se a ação é a atividade política porexcelência, a Natalidade, e não aMortalidade, pode construir a catego-ria central do pensamento político.

Com a reflexão sobre a condiçãohumana, que constitui a sua antropolo-gia filosófica, Hannah Arendt tentacompreender os problemas suscitadoscom o Totalitarismo. Este leva ao iso-lamento, que, por sua vez, destrói a ca-pacidade política, a faculdade de agir.O isolamento tem como característicaa impotência, haja vista que os homensisolados são impotentes por definição,o que se traduz na incapacidade de agir.Logo, como nos diz Arendt (1989,p.527):

o isolamento é aquele impasseno qual os homens se vêemquando a esfera política de suasvidas, onde agem em conjuntona realização de um interessecomum, é destruída.

Essa compreensão do Totalitaris-mo é identificada por Hannah Arendtnos regimes nazista e stalinista, eviden-ciando que seus campos de concentra-ção serviam de laboratórios parademonstrar a crença fundamental deque tudo é possível, do ponto de vistados detentores do poder. A conseqü-ência foi o extermínio de milhares depessoas. Aqui começa o verdadeirohorror, porque retrata a destruição sis-temática de corpos humanos, calcula-da para aniquilar a dignidade humana.

Os campos de concentração nãosó reforçam a crença totalitária de quetudo é possível, mas também, de quetudo pode ser destruído. Os crimes ab-surdos das sociedades totalitárias fo-gem à nossa compreensão eultrapassam as explicações fundamen-tadas em motivos malignos, egoístas, deganância, cobiça e ressentimento, bemcomo do desejo de poder e da covar-dia. É desse modo que a sociedade con-temporânea se defronta com umaespécie de "Mal Radical". E Kant, se-gundo a Autora, foi o único filósofo quesuspeitou da existência desse mal.

É digno de nota que a atualidadeda reflexão acerca do mal em sua rela-ção com o Totalitarismo pode ser com-provada com a seguinte citação deArendt (1989, p.511):

As soluções totalitárias podemmuito bem sobreviversob a for-ma de fortes tentações, quesurgirão sempre que pareça pos-sível aliviar a miséria política,social ou econômica de ummodo digno do homem.

Em que consiste a Banalidade doMal?

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Numa conferência pronunciadaem 30 de outubro de 1970, na NewSchool for Social Research,intitulada: "Pensamento e Considera-ções Morais", Arendt (1993, p.145)registra que:

Há alguns anos, em um relatosobreojulgamentodeEichmannem Jerusalém mencionei a 'ba-nalidade do mal'[ ...]. Não quis,referir-me a teoria ou doutrinade qualquer espécie, mas antesa algo bastante factual, o fenô-meno dos atos maus, cometidosem proporções gigantescas -atos cuja raiz não iremos encon-trar em uma especial maldade,patologia ou convicção ideoló-gica do agente; suapersonalidade destacava-seunicamente por sua extraordi-nária superficialidade.

A formulação sobre o problemada banalidade do mal tem seu lugar naobra: Eichmann em Jerusalém, naqual Hannah Arendt narra o julgamen-to do carrasco Adolf Eichmann, acu-sado de participar do extermínio demilhões de judeus durante o regime na-zista. O foco do relato é, portanto, umhomem de carne e osso, com uma his-tória individual, uma pessoa como ou-tra qualquer. Entretanto, era tambémum burocrata do regime nazista ou maisespecificamente, um instrumento dedestruição de milhares de pessoas. Oque Arendt ressalta portanto, é queEichmann era um homem comum, semgrandes motivações ideológicas eengajamento político, apenas um ho-mem banal, ou seja, nem um monstro,nem a encamação do demônio. A úni-

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ca característica que podia ser capta-da em seu comportamento era uma"curiosa e bastante autêntica inca-pacidade de pensar". (ARENDT,1993, p.145).

Essa ausência de pensamentoatraiu o interesse de Hannah Arendtpara o desenvolvimento de suas refle-xões acerca do mal suscitando as se-guintes indagações:

Será que fazer o mal, e não so-mente os males da omissão,mastambémos malesda ação, épos-sível na ausência não só de'motivos torpes', mas de abso-lutamente qualquer motivo,qualquer estímulo especial aointeresse ou à vontade? Seráque a maldade, como quer quedefinamos esse 'estar determi-nado a ser um vilão" não é umacondição necessária para se fa-zer o mal? Será que nossacapacidade de julgar, de distin-guir o certo do errado, o belo dofeio, depende da nossa capaci-dade de pensar? Serãocoincidentes a incapacidade depensar e um fracasso desastro-so daquilo a que normalmentechamamos de consciência domal? (ARENDT,1993,p.l46).

Durante o julgamento deEichmann, Hannah Arendt assinala queficou tão aturdida com a superficialida-de do agente, que era impossívelretraçar o mal incontestável dos seusatos, em níveis mais profundos. O queele fez, não foi algo de extraordinário enem que pertença ao cotidiano, e noentanto seus atos foram hediondos. Eisa banalidade do mal, cuja condição foio vazio de pensamento, ou a falta da

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capacidade de julgar o que é certo ouerrado, bem ou mal. Sendo que, paraestabelecer essa conexão entre a Ba-nalidade do Mal e o vazio de pensa-mento, a Autora recorre à distinçãoentre Pensar e Conhecer, estabeleci dapor Kant na qual: o Pensar pertence aesfera da Razão, e o Conhecer a esfe-ra do intelecto. O pensamento semprelida com objetos ausentes, afastados dapercepção direta dos sentidos. Por isso,um objeto de pensamento é sempreuma representação. Nas palavras deArendt (1993, p.1SO):

Alguma coisa ou alguém que naverdade está ausente, presentesomente ao espírito, que pormeio da imaginação, conseguetorna-Ia presente na forma deuma imagem [...] quando estoupensando, desloco-me para forado mundo das aparências, mes-mo se meu pensamento lida comos objetos que foram original-mente dados pelos sentidos, enão com invisíveis, tais comoconceitos e idéias

Hannah Arendt chama atençãopara o fato de que geralmente apren-demos que o mal é algo demoníaco eque sua encarnação é Satã ou Lúcifer,cujo pecado é o orgulho, o querer igua-lar-se a Deus. É comum ainda se dizerque os homens maus agem por inveja,fraqueza, ódio ou cobiça, apontandoesta última, como raiz de todo mal. Po-rém, o que ela havia visto em Eichmannera apenas a banalidade, a irreflexão.

4 CONCLUSÃO

O tema sobre o mal sempre este-ve presente nos discursos literários, teo-

lógico e filosófico. Neste último, o malsempre foi considerado um desafio paraa nossa compreensão, um enigma a serdecifrado para que não sejamos devo-rados pela esfinge. Até o tempo pre-sente não sabemos dizer com certezao que é o mal, qual a sua origem, massabemos que, tal como o segredo daesfinge, o mal é da esfera do humano,da ética e da política, além de ser umtema polêmico, principalmente nummomento da História em que registra-se um recrudescimento da violência, oque evidencia a presença do mal. E poroutro lado um clamor pela paz, por umretomo à ética e por políticas econômi-cas que tenham o homem como valorabsoluto, isto é, como fim e não sim-plesmente como meio.

Tanto Hannah Arendt quantoKant não comungam o tratamento dadopelas doutrinas tradicionais à questãodo mal.

Para Immanuel Kant, o mal situa-se na própria natureza, mais especifi-camente em uma propensão, opondo-seassim, à negatividade do mal, presenteem outras especulações e afirmando deforma categórica a sua positividade.Afirmar a positividade do mal significapensá-Ia não como simples negação dobem; pois ele é a privatização positivado bem; no mal, surge a realidade posi-tiva do negativo.

Tal fato significa que o homem trazem si um primeiro fundamento, inson-dável para nós, de aceitação de máxi-mas más, ou seja, contrárias à lei moral.Essa aceitação não diz respeito a umhomem em particular, mas ao caráterda espécie, o que leva Kant a afirmarque o mal é inato.

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Leitora de Kant, Hannah Arendtencontrou no autor a diretriz para ana-lisar a questão do mal que apareceu noTotalitarismo. Porém, para a Autora, omal radical ultrapassa os limites do sig-nificado dado por Kant, pois trata-sede uma nova forma de violência, quevai além dos limites da própria solidari-edade e do pecado humano.

O mal não é Radical mas é Ba-nal, é extremo e não possui profundi-dade e nem dimensão demoníaca.Entretanto, o mal nunca é banal. Aousar esta expressão a Autora se refereà aparência do mal, a um fenômeno quese dá a aparecer. Isto significa que omal não pode ser banalizado em deter-minadas contingências históricas e,sendo assim, o mal cometido pelo ho-mem pode mostrar-se banal no Totali-tarismo. Tal fato explicita-se na medidaem que essas ideologias totalitárias nãovisam à transformação do mundo ex-terior ou à transformação revolucioná-ria da sociedade, mas sim àtransformação da própria natureza hu-mana. Para esse intento, destrói a es-fera da ação, do espaço público, o

espaço político por excelência.Para a Autora, Deus criou o ho-

mem livre porque este é o começo, en-tão, no nascimento de cada homemesse começo, a liberdade, é reafirma-da. O homem é um início e um inicia-dor e nesse caso, não é descartada apossibilidade de criar e desencadearformas degeneradas de ação.

Além de todas as questões queaqui foram abordadas fica ainda a pro-posta de reflexão de que para HannahArendt, Eichmman é o retrato do ho-mem contemporâneo, o homem damassa, prisioneiro das necessidades etransformado em animal laborans.Um homem comum como todos nós.No entanto, sem vontade, consciênciamoral, capacidade política e de pensa-mento, isto é, de julgamento, e por issomesmo, passível de cometer banalmen-te o mal.

Por fim, pode-se dizer que falarda Radicalidade e da Banalidade doMal, significa que a reflexão de Kantsobre o mal, no âmbito moral, possibili-tou a Hannah Arendt pensá-lo na esfe-ra da ação política.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. A Condição Huma-na. Tradução de Roberto Raposo. Riode Janeiro: Forense Universitária, 1987.338p.

__ o A Vida do Espírito. Tradução deAntônio Abranches, César Augusto R.de Almeida e Helena Martins. Rio de Ja-neiro: Relume Dumará, 1992. 392p.

. Eichmann em Jerusalém: umRetrato Sobre a Banalidade do Mal.Tradução de Sonia Orieta Heinrich. São

Paulo: Diagrama & Texto, 1983. 336p.

__ o Origens do Totalitarismo. Tra-dução de Roberto Raposo. São Paulo:Companhia das Letras, 1989. 562~.

__ o Pensamento e ConsideraçõesMorais. ln. A Dignidade da Política, Riode Janeiro: RelumeDumará, 1993. 195p.

CASSIRER, Ernest. Antropologia Fi-losófica. São Paulo: Mestre Jou, 1984.379p.

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