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SOCIALISMO E MATERIALISMO HISTÓRICO
Uma proposta para o século XXI
Benedito Silva Neto
Maio de 2020
2
Apresentação
Afinal, o que é socialismo? Qual é a sua diferença fundamental em relação ao capitalismo?
Por que o socialismo baseado no materialismo histórico não é uma utopia? Quais poderiam ser as
características e como poderia funcionar uma economia socialista? Neste pequeno livro procuramos
contribuir para a reflexão sobre estas questões. Nele discutimos uma proposta socialista que,
considerando as condições existentes neste início do século XXI, retome o projeto emancipatório
baseado no materialismo histórico proposto originalmente por Marx e Engels. Neste sentido,
consideramos que o principal objetivo de um projeto socialista é a superação da alienação à qual são
submetidos todos os seres humanos no sistema capitalista. Uma alienação que tem origem nas
relações de produção sobre as quais se baseia o capitalismo, que permitem que as suas classes
dominantes tenham um acesso privilegiado às riquezas geradas pelos trabalhadores e pela natureza.
Nestas relações, há um estranhamento dos trabalhadores em relação ao produto do seu próprio
trabalho, o qual eles atribuem ao capital. A superação das relações de produção capitalistas é,
portanto, fundamental para a superação de todas as alienações sofridas pelos seres humanos. É
somente por meio desse processo que os seres humanos podem se assumir conscientemente como
protagonistas da sua própria história e construir uma sociedade na qual a personalidade humana
possa plenamente se desenvolver. É por isto que, neste processo, abre-se a possibilidade de
emancipação a todos os grupos sociais oprimidos pelo capitalismo. Evidentemente, tal emancipação
não poderá ocorrer sem que as particularidades desses grupos sejam consideradas. Mas, dissociada
de um projeto que visa uma efetiva superação do capitalismo, grupos sociais oprimidos podem
apenas procurar encontrar um lugar, que sempre será precário e provisório, em um sistema
incontornavelmente opressor.
A superação das relações de produção capitalistas nos remete para a necessidade de, a partir
dos processos econômicos fundamentais presentes no próprio capitalismo, procurar alternativas que
permitam colocar a economia a serviço da sociedade e, com isto, libertá-la dos supostos
automatismos econômicos que asseguram aos capitalistas o seu controle. Por esta razão o conteúdo
deste livro em grande parte trata de questões econômicas, especialmente as relativas à planificação
3
socialista. Neste livro, porém, a planificação não é concebida apenas como um meio de
proporcionar eficiência e racionalidade aos processos econômicos, mas, sobretudo, como um
instrumento para uma radical democratização da sociedade.
4
Socialismo e materialismo histórico
Uma proposta para o século XXI
SumárioPrefácio.................................................................................................................................................5Introdução.............................................................................................................................................7Capítulo 1 - Socialismo e materialismo histórico...............................................................................11
O materialismo histórico................................................................................................................11O socialismo na perspectiva do materialismo histórico.................................................................16
Capítulo 2 - Trabalho e reprodução social no desenvolvimento do capitalismo................................19A prioridade ontológica do trabalho e da reprodução social na análise do desenvolvimento capitalista.......................................................................................................................................21A formação dos valores monetários n’O Capital...........................................................................23O valor agregado e as relações formais entre as determinações micro e macroeconômica dos preços.............................................................................................................................................28Exemplo numérico 1: a equalização das taxas de lucro em condições homogêneas de produção 34Exemplo numérico 2: a equalização das taxas de lucro em condições heterogêneas de produção, sem escassez de recursos naturais..................................................................................................41Exemplo numérico 3: a equalização das taxas de lucro em condições heterogêneas de produção ecom escassez de recursos naturais.................................................................................................44A taxa de lucro como critério de decisão no capitalismo..............................................................46Considerações metodológicas relativas à equalização da taxa de lucro n’O Capital....................48
Capítulo 3 - A planificação socialista.................................................................................................51Socialismo e democracia...............................................................................................................54Planificação e democracia.............................................................................................................59Sistema básico de planificação......................................................................................................62
Setor público.............................................................................................................................63Progresso técnico......................................................................................................................66Comércio exterior.....................................................................................................................69Diversidade e qualidade dos produtos.......................................................................................73
Investimentos e crescimento econômico.......................................................................................82A natureza dos investimentos....................................................................................................83Os investimentos na dinâmica da economia.............................................................................86Acumulação e crescimento econômico no socialismo..............................................................96
A viabilidade computacional da planificação socialista................................................................97Conclusão - Colocar o socialismo na ordem do dia.........................................................................102Referências bibliográficas................................................................................................................105Apêndice - Problemas primal e dual de modelos de programação e o significado dos preços........109
5
Prefácio
Deste socialismo burguês que, naturalmente, como cada uma das variedades de socialismo,alia uma parte dos operários e dos pequenos burgueses, se distingue o socialismo pequenoburguês propriamente dito, o socialismo por excelência. O capital expulsa esta classeprincipalmente enquanto credor, ela demanda instituições de crédito; ele a esmaga pelaconcorrência e ela demanda associações subvencionadas pelo Estado; ele a sobrecarrega pelaconcentração e ela demanda impostos progressivos, restrições à herança, o empreendimentopelo Estado de grandes trabalhos e outras medidas que entravam de viva força o crescimentodo capital. Como ela sonha em uma realização pacífica de seu socialismo (..) o processohistórico lhe parece naturalmente como a aplicação de sistemas que os pensadores sociaisconcebem ou conceberam, seja em companhia, seja como inventores isolados.1
Há atualmente uma considerável proliferação de propostas que tem como objetivo integrar
ao projeto socialista certas questões características do capitalismo contemporâneo. Por exemplo,
questões ecológicas, de gênero, de raça e de sexo, aliada às tradicionais reivindicações de ordem
econômica das classes populares, são discutidas de maneira um tanto confusa, sem, em geral, se
traduzir em um projeto social coerente, capaz de se colocar como uma efetiva alternativa ao
capitalismo. Tais propostas quase sempre tem como pressuposto que as experiências socialistas do
século XX que resultaram em sua reconversão ao capitalismo é uma demonstração da inviabilidade
do socialismo na forma como ele foi proposto por Marx e Engels. Assim, considerando como
esclarecidas as questões essenciais colocadas pelo marxismo, o debate concentra-se na
demonstração da importância das reivindicações específicas advogadas em sua proposta,
procurando a partir disto demonstrar a necessidade de “corrigir”, ou pelo menos, “completar” o
marxismo.
Neste livro é adotada uma perspectiva distinta. Nele discutimos uma concepção estritamente
materialista e histórica do socialismo. De acordo com esta concepção, o socialismo não é um ideal
que, eventualmente, se materializaria simplesmente a partir da construção de propostas mais ou
menos completas. Segundo o materialismo histórico, como seu próprio nome indica, o socialismo é
1 “De ce socialisme bourgeois qui, naturellement, comme chacune des variétés de socialisme, rallie une partie desouvriers et des petits bourgeois, se distingue le socialisme petit-bourgeois proprement dit, le socialisme parexcellence. Le capital pourchasse cette classe principalement en tant que créancier, elle demande des institutions decrédit; il l'écrase par la concurrence et elle demande des associations subventionnées par l'État; il l'accable par laconcentration et elle demande des impôts progressifs, des restrictions à l'héritage, l'entreprise par l'État de grandstravaux et d'autres mesures qui entravent de vive force la croissance du capital. Comme elle rêve d'une réalisationpacifique de son socialisme - sauf peut-être une seconde révolution de Février de quelques jours - le procèshistorique prochain lui paraît naturellement comme l'application de systèmes que les penseurs sociaux conçoiventou ont conçu, soit en compagnie, soit en inventeurs isolés.” Marx, K. Les luttes de classes em France, 1848-1850.Paris: Éd. Sociales, p. 147, 1974 [1895].
6
um processo histórico. Evidentemente, uma reflexão suficientemente aprofundada sobre as
experiências daqueles países nos quais se procurou superar o capitalismo é imprescindível para a
construção de um projeto socialista. Mas nesta reflexão não se pode deixar de considerar que as
condições históricas para a construção do socialismo, tanto em termos teóricos como práticos, neste
início do século XXI são totalmente diferentes das existentes na primeira metade do século passado,
época em que tais experiências tiveram início.
Este livro pretende contribuir para a construção de um projeto socialista baseado nas
condições atuais. Um dos seus principais objetivos é o de discutir, em suas grandes linhas, quais
seriam as principais características de uma economia socialista e como ela poderia funcionar. No
centro desta discussão encontra-se a questão da planificação socialista. Uma questão, alás,
extremamente polêmica, a começar pelas funções que a planificação desempenharia na sociedade.
Neste livro procuramos mostrar que, ao contrário do que muitos pensam, a função da planificação
não é a de definir as necessidades sociais com a pretensão de organizá-las de forma mais eficiente
do que no capitalismo. De acordo com a proposta formulada neste livro, a planificação é, sobretudo,
um instrumento que deve permitir uma radical democratização da sociedade. Assim, a nosso ver a
planificação, como todo processo econômico, não permite organizar as necessidades sociais
propriamente ditas, mas a partir da definição destas necessidades por processos extraeconômicos,
poderia apenas servir como um instrumento para satisfazê-las. É por esta razão que, a nosso ver, a
discussão da planificação é de crucial importância para a construção de uma sociedade socialista.
No entanto, é evidente que a discussão do funcionamento de uma economia socialista,
baseada em uma planificação radicalmente democrática, não pode ser desvinculada de uma reflexão
sobre os marcos teóricos que a orienta. Neste sentido a principal referência adotada neste livro
além, é claro, das obras de Marx e Engels, os geniais fundadores do materialismo histórico, é a obra
de Györg Lukács, especialmente as dedicadas a ontologia do ser social e os seus escritos sobre a
democracia no socialismo.
7
Introdução
Mas o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo dohomem, o Estado, a sociedade. Esse Estado e essa sociedade produzem a religião, umaconsciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoriageral deste mundo, seu compêndio enciclopédico, sua lógica em forma popular, seu pointd’honneur espiritualista, seu entusiasmo, sua sanção moral, seu complemento solene, suabase geral de consolação e de justificação.2
O socialismo é um sistema social no qual se reconhece explicitamente que cabe ao conjunto
da sociedade tomar as decisões fundamentais sobre o uso e a produção das suas riquezas. E o
caráter material de muitas destas riquezas, em última instância geradas pela natureza, implica no
reconhecimento de que decisões sobre as nossas relações entre a sociedade e o ambiente devem ser
tomadas de forma consciente, democrática e cientificamente informada para assegurar a
sustentabilidade ecológica da sociedade.
Também no capitalismo essas decisões existem, mas elas são subordinadas à pretensas leis
econômicas, centradas na acumulação de capital e no funcionamento do mercado, de forma a
favorecer sistematicamente os interesses de classe dos capitalistas. A satisfação desse interesses,
assim, é colocada como uma condição incontornável para a satisfação das necessidades das demais
classes sociais. E, considera-se no capitalismo, que se as necessidades das classes populares não
puderem ser satisfeitas é porque determinadas leis econômicas não o permitem, embora estas
mesmas leis sempre assegurem em primeiro lugar a satisfação dos interesses das classes
dominantes, mesmo durante as recorrentes e, por vezes, profundas crises do capitalismo. Mas, cabe
perguntar: porque existem tantos bancos e tão poucos hospitais? E tão numerosos “shopping
centers”, cuja atividade é voltada essencialmente às classes mais abastadas, e tão poucas creches
para os filhos dos trabalhadores? E mansões e condomínios de luxo ao lado de uma grave
insuficiência de habitações populares? E tão poucas obras de saneamento básico, considerando-se a
sua importância fundamental para a saúde pública? Enfim, porque, apesar das possibilidades
oferecidas pelo alto grau de desenvolvimento científico e tecnológico existente, ainda convivemos
com a fome, a miséria, e a precariedade que afligem grande parte dos seres humanos?
Ideologicamente, a resposta a essas questões encontram-se em uma religiosidade que é
própria ao capitalismo. Pode parecer estranho dizer que o capitalismo se baseie em uma religião.
Afinal, uma das características mais marcantes do Estado moderno é o seu caráter (a princípio)
2 MARX, K. Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel. Introdução. São Paulo: Boitempo, 2010 [1843],p. 145.
8
laico, independente de qualquer religião. Assim, a separação entre Igreja e Estado no capitalismo
limitaria a religião ao âmbito privado, o que, aliás permite que nas sociedades modernas as religiões
possam (pelo menos em princípio) ser igualmente tratadas. No entanto, o fenômeno religioso não
diz respeito apenas a crença em entidades divinas. Assim como nas religiões teológicas os seres
humanos criam divindades e passam a acreditar ser delas a criatura, todo fenômeno em que o ser
humano cria uma representação e passa a crer que deve obedecer a ela, é um fenômeno religioso. E
tais representações religiosas não se constituem em simples fantasias, mas em necessidades
históricas, como algo necessário ao funcionamento da sociedade. É por esta razão que o jovem
Marx, ao romper com os hegelianos de esquerda, que viam no combate à religião o principal
caminho para a ação política, afirmou que não se trata de combater as religiões em si mesmas, mas
sim as condições sociais que as tornam necessárias.3
As relações sociais características do capitalismo deram origem a categorias de análise que,
ao longo do tempo, passaram a ser consideradas como as únicas que podem possuir alguma
correspondência com a realidade. Categorias que se constituíram historicamente, como a de capital
e de lucro, passam, assim, a assumir um caráter ontológico, que supostamente descreve a própria
natureza da realidade e não apenas a forma como ela se expressa em determinado momento
histórico, em função de determinados interesses de classe. É neste sentido que, no capitalismo, os
seres humanos passam a conceberem-se como criaturas da sua própria criação, o que, como
mencionado anteriormente, é a essência do pensamento religioso. E, assim como nas religiões
teológicas nas quais os seres humanos não conseguem conceber à si mesmos de forma independente
do seu suposto criador, a religiosidade própria do capitalismo é um formidável obstáculo para que
os seres humanos que nele vivem possam conceber outra realidade que não seja a determinada por
este sistema. A religiosidade protagonizada pelas categorias de análise típicas do capitalismo,
portanto, se constitui no processo fundamental da alienação humana nas sociedades
contemporâneas.
O socialismo representa, sobretudo, um projeto emancipatório em relação à tal alienação. A
construção de um projeto socialista, portanto, passa por um exame crítico que permita a superação
das categorias de análise forjadas especificamente pelo capitalismo. Em nenhuma outra área do
conhecimento a supremacia destas categorias é tão flagrante como na economia. Evidentemente,
isto não ocorre por acaso. A “ciência econômica” é a área do conhecimento mais diretamente
relacionada aos interesses de classe dos capitalistas. O controle da reflexão sobre a produção e a
distribuição das riquezas sociais, objeto de estudo desta ciência, é vital para a sustentação do
capitalismo. Por esta razão e que Marx dedicou décadas da sua vida à crítica da Economia Política
3 MARX, K. Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel. Introdução. São Paulo: Boitempo, 2010 [1843].
9
de seu tempo, expressa, principalmente n’O Capital.4 A reflexão sobre uma proposta socialista
baseada na obra deste autor, um dos fundadores do materialismo histórico, portanto, não pode se
limitar à denúncia dos efeitos nefastos da exploração dos trabalhadores e da natureza, assim como a
opressão de certos grupos sociais, provocados pelo capitalismo. Tal reflexão necessita basear-se em
uma explicação do porque a exploração e a opressão são necessárias à reprodução material das
sociedades capitalistas. Em outras palavras, apenas por meio de uma compreensão suficientemente
precisa do funcionamento do capitalismo é que se pode pensar uma proposta socialista. Por outro
lado, é evidente que o próprio socialismo é um produto histórico, que não poderá surgir apenas a
partir de reflexões teóricas, mas será fruto das lutas dos trabalhadores e grupos sociais específicos
que arcam com os efeitos mais degradantes do capitalismo. Mas, sem uma reflexão teórica
suficiente não poderá haver socialismo porque, como afirmou Marx, se “o poder material tem de ser
derrubado pelo poder material, (..) a teoria também se torna força material quando se apodera das
massas”5.
Este livro, portanto, não pretende construir uma utopia. O seu principal objetivo é evidenciar
que as sociedades contemporâneas podem assumir outra forma de organização, não estando
condenadas a se submeter as pretensas leis econômicas definidas no quadro do capitalismo. O
socialismo, portanto, implica em reconhecer, e assumir todas as consequências deste
reconhecimento, de que não há leis econômicas que possam definir como satisfazer as necessidades
sociais. Este reconhecimento implica em centrar as decisões coletivas diretamente nas riquezas.
Mas isto não implica em negar a necessidade de respeitar determinadas condições para que a
reprodução material da sociedade possa ser assegurada. E dada a importância da moeda para o
funcionamento das economias modernas, é difícil imaginar, sem cair em certo utopismo, como
poderia ser evitado o emprego de valores monetários, mesmo que este atualmente seja a base da
acumulação de capital, em favor de um sistema econômico cujo funcionamento seria baseado
diretamente na riqueza, sem mediações monetárias. Neste sentido, o socialismo discutido neste
livro, de um ponto de vista econômico, pode ser definido como um sistema monetário de produção
não mercantil. Por outro lado, isto não implica que não reconhecemos que a riqueza seja a categoria
fundamental da economia. É por esta razão que, neste livro, os fenômenos monetários sempre são
analisados a partir das suas relações com a riqueza, especialmente no que diz respeito às condições
materiais de reprodução da sociedade.
Nas economias modernas, a moeda desempenha funções não apenas de intermediação entre
as trocas, de meio de pagamento e de reserva de valor, mas também de coordenação por meio dos
4 MARX, K. Capital: A critique of Political Economy. New York: International Publishers, on-lineversion: Marx.org. 1996, Marxists.org. 1999 [1895].
5 MARX, K. Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2010 [1843], p. 151.
10
preços, entre, por um lado, as decisões coletivas sobre as riquezas e as relações da sociedade com o
ambiente (especialmente por meio da exploração de recursos naturais) e, por outro lado, as decisões
a serem tomadas nas unidades de produção sobre o uso e a geração das riquezas. Como veremos,
este papel de coordenação desempenhado pelos preços é crucial em uma economia socialista, na
medida em que a divisão social do trabalho implica na impossibilidade da escolha, diretamente a
partir de quantidades físicas, de técnicas de produção (ou, de maneira mais geral, da seleção de
condições de produção) eficientes. O socialismo6, assim, implica em processos não mercantis de
definição de preços e em um necessário controle dos investimentos pela coletividade por meio de
uma planificação radicalmente democrática e cientificamente informada. E para que esta
planificação seja eficaz é necessário que haja um controle social sobre a própria moeda para que ela
possa se constituir em um instrumento de socialização dos investimentos, sem a qual não é possível
superar as instituições financeiras capitalistas e, portanto, o próprio capitalismo. Estas
características da planificação socialista, aliás, a tornam totalmente incompatível com a dinâmica
capitalista, na medida em que a sua implantação não pode ocorrer no quadro das relações de
produção típicas do capitalismo.
Este livro baseia-se estritamente no materialismo histórico fundado por Marx e Engels.7
Portanto, a primeira questão que nele é tratada é porque consideramos que uma concepção
materialista e histórica da realidade é necessária e suficiente para a construção de um projeto
emancipatório para a Humanidade. Esta questão é tratada no primeiro capítulo. De acordo com o
materialismo histórico, uma efetiva transformação da sociedade só pode ocorrer a partir de uma
mudança nas relações de produção responsáveis pela sua reprodução material. No segundo capítulo
procuramos demonstrar como a consideração da categoria ontológica do trabalho em sua articulação
com a reprodução social pode contribuir para a compreensão dos limites estruturais deste sistema
econômico capitalista, lançando as bases para uma reflexão cientificamente fundamentada sobre a
economia socialista.
Evidentemente, um livro sobre o socialismo com base no materialismo histórico não poderia
deixar de abordar aspectos práticos do funcionamento de uma economia socialista, inclusive no que
diz respeito ao papel nele desempenhado pela democracia, em oposição à democracia burguesa
vigente nas sociedades capitalistas. No centro desta discussão encontra-se a planificação econômica
socialista, discutida no terceiro e mais longo capítulo deste livro.
6 Pelo menos como ele poderá emergir preservando os avanços proporcionados pelo capitalismo.7 O que não implica que consideramos as obras desses autores como a expressão mais acabada da compreensão do
sistema capitalista, como examinado em SILVA NETO, B. Com Marx, para além de Marx: ensaios sobre riquezas,valores e preços. Rio de Janeiro: Ed. Telha, 2020 (no prelo).
11
Capítulo 1 - Socialismo e materialismo histórico
A crítica vulgar cai em um erro dogmático (..). Assim ela critica, por exemplo, a constituição. Elachama a atenção para a oposição entre os poderes etc. Ela encontra contradições por toda parte. Isso é,ainda, crítica dogmática, que luta contra seu objeto, do mesmo modo como, antigamente, o dogma dasantíssima trindade era eliminado por meio da contradição entre um e três. A verdadeira crítica, emvez disso, mostra a gênese interna da santíssima trindade no cérebro humano. Descreve seu ato denascimento. Com isso, a crítica verdadeiramente filosófica da atual constituição do Estado não indicasomente contradições existentes; ela esclarece essas contradições, compreende sua gênese, suanecessidade. Ela as apreende em seu significado específico.8 (destaques em itálico no original)
Como mencionado na introdução geral, a concepção do socialismo apresentada neste livro é
estritamente baseada no materialismo histórico. Esta posição é contrária à de muitas propostas que
negam a possibilidade de um conhecimento objetivo da realidade social alicerçar um projeto
socialista. Partindo de uma crítica “vulgar” à Modernidade (no sentido que Marx atribui a esta
expressão mostrado na citação acima)9 pretendendo-se, assim, “pós-modernas”, essas propostas são,
mesmo que de forma tácita, largamente hegemônicas atualmente entre aqueles que proclamam
sustentar um projeto socialista. Para estes indivíduos e formações políticas de “esquerda
(supostamente) radical”, o “marxismo”, quando mencionado e quase sempre reduzido a uma teoria
econômica entre outras, é considerado certamente útil, porém longe de ser suficiente para a
fundamentação de uma proposta socialista. Referências explícitas ao materialismo histórico são
extremamente raras neste tipo de pensamento de esquerda. A ideologia “socialista” hegemônica
atualmente é, portanto, profundamente distinta do socialismo científico proposto por Marx e Engels.
O objetivo deste capítulo é demonstrar a pertinência da proposta fundada por estes autores.
O materialismo histórico
A ontologia refere-se às nossas concepções da natureza da realidade. Neste sentido, ela
difere da epistemologia, que trata de como conhecer a realidade. Esta diferença é importante. Ela
evidencia as dificuldades que se colocam para a definição do método científico sem uma reflexão
ontológica que o fundamente. Mas a ontologia e a epistemologia não são domínios estanques. É
com base na própria evolução das formas como procuramos conhecer a realidade, a qual culminou
em uma ciência que, em sua prática, é destituída de todo idealismo filosófico, é que se pode afirmar
que o materialismo histórico, fundado por Marx e Engels, é a única concepção ontológica da
realidade compatível com a ciência moderna. A natureza histórico material de todas as esferas do
8 MARX, K. Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2010 [1843], p. 108.9 O que as aproxima perigosamente do fascismo, como analisado em CLOUSCARD, M. Néo-fascisme et idéologie
du désir. Paris: Denoël, collection « Médiations », 1973.
12
ser (isto é, a tudo o que “é”, que “existe”), assim, é um pressuposto básico de toda atividade
rigorosamente científica. Por outro lado, cada uma dessas esferas do ser possui características que
lhe são próprias, embora, vale salientar, todas se constituem, em última instância, em diferentes
configurações de um substrato material comum.
Em grandes linhas, podemos considerar que os seres inorgânicos (inanimados), biológicos
(vivos) e sociais (humanos) abarcam toda a realidade material. Evidentemente, os seres sociais são
também seres biológicos, tendo sido constituídos a partir destes, assim como a vida surgiu a partir
da matéria inanimada. As transformações da matéria que deram origem aos seres biológicos e
sociais, e que são responsáveis por processos de diferenciação no interior de cada uma das esferas
do ser, é o que, em última instância, confere um caráter histórico à realidade. Em outras palavras, o
caráter histórico da realidade encontra-se presente já no ser inorgânico, pois sem isto não poderia ter
havido o surgimento de seres biológicos e sociais. A historicidade comum, fundamental, de todos os
seres decorre das características das suas transformações energéticas (termodinâmicas). Pela sua
importância para a compreensão da historicidade de todas as esferas do ser, os processos básicos
que regem estas transformações são discutidos brevemente nos parágrafos seguintes.
Podemos definir as relações energéticas que ocorrem em um sistema por meio da expressão,
E = G + TS
onde
E = energia total do sistema (joules)
G = energia livre (joules)
T = temperatura (graus Kelvin)
S = entropia (joules/graus Kelvin)
A porção da energia total E representada por TS é a que não pode gerar trabalho, em seu
sentido físico, ou seja, não pode provocar variações de pressão ou volume do sistema. A entropia S
está relacionada aos estados possíveis de um sistema, os quais aumentam com o aumento da
entropia. Isto pode ser expresso quantitativamente pela equação de Boltzmann,
S = Ω log W
onde
Ω = constante de Boltzman (joules/graus Kelvin)
W = número de arranjos possíveis do sistema
A entropia não pode ser negativa, isto é, um sistema termodinâmico espontaneamente tende
a aumentar o seu grau de desordem. Portanto, para que um sistema termodinâmico possa se
organizar há necessidade de um aporte de energia do exterior.
13
A partir da entropia pode-se classificar os sistemas termodinâmicos em dissipativos e
conservativos. Os sistemas dissipativos, ao contrário dos sistemas conservativos, são aqueles em
que a energia livre, que pode gerar trabalho, não é conservada. Nesses sistemas as transformações
sofridas pela energia geram calor, o qual é dissipado para o meio externo. Assim, em um sistema
dissipativo há geração de entropia, que está relacionada à quantidade de energia a partir da qual não
se pode obter trabalho. Como a geração de entropia é um processo irreversível, um sistema
dissipativo só pode aumentar sua quantidade de energia livre obtendo-a do exterior. Na ausência de
uma fonte de energia com baixa entropia (alta energia livre), os sistemas dissipativos tendem ao
estado de equilíbrio termodinâmico, isto é, a um equilíbrio simultaneamente químico, térmico e
mecânico. Neste estado a entropia do sistema é máxima e ele é macroscopicamente estável, ou seja,
na ausência de perturbações externas não apresenta variações no seu estado global (temperatura,
pressão e volume).10
A biosfera terrestre é um sistema dissipativo, apresentando uma grande diversidade de
subsistemas os quais são, também, sistemas dissipativos. Assim, os sistemas físico-químicos,
ecológicos e sociais presentes na Terra são sistemas dissipativos. E grande parte dos sistemas
dissipativos da biosfera, em especial os ecológicos e sociais, são sistemas que permanecem fora do
equilíbrio, por meio de um constante aporte de energia livre, a qual é utilizada para o seu
estabelecimento e manutenção, isto é, para a sua auto-organização.
Os processos de organização apresentados pelos sistemas dissipativos dependem de fontes
externas de energia com entropia mais baixa do que a do próprio sistema. Isto permite que os
sistemas dissipativos possam transferir a entropia gerada durante sua organização para o seu
exterior, o qual, salientamos, deve ter um grau de entropia inferior ao do sistema.11 Assim, apesar de
um sistema dissipativo poder aumentar o seu grau de organização, há um aumento no total de
entropia gerada. Prigogine salienta que sem a geração de entropia a auto-organização apresentada
por certos sistemas dissipativos não seria possível.12 Segundo este autor, em uma de suas obras
escritas em colaboração com a filósofa Isabelle Stengers, é por meio da geração de entropia que
ocorrem os processos irreversíveis que são responsáveis pelo fato do passado e o futuro serem
distintos e irredutíveis um ao outro, isto é, pela existência de um tempo histórico e evolutivo, pois
irreversível.13 Por este motivo, a entropia desempenha um papel central nos processos evolutivos, o
10 GÜEMEZ, J.; FIOLHAIS, C. e FIOLHAIS, M., Fundamentos de Termodinâmica do Equilíbrio. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998.
11 Um exemplo deste fenômeno é o fato de, quando dois corpos podem trocar calor, o mais frio não pode aquecer o mais quente.
12 PRIGOGINE, I. Les lois du chaos. Paris: Flammarion, 1993, p. 37. 13 PRIGOGINE, I.; STENGERS, I. La nouvelle alliance. Métamorphose de la science. Paris: Ed. Gallimard, 1986, p. 52.
14
que implica ir além da interpretação corrente que a identifica simplesmente como uma medida do
grau de desordem de um sistema. Segundo Prigogine e Stengers a expressão "estrutura dissipativa"
foi escolhida propositalmente para expressar o fato de que a geração de entropia - geralmente
associada às noções de perda de rendimento e de evolução em direção à desordem - torna-se fonte
de ordem quando o sistema se encontra longe do equilíbrio, provocando sua auto-organização (ou
“estruturação”).14
Os seres biológicos apresentam processos de auto-organização que, embora decorrentes dos
processos já presentes nos seres inorgânicos, apresentam maior grau de complexidade. A
característica mais marcante dos seres biológicos é a sua reprodução, assim como o fato de muitos
desses seres (os considerados mais evoluídos) passarem por fases bem definidas de
desenvolvimento (por exemplo, nos animais tais fases podem ser descritas de forma simplificada
como infância, fase adulta e senilidade). Além disto, as mudanças qualitativas que caracterizam os
processos evolutivos são muito mais rápidas nos seres biológicos do que nos seres inorgânicos. O
caráter histórico e evolutivo dos seres biológicos é, assim, não apenas ainda mais marcante, mas,
sobretudo, qualitativamente diferente do apresentado pelos seres inorgânicos.
Ao longo do seu processo de evolução, os seres biológicos se adaptam ao seu ambiente, de
forma a se preservar, ou mesmo se multiplicar como espécie. É nesta capacidade de adaptação que
se encontra a origem das múltiplas diferenças entre o ser (simplesmente) biológico e o ser social. O
ser social, isto é, o ser humano, adapta-se ao seu ambiente por meio de uma prática social, o
trabalho, por ele realizada de forma única. Evidentemente, os seres humanos não são os únicos que
trabalham. Muitos outros seres biológicos, em geral animais, de forma social ou não, apresentam
atividades que podem ser consideradas como trabalho sendo que muitas delas até apresentam alto
grau de sofisticação. Mas como já observava Marx,
“Uma aranha realiza operações que parecem com a do tecelão, e uma abelha podeenvergonhar muitos arquitetos na construção de suas células. Mas o que distingue o piorarquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-laem realidade. No fim do processo de trabalho aparece um resultado que já existia antesidealmente na imaginação do trabalhador desde o início.”15
É, portanto, o trabalho consciente que distingue os seres humanos dos demais seres
biológicos, proporcionando assim à Humanidade o processo evolutivo com o mais alto grau de
14 Idem, p. 215-216.15 “A spider conducts operations that resemble those of a weaver, and a bee puts to shame many an architect in the
construction of her cells. But what distinguishes the worst architect from the best of bees is this, that the architectraises his structure in imagination before he erects it in reality. At the end of every labour-process, we get a resultthat already existed in the imagination of the labourer at its commencement.” MARX, K. Capital. A critique ofPolitical Economy. Volume I. New York: International Publishers, on-line version: Marx.org. 1996, Marxists.org.1999 [1867].
15
complexidade ontológica, o que justifica a sua denominação por Lukács de “complexo de
complexos”.16 Reafirmando a concepção de Marx, para Lukács o que distingue o ser social do ser
simplesmente biológico é que o ser social trabalha de forma consciente.17 É interessante salientar
que nesta mesma passagem Lukács destaca que alguns animais não apenas trabalham, mas
apresentam também rudimentos de consciência, embora esta seja “muda”, isto é, não se manifesta
por meio de uma linguagem elaborada. O processo de trabalho humano, assim, integra dois aspectos
distintos. O primeiro é uma posição teleológica, ou seja, a concepção do objeto a ser produzido. O
segundo é a manipulação dos processos puramente causais que possibilitam a fabricação do objeto
concebido. É, portanto, no processo material e histórico de trabalho que se consuma a distinção
entre sujeito e objeto pelo ser humano. E a linguagem permite que o caráter social do trabalho
humano apresente uma diversidade e flexibilidade únicas, o que o distingue ainda mais do trabalho
realizado por outras espécies. Assim, na medida em que é a partir dele que se desenvolve, não
apenas as formas de produção material, mas também a própria subjetividade humana, é a partir do
trabalho que se originam todas as atividades sociais do ser humano, desde as mais cotidianas até as
de maior nível de espiritualidade.18
De acordo com a concepção de Lukács, a possibilidade de escolha, ou seja, certa liberdade,
é inerente ao processo de trabalho e, portanto, a toda atividade econômica, da qual ele é o
fundamento. Posições teleológicas e formas de manipulação dos processos causais podem ser
modificadas pelo ser social sendo, no entanto, sujeitas a erros na sua objetivização em produtos
úteis, do que depende a sua validação como um efetivo processo de trabalho. Em outras palavras, se
uma atividade pretensamente produtiva falha em objetivar-se no produto desejado, ela não é um
processo de trabalho. Porém, isto não implica que o trabalho possa ser realizado apenas de uma
forma. Assim, mesmo podendo efetivar-se somente ex-post, o trabalho sempre implica em uma
liberdade de escolha, o que o torna irredutível a qualquer pretenso mecanismo econômico
automático.
O processo de trabalho, portanto, não é determinado mecanicamente pelas condições
materiais existentes. Quanto maior o domínio dos processos causais pelos seres humanos, maior a
diversidade de objetos que podem ser produzidos, assim a como dos processos causais que podem
ser mobilizados para produzi-los e, portanto, maior a possibilidade de escolha do ser social. Como
já mencionado, as posições teleológicas passam, assim, a compreender certo grau de subjetividade.,
cujo desenvolvimento é potencializado pela linguagem e pelo avanço da divisão social do trabalho.
Estes processos possibilitam o estabelecimento de posições teleológicas que se exercem sobre
16 LUKÁCS, G. Ontologie de l’être social. Le travail, la reproduction. Paris: Éd. Delga, 2011, p. 273-342.17 LUKÁCS, G. Prolégomènes à l’ontologie de l’être social. Paris: Éd. Delga, 2009, p. 75.18 Idem, também na p. 75.
16
outras posições teleológicas, o que acentua a influência da subjetividade no desenvolvimento
histórico do ser social.19 A cadeia de posições teleológicas está intimamente relacionada à estrutura
de poder de uma sociedade.20 No capitalismo, são os proprietários dos meios de produção, ou seja,
os capitalistas, que tomam as decisões fundamentais que regem o processo de trabalho. No outro
extremo da estrutura de poder estão os trabalhadores que objetivam posições teleológicas a cuja
concepção, tipicamente, eles são alijados. Entre estes dois extremos, encontra-se a “nova classe
média”, formada por intelectuais no seu sentido amplo, a qual está relacionada à definição de
posições teleológicas intermediárias, que vão desde a pesquisa e a transmissão de conhecimentos
necessários para o controle dos processos causais de produção até a sustentação ideológica da
estrutura social.21 Esta classe, nem proprietária dos meios de produção nem produtora direta de
riquezas materiais, distingue-se da classe média “tradicional”, formada pela pequena burguesia
proprietária dos meios de produção e, em geral, produtora direta de riquezas materiais. Pela relação
privilegiada da nova classe média com a definição de posições teleológicas, a subjetividade adquire
uma importância central nas funções por ela desempenhada.
O socialismo na perspectiva do materialismo histórico
Resultante desse complexo processo de desenvolvimento da subjetividade, o ser social,
considerado individualmente, apresenta características que Lukács analisa por meio das categorias
da singularidade, da particularidade e da universalidade. De acordo com este autor, o individuo é
sempre uma singularidade, no sentido de que sempre apresenta especificidades que lhe são
próprias.22 Quando em uma formação social muitas singularidades convergem “estatisticamente”,
isto resulta na formação de uma particularidade. É importante salientar a característica “estatística”
da particularidade, pois a singularidade de um indivíduo jamais pode ser reduzida a uma
particularidade.23 Enfim, a categoria da universalidade está relacionada ao fato de todos os
indivíduos pertencerem a um “gênero humano”, de caráter universal. A manifestação primeira desta
universalidade é representada pela própria espécie humana. Mas esta universalidade “em si”,
biológica, ainda não é a realização do ser humano como ser social universal, “para si”. Com o
aprofundamento do caráter social da geração de riquezas, promovido no capitalismo por uma alta
divisão social do trabalho, aprofunda-se o antagonismo entre os interesses de classe, possibilitando
o fortalecimento de relações de solidariedade entre os trabalhadores. As mudanças nas condições de
19 LUKÁCS, G. Ontologie de l’être social. Le travail, la reproduction. Paris: Éd. Delga, 2011, p. 205.20 LUKÁCS, G. Ontologie de l’être social. L’idéologie, l’aliénation. Paris: Éd. Delga, 2012, p. 328.21 CLOUSCARD, M. Les métamorphoses des luttes des classes: pour une alternative progressiste. Paris: Les temps
des cérises, 1996, p. 25-2822 LUKÁCS, G. Ontologie de l’être social. Le travail, la reproduction. Paris: Éd. Delga, 2011, p. 152.23 LUKÁCS, G. The ontology of social being. 2. Marx basic ontological principles. London: Merlin Press, 1978, p. 78.
17
produção, assim, podem mudar a própria subjetividade, promovendo a sua consciência de classe. É,
portanto, a partir das suas experiências concretas de cooperação, ocorridas no seio de um processo
histórico, que o ser humano pode vir a se manifestar plenamente como ser social universal.24
O socialismo baseado no materialismo histórico tem como perspectiva a promoção deste
caráter universal do gênero humano. Ele conjuga, neste processo, a construção de um projeto
emancipatório que visa a superação de todos os obstáculos colocados pelas particularidades de
classe apresentadas pelo capitalismo à plena manifestação da singularidade dos indivíduos. Neste
sentido, o socialismo não significa apenas a superação da exploração humana e da destruição da
natureza promovida pelas classes dominantes no capitalismo. Ele significa superar a própria
alienação, origem de todas as formas de exploração, que atinge o conjunto das sociedades
capitalistas.
É importante salientar que, da mesma forma que o processo de trabalho depende das
escolhas dos indivíduos, o que implica em certa subjetividade, a classe social a qual os indivíduos
pertencem não determina mecanicamente a sua consciência. A singularidade de certos indivíduos
permite até que eles assumam posições político-ideológicas contrárias aos interesses da sua classe
“em si”. No entanto, nas sociedades capitalistas, os interesses de classe sempre prevalecem em
relação às singularidades dos indivíduos, dando origem a processos sociais objetivos que exigem
mudanças nas relações de produção, de troca e de propriedade para serem superados. A implantação
do socialismo, assim, não pode deixar de ser um processo altamente conflituoso. Neste sentido, é
por meio da luta dos trabalhadores contra a sua exploração pelos capitalistas, assim como a luta de
todos os grupos sociais particulares oprimidos por ele, que o socialismo poderá ser implantado. Isto
não implica, porém, que tais lutas podem espontaneamente resultar em uma sociedade socialista. A
luta pelo socialismo, de acordo com o materialismo histórico, exige a produção de um
conhecimento da realidade social que deve resultar de um processo dialético (uma “práxis”) entre as
experiências diretas das classes populares e uma metódica reflexão científica. Como Marx afirma,
A arma da crítica não pode, é claro, substituir a crítica da arma, o poder material tem de serderrubado pelo poder material, mas a teoria também se torna força material quando seapodera das massas. A teoria é capaz de se apoderar das massas tão logo demonstra adhominem, e demonstra ad hominem tão logo se torna radical. Ser radical é agarrar a coisapela raiz. Mas a raiz, para o homem, é o próprio homem.25
De acordo com a discussão realizada neste capítulo, é nas condições materiais e históricas,
que se manifestam por meio dos processos de trabalho em sua articulação com a reprodução da
sociedade, que devem ser buscadas as origens da alienação humana, cujo esclarecimento é uma
24 LUKÁCS, G. Ontologie de l’être social. Le travail, la reproduction. Paris: Éd. Delga, 2011, p. 278-179.25 MARX, K. Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2010 [1843], p. 151.
18
condição necessária para que se possa apreender os limites à emancipação humana colocados pelo
desenvolvimento capitalista. Esta questão é discutida no próximo capítulo.
19
Capítulo 2 - Trabalho e reprodução social no desenvolvimento docapitalismo
Nosso objetivo aqui é uma sociedade comunista, não como ela se desenvolveu a partir desuas próprias bases, mas, ao contrário, como ela acaba de sair da sociedade capitalista,portanto, trazendo de nascença as marcas econômicas, morais e espirituais herdadas da velhasociedade de cujo ventre ela saiu.26
Ao longo da sua história, o capitalismo apresentou um extraordinário dinamismo
econômico. Em seus primórdios, o capitalismo caracterizou-se por uma grande expansão comercial,
estabelecendo relações de troca que, progressivamente, foram dando forma ao mercado capitalista.27
Consolidadas as bases do mercado capitalista, a plena instituição da propriedade privada levou a
uma violenta destituição dos camponeses, artesãos e outros trabalhadores dos seus meios de
produção, processo que foi denominado por Marx de acumulação primitiva capitalista.28 Neste
processo as relações sociais presentes nas comunidades camponesas e nas corporações de artesãos
europeias dão lugar a relações de produção que asseguram uma ampla mobilidade dos
trabalhadores. Formam-se, assim, as principais classes sociais do capitalismo. Especialmente após o
início da Revolução Industrial, ocorrido na Inglaterra na segunda metade do século XVII, o
aumento da produtividade do trabalho no capitalismo foi largamente superior ao observado em
qualquer período da história da Humanidade.
Foi durante a Revolução Industrial que se observou o surgimento de uma literatura
econômica que procurava explicar a dinâmica do novo sistema social em desenvolvimento,
destacando-se a obra Uma Investigação sobre a Origem das Riquezas das Nações, de Adam Smith,
publicado em 1776.29 Cerca de quarenta anos depois, David Ricardo, especialmente com os seus
Princípios de Economia Política e Tributação, publicado em 181730, viria a marcar o auge da
Economia Clássica, na qual expressa-se a reificação das relações sociais capitalistas em relações
26 MARX, K. (1818-1883). Crítica do Programa de Gotha. Seleção, tradução e notas Rubens Enderle. - São Paulo: Boitempo, 2012, p. 30-31.
27 BRAUDEL, F. Civilisation matériell, économie et capitaisme XVe-XVIIe siècle. 2. Les jeus de l’échange. Paris:Armand Colin, 1979.
28 MARX, K. Capital. A critique of Political Economy. Volume I. Nova York: International Publishers, on-line version: Marx.org. 1996, Marxists.org. 2010 [1867], p. 500.
29 SMITH, A. An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations. Volume I. Oxford: Oxford University Press, 1976 [1776].
30 RICARDO, D.; Princípios de economia política e de tributação. 3ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983 [1817].
20
entre coisas, por meio da mercadoria, e entre “fatores de produção”, consagrando o capital como o
elemento mais importante na produção da riqueza social.31
A obra de Marx e Engels é em boa parte dedicada a analisar as contradições do capitalismo
expressadas pela Economia Política. Ao fazê-lo, Marx e Engels, porém, não negam que, mesmo de
forma instável e sujeita a recuos e estagnações, o advento do capitalismo representou um verdadeiro
desenvolvimento para a Humanidade. Este “desenvolvimento desigual” do capitalismo é, portanto,
um elemento característico da análise deste sistema baseada no materialismo histórico. Neste
sentido, Lukács afirma que,
O marxismo, porque coloca no centro de seu método e de suas aplicações concretas o caráterhistórico do ser mais resolutamente do que toda outra teoria, deve ver no desenvolvimentodesigual a forma típica dos processos sociais.32
E, de acordo com este mesmo autor,
O desenvolvimento desigual ‘simplesmente’ significa que a principal linha nodesenvolvimento do ser social, a crescente sociabilidade de todas as categorias, conexões erelações, não pode se desenvolver de forma retilínea, de acordo com alguma espécie de‘lógica racional’, mas se desenvolve parcialmente por desvios (mesmo deixando para trásbecos sem saída).33
No entanto, parece haver certo consenso na literatura marxista que, no nível
microeconômico, as relações sociais capitalistas levam necessariamente a uma adequada alocação
dos recursos. A maximização do lucro, isto é, da apropriação pelos capitalistas de parte das riquezas
geradas pelos trabalhadores, resultaria necessariamente na maximização da produtividade do
trabalho, a qual seria, assim, uma característica intrínseca da produção capitalista. Neste sentido, o
desenvolvimento desigual observado no capitalismo estaria relacionado aos seus aspectos
macroeconômicos, especialmente os relacionados à distribuição das riquezas.
Esta dicotomia entre fenômenos micro e macroeconômicos é, no entanto, bastante
problemática. Há, evidentemente, uma relação entre os processos de trabalho que ocorrem nas
unidades de produção e a reprodução material da sociedade. Em uma economia monetária, como a
capitalista, esta articulação ocorre por meio dos preços. Assim, a articulação entre trabalho e
reprodução social pode ser analisada por meio do exame do processo de formação dos preços que,
31 Apesar do reconhecimento do trabalho e da natureza como as únicas fontes de valor, o que só viria a ser mudado com o surgimento da economia neoclássica a partir de 1870.
32 “Le marxisme, parce qu’il met au centre de sa méthode et de ses aplications concrètes le caractère historique del’être plus résolument que toute autre théorie, doit voir dans le développement inégal la forme typique desprocesssus sócio-historiques.” LUKÁCS, G. Prolégomènes à l’ontologie de l’être social. Paris: Éd. Delga, 2009, p.242.
33 “Uneven development ‘simply’ means that the main line in the movement of social being, the increasing sociality ofall categories, connection and relantionships, cannot develop in a rectilinear fashion, according to some rational‘logic’, but that it develops partly by deteours (even leaving blind alleys).” LUKÁCS, G. The ontology of socialbeing. 2. Marx basic ontological principles. London: Merlin Press, 1978, p. 128.
21
de acordo com a teoria do valor de Marx formulada no volume III d’O Capital34, ocorre
fundamentalmente por uma agregação monetária baseada no tempo de trabalho, ou seja, pela
formação de um “valor agregado” monetário. É por meio desta análise que, neste capítulo, é
evidenciada que as contradições entre o processo de trabalho e a reprodução social provocadas pelas
relações sociais capitalistas se constituem em um dos principais fatores responsáveis pelo
desenvolvimento desigual do capitalismo. Metologicamente, isto implica em deslocar o próprio
capital como categoria central na análise da formação dos preços em favor do trabalho e da
reprodução social. A justificativa para este procedimento é discutida na próxima seção.
A prioridade ontológica do trabalho e da reprodução social na análise do desenvolvimento
capitalista
Toda criança sabe que qualquer nação que parasse de trabalhar, não por um ano, masdigamos, justo por umas poucas semanas, pereceria. E toda criança sabe, também, que osmontantes de produtos correspondendo aos diferentes montantes de necessidades demandamdiferentes e quantitativamente determinados montantes de trabalho social agregado. Se éautoevidente que esta necessidade da distribuição do trabalho social em proporçõesespecíficas certamente não é abolida por um forma específica de produção social; ela podeapenas mudar sua forma de manifestação.35
Lukács em Para uma Ontologia do Ser Social, enumera o que ele denomina de “complexos
de problemas mais importantes” relativos ao que essencialmente caracteriza o ser humano enquanto
tal, ou seja, o que caracteriza a sua natureza ontológica. O primeiro complexo de problemas é o
trabalho. Esta ordem não é aleatória. Para Lukács o complexo de problemas centrado no trabalho
possui prioridade ontológica sobre os demais. Para que isto fique claro, é importante citar como o
próprio autor define prioridade ontológica quando afirma que,
em tal prioridade ontológica não está contida nenhuma hierarquia de valor. Com issorealçamos apenas uma situação ontológica: uma determinada forma do ser é a insuprimívelbase ontológica de outra, e a relação não pode ser nem inversa nem recíproca. Talconstatação é em si totalmente livre de valor. Somente na teologia e no idealismo com tintasteológicas a prioridade ontológica representa, ao mesmo tempo, uma valoração maiselevada.36
34 MARX, K. Capital. A critique of Political Economy. Volume III editado por Friedrich Engels. Nova York:International Publishers, on-line version: Marx.org. 1996, Marxists.org. 2010 [1894].
35 “Every child knows that any nation that stopped working, not for a year, but let us say, just for a few weeks, wouldperish. And every child knows, too, that the amounts of products corresponding to the differing amounts of needsdemand differing and quantitatively determined amounts of society’s aggregate labour. It is self-evident that thisnecessity of the distribution of social labour in specific proportions is certainly not abolished by the specific form ofsocial production; it can only change its form of manifestation.”. carta de Marx a Engels, conforme MARX, K.;ENGELS, F. Collected works, Volume 43. New York: International Publishers, 1988.
36 LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 86.
22
É importante salientar que a prioridade ontológica acordada ao trabalho e, depois dele à
reprodução, porém, é vista como um “complexo” o que é explicado pelo autor como,
Deve-se (...) rejeitar qualquer “dedução ontológica” do edifício, do ordenamento dascategorias (aqui os valores), partindo do seu conceito geral, abstratamente apreendido. (…)Deve-se rejeitar, do mesmo modo, a ontologia vulgar-materialista que vê as categorias maiscomplexas como simples produtos mecânicos das mais elementares e fundantes e, dessemodo, por um lado, obstrui para si mesma toda compreensão da particularidade dasprimeiras e, por outro, cria entre as primeiras e as segundas uma falsa hierarquia,supostamente ontológica, segundo a qual só se pode atribuir um ser em sentido próprio àscategorias mais simples.37
O trabalho como relação característica dos seres humanos com a natureza, sempre mediada
por relações entre os seres humanos entre si, constitui-se como o processo fundamental da atividade
econômica, voltada para a reprodução material dos indivíduos e da sociedade. Como já mencionado
na introdução geral, neste livro consideramos a economia socialista como uma economia monetária,
na qual os preços desempenham um papel fundamental. E a formação dos preços no capitalismo,
como a concebemos, não pode deixar de respeitar a prioridade ontológica do trabalho e da
reprodução social em relação às categorias características do capitalismo.
De acordo com a teoria do valor de Marx, alicerçada no materialismo histórico, os preços
são formados por um processo de agregação de valor, o qual, fundamentalmente, é o equivalente
monetário do tempo de trabalho aplicado à produção, tanto em termos micro como
macroeconômicos. Em termos microeconômicos, a agregação de valor é um processo que ocorre a
partir do tempo de trabalho realizado nas unidades de produção. Mas esta agregação é, também, um
processo macroeconômico, especialmente no capitalismo, na medida em que, tipicamente, ela
ocorre nas sociedades capitalistas a partir de uma alta divisão social do trabalho. Diante desta
divisão do trabalho, os preços desempenham um papel central na articulação entre os níveis macro e
microeconômicos de agregação do valor, determinando maior ou menor estabilidade para a
reprodução material da sociedade. Assim, podemos denominar como “preços de reprodução”38, os
que permitem uma perfeita estabilidade do processo de reprodução material da sociedade. Como
procuraremos demonstrar, é possível analisar as condições para a formação de preços de reprodução
dadas a divisão social do trabalho, expressa pelas suas atividades produtivas; as condições técnicas
de produção, definidas pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas; e a disponibilidade de
recursos naturais. E a partir desta definição avaliar qual é o impacto das relações de produção
capitalistas sobre o processo de reprodução social. Para esta avaliação consideramos
particularmente útil o procedimento proposto por Marx para a análise da formação dos preços, que
deu origem ao que veio a ser conhecido como o problema da transformação de valores em preços.
37 Idem, p. 87.38 NICHOLAS, H. Marx’s Theory of Price and its Modern Rivals. New York: Palgrave Macmillan, 2011, p. 12.
23
A prioridade ontológica acordada à agregação de valor não implica em negligenciar que a
dinâmica do investimento capitalista exerce um papel fundamental na formação dos preços. A
contratação de força de trabalho (capital variável) e a aquisição de meios de produção (capital
constante), orientadas pela taxa de lucro, o que tendencialmente resultaria na sua equalização, é o
que determina a especificidade assumida no capitalismo pelo processo de trabalho e pela sua
articulação com a reprodução social. Qualquer crítica científica e, portanto, imanente ao modo de
produção capitalista não pode ignorar tal especificidade sob pena de assumir valores hierárquicos
subjetivos (como alertado por Lukács nas citações transcritas anteriormente). Mas esta crítica não
pode, também, ignorar a prioridade do trabalho e da reprodução social enquanto categorias
ontológicas em relação ao capital, uma categoria historicamente determinada, apesar desta ser de
uma óbvia e imprescindível importância para a análise do capitalismo (justamente por este ser
historicamente determinado). É neste ponto que entendemos se situar a origem das inconsistências
da formulação do problema da transformação de valores em preços. Falta nesta formulação uma
definição explicita e clara do valor agregado como equivalente monetário do tempo de trabalho
socialmente necessário, o que gera confusão entre os processos micro e macroeconômicos da
agregação de valor e, portanto, da formação dos preços. Falta também explicitar as riquezas,
entendidas como as quantidades físicas de produtos, de meios de produção e de recursos naturais
envolvidas no processo de trabalho, para a análise das relações entre a formação dos preços e as
condições de reprodução material da sociedade, inclusive no que diz respeito às relações entre a
sociedade e o ambiente. Para que estas questões possam ser examinadas adequadamente, a
formação do valor agregado no procedimento proposto por Marx para a explicar a formação dos
preços é analisada na seção seguinte.
A formação dos valores monetários n’O Capital
O trabalho, como relação característica dos seres humanos com a natureza, sempre mediada
por relações dos seres humanos entre si (relações sociais), constitui-se como o processo
fundamental da atividade econômica, responsável pela reprodução material dos indivíduos e da
sociedade.39 Nas condições históricas do capitalismo, a atividade produtiva do ser humano se torna
trabalho alienado. O trabalhador, assim, deixa de identificar na sua própria atividade a origem das
riquezas por ele produzidas, atribuindo-as ao capital. Mas nem por isto o trabalho, ontologicamente,
deixa de ser parte da vida humana, aquela voltada a reprodução da sociedade por meio da qual ela
assegura a sua própria reprodução. Ontologicamente, portanto, o ser humano não pode ser reduzido
39 LUKÁCS, G. Ontologie de l’être social. Le travail, la reproduction. Paris: Éd. Delga, 2011.
24
a um simples meio de acumulação de capital, embora ele historicamente o seja no capitalismo. E a
formação dos preços no capitalismo não pode deixar de respeitar esta característica, conforme
expressa a teoria do valor de Marx. Como uma consequência imediata desta teoria os preços não
podem ser concebidos de outra forma senão como o produto de um processo de agregação de valor
monetário pelo trabalho. O valor agregado, assim, se constitui no equivalente monetário ao tempo
de trabalho diretamente aplicado na produção, o que expressa o processo fundamental da formação
dos preços.
Esta agregação de valor possui características micro e macroeconômicas distintas. Em
termos microeconômicos, a agregação de valor é um processo que ocorre a partir do tempo de
trabalho dispendido nas unidades de produção. Mas esta agregação é, também, um processo
macroeconômico, especialmente no capitalismo, na medida em que, tipicamente neste sistema
econômico, ela ocorre no âmbito de uma economia monetária com uma alta divisão social do
trabalho. Nesta divisão do trabalho, intermediada por relações monetárias, os preços desempenham
um papel central na articulação entre os níveis macro e microeconômicos de agregação do valor,
determinando maior ou menor estabilidade para a reprodução material da sociedade. Como já
mencionado, os preços que permitem uma reprodução material estável da sociedade são aqui
denominados preços de reprodução.40 Tais preços são os que induzem os agentes econômicos a
adotar técnicas que permitem uma reprodução estável da sociedade, as quais denominaremos neste
artigo de técnicas “eficientes”, ou seja, técnicas que asseguram eficiência alocativa ao conjunto da
economia. Como procuraremos demonstrar, é possível analisar as condições para a formação de
preços de reprodução dadas a divisão social do trabalho, expressa pelas suas atividades produtivas;
as condições técnicas de produção, definidas pelo desenvolvimento das forças produtivas e por
condições específicas de produção; e a disponibilidade de recursos naturais. A partir desta definição
pode-se então avaliar qual é o impacto das relações de produção capitalistas sobre o processo de
reprodução social. É no quadro desta avaliação que consideramos particularmente útil o
procedimento proposto por Marx para a análise da formação dos preços no capítulo IX do livro III
d’O Capital.
A prioridade acordada à agregação de valor pelo trabalho não implica em negligenciar que a
dinâmica do investimento capitalista exerce um papel fundamental na formação dos preços. A
contratação de força de trabalho (capital variável) e a aquisição de meios de produção (capital
constante) orientadas pela taxa de lucro, o que tende a provocar a sua equalização, é o que
determina a especificidade assumida no capitalismo pelo processo de trabalho e pela sua articulação
com a reprodução social. Atingir certa taxa de lucro é uma condição necessária para a reprodução
40 NICHOLAS, H. Marx’s Theory of Price and its Modern Rivals. New York: Palgrave Macmillan, 2011, p. 12.
25
da unidade de produção capitalista. Assim, qualquer crítica científica e, portanto, imanente, ao
modo de produção capitalista não pode ignorar tal especificidade. Mas esta crítica não pode,
também, ignorar a prioridade do trabalho e da reprodução social enquanto categorias ontológicas
prioritárias em relação ao capital.41
Como já mencionado, no capítulo IX do livro III d’O Capital Marx descreve um
procedimento para o cálculo da equalização das taxas de lucro por meio do ajuste dos preços. Este
procedimento é analisado formalmente a seguir, procurando nele explicitar a categoria do valor
agregado. Assim, dados,
V i=mi+vi+ci (1)onde,
Vi = valor (V) em tempo de trabalho do produto (i)
mi = mais valia (m) gerada pelo produto (i)
vi = capital variável (v) aplicado para a geração do produto (i)
ci = capital constante (c) aplicado para a geração do produto (i)
definimos a taxa de lucro (r) gerado pelo produto (i) como,
ri=mi
vi+ci
(2)
Sendo, portanto, o lucro gerado pelo produto (i) equivalente a (mi), ou seja,
mi=ri(vi+ci) (3)substituindo (3) em (1)
V i=ri(v i+ci)+(v i+ci) => V i=(r i+1)(vi+ci) (4)
e considerando uma taxa média de lucro (rm) obtida por,
rm=∑ mi
∑ (v i+c i)(5)
define-se os preços como,
pi=(rm+1)(vi+ci) (6)O que deve satisfazer as seguintes condições
∑ pi=∑ V i (7)
∑ r(vi+ci)=∑mi (8)
O cálculo da taxa de lucro de cada produto descrito na expressão (2) indica que no lado
direito da expressão (1) (m), (v) e (c) são descritos em preços. Mas no lado esquerdo desta
expressão Marx considera que (V) é o valor em tempo de trabalho. Considerando o sistema em
41 LUKÁCS, G. Ontologie de l’être social. Le travail, la reproduction. Paris: Éd. Delga, 2011.
26
reprodução simples, como Marx assume, (m) e (v) correspondem a produtos em cujos preços já
estão incluídos os preços dos meios de produção. A variável (V), portanto, não pode expressar o
valor em tempo de trabalho, pois haveria dupla contagem do valor dos meios de produção.
Assumindo que (V) também seja expresso como valor monetário, apenas as variáveis (m) e (v)
podem ser consideradas como valores monetários equivalentes ao tempo de trabalho, na medida em
que elas representam o trabalho diretamente aplicado para produzir (i). Assim, podemos definir o
equivalente monetário do tempo de trabalho (t) diretamente aplicado na produção, ou seja, o valor
agregado, como,
t=m+v (9)Do que resulta que o preço (β) de um meio de produção (z) gerado a partir de um recurso
natural seja,
β z=t z+∑ σ j z e j (10)onde,
σjz = quantidade (σ) do recurso natural (j) empregada para a fabricação do meio de produção (z)
ej = renda (e) gerada pela escassez do recurso natural (j)
Sendo o preço (p) de um meio de produção (y) que emprega o meio de produção (z) em sua
fabricação,
p y=t y+∑ a y z β z (11)onde,
ayz = quantidade (a) do meio de produção (z) empregada para a fabricação do meio de produção (y)
E o preço do produto final (pi) como,
pi=t i+∑ qi y p y (12)onde,
qiy = quantidade (q) do meio de produção (y) empregado para a geração do produto para consumo
final (i)
As expressões (10), (11) e (12) mostram que a renda diferencial (ej) incorporada em (βz) é
incorporada também em (pY) e (pi), assim como o valor agregado pela geração dos meios de
produção (tz) e (ty) é adicionado ao preço do produto de consumo final (pi).
Assim, se em uma economia houver um recurso natural escasso isto implica que
(empregando a forma de expressão de Marx, que não considera as quantidades físicas),
∑ pi=∑V i+∑ e j (13) o que não é consistente com a expressão (7).
No entanto, mesmo na ausência de rendas a expressão (13) não seria consistente com a
expressão (7). Se a variável (V) descrita no lado direito da expressão (7) corresponder ao valor em
27
tempo de trabalho, então a somatória de (Vi) deveria ser a soma do tempo de trabalho diretamente
aplicado (trabalho “vivo”) na produção de (mi), (vi) e (ci). Mas o que Marx considera ser a somatória
de (pi) na expressão (7) é a soma do valor monetário total, obtido pelos preços de (m), (v) e (c), o
que provoca uma dupla contagem dos tempos de trabalho aplicados para a geração dos meios de
produção (c). A expressão (7), portanto, é inconsistente com a expressão (1), da qual ela se origina.
Na expressão (7), portanto, é difícil saber se Marx partiu deliberadamente de preços desde a
expressão (1), o que exigiria que a variável (V) fosse definida desde o início a partir de preços
(diferentemente da forma como a descrevemos). Mas isto impediria de considerar (V) como o valor
dos produtos em tempo de trabalho (como faz Marx) o que tornaria todo o procedimento de pouca
utilidade para esclarecer as relações entre tempo de trabalho e preços, ou seja, de esclarecer a
formação dos preços com base na teoria marxista do valor.
Considerando que a definição de (V) descrita como tempo de trabalho esteja correta, para
que a consistência da expressão (7) fosse assegurada seria necessário considerar a somatória de (pi)
como o equivalente monetário do tempo de trabalho diretamente aplicado no conjunto da economia,
ou seja, como a somatória do valor agregado (t) definido na expressão (9). Para tanto, a somatória
de (pi) incluiria apenas o valor monetário dos produtos para consumo final e dos excedentes de meio
de produção42, debitadas as rendas diferenciais. Neste caso, algo deveria ser incluído na expressão
(7) para especificar a distinção de (pi) em relação a (βz) e (py) descritos nas expressões (10) e (11). A
expressão (13) neste caso adquiriria um caráter macroeconômico, enquanto as expressões (10), (11)
e (12) conservariam a sua natureza microeconômica.
É importante esclarecermos mais detalhadamente a distinção entre esses aspectos micro e
macroeconômicos da formação dos preços. A agregação de valor é um processo micreconômico que
ocorre por meio do trabalho realizado nas unidades de produção. Este é o aspecto microeconômico
da formação dos preços descrito nas expressões (10), (11) e (12), quando se referem as atividades
produtivas consideradas isoladamente. Mas os preços são formados também pela acumulação dos
valores agregados, a qual é um processo macroeconômico que ocorre devido a divisão do trabalho
na sociedade. O resultado deste processo de acumulação é descrito pela expressão (13), a qual é
definida a partir das expressões (10), (11) e (12) consideradas em seu conjunto.
No entanto, na expressão (7), que no procedimento de Marx deveria corresponder a
expressão (13), (pi) é considerado como a somatória do valor monetário total dos produtos e dos
meios de produção, o que provoca uma dupla contagem do valor destes últimos. Em suma, Marx
parece ter ignorado os aspectos macroeconômicos da determinação dos preços, incluindo em seu
42 Como é feito para o cálculo do Produto Interno Bruto (PIB) de um país ou região, conforme IBGE, Sistema de Contas Nacionais. Rio de Janeiro: Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, Contas Nacionais número 56, 2017.
28
procedimento apenas os microeconômicos, o que o levou a uma definição imprecisa do equivalente
monetário do tempo de trabalho.
Na seção seguinte analisamos as condições necessárias para que o valor agregado seja
estritamente equivalente ao tempo de trabalho diretamente aplicado em uma atividade econômica, o
que nos permite aprofundar a análise das relações entre os processos micro e macroeconômicos de
formação dos preços.
O valor agregado e as relações formais entre as determinações micro e macroeconômica dos
preços
Neste livro empregaremos um modelo de formação de preços baseado na programação
linear para analisar as relações entre o nível macroeconômico e microeconômico da determinação
dos preços. A descrição matemática do modelo faz com que este pareça bastante complexo,
(podendo, para muitos leitores, parecer uma indecifrável “sopa de símbolos e letrinhas”).
Alertamos, no entanto, que este modelo é de importância central neste livro. Não apenas para
compreender os processos básicos do desenvolvimento capitalista, como discutido a seguir, mas
também porque ele pode se constituir na estrutura matemática básica de um sistema de planificação
socialista.43 Porém, apesar da (aparente) complexidade da sua estrutura matemática, as concepções
básicas do modelo são bastante simples, como pode ser percebido por meio dos exemplos
numéricos discutidos nas próximas seções deste capítulo. Além disto, faremos a seguir uma
descrição literária do modelo, anteriormente à sua descrição matemática, o que inclusive nos
permite explicitar a sua relação com os aspectos ontológicos discutidos anteriormente.
Na seção anterior foi destacada a importância do trabalho na ontologia do ser social. Como
discutido, uma atividade humana só pode ser considerada trabalho se o produto desta atividade for
útil para suprir alguma necessidade humana, quer ela seja de consumo de produtos finais, quer ela
seja de meios de produção ou de recursos naturais, independentemente das intenções de quem a
executa. Esta necessidade pode ser a de quem realizou a atividade ou a de outro ser humano. Este
último caso é o mais frequente nas sociedades modernas. Assim, pode-se definir como tempo de
trabalho socialmente necessário aquele que é estritamente suficiente para satisfazer as necessidades
da sociedade.
Fundamentalmente o modelo permite relacionar o tempo de trabalho socialmente necessário
aplicado em certo ciclo de produção e o valor monetário agregado neste ciclo. No modelo, o tempo
de trabalho socialmente necessário é o que é exigido para que a produção corresponda estritamente
43 Esta questão é discutida no terceiro capítulo por meio de exemplos numéricos simples que permitem uma fácil compreensão da estrutura matemática do modelo.
29
à demanda dos produtos de consumo final, meios de produção e recursos naturais. O tempo de
trabalho socialmente necessário, portanto, é aquele em que a reprodução material da sociedade
ocorre sem falta nem excesso de produtos, o que assegura a sua estabilidade. O tempo de trabalho
socialmente necessário é o que define o “valor” da produção. No conjunto da economia, assim, o
valor é definido em função da demanda dos produtos de consumo final e pelos meios de produção e
recursos naturais disponíveis, gerados a partir de um dado conjunto de condições técnicas. Esta
relação entre o valor e as condições que o definem é expressada formalmente por uma função
matemática denominada função de produção.
A partir da função de produção que define o valor em tempo de trabalho socialmente
necessário é deduzida uma função que fornece o valor monetário agregado em determinado período
por meio da definição dos preços dos produtos para consumo final e dos meios de produção, assim
como das rendas geradas pela escassez de recursos naturais. Basicamente, esta dedução pode ser
realizada porque a formação do valor agregado corresponde à acumulação do valor em tempo de
trabalho aplicado para a geração dos meios de produção e dos produtos para consumo final. Um
exemplo prático pode contribuir para o entendimento deste processo de agregação de valor. Assim,
vamos supor que um produtor de leite vende seu produto a uma fábrica de queijo por determinado
preço. O preço do queijo produzido por uma fábrica que compra o leite deste produtor é definido a
partir do tempo de trabalho aplicado para a produção do queijo somado ao preço do leite. A
diferença entre o preço do queijo e o do leite é o valor agregado (pela fabricação do queijo). É
importante salientar, assim, que o valor agregado é o equivalente monetário ao tempo de trabalho
diretamente aplicado na produção (no exemplo, apenas o tempo de trabalho dos operários que
produziram o queijo). No caso dos recursos naturais escassos, o seu preço é definido pelo tempo de
trabalho diretamente aplicado para explorá-lo acrescido de um valor monetário denominado renda.
Esta renda é definida pelo fato da escassez de recursos naturais exigir que a produção seja gerada
por técnicas que empregam menos meios de produção (permitindo a economia de recursos
naturais), o que faz com que mais trabalho tenha que ser aplicado. A renda gerada pela escassez de
recursos naturais, portanto, é o equivalente monetário do tempo de trabalho a mais que teve que ser
aplicado devido a escassez do recurso. Enfim, a relação do surgimento de rendas com a escassez de
recursos naturais é apenas uma simplificação do modelo na medida em que qualquer restrição à
aplicação de técnicas que proporcionam maior produtividade do trabalho (e que levem a adoção de
técnicas que proporcionam menor produtividade) gera renda. A agregação de valor a partir das
rendas e o fato delas poderem ser geradas por qualquer condição específica de produção implica
que elas possuem uma influência generalizada sobre os preços, e não apenas sobre os preços dos
30
produtos que dependem diretamente de recursos naturais, como quase sempre é assumido, inclusive
por marxistas.44
A função de produção que determina o valor em tempo de trabalho socialmente necessário é
denomina de problema primal do modelo. Matematicamente, ele consiste em encontrar as técnicas e
as quantidades de produto que minimizam o tempo de trabalho, de forma a satisfazer a demanda de
produtos, considerando os meios de produção necessários e a disponibilidade de recursos naturais,
dado um conjunto de condições técnicas. O problema primal deste modelo é formulado como,
Minimizar ∑ c ilqi
l+∑ c zx mz
x+∑ cns in
s+∑ cns I n
s (14) sujeito às restrições
∑ qil≥ Di (15)
∑mzx−∑ ai z
l qil ≥ M z (16)
∑ ins−∑ gi n
s qil ≥ En (17)
∑ I ts≥vn En (18)
∑ σ jzx mz
x+∑ b jns in
s+∑ b jns I n
s≤R j . (19)onde temos,
c il = custo (c) em tempo de trabalho necessária por unidade do produto (i) no tempo (t)
qil = quantidade (q) do produto (i) fabricado no tempo (t).
czx = quantidade (c) de trabalho necessário por unidade de meio de produção cíclico (z)
produzido com a técnica (x).
mzx = quantidade (m) do meio de produção cíclico (z) gerado com a técnica (x)
Mz = meio de produção cíclico (z) gerado para o crescimento econômico (reprodução ampliada;
reprodução simples Mz = 0)
ins = quantidade (i) do meio de produção multicíclico (n) consumido em vários ciclos de produção
gerado com a técnica (s) a ser reposta anualmente
En = quantidade excedente (E) do meio de produção multicíclico (n) a ser reposta por ciclo de
produção, necessária para o crescimento econômico (reprodução simples En = 0)
I ns = quantidade (I) do meio de produção multicíclico (n) gerado com a técnica (s) para o
crescimento econômico (reprodução simples: En = 0 => I ns = 0)
44 Como mostrado por SILVA NETO, B. A promoção do desenvolvimento sustentável e a teoria marxista dos preços. A importância das rendas diferenciais na teoria dos preços de Marx. Desenvolvimento em Questão, ano 16, número 44, p. 9-41, jul/set 2018.
31
vn = ciclos de vida útil (v) do meio de produção multicíclico (n)
Di = quantidade demandada (D) de produto (i)
aizl = quantidade (a) do meio de produção cíclico (z) necessária para produzir uma unidade do
produto (i)
gi ns = quantidade (g) do meio de produção cíclico (n) necessária para produzir uma unidade do
produto (i)
σ jzx = quantidade σ de recurso natural (j) necessário para a produção do meio de produção
cíclico (z) com a técnica (x)
b jns = quantidade (b) de recurso natural (j) necessário para a produção do meio de produção
multicíclico (n) com a técnica (s)
R j = quantidade máxima (R) a ser utilizada do recurso natural (j)
O problema dual45 de encontrar os preços dos produtos e dos recursos que maximizam o valor
agregado considerando a demanda de produtos, a disponibilidade de recursos e as condições
técnicas de produção, pode ser formulado como,
Maximizar ∑ Di pi+∑ M z pz+∑ En pn+∑ vn En pt−∑ R j r j (20) sujeito às restrições
pi−∑ azil pz−∑ gn
s pn ≤ cil. (21)
pz−∑ σ zjx r j≤ c z
x (22)
pn−∑ b jns r j≤cn
s (23)
pt−∑ b jns r j≤cn
s (24) onde, além das variáveis do problema primal, já descritas, temos,
pi= preço do produto para consumo final (i).
p z= preço do meio de produção cíclico (z)
pn = preço do meio de produção multicíclico (n) (calculado a partir da sua reposição)
pt= preço do meio de produção multicíclico (t) (calculado a partir do seu total)
r j = renda gerada pela escassez do recurso natural (j).
Evidentemente, os preços dos meios de produção multicíclico que são repostos (pn) e o
preço do total destes mesmos meio de produção (pt) são os mesmos, sendo que as expressões (23) e
(24) definem os mesmos preços.
45 No apêndice é apresentada a forma como o problema dual é deduzido do problema primal, assim como umadiscussão mais detalhada do seu significado matemático e no modelo aqui apresentado.
32
De acordo com o teorema da dualidade, com as soluções ótimas temos,
Min .∑ c il qi
l+∑ c zx mz
x+∑ cns in
s+∑ cns I t
s=Max .∑ Di pi+∑ M z pz+∑ En pn+∑ vn En pt−∑ R j r j (25)Considerando que as expressões (21) a (24) nas condições técnicas que satisfazem a
expressão (25) se tornam igualdades, isto faz com que elas correspondam a uma versão das
expressões (10), (11) e (12) (a diferença é que a expressão (11) discrimina os meios de produção
destinados a fabricação de outros meios de produção em relação aos meios de produção destinados
a fabricação de produtos de consumo final, descritos na expressão (12)). Assim, convertendo a
expressão (25) para a notação de Marx, na qual as quantidades e condições técnicas não são
consideradas explicitamente, temos,
∑ V i=∑ pi−∑ e j (26)obtendo-se assim a expressão (13).
As expressões (21) a (24) descritas no problema dual, macroeconômico, de formação de
preços, consideradas isoladamente podem ser convertidas na equação usualmente empregada para,
microeconomicamente, calcular o valor agregado nas unidades de produção, bastando para isto
nelas considerar as quantidades do produto. Asim, considerando a expressão (21), o valor agregado
pode ser calculado por meio da sua multiplicação pela quantidade produzida (Q), ou seja,
VA=Qcil=Q( pi−∑ azi
l pz−∑ gns pn) (27)
No conjunto da economia, a quantidade total dos meios de produção que requerem apenas
um ciclo para serem consumidos deve, evidentemente ser produzida a cada ciclo, assim como a
proporção do total em relação à vida útil dos meios de produção que requerem mais de um ciclo de
produção. Mas, evidentemente que em uma unidade de produção não é possível repor apenas uma
parte dos meios de produção que requerem mais de um ciclo para serem consumidos. Assim, é
necessário considerar a depreciação no ciclo sofrida por tais meios de produção. Quando a
expressão (27) é considerada de ponto de vista microeconômico, portanto, os meios de produção
correspondem ao valor dos que são consumidos no ciclo (“consumo intermediário” (CI)) e a
“depreciação” (D) ao valor dos que são consumidos em vários ciclos de produção dividido pela sua
vida útil. Assim, os meios de produção cíclicos na expressão (27) tornam-se,
Q(∑ azil pz)=CI (28)
E os meios de produção multicíclicos em,
Q(∑ gns pn)= D (29)
E considerando, também na expressão (27), um “produto bruto” (PB) definido como,
Q pi=PB (30)Substituindo (28), (29) e (30) em (27) obtém-se a expressão que é empregada para o cálculo
do valor agregado nas unidades de produção,
33
VA=PB− CI − D (31)
Isto demonstra que, da mesma forma que nas condições definidas pela expressão (25),
segundo a qual o valor agregado no conjunto da economia é o equivalente monetário do tempo de
trabalho socialmente necessário à produção, o valor agregado descrito na expressão (31) é o
equivalente monetário do tempo de trabalho dispendido nas atividades de uma unidade de produção.
A formação dos preços por meio da equalização das taxas de lucro não pode ocorrer de
acordo com o problema dual do modelo apresentado. De acordo com as expressões (21) a (24),
neste problema não é possível definir preços que impliquem em tempo de trabalho superior ao
aplicado na atividade. Isto impediria que, após o processo de equalização, as atividades com
composição orgânica maior, isto é, que empregam relativamente mais capital constante do que
capital variável, possam gerar rendas de forma a compensar as rendas “negativas” geradas pelas
atividades com composição orgânica do capital menor, como ocorre no processo de equalização.
Por outro lado, as restrições do problema primal não podem ser violadas, na medida em que elas
descrevem as condições técnicas e os recursos disponíveis para a reprodução material da sociedade.
Ocorre que, de acordo com o teorema fundamental da programação linear, a solução de um modelo
de programação linear que satisfaz a expressão (27) é única, salvo exceções muito específicas46. Em
outras palavras, só pode haver um sistema de preços que assegura condições estáveis para a
reprodução material da sociedade. De um ponto de vista econômico, isto pode ser explicado pelo
fato do preço de produção de um produto corresponder ao maior valor em tempo de trabalho
necessário para gerar a unidade de produto mais cara (em tempo de trabalho), mas ainda necessária
para que a oferta corresponda estritamente à demanda (estabelecida anteriormente por processos
extraeconômicos, principalmente a luta de classes), assegurando assim a reprodução material da
sociedade de forma estável.47 Preços mais (menos) elevados do que os preços de reprodução
incitarão os produtores a gerar quantidades maiores (menores) de produto do que a necessária à
reprodução social, provocando perturbações neste processo.
Assim, qualquer alteração nos preços definidos pela solução ótima do modelo implica que as
condições para uma reprodução material estável da sociedade não podem mais ser asseguradas. No
caso do ajuste dos preços decorrente do processo de equalização das taxas de lucro, isto pode ser
explicado pelo fato de tal ajuste permitir apenas que o total do produto bruto seja conservado e não
o do valor agregado, o que faz com que, ao longo do processo de equalização, tais preços se
diferenciem do valor em tempo de trabalho que os fundamenta, mesmo na ausência de rendas. Isto
46 Isto ocorre se, no problema primal, o vetor definido por uma restrição ativa for paralelo ao vetor da função a serminimizada. Mas as soluções múltiplas também neste caso são incompatíveis com a equalização das taxas de lucro.
47 A relação entre a explicação matemática e a econômica é discutida no apêndice.
34
implica que a equalização das taxas de lucro não pode resultar em preços de reprodução, resultando
na formação de preços que induzem a escolha de técnicas nas unidades de produção incompatíveis
com as decisões coletivas sobre as riquezas, definidas no capitalismo pela luta de classes. É
importante salientar que a compatibilidade do modelo com decisões tomadas no conjunto da
sociedade por processos de caráter essencialmente político (luta de classes) é assegurada pelo fato
de que as riquezas materiais representadas por (D), (M), (E) e (R) serem variáveis independentes
(neste sentido, é importante salientar que (R) representa o fluxo por ciclo de exploração dos
recursos naturais e não a sua disponibilidade absoluta). Esta questão é analisada de forma mais
detalhada na terceira seção deste artigo. Algumas implicações da unicidade dos preços de
reprodução serão ilustradas por meio de um exemplo numérico apresentado a seguir.
Exemplo numérico 1: a equalização das taxas de lucro em condições homogêneas de produção
Neste exemplo, as condições iniciais do processo de equalização foram definidas aplicando-
se o modelo geral apresentado anteriormente, a partir das quais foram elaborados esquemas de
reprodução em riquezas (quantidades físicas), tempo de trabalho e valores monetários. Após, a
partir das condições iniciais definidas pelo modelo foram calculados dois ciclos de equalização das
taxas de lucro.
Para tornar o exemplo o mais simples possível foi considerado que todos os meios de
produção são consumidos no ciclo de produção, sendo homogêneas as condições técnicas para a
geração de cada produto, o que implica que não há escassez do recurso natural (caso contrário a
solução do modelo não seria factível).
No exemplo é representado um sistema econômico cuja produção consiste de dois produtos
para consumo final (c1 e c2) e dois meios de produção (mp1 e mp2). Os meios de produção requerem
um recurso natural para a sua fabricação, o qual, embora não seja escasso, foi considerado para que
a formulação do modelo expresse de forma mais completa a estrutura do modelo geral descrito na
seção anterior. O problema primal do modelo foi formulado como,
Minimizar 8 c1+20 c2+3 mp1+2 mp2 (32)Sujeito às restrições
c1≥1000 (33)
c2≥500 (34)
−4 c1−2c2+mp1−0.5 mp2≥0 (35)
35
−3 c1−c2−0.2 mp1+mp2≥0 (36)
mp1+mp2≤12500 (37)
O problema dual fornece os preços dos produtos de consumo final (pc1 e pc2) e dos meios de
produção (pm1 e pm2), assim com as rendas geradas pelo recurso natural (e). O problema dual é
formulado como,
Maximizar 1000 pc1+500 pc2+0 pmp1+0 pmp2−12500e (38)Sujeito às restrições
pc1−4 pmp1−3 pmp2≤8 (39)
pc2−2 pmp1−pmp2≤20 (40)
pmp1−0.2 pmp2−e≤3 (41)
−0.5 pmp1+pmp2−e≤2 (42)
A partir dos resultados obtidos pelo problema primal foi elaborado o esquema de reprodução
do sistema econômico em riquezas (quantidades físicas), conforme mostra a tabela 1. Observa-se
nesta tabela que o recurso natural não exige nem tempo de trabalho, nem meios de produção para
ser gerado. Isto significa que esta linha da tabela mostra a quantidade de recurso natural a ser
empregada na fabricação dos meios de produção, mas que ainda não foi extraída da natureza pelo
trabalho.
A partir dos resultados obtidos pela solução primal do modelo foi elaborado o esquema de
reprodução do sistema em tempo de trabalho, mostrado na tabela 2.
Tabela 1: Reprodução econômica em riquezas
Quantidade
Recurso natural 12.500Meio de produção 1 7.500 1.500 7.500 22.500Meio de produção 2 5.000 2.500 5.000 10.000Produto de consumo 1 4.000 3.000 1.000 8.000Produto de consumo 2 1.000 500 500 10.000Subtotal 12.500 7.500 5.000Excedente 0 0 0Total 12.500 7.500 5.000 50.500Fonte: elaborado pelo autor
Recurso natural
Meio de produção 1
Meio de produção 2
Tempo de trabalho
36
A partir dos preços obtidos pela solução do problema dual, os quais foram multiplicados
pelas quantidades mostradas na tabela 1, foi elaborado o esquema de reprodução do sistema em
valores monetários, mostrado na tabela 3.
Observa-se que nas tabelas 1 e 2 não há um equivalente à soma do produto bruto
apresentado na tabela 3. No caso do esquema apresentado na tabela 1, isto se deve ao fato dos seus
valores estarem expressos em riquezas, as quais são incomensuráveis entre si. No caso da tabela 2,
o total do tempo de trabalho de cada atividade poderia ser multiplicado pela quantidade física do
produto, mas evitamos fazê-lo porque isto poderia ser confundido com o valor monetário dos
produtos. Mesmo no caso da tabela 3 a soma do produto bruto incluindo os meios de produção não
faz sentido, na medida em que estes seriam contabilizados duplamente, pois o esquema representa o
conjunto da economia.
Observa-se nas tabelas 1, 2 e 3 que o tempo de trabalho aplicado diretamente para a geração
de cada produto e o valor monetário por ele agregado são quantitativamente equivalentes, do que
resulta que os totais em tempo de trabalho mostrados nas tabelas 1 e 2 sejam também equivalentes
ao total do valor agregado mostrado na tabela 3. As tabelas 1, 2 e 3 descrevem as condições iniciais
a partir das quais foi simulado um processo recursivo de equalização das taxas de lucro, de acordo
Tabela 2: Reprodução em tempo de trabalho
Recurso natural
Recurso natural 0Meio de produção 1 0 3.000 22.500Meio de produção 2 0 7.500 10.000Produto de consumo 1 12.000 6.000 8.000Produto de consumo 2 3.000 1.000 10.000Subtotal 22.500 10.000Excedente 0 0 0Total 0 22.500 10.000 50.500Fonte: elaborado pelo autor
Meio de produção 1
Meio de produção 2
Tempo de trabalho diretamente aplicado
Tabela 3: Reprodução econômica em valores monetários
Recurso natural 0,00Meio de produção 1 0,00 5.833,33 28.333,33 22.500,00Meio de produção 2 0,00 9.444,44 19.444,44 10.000,00Produto de consumo 1 15.111,11 11.666,67 34.777,78 8.000,00Produto de consumo 2 3.777,78 1.944,44 15.722,22 10.000,00Subtotal 0,00 28.333,33 19.444,44Excedente 0,00 0,00 0,00Total 0,00 28.333,33 19.444,44 98.277,78 50.500,00Fonte: elaborado pelo autor
Recurso natural
Meio de produção 1
Meio de produção 2
Produto bruto
Valor agregado
37
com as expressões (1) a (6), de forma a satisfazer as condições descritas nas expressões (7) e (8).
Neste processo, os valores dos meios de produção (c), dos produtos consumidos pelos trabalhadores
(v) e pelos capitalistas (m) são expressos em valores monetários obtidos por meio dos preços que
deram origem a tabela 3. Os cálculos da equalização das taxas de lucro aqui mostrados foram,
portanto, efetuados em preços desde a condição inicial, sendo eliminadas as inconsistências
observadas anteriormente na obtenção da expressão (7) a partir da (1). O cálculo do valor agregado
foi introduzido neste procedimento para analisar o comportamento dos valores monetários em
relação ao valor em tempo de trabalho. Os preços obtidos nas condições iniciais são ajustados no
primeiro ciclo de equalização, com os novos preços dos meios de produção passando a determinar
os preços dos produtos de consumo no segundo ciclo.
O ajuste dos preços obtido no primeiro ciclo de equalização é mostrado na tabela 4.
Observa-se nesta tabela que a equalização da taxa de lucro que ocorre no ciclo de produção permite,
efetivamente, que cada capitalista obtenha um lucro estritamente proporcional ao capital investido,
com os desvios dos produtos brutos criados pela equalização se anulando. Em outras palavras, há
um efetivo processo de equalização em cada ciclo, o qual respeita as condições enunciadas por
Marx relativas a equivalência entre o produto bruto antes proporcionado pelas atividades antes e
após a equalização.
A tabela 5 apresenta os resultados obtidos no segundo ciclo de equalização.
Tabela 4: Ajuste dos preços no primeiro ciclo de equalização
TotalProduto 1.000,00 500,00 7.500,00 5.000,00Preços antes da equalização 34,78 31,44 3,78 3,8889Valor total (produto bruto) 34.777,78 15.722,22 28.333,33 19.444,44 98.277,78Capital constante 26.777,78 5.722,22 5.833,33 9.444,44Valor agregado 8.000,00 10.000,00 22.500,00 10.000,00 50.500,00Capital variável 4.000,00 5.000,00 11.250,00 5.000,00Lucro 4.000,00 5.000,00 11.250,00 5.000,00 25.250,00Capital total 30.777,78 10.722,22 17.083,33 14.444,44Taxa de lucro 13,00% 46,63% 65,85% 34,62%Taxa de lucro média 34,58%Preço após equalização 41,42 28,86 3,07 3,8877Valor monetário 41.419,47 14.429,53 22.990,05 19.438,74 98.277,78Valor antes – após eq. 6.641,69 -1.292,70 -5.343,29 -5,71 0,00Composição orgânica 6,69 1,14 0,52 1,89Fonte: elaborado pelo autor
Produto de consumo final 1
Produto de consumo
final 2Meio de
produção 1Meio de
produção 2
38
Observa-se na tabela 5 que as taxas de lucro obtidas a partir dos preços dos meios de
produção ajustados no primeiro ciclo de equalização não são iguais, devendo o ajuste dos preços ser
repetido para que cada capitalista obtenha um lucro proporcional ao seu capital, sendo que a cada
ciclo os desvios dos produtos brutos provocados pela equalização se anulam. Como resultado disto,
o produto bruto (98.277,78) se mantém inalterado ao longo dos ciclos.
Ocorre que, como não há alteração das quantidades produzidas e nem das técnicas
utilizadas, o valor em tempo de trabalho permanece constante ao longo de todo o processo de
equalização. Este valor, fornecido pela solução do modelo, é equivalente ao total do valor agregado
mostrado na tabela 4 (o mesmo mostrado nas tabelas 1, 2 e 3). No entanto, o total do valor agregado
mostrado na tabela 5 é diferente do total mostrado na tabela 4 (como descreve a última linha da
tabela 5). O processo de equalização, portanto, gerou um aumento do valor agregado em relação ao
tempo de trabalho. Como o lucro corresponde a 50% do valor agregado (taxa de mais valia de
100%), o aumento do valor agregado faz com que a equalização das taxas de lucro não permita
conservar a massa de lucro, como pode ser observado comparando as tabelas 4 e 5. Observa-se
também nestas tabelas que a soma do valor agregado de cada atividade é igual a soma do valor
monetário total (produto bruto) dos produtos para consumo final. Calculando o desvio padrão da
composição orgânica das atividades obteve-se 243,49% na situação descrita na tabela 4 e 77,72% na
tabela 5, o que representa uma diminuição da dispersão da composição orgânica do capital de
68,08%, o que indica uma tendência a convergência das composições orgânicas do capital. É
possível, pois, que a equalização das taxas de lucro seja provocada por esta convergência. Como já
observado, o produto bruto é o mesmo antes e após o processo de equalização permanecendo o
Tabela 5: Resultados obtidos no segundo ciclo de equalização das taxas de lucro
TotalProduto 1.000,00 500,00 7.500,00 5.000,00Valor total (produto bruto) 41.419,47 14.429,53 22.990,05 19.438,74 98.277,78Capital constante 23.924,60 5.009,21 5.831,62 7.663,35Valor agregado 17.494,86 9.420,31 17.158,43 11.775,39 55.848,99Capital variável 8.747,43 4.710,16 8.579,21 5.887,69Lucro 8.747,43 4.710,16 8.579,21 5.887,69 27.924,50Capital total 32.672,03 9.719,37 14.410,83 13.551,04Taxa de lucro 26,77% 48,46% 59,53% 43,45%Taxa de lucro média 39,69%Preço após equalização 45,64 27,15 2,68 3,79Valor monetário 45.640,16 13.577,16 20.130,76 18.929,70 98.277,78Valor antes – após eq. 4.220,69 -852,36 -2.859,29 -509,04 0,00Composição orgânica 2,74 1,06 0,68 1,30Valor agregado 2º – Valor agregado 1º ciclo 5.348,99Fonte: elaborado pelo autor
Produto de consumo final 1
Produto de consumo
final 2Meio de
produção 1Meio de
produção 2
39
mesmo na tabela 5 em relação ao mostrado na tabela 4. No entanto, apesar da sua conservação, o
produto bruto não equivale ao tempo total de trabalho aplicado no ciclo de produção, embora a
conservação do produto bruto satisfaça a condição descrita na expressão (7), baseada em categorias
microeconômicas, como já salientado. Ora, é justamente o produto bruto que é redistribuído no
processo de equalização e não o valor monetário equivalente ao tempo de trabalho, fornecido pela
soma do valor agregado nas condições iniciais. Isto implica que, apesar da redistribuição do produto
bruto, a soma do valor agregado deixa de ser equivalente ao valor total em tempo de trabalho, assim
como a soma dos lucros deixa de corresponder a soma da mais valia, na medida em que, conforme
proposto por Marx, o lucro é definido por uma taxa de mais valia constante em relação ao valor
agregado. Isto implica na violação da condição descrita na expressão (8).
Como pode-se observar nas tabelas 4 e 5, a equalização das taxas de lucro implicou na
modificação nos preços dos produtos. É interessante, pois, observarmos qual a repercussão de tal
modificação sobre as condições de reprodução material da sociedade, quando esta é expressa em
valores monetários. Para fazer esta análise consideramos os preços obtidos após o primeiro ciclo de
equalização. Estes resultados são mostrados na tabela 6. Porém, para facilitar a comparação com as
condições descritas nesta tabela, anteriormente apresentamos novamente a tabela 3, que mostra as
condições de reprodução em valores monetários anteriormente ao primeiro ciclo de equalização,
mostrando também o valor agregado gerado por atividade.
Como discutido anteriormente, a procura pela maximização do valor agregado implica que
os produtos gerados em condições técnicas eficientes proporcionem um valor monetário equivalente
ao tempo de trabalho nelas aplicado. Isto é o que se observa na tabela 3, na qual o valor agregado
Tabela 3 (repetição): Reprodução do sistema econômico em valores monetários anteriormente ao primeiro ciclo de equalização das taxas de lucro
Valor total
Recurso natural 0,00Meio de produção 1 0,00 5.833,33 28.333,33 22.500,00Meio de produção 2 0,00 9.444,44 19.444,44 10.000,00Produto de consumo 1 0,00 15.111,11 11.666,67 34.777,78 8.000,00
Produto de consumo 2 3.777,78 1.944,44 15.722,22 10.000,00Subtotal 0,00 28.333,33 19.444,44Excedente 0,00 0,00 0,00Total 0,00 28.333,33 19.444,44 98.277,78 50.500,00Fonte: elaborado pelo autor
Recurso natural
Meio de produção 1
Meio de produção 2
Valor agregado
40
por atividade é equivalente ao tempo de trabalho diretamente nelas aplicado (mostrados
anteriormente nas tabelas 1 e 2).
O mesmo não ocorre quando as unidades de produção procuram maximizar sua taxa de
lucro. Como pode ser observado comparando as tabelas 2 e 6, o valor agregado proporcionado por
atividade mostrado na tabela 6 diverge do tempo de trabalho aplicado em cada uma destas
atividades, mostrados na tabela 2 (repetida acima). Neste sentido, é interessante observar que o
produto final 1, que exige menos tempo de trabalho, como mostra a tabela 2, depois do ajuste dos
preços passa a ser a atividade que proporciona o maior valor agregado, como mostra a tabela 6. Esta
divergência ocorre também no total do valor agregado em relação ao valor total em tempo de
trabalho. Estes resultados mostram que a divergência entre o total do valor agregado gerado antes e
depois da equalização das taxas de lucro, observada comparando as tabelas 4 e 5, ocorrem também
entre o valor agregado gerado por cada atividade.
A aplicação da taxa de lucro média para ajustar os preços realizada por Marx no capítulo IX
do livro III d’O Capital, porém, serve apenas para ilustrar as características do processo de
equalização. Eeste procedimento, porém, não deve ser considerado, de forma generalizada, como o
comportamento dos capitalistas, mas como um produto da concorrência entre eles. Marx reconhece
isto quando no capítulo X afirma que, “A realmente difícil questão é esta: como esta equalização
dos lucros em uma taxa geral de lucro é realizada, desde que isto é obviamente um resultado antes
que um ponto de partida?”48
48 “The really difficult question is this: how is this equalization of profits into a general rate of profit brought about,since it is obviously a result rather than a point of departure?”. MARX, K. Capital: A critique of Political Economy.v. III. Ed. por Friedrich Engels. New York: International Publishers, on-line version: Marx.org. 1996, Marxists.org.1999 [1895]. p. 126.
Tabela 6: Reprodução do sistema econômico em valores monetários com os preços definidos após o primeiro ciclo de equalização das taxas de lucro
Valor total
Recurso natural 0,00Meio de produção 1 0,00 5.831,62 22.990,05 17.158,43Meio de produção 2 0,00 7.663,35 19.438,74 11.775,39Produto de consumo 1 0,00 12.261,36 11.663,24 41.419,47 17.494,86
Produto de consumo 2 3.065,34 1.943,87 14.429,53 9.420,31Subtotal 0,00 22.990,05 19.438,74Excedente 0,00 0,00 0,00Total 0,00 22.990,05 19.438,74 98.277,78 55.848,99Fonte: elaborado pelo autor
Recurso natural
Meio de produção 1
Meio de produção 2
Valor agregado
41
Algumas páginas depois, no mesmo capítulo, Marx fornece uma resposta a esta questão ao
afirmar que,
...o capital recua de uma esfera com taxa de lucro menor e invade outra, que gera lucrosmaiores. Mediante esse constante afluxo e influxo ou, em breve, mediante sua distribuiçãoentre as diversas esferas, conforme em uma delas sua taxa de lucro diminua e, em outra,aumente, o capital cria uma relação entre oferta e demanda de tal forma que o lucro médiodas diversas esferas da produção torna-se o mesmo e os valores, por conseguinte, setransformam em preços de produção.49
É interessante, pois, analisarmos as consequências que teriam estas transferências de capital
entre setores de acordo com a taxa de lucro. Observa-se na tabela 5 que as taxas de lucro das
atividades são muito diversas antes da sua equalização. Neste caso os capitais seriam transferidos
das atividades com menor taxa de lucro para as que proporcionam as maiores taxas, até que as
relações entre oferta e demanda levariam ao ajuste dos preços que proporcionaria a mesma taxa de
lucro em todas as atividades. Estas transferências, ao alterar as quantidades produzidas em relação
às apresentadas na tabela 1, provocariam perturbações no processo de reprodução material da
sociedade, tornando-o instável. Por exemplo, considerando a tabela 4, a atração dos investimentos
devido a maior taxa de lucro proporcionada pela geração do meio de produção 1 em detrimento do
produto de consumo 1 criaria um excedente invendável do meio de produção 1, ao mesmo tempo
em que tornaria a quantidade gerada do produto de consumo 1 insuficiente para suprir sua demanda.
Assim, é pela adoção do capital como referência para os investimentos que o sistema capitalista
passa a funcionar em função da própria acumulação de capital em detrimento das necessidades
sociais, ao custo de perturbações no processo de reprodução da sociedade. Isto se torna ainda mais
claro em condições heterogêneas de produção, o que é analisado no segundo exemplo numérico,
discutido a seguir.
Exemplo numérico 2: a equalização das taxas de lucro em condições heterogêneas de
produção, sem escassez de recursos naturais
Na seção anterior foi demonstrado que, mesmo em condições técnicas homogêneas e
considerando apenas meios de produção consumidos no ciclo de produção, o processo de
49 “Now, if the commodities are sold at their values, then, as we have shown, very different rates of profit arise in thevarious spheres of production, depending on the different organic composition of the masses of capital invested inthem. But capital withdraws from a sphere with a low rate of profit and invades others, which yield a higher profit.Through this incessant outflow and influx, or, briefly, through its distribution among the various spheres, whichdepends on how the rate of profit falls here and rises there, it creates such a ratio of supply to demand that the averageprofit in the various spheres of production becomes the same, and values are, therefore, converted into prices ofproduction.”. MARX, K. Capital: A critique of Political Economy. v. III. Ed. por Friedrich Engels. New York:International Publishers, on-line version: Marx.org. 1996, Marxists.org. 1999 [1895]. p. 138.
42
equalização das taxas de lucro implica em uma diferenciação entre o valor agregado e o valor em
tempo de trabalho, os quais são equivalentes quando há uma alocação eficiente dos recursos. Neste
sentido, a adoção da taxa de lucro não pode ser considerada como um critério de decisão eficiente.
Esta implicação adquire pleno sentido em condições heterogêneas de produção.
O valor agregado é um critério que pode tornar as decisões tomadas nas unidades de
produção coerentes com as decisões coletivas que a sociedade toma em relação às suas riquezas.
Vale ressaltar que, como discutido anteriormente, as decisões coletivas possuem um caráter
extraeconômico, sendo definidas nas sociedades capitalistas fundamentalmente pela luta de classes.
Assim, lucros e salários não podem ser considerados de forma estrita como categorias econômicas,
mas como categorias essencialmente políticas que expressam as decisões coletivas, consolidadas
como relações de produção, sobre a distribuição da riqueza social. No modelo apresentado
anteriormente, isto se expressa pelo fato das variáveis relativas as riquezas serem exógenas (as
riquezas no modelo compreende a demanda de produtos finais, o excedente de meios de produção e
o uso dos recursos naturais). No entanto, a adoção das taxas de lucro não necessariamente assegura
a coerência entre as decisões tomadas nas unidades de produção e na sociedade. Em condições
técnicas heterogêneas e na ausência de escassez de recursos naturais as rendas diferenciais nulas
tornam relativamente baixos os preços dos meios de produção cuja fabricação depende de recursos
naturais. Isto tende a tornar eficientes as técnicas que empregam mais meios de produção como
forma de aumentar a produtividade do trabalho, isto é, técnicas que implicam em composições
orgânicas do capital mais elevadas. No entanto, mantida constante a taxa de mais valia, a taxa de
lucro é inversamente proporcional à composição orgânica do capital. Assim, a adoção da taxa de
lucro como critério de decisão nas unidades de produção nestas condições não leva a escolha de
técnicas coerentes com as decisões do conjunto da sociedade.
Para ilustrar este fenômeno, ao exemplo numérico apresentado anteriormente foi adicionada
uma alternativa técnica para cada atividade. O problema primal deste modelo foi formulado como,
Minimizar 8 c11+30 c12+20 c21+40c22+3mp11+6 mp12+2 mp21+8 mp22 (43)
Sujeito às restriçõesc11+c12≥1000 (44)
c21+c22≥500 (45)
−4 c11−c12−2 c21+c22+mp11+mp12−0.5 mp21−0.3 mp22≥0 (46)
−3 c11−c12−c21−0.5c22−0.2mp11−0.1 mp12+mp21+mp22≥0 (47)
mp11+0.8 mp12+mp21+0.6 mp22≤12500 (48)
43
O problema dual, obtido a partir do problema primal, é,
Maximizar 1000 pc1+500 pc2+0 pmp1+0 pmp2−12500r (49)
Sujeito às restrições
pc1−4 pmp 1−3 pmp 2≤8 (50)
pc1−pmp 1−pmp2≤30 (51)pc2−2 pmp 1−pmp2≤20 (52)
pc2−pmp 1−0.5 pmp2≤40 (53)
pmp1−0.2 pmp 2−r≤3 (54)
pmp1−0.1 pmp2−0.8 r≤6 (55)
−0.5 pmp 1+ pmp2−r≤2 (56)
−0.3 pmp 1+ pmp2−0.6 r≤8 (57)
Como não há restrição do recurso natural, a solução deste problema é a mesma da mostrada
na seção anterior. Os esquemas de reprodução, tanto em riquezas como em tempo de trabalho e
valores monetários são, portanto, os mesmos mostrados, respectivamente, nas tabelas 1, 2 e 3. Por
outro lado, é importante destacar os resultados econômicos que seriam obtidos em todas as
condições técnicas, independentemente da sua eficiência. Estes resultados são mostrados na tabela
7, tendo sido gerados por meio da aplicação de oito unidades de tempo de trabalho em todas as
atividades. Observa-se nesta tabela que as atividades que aplicam técnicas eficientes geram um
valor agregado equivalente ao tempo de trabalho aplicado (técnicas 1). Isto implica que estas seriam
as técnicas escolhidas se os agentes econômicos procurarem maximizar o valor agregado. Se todas
as unidades de produção fizerem o mesmo, isto tornaria as decisões microeconômicas coerentes
com as tomadas na sociedade, o que permitiria que sua reprodução material pudesse ocorrer de
forma estável. No entanto, observa-se na tabela 7 que são as técnicas não eficientes as que
proporcionam as maiores taxas de lucro. Observa-se também na tabela 7 que a equalização das
taxas de lucro resultou em preços diferentes para o mesmo produto, sendo que os preços variam de
forma inversamente proporcional às taxas de lucro. Isto ocorre devido a consideração de que a
produção por unidade de capital é diferente em cada condição técnica (ao contrário do que parece
estar implícito no procedimento de Marx, na medida em que nele as quantidades físicas não são
consideradas). É interessante que esta disparidade seria acentuada no caso da existência de meios de
produção multicíclicos. A existência de preços diferentes para um mesmo produto faz com que a
44
continuidade do processo de equalização se torne muito difícil de ser simulada, exceto se forem
considerados pressupostos adicionais, como o de que as únicas técnicas empregadas seriam as que
proporcionam os menores preços após o ciclo de equalização das taxas de lucro, o que implicaria no
abandono das técnicas eficientes.
Os resultados mostrados na tabela 7 dizem respeito apenas aos efeitos imediatos da
equalização dos preços que ocorrem diretamente nas unidades de produção. Mas é preciso lembrar
que, além dos seus efeitos sobre o processo microeconômico de formação dos preços, a equalização
das taxas de lucro provoca distorções macroeconômicas entre o valor agregado e o valor em tempo
de trabalho, os quais passam a ser diferentes, o que torna o próprio valor agregado menos eficiente
como critério de decisão. Assim, a adoção da taxa de lucro como critério de decisão nas unidades de
produção provoca um efeito duplamente negativo sobre a alocação dos recursos na sociedade.
Exemplo numérico 3: a equalização das taxas de lucro em condições heterogêneas de
produção e com escassez de recursos naturais
Os resultados discutidos na seção anterior mostram que a adoção da taxa de lucro como
critério de decisão pode ser contraditória com a escolha de técnicas eficientes. A implicação disto é
uma ineficiência na alocação de recursos que provoca perturbações na reprodução material da
Tabela 7: Equalização das taxas de lucro com oito unidades de tempo aplicadas em cada atividade e alternativa técnica, sem escassez do recurso natural
TotalProduto 1,00 0,20 0,40 0,20 2,67 1,33 4,00 1,00Produto bruto 34,78 6,96 12,58 6,29 10,07 5,04 15,56 3,89 95,16Capital constante 26,78 1,53 4,58 1,14 2,07 0,52 7,56 1,13Capital variável 4,00 2,71 4,00 2,57 4,00 2,26 4,00 1,38Capital total 30,78 4,24 8,58 3,72 6,07 2,78 11,56 2,51Renda 0,00 0,00 0,00 0,00 0
Valor agregado 8,00 5,42 8,00 5,14 8,00 4,52 8,00 2,76 49,84Lucro 4,00 2,71 4,00 2,57 4,00 2,26 4,00 1,38Taxa de lucro 13,00% 63,87% 46,63% 69,21% 65,85% 81,33% 34,62% 54,87%
35,48%
41,70 28,75 29,05 25,18 3,09 2,82 3,91 3,40
Valor monetário 41,70 5,75 11,62 5,04 8,23 3,76 15,66 3,40 95,16
6,92 -1,21 -0,96 -1,25 -1,84 -1,27 0,10 -0,49 0,00
6,69 0,57 1,14 0,44 0,52 0,23 1,89 0,82
Fonte: elaborado pelo autor
Produto de consumo final
11
Produto de consumo final 12
Produto de consumo final
21
Produto de consumo final 22
Meio de produção
11
Meio de produção
12
Meio de produção
21
Meio de produção
22
Taxa de lucro médiaPreço após equalização
Valor antes – após equalizaçãoComposição orgânica
45
sociedade. Nesta seção examinaremos como o surgimento de rendas provocado pela escassez de
recursos naturais influencia este processo. Para isto o coeficiente relativo à disponibilidade do
recurso natural descrito nas expressões (43) e (44) foi alterado de 12.500 para 5.000 unidades por
ciclo de produção. Da mesma forma como procedemos na seção anterior, a partir desta alteração
foram obtidos os resultados econômicos proporcionados pela aplicação de oito unidades de tempo
de trabalho em todas as atividades e condições de produção, independentemente destas últimas
serem ou não eficientes. Estes resultados são mostrados na tabela 8.
Como pode ser observado na tabela 8, o surgimento de rendas devido a escassez do recurso
natural impediu que o produto bruto total permanecesse o mesmo após o ciclo de equalização, com
os desvios em relação aos seus valores originais já não mais se anulando (como mostra o total da
penúltima linha da tabela). Isto é explicado pelo fato das rendas não serem preços, mas se
incorporam no preço das atividades de exploração do recurso natural (e a partir disto, em outros
preços). O processo de equalização dos preços, assim, não altera as rendas, provocando distorções
no produto bruto em relação ao tempo de trabalho. Pode-se também observar na tabela 8 que não há
uma correlação clara entre as técnicas eficientes (que proporcionam um valor agregado de oito
unidades monetária por oito unidades de tempo de trabalho) e as taxas de lucro. Nas atividades que
geram meios de produção a maximização da taxa de lucro (mas não o lucro absoluto) levaria a
escolha de técnicas não eficientes. No caso em que as rendas decorrentes da escassez do recurso
Tabela 8: Equalização das taxas de lucro com oito unidades de tempo aplicadas em cada atividade e alternativa técnica, com escassez do recurso natural
Total
Produto 1,00 0,20 0,40 0,20 2,67 1,33 4,00 1,00Preço 67,44 60,00 12,56 14,87Produto bruto 67,44 13,49 24,00 12,00 33,50 16,75 59,49 14,87 241,54Capital constante 94,87 5,49 16,00 4,00 7,93 1,98 25,13 3,77 159,17Capital variável -13,72 4,00 4,00 4,00 4,00 3,87 4,00 3,57Capital total 81,15 9,49 20,00 8,00 11,93 5,85 29,13 7,34Renda 17,57 7,03 26,36 3,95 ,00Valor agregado -27,44 8,00 8,00 8,00 8,00 7,74 8,00 7,15 27,45Lucro -13,72 4,00 4,00 4,00 4,00 3,87 4,00 3,57 13,73Taxa de lucro -16,90% 42,16% 20,00% 50,00% 33,52% 66,12% 13,73% 48,67%
7,94%
Lucro após equal. 6,44 0,75 1,59 0,64 0,95 0,46 2,31 0,58 13,73Lucro pós-antes 20,16 -3,25 -2,41 -3,36 -3,05 -3,41 -1,69 -2,99 ,00
87,60 51,20 53,97 43,18 4,83 4,74 7,86 7,93
87,60 10,24 21,59 8,64 12,88 6,32 31,44 7,93 186,62
20,16 -3,25 -2,41 -3,36 -20,63 -10,43 -28,05 -6,95 -54,91
0,00% 57,84% 80,00% 50,00% 66,48% 33,88% 86,27% 51,33%
Fonte: elaborado pelo autor
Produto de consumo final
11
Produto de consumo final 12
Produto de consumo final
21
Produto de consumo final 22
Meio de produção
11
Meio de produção
12
Meio de produção
21
Meio de produção
22
Taxa de lucro média
Preço após equalizaçãoProduto bruto pós equalizaçãoP. b. pós – antes equalizaçãoComposição orgânica
46
natural são apropriadas pelos capitalistas, estas provocariam “super-lucros” nas atividades que
dependem diretamente do recurso natural. Nestas atividades, os super-lucros incitariam os
capitalistas a intensificar a exploração da natureza, tendendo a provocar desequilíbrios entre a oferta
e a demanda de seus produtos, assim como problemas ambientais. Assim, a escassez de recursos
naturais tenderia a acentuar a ineficiência alocativa da adoção da taxa de lucro como critério de
decisão nas unidades de produção.
A taxa de lucro como critério de decisão no capitalismo
No início do capítulo X do livro I de Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas das
Riquezas das Nações, Adam Smith declara que,
Todas as vantagens e desvantagens de diferentes empregos de trabalho e de estoques[capitais], devem, em uma mesma vizinhança, ser ou perfeitamente igual, ou tender aigualdade. (…) Isto, pelo menos, seria o caso em uma sociedade onde as coisas seguem seucurso natural50
Adam Smith lançava assim, há quase dois séculos e meio, o raciocínio básico que deu
origem ao pressuposto de que a tendência à uniformidade das taxas de lucro proporcionaria uma
alocação eficiente do tempo de trabalho nas sociedades capitalistas. E este pressuposto é tão
arraigado que ele é considerado como um princípio básico, quase que uma trivialidade, por
correntes de pensamento econômico tão díspares como a marxista, a neoclássica e a neoricardiana.
Neste sentido Marx afirma que,
(…) não há dúvida, entretanto, que de fato, ignorando não essenciais, acidentaiscircunstâncias que cancelam-se umas às outras, nenhuma variação na média da taxa de lucroexiste entre diferentes ramos da indústria, e isto não pode existir sem abolir por inteiro osistema capitalista de produção.51
E não deixa de ser curioso que Joan Robinson tenha afirmado que “se a taxa de lucro não for
uniforme, os preços variariam amplamente, como eles normalmente fazem”.52
A equalização das taxas de lucro, portanto, possui um caráter paradigmático na ciência
econômica. No entanto, análises empíricas da economia de um grande número de países não
permitiram evidenciar estatisticamente qualquer tendência das taxas de lucro à equalização.53 Além
disto, muitos estudos empíricos têm demonstrado a inexistência de qualquer influência da
50 SMITH, A. An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations. Volume I. Oxford: Oxford University Press, 1976 [1776], p. 152.
51 MARX, K. Capital. A critique of Political Economy. Volume I. Nova York: International Publishers, originalmentepublicado em 1867, on-line version: Marx.org. 1996, Marxists.org. 2010, p. 252.
52 ROBINSON, J. Further Contributions to Modern Economics. London : Blackwell, 1981, p. 190.53 FARJOUN, E.; MARCHOVER, M. Laws of Chaos: A Probabilistic Approach to Political Economy. London: Verso
Editions, 1983; ZACHARIAH, D. (June 2006) Labour value and equalization of profit rates: a multi-country study. Indian Development Review, (4), June 2006.
47
equalização das taxas de lucro sobre os preços.54 Ao contrário, observa-se uma alta correlação das
taxas de lucro com a composição orgânica do capital.55
Os resultados obtidos neste trabalho indicam que esta realidade não poderia ser diferente. De
acordo com esses resultados, o processo de equalização das taxas de juros, mesmo em uma
hipotética situação ideal, provocaria perturbações na reprodução material da sociedade e não a sua
estabilização. No entanto, a adoção da taxa de lucro como critério de decisão depende do contexto
social em que ela ocorre. Por exemplo, um elevado grau de organização dos trabalhadores pode
induzir a adoção de técnicas visando substituir trabalho por meios de produção na economia,
aumentando a composição orgânica do capital. Isto pode induzir as empresas a adotar a
maximização do lucro absoluto e não a taxa de lucro como critério de decisão. Como o lucro
absoluto é uma parte constante do valor agregado, a sua maximização implica na maximização do
valor agregado. Neste ponto é interessante salientar que uma generalizada minimização dos custos
para maximizar o lucro absoluto implica em minimizar o tempo de trabalho socialmente necessário,
aumentando globalmente a composição orgânica do capital, o que provocaria a queda das taxas de
lucro. Enfim, ao mesmo tempo em que a concorrência leva os capitalistas a poupar meios de
produção, ela induz a procura de quase-rendas por meio de inovações tecnológicas que aumentem a
produtividade do trabalho, que em geral provocam um aumento do uso de meios de produção. E o
surgimento destas inovações pode ser altamente estimulado em um contexto de fortalecimento dos
trabalhadores na luta de classes provocado pela sua organização, a qual, por sua vez, pode ser
favorecida por conjunturas de crescimento econômico que tendem a elevar a demanda de força de
trabalho. Esta pode ser uma razão da estabilidade do crescimento econômico e da acumulação de
capital apresentada por países da Europa Ocidental nos trinta anos que sucederam a Segunda Guerra
Mundial. Neste período, por força da organização dos trabalhadores, os ganhos de produtividade
decorrentes de inovações tecnológicas baseadas fundamentalmente na eletricidade e no motor à
combustão eram redistribuídos em proporções mais ou menos estáveis entre capitalistas e
trabalhadores. A progressiva queda da taxa de lucro levou ao fim deste período de relativa
estabilidade do capitalismo, dando lugar a um novo regime de acumulação, o neoliberalismo.56
Os resultados descritos nesta seção também são compatíveis com a dinâmica desencadeada
pelo neoliberalismo, estabelecida após a consolidação da sua hegemonia nos países capitalistas mais
ricos na década de 1980. O neoliberalismo permitiu uma expressiva recuperação das taxas de lucro
54 COCKSHOTT, P. Competing theories: Wrong or Not Even Wrong? Vlaams Marxistisch Tijdschrift, 45(2): 97-103, 2011.
55 COCKSHOTT P. W., COTTRELL, A.; MICHAELSON, G. J. Testing Labour Value Theory with input/output tables. Department of Computer Science, University of Strathclyde, 1993
56 HUSSON, M. Misère du capital: Une critique du néoliberalisme. Paris: Syros, 1996. Disponível em: http://hussonet.free.fr/mdk.pdf.
48
ao estabelecê-la como o principal critério de investimento, do que resultou um grande crescimento
do setor financeiro. Este restabelecimento ocorre, porém, às custas de uma extrema instabilidade do
capitalismo contemporâneo, acompanhada por uma severa concentração da renda e o desmonte dos
serviços públicos, os quais restringem a demanda. Desde os anos 1990, assim, o capitalismo passa a
sofrer crises cada vez mais profundas sem jamais conseguir atingir os níveis de crescimento
anteriores ao neoliberalismo.57
Todos esses fenômenos decorrentes da adoção de diferentes critérios de decisão de acordo
com o contexto das economias capitalistas possuem efeitos sistêmicos que não se compensam entre
si. Ficam claras, assim, as dificuldades que se colocam para a compreensão da dinâmica do
capitalismo por meio do pressuposto de uma plácida tendência à uniformização da taxa de lucro e,
assim, a um estado de equilíbrio único e bem definido. Ao contrário, como mostram os resultados
obtidos neste trabalho, as perturbações provocadas pela equalização das taxas de lucro sobre a
reprodução material da sociedade devem ser consideradas como um fenômeno que confere
instabilidade e certa imprevisibilidade ao desenvolvimento capitalista. Assim, para a compreensão
desse desenvolvimento é mais coerente considerá-lo como um processo complexo, desigual,
inevitavelmente sujeito a períodos de crescimento, estagnação e crise. Justamente como ele é
observado empiricamente, o que, como muitos estudos sobre sistemas complexos têm amplamente
demonstrado, inclusive os realizados por autores marxistas58, não implica que as relações de causa e
efeito subjacentes as manifestações empíricas do desenvolvimento capitalista não possam ser
objetivamente identificadas.
Considerações metodológicas relativas à equalização da taxa de lucro n’O Capital
No capítulo IX do livro III d’O Capital, Marx parece identificar no próprio capital a
capacidade de transformar valores em preços por meio da redução do trabalho a um mero meio de
produção. Sem dúvida esta redução é uma realidade que se opera no capitalismo. Como discutido
anteriormente, é por meio dela que, nas condições históricas do capitalismo, a atividade produtiva
do ser humano se torna trabalho alienado. Nas condições impostas pelas relações de produção
capitalistas, o trabalhador deixa de identificar na sua própria atividade a origem das riquezas por ele
produzidas, atribuindo-a ao capital. Mas nem por isto o trabalho, ontologicamente, deixa de ser
parte da vida humana, aquela voltada a reprodução da sociedade por meio da qual ela assegura a sua
57 HUSSON, M. Misère du capital: Une critique du néoliberalisme. Paris: Syros, 1996. Disponível em:http://hussonet.free.fr/mdk.pdf.
58 HARVEY, D.L.; REED, M. Social science as the study of complex systems. In KIEL, D. L. & ELLIOT, E. (ed.)Chaos theory in the social sciences: foundations and applications. Michigan, University of Michigan Press, p. 295-323, 2004.
49
própria reprodução. Ontologicamente, portanto, o ser humano não pode ser reduzido a um simples
meio de produção, embora ele historicamente o seja no capitalismo. É este reconhecimento de que a
produção é sempre uma atividade humana e não dos meios de produção por ela gerados que é a base
da teoria do valor de Marx. E uma implicação incontornável desta teoria é que é por meio da
agregação de valor pelo trabalho que se formam os preços. Aliás, sem reconhecer esta implicação a
origem da mais valia seria incompreensível, impossibilitando uma crítica objetiva, cientificamente
fundamentada, da economia política burguesa (ou da “ciência econômica” burguesa).
É interessante salientar que a forma como foi tratada a transformação de valores em preços
no livro III d’O Capital contrasta com as elaboradas considerações sobre a dinâmica capitalista
costumeiramente realizadas por Marx. Por exemplo, no capítulo V do livro I d’O Capital, ao
analisar a natureza do dinheiro, Marx59 identifica as contradições da fórmula geral da acumulação
capitalista, D-D’, tomando com base as fórmulas M-D-M e D-M-D’ (sendo M a mercadoria; D o
dinheiro e D’ o dinheiro acrescido de mais valia). É por meio dessa análise que Marx critica a
concepção de que a mais valia surgiria da troca, identificando suas contradições. Assim, ao mesmo
tempo em que Marx reconhece que a fórmula D-D’ é a que melhor expressa o resultado das relações
sociais que geram a dinâmica capitalista, ele não deixa de considerá-la como uma ilusão (termo
explicitamente empregado por Marx) contraditória com uma compreensão objetiva do capitalismo.
Esclarecida esta ilusão é que ele então se dedica a analisar as origens da mais valia na III e na IV
seções do livro I d’O Capital.
Esta postura metodológica parece estar muito menos presente no livro III d’O Capital. Por
exemplo, ao longo da exposição da formação da renda fundiária na parte VI Marx menciona sem
ressalvas uma “produtividade do capital” que nos parece uma incompreensível concessão ao
linguajar da economia vulgar, da qual Marx foi um severo crítico. Outro exemplo é o capítulo X no
qual, conforme já mencionado anteriormente, Marx procura elucidar por meio de quais processos
econômicos a equalização das taxas de lucro poderiam ser concretizar. As evidentes dificuldades
encontradas por Marx ao tratar essa questão provavelmente teriam feito com que um autor
extremamente rigoroso como ele revisasse a pertinência da consideração da equalização das taxas
de lucro como um processo que pode chegar a seu termo nas condições definidas no capítulo IX.
Talvez essa aparente falta de rigor que se observa no livro III d’O Capital possa ser explicada pelo
fato desta obra ter sido editada por Engels a partir de rascunhos e notas dispersas deixadas por
Marx. Esses materiais provavelmente representavam apenas uma canhestra preparação de uma obra
que restou inacabada. Além disto, sabe-se que Marx já havia preparado boa parte dos livros II e III
59 MARX, K. Capital. A critique of Political Economy. Volume I. Nova York: International Publishers, originalmentepublicado em 1867, on-line version: Marx.org. 1996, Marxists.org. 2010.
50
d’O Capital anos antes da publicação do livro I.60 Isto indica que Marx, provavelmente, estava tão
pouco satisfeito com o que escreveu nos livros II e III que adiou a sua publicação durante décadas
até dela desistir definitivamente, entregando o material para Engels para que este dele fizesse
“alguma coisa”.61 E Engels, devido à precariedade do material recebido, só mais de uma década
após a morte de Marx conseguiu completar sua edição, levando nove anos apenas para o livro III.
Há, portanto, fortes evidências de que o conteúdo do material recebido por Engels não pode ser
considerado como representativo do pensamento de Marx.
Vale salientar que, ao longo de toda a sua obra, Marx critica reiteradamente o caráter
anárquico do capitalismo, apontando que a origem das suas contradições mais perniciosas está no
fato de que nele a produção é determinada pela acumulação de capital e não pelas necessidades
sociais. Os resultados obtidos neste trabalho reforçam esta tese ao evidenciar que, se por um lado é
a taxa de lucro que determina as condições para a reprodução das unidades de produção capitalistas,
por outro lado, estas condições mostram-se incompatíveis com uma reprodução material estável da
sociedade, o que contribui significativamente para explicar o caráter desigual do desenvolvimento
capitalista.
Enfim, é importante desde já salientar que a simples adoção do valor agregado como critério
de decisão nas unidades de produção não tornaria o capitalismo mais justo e menos alienante. Isto
apenas tornaria as decisões nas unidades de produção mais coerentes com as decisões coletivas
tomadas na sociedade sobre a riqueza. A adoção do valor agregado como critério de decisão não
alteraria o acesso privilegiado dos capitalistas às riquezas sociais, assegurado pelo lucro e pelo
controle dos investimentos. O capitalismo, portanto, é intrinsecamente injusto e alienante (embora
isto possa variar de acordo com o momento histórico). Assim, a implantação de outro sistema social
a partir de uma radical democratização das decisões sobre as riquezas alicerçada sobre uma
transformação das relações de produção, de propriedade e de troca é o que possibilita a construção
de um mundo mais justo e menos alienante.
Mas como a economia deste novo sistema social, o socialismo, poderia funcionar? Um
elemento central deste funcionamento, aliás bastante polêmico, é a planificação da economia, a qual
é tratada no próximo capítulo.
60 ALCOUFFE A. Les manuscrits mathématiques de Karl Marx. Paris: Economica, 1985, p. 38.61 Idem, p. 38.
51
Capítulo 3 - A planificação socialista
A liberdade consiste em converter o Estado, de órgão que subordina a sociedade em órgãototalmente subordinado a ela (…) O Partido Operário Alemão – no caso de adotar esseprograma – mostra que as ideias socialistas não penetraram nem sequer a camada maissuperficial de sua pele, quando considera o Estado um ser autônomo, dotado de seuspróprios “fundamentos espirituais, morais, livres”, em vez de afirmar a sociedade existente(e isso vale para qualquer sociedade futura) como base do Estado existente (ou futuro, parauma sociedade futura).62
A economia capitalista é centrada no mercado, um sistema de trocas baseado na moeda cujo
funcionamento depende da propriedade privada dos meios de produção. Ao longo da história do
capitalismo consolidou-se, assim, a crença de que a produção mercantil é a única capaz de gerar
valores monetários. Neste sentido, seria apenas o trabalho aplicado para a produção de mercadorias
no setor privado da economia que poderia gerar valor, o qual supostamente sustentaria
economicamente o setor público. O setor privado, portanto, seria o que assegura a reprodução
econômica da sociedade, sendo o setor público um simples coadjuvante neste processo (muitas
vezes considerado pelos capitalistas como um “parasita”).
No entanto, a consistência deste raciocínio é difícil de ser demonstrada. Os serviços de
infraestrutura (estradas, ruas, redes de água e esgoto, por exemplo), evidentemente são produtos do
trabalho humano. E não é possível considerar que o tempo de trabalho aplicado nestas atividades
não gera valor. Não é isto o que indica o cálculo do produto interno bruto (PIB). Neste cálculo, o
total do valor agregado correspondente ao PIB (muitas vezes denominado valor adicionado) inclui o
produto das atividades do setor público. Além disto, muitos países, como a Noruega, Suécia,
Dinamarca e Finlândia, que estão entre os que apresentam os maiores PIB por pessoa no mundo,
possuem um setor público cuja dimensão torna difícil imaginar como ele poderia ser sustentado
economicamente pelo setor privado.
Na verdade, o setor público pode gerar valor tanto quanto o setor privado.63 A diferença
entre a produção de valor promovida pelo setor público em relação ao privado está na origem do
valor monetário recebido pelos produtores, ou seja, em termos marxistas, em como a produção é
“realizada”, na medida em que é pelo pagamento da sua compra que é reconhecida a necessidade
social de um produto. No setor privado a realização da produção é efetuada por meio da sua venda
no mercado, enquanto que no setor público a produção é realizada por meio de impostos. Neste
62 MARX, K. (1818-1883). Crítica do Programa de Gotha. Seleção, tradução e notas Rubens Enderle. - São Paulo : Boitempo, 2012, p. 41-42.
63 HARRIBEY, J.-M., La richesse, la valeur et l’inestimable. Fondements d’une critique socio-écologique de l’économie capitaliste. Paris: Les Liens qui Libèrent, 2013, p. 370.
52
sentido, não há diferença entre o pagamento feito diretamente por um consumidor para a compra de
uma mercadoria e o pagamento que os contribuintes fazem por um produto fornecido pelo Estado
por meio dos impostos. No entanto, no setor privado a produção é desencadeada a partir de uma
expectativa de demanda (em geral com base no preço corrente), a qual só é confirmada, ou não, no
momento em que a produção é vendida de acordo com a demanda solvável (ou seja, a das pessoas
que possuem poder de compra para adquirir o produto). Já no setor público, o Estado efetua uma
antecipação da demanda e, em função da mesma, arrecada os impostos necessários para a realização
da produção. Neste caso, a demanda é definida antes da produção, o que assegura a sua realização
conforme a demanda antecipada. Assim, embora os mecanismos de realização da produção sejam
diferentes, nos dois casos há produção de valor, com base no trabalho socialmente necessário. Neste
ponto é importante destacar a distinção, entre financiamento e pagamento de uma produção
monetarizada. Como a “poupança” é gerada pelo investimento e não o inverso, e que toda produção
adicional de valor necessita de um montante equivalente de moeda para assegurar a sua circulação
na economia, a criação de um valor adicional deve ser financiada por uma quantidade equivalente
de moeda. Nas sociedades capitalistas o financiamento é realizado em grande parte por meio da
criação de moeda escriturária pelas instituições financeiras privadas, a qual é emprestada aos
capitalistas mediante o pagamento de juros. No entanto, tal emissão sempre deve, em última
instância, ser assegurada pela emissão de moeda fiduciária pelo Estado. O financiamento da
produção, quer seja realizado por instituições financeiras privadas ou estatais é feito anteriormente a
produção do valor para que tal produção possa ser desencadeada e o seu pagamento, no momento
da entrada de tal produção no circuito econômico, possa ser realizado.64 Vale destacar que nas
economias capitalistas tais condições são necessárias para viabilizar tanto a produção do setor
privado quanto a do setor público.65 Já o pagamento ocorre em função de uma produção já efetuada.
Por exemplo da mesma forma que não se pode afirmar que ao efetuarmos o pagamento por uma
mercadoria fornecida por uma empresa capitalista estamos “financiando” tal produção, também é
incorreto afirmar que o pagamento de impostos “financia” os serviços públicos, pois nos dois casos,
o pagamento ocorre depois da produção.
Há, portanto, nas sociedades modernas uma esfera monetária, porém não mercantil,
produtora de valor, protagonizada pelo Estado. A expansão de tal esfera, embora subtraia aos
capitalistas possibilidades de valorização dos seus capitais, não apresenta qualquer ônus financeiro
ao setor privado e à sociedade, podendo, ao contrário, ser até mesmo uma forma eficiente de
promover o crescimento econômico. De um ponto de vista econômico, o socialismo implica em
64 HARRIBEY, J.-M., La richesse, la valeur et l’inestimable. Fondements d’une critique socio-écologique de l’économie capitaliste. Paris: Les Liens qui Libèrent, 2013, p. 387.
65 Esta questão é analisada na seção deste capítulo dedicada à natureza do investimento.
53
expandir tal esfera pública de forma a extinguir o mercado (ou tornar a sua influência na economia
insignificante), substituindo-o por uma planificação da economia. No entanto, é comum a atribuição
de um caráter tecnocrático e produtivista que seria intrínseco a todo processo de planificação.66
Reforça este posicionamento a experiência no século XX dos países ditos “socialistas” que
desenvolveram sistemas de planejamento centralizados e amplamente dominados pela burocracia
estatal.
Porém, não se pode afirmar que uma planificação seja intrinsecamente produtivista e
tecnocrática. Ao contrário, como procuramos mostrar neste capítulo, a planificação da economia
pode se constituir em uma forma objetiva de conduzir um debate genuinamente democrático sobre
as riquezas sociais, rompendo com o produtivismo característico das sociedades capitalistas, cuja
reprodução depende de um ininterrupto crescimento econômico. Neste sentido, a planificação
socialista é indissociável de um combate sistemático à influência do poder econômico que pode ser
exercido por determinados grupos sociais sobre as decisões coletivas que dizem respeito a produção
e ao uso das riquezas sociais. No entanto, a própria questão da democracia é um tema polêmico no
âmbito do materialismo histórico. Por esta razão algumas consideração sobre a democracia no
socialismo são realizadas na primeira seção deste capítulo para, na segunda seção, a questão das
relações entre democracia e planificação possam ser discutidas com mais clareza.
De um ponto de vista econômico, um sistema de planificação socialista, em primeiro lugar,
deve assegurar uma determinação razoavelmente precisa67 de preços de reprodução (ou seja, aqueles
que permitem assegurar condições estáveis de reprodução da sociedade). Esta questão é tratada na
terceira seção deste capítulo a qual discute as bases de um sistema de planificação socialista. Em
segundo lugar, de forma coerente com a determinação de preços de reprodução, o sistema de
planificação socialista deve permitir que os investimentos sejam planejados e realizados
adequadamente, especialmente quando estes envolvem a formação de estoques de meios de
produção multicíclicos. Para que esta questão possa ser discutida adequadamente é necessário que a
própria natureza dos investimentos seja compreendida. Na quarta seção deste capítulo são
discutidos a natureza dos investimentos e a forma como estes poderiam ser tecnicamente
operacionalizados. A partir desta compreensão é que se pode, então, analisar como poderia ser feito
um planejamento eficaz dos investimentos.
Enfim, é importante observar que a discussão dos vários aspectos da planificação socialista
indicados anteriormente é realizada por meio de exemplos numéricos parciais extremamente
simples, enquanto que uma efetiva planificação da economia exige modelos muito mais complexos,
66 TOMJO, L’Enfer vert. Un projet pavé de bonnes intentions, suivi de Critique de la planification écologique. Montreuil: L’Echappée, collection « Négatif », 2013.
67 O que já seria muito melhor do que o que ocorre no capitalismo, como discutido no capítulo anterior.
54
e de grandes dimensões, na medida em que devem abranger praticamente todos os setores da
economia. A questão da viabilidade prática do recolhimento da enorme massa de dados necessária
para parametrizar tais modelos e da capacidade de cálculo necessária para tratar esses dados é
discutida na quinta seção deste capítulo.
Socialismo e democracia
Como já mencionado no capítulo anterior, é nas condições históricas do capitalismo que a
atividade produtiva do ser humano se torna trabalho alienado.68 O trabalhador, assim, deixa de
identificar na sua própria atividade a origem dos produtos por ele gerados, atribuindo-a ao capital.
É, portanto, no próprio processo de trabalho que as relações de produção capitalistas promovem a
alienação do trabalhador. Isto permite que a apropriação das riquezas sociais pelas classes
dominantes possa ocorrer de forma menos violenta do que em sociedades anteriores. Na sociedade
medieval, por exemplo, a ideologia que assegurava a hegemonia das classes dominantes baseava-se,
em geral, no direito divino, institucionalizado pela Igreja. Na Idade Média, a religião impunha o
conformismo em relação ao mundo tal como ele é, ou seja, dominado pelo clero e a aristocracia. No
entanto, nas sociedades medievais, assim nas outras anteriores ao capitalismo, o trabalhador ainda
detinha um amplo domínio da sua atividade. As relações de produção feudais, por exemplo, não
induziam camponeses e artesãos a atribuir aos seus senhores a responsabilidade pelo produto do seu
trabalho. Isto exigia que a sua exploração fosse um processo externo à produção, envolvendo
sempre um grau relativamente elevado de violência para efetivar-se, apesar da dominação
ideológica exercida pelas classes dominantes por meio da Igreja.
No capitalismo, com a alta divisão social do trabalho por ele protagonizada, o caráter social
das atividades produtivas aprofunda-se como em nenhum outro sistema social, o que impossibilita
que, objetivamente, se possa atribuir a um trabalhador isolado o produto da sua atividade. Tal
atribuição, aliás, é uma ideologia insistentemente veiculada como uma forma de obscurecer a
condição de classe dos trabalhadores. Para as classes dominantes (e seus representantes nos meios
de comunicação, Universidades, etc) na sociedade capitalista todos devem ser “empreendedores”
(isto é, capitalistas), para justificar o seu acesso à riqueza social, o que, no caso das classes
populares implica em uma “auto exploração” que resulta em condições de vida em geral ainda mais
precárias do que a dos trabalhadores formalmente contratados pelos capitalistas.
Um projeto socialista que visa a emancipação humana de todas as formas de alienação,
portanto, não pode simplesmente propor uma volta às condições do passado, em que os
68 LUKÁCS, G. Ontologie de l’être social. L’idéologie, l’aliénation. Paris: Éd. Delga, 2012.
55
trabalhadores sentiam-se responsáveis pelo seu trabalho, porém de forma individual. É neste ponto
que uma democracia socialista adquire o seu pleno sentido, como afirma Lukács ao declarar que,
“Em sua máxima e mais profunda expressão, a democracia socialista – que se baseia nohomem real ativo tal como ele é efetivamente, tal como é obrigado a se manifestar em suaprática cotidiana – transforma os produtos aos quais os homens chegam inconscientemente(ou com falsa consciência) em objetos produzidos conscientemente pelos homens.”69
Em uma democracia socialista, portanto, a produção consciente dos seres humanos não pode
se expressar em um plano individual, dado o caráter profundamente social da produção já atingido
no próprio capitalismo. O que cabe ao socialismo é explicitar o caráter social da riqueza, assumindo
todas as suas consequências, dentre as quais a necessidade de uma radical democratização da
sociedade, que, sinteticamente, pode ser concebida em dois planos.
O primeiro é o da unidade de produção. O valor agregado, cuja maximização deve sr
adotada como critério de decisão, deve ser repartido a partir de um processo autogestionário
protagonizado pelos trabalhadores. Evidentemente, apenas a autogestão pelos trabalhadores não
pode conduzir a decisões conscientes sobre a geração e o uso das riquezas sociais. Tais decisões
exigem instituições de caráter explicitamente político, o que nos leva ao segundo plano no qual
deve ser concebida uma democracia socialista.
A democracia socialista, no plano institucional, é um processo histórico praticamente
impossível de ser previsto. O que se pode dizer das formas institucionais específicas do socialismo é
que elas não podem ser um simples prologamento das instituições capitalistas pretensamente
democráticas. Isto porque as instituições capitalistas foram historicamente moldadas para serem
funcionais a um sistema político cujo funcionamento é estabelecido de forma a jamais ameaçar os
interesses dos capitalistas em seu conjunto. Se, por um lado, ao superar o direito divino como forma
de dominação em nome de um poder que formalmente “emana do povo”, por outro lado ao longo
do desenvolvimento do capitalismo foi preciso estabelecer uma “democracia burguesa”. O direito
centrado na defesa da propriedade privada é a base desta democracia. Em torno dele é que são
estabelecidos os poderes legislativo (que define as leis), o judiciário (que examina os limites e a
aplicabilidade das leis) e o executivo (que governa dentro dos limites da lei). Por outro lado, é
evidente que no interior da classe dos capitalistas existem grupos com interesses específicos, o que
provoca conflitos no interior da burguesia. Setores financeiros, industriais e agrícolas; setores mais
voltados ao mercado interno e outros com uma inserção consolidada no mercado internacional;
setores que atendem mercados concorrenciais e setores oligopolizados ou monopólicos; todos estes
setores da burguesia apresentam interesses em geral conflituosos. A democracia burguesa tem a
69 LUKÁCS, G. O processo de democratização. In LUKÁCS, G. Socialismo e democratização. Escritos políticos 1956-1971. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008, p. 143-144.
56
função de mediar estes conflitos, assim como o de mediar os conflitos do conjunto da burguesia
diante dos trabalhadores. Estes por sua vez, pelo nos países capitalistas mais ricos, podem participar
da democracia burguesa aliando-se a determinados setores sempre que isto pode trazer vantagens
aos trabalhadores, assim como reivindicar vantagens aos trabalhadores no marco da ordem
burguesa. Neste ponto, porém, que a democracia burguesa se manifesta como um processo
contraditório, cujas caraterísticas são determinadas pelas condições historicamente determinadas do
capitalismo em cada país. Há países, normalmente os com menores desigualdades sociais e mais
ricos, nos quais a democracia burguesa permite maior participação das diferentes classes na
definição do funcionamento da sociedade justamente porque esta participação representa menos
ameaças aos interesses capitalistas. Mas graus extremos de desigualdade social, como no caso do
Brasil, tornam a democracia burguesa pouco eficaz, o que implica em um desrespeito sistemático ao
próprio Estado de Direito e a um recurso generalizado a violência para conter os conflitos sociais.
A construção de uma democracia socialista, portanto, implica em uma ruptura radical com a
democracia burguesa. A questão que se coloca, é como esta democracia poderia ser instituída,
considerando uma efetiva tomada do poder pelos trabalhadores. A discussão de como definir uma
orientação geral ao estabelecimento de instituições democráticas no socialismo, embora altamente
especulativas, polarizam-se em duas posições principais.
A primeira posição parte do princípio de que no socialismo um governo propriamente dito
não deveria existir, pois os problemas sociais seriam resolvidos diretamente pela livre associação
dos trabalhadores. O socialismo, portanto, pressuporia o desaparecimento da dicotomia, típica do
capitalismo, entre uma esfera pública, na forma do Estado, e uma esfera privada, na forma de uma
sociedade civil. Não haveria necessidade de um contrato social formal. O socialismo seria fruto da
implantação de relações sociais, especialmente de produção, totalmente novas, sendo a abolição da
propriedade privada considerada largamente insuficiente para a constituição de uma sociedade
socialista. Tais relações de produção, aliás, permitiriam a superação da divisão social do trabalho,
com as trocas sendo efetuadas entre as pessoas sem a intermediação do valor e da moeda.
No extremo oposto dessa posição estão as concepções de caráter eminentemente jurídico do
socialismo, na medida em que consideram que a principal medida para a sua implantação é a
abolição da propriedade privada dos meios de produção pela sua socialização assegurada pelo
Estado. Esta concepção, predominante entre os bolcheviques, é criticada por várias correntes do
marxismo, segundo as quais os dirigentes soviéticos teriam traído a conhecida máxima de Lenin
que afirmava que, “O comunismo é o poder dos sovietes mais a eletrificação de todo o país”. Assim,
enquanto os esforços em prol da “eletrificação” (isto é, do desenvolvimento das forças produtivas)
foram inegáveis, logo após a Revolução de 1917, os bolcheviques, especialmente com a ascensão
57
de Stalin ao poder, adotaram medidas que limitaram fortemente a ação dos sovietes70, assim como
de qualquer outra forma espontânea de organização popular.
Colocam-se, assim, em oposição duas concepções extremas do socialismo. De um lado, uma
concepção de caráter “libertário” que parece desprezar os problemas concretos colocados pela
construção de uma nova sociedade. De outro lado, uma concepção de caráter jurídico ou mesmo
tecnocrático, que parece desprezar o fato de que a construção do socialismo é um processo histórico
que deve ser fruto das ações dos próprios trabalhadores. É tentador associar estas concepções a
diferentes frações da classe média, a qual, como se expressou Marx, já em 185071, apresenta uma
forte tendência em conceber sistemas socialistas de forma alheia às reais aspirações dos
trabalhadores. Assim, é possível que tais concepções sejam típicas de uma classe média letrada
(normalmente universitária), no interior da qual intelectuais com formação de engenheiros,
administradores, juristas e economistas tenderiam a conceber o socialismo de maneira tecnocrática
e jurídica. Por outro lado, intelectuais com menos contato com os processos de trabalho ou com os
mecanismos jurídicos de institucionalização das relações sociais, como filósofos, sociólogos e
cientistas políticos, tenderiam a conceber formas mais libertárias de socialismo, obtendo um apoio
significativo da juventude. No entanto, é importante salientar que, diante da conversão forçada ao
capitalismo de países outrora ditos socialistas e, principalmente, da hegemonia da ideologia
protagonizada pelos que se denominam “pós-modernos”, a segunda concepção, de caráter libertário,
é nos dias de hoje largamente dominante entre os intelectuais.72
O fato, porém, é que nem a associação (supostamente) “livre” dos trabalhadores, nem a
(também suposta) “socialização” dos meios de produção simplesmente por meio da sua apropriação
pelo Estado, poderão suprimir os conflitos sociais que tornam necessárias instituições democráticas
reguladas por alguma forma de regramento jurídico, assim como não poderão suprimir a divisão
social do trabalho, a lei do valor e a necessidade de uma moeda. Assim, para alguns, a simples
abolição da propriedade privada por meio do Estado e para outros, a livre associação dos
trabalhadores, parecem possuir um poder mágico capaz de, por si só, levar a superação de todas as
contradições das sociedades capitalistas. Por exemplo, como fazer com que a associação dos
trabalhadores ultrapasse o nível local, de forma a evitar que condições de produção mais favoráveis
desencadeiem o acúmulo de desigualdades? Da mesma forma, como evitar que uma casta de
70 Os sovietes eram conselhos operários que se formaram desde a Revolução de 1905 na Rússia.71 MARX, K. Les luttes de classes em France (1848-1850). Paris: Éditions Sociales, [1895] 1974, p. 147. Embora
tenha sido publicada por Engels apenas em 1895, esta obra foi redigida por Marx entre janeiro e outubro de 1850(conforme nota dos editores).
72 Essas considerações baseiam-se nos estudos realizados por Michel Clouscard sobre as novas classes médias. Ver,por exemplo, CLOUSCARD, M. Le capitalisme de la séduction: critique de la social-démocracie libértaire. Paris :Éd. Sociales, 1981; ou CLOUSCARD, M. Les Métamorphoses de la lutte des classes. Pour une alternativeprogressiste. Paris: Le Temps des Cérises. 1996.
58
burocratas se aproprie do poder estatal para privilegiar seus próprios interesses em detrimento dos
interesses coletivos? A resposta mais óbvia para estas questões é o reconhecimento de que em uma
sociedade socialista haverá conflitos de interesse que só podem ser resolvidos, de forma coerente
com um projeto emancipatório, por meio da implantação de instituições efetivamente democráticas.
Uma dificuldade para a compreensão desta questão, é a forte tendência de muitos marxistas em
conceber o socialismo como uma sociedade que crescentemente se simplificaria em sua direção a
um comunismo semelhante ao comunismo primitivo do passado, apenas com a diferença que esta
simplicidade seria possibilitada por um alto, e não um baixo, desenvolvimento das forças
produtivas. Ora, o projeto socialista é, sobretudo, um projeto de emancipação humana, segundo o
qual os indivíduos poderão desenvolver sua personalidade no limite das possibilidades oferecidas
pelo desenvolvimento das forças produtivas. Dado o grau relativamente alto do desenvolvimento
das forças produtivas nas sociedades contemporâneas, isto implica que o recuo das barreiras
naturais proporcionado por este desenvolvimento deverá resultar em personalidades mais
diversificadas e complexas e não em seres humanos mais homogêneos, como ocorria no comunismo
primitivo devido, especialmente, à limitada divisão do trabalho observada nessas sociedades.
Diferentes modos de vida, visões de mundo e comportamentos deverão se desenvolver. A
convivência de indivíduos e, portanto, grupos humanos, com tal diversidade certamente gerará
conflitos, muito deles provavelmente de natureza diferente dos que presenciamos hoje. Dificilmente
tais conflitos poderão ser resolvidos espontaneamente, isto é, sem intermediações
institucionalizadas. Em suma, a sociedade socialista deverá ser mais, e não menos, complexa do que
as sociedades contemporâneas. É neste sentido que a democracia no socialismo será necessária.
Mas é preciso salientar que a democracia socialista deverá ser totalmente diferente da democracia
burguesa. O socialismo implica que a própria existência do poder econômico seja, senão eliminada,
pelos menos drasticamente minimizada, ao contrário do que ocorre no capitalismo, no qual o poder
econômico (ou seja, as classes sociais que o detêm) exerce uma influência ditatorial sobre a
sociedade. Evidentemente, quanto menor for o grau de desigualdade existente em uma sociedade,
menor é a influência do poder econômico sobre as decisões coletivas. E se esta igualdade, no
socialismo, ocorrer já nas próprias relações de produção, as condições para uma verdadeira
democratização da sociedade estarão em boa parte satisfeitas. Mas, apenas em boa parte. Decisões
de caráter local não poderão ser suficientes para assegurar uma democracia socialista. Decisões
coletivas em nível mais geral também serão necessárias, assim como instrumentos capazes de
coordenar a sua operacionalização, de forma efetiva e descentralizada. É como um instrumento
deste tipo que o modelo matemático apresentado no segundo capítulo (expressões 14 a 25) pode ser
59
empregado como base para a formulação de um sistema de planificação socialista, o que será
discutido nas próximas seções.
Planificação e democracia
Como já mencionado, é praticamente impossível saber como funcionarão as instituições que
darão suporte a democracia socialista. Por outro, desde já é possível analisar as condições
necessárias (embora não suficientes) para que um sistema político possa ser considerado
efetivamente como uma democracia socialista. Uma condição essencial é a eliminação do poder
econômico que condiciona as decisões coletivas. Isto significa manter sempre como primeiro
objetivo de um projeto socialista a eliminação do acesso privilegiado às riquezas sociais e o
controle dos investimentos pela burguesia o que, no limite, implica na eliminação da própria
burguesia como classe. O segundo é reconhecer uma igualdade fundamental entre os seres humanos
de forma que todos tenham as suas satisfações básicas plenamente asseguradas.
A primeira condição depende de como o projeto socialista se integrará na luta de classes
polarizada pelos interesses antagônicos dos trabalhadores e dos capitalistas (com as demais classes
sociais desempenhando um papel de aliados ou opositores na construção deste projeto). Por outro
lado, a segunda condição, além evidentemente também depender de posições políticas a serem
firmemente sustentadas ao longo do desenrolar da luta de classes, possui, também, um aspecto
técnico importante. Ocorre que a burguesia sempre alegará a impossibilidade de satisfazer as
necessidades da população na medida em que isto entre em choque com os seus interesses. E para
tanto ela invariavelmente recorre a supostos imperativos econômicos, o qual inclusive serve para
justificar o seu controle sobre os investimentos.
É neste ponto que a questão da planificação socialista adquire uma importância a nosso ver
crucial, mesmo no interior do capitalismo. A reflexão sobre a planificação nos permite mostrar a
falsidade dos supostos imperativos econômicos alegados pelos capitalistas, evitando discursos
vagos e superficiais. Neste sentido, a formulação de propostas claras e precisas de como a economia
socialista pode se mostrar uma alternativa confiável diante da histórica incapacidade do capitalismo
de suprir as necessidades mais básicas do conjunto da população, assim como as suas crescentes
contradições com a sustentabilidade ecológica das sociedades pode ser uma poderosa arma na luta
política contra a burguesia. Algumas considerações sobre esta questão são realizadas nos parágrafos
que seguem.
O modelo matemático apresentado no segundo capítulo (expressões 14 a 25) pode ser
empregado como base para a formulação de um sistema de planificação socialista. Neste modelo,
60
vale lembrar, a função do problema primal, a ser minimizada, corresponde a determinação do valor
em tempo de trabalho socialmente necessário para a reprodução da sociedade (expressão 14). Já a
função do problema dual, a ser maximizada, determina o valor agregado no ciclo de produção
(expressão 20). É interessante lembrar, também, que os valores destas duas funções são iguais
(como mostra a expressão 25) quando são empregadas as técnicas e geradas as quantidades de
produtos mais adequadas a uma reprodução estável da sociedade, definidas pelo problema primal,
assim como quando são aplicados os preços de reprodução definidos pelo problema dual. Neste
ponto é interessante colocar a seguinte questão: qual é o significado das funções do problema
primal e do dual a serem otimizadas em termos de bem estar para a sociedade? Mas para responder
a esta questão é necessário primeiro elucidar uma outra, que a fundamenta. Afinal, o que é bem
estar, qual é a sua natureza? Do ponto de vista do materialismo histórico, o bem estar, pelo seu
caráter iminentemente qualitativo, deve ser considerado como uma riqueza. Neste sentido, o bem
estar não pode ser identificado a qualquer valor de troca, sendo totalmente absurda a ideia da
formulação de uma função matemática que o expresse. Respondendo agora à questão colocada no
início do parágrafo, é importante lembrar que, no caso de um aumento da produtividade
proporcionado pelo aperfeiçoamento de alguma técnica, a diminuição do valor expresso pelas
funções do problema primal e dual não implicaria em qualquer diminuição da geração de riquezas
para a sociedade. Isto porque tanto a demanda (e consequentemente o consumo) de produtos e
meios de produção gerados pelo trabalho, como os recursos naturais utilizados poderiam não se
alterar. A alteração da solução do problema primal significaria apenas que a mesma riqueza, a partir
das novas condições técnicas, pode ser produzida com uma quantidade menor de trabalho. Neste
sentido, ela poderia significar um aumento do bem estar. No entanto, a solução do problema dual
indicaria que a mesma quantidade de riqueza obtida anteriormente agrega um valor menor em
unidades monetárias. Assim, não se pode afirmar, a partir da diminuição do valor (em trabalho ou
monetário) fornecido pelas soluções dos problemas primal e dual, que houve qualquer diminuição
do valor de uso das riquezas produzidas. Isto mostra quão enganosa pode ser a consideração da
função de um modelo econômico como uma “função de bem estar”, como ocorre nos modelos
neoclássicos, na medida em que, especialmente no caso do problema dual, não pode haver uma
proporcionalidade direta entre o valor monetário expresso pela solução da função otimizada e o bem
estar social. De acordo com o modelo apresentado, diante de um aumento da produtividade, a
decisão entre trabalhar menos, consumir mais, ou restringir o uso de recursos naturais escassos
(como forma de diminuir problemas ambientais) mantendo o nível de consumo e a geração de
meios de produção, não pode ser tomada com base em qualquer automatismo econômico, menos
ainda se este for expresso por uma função matemática, tal como proposto pelos neoclássicos.
61
De acordo com a estrutura do modelo apresentado, os processos sociais que determinam a
produção e o consumo de riquezas por uma sociedade não podem ser reduzidos a questões de ordem
meramente técnica, embora eles devam se subordinar as restrições técnicas existentes à produção.
Mas estas restrições técnicas jamais podem, por si mesmas, determinar o resultado de tais
processos. As funções a serem otimizadas dos problemas primal e dual do modelo, portanto, só
podem possuir um caráter meramente operacional.
Por outro lado, pode-se alegar que, pelo menos do ponto de vista ambiental, a própria
escassez dos recursos naturais poderia assegurar uma exploração adequada dos mesmos, ao induzir
a adoção (e a geração) de técnicas poupadoras em recursos naturais. Neste caso, os principais
obstáculos à sustentabilidade estariam na insuficiência do progresso técnico e, principalmente, em
interferências externas (como, por exemplo, intervenções do Estado) nos mecanismos econômicos
relacionados à formação dos preços. Neste sentido, os processos econômicos por si mesmos, desde
que “livres” de qualquer intervenção, seriam capazes de assegurar as condições para a
sustentabilidade ecológica das sociedades humanas.
Mas este raciocínio representa uma falácia. Nada assegura que o nível de exploração dos
recursos naturais considerados escassos não possa provocar um grau de destruição de riquezas que
ultrapasse a capacidade dos sistemas naturais em renová-las, ou de assegurar um ritmo compatível
entre o seu grau de exploração e as condições para a sua substituição, no caso de recursos não
renováveis. Isto porque a escassez de recursos naturais é definida em função das atividades
humanas e não, pelo menos imediatamente, pela dinâmica dos sistemas naturais, a qual não depende
dos processos econômicos (embora possa ser perturbada pelos mesmos), mas é definida por
complexos mecanismos de auto-organização baseados em transformações irreversíveis de energia.
Como discutido no primeiro capítulo, tais mecanismos implicam na necessidade de um constante
abastecimento de energia de baixa entropia, o qual só pode ser assegurado pela manutenção de
condições adequadas ao funcionamento dos sistemas naturais. Como também discutido no primeiro
capítulo, os sistemas econômicos possuem, de um ponto de vista físico-químico, essas mesmas
características. No entanto, não há processos naturais de regulação entre o funcionamento dos
sistemas econômicos e o dos sistemas naturais de forma que estes últimos possam automaticamente
assegurar a sustentabilidade dos primeiros. Isto porque a escassez de recursos naturais pode exercer
uma influência significativa sobre os processos econômicos somente após a sua exploração atingir
níveis incompatíveis com a sustentabilidade da sociedade. A consideração no modelo apresentado
no segundo capítulo, de que as riquezas são variáveis verdadeiramente exógenas, cujas quantidades
a serem utilizadas não podem ser determinados por considerações exclusivamente econômicas, é
coerente com esta interpretação.
62
Assim, não se pode afirmar que a planificação da economia é um processo intrinsecamente
produtivista e tecnológico, na medida em que o modelo apresentado no segundo capítulo é
claramente compatível com um processo democrático de planificação. Por outro lado, é evidente
que a simples aplicação de um modelo deste tipo não assegura uma planificação democrática, a qual
só pode se efetivar a partir da construção histórica de instituições que assegure uma mediação
democrática dos conflitos de interesse que, mesmo no socialismo, certamente ainda persistirão
(embora envolvendo grupos sociais distintos dos que polarizam a luta de classes no capitalismo).
Sistema básico de planificação
Os exemplos numéricos discutidos no segundo capítulo mostram claramente que a adoção
de critérios de decisão baseados no valor agregado nas unidades de produção é um requisito
fundamental para que condições estáveis de reprodução da sociedade possam ser asseguradas. Isto
possibilita que as decisões tomadas nas unidades de produção sejam coerentes com as decisões
coletivas sobre as riquezas sociais. Nesta seção analisaremos algumas questões específicas
relacionadas a planificação cuja discussão pode contribuir para mostrar o potencial e a versatilidade
da planificação socialista, contribuindo, também, para elucidar alguns mal entendidos e
preconceitos comuns a seu respeito.
A primeira desta questão é a das atividades hoje pertencentes ao setor público. Há uma
crença generalizada de que, pela supostamente necessária dimensão que este setor assumiria na
economia, esta tenderia a ser avessa ao progresso técnico e muito menos eficiente do que as
economias capitalistas. No entanto, a discussão de como o setor público poderia se integrar no
sistema de planificação, que será efetuada no primeiro item desta seção, infirma claramente esta
posição.
Outra crença comum é que de que o socialismo seria um sistema social no qual os
trabalhadores não se sentiriam estimulados a aperfeiçoar os processos de trabalho pois isto não lhes
proporcionaria vantagens imediatas, na medida em que o resultado de tais processos seria
apropriado pela coletividade para posterior redistribuição. A própria estrutura econômica das
sociedades socialistas, assim, tornaria as unidades de produção pouco dispostas a contribuir para o
progresso técnico, apesar de muitas vezes dispor de importantes instituições de pesquisa e
desenvolvimento. Esta questão é discutida no item deste capítulo dedicado ao progresso técnico.
Nele procuramos demonstrar que uma planificação socialista da economia com base em valores
monetários permitiria estimular os trabalhadores a adotar inovações tecnológicas, evitando inclusive
63
as consequências negativas dela decorrentes no capitalismo, como o desemprego e falências de
empresas.
Ainda outra crença é que no socialismo a qualidade dos produtos seria baixa e estes seriam
pouco diversificados. Por meio da análise das possibilidades abertas pela planificação, porém, pode-
se evidenciar que este problema tenderia a ser muito menos grave no socialismo do que ele é
capitalismo. Esta discussão é realizada no segundo item desta seção.
A reflexão sobre o socialismo com base no materialismo histórico o coloca como uma
perspectiva para toda a Humanidade, e não como um projeto nacional. A discussão realizada nesta
seção, portanto, não poderia deixar de considerar como o comércio internacional poderia ser
considerado na planificação socialista, o que é realizado em um item específico dedicado a esta
questão.
Setor público
Como mencionado nos parágrafos anteriores, uma questão que se coloca no socialismo é
como o setor responsável por atividades como a educação, a pesquisa científica, a saúde, assim
como todas as atividades atualmente pertencentes ao setor público, poderiam ser integradas em
sistema de planificação. A particularidade destas atividades é que os seus efeitos econômicos são
difusos, o que dificulta análises precisas dos seus efeitos econômicos. Isto torna a socialização do
pagamento dos seus trabalhadores a solução mais lógica para este problema. Tal socialização,
operacionalizada por meio de impostos, pode ser integrada sem dificuldades no sistema de
planificação apresentado, não prejudicando, assim, a coerência das decisões micro e
macroeconômicas por ele possibilitada. A socialização da remuneração dos trabalhadores destas
atividades, tal como ocorre nas sociedades capitalistas, poderia ser feita considerando-as como
atividades intermediárias necessárias a geração dos demais produtos. Com isto os preços dos
produtos seriam calculados de forma que os seus trabalhadores pudessem pagar os impostos, que
seriam considerados como um consumo intermediário pago proporcionalmente à produção no
cálculo do valor agregado nas unidades de produção. Um exemplo numérico pode contribuir para
ilustrar esta situação.
A partir da estrutura geral do modelo descrito no segundo capítulo, foi elaborado um modelo
considerando uma economia na qual são gerados produtos para consumo final, representados pela
variável (c), e duas atividades públicas, uma dedicada a educação (e) e outra à saúde (s). Todas estas
atividades requerem meios de produção, o quais são representados pela varável (m). As atividades
64
dedicadas à geração de produtos para consumo podem ser realizadas por meio de duas técnicas
diferentes. O meio de produção, por sua vez, para ser produzido precisa explorar recursos naturais.
O problema primal deste modelo é,
Minimizar 10c1+20c2+e+s+2m (58)Sujeito às restrições
c1+c2≥100 (59)
−0.4 c1−0.4 c2+e≥0 (60)
−0.4 c1−0.4 c2+s≥0 (61)
−10c1−6 c2−2e−3 s+m≥0 (62)
m≤1100 (63)O problema dual do modelo é,
Maximizar 100 pc+0 pe+0 ps+0 pm−1100 rn (64)Sujeito às restrições
pc−0.4 pe−0.4 ps−10 pm≤10 (65)
pc−0.4 pe−0.4 ps−6 pm≤20 (66)
pe−2 pm≤1 (67)
ps−6 pm≤1 (68)
pm−rn≤2 (69)Onde pc são os preços dos produtos de consumo, pe e ps, o imposto a ser cobrado para manter os
sistemas de educação e saúde, respectivamente e rn a renda gerada pela escassez de recursos
naturais.
Os resultados obtidos pela solução do modelo são mostrados na tabela 9. É interessante
observar que nesta tabela que as duas técnicas disponíveis são empregadas para a fabricação do
produto de consumo (c). Isto ocorre porque a quantidade de recursos naturais por ciclo foi limitada
a partir de uma decisão tomada conscientemente pela sociedade, a qual pode ser motivada pela
necessidade de tornar a exploração dos recursos naturais compatíveis com a sustentabilidade
ecológica da sociedade. De um ponto de vista formal, nada impede que tal decisão seja tomada de
forma democrática, levando-se em conta o conhecimento científico disponível sobre a dinâmica dos
sistemas naturais.
65
Considerando agora a questão do setor público, a solução apresentada na tabela 9 mostra
que o imposto por unidade de produto de consumo a ser cobrado para a sustentação dos sistemas de
educação e de saúde pode ser integrado sem problemas no sistema de planificação o que, aliás,
mostra claramente que não há dificuldades em considerar a geração de valor pelas atividades
públicas, desde que o pagamento aos seus trabalhadores seja realizado por meio de impostos.
Salientamos que a dimensão dessas atividades foi definida por decisões coletivas, sendo expressas
em função da quantidade de produtos de consumo demandada. A solução do modelo apenas
confirma este dimensionamento, expressado-o em unidades de tempo de trabalho. A tabela 10
mostra os resultados econômicos que seriam obtidos nas unidades de produção a partir da aplicação
de oito unidades de tempo de trabalho em cada técnica e atividade.
Como pode-se pode observar na tabela 10, o valor agregado que seria gerado em cada
atividade seria estritamente proporcional ao tempo de trabalho aplicado em cada uma delas. Isto
ocorre devido a escassez dos recursos naturais. Se estes recursos fossem abundantes, a técnica 2
proporcionaria um valor agregado proporcionalmente inferior ao tempo de trabalho, o que induziria
os agentes econômicos a adotar a técnica 1. No caso de uma escassez severa de recursos naturais
apenas a técnica 2 tenderia a ser empregada, pelos mesmos motivos.
Tabela 10: Resultados econômicos obtidos pela aplicação de oito unidades de tempo de trabalho fornecidos pelo modelo
Produto de consumoTécnica 1 Técnica 2
Produção 0,8 0,4 8 8 4Preço, imposto ou renda 43,8 6 16 2,5 0,5Produto bruto 35,04 17,52 48 128 10Meio de produção 8 2,4 16 48Valor dos meios de prod. 20 6 40 120Imposto para educação 1,92 0,96Imposto para saúde 5,12 2,56Renda 2Valor agregado 8 8 8 8 8Fonte: elaborado pelo autor
Sistema de educação
Sistema de saúde
Meios de produção
Recursos naturais
Tabela 9: Resultados obtidos com o modelo que inclui os setores públicos de educação e saúdeProduto de consumo
Técnica 1 Técnica 2Tempo de trabalho 450 1.100 40 40 2.200 3.830Quantidade 45 55 40 40 1.100 1.100Preço, imposto ou renda 43,8 6 16 2,5 0,5Fonte: elaborado pelo autor
Sistema de educação
Sistema de saúde
Meios de produção
Recursos naturais
Total ( = valor agregado)
66
É interessante observar que no modelo qualquer atividade poderia ser remunerada por meio
de impostos, como as relacionadas a cultura, à arte, ao esporte, a manutenção de asilos (assim como
outras atividades atualmente consideradas filantrópicas), da mesma forma que foram consideradas
as atividades relacionadas a educação e à saúde. No limite, todas as atividades consideradas
necessárias à reprodução da sociedade poderiam ser “públicas” (isto é, controladas de forma mais
estrita pelo Estado, pois no socialismo não haveria atividades privadas propriamente ditas), sendo a
remuneração dos trabalhadores assegurada pelos impostos. Mas isto poderia comprometer o
dinamismo da economia. A manutenção de unidades de produção geridas diretamente pelos
próprios trabalhadores, permitindo que estes escolham as técnicas de produção e as formas de
organização do trabalho, estimularia o desenvolvimento e a adoção de inovações técnicas, na
medida em que estas provocariam quase-rendas, desde que se mostrassem efetivamente vantajosas
economicamente. Estas quase-rendas geradas por técnicas que levam ao aumento da produtividade
perdurariam apenas enquanto não houver reajuste dos preços, constituindo-se em apenas um bônus
temporário pela iniciativa dos trabalhadores, sem provocar diferenciações na acumulação de
recursos pelas unidades de produção. Isto não implica que as atividades públicas estejam fadadas à
estagnação tecnológica, na medida em que seriam os setores de pesquisa e desenvolvimento os
responsáveis, em última instância, pelo surgimento das inovações, a serem aplicadas tanto no setor
público como nas unidades de produção autogeridas. Por outro lado, a importância de manter o
interesse dos trabalhadores no aumento da produtividade e em uma eficiente alocação dos recursos
a nosso ver não devem ser subestimadas no socialismo. Esta questão é discutida de forma mais
detalhada nos itens a seguir.
Progresso técnico
Uma das noções mais comuns entre as pessoas é que em uma economia socialista a
planificação não estimularia a introdução inovações técnicas e o aperfeiçoamento dos processos de
trabalho, na medida em que com isto os trabalhadores não obteriam qualquer vantagem econômica
imediata. É possível que isto tenha ocorrido nas experiências socialistas do século XX (embora esta
questão mereça uma análise mais cuidadosa), apesar de muitos desses países possuírem instituições
que os colocavam na vanguarda em muitos campos científicos e tecnológicos.
No entanto, pode-se alegar que as inovações técnicas e o aperfeiçoamento dos processos de
trabalho introduzidos em algumas unidades de produção específicas poderia desencadear processos
de diferenciação na acumulação de meios de produção, dos quais resultariam desigualdades
econômicas cumulativas. E, cedo ou tarde, o poder econômico decorrente desta acumulação
67
diferencial acabaria sendo utilizado para trazer ainda mais vantagens às unidades de produção (ou
regiões) que dele se beneficiam. Estariam, assim, dadas as condições para desencadear os mesmos
processos de concentração de poder e de riqueza observados no capitalismo, mesmo com uma
socialização formal dos meios de produção.
No sistema de planificação aqui proposto isto não ocorreria, na medida em que ele
permitiria que os trabalhadores se apropriassem dos resultados imediatos de ganhos de
produtividade, sem implicar em uma acúmulo de poder econômico. Isto porque os ganhos de
produtividade gerariam apenas “quase rendas”, ou seja, aumentos no valor agregado que só
persistiriam até os preços serem reajustados. Esta situação é ilustrada no exemplo a seguir.
Assim, vamos supor um sistema econômico composto por um produto de consumo final (c)
e um meio de produção (mp), sendo que a produção deste último depende de um recurso natural. O
produto de consumo final e o meio de produção podem ser gerados por meio de duas técnicas
(representadas pelos sufixos subscritos 1 e 2). Os coeficientes técnicos do modelo são mostrados na
tabela 11 (os coeficientes negativos de demanda do meio de produção indica o demandante e os
positivos o ofertante).
A partir destes coeficientes técnicos foi formulado o seguinte problema primal,
Minimizar 10c1+20c2+2mp1+4mp2 (70)Sujeito às restrições
c1+c2≥100 (71)
−4 c1−c2+mp1+mp2≥0 (72)
2mp1+mp2≤500 (73)
A partir do problema primal, foi obtido o problema dual, que fornece os preços do produto
de consumo (pc) e do meio de produção (pmp), assim como a renda decorrente da escassez do
recurso natural (rn). Este problema dual é descrito como,
100 pc+0 pmp−500 rn (74)Sujeito às restrições
pc−4 pmp≤10 (75)
Tabela 11: Coeficientes técnicos do modelo
Tempo de trabalho 10 20 2 4Demanda de mp -4 -1 1 1Demanda de r n 2 1
Fonte: elaborado pelo autor
c1
c2
mp1
mp2
68
pc−pmp≤20 (76)
pmp−2 rn≤2 (77)
pmp−rn≤4 (78)
A solução do problema primal indicou que a demanda de 100 unidades de (c) deveria ser
satisfeita por uma produção de 50 unidades de (c1) e de (c2), sendo a produção de (mp) de 250
unidades, totalmente assegurada por (mp1). O emprego das duas técnicas para a produção de (c)
deve-se a escassez do recurso natural, a qual gera uma renda de 0,67 unidades monetárias por
unidade física. A partir da solução do modelo foi elaborada a tabela 12, na qual são mostrados os
resultados econômicos obtidos pelas atividades a partir da aplicação de oito unidades de tempo de
trabalho.
Observa-se na tabela 12 que apenas a geração de (mp2) não proporciona um valor agregado
equivalente ao tempo de trabalho aplicado, o que indica que esta atividade não consta da base ótima
fornecida pela solução do modelo. No entanto, a geração de (mp2) também provoca a formação de
uma renda devido a escassez de recurso natural.
Como mostrado na tabela 11, a exigência de tempo de trabalho para a geração de (c1) é de 10
unidades. Vamos supor que esta exigência seja diminuída de 2,5 unidades, passando a ser de 7,5
unidades de tempo de trabalho por unidade de produto. Houve, portanto, um aumento da
produtividade do trabalho. A tabela 13 mostra os resultados obtidos nas atividades pela aplicação de
oito unidades de tempo de trabalho, mantendo-se, porém, os preços mostrados na tabela 12.
Observa-se nesta tabela que, nesta nova situação, o valor agregado gerado por (c1), de 10,67
unidades, é superior às 8 unidades de tempo de trabalho aplicadas. Este aumento poderia ser
apropriado pelos trabalhadores desta unidade de produção, constituindo-se, assim, em um estímulo
ao aumento da produtividade.
Tabela 12: Resultados econômicos obtidos a partir da aplicação de oito unidades de tempo de trabalho.
Produção 0,80 0,40 4,00 2,00Preços 23,33 3,33Produto bruto 18,67 9,33 13,33 6,67Meio de produção 3,20 0,40Valor monetário do meio de produção 10,67 1,33Recurso natural 8,00 2,00Renda relacionada ao recurso natural 5,33 1,33Valor agregado 8,00 8,00 8,00 5,33Fonte: elaborado pelo autor
c1
c2
mp1
mp2
69
No entanto, esta vantagem desapareceria com o reajuste dos preços, a ser feito após certo
período (que poderia ser, por exemplo, de um ano). Depois deste reajuste a atividade (c1) voltaria a
proporcionar um valor agregado equivalente ao tempo de trabalho nela aplicado. Por ser apenas
temporária esta vantagem é denominada neste livro de “quase-renda”. Isto porque é preciso
distinguir as quase-rendas geradas pelo processo descrito no parágrafo anterior das rendas
diferenciais, decorrentes da escassez de recursos naturais, como mostra a tabela 12, assim como de
condições de produção permanentemente heterogêneas. Esta distinção é importante para não criar
distorções na alocação dos recursos, pois as rendas diferenciais, ao contrário das quase rendas, não
podem ser apropriadas pelos trabalhadores dedicados as atividades nas quais elas são geradas. Em
uma sociedade socialista estas rendas devem ser apropriadas pelo Estado por meio de impostos.
Este seria o caso, também, de heterogeneidades nas condições de produção não geradas
apenas pelas técnicas empregadas, as quais são a regra na agricultura e na mineração, entre outras
atividades. Aliás, este é o caso clássico de geração de rendas diferenciais. Por exemplo,
considerando que a produção de (c1) tenha que ser limitada a 40 unidades (por uma condição de
solo ou clima, por exemplo), portanto, inferior às 50 unidades da solução ótima fornecida
anteriormente pelo modelo, isto geraria uma renda de 4 unidades monetárias por unidade física de
(c1). Esta renda, sendo permanente, deve ser apropriada pelo Estado e distribuída à coletividade.
Comércio exterior
O modelo apresentado no terceiro capítulo, considerado neste capítulo como um sistema
básico de planificação, representa uma economia sem comércio exterior. Porém, o modelo foi
apresentado desta forma apenas para simplificar a discussão das suas características fundamentais.
As modificações do modelo para que se possa considerar o comércio exterior são bastante simples.
No entanto, antes de discutir como isto poderia ser feito é importante efetuar algumas
considerações sobre o caráter do comércio exterior assumido no socialismo. Em um sistema
Tabela 13: Resultados econômicos obtidos a partir da aplicação de oito unidades de tempo de trabalho, com aumento da produtividade de (c1)
Produção 1,07 0,40 4,00 2,00Preços 23,33 3,33Produto bruto 24,89 9,33 13,33 6,67Meio de produção 4,27 0,40Valor monetário do meio de produção 14,22 1,33Recurso natural 8,00 2,00Renda relacionada ao recurso natural 5,33 1,33Valor agregado 10,67 8,00 8,00 5,33Fonte: elaborado pelo autor
c1
c2
mp1
mp2
70
internacional de países socialistas, haveria apenas um comércio complementar entre os países, ao
contrário do que ocorre no sistema capitalista, sobretudo na atualidade, no qual o comércio tem
assumido um caráter cada vez mais agressivamente concorrencial.73 Isto se deve ao fato de, no
capitalismo, as exportações serem uma forma de assegurar demanda diante da concentração da
renda que restringe a demanda interna. Como o acesso às riquezas sociais no socialismo seria
assegurado de forma equânime a toda a população, o venda a consumidores de outros países com o
intuito de assegurar a demanda para determinados produtos, aliás, tão celebrada no capitalismo, não
teria sentido.
Retornando à questão da modelagem do comércio exterior, como discutido no segundo
capítulo, o modelo de planificação apresentado baseia-se fundamentalmente no fluxo de riquezas
(quantidades físicas) em um sistema aberto. As importações, portanto, representam uma entrada de
riquezas no sistema, semelhante à dos recursos naturais. Além disto, por exemplo, se as importações
se constituem em meios de produção e sua quantidade for limitada em relação ao que as técnicas de
produção da economia exigem, os produtores devem adotar técnicas alternativas que podem exigir
mais trabalho e, assim, gerar rendas para os importadores. Já as exportações representam riquezas
que saem do sistema econômico, da mesma forma como as riquezas que são consumidas.
A consideração do comércio exterior no modelo é ilustrada pelo exemplo numérico
apresentado a seguir. Ele representa uma economia que produz um produto final para consumo
interno (C) e um meio de produção (MP), assim como um produto para exportação (E). Para gerar
os produtos para consumo interno e para exportação, além do meio de produção fabricado
internamente, as técnicas empregadas necessitam de um meio de produção importado (MPI). O
meio de produção (MP) é gerado a partir de um recurso natural. Os produtos para consumo interno
e para exportação podem ser gerados por duas técnicas, uma intensiva no uso de meios de produção
e que proporciona maior produtividade do trabalho, e outra que exige menos meios de produção,
mas que proprociona menor produtividade do trabalho. No exemplo, foi considerada uma demanda
de 100 unidades de (C) e uma exportação de 20 unidades de (E) e que a quantidade importada não é
suficiente para que todas as técnicas que asseguram maior produtividade possam ser empregadas.
Como (MPI) é produzido fora do sistema, ele não depende de meios de produção ou recursos
naturais para poder ser empregado para gerar outros produtos. O tempo de trabalho dispensado para
adquiri-lo, assim, pode ser igualado ao seu preço de importação. Como este tempo de trabalho é
aplicado fora do sistema, ele deve ser debitado do tempo de trabalho total aplicado na economia,
assumindo um valor negativo na função do problema primal a ser minimizada. Os coeficientes
técnicos do modelo são apresentados na tabela 14.
73 ADDA, J. As origens da globalização da economia. Barueri: Manole, 2004, p. 74.
71
A partir dos coeficientes técnicos mostrados na tabela 14 o problema primal do modelo foi
formulado como,
Minimizar 10 C1+30 C2+6 E1+34 E2+2 MP−3 MPI (79)Sujeito às restrições
C1+C2≥100 (80)
E1+E2≥20 (81)
−4 C1−2 C2−3 E1−E2+MP≥0 (82)
−3 C1−C2−5 E1−2 E2+MPI≥0 (83)
MPI≤300 (84)
MP≤500 (85)
A partir do problema primal foi formulado o problema dual cuja solução fornece os preços
do produto final para consumo interno (PC), o preço do produto para exportação (PE), o preço do
meio de produção gerado internamente (PMP), o preço do meio de produção importado (PMPI) e as
rendas provocadas pela escassez do meio de produção importado (RIP) e do recurso natural (RN).
Salientamos que, de acordo com o que ocorre no problema primal, o equivalente ao tempo de
trabalho relativo a (MPI) é negativo, conforme mostra a expressão (79). O problema dual é descrito
como,
Maximizar 100 PC+20 PE+0 PMP+0 PMPI−300 RIP−500 RN (86)Sujeito às restrições
PC−4 PMP−3 PMPI ≤10 (87)
PC−2 PMP−PMPI≤30 (88)
PE−3 PMP−5 PMPI≤6 (89)
PE−PMP−2 PMPI ≤34 (90)
Tabela 14: Coeficientes técnicos do modelo com comércio exteriorMP MPI
Tempo de trabalho por produto 10 30 6 34 2 -3Demanda de MP -4 -2 -3 -1 1Demadna de MPI -3 -1 -5 -2 1Quantidade de MPI importada 1Demanda de recurso natural 1Fonte: elaborado pelo autor
C1
C2
E1
E2
72
PMPI−IP≤−3 (91)
PMP−RN≤2 (92)
Na tabela 15 é apresentado o esquema de reprodução do sistema em riquezas. Como pode
ser observado nesta tabela, o tempo de trabalho dedicado à (MPI) é negativo, o que indica que ele
foi gerado fora do sistema.
A solução do problema dual forneceu os preços e as rendas mostradas na tabela 16.
A partir das quantidades mostradas na tabela 15 e dos preços mostrados na tabela 16 foi
obtido o esquema de reprodução do sistema em valores monetários, mostrado na tabela 17.
Observa-se na tabela 17 que o valor agregado de (MPI) é negativo, o que indica que ele foi
gerado fora do sistema. Por outro lado, a renda gerada pela escassez de (MPI), cujo total é (RIP), é
positiva, o que significa que ela é apropriada no próprio sistema. Observa-se também na tabela 17
que o valor agregado de (E), em termos absolutos, é menor do que o de (MPI), o que indica que há
um deficit na balança comercial. Uma simulação mostrou que para equilibrar a balança comercial
seria necessário reduzir a importação de (MPI) para cerca de 225 unidades. Neste caso, os preços e
Tabela 15: Reprodução do sistema com comércio exterior em riquezasRN RIP MP MPI Produto Tempo trab
RN 500IP 300MP 380 380 760MPI 300 300 -900C 360 260 100 1400E 20 40 20 680Demanda 380 300 380 300 1940Excedente 120 0 0 0Total 500 300 380 300Fonte: elaborado pelo autor
Tabela 16: Preços e rendas obtidos pela solução do problema dualC E MP MPI RIP RN
Preços e rendas 42 52 2 8 11 0Fonte: elaborado pelo autor
Tabela 17: Reprodução do sistema com comércio exterior em valores monetáriosRN IP MP MPI Valor meios de produção Produto bruto Valor agregado
RN 0IP 3300MP 0 760 760MPI 3300 3300 2400 -900C 720 2080 2800 4200 1400E 40 320 360 1040 680Demanda 0 3300 760 2400 6460 11700 1940Excedente 0 0 0 0 0Total 0 3300 760 2400Fonte: elaborado pelo autor
73
as rendas não se alterariam, na medida em que a base ótima seria mantida, mas com maiores
quantidades de (C) sendo produzidos com a técnica 2, menos exigente em meios de produção e que
exige mais tempo de trabalho.
Diversidade e qualidade dos produtos
Uma crença comum é que a economia socialista se caracterizaria pela produção em massa
de artigos altamente padronizados, o que, supõe-se, permitiria que todos a eles tivessem acesso. Isto
tenderia a fazer com que a qualidade dos produtos fosse relativamente baixa. Normalmente
acredita-se, assim, que nas sociedades socialistas haveria menor diversidade de produtos, sendo
estes de baixa qualidade. Tal crença, porém, é uma generalização apressada do que ocorria, e ainda
assim em diferentes graus conforme o país, nas experiências socialistas do século XX. Em primeiro
lugar, o avanço tecnológico atualmente observado permitiria uma diversidade de produtos muito
maior do que a ocorria nesses países. Em segundo lugar a questão da qualidade também se coloca
nas sociedades capitalistas. Nestas sociedades os produtos de qualidade também são mais escassos,
mas o acesso a eles é limitado às classes mais abastadas. Além disto, a percepção da qualidade nos
países capitalistas é algo complexa, sendo muitas vezes altamente subjetiva. Em geral esta
percepção depende muito mais da propaganda, e dos fenômenos de moda a ela associados, do que
das reais qualidades do produto.
Ao comentar os determinantes da demanda, Marx afirma que,
a “demanda social”, i.e., o fator que regula o princípio da demanda, é essencialmentesujeito às relações mútuas entre as diferentes classes e suas respectivas posiçõeseconômicas, notadamente, em primeiro lugar, a relação entre a mais-valia total e os saláriose, em segundo lugar, a relação das várias partes em que a mais-valia é distribuída (lucro,juros, renda fundiária, taxas, etc.). E isto mostra novamente como absolutamente nada podeser explicado pela relação entre oferta e demanda antes de precisar as bases sobre as quaisestas relações se assentam.74
Conforme o que expressa Marx na citação acima, a demanda de um produto depende
essencialmente da distribuição da renda e, portanto, da luta de classes. Além disto, mesmo em nível
individual (ou das famílias) a demanda é determinada objetivamente pelo nível de renda do
consumidor e pelo tipo de produto. Como mostrado anteriormente, o valor agregado é o equivalente
74 “the ‘social demand’, i.e., the factor which regulates the principle of demand, is essentially subject to themutual relationship of the different classes and their respective economic position, notably therefore to,firstly, the ratio of total surplus-value to wages, and, secondly, to the relation of the various parts intowhich surplus-value is split up(profit, interest, ground-rent, taxes, etc.). And this thus again shows howabsolutely nothing can be explained by the relation of supply to demand before as certaining the basis onwhich this relation rests.” MARX, K. Capital: A critique of Political Economy. v. III. Ed. por FriedrichEngels. New York: International Publishers, on-line version: Marx.org. 1996, Marxists.org. 1999 [1895].p. 131.
74
monetário do tempo de trabalho necessário para a produção. Assim, o valor monetário de um
produto equivale ao seu custo ao consumidor, tanto em termos monetários, como em tempo de
trabalho, mesmo que isto dependa de quanto do valor agregado gerado pelo seu trabalho o
consumidor tem acesso. É, portanto, o custo em tempo de trabalho que determina o quanto é
consumido por um indivíduo (ou família). Mas esta determinação não é homogênea para todos os
produtos. Para produtos de consumo corrente, isto é, aqueles que são básicos, estritamente
necessários para a reprodução material da sociedade, o seu consumo aumenta em taxas decrescentes
em relação à renda disponível dos consumidores, pois, a medida em que se tornam mais abundantes
(satisfazendo de forma mais completa as necessidades do consumidor), sua necessidade se torna
menor. Assim, o consumo de um produto corrente aumenta em termos absolutos mas é
proporcionalmente menor em relação à renda, na medida em que esta cresce. O oposto ocorre com
produtos de consumo de luxo, cujo consumo cresce a taxas crescentes em relação à renda. A relação
entre o consumo destes dois tipos de produto e a renda dos consumidores é mostrada na figura 1.
A partir das curvas mostradas na figura 1 é fácil perceber que uma distribuição mais
uniforme da renda provoca um aumento do consumo de produtos correntes e uma diminuição do
consumo de produtos de luxo. Por exemplo, de acordo com figura 1, uma diminuição da renda de
um consumidor que ganha 10.000 para 8.000 unidades monetárias provocaria uma diminuição do
consumo de produtos correntes de 440 unidades monetárias. Se esta renda for transferida para
consumidores que possuem 3.000 unidades de renda, passando assim a 5.000 unidades, o aumento
do consumo seria de 1.560 unidades monetárias gastas em produtos de consumo corrente. O
contrário ocorreria com os produtos de luxo. A diminuição da renda de consumidores que ganham
0 2000 4000 6000 8000 10000 120000
1000
2000
3000
4000
5000
6000
Consumo de produtos necessários Consumo de produtos de luxo
Renda (unidades monetárias)
Co
nsu
mo
(u
nid
ad
es
mo
ne
tári
as)
Figura 1: Consumo de produtos correntes e de luxo em função da renda
75
10.000 para 8.000 unidades monetárias provocaria uma diminuição de 1.460 unidades de produto, e
se esta renda for transferida para consumidores que possuem uma renda de 3.000 unidades
monetárias, passando a 5.000 unidades, o consumo aumentaria apenas 340 unidades gastas com
produtos de consumo de luxo.
Dado o comportamento dos consumidores descrito no parágrafo anterior, em uma sociedade
em que o acesso às riquezas sociais seria muito mais homogêneo, o consumo de produtos de luxo
tenderia a ser fortemente reduzido. Além disto, no socialismo, com o fim da concorrência capitalista
devido a aquisição dos produtos passar a ser organizada pelo Estado, os produtores não precisariam
recorrer a propaganda para vender a sua produção, o capitalismo os leva a alegar qualidades muitas
vezes ilusórias dos seus produtos para vendê-los.
No entanto, no que diz respeito a qualidade propriamente dita é necessário distinguir
produtos de luxo, cuja “qualidade” relaciona-se mais ao status social que o seu consumo
proporciona do que a sua efetiva utilidade, dos produtos que são efetivamente de melhor qualidade.
É comum que produtos de maior qualidade ao começarem a ser produzidos apresentem custos de
produção elevados, os quais com o tempo diminuem devido ao aperfeiçoamento das técnicas de
produção, ao estabelecimento de sistemas de distribuição mais eficientes e ao aumento de escala
permitido pela expansão do seu consumo. O estímulo ao consumo de produtos de qualidade, assim,
é importante para o aperfeiçoamento das condições técnicas de produção, o qual permite a expansão
do consumo tendendo a neutralizar os privilégios criados pelo mesmo. Além disto, o próprio
aumento da renda dos consumidores pode provocar mudanças no seu comportamento em relação a
estes produtos, na medida em que eles passam a satisfazer de forma mais completa as suas
necessidades. O resultado desses processos em conjunto é que a relação com a renda desses
produtos é semelhante ao de produtos de luxo até certa quantidade consumida e depois passam a se
comportar como produtos correntes. A relação entre gastos com consumo de produtos de qualidade
e a renda do consumidor é ilustrado na figura 2. A forma da curva mostrada nesta figura indica que
o estímulo à produção e ao consumo de produtos de qualidade, não necessariamente cria privilégios
(pelo menos não de forma permanente). E dados os seus efeitos benéficos para a população e ao
aperfeiçoamento das condições de produção, em uma sociedade socialista, portanto, não se trataria,
conforme uma crença generalizada, de assegurar que todos consumam produtos homogêneos, cuja
qualidade só poderia aumentar se estes pudessem ser disponibilizados a todos. A melhoria da
qualidade dos produtos pode ocorrer de forma progressiva em uma sociedade socialista, nela
mantendo-se como uma preocupação permanente, sem que isto represente qualquer ameaça de
desvirtuá-la como tal. Por outro lado é preciso levar em conta que, em geral, produtos de maior
qualidade exigem mais tempo de trabalho podendo, também, exigir mais recursos naturais para
76
serem produzidos. A decisão de produzi-los implica em assumir a consequência da necessidade de
mais trabalho e maiores preços. Além disto, na medida em que os produtos de qualidade não
poderiam estar ao alcance de todos, pelo menos durante certo período (cuja duração, aliás, é difícil
de ser prevista), é preciso definir quem os consumirá.
Um exemplo, que trata de uma questão de primeira importância atualmente, pode contribuir
para a reflexão sobre uma situação como esta. Trata-se da necessidade de consumir produtos
agropecuários mais saudáveis ao consumidor e menos agressivos ao ambiente e à saúde humana.
Supondo que, diante de problemas ambientais e sanitários como a poluição e o aquecimento global
provocado pelo intenso uso de combustíveis fósseis, assim como a diminuição da biodiversidade e
os danos à saúde humana provocados pelos agrotóxicos, uma sociedade deseje diminuir o uso
desses insumos. Para tanto ela procura estimular a demanda específica de produtos gerados por
técnicas alternativas, mais econômicas em insumos químicos exigindo, porém mais tempo de
trabalho e superfície de terra. Vamos supor também que a escassez de terra não permita que as
técnicas alternativas, que apresentam menores rendimentos por superfície, substituam totalmente as
técnicas convencionais. Na definição de uma demanda específica de produtos gerados por técnicas
alternativas, assim, a não observância da compatibilidade entre os rendimentos proporcionados por
estas técnicas e a disponibilidade de terra pode ter consequências negativas, podendo até provocar
um aumento do uso de agrotóxicos. Este resultado é provocado pelo fato de, ao causar uma escassez
de terra, uma demanda elevada de produtos gerados por técnicas alternativas implica na aplicação
de técnicas com maiores rendimentos, o que, de imediato, é assegurado pelo maior emprego de
0 2000 4000 6000 8000 10000 120000
200
400
600
800
1000
1200
1400
Renda (unidades monetárias)
Co
nsu
mo
(u
nid
ad
es
mo
ne
tári
as)
Figura 2: Consumo de produtos de qualidade em função da renda.
77
insumos químicos, dentre os quais os agrotóxicos. Uma demanda exagerada de produtos gerados
com técnicas alternativas em um contexto de escassez de terra, assim, pode se tornar incompatível
com o potencial produtivo destas técnicas, podendo provocar um uso ainda maior de agrotóxicos
por meio das técnicas convencionais, no quadro de uma agricultura com forte dualismo tecnológico.
Esta situação pode ser ilustrada por um modelo simplificado de planificação, cujos
coeficientes são descritos na tabela 18.
Como pode ser observado na tabela 18, o modelo compreende duas culturas, (a) e (b), que
podem ser produzidas por técnicas convencionais ou alternativas. Além da técnica alternativa, há
duas técnicas convencionais disponíveis para a produção da cultura (a), sendo que a técnica II usa
uma quantidade muito maior de agrotóxicos do que a outra técnica convencional.
A partir dos coeficientes mostrados na tabela 18 foi formulado o modelo de planificação,
cujo problema primal é,
Minimizar 0.2 aII+0.5 a1+5 a2+1.2b 1+5.5 b 2+ag+0.2 c (93)Sujeito às restrições
aII+a 1+a2≥500 (94)
a2≥410 (95)
b 1+b 2≥100 (96)
b2≥85 (97)
−5 aII−3.75 a1−2.4 a2 – 4.6b 1−2.2 b 2+ag≥0 (98)
−20a II−12.5 a1−12 a2−7.2 b 1−5b 2+c≥0 (99)
2 ag+1.5 c≤15125 (100)
Tabela 18: Coeficientes técnicos do modeloCultura “a” Cultura “b”
Agrotóxicos Combustível
0,2 0,5 5 1,2 5,5 1 0,2
5 3,75 2,4 4,6 2,2
20 12,5 12 7,2 5
Petróleo por produto 2 1,5
0,1 0,125 0,2 0,04 0,1
Fonte: elaborado pelo autor
Técnica convencional II
Técnica convencional
Técnica alternativa
Técnica convencional
Técnica alternativa
Tempo de trabalho por produtoAgrotóxicos por produtoCombustível por produto
Área de terra por produto
78
−20a II−12.5 a1−12 a2−7.2 b 1−5b 2+c≥0 (99)
0.1 aII+0.125a1+0.2 a2+0.04 b1+0.1 b2≤102.5 (101)onde,
a1 = quantidade do produto de consumo (a) gerado com a técnica 1 (convencional)
a2 = quantidade do produto de consumo (a) gerado com a técnica 2 (alternativa)
b1 = quantidade do produto de consumo (b) gerado com a técnica 1 (convencional)
b2 = quantidade do produto de consumo (b) gerado com a técnica 2 (alternativa)
ag = quantidade de agrotóxicos consumidos
c = quantidade de combustíveis consumidos
A partir do problema primal foi obtido o problema dual do modelo, o qual fornece os preços
dos produtos e as rendas relacionadas à exploração do petróleo e ao uso da terra. O problema dual
foi formulado como,
Maximizar 500 pa+410 spa+100 pb+85 spb+0 pag+0 pc−15125rpt – 102.5 rt (102)Sujeito às restrições
pa−5 pag−20 pc−0.1 rt≤0.2 (103)
pa−3.75 pag−12.5 pc−0.125 rt≤0.5 (104)
pa−2 pag−12 pc−0.2rt≤5 (105)
pb – 4.6 pag – 7.2 pc−0.04 rt≤1.2 (106)
pb−2.2 pag−5 pc−0.1rt≤5.5 (107)
pag−2 rpt≤1 (108)
pc−1.5 rpt≤0.2 (109)onde
pa = preço do produto de consumo (a)
spa = sobrepreço do produto (a) gerado pela técnica alternativa
pb = preço do produto de consumo (b)
spb = sobrepreço do produto (b) gerado pela técnica alternativa
pag = preço dos agrotóxicos
rpt = renda gerada pela escassez de petróleo
Os principais resultados fornecidos pela solução são mostrados na tabela 19. Observa-se
nesta tabela que a técnica convencional II não é empregada para a geração do produto (a). Além
disto, observa-se também na tabela 19 que os preços dos produtos gerados com técnicas alternativas
79
são mais elevados do que os gerados com as técnicas convencionais. Essas diferenças de preço são
explicadas pela existência das demandas específicas de produtos gerados com técnicas alternativas.
O valor agregado obtido pela aplicação de oito unidades de tempo de trabalho nas mesmas
condições em que foram obtidos os resultados mostrados na tabela 19 é mostrado na tabela 20.
Observa-se na tabela 19 que a cultura convencional II proporcionaria um valor agregado
bastante negativo, o que mostra que ela se encontra longe da base ótima, sendo inviável
economicamente mesmo sem restrições de petróleo e terra.
Tabela 19: Principais resultados obtidos com a solução do modelo considerando demandas específicas de 410 e 85 unidades dos produtos (a) e (b) gerados com as técnicas alternativas.
Custo total em tempo de trabalho e valor agregado 5.473,60 5.473,600,00
6,7590,00410,00 9,8015,00 7,2485,00 8,70
Agrotóxicos aplicados 1.577,50 1,00Combustíveis consumidos 6.578,00 0,20Petróleo consumido 13.022,00 0,00Terra cultivada 102,35 0,00Fonte: elaborado pelo autor.
Produção ou uso (físico)
Preço ou renda (monetário)
Produto de consumo (a) gerado com a técnica convencional IIProduto de consumo (a) gerado com a técnica convencionalProduto de consumo (a) gerado com a técnica alternativaProduto de consumo (b) gerado com a técnica convencionalProduto de consumo (b) gerado com a técnica alternativa
Tabela 20: Valor agregado obtido pela aplicação de oito unidades de tempo de trabalho considerando demandas específicas de 410 e 85 unidades dos produtos (a) e (b), respectivamente, gerados com técnicas alternativas.
Combustível
Produção 40 16,00 1,60 6,67 1,45
Valor da produção 270 108,00 15,68 48,27 12,65
Agrotóxicos 200 60,00 3,84 30,67 3,20 8,00
Valor agrotóxicos 200 60,00 3,84 30,67 3,20 8,00
Combustíveis 800 200 19,2 48,00 7,27 40,00
Valor combust. 160 40 3,84 9,60 1,45 8,00
Renda petróleo 0,00 0,00
Renda da terra 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00
Valor agregado -90,00 8,00 8,00 8,00 8,00 8,00 8,00
Fonte: elaborado pelo autor
Produto de consumo (a) Produto de consumo (b)Insumos químicosTécnica
convencional IITécnica
convencionalTécnica
alternativaTécnica
convencionalTécnica
alternativa
80
No entanto, esses resultados mudam radicalmente se a demanda específica de produtos
gerados com técnicas alternativas ultrapassa certo limite. Para evidenciar este fenômeno, foi
realizada nova simulação considerando uma demanda de 425 e 90 unidades dos produtos (a) e (b),
respectivamente, gerados pelas técnicas alternativas. Os principais resultados obtidos com esta nova
solução são mostrados na tabela 21. Observa-se nesta tabela que a cultura convencional II entra na
base ótima, sendo responsável por 51 unidades produzidas, sendo que a cultura convencional passa
a gerar 24 unidades. A entrada da cultura convencional II na base ótima explica-se pela escassez de
terra, o que pode ser constatado pelo total da área cultivada corresponder à área disponível, assim
como pela existência de uma elevada renda da terra, de 98 unidades, como observa-se na tabela 21.
Também neste caso, observa-se na tabela 21 que os preços dos produtos gerados com técnicas
alternativas são mais elevados do que os gerados com as técnicas convencionais devido as
demandas específicas de produtos gerados com técnicas alternativas.
Na tabela 22 são apresentados os resultados obtidos a partir da aplicação de oito unidades de
tempo de trabalho nas atividades consideradas no modelo, de acordo com os resultados mostrados
na tabela 21.
Tabela 21: Principais resultados obtidos pela solução modelo considerando demandas específicas de 425 e 90 unidades dos produtos (a) e (b), respectivamente, com escassez de terra.
5.651,60 5.651,60
51,0019,00
24,00
425,00 29,40
10,00 11,16
90,00 18,50
Agrotóxicos aplicados 1.609,00 1,00
Combustíveis consumidos 6.942,00 0,20
Petróleo consumido 13.631,00 0,00
Terra cultivada 102,50 98,00
Fonte: elaborado pelo autor.
Produção ou uso (físico)
Preço ou renda (monetário)
Custo total em tempo de trabalho e valor agregado
Produto de consumo (a) gerado com a técnica convencional IIProduto de consumo (a) gerado com a técnica convencionalProduto de consumo (a) gerado com a técnica alternativaProduto de consumo (b) gerado com a técnica convencionalProduto de consumo (b) gerado com a técnica alternativa
81
Observa-se na tabela 22 que, com a escassez de terra provocada pela excessiva demanda
específica dos produtos alternativos, todas as técnicas tornam-se eficientes, o que pode ser
constatado pelo montante do valor agregado ser equivalente ao número de unidades de tempo de
trabalho aplicadas. É interessante salientar, assim, que a cultura convencional II, cujo elevado
consumo de agrotóxicos e combustíveis a tornava inviável anteriormente, passa a se tornar viável
economicamente devido ao fato da elevada demanda de produtos gerados pelas técnicas alternativas
não permitirem que a demanda seja satisfeita sem a intensificação do uso de insumos para a
obtenção de maiores rendimentos na área cultivada com técnicas convencionais. Além disto, como
observa-se na tabela 22, a escassez de terra gera rendas que são muito mais elevadas no caso das
culturas convencionais, principalmente as produzidas com a técnica II, do que no caso das culturas
alternativas. Isto implica que, se as rendas geradas pela escassez de terras forem apropriadas nas
unidades de produção, somando-se ao valor agregado, elas estimulariam muito mais as técnicas
convencionais, especialmente as que empregariam mais insumos químicos, do que as alternativas.
Os resultados mostrados nas tabelas 21 e 22 mostram que a definição de demandas
específicas de produtos alternativos que exigem menor quantidade de insumos químicos pode levar
a uma intensificação do uso destes insumos na agricultura, caso a demanda desses ultrapasse certo
limite, definido pela área disponível. Ultrapassado este limite, além de provocar o aumento do uso
de insumos químicos, as demandas específicas de produtos alternativos provocam um aumento do
seu preço bem mais acentuado do que o do produto gerado pelas culturas convencionais.
Tabela 22: Valor obtido pela aplicação de oito unidades de tempo de trabalho com os preços e renda gerados pela consideração de demandas específicas dos produtos gerados com técnicas alternativas.
Combustível
Produção 40 16,00 1,60 6,67 1,45
Valor da produção 760 304,00 47,04 74,40 26,91
Agrotóxicos 200 60,00 3,84 30,67 3,20 8,00
Valor agrotóxicos 200 60,00 3,84 30,67 3,20 8,00
Combustíveis 800 200 19,2 48,00 7,27 40,00
Valor combust. 160 40 3,84 9,60 1,45 8
Renda petróleo 0
Renda da terra 392,00 196,00 31,36 26,13 14,25
Valor agregado 8,00 8,00 8,00 8,00 8,00 8,00 8,00
Fonte: elaborado pelo autor
Produto de consumo (a) Produto de consumo (b)Insumos químicosTécnica
convencional IITécnica
convencionalTécnica
alternativaTécnica
convencionalTécnica
alternativa
82
Por outro lado, pode-se alegar que a qualidade sanitária e nutricional superior decorrente do
menor uso de agrotóxicos pelo produto alternativo justificaria o sobrepreço pago pelo mesmo. Neste
sentido, tal sobrepreço não implicaria apenas em um aumento do valor monetário, mas também em
um efetivo aumento de riqueza. Por outro lado, é importante observar que tal geração de riqueza
não permite que maior número de pessoas possam ser alimentadas, com a demanda total do produto
permanecendo a mesma, além de poder agravar os problemas ambientais e sanitários, sendo, assim,
contraditória com os objetivos das decisões que a definiram.
Esses resultados indicam que o estímulo ao consumo de produtos de maior qualidade deve
ser feito por meio de uma cuidadosa planificação. Muitas vezes, como no caso aqui analisado, pode
não ser possível que a sua produção possa suprir toda a demanda. Isto não implica, porém, que estes
produtos não devam ser produzidos, mas apenas que decisões racionais e democráticas sejam
tomadas em relação a quem os consumirá. No caso aqui analisado, por exemplo, os produtos
gerados por técnicas alternativas poderiam ser destinados prioritariamente a escolas, hospitais e
asilos, até que o aperfeiçoamento das técnicas e a melhoria das condições de produção em geral
permitam que o seu consumo possa se expandir. Neste caso, como comentado anteriormente, estes
produtos poderiam deixar de ser destinados a públicos específicos (podendo, neste caso, ser
considerados como produtos de luxo, mesmo em uma sociedade socialista!) para se tornar de
consumo corrente. Neste ponto é interessante salientar que a consideração da geração de produtos
de qualidade na planificação, mesmo que estes não possam suprir toda a demanda devido aos
recursos disponíveis, pode ser um meio importante para estimular o progresso técnico e a
implantação de infraestruturas, de forma que as condições de produção e de troca passem a ser
(mesmo que progressivamente) compatíveis com a demanda e os recursos disponíveis.
Enfim, é importante salientar que o mesmo problema se coloca nas sociedades capitalistas.
Nestas, porém, o consumo dos produtos de melhor qualidade tende fortemente a ser reservado às
classes que possuem maior poder aquisitivo (que representam a “demanda solvável”). Além disto,
as vantagens de vender produtos de qualidade diferenciada no capitalismo estimula os seus
promotores a estender ao máximo o período em que eles apresentam características de produto de
luxo por meio, por exemplo, da criação de marcas as custas de intensa propaganda, muitas vezes
acompanhada de alterações meramente cosméticas do produto.
Investimentos e crescimento econômico
Até o momento, os preços têm sido discutidos neste livro como uma medida que permite
estabelecer os valores relativos dos produtos, assim como uma informação importante para a
83
alocação dos recursos nas unidades de produção. Para tanto basta considerar apenas preços
relativos, independentemente da massa monetária. Isto foi possível porque, embora o modelo geral
de formação dos preços apresentado no segundo capítulo já considera os investimentos sendo
apontada a sua relação com a formação de excedentes, a influência dos investimentos sobre a
dinâmica da reprodução econômica não foi considerada. Por esta razão, os exemplos numéricos
discutidos até aqui sempre descreviam a economia em reprodução simples.
A análise dos investimentos, porém, exige atribuir um papel ativo da moeda na economia.
Por outro lado a moeda é apenas um instrumento para viabilizar os investimentos e não a sua
origem. Neste sentido, não se pode afirmar que o investimento seja uma operação meramente
financeira. Assim, afinal, qual é a natureza do investimento? Qual é a sua origem? E qual é a sua
influência na dinâmica da economia? Estas questões são discutidas nos itens a seguir.
A natureza dos investimentos
Um investimento é, fundamentalmente, um adiantamento de recursos para introduzir novas
atividades ou aumentar a produção das atividades existentes. No capitalismo considera-se que tais
recursos devem ser adiantados (ou seja, “emprestados”) por meio de certo valor monetário
designado genericamente como “capital”, mediante a concessão ao financiador de uma parte da
produção por meio de uma taxa de juros aplicada sobre este capital, considerando o tempo de
duração do empréstimo. Disto decorre que a rentabilidade do capital, baseada nas relações entre os
juros, o valor monetário emprestado e o tempo do empréstimo, seja considerada como o critério
“natural” para a análise de um investimento. Como a rentabilidade do capital é analisada
considerando-se o tempo, ela dá origem a diversos indicadores como a taxa interna de retorno, o
valor presente do saldo projetado, o tempo de recuperação do capital, o retorno sobre a unidade
investida, entre outros.
No entanto, a rentabilidade do capital é, efetivamente, um critério adequado para a análise
de um investimento? Esta questão se justifica porque um valor monetário não corresponde,
necessariamente, à existência de recursos materiais, na medida em que valores monetários e
riquezas materiais são categorias econômicas distintas. Por exemplo, a acumulação gerada por um
produto pode ser realizada em termos físicos, quando ele é simplesmente armazenado, ou em
termos monetários, quando ele é vendido. Neste último caso, considerando que o preço do produto
permaneça constante, normalmente as duas opções são consideradas equivalentes. Isto porque, nos
dois casos, o produtor poderá ter acesso a uma quantidade do produto no futuro equivalente a que
ele produziu. No entanto, o produto por ele gerado que ele vendeu pode ter sido consumido (o que
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normalmente acontece), não existindo mais. Neste caso, o produto que ele poderá adquirir a partir
do valor monetário que ele acumulou corresponde a uma parte de um fluxo de produção corrente e
não a um estoque de produto físico acumulado. Na verdade, ao acumular um valor monetário, o
produtor adquiriu o direito de acessar à certa parcela da produção social, o que é totalmente
diferente da acumulação de uma produção física. O mesmo ocorre com um empréstimo de capital.
Neste caso não se está adiantando os recursos físicos necessários ao aumento da produção, mas sim
concedendo o direito de adquirir tais recursos produzidos socialmente. E nada garante que tais
recursos já estejam acumulados. Ao contrário, o mais comum é que tais recursos deverão deixar de
ser aplicados em outras atividades até que sua a produção possa se expandir. Assim, o empréstimo
de um valor monetário não se constitui em um verdadeiro adiantamento, mas apenas em uma
transferência de recursos entre atividades.
Neste ponto, porém, surge a questão: que tipo de adiantamento é necessário para aumentar a
produção? Ou, de que adiantamento se trata? A resposta é o tempo de trabalho que deve ser aplicado
para o aumento da produção. Assim, o investimento é, em última instância, mais tempo de trabalho
socialmente necessário à produção. Pode-se alegar que a produção pode aumentar simplesmente a
partir do aumento da produtividade obtido com a mesma quantidade de recursos, o que permitiria
produzir mais com o mesmo tempo de trabalho. Porém, é preciso lembrar que para que novas
técnicas que permitem aumentar a produtividade possam ser geradas são necessários investimentos
para desenvolvê-las. Assim, um investimento para aumentar a produção sempre implica, pelo
menos imediatamente, em aumentar o tempo de trabalho.
Portanto, o “financiamento” de um excedente dos meios de produção necessários para
aumentar a geração de produtos de consumo final nos próximos ciclos de produção corresponde ao
tempo de trabalho necessário para a produção de tal excedente. Isto mostra que é o aumento do
tempo de trabalho que, em última instância, financia o crescimento econômico. Este financiamento
ocorre por meio de um aumento da massa monetária para manter os trabalhadores que assegurarão o
aumento do tempo de trabalho, a qual se constitui em uma transferência de poder de compra, por
meio do crédito oriundo do setor financeiro da economia. Em uma economia socialista este setor
pode estar diretamente vinculado ao Estado, que pode emitir moeda para formar fundos de
investimento a partir das necessidades sociais de aumento da produção. Isto mostra que todo o setor
financeiro capitalista, com a sua influência extremamente perniciosa sobre a economia, poderia
simplesmente ser extinto em uma economia socialista. Isto não implica que, no socialismo, o setor
financeiro deva ser totalmente centralizado. Embora esta questão mereça uma análise mais
profunda, bancos regionais com certa autonomia de emissão de moeda poderiam ser interessantes
na medida em que isto facilitaria o seu controle social.
85
No socialismo os bancos, portanto, não seriam empresas privadas e, bastando para a sua
manutenção apenas considerar os seus gastos de funcionamento, como em qualquer setor público.
Os financiamentos seriam concedidos para associações de trabalhadores a partir das necessidades
definidas pela planificação e pela análise da capacidade da atividade em proporcionar um valor
agregado proporcional ao tempo de trabalho aplicado na unidade de produção, com base em um
índice de preços.
Em todo caso, sem o aumento da massa monetária (que ocorre mesmo nas economias
capitalistas), os trabalhadores que geram os excedentes não poderiam ser pagos e estes excedentes
gerados não poderiam ser vendidos. O aumento da massa monetária, portanto, em um primeiro
momento apenas implica em uma redistribuição dos produtos de consumo, cuja produção só pode
aumentar depois do aumento da produção. Em certos casos, como será discutido mais adiante, o
aumento da produção destinada ao consumo final só pode ocorrer após o aumento dos novos meios
de produção que a gerará, o que implica que o aumento do tempo de trabalho pode durar vários
ciclos de produção antes que o consumo de produtos finais possa ser aumentado. Estado e setor
financeiro, assim, apenas aparentemente financiam o crescimento econômico. Esta redistribuição,
equivalente ao tempo de trabalho não pago que implica o investimento (que o aumento da massa
monetária apenas dilui na sociedade, dependendo de quem a recebe), corresponde é a origem do
financiamento. Muitas vezes, este aumento do tempo de trabalho sem consumo é denominado
“poupança”, aliás, de forma bastante confusa. Assim, em uma economia monetária, com alta divisão
social do trabalho, é tal “poupança” que é gerada pelo investimento e não o inverso. A crença
comum de que os investimentos exigem uma diminuição do consumo e, portanto, da demanda (ao
invés do aumento do tempo de trabalho com a mesma demanda) é inconsistente, na medida em que
esta diminuição provocaria uma queda na quantidade de meios de produção a serem repostos no
ciclo, o que anularia os excedentes gerados.
No modelo apresentado no segundo capítulo, que consideramos como um sistema básico de
planificação, um aumento da produtividade provoca uma queda dos preços. No entanto, como o
aumento da produtividade normalmente decorre de investimentos, é o aumento da massa monetária
e não a queda dos preços que decorre do aumento da produtividade, com os preços em termos
relativos, porém, se mantendo os mesmos. Uma consequência importante do aumento da massa
monetária que ocorre concomitantemente com o aumento da produção é que valor agregado passa a
apresentar certa correlação com a produção de riquezas. É por esta razão que o Produto Interno
Bruto, que corresponde ao valor agregado, pode ser considerado como um indicativo da produção
de riquezas. No entanto, é importante salientar que isto de forma alguma implica que as categorias
do valor (mesmo que este seja apenas monetário) e da riqueza, tanto em termos conceituais como
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práticos, possam ser considerados como estritamente equivalentes, como comumente eles o são.
Isto porque a correlação entre valor agregado e riqueza, mesmo quando o aumento da riqueza
implica em expansão da massa monetária, está longe de ser perfeita. Em muitos casos, o valor
monetário pode variar e a riqueza permanecer a mesma. Por exemplo, a simples monetarização de
certas atividades antes geradas no âmbito doméstico (como a produção para o autoconsumo nas
unidades de produção agropecuárias) faz com que o produto de tais atividades passe a ser
considerado no valor agregado nacional, mesmo que a quantidade produzida, e as condições em que
esta produção é gerada, permaneçam exatamente as mesmas.
Em suma, os pontos mais importantes relativos a análise da natureza dos investimentos aqui
realizada permitem afirmar que o investimento se constitui, essencialmente, no tempo de trabalho
adicional que o conjunto dos trabalhadores de uma sociedade devem dedicar à produção; e que o
critério fundamental para a escolha de alternativas de investimento deve ser o valor agregado, em
termos absolutos, e não a taxa de juros, que não existiria em uma economia socialista.
Os investimentos na dinâmica da economia
Os aspectos relativos aos investimentos descritos anteriormente tem consequências
importantes na dinâmica da economia, na medida em que com isto ela pode apresentar maior
diversidade de comportamento (maior grau de liberdade). Estas consequências podem ser ilustradas
por um exemplo numérico baseado no modelo de planificação apresentado no segundo capítulo.
Neste exemplo foi formulado um modelo que formaliza uma economia na qual há produtos de
consumo, representados por (c), de meios de produção monocíclicos, representados por (mp1) e
(mp3) e multicíclicos (mp2). Os excedentes destes meios de produção são representados por (emp1),
(emp2) e (emp3), respectivamente. A vida útil dos meios de produção multicíclicos é representada
por (v), cuja multiplicação por (emp2) fornece o estoque que deve ser mantido de meios de produção
multicíclicos. A vida útil (v) dos meios de produção multicíclicos foi considerada de 10 ciclos de
produção. Os meios de produção (mp3) dependem de recursos naturais para serem produzidos.
Todos os produtos (de consumo e meios de produção) podem ser gerados por meio de duas técnicas
(representadas pelos sufixos 1 e 2). A tabela 23 mostra os coeficientes técnicos do modelo. Nesta
tabela os coeficientes negativos descrevem a demanda de meios de produção por unidade de
produto, exceto no caso dos recursos naturais cujos coeficientes de demanda são positivos. Os
coeficientes unitários indicam qual meio de produção é demandado. Salientamos, conforme mostra
a tabela 23, que (mp3) depende de (mp2) e (mp1), assim como (mp2) exige (mp3), para serem
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produzidos, o que introduz certa interdependência entre os meios de produção que não formam,
assim, uma simples cadeia de produção.
A partir dos coeficientes mostrados na tabela 23 foi formulado o problema primal do
modelo, cuja solução fornece as quantidades de (c), assim como os excedentes de (mp1), (mp2) e
(mp3). A partir dessas quantidades o problema primal fornece o tempo de trabalho socialmente
necessário para a geração de cada produto, fornecendo também o total do tempo de trabalho
socialmente necessário. Este problema primal é descrito como,
Min 2c1+60c2+15mp11+50mp12+3mp21+20mp22+3emp21+20emp22+2mp31+10mp32
(11
0)Sujeito às restrições
c1+c2≥100 (111)
−4 c1−3 c2+mp11+mp12≥emp1 (112)
−0.3mp11−0.1mp12+mp21+mp22−0.4 mp31−0.3mp32≥emp2 (113)
emp21+emp22≥ v emp2 (114)
−2mp21−mp22−2emp21−emp22+mp31+mp32≥emp3 (115)
6 mp31+4 mp32≤100000 (116)
A partir do problema primal foi obtido o problema dual cuja solução fornece os preços e o
valor agregado por produto (pc, pmp1, pmp2, pmp3) e a renda relacionada ao recurso natural (r),
assim como o valor agregado total (maximizado). Este problema dual foi formulado como,
Maximizar 100 pc+0 pmp1+0 pmp2+0 pemp2+0 pmp3−100000r (117)Sujeito às restrições
pc−4 pmp1≤2 (118)
Tabela 23: Coeficientes técnicos do modelo empregado no exemploProdutos de consumo Meios de produção
2 60 15 50 3 20 2 10
Demanda de mp1 -4 -3 1 1Demanda de mp2 -0,3 -0,1 1 1 -0,4 -0,3Demanda de mp3 -2 -1 1 1Demanda de rn 6 4Fonte: elaborado pelo autor
c1
c2
mp11
mp12
mp21
mp22
mp31
mp32
Tem.trabalho/produto
88
pc−3 pmp2≤60 (119)
pmp1−0.3 pmp2≤15 (120)
pmp1−0.1 pmp2≤50 (121)
pmp2−2 pmp3≤3 (122)
pmp2−pmp3≤20 (123)
pem2−2 pmp3≤3 (124)
pem2−pmp3≤20 (125)
−0.4 pmp2+ pmp3−6 r≤2 (126)
−0.3 pmp2+ pmp3−4 r≤10 (127)
Para futuras comparações, é interessante observarmos o sistema em reprodução simples.
Salientamos que o excedente de recursos naturais apenas indica que o mesmo é explorado em
menor quantidade do que poderia, por ciclo de produção (o que indica que o recurso natural é
abundante). A reprodução do sistema em riquezas (quantidades físicas), definida a partir da solução
do problema primal, é descrita na tabela 24.
Multiplicando as quantidades físicas mostradas na tabela 24 pelos preços obtidos pela
solução dual (que forneceu os preços pc = 104, pmp1 = 25,5, pmp2 = 35, pmp3 = 16 e a renda r = 0),
foi obtida a reprodução do sistema em valores monetários, a qual permite calcular o valor agregado
por atividade, mostrada na tabela 25.
Tabela 24: Reprodução simples (sem excedentes) do sistema em riquezas.
recurso natural 100.000
120 400 6.000
1.200 600 1.800
7.200 480 1.200 2.400c 400 100 200Demanda total 7.200 400 600 1.200 10.400Excedente 92.800 0 0 0Total 100.000 400 600 1.200
Recurso natural
mp1
mp2
mp3
Recurso natural e produtos
Tempo de trabalho
mp1
mp2
mp3
89
Em primeiro lugar é interessante observarmos o aumento do tempo de trabalho e as relações
entre oferta e demanda de meios de produção quando existem excedentes. A tabela 26 mostra a
reprodução do sistema em riquezas, considerando uma geração de excedentes necessária para
assegurar um aumento constante da demanda dos produtos de consumo (c) de 20 unidades por ciclo
(estado estacionário).
Observa-se na tabela 26 que o tempo de trabalho aumentou consideravelmente em relação
ao observado com o sistema em reprodução simples (tabela 24), passando de 10.4000 para 62.480
unidades, enquanto a quantidade de produtos de consumo continua a mesma (100 unidades). Isto
implica que a geração de excedentes para assegurar o crescimento econômico faz com que o
consumo de produtos finais por unidade de tempo trabalhada tenha que ser menor. Portanto, o
aumento do emprego em uma economia em crescimento não tem um efeito imediato sobre o
consumo dos trabalhadores. Ou seja, é o aumento do tempo de trabalho que efetivamente financia o
crescimento econômico. A geração de excedentes, evidentemente, implica em maior oferta de meios
de produção do que a demanda, o que pode ser observado na tabela 26. Observa-se também nesta
Tabela 25: Reprodução simples do sistema em valores monetários.
Valor mp
recurso natural 0
4.200 4.200 10.200 6.000
19.200 19.200 21.000 1.800
0 16.800 16.800 19.200 2.400c 10.200 10.200 10.400 200Demanda total 0 10.200 21.000 19.200 10.400Excedente 0 0 0 0 0Total 0 10.200 21.000 19.200 10.400
Recurso natural
mp1
mp2
mp3
Produto bruto
Valor agregado
mp1
mp2
mp3
Tabela 26: Reprodução do sistema em riquezas em crescimento constante, com excedentes para aumentar a demanda de produtos de consumo de 20 unidades por ciclo
recurso natural 100.000
144 480 7.200
15.600 7.800 23.400
95.040 6.336 15.840 31.680c 400 100 200Demanda total 95.040 400 6.480 15.600 62.480Excedente 4.960 80 1.320 240Total 100.000 480 7.800 15.840
Recurso natural
mp1
mp2
mp3
Recurso natural e produtos
Tempo de trabalho
mp1
mp2
mp3
90
tabela que, apesar do aumento significativo da quantidade empregada de recursos naturais por ciclo
provocada pela geração de excedentes, estes ainda são abundantes. Enfim, é interessante observar o
excedente elevado de (mp2) em relação aos demais meios de produção. Isto se explica pela
necessidade de aumentar não apenas as quantidades a serem repostas a cada ciclo, mas também os
estoques dos meios de produção multicíclicos para que houvesse crescimento econômico.
Comparando as tabelas 24 e 26 observa-se que a demanda de (mp2) passou de 600 para
6.480 unidades e a de (mp3) de 1.200 para 15.600 unidades para que a geração dos excedentes
desses meios de produção pudessem ser atingidos, como mostrado na tabela 24. Este grande
aumento da demanda, muito superior aos excedentes, explica-se pelo fato dos meios de produção
(mp2) e (mp3) serem interdependentes (como, por exemplo, o ferro extraído de minas que seria
necessário para a geração de máquinas que, por sua vez, são necessárias para a mineração do ferro).
Isto faz com que boa parte da produção desses meios de produção sejam destinadas a sua própria
produção, gerando proporcionalmente menos excedentes para a geração de (mp1), necessário para o
aumento dos produtos de consumo representados por (c).
Na tabela 27 é mostrada a reprodução do sistema em valores monetários.
Salientamos que, como não há escassez de recursos naturais e o sistema encontra-se em
estado estacionário, os preços são os mesmos dos obtidos com o sistema em reprodução simples,
mostrados anteriormente. A partir dos valores monetários mostrados na tabela 27 fica clara a
necessidade de prover moeda para que os trabalhadores que geram excedentes de meios de
produção ao longo do ciclo (e, portanto, antes que os excedentes possam ser vendidos) possam ser
remunerados, e para que os agentes econômicos possam adquiri-los posteriormente, dada a
superioridade da oferta sobre a demanda. O crescimento econômico, assim, exigiria um aumento da
massa monetária e não uma poupança previamente acumulada.
Tabela 27: Reprodução do sistema em valores monetário em crescimento constante, comexcedentes para aumentar a demanda de produtos de consumo de 20 unidades por ciclo
recurso natural 0
5.040 5.040 12.240 7.200
249.600 249.600 273.000 23.400
0 221.760 221.760 253.440 31.680c 10.200 10.200 10.400 200Demanda total 0 10.200 226.800 249.600 62.480Excedente 0 2.040 46.200 3.840 52.080Total 0 12.240 273.000 253.440 62.480
recurso natural
mp1
mp2
mp3
Valor m. de prod.
Produto bruto
Valor agregado
mp1
mp2
mp3
91
A questão que se coloca é como, efetivamente, um sistema pode passar da reprodução
simples (ou de qualquer estado de menor crescimento econômico) para um estado estacionário, ou
seja, como o sistema se ajusta a partir de um estado inicial para um novo estado estacionário. Esta
passagem não pode ser realizada por uma progressão linear da acumulação. Por outro lado, é
interessante observar que ela não implica que os produtos de consumo só possam ser gerados após o
aumento dos meios de produção. Na verdade, dependendo da diversidade tecnológica, o
crescimento da produção pode ocorrer a partir do aumento do consumo de produtos finais. Isto pode
ocorrer simplesmente por meio da aplicação de técnicas menos exigentes em meios de produção,
que permitam que o aumento da sua produção ocorra posteriormente. A aplicação de tais técnicas,
no entanto, provocam uma elevação considerável dos preços devido ao fato de exigirem mais
trabalho, mas também pelo surgimento de rendas provocadas pela inelasticidade da oferta dos meios
de produção envolvidos.
Isto pode ser ilustrado considerando um aumento de 100 para 120 unidades do consumo de
produtos finais no exemplo numérico aqui discutido, sem aumento dos meios de produção.
Salientamos que para que esta simulação possa ser realizada devem ser adicionadas restrições no
problema primal que expressem as limitações ao aumento da oferta de meios de produção, o que
implica a introdução no problema dual de variáveis que expressem as rendas provocadas por tais
limitações. Os preços obtidos com esta simulação são mostrados na tabela 28.
Observa-se na tabela 28 que o aumento da demanda de produtos finais (c) provocou uma
significativa elevação dos seus preços (de 104 unidades em reprodução simples para 234 unidades
monetárias em reprodução ampliada), assim como do meio de produção (mp1) (de 25,5 unidades em
reprodução simples para 58 unidades em reprodução ampliada), o qual é diretamente aplicado na
geração dos produtos finais em quantidades relativamente altas. A elevação do preço de (mp2) foi
baixa em relação aos preços obtidos em reprodução simples (de 35 unidades em reprodução simples
para 37,5 unidades em reprodução ampliada), assim como de (mp3) (de 16 unidades em reprodução
simples para 17 unidades em reprodução ampliada). Observa-se também na tabela 28 que a
inelasticidade da oferta dos meios de produção provocou o surgimento de rendas relacionadas a
Tabela 28: Preços e rendas obtidos com a demanda de 100 unidades e 120 unidades de produto final (c), sem alteração da oferta dos meios de produção (mp1), (mp2) e (mp3)
c Rec. natural
c = 120Preços 234 58 37,5 17 0Rendas 31,75 0,5 0
c = 100 Preços 104 25,5 35 16 0Fonte: elaborado pelo autor
mp1
mp2
mp3
92
(mp1), mais elevadas, e (mp2), bem mais baixas. No entanto, salientamos que, para manter a
eficiência na alocação dos recursos, tais rendas devem ser apropriadas pela sociedade por meio de
impostos, para serem redistribuídas de acordo com as necessidades sociais, inclusive para aumentar
o consumo de produtos finais por unidade de tempo de trabalho, diminuindo o impacto do aumento
dos seus preços, se assim for decidido. Evidentemente, como a quantidade de meios de produção
não foi alterada, o mesmo ocorreu com a demanda de recursos naturais.
Na tabela 29 é mostrado o esquema de reprodução em termos de riquezas, considerando
uma geração de produtos finais de 120 unidades, porém mantendo-se a quantidade dos meios de
produção nos níveis de quando a geração de produtos finais era de 100 unidades (conforme
mostrado na tabela 25). Observa-se na tabela 29 que o valor total em tempo de trabalho é de 15.080
unidades, o que representa um aumento significativo em relação às 10.400 unidades geradas com o
sistema em reprodução simples, como visto anteriormente na tabela 25. Este aumento é explicado
pela maior exigência de tempo de trabalho das técnicas de geração de produtos finais que passam a
ser empregadas para a economia de meios de produção.
Na tabela 30 é mostrado o esquema de reprodução do sistema em valores monetários obtido
nas mesmas condições da tabela 29. Observa-se na tabela 30 que o valor agregado total é
equivalente ao valor em tempo de trabalho mostrado na tabela anterior (15.080 unidades) mas o
produto bruto do produto final é muito superior ao do total do valor agregado (28.080 unidades).
Como o valor agregado de uma economia corresponde ao valor dos produtos finais (que neste caso
são representados por (c)) subtraído das rendas, a diferença entre o valor agregado total e o produto
bruto dos produtos finais observada na tabela 30 mostra a importância que as rendas provocadas
pela escassez de meios de produção podem ter em um processo de crescimento econômico
desencadeado pelo aumento dos produtos finais.
Tabela 29: Esquema de reprodução em riquezas com (c) = 120 unidades e a mesma a quantidade dos meios de produção de quando (c) = 100.
Produtos
recurso natural 100.000mp1 120 400 6.000mp2 1.200 600 1.800mp3 7.200 480 1.200 2.400c 400 120 4.880Demanda total 7.200 400 600 1.200 15.080Excedente 92.800 0 0 0Total 100.000 400 600 1.200Fonte: elaborado pelo autor
Recurso natural
mp1
mp2
mp3
Tempo de trabalho
93
É interessante analisarmos agora o que ocorreria com os preços com um aumento da oferta
de meios de produção no próximo ciclo de produção, supondo que apenas a quantidade de (mp1)
aumente, de forma a permitir que sejam utilizadas as técnicas necessárias para a produção de (c)
que o empregam em maior quantidade. Estes resultados encontram-se na tabela 31.
Observa-se nesta tabela que, quando a oferta de (mp1) pode ser aumentada, os preços se
restabeleceram a níveis semelhantes aos gerados antes do aumento da produção, quando o sistema
encontrava-se em reprodução simples. A renda gerada pela escassez de (mp2) não se alterou em
relação a mostrada na tabela 28. Com o emprego de técnicas menos exigentes em trabalho, o valor
em tempo de trabalho e o valor agregado em termos monetários obtido foi de 12.540 unidades,
portanto, inferior em relação ao de 15.080 quando foi impossibilitada a alteração da quantidade de
todos os meios de produção.
É importante lembrar que (mp1) é um meio de produção monocíclico. O seu aumento, assim,
corresponde apenas a sua produção por ciclo. Além disto, (mp1) não é utilizado para a geração de
outros meios de produção. O mesmo já não ocorre com (mp2) que, além de ser multicíclico, é
empregado para a geração de (mp1) e (mp3). Além disto, a produção de (mp2) também exige (mp3),
como já mencionado. Assim, para que a oferta de (mp2) reposta em cada ciclo aumente, é necessária
a formação da sua quantidade reposta por ciclo multiplicada pela sua vida útil, a qual no nosso
exemplo é de 10 ciclos. Neste caso, como já não haveria mais restrições de meios de produção e os
Tabela 31: Preços e rendas obtidos com a demanda de 100 unidades e 120 unidades de produto final (c), sem alteração da oferta dos meios de produção (mp2) e (mp3)
c Recurso natural
c = 120Preços 107 26,25 37,5 17 0Rendas 0 0,5 0
c = 100 Preços 104 25,5 35 16 0Fonte: elaborado pelo autor
mp1
mp2
mp3
Tabela 30: Esquema de reprodução em valores monetários com (c) = 120 unidades e a mesma a quantidade dos meios de produção de quando (c) = 100.
recurso natural 0mp1 4.500 4.500 10.500 6.000mp2 20.400 20.400 22.200 1.800mp3 0 18.000 18.000 20.400 2.400c 23.200 23.200 28.080 4.880Demanda total 0 23.200 22.500 20.400 15.080Excedente 0 0 0 0 0Total 0 23.200 22.500 20.400 15.080Fonte: elaborado pelo autor
Recurso natural
mp1
mp2
mp3
Valor do mp
Produto bruto
Valor agregado
94
recursos naturais, como são abundantes, não limitaria a geração de meios de produção que
permitem o emprego das técnicas empregadas que proporcionam maior produtividade do trabalho,
não havendo formação de rendas, os preços voltariam a ser os mesmos dos observados quando o
sistema se encontrava em reprodução simples. No entanto, é interessante observarmos como se
apresentaria a reprodução econômica neste caso. Conforme a tabela 23, que mostra os coeficientes
técnicos do modelo, com a técnica que permite maior produtividade de trabalho são necessárias
quatro unidades de (mp1) por unidade de (c). Para que a produção de (c) passe de 100 para 120
unidades, a exigência de (mp1), assim, passa de 400 unidades, quando a produção de (c) para 480
unidades. Como também mostrado na tabela 23, a geração de uma unidade de (mp1) por meio da
técnica que permite maior produtividade do trabalho exige 0,3 unidades de (mp2). A necessidade de
(mp2) passa, assim, de 600 (400*0,3) para 720 unidades (480*0,3), um aumento de 120 unidades
por ciclo. Para que 120 unidades de (mp2) sejam repostas a cada ciclo é necessária a manutenção de
1.200 unidades (pois a vida útil de (mp2) é de 10 ciclos).
A tabela 32 mostra qual seria a exigência dos meios de produção (mp2) e (mp3), em
quantidades físicas (riquezas), para a reprodução do sistema, considerando um excedente de 1.200
unidades de (mp2).
Como podemos observar na tabela 32, para a geração de um excedente de 1.200 unidades de
(mp2) são necessárias 6.720 unidades deste meio de produção. A exigência de (mp3) para a geração
deste excedente também é significativa, assim como a dos recursos naturais, embora estes
continuem a ser abundantes, não gerando rendas. Consequentemente, a exigência de tempo de
trabalho atinge 54.480 unidades, mais de quatro vezes a 12.540 obtidas anteriormente.
Na tabela 33 é mostrada a reprodução do sistema em valores monetários, nas mesmas
condições da tabela 32.
Tabela 32: Reprodução do sistema em riquezas com uma demanda de 120 unidades de (c) e um excedente de 1.200 unidades de (mp2)
recurso natural 100.000
144 480 7.200
13.440 6.720 20.160
80.640 5.376 13.440 26.880c 480 120 240Demanda total 80.640 480 5.520 13.440 54.480Excedente 19.360 0 1.200 0Total 100.000 480 6.720 13.440
Recurso natural
mp1
mp2
mp3
Recurso natural e produtos
Tempo de trabalho
mp1
mp2
mp3
95
Observa-se nesta tabela que os valores monetários de (mp2) e (mp3) são bastante
significativos, sendo que o valor da demanda de (mp2) é muito superior ao do seu excedente, mesmo
sendo este relativo à acumulação de meios de produção multicíclicos.
O processo de acumulação analisado nos parágrafos anteriores, porém, é apenas um
exemplo específico, dentre muitos que poderiam ser simulados. Na verdade o modelo de
planificação apresentado indica que a acumulação em uma economia monetária é extremamente
complexa devido à flexibilidade proporcionada a esse processo pela diversidade tecnológica. Além
disto é de crucial importância considerar que, ao longo desse processo, surgem inovações
tecnológicas que podem permitem aumentar a produtividade do trabalho. Este aumento pode ser
provocado quer seja pela diminuição do tempo de trabalho diretamente aplicado, com maior
exigência de meios de produção (o que, provavelmente é mais comum); quer seja por uma
diminuição da exigência de meios de produção, com a manutenção, ou um aumento moderado, do
tempo de trabalho diretamente aplicado. Neste caso, as unidades de produção que aplicam tais
inovações obtém uma “quase-renda”, ou seja, uma renda que perdura apenas até que haja o reajuste
dos preços, o que impede que ela seja socializada, representando um incentivo aos trabalhadores à
inovação, conforme discutido anteriormente.
Como foi observado na tabela 32, as grandes quantidades requeridas de (mp2) e (mp3)
resultaram em uma quantidade também elevada de recursos naturais. Neste sentido, é também de
crucial importância destacar a influência que a escassez de recursos naturais pode exercer sobre o
processo de acumulação. Tal escassez provoca a necessidade de empregar técnicas poupadoras de
meios de produção, do que normalmente resulta maior exigência de tempo de trabalho, provocando
no surgimento de rendas, a qual, por sua vez, resulta em aumento dos preços. Evidentemente, este
aumento de tempo de trabalho pode ser revertido por inovações tecnológicas relacionadas à tais
técnicas, o que implica no desenvolvimento de diferentes padrões tecnológicos.
Tabela 33: Reprodução do sistema em valores monetários com uma demanda de 120 unidades de (c) e um excedente de 1.200 unidades de (mp2)
mp1 mp2 mp3
recurso natural 0mp1 5.040 5.040 12.240 7.200mp2 215.040 215.040 235.200 20.160mp3 0 188.160 188.160 215.040 26.880c 12.240 12.240 12.480 240Demanda total 0 12.240 193.200 215.040 54.480Excedente 0 0 42.000 0 42.000Total 0 12.240 235.200 215.040 54.480
Fonte: elaborado pelo autor
recurso natural
Valor m. de prod.
Produto bruto
Valor agregado
Tabela 33: Reprodução do sistema em valores monetários com uma demanda de 120 unidades de (c) e um excedente de 1.200 unidades de (mp2)
recurso natural 0
5.040 5.040 12.240 7.200
215.040 215.040 235.200 20.160
0 188.160 188.160 215.040 26.880c 12.240 12.240 12.480 240Demanda total 0 12.240 193.200 215.040 54.480Excedente 0 0 42.000 0 42.000Total 0 12.240 235.200 215.040 54.480Fonte: elaborado pelo autor
Recurso natural
mp1
mp2
mp3
Valor do mp
Produto bruto
Valor agregado
mp1
mp2
mp3
96
Acumulação e crescimento econômico no socialismo
Nesta seção foi realizada uma análise de como poderia ocorrer uma planificação do
investimento no socialismo visando o aumento do consumo de produtos finais, assim como a
acumulação de meios de produção, ou seja, visando o crescimento econômico. No entanto, é muito
importante salientarmos que, no socialismo, o crescimento econômico não possuiria o mesmo
significado que ele assume no capitalismo. Ocorre que a formação de excedentes de meios de
produção é um componente importante dos lucros dos capitalistas, especialmente quando esta classe
é considerada em seu conjunto. O crescimento econômico, portanto, é imprescindível para a classe
dos capitalistas manter o seu acesso privilegiado às riquezas sociais produzidas pelos trabalhadores
e pela natureza. Além disto, nas sociedades capitalistas o aumento de tempo de trabalho provocado
pelo crescimento econômico se traduz em mais empregos, por meio dos quais os trabalhadores têm
acesso à riqueza. O aumento do tempo de trabalho provocado pelo crescimento econômico traz,
assim, benefícios imediatos aos trabalhadores. Há, portanto, um largo consenso nas sociedades
capitalistas sobre a necessidade de um contínuo crescimento econômico, sendo o “pleno emprego”
considerado uma meta importante. No entanto, os exemplos numéricos discutidos anteriormente
mostram o quão ilusório é pretender manter o pleno emprego ao longo do crescimento econômico.
As mudanças nas técnicas de produção, especialmente as que permitem que a geração de produtos
finais aumente anteriormente ao aumento dos meios de produção, assim como a formação dos
meios de produção multicíclicos, por exemplo, podem provocar significativas alterações no tempo
de trabalho requerido para a reprodução material da sociedade. Estas alterações podem ser
facilmente revertidas ao longo do ciclo de investimentos, o que pode provocar variações de grande
amplitude no tempo de trabalho socialmente necessário à produção. Os exemplos discutidos
anteriormente mostram, assim, o alto grau de abstração normalmente adotado nas discussões sobre
crescimento econômico que não consideram a flexibilidade do sistema econômico permitida pela
diversidade tecnológica e as características discretas da acumulação de meios de produção
multicíclicos. Vale destacar, neste sentido, as grandes polêmicas sobre os limites ao capitalismo
supostamente colocados pela reprodução ampliada, baseadas em modelos altamente abstratos, que
envolveram grandes nomes do marxismo no início do século XX.75
No socialismo, não há razão para atribuir esta importância ao crescimento econômico. Em
primeiro lugar porque o tempo de trabalho nesta sociedade deve ser dividido entre todos, o que faria
75 ROSDOLSKY, R. The Dispute Surrounding the Reproduction Schemes. In ROSDOLSKY, R. The making of Marx’“Capital”. Translated by Pete Burgess. London: Pluto Press Limited, 1977, capítulo 30, p. 445-459. Vale lembrarque os modelos keynesianos, neoclássicos e neoricardianos são ainda mais abusivamente abstratos do que osesquemas de reprodução marxistas.
97
com que os trabalhadores se beneficiassem de forma equânime de um aumento da produtividade do
trabalho (e portanto, da diminuição do seu tempo socialmente necessário). Como discutido ao longo
deste livro, inclusive neste capítulo, a expansão do consumo permitida pela acumulação de meios de
produção e pelo aumento do tempo de trabalho (no caso em que a expansão do consumo não é
acompanhada por aumentos de produtividade, como nos exemplos apresentados) deve ser analisada
não apenas em relação aos seus benefícios (em termos de aumento do consumo de produtos finais)
mas levando em conta também os seus efeitos sociais e ambientais. Isto torna possível que uma
sociedade socialista opte por uma desacumulação de meios de produção que resulte em certo
decrescimento da sua economia, em prol de uma diminuição do tempo de trabalho, proporcionando
mais tempo livre aos indivíduos, ou para empregar menos recursos naturais, diminuindo o impacto
das suas atividades econômicas sobre os sistemas naturais.
A viabilidade computacional da planificação socialista
Até o momento, a planificação socialista foi discutida neste capítulo a partir de um ponto de
vista essencialmente formal e teórico, por meio de exemplos numéricos simples e parciais. Mas é
importante salientar que a planificação de uma economia monetária, na qual os preços
desempenham um papel central no seu funcionamento, exige modelos multissetoriais de grandes
dimensões, que possam considerar senão todos, pelo menos grande parte dos produtos finais, meios
de produção e recursos naturais necessários para a reprodução da sociedade. Por outro lado, é
evidente que não é possível considerar de forma exaustiva todas as condições técnicas existentes,
pois, no limite, tais condições jamais são exatamente as mesmas em duas unidades de produção.
Mas, como mostram os resultados discutidos no segundo capítulo, mesmo considerando apenas as
técnicas mais representativas de certo padrão tecnológico, assim como apenas as heterogeneidades
mais importantes das condições de produção, os preços fornecidos pela planificação seriam muito
mais eficientes do que os definidos pelo mercado capitalista. Neste sentido, a planificação socialista
pode se constituir em um instrumento que pode substituir efetivamente o mercado como processo
de formação dos preços, trazendo as amplas vantagens discutidas anteriormente.
Uma questão que se coloca, no entanto, é a da viabilidade computacional da planificação
proposta neste livro. Para responder a esta questão, é interessante considerar o longo debate sobre a
viabilidade da planificação socialista travado desde os anos 1.930. Nesta época, economistas
neoclássicos, especialmente Friedrich von Hayek e Ludwig von Mises76, pertencentes à chamada
“escola austríaca”, procuraram demonstrar a inviabilidade da planificação socialista como uma
76 Conforme von MISES, L., Economic calculation in the socialist commonwealth. In von HAYEK, F. A. (ed.). Collectivist economic planning. London: Routledge and Kegan Paul, 1935.
98
forma de assegurar um funcionamento adequado da economia, em substituição ao mercado. As
críticas desses autores foram, em geral, consideradas como adequadamente refutadas pela resposta a
elas endereçada por Oscar Lange no final dos anos 1.93077, de modo que o interesse no debate sobre
a viabilidade da planificação socialista diminuiu consideravelmente. Nos anos 1.980, alguns autores
abrem uma nova fase desse debate, aprofundando os argumentos da escola austríaca.78 Nesta nova
fase, porém, este debate está longe de provocar o interesse por ele despertado anteriormente.
A discussão realizada neste livro sobre o socialismo, especialmente neste capítulo dedicado
à planificação, torna grande parte dos argumentos da escola austríaca ultrapassada, o mesmo
ocorrendo e até mesmo com os argumentos empregados na réplica de Oscar Lange. Na verdade, tais
argumentos refletem mais a concepção que cada um dos autores que os formularam tinham do
socialismo do que um debate sobre um objeto comum e bem definido por todos que dele
participavam. Além disto, o contexto atual das sociedades capitalistas são muito diferentes do
contexto da época em que esse debate ocorreu, mesmo em sua segunda fase. Assim, esse debate é
analisado aqui apenas em suas linhas mais gerais, especialmente no que diz respeito às questões de
ordem conceitual e teórica nele levantadas.
De uma maneira geral, os participantes desse debate tinham como pressuposto que, em uma
economia socialista, o tempo de trabalho total aplicado para a geração de um produto substituiria
diretamente o seu preço. Da mesma forma, a remuneração dos trabalhadores seria realizada
considerando diretamente o tempo de trabalho dispendido por cada um. A concepção de uma
economia cujas trocas seriam baseadas diretamente em uma contabilidade do tempo de trabalho,
porém, dá origem a uma série de problemas. Um deles, como argumentaram os economistas da
escola austríaca, era que o fato dos recursos naturais não serem produzidos pelo trabalho tornaria
impossível a sua alocação eficiente (isto é, de forma a proporcionar uma oferta equivalente a
demanda) em uma economia socialista. Outro problema é o dos meios de produção. Como estes
seriam socializados, o que supostamente os excluiria das trocas, isto tornaria o seu valor em tempo
de trabalho irrelevante para a sua alocação. Assim, devido a sua própria socialização, os meios de
produção em uma economia socialista não poderiam ser alocados eficientemente.79 Outro
argumento levantado pelos detratores da planificação socialista é que esta exigiria a definição, de
forma centralizada, de uma “função de bem estar social” para a otimização da alocação dos
recursos. Como a definição pelos próprios planificadores das prioridades dos produtos a serem
consumidos pela população (assim como a alocação dos meios de produção) não poderia deixar de
77 LANGE, O. On the economic theory of socialism. In LIPPINCOTT, B. (ed.), On the economic theory of socialism. New York: McGraw-Hill, 1938.
78 LAVOIE, D. Rivalry and central planning: the socialist calculation debate reconsidered. Cambridge: Cambridge University Press, 1985.
79 von HAYEK, F. A. (ed.). Collectivist economic planning. London: Routledge and Kegan Paul, 1935, p. 91.
99
ser algo arbitrária (quando não antidemocrática), isto mostraria que tais planificadores não
poderiam substituir os consumidores e os empresários que estabelecem as prioridades de consumo e
de produção no capitalismo, de forma descentralizada e supostamente mais democrática. Além
disto, como a produção seria totalmente determinada pela planificação, os produtores não teriam
nenhum incentivo em introduzir inovações técnicas ou formas de organização do trabalho mais
eficientes, o que com o tempo levaria a economia à estagnação e à decadência. Enfim um
argumento bastante enfatizado na segunda fase do debate dizia respeito ao caráter estático da
planificação, o qual contrastaria com o dinamismo de uma economia moderna.80 De acordo com
este argumento, a planificação baseia-se, essencialmente em estabelecer uma condição de equilíbrio
na economia, a qual, no entanto não pode ocorrer em uma economia moderna devido às suas
constantes mudanças determinadas, por exemplo, por inovações técnicas e alterações das
preferências dos consumidores. No capitalismo, o mercado se constituiria em um mecanismo
eficiente de ajustamento da economia a estas características sempre em mutação, algo que a
planificação socialista não poderia assegurar. Enfim, é interessante comentar o argumento principal
avançado por Oscar Lange a estas críticas.81 De acordo com este autor, nada impediria que os
planificadores socialistas adotassem um mecanismo de “tateamento”, isto é, um processo iterativo
para a determinação dos preços, tal como o do leiloeiro proposto por Walras, o qual forneceria os
mesmos resultados que um mercado em concorrência perfeita.82 É interessante observar que Oscar
Lange, que era pouco afeito a teoria marxista do valor, empregou um argumento elaborado a partir
do próprio arsenal neoclássico, o que lhe assegurou certa aceitação por parte destes últimos.
Como já mencionado, a planificação proposta neste livro permite demonstrar a imprecisão
dos argumentos apresentados no parágrafo anterior. Em primeiro lugar, esta planificação é realizada
no quadro de uma economia monetária, na qual os preços orientam os gestores das unidades de
produção, os quais possuem a liberdade de alocar os recursos disponíveis a partir da sua própria
avaliação das condições de produção e das alternativas técnicas. E é importante salientar que,
embora o processo de planificação seja essencialmente centralizado, ele apenas define preços para a
coordenação de processos descentralizados de alocação de recursos na economia. A eficiência
desses processos seria assegurada pelo fato dos preços serem formados estritamente a partir do
tempo de trabalho socialmente necessário à produção, de acordo com a teoria do valor de Marx.
Neste processo de planificação, ao contrário do que afirmavam os economistas da escola austríaca,
80 LAVOIE, D. Rivalry and central planning: the socialist calculation debate reconsidered. Cambridge: Cambridge University Press, 1985.
81 LANGE, O. On the economic theory of socialism. In LIPPINCOTT, B. (ed.), On the economic theory of socialism. New York: McGraw-Hill, 1938.
82 LENDJEL, E. Walras et le tâtonnement: Gauss-Seidel ou ... Lagrange? Œconomia-History/Methodology/ Philosophy, NecPlus/Association Œconomia, 2001, série PE (35), pp.1627-1655.
100
não haveria dificuldade alguma em determinar as rendas decorrentes da escassez de recursos
naturais ou os preços dos meios de produção de forma a assegurar a eficiência da sua alocação.
Além disto, a planificação permitiria que na economia socialista o próprio desequilíbrio provocado
por inovações técnicas se constituiria em uma vantagem na medida em que permite a apropriação
de quase-rendas (rendas temporárias devido as condições de desequilíbrio) por unidades de
produção que conseguissem aumentar a sua produtividade. A economia socialista, assim, permite
mobilizar a criatividade dos trabalhadores, a qual teria como aliado um sistema de pesquisa e
desenvolvimento tecnológico voltado para os interesses de toda a sociedade.
É importante salientar, também, que o sistema de planificação aqui proposto não comporta
qualquer tipo de “função de bem estar social”. Isto decorre da concepção de que as necessidades
sociais seriam determinadas fundamentalmente por processos extraeconômicos, os quais nas
sociedades capitalistas ocorrem no âmbito da luta de classes. Neste sentido, não há, mesmo no
capitalismo qualquer tipo de “função de bem estar” capaz de definir um estado ótimo da economia.
Nos modelos neoclássicos, tais funções (ou “funções de utilidade”, como são comumente
denominadas) se constituem apenas em construções altamente abstratas, e extremamente
problemáticas do ponto de vista da sua cientificidade83, que procura apenas consagrar o mercado
como forma de alocação dos recursos na sociedade, o que, invariavelmente, favorece a apropriação
pelos capitalistas das riquezas sociais produzidas pelos trabalhadores. E mesmo que não se possa
afirmar que no socialismo não haverá conflitos de classe, a eliminação do poder econômico
exercido por uma classe sobre outra permite pensar o socialismo como um sistema social
incomparavelmente mais democrático e economicamente mais eficiente do que o capitalismo.
Resta, no entanto, uma questão ainda não tratada neste livro. Trata-se da viabilidade do
recolhimento do imenso número de informações e pelo seu processamento por modelos de grandes
dimensões que requereria a planificação de uma economia socialista como a proposta neste livro.
No entanto, se os problemas que estas questões levantam se constituíam em obstáculos praticamente
insuperáveis até algumas décadas atrás, atualmente eles podem ser resolvidos com relativa
facilidade. No que diz respeito a coleta de informações, em uma sociedade socialista os
instrumentos atualmente existentes de coleta de informações, como os enormes bancos de dados
detidos por empresas da Internet, bancos e pelo próprio Estado (os “Big Data”), poderiam ser
orientados para a planificação, o que certamente resolveria o problema relativo à sua alimentação
com dados apropriados.84 Em relação a capacidade de tratamento desses dados, de forma a resolver
modelos cujas dimensões podem chegar a dezenas de milhões de variáveis, também neste caso os
83 Como mostra, por exemplo, FELIPE, F.; MCCOMBIE, J.S.L. The Aggregate Production Function: ‘Not Even Wrong’, Review of Political Economy, 26:1, 2014, 60-84 ; e
84 DURAND, C.; KEUCHEYAN, R. Planifier à l’âge des algorithmes. Actuel Marx, nº 65, 2019.
101
obstáculos parecem estar superados. De fato, nas últimas décadas têm havido um grande avanço na
velocidade de cálculo dos processadores e no uso de estratégias para aumentar a capacidade de
cálculo como, por exemplo, a computação paralela.85 Além disto, a arquitetura dos algoritmos e o
desenvolvimento de várias técnicas para a solução de problemas de grandes dimensões86, tornam
certos pacotes computacionais capazes de resolver problemas de programação linear com dezenas
de milhões de variáveis, mesmo por meio de “softwares” de acesso livre e em computadores de
capacidade relativamente modesta.87
85 FRAGNIERI, E.; GONDZIO, J. VIAL, J.-P. A Planning Model with one Million Scenarios Solved in an AffordableParallel Machine. Logilab Technical Report, 1998.
86 ANAND, R.; AGGARWAL, D.; KUMAR, V. A comparative analysis of optimization solvers. Journal of Statistics & Management Systems, vol. 20, 2017. SWIETANOWSKI, A. A Modular Presolve Procedure for Large Scale Linear Progamming. Working Paper (WP-95-113), International Institute for Applied Systems Analysis (IISA). Laxenburg, Austria, 1995.
87 GEARHART, J. L.; ADAIR, K. L.; DETRY, R. J.; DURFEE, J. D.; JONES, K. A.; MATIN, N. Comparison of Open-Source Linear Programming Solvers. Sandia Report (SAND2013-8847). Albuquerque: Sandia National Laboratories, 2013.
102
Conclusão - Colocar o socialismo na ordem do dia
De seu lado, a pequena burguesia democrata, como sempre, não desejava maisimpacientemente do que se livrar à luta por cima da sua cabeça, nas nuvens, entre osespíritos defuntos do Parlamento. Enfim, todos os dois, a pequena burguesia democrata eseus representantes (…), por uma insurreição parlamentar, realizariam seu grande objetivo:quebrar a potência da burguesia sem retirar as correntes do proletariado, ou sem o fazer deoutra forma que em perspectiva; o proletariado seria utilizado sem se tornar perigoso.88
Ao longo da discussão realizada neste livro procuramos evidenciar que as condições
existentes neste início do século XXI nos permite uma reflexão muito mais precisa sobre como
poderia funcionar uma sociedade socialista do que no contexto da primeira metade do século XX,
quando se desencadearam as primeiras experiências socialistas baseadas no marxismo. Pensamos
que, neste momento histórico, isto se torna possível devido a determinados avanços no próprio
materialismo histórico, assim como pelo desenvolvimento científico e tecnológico alcançado pelas
sociedades contemporâneas.
Do ponto de vista do materialismo histórico pensamos que a consideração de questões de
ordem ontológica, que nos remetem aos escritos de caráter “econômico-filosóficos” produzidos pelo
“jovem” Marx (ou seja, na que é considerada a primeira fase de seu pensamento), nos permite hoje
uma concepção mais clara da natureza do socialismo científico. E isto não poderia ser diferente.
Escritos como os que vieram a ser conhecidos como Grundrisse89 e Manuscritos econômico-
filosóficos de 184490, rascunhos de Marx de um conteúdo extraordinariamente rico, só foram
descobertos e publicados décadas depois da morte de grandes nomes do marxismo como Rosa
Luxemburgo e Vladimir Lênin.
Neste livro, a consideração desses aspectos ontológicos foi realizada por meio da obra de
Lukács, a quem coube “decifrar” os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 (a letra de Marx
era quase ilegível), tarefa que ele empreendeu nos anos 1930 que viria a exercer uma grande
influência sobre o seu pensamento, o que, provavelmente, contribuiu decisivamente para a
elaboração da sua monumental obra sobre a ontologia do ser social.
88 “De son cotê, la petite bourgeoisie démocratre, comme toujous, ne désirait rien de plus impaciemment que de voirse livrer la lutte par-dessus as tête, dans les nuages, entre les esprits défunts du Parlament. Enfin, tous deux, la petitebourgeoisie démocrate et ses représentants, (…), par une insurrection parlamentaire, réalisaient leur grand objectif:briser la puissande de la bourgeoisie sans enlever ses chaînes au prolétariat, ou sans la faire apparaître autrementqu’en perspective; le prolétariat aurait été utilisé sans qu’il devînt dangerereux.” MARX, K. Les luttes de classesem France (1848-1850). Paris: Éditions Sociales, 1974 [1895], p. 116.
89 MARX, K. Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011.
90 MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos de 1844. São Paulo: Boitempo, 2004.
103
Já no que diz respeito às possibilidades abertas à reflexão sobre o socialismo pelo
desenvolvimento científico e tecnológico, a situação atual é inimaginável para alguém que vivia na
época das revoluções socialistas do século XX. As tecnologias de comunicação e a enorme
capacidade de processamento de informações oferecidas pelas técnicas baseadas na Internet
relacionadas ao chamado “Big Data”, associadas ao desenvolvimento de técnicas matemáticas,
assim como a certo desenvolvimento teórico, que permitem analisar com precisão o funcionamento
de economias monetárias, tornam os problemas relacionados aos aspectos operacionais do
socialismo de solução relativamente fácil. Além disto, o avanço teórico e conceitual do
materialismo histórico, embora apenas esboçado neste pequeno livro, e uma incorporação (que
consideramos) teoricamente consistente das possibilidades abertas pelas condições técnicas atuais,
fazem com que o socialismo contemple questões como as relacionadas aos problemas ambientais,
as lutas de grupos sociais específicos e a democracia, sem a necessidade de qualquer
“complementação”.
Evidentemente, a discussão realizada neste pequeno livro está longe de ser suficiente para a
elaboração de um projeto socialista que dê conta do conjunto dos desafios colocados pela superação
do capitalismo. Por outro lado, entendemos que a discussão nele realizada é suficiente para mostrar
que, nas condições atuais, é possível recuperar o socialismo como a referência central na luta contra
a exploração e a opressão geradas no capitalismo. Para tanto, porém, é necessário que o debate
ideológico com a burguesia em torno do socialismo seja assumido explicitamente. Neste debate é
necessário denunciar a incapacidade cada vez mais evidente do capitalismo em promover uma vida
digna ao conjunto da população, protagonizando de forma clara e argumentada a alternativa
socialista.
No entanto, o que mais comumente se observa é que o socialismo, por aqueles que o propõe,
tem sido considerado apenas como um objetivo longínquo, cuja defesa raramente é assumida
explicitamente, especialmente nos embates ideológicos travados diretamente com a burguesia. O
debate sobre o socialismo, assim, tem se ocorrido essencialmente por meio de discussões no interior
das forças políticas que o defende baseadas em programas políticos e documentos nos quais
abundam declarações de princípio, mas poucas análises objetivas. O contraste com o debate público
é marcante. Nele o que domina são as tentativas de mostrar que é possível “fazer melhor no
capitalismo” do que faz a burguesia, o que normalmente é verdade, mas sem que se coloque o
socialismo como uma solução mais ampla e adequada aos problemas das sociedades
contemporâneas. Outra característica do debate com as forças conservadoras, aliás, ainda mais
marcante, é o que ocorre a partir de reivindicações de grupos sociais específicos, cujas lutas são
centradas muito mais no reconhecimento de “direitos” no interior do sistema capitalista, do que na
104
sua superação. Adiciona-se a isto, ainda, o debate sobre problemas ambientais, quase sempre
realizado em termos altamente técnicos com poucas e superficiais referências à luta de classe. O
resultado de tudo isto é que, na prática, observa-se a inexistência de um projeto social global capaz
de se mostrar como uma alternativa convincente ao capitalismo, o que tem-se mostrado como uma
desvantagem decisiva na luta ideológica contra a burguesia, inclusive quando se trata da defesa de
grupos sociais específicos oprimidos ou da promoção das condições necessárias para a assegurar a
sustentabilidade ecológica das sociedades contemporâneas.
É preciso, pois, colocar a luta pelo socialismo na ordem do dia, em todos os momentos, em
todas as ocasiões que isto se mostrar propício. Esperamos que este livro contribua para abrir o
debate sobre esta questão.
105
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Apêndice - Problemas primal e dual de modelos de programação e osignificado dos preços
Um modelo de programação linear pode ser formulado de forma genérica da seguinte
maneira:
Maximizar a função objetivo Z = c1 x1 + c2 x2 + … cn xn
Sujeita às restrições
mnnmmm
nn
nn
bxaxaxa
bxaxaxa
bxaxaxa
...
...
...
1...
2211
22222112
1221111
em que
Z = soma do resultado econômico
x = atividades (1 a n)
c = resultados econômicos das atividades (1 a n)
a = necessidades de recursos das atividades (1 a n)
b = recursos disponíveis (1 a m)
No lugar de procurar maximizar a função objetivo, pode-se pretender minimizá-la. Neste
caso pelo menos uma das restrições deve ser limitante à convergência da solução para zero, o que
normalmente é feito por uma restrição “>= b” (e não apenas “<= b”, como no problema de
maximização).
A solução do modelo seleciona e fornece os valores as variáveis xn que maximizam a função
objetivo. As variáveis xn selecionadas compõem a “base ótima” da solução do problema. Se não
houver uma mudança na composição da base ótima da solução, a variação do valor da função
objetivo Z é linear em relação à variação dos coeficientes bm das restrições. Com a mudança da base
ótima, a declividade da reta que descreve o comportamento da solução em relação à variação dos
coeficientes bm das restrições é alterada.
Uma forma precisa de saber quais restrições são ativas na seleção e determinação dos
valores das variáveis xn é por meio da dedução de um problema denominado “dual” a partir do
110
problema descrito acima, denominado “primal”. O problema dual possui as seguintes
características,
a) se a função objetivo do primal é de maximização, a do dual é de minimização, e vice-versa;
b) se as restrições do primal são do tipo <, as do dual são do tipo >, e vice-versa;
c) os coeficientes dos recursos disponíveis (restrições) do primal são os coeficientes da função
objetivo do dual;
d) os coeficientes da função objetivo do primal são os coeficientes das restrições do dual;
e) o número de restrições do primal é igual ao número de variáveis do dual;
f) o número de variáveis do primal é igual ao número de restrições do dual.
e) nas condições ótimas os resultados totais das funções objetivo do dual e do primal têm o mesmo
valor.
Aplicando estas regras, a formulação do problema dual do modelo é,
Minimizar D = b1 y1 + b2 y2 + … + bm ym
Sujeito às restrições
nmnmnn
mm
mm
cyayaya
cyayaya
cyayaya
...
...
...
...
2211
22222121
11212111
em que, além das variáveis definidas no problema primal, temos
ym = variação marginal da função objetivo do problema primal pela alteração da restrição bm.
A solução do problema dual tem um significado importante. Assim, o valor das variáveis da
solução dual fornece a variação marginal dos coeficientes do lado direito das restrições do problema
primal. Em outras palavras, a solução do problema dual fornece o quanto aumentaria o resultado da
função objetivo Z do problema primal se houvesse a disponibilidade de uma unidade a mais do
recurso cuja disponibilidade é corresponde ao coeficiente de uma restrição (dentre bm), também do
problema primal, considerada isoladamente.
No caso do modelo apresentado neste livro (expressões 14 a 25), os preços correspondem a
valores marginais em tempo de trabalho. Como analisado, tais preços são os que permitem uma
reprodução estável do sistema econômico. Isto ocorre por que o valor marginal corresponde ao da
unidade de produto gerada na economia que exige mais trabalho, mas que ainda é necessária para a
reprodução da sociedade. Isto assegura que as unidades de produção em que tal trabalho é aplicado
ainda possam obter um valor agregado monetário equivalente ao tempo de trabalho que ela aplicou
diretamente na atividade.