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    BECHMANN, Gotthard & STEHR, Nico. Niklas Luhmann. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 13(2): 185-200, novembrode 2001.

    Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 13(2): 185-200, novembro de 2001.

    E

    A R T I G O

    Niklas Luhmann

    GOTTHARD BECHMANN

    NICO STEHR

    RESUMO: O artigo traa um sinttico retrato intelectual de Niklas Luhmann,

    focalizando essencialmente sua teoria social; em especial, as idias expostas

    em A sociedade da sociedade, que revelam o ncleo construtivista da moder-

    na teoria dos sistemas societais. Por meio da discusso da distino centraldessa obra, entre sistema e ambiente, os autores identificam os pontos bsi-

    cos de ruptura da teoria de Luhmann em relao ao modelo cognitivo clssico

    da tradio europia e sua cosmologia humanista. Em seguida, expem trs

    concepes bsicas de sua anlise sociolgica: sociedades sem pessoas; a

    sociedade como comunicao; e sociedade como sociedade mundial. Final-

    mente, apresentam algumas reflexes crticas acerca das possibilidades e dos

    limites da teoria ps-ontolgica da sociedade como sistema auto-referencial.

    Introduo

    m alguns dos muitos e extensos obiturios publicados nos jornais erevistas europeus em 1999, Niklas Luhmann lembrado como omais importante terico social do sculo XX. No entanto, na maiorparte do mundo anglo-saxo, ele virtualmente desconhecido entre

    os cientistas sociais profissionais.Luhmann nasceu numa famlia de classe mdia em Lnemburgo,

    Alemanha, no dia 8 de dezembro de 1927. Depois de se formar muito cedo

    no 1o ciclo (Notabitur), ele foi recrutado em 1944 e feito prisioneiro deguerra das Foras Americanas. De 1946 a 1949, ele estudou direito emFriburgo, entrou para o servio pblico e trabalhou por 10 anos como advo-gado administrativo em Hanover. Em 1962, ele recebeu uma bolsa de estu-

    PALAVRAS-CHAVE:

    Niklas Luhmann,sociologia,

    sociedade,

    teoria dos sistemas.

    Pesquisador associa-do do Institute for Te-chnology Assessmentand Systemsanalysis,Karlsruhe ResearchCenter, Karlsruhe,Alemanha.

    Professor emrito deSociologia da Univer-sity of Alberta, Ed-

    monton, Alberta, Ca-nad e Professor visi-tante do Center forAdvanced CulturalStudies, Essen, Ale-manha.

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    dos para ir a Harvard onde passou um ano com Talcott Parsons. Em 1968,ele foi nomeado professor de sociologia na recm-criada Universidade deBielefeld, onde trabalhou at se aposentar. Pouco antes de sua nomeao,perguntaram-lhe com que objeto desejaria trabalhar na universidade. Suaresposta foi: A teoria da sociedade moderna. Durao: 30 anos; sem cus-tos. Conseqentemente, ele cumpriu risca esse programa terico. No mo-mento de sua morte em dezembro de 1998, aos 70 anos de idade, sua obraconsistia de mais de 14.000 pginas publicadas.

    A viagem de Luhmann em direo teoria da sociedade modernadeu-se por meio de dois enfoques; primeiro, na forma de ensaios, desde o fimdos anos 60; e, segundo, a partir dos anos 80 na forma de monografias sobresistemas individuais de funcionamento da sociedade tais como direito, cinciae arte. Sua evoluo intelectual culmina em 1997 com a publicao de seu

    magnum opusA sociedade da sociedade. Qualquer pessoa que suspeite deredundncia ou repetio aqui pode achar, primeira vista, que seu ceticismoest confirmado. Esse trabalho em dois volumes no contm nenhum assuntonovo, muito menos qualquer enfoque at ento indito. Na verdade, est maispara uma concluso, uma recapitulao, do que a explorao de um novoterritrio. No entanto, uma segunda olhada cuidadosa revela muito que nohavia sido dito antes ou, pelo menos, no dessa forma. Contrastando com osensaios, que so s vezes experimentais e em um tom jocoso, e que ocasional-mente terminam num ponto de interrogao, o formato do livro requer uma

    apresentao mais sistemtica.A sociedade da sociedade a pedra final desua catedral terica e nos fornece um mapa, e um guia, para a compreenso damoderna teoria dos sistemas.

    Em torno desse trabalho principal, acrescentam-se outras anlisesanteriores e individuais:A cincia da sociedade, A economia da sociedade,

    A arte da sociedade, O direito da sociedade e os dois livros pstumos: Apoltica da sociedade eA religio da sociedade. A introduo a essa srie deanlises tomou a forma de um livro de 674 pginas com o ttulo de Sistemassociais: esboo de uma teoria geral. Esse trabalho a mais concentrada,

    abstrata e se nos dedicarmos a estud-lo a mais compensadora apresenta-o do ncleo terico.

    Temos agora uma primeira viso geral nossa disposio. Se qui-sermos fazer justia a Luhmann, precisamos nos situar dentro da arquiteturade sua perspectiva geral. Afora esses estudos sistmicos, Luhmann tambmpublicou uma srie de anlises sociolgicas e histrico-semnticas um poucomenos volumosa. Elas consistem dos quatro volumes do Estrutura e semn-tica societal e dos seis volumes doIluminismo sociolgico. Esses estudosmostram Luhmann como um scholaruniversal, que situa sua teoria dentro do

    contexto histrico do iluminismo e da filosofia europia. Alm dessa pesqui-sa abrangente, ele tambm produziu uma gama de anlises polticas e sociaisda sociedade moderna, comentando problemas pblicos urgentes. Menciona-remos somente seus livros Sociologia de risco, Comunicao ecolgica,A

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    realidade da mdia de massa eA teoria poltica do estado do bem estar. Aotodo, seu trabalho consiste de umas 700 publicaes em tradues incontveispara o ingls, francs, italiano, japons, russo e chins.

    Em quase todo seu trabalho, Luhmann faz referncia lgicaoperativa de George Spencer Brown e ao construtivismo radical. Eles sotratados de maneira sumria para poder delinear o esboo e a estruturaconceitual de sua teoria dos sistemas super-sociais, dotada de uma srie deinstrumentos metodolgicos conseguidos dessa maneira. A teoria da polti-ca, sociologia da religio, sociologia da arte e sociologia moral so desen-volvidas em seguida.

    Nesse nosso rpido retrato intelectual de Niklas Luhmann, primei-ro, focalizamos deliberadamente a substncia de sua teoria social, especial-mente as idias encontradas em sua ltima publicao; mas abstemo-nos de

    avanar na perspectiva de uma sociologia do conhecimento que tentasse en-tender, por exemplo, a relutncia por parte das cincias sociais anglo-saxnicasem usar as noes de Luhmann to vigorosa e proeminentemente como acon-teceu no s em seu prprio pas, mas tambm na Itlia, na Frana e em mui-tas outras sociedades no falantes de ingls. Essa uma histria e um desafioque no podero ser abordados agora. Em segundo lugar, tendo esboado ascaractersticas mais importantes do original enfoque terico-sistmico deLuhmann, apresentamos algumas observaes e reflexes.

    Para Luhmann, diferenciao social e formao de sistema so as

    caractersticas bsicas da sociedade moderna. Isso tambm quer dizer que ateoria dos sistemas e a teoria da sociedade so mutuamente dependentes. Nes-ses termos, a sociedade no a soma de todas as interaes presentes, mas umsistema de uma ordem maior, de tipo diferente, determinada pela diferencia-o entre sistema e ambiente; e exatamente essa distino o tema do livro dedois volumes de LuhmannA sociedade da sociedade.

    A principal mensagem de Luhmann a seguinte: ou a sociologia essencialmente a teoria da sociedade, ou no uma cincia. Se olharmos paratrs, para a histria da sociologia, isso no nem um pouco evidente. Muito

    pelo contrrio, no comeo do sculo passado e particularmente depois de1945 na Alemanha e em outras partes a sociologia desenvolvia sua identida-de escondendo sua relao com a sociedade. Era principalmente uma teoria deentidades sociais, com categorias tais como papis, interao, inteno e aosocial formando a estrutura conceitual bsica de uma sociologia cada vez maisinclinada emprica e teoricamente a seguir o modelo das cincias naturais,com sua nfase na causalidade e na descoberta de leis.

    O conceito de sociedade, no entanto, manteve sua reinvidicaoholstica; defendida enfaticamente, por exemplo, pela teoria crtica e trans-

    formada por Jrgen Habermas em uma teoria da razo comunicativa. Essareinvidicao ia de encontro acepo da sociologia como uma teoria uni-versal e independente de entidades sociais. Ser que a perspectiva corren-te dentro da sociologia tornaria a sociedade um sistema social como outro

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    qualquer, mas ao mesmo tempo um sistema fundamental que abarcassetudo? A sociologia no conseguiu escapar deste paradoxo ao qual se opspor meio de represso e historicizao: a teoria social, e particularmente ateoria crtica social, foram amplamente deixadas aos cuidados disciplina-res da filosofia, que acredita-se possui os especialistas em abordagensholsticas das estruturas essenciais e fundamentais do pensamento e dorelacionamento com o mundo. Se cientistas sociais lidavam com a teoriada sociedade, ento eles o faziam tipicamente por meio de exegeses dosclssicos, como se a histria de sua prpria disciplina tivesse a habilidadede preservar e resgatar reinvidicaes.

    Hoje a excluso da sociedade pela sociologia parece estar se vin-gando. Como no mundo reprimido de Max Weber onde os deuses celebra-vam seu retorno ao mundo na forma de conflitos incessantes de valores, o

    conceito de sociedade est hoje voltando em uma ampla diversidade de ter-mos tais como sociedade ps-industrial (Bell), sociedade de conheci-mento (Stehr) e sociedade ps-moderna (Lyotard); como se um aspectoda sociedade fosse capaz de representar o todo. Tal fabricao ad hoc determinologia revela o que est sendo suprimido: a saber, a exigncia de com-preender a sociedade em sua totalidade.

    Ento, o que isso significa exatamente para a sociologia, perguntaLuhmann, se queremos evitar a armadilha do objetivismo ingnuo, que v asociedade como um objeto dado que efetivamente precede toda observao

    cientfica? A implicao do ponto de vista objetivo seria que teramos queobservar a sociedade de um ponto externo sociedade. No h tal lugar. Tantoa cincia como a sociedade so uma expresso da realidade social. precisa-mente nesse ponto que a sociologia clssica do conhecimento no se susten-tou. Ela foi forada a delegar a observao do conhecimento a uma hipotticainteligncia livre que no estava sujeita a nenhuma distoro devido a interes-ses ou ideologias. Mais recentemente, algumas perspectivas aceitaram a idiaque o ato da cognio sempre ele mesmo um momento na totalidade dacognio. Luhmann adere a essa perspectiva e ao mesmo tempo vai alm

    dela com a argumentao de que no pode haver um objeto sociedade aces-svel observao independente.

    Assim que cessamos de ver a sociedade meramente como outro obje-to de pesquisa sociolgico e, ao invs disso, focalizamos seu significadooperacional como condio de possibilidade para a prpria cognio social, en-to a sociologia torna-se um sujeito que lida consigo mesmo do mesmo modoque a filosofia dedica-se reflexo. Luhmann transfere a estrutura do modo deoperao auto-referencial do sujeito teoria dos sistemas sociais. Ao mesmotempo, ele responde pergunta: como possvel praticar a sociologia como uma

    teoria da sociedade que no descarta prematuramente a conexo entre teoria esujeito? Isto, de acordo com Luhmann, requer uma rejeio radical de posiesepistemolgicas baseadas na dicotomia do paradigma sujeito-objeto. A sociolo-gia confrontada com a sociedade como sujeito. Portanto Luhmann argumenta

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    que isso requer pesquisas sobre as caractersticas que ela prpria j gerou.Luhmann consistentemente apresenta uma idia de sociedade radicalmente anti-humanista, no ontolgica e construtivista radical.

    A suposio mais radical do enfoque terico maduro de Luhmann sua nfase nas diferenas, mais precisamente nas distines que no somais vistas como diferenas objetivas mas como construes. A substitui-o do conceito de sujeito e a transferncia da diferenciao sujeito-objetopara uma distino entre sistema e ambiente levam Luhmann a uma teoriaps-ontolgica da sociedade, desenvolvida numa base naturalstica e empricacomo uma teoria da observao. Esse questionamento fundamental da filo-sofia moderna do sujeito e sua distino entre as cincias naturais e as hu-manidades (acrescido da rejeio de um conceito humanstico-antro-pocntrico para definir a sociedade) atraiu um grande nmero de crticas, e

    mais incompreenso ainda, ao enfoque de Luhmann.

    A genealogia da teoria dos sistemas de Luhmann

    O conceito de sistema o ponto de partida essencial de Luhmann.A esse respeito, ele excepcional na sociologia alem que, pelo menos desdeMax Weber, tem sido constituda basicamente de teoria da ao. A propostade Luhmann de descrever fenmenos sociais tais como interaes, organiza-es ou sociedades como sistemas possivelmente marca essa ruptura

    conceitual da maneira mais enftica. Pensar em termos de sistemas implica,primeiro, que no estamos mais falando de objetos, mas de diferenas e,mais ainda, que as diferenas no so concebidas como fatos reais (distin-es) voltando, ao invs disso, a um imperativo para execut-los, seno nopoderamos nomear nada, e assim no haveria nada para observar e, portanto,no estaramos aptos a dar continuidade a nada (Luhmann, 1997, p. 60).

    O texto do social (como todos os outros textos) no nemauto-explicativo nem depositado numa escrita discreta. E no possuinenhum significado consistente que seja idntico a ele mesmo, e que pu-

    desse ser rastreado at o instante especfico de sua criao. A sociologiatem de trabalhar sem conceber seu domnio de objetos como um conglomera-do de coisas, anlogo a fatos que possuam uma forma definida cujas inter-relaes, alm do mais, esto garantidas num princpio uniforme (seja ele anatureza, a vontade divina, a moral ou um sujeito transcendental). Sob ascondies metafsicas do moderno, a metaperspectiva que permite o reconhe-cimento de algo que se assemelha ao natural como a essncia invarivel ou atotalidade da sociedade no est mais disponvel ao observador.

    De acordo com o enfoque da teoria dos sistemas de Luhmann, o

    mundo (como o horizonte de descries possveis) expresso por meio deuma rede de distines e rtulos contingentes que sempre devem ser entendi-dos dentro do contexto. Que um observador possa rotular isto como sendoisto (e no aquilo) s possvel por causa da distino pela qual os dois mo-

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    mentos, separados um do outro, s podem ser compreendidos em relao umao outro; as unidades distintivas s possuem sua identidade prpria pela suadiferena com o outro. Para caracterizar algo como tal, temos que j o terdistinguido do seu outro distintivo; o que merece ser chamado de verdadeiro,por exemplo, medido pela diferena de aparncia; e falar do passado s fazsentido com referncia a um presente que pode ser distinguido (consti-tutivamente) dele. Mesmo que no seja elevado a questo, esse outro lado dealgo que chamado disto ou daquilo est sempre presente em cada determina-o de fala ou gesto que fazemos. um horizonte permanente. possvelmudar de lado a qualquer hora e trazer o momento distinto da forma (a apa-rncia pela verdade, ou o presente pelo passado) para o foco de ateno, fa-zendo dele o ponto de partida para mais deliberaes. No interesse de umtratamento deliberado do eu e do mundo, inevitvel que distingamos e rotu-

    lemos. Tais operaes so o comeo de toda percepo e reconhecimento.Da perspectiva da teoria dos sistemas, impossvel determinar por-

    que distines e rotulaes em contextos diferentes podem ser feitas de certamaneira e no de outra. A distino sempre ocorre dentro de um meio em queno houve um pr-pensamento e nem uma determinao prvia, dotando cadaforma com um selo de contingncia indelvel: a princpio poderamos ter feitodistines completamente diferentes. Falar de sistemas ento quer dizer estabe-lecer uma diferena: aquela entre sistema e ambiente.

    Sistema, para Luhmann, quer dizer uma srie de eventos relaciona-

    dos um ao outro, ou de operaes. No caso de seres vivos, por exemplo, essesso processos fisiolgicos; no caso de sistemas psquicos, os processos soidias; e em termos de relaes sociais, so comunicaes. Os sistemas seformam ao se distinguirem do ambiente, no qual esses eventos e operaesocorrem, e que no pode ser integrado a suas estruturas internas.

    Contrastando com seu mentor anterior Talcott Parsons, que definiasistemas por meio da presena de normas e padres de valores partilhadoscoletivamente, Luhmann parte de um conceito de sistema formado de maneiraestritamente relacional. Sua noo assenta-se na idia de uma fronteira

    constitutiva que permite a distino entre dentro e fora. Cada operao de umsistema (no caso de sistemas sociais: cada comunicao) (re)produz essa fron-teira encaixando-se numa rede de futuras operaes, na qual, simultaneamen-te, ele ganha sua prpria unidade/identidade. Portanto, tal conceito de frontei-ra acima de tudo em relao aos sistemas psquicos e sociais no deve serentendido espacialmente, mas sim operacionalmente:

    A fronteira do sistema nada mais que o tipo econcreo de suas operaes, o que individualiza osistema. a forma do sistema cujo outro lado se tor-

    na o ambiente (Luhmann, 1997, p. 76-77).Essa compreenso operativa requer que se entenda que sistemas

    no so capazes de transcender suas prprias fronteiras. Tal estratgia de pes-quisa se d pela convico elementar da improbabilidade da emergncia da

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    ordem social. Tudo poderia ser diferente a princpio. Da perspectiva deLuhmann, as estruturas no tm nada de auto-evidente; elas requerem umaconstruo permanentemente nova do ponto de vista de sua existncia e desua forma determinada. Contrastando com o funcionalismo de persuasoparsoniano, Luhmann no est comprometido com a preservao dos siste-mas sociais. Muito pelo contrrio, a contingncia e a complexidade do social o ponto inicial de todos os seus esforos tericos.

    A complexidade do desenho da teoria de Luhmann se expressa nos pela diversidade das questes sociolgicas com as quais foi capaz de lidarcom o apoio da perspectiva da teoria do sistema, mas tambm pela maneiraque as perspectivas variam em suas nfases cada vez que ele apresenta seuenfoque terico geral. Seu Sistemas sociais escrito primeiramente do pontode vista da distino entre sistema e ambiente, enquantoA cincia da socie-

    dade toma como ponto de partida a teoria dos sistemas observveis, o queleva a mais debates epistemolgicos sobre a observao da observao. Setivssemos de escolher o ponto de vista central paraA sociedade da socieda-de, o foco estaria claramente no sistema social, em contraste com todos ossubsistemas formados atravs de operaes sociais dentro da sociedade.

    A di ferena das diferenas

    Luhmann distancia-se do que ele chama de velha tradio europia

    terica ontolgica, irremediavelmente datada em seu potencial para captar asociedade moderna em toda sua complexidade. Ao fazer isso, ele est tentan-do sobrepujar uma tradio de dois mil anos que, segundo sua viso, foi trans-cendida pelo processo de diferenciao funcional. Ele caracteriza o velho esti-lo europeu de pensamento pela preocupao com a identificao da unidadesob a diversidade. A sociedade, na viso clssica, consiste de sujeitos de aocuja unidade fundamental baseia-se na partilha de um entendimento comum.A ontologia refere-se a um mundo existindo objetivamente, separado dos su-

    jeitos que so conscientes de sua existncia e capazes de uma representao

    lingustica no ambga.Contra isso, Luhmann apresenta um mundo que temporaliza, dife-

    rencia e descentraliza todas as identidades. Identidades so produtos de eventospassados. A unidade no mais o ponto de referncia definitivo da teoria. Quandoele relativiza at o esquema ontolgico da existncia/no existncia como ape-nas um dos muitos esquemas observveis, Luhmann ataca as bases de podero-sas tradies do pensamento. O paradoxo, de acordo com ele, que a velhatradio europia emergiu numa sociedade que, hoje, no existe mais, seja emtermos do sistema de comunicao ou em termos de formas de diferenciao.

    Mesmo assim, essa tradio permanece como parte integrante denossa herana histrica e, nesse sentido, uma parte da cultura que relevan-te para a orientao. No pode desaparecer porque no serve mais; constan-temente negada, e tem que estar disponvel para esse fim.

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    Emerge aqui outra distino fundamental que Luhmann usa paraestruturar sua teoria da sociedade: especificamente, a distino entre estruturasocial e semntica. caracterstico que essa distino inclua a si prpria, sen-do ela mesma uma distino semntica e o problema exatamente desarmar oparadoxo de modo frutfero. A teoria da sociedade est localizada em doisnveis: no nvel semntico ela se distingue da velha tradio europia, en-quanto no nvel da estrutura social faz-se referncia a evoluo, diferenciaoe ao desenvolvimento da mdia.

    Sociedades sem pessoas

    Luhmann introduz trs premissas em sua anlise da sociedade queproduziram no apenas crticas vigorosas, mas tambm muita incompreenso,

    a ponto de ser acusado de ter um pensamento anti-humanista e cnico: 1. Asociedade no consiste de pessoas. Pessoas pertencem ao ambiente da so-ciedade. 2. A sociedade um sistema autopoitico que consiste de comuni-cao e mais nada. 3. A sociedade s pode ser adequadamente entendidacomo sociedade mundial.

    O banimento das pessoas para o ambiente da sociedade completa adescentralizao da cosmologia humanista. Tendo sido retirada do centro douniverso na Renascena, desprovida de sua origem nica ao ser colocada nocontexto da evoluo por Darwin, e desnudada de sua autonomia e autocontrole

    por Freud, o fato da humanidade agora ser libertada das amarras da sociedadepor Luhmann parece ser uma extenso consistente dessa tendncia. Enquantoa tradio clssica europia, com sua distino entre humanos e animais, do-tava os humanos de sentido, razo, vontade, conscincia e sentimentos, a se-parao inexorvel dos sistemas mentais e sociais que Luhmann substitui porhomo socialis deixa claro que a sociedade uma ordem sui generis emergen-te, que no pode ser descrita em termos antropolgicos. A sociedade no temo carter de um sujeito nem mesmo no sentido enftico transcendental, comouma condio da possibilidade de idias subjacentes definitivas ou de meca-

    nismos de qualidades humanas. No um endereo para apelos humanos deao, e certamente no um lugar para reinvindicar igualdade e justia em nomede um sujeito autnomo. A sociedade a reduo comunicativa definitivapossvel que separa o indeterminado do que determinvel, ou o que processvel da complexidade improcessvel.

    Numa anlise detalhada, Luhmann traa a distino cada vez maiorentre o indivduo e a sociedade. S depois de uma clara separao ter sido feitaentre sociedade e humanidade que possvel ver o que pertence sociedade eo que est alocado humanidade. Isso abre as portas pesquisa sobre a huma-

    nidade, a conscincia humana e o funcionamento da mente humana com baseem medidas emprico-naturais. A tese da separao de sistemas sociais (ou sis-temas da sociedade) e sistemas fsicos torna possvel entender claramente orelacionamento entre sociedade e humanidade e segui-lo atravs de sua trajet-

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    ria histrica. Os dois so nesse sentido sistemas autopoiticos, um operando nabase da conscincia e o outro na base da comunicao. Mas o que sociedade?

    Sociedade, numa aproximao inicial, o sistema social inteiro,incluindo tudo que social, e consciente de nada social fora de si mesmo. Noentanto, tudo que social identificado como comunicao. A comunicao uma operao genuinamente social (e a nica que conjunta socialmente). genuinamente social porque pressupe uma maioria de sistemas de consci-ncia colaboradora ao mesmo tempo que no pode (exatamente por essa mes-ma razo) ser atribuda como uma unidade a nenhuma conscincia individu-al. Por outro lado, tambm verdadeiro que qualquer coisa que pratiquecomunicao uma sociedade. Isso envolve definies de grande abrangncia.

    A sociedade como comunicao

    Em primeiro lugar, a comunicao uma realidade sui generis queno pode ser atribuda a nada mais. Em segundo lugar, a comunicao ummecanismo que constitui a sociedade como um sistema autopoitico e processa-a nesses termos. A negao da comunicao , ela mesma, comunicao e por-tanto expresso da sociedade. Em terceiro lugar, se comunicao quer dizer re-produo autopoitica, isso quer dizer que a sociedade uma ordem auto-substitutiva que s pode mudar nela mesma e atravs dela mesma. A comunica-o se torna a estrutura bsica da sociedade, na qual a relao entre comunica-

    o e sociedade circular: no existe comunicao sem sociedade assim comono existe sociedade sem comunicao. Mas o que comunicao? Ou ser queno mais possvel colocar tal questo num perodo ps-ontolgico?

    A resposta mais simples que a comunicao uma operao no sen-tido preciso em que uma distino feita. Atos comunicativos no dizem nadasobre o mundo e a comunicao no reflete nada sobre o mundo, o qual no refletido pela comunicao, mas sim classificado por ela. O propsito da comuni-cao criar diferenas que possam depois ser includas em outras comunicaes,formando e estabilizando as fronteiras do sistema. Mas a prpria comunicao

    no ela mesma original, no qualquer elemento definitivo, mas uma sntese deselees processadoras s quais Luhmann chama de informao, transmisso ecompreenso. Essas trs operaes discriminatrias tm estrutura binria.

    A informao selecionada da memria partilhada, um reservat-rio do qual coisas so selecionadas como sendo relevantes para a transmissoou para o esquecimento. Para se completar um ato de comunicao tem-se quedecidir o que representado ou aceito ou rejeitado, no entendido. Transferi-do para o sistema social, poder-se-ia dizer que a informao pode ser vistacomo uma referncia externa, a transmisso como auto-referncia e a compre-

    enso como condio para a transferncia de sentido em comunicaes ulteri-ores. A sntese dessas trs selees um evento auto-referencial e fechado.Isso permite a Luhmann deixar claro a autoconstituio do que social. Se oque social nada mais que comunicao, isso tambm implica que consiste

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    desse processo autopoitico que tem a sua prpria dinmica. O ambiente ento apenas um estmulo e no uma fonte real de informao. Consequente-mente, compreenso significa uma rede no-arbitrria de eventos comunicati-vos em um processo de comunicao auto-referencial. A discusso repetidaforma identidades que constituem fronteiras.

    A sociedade, ou o que foi anteriormente entendido como sociedadepela sociologia, agora est livre de todas determinaes substanciais. No uma unidade moral, no est baseada em consenso nem qualquer integraoracional (de qualquer tipo); formada somente por comunicao em curso. Conse-quentemente, no faz sentido falar de distines tais como economia/sociedadeou cincia/sociedade, j que poltica, economia e direito no podem ser vistoscomo algo externo ou separado da sociedade, mas so atos da sociedade em suasoperaes comunicativas. Para Luhmann, a sociedade, portanto, consiste da to-

    talidade daquelas operaes que no fazem uma distino pelo fato delas faze-rem uma distino. Isso relega a um status terico secundrio todas as suposi-es sobre entendimento, progresso, racionalidade e outros objetivos.

    Sociedade como sociedade mundial

    Em sua terceira determinao de sociedade mais especificamente adefinio de sociedade como sociedade mundial Luhmann mais uma vez colo-ca-se deliberadamente em contraste com a velha tradio europia. Ele evita

    uma definio territorial de sociedade que identifica as fronteiras da sociedadecom as fronteiras dos Estados nacionais. As interdependncias globais e a dis-soluo de restries temporais e espaciais pelas tecnologias modernas de in-formao e transporte reduzem fortemente a plausibilidade de uma definio desociedade territorialmente limitada. Os conceitos alternativos de um sistema in-ternacional ou uma sociedade transnacional falham porque, para todas as dife-renciaes culturais que eles enfatizam, no chegam a uma unidade da diferen-ciao resultante e portanto no so capazes de explicar o inter e o trans.Ao invs de ser um sucessor da tradio do societas civilis findeteles meramen-

    te descrevem a diversidade crescente, a complexidade e o aumento de opesdisponveis. Se o mundo no mais entendido como a coleo de todos os obje-tos visveis e diretos, como o aggregatio corporum, o que resta do senso co-mum que possibilita que falemos de uma sociedade mundial?

    Luhmann baseia sua concepo em uma observao essencialmentecomum. A explorao final da terra, e talvez a explorao do espao, tornouevidente que o mundo um complexo fechado e comunicativo. Em princpio,qualquer ponto do globo acessivel comunicao, apesar de todos os obstcu-los tcnicos, polticos e geogrficos. A sociedade mundial a auto-eventuao

    do mundo em comunicao. Essa definio adquire plausibilidade se incluirmoso foco futuro vital da sociedade moderna dentro dessa perspectiva. Historica-mente, pode haver uma distino entre os territrios individuais, mas uma coisaque todos partilham agora que o futuro s pode ser visto como uma unidade.

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    Mundial ento quer dizer exatamente essa referncia na estrutura da comuni-cao dos sistemas funcionais completamente diferenciados, de tal forma quemundo como o horizonte total de experincias sensoriais no um agregado,mas melhor um correlato, das operaes comunicativas que ocorrem nele.

    Epistemologicamente falando, essa mudana tem implicaes delongo alcance. A sociedade s observvel dentro dela mesma e pode servista como uma unidade de maneiras diferentes sem ser capaz de, por decom-posio, chegar a um mundo genuno observvel conjuntamente. Sempre aca-baremos com novas distines, com construes. Para Luhmann a localiza-o socioestrutural da teoria da observao secundria. Observao de se-gunda ordem significa localizar um observador no mundo que observa outrose gerar as vrias verses do mundo (incluindo o nosso observador) apesarde s podermos faz-lo em um mundo.

    Teorias das teorias

    Mas como pode a sociedade documentar-se sem entrar em contradioconsigo mesma e particularmente sem recorrer a referncias transcendentais ex-ternas a ela mesma? No ltimo captulo deA sociedade da sociedade, sob o ttulo

    Autodescries, Luhmann trata da intrincada relao entre teoria e sujeito. A teo-ria pode explicar seu prprio lugar dentro do processo da sociedade? E se puder,ela no v, at certo ponto, de fora, apesar de isso ser possvel dentro da sociedade

    na qualidade de comunicao? Nesse ponto somos lembrados (de modo no total-mente inapropriado) da mo de Escher desenhando-se a si mesma, gerando elamesma e sua prpria imagem no curso de sua prpria operao. Luhmann seguenuma linha similar: tal qual as auto-observaes, autodefinies (gerao de tex-tos) so operaes individuais do sistema. De fato, as descries e o que descritono so dois objetos separados ligados apenas externamente como naautodescrio, o que descrito sempre parte do que est sendo descrito e elatransforma-o simplesmente pelo fato que aparece e se presta a ser observado.

    A sociologia, ento, sempre a construo da unidade dos sistemas

    dentro do prprio sistema, nunca chegando a um fim desse processo. Essaconstatao leva Luhmann a evitar qualquer concluso para sua prpria teoria.Apesar de haver aqui uma relao particularmente prxima com Hegel, que tam-bm deu ao absoluto um carter auto-referencial, ao ver o sistema como inteira-mente auto-referencial onde nada pode ser externo porque tudo que externo jvirou um aspecto de seu autodiferencial Luhmann deixa essa tradio exatamen-te nesse ponto, traduzindo-a para um vocabulrio ciberntico e, assim, sobrepu-

    jando-a. A sociedade tambm no um sujeito no sentido antropolgico-interativo,como Adorno ainda a via apesar de toda a sua crtica filosofia: a sociedade

    uma relao coagulada entre pessoas. A humanidade no o elemento definiti-vo na sociedade, assim como a sociedade no pode mais ser descrita dentro domodelo cognitivo clssico de sujeito-objeto; porque a prpria auto-referencialidadeda sociedade causa o desmoronamento dessa dualidade, uma vez que a cognio

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    procura certeza intersubjetiva por parte do sujeito e pressupe objetos estveis. Asociedade no em caso algum tal objeto estvel.

    Reflexes crticas

    De acordo com o enfoque de Luhmann, apenas a semntica cons-trutiva radical fornece distncia suficiente para prevenir que se sucumba ssugestes inerentes terminologia tradicional. A terminologia de Luhmannna parte teoricamente mais exigente de seus trabalhos no contm associa-es nem conotaes clssicas. Se no quisermos abandonar a leitura dosestudos de Luhmann devido pura resignao, frustrao ou at raiva, entosua terminologia requer uma considervel tolerncia, da parte do leitor queno conhea a terminologia da teoria dos sistemas.

    A linguagem rigorosa, austera e artificial no devida a nenhumaafetao, mas sim ao rigor de seu programa terico e esse programa tem quemanter uma distncia das implicaes da semntica da teoria social tradicio-nal europia. A esse respeito devemos levar a srio a penltima sentena deAsociedade da sociedade, segundo a qual uma adequada teoria moderna dasociedade requer o sacrifcio do mero prazer do reconhecimento e o julga-mento da construo da teoria por seus prprios mritos.

    Isso no implica que a leitura da teoria de Luhmann seja simples-mente uma batalha com construes nominais e cascatas de termos abstratos;

    nela pode-se encontrar anlises da semntica europia tradicional, nas quaisLuhmann tenta clarificar porque elas no so mais adequadas para os fatosestruturais da sociedade moderna. Repetidamente h formulaes enfticas eparadoxais, nas quais os frutos da troca da formao da teoria por observaode primeira ordem para observao de segunda ordem esto todos agrupadoscomo se sob uma lente de aumento. Um exemplo disso seria quando Luhmann,falando sobre memria, diz que sua funo verdadeira no a dearmazenamento, e sim de esquecimento; ou quando ele concebe a informaocomo sendo o produto da deteriorao que desaparece quando atualizada.

    Tais paradoxos so mais do que um jogo de palavras muito habilido-so: eles proporcionam pontos de entrada no mago construtivista da teoria societalde Luhmann, que consiste do fato que toda observao baseada em paradoxoat o ponto em que ela depende de distines sobre as quais ela no pode refletircomo um todo uniforme. A unidade do mundo, tal como a unidade da sociedade,de acordo com Luhmann, no pode ser afirmada como um princpio mas sim-plesmente como um paradoxo isso tambm uma consequncia da perda desentido da semntica tradicional.

    Mas ser que a perda de sentido da velha semntica europia real-

    mente afirmada frente aos quatro volumes de Luhmann sobre a estrutura dasociedade e da semntica? Ou, pelo menos, ser que bem reforada pelametodologia? Podemos duvidar que isso acontea uma vez que Luhmann for-ado a depender dos desenvolvimentos socioestruturais para poder estabelecer

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    a perda de significado da semntica scio-poltica. Essa circularidade prova-velmente o ponto fraco da teoria da sociedade de Luhmann. Claro que isso nolhe passou desapercebido, mas as solues que ele sugere no so particular-mente consistentes. Elas vo desde a admisso da circularidade como um pr-requisito inevitvel da formao da teoria a qual a semntica tradicional euro-pia s pode evitar ao recorrer a construes metafsicas tais como Deus, natu-reza ou razo alegao que mudanas semnticas estavam sujeitas mudan-a estrutural a distncia considervel, o que resultou no fato da semntica estarnovamente numa posio onde pode retratar os fatos verbalmente. Mas serrealmente verdade que a mudana social precede a mudana cognitiva, ou serque h casos em que o oposto verdadeiro?

    Luhmann analisou a mudana da sociedade tradicional europia paraa sociedade moderna usando trs dimenses, a cada uma das quais ele dedica

    trs captulos principais da sua teoria societal (A sociedade da sociedade): pri-meiramente, a dimenso social que Luhmann concebe como a da comunicao eda mdia, constituda apenas pela distino entre ego e alter (deliberadamenteevitando a semntica tradicional europia de pessoa e sujeito); em segundo lu-gar, a dimenso temporal, onde passado e futuro esto separados, e que Luhmannchama de evoluo definitivamente no de progresso, uma vez que no hnenhum meio orientador, entre as vrias mdias e a diferenciao funcional dasociedade no h um sistema guia; em terceiro e ltimo lugar, a dimenso factual,que Luhmann entende como diferenciao funcional, e na qual estamos preocu-

    pados em determinar o sistema e o ambiente. Essas no so, no entanto, distin-es estveis e aquilo que constitui o ambiente depende ento dos componentesdo sistema envolvido, na cincia ou na economia, direito ou educao. E issotambm muda durante a evoluo dos sistemas componentes.

    Um dos pontos decisivos para a teoria da sociedade de Luhmann a assero de que no h nenhuma dominncia de qualquer sistema compo-nente na dimenso da diferenciao funcional como, por exemplo, na poltica;que na dimenso da comunicao, nenhum meio dominante pode ser reconhe-cido; e, alm disso, que a falta de sistemas orientadores e de mdia dominadora

    a caracterstica definitiva da sociedade moderna. Essa tambm a razopela qual a semntica europia tradicional no pode mais descrever a socieda-de moderna adequadamente.

    Mas ser que a perda de medida devido converso de normas evalores em formas de comunicao societal, como Luhmann as descreve, realmente plausvel? Desafortunadamente, em nenhum lugar Luhmann fazreferncia ao conceito de esferas de justia de Michael Waltzer; dentro desseconceito, o que Luhmann descreveu como a autodescrio apropriada de so-ciedades modernas descrita como sua norma-a-ser-permanentemente-

    alcanada, como a medida da justeza que permanentemente ameaada peladominao nos termos de Luhmann dos sistemas componentes.

    Isso fecha o crculo de uma linha de pensamento principal, de talforma que o que inicialmente parecia um paradoxo em outras palavras, que o

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    eu ao mesmo tempo o que diferente emerge como uma teoria da sociedadecompleta que tambm inclui uma reflexo sobre sua prpria posio na socie-dade, e v a sociedade nesse sentido como uma unidade capaz de se automodificar.Se levarmos essa perspectiva rigorosamente intra-social a srio, aceitando quequalquer comunicao sobre a sociedade s pode ocorrer dentro dela, ento noh lugar para a reflexo crtica sobre a sociedade fora dela, onde a sociedadepode ser vista como um objeto. Essa descrio da sociedade na sociedade no mais baseada no conceito de sujeito ou vista da perspectiva da racionalidadetranscendental. a operao tautolgica da comunicao em si. A sociedade afrmula da sociedade para a autodescrio da unidade social. Uma definioenftica de sociologia teria que procurar a unidade dessa diferena para distin-guir o que verdadeiro, o que essencial. A unidade da sociedade seria entouma sociedade que chegou a si mesma, correspondendo ao seu ideal. A tradio

    reservou o rtulo de iluminismo para isso e mediu a sociedade existente frentea isso. As explicaes sociolgicas do iluminismo devem abandonar essasasseres, uma vez que essa posio ainda pode ser observada, mesmo que sejaapenas do ponto de vista de uma observao de segunda ordem. A contingnciada mundo no pode ser revertida nesse sentido, porque a teoria sociolgica per-tence exatamente quilo que ela est analisando, isto , a sociedade.

    O verdadeiro significado da sociologia seria ento que ela est livrepara se engajar nesse tipo de autodefinio tendo em vista modificar os lega-dos semnticos da tradio para os relacionamentos sociais estruturais trans-

    formados no processo da re-descrio. Isso faz a ponte entre a segundamaior distino entre semntica e estrutura social. A sociedade moderna, atra-vs da diferenciao funcional, gera a compulso para a auto-observao eento muda todos os elementos temticos. Assim o ps-modernismo atingeum ponto onde o passado se torna material para descries presentes que cri-am novas formas atravs da re-descrio e portanto se tornam construesautoperpetuantes. No entanto, no uma questo de olhar para trs, nostalgi-camente, para o que passou, mas sim de estar consciente da semntica, queest permanentemente se renovando. A coisa decisiva a diferena, e no a

    unidade de um observador-que-tudo-v. Nesse sentido a teoria de Luhmann uma teoria ps-ontolgica que procede de maneira emprica e operacional, eque est ainda enfrentando seu teste prtico.

    Ao mesmo tempo, a pergunta permanece: at que ponto adesconstruo impiedosa do conceito de sujeito e sua substituio pelo con-ceito de sistema autopoitico, auto-referencial fechado que no mais umobjeto especial mas percebido como a diferena entre sistema e ambiente -cria uma distncia da velha tradio europia e suas contradies? Ser que anfase na categoria de diferena como conceito sociolgico chave constitui

    uma reao adequada s antinomias de uma configurao definitiva aindaantropolgica da sociologia, baseada na noo fundamental de um sujeito noresolvido e usando a humanidade, sua subjetividade e liberdade, como os prin-cpios decisivos bsicos de orientao?

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    Uma continuao da discusso mostrar at que ponto a guinada ra-dical da teoria da identidade para a da diferena constitui uma substituio datradio do pensamento em termos de unidade ou totalidade. Em seu lugar,Luhmann introduz a teoria da observao de segunda ordem, que tem a intenode eliminar todas as premissas transcendentais e determina descries de descri-es e observaes de observaes como as referncias definitivas, que abolempontos de vista e concluses privilegiados. Nesse sentido a sociologia se organi-za como pesquisa. A fertilidade desse modelo terico ter que se provar nosentido de at que ponto ele pode ajudar a transformar as heranas tradicionaisem contingncias, para que possam ser reutilizadas como meio para modelarnovas formas que foram ganhas com a reconstruo (Luhmann, 1998, p. 1148).Nesse sentido, Luhmann permanece ligado velha tradio europia a nicadvida o grau de distncia entre os dois.

    Luhmann repe sociologia uma questo que ela quase havia esqueci-do: a discusso cientfica e refletida da sociedade. Assim como a biologia e a fsicano dependem somente de seus conceitos bsicos, a sociologia no apenas umateoria social. No entanto, se ela quiser fornecer informaes sobre seus fundamen-tos e sua posio na sociedade, ela mal pode evitar reflexes terico-sociais; mes-mo que s porque ela capaz de, em virtude de sua funo na sociedade, observartodas as formas prvias de reflexo, tais como religio, filosofia e cincia.

    A teoria da sociedade de Luhmann, poder-se-ia dizer, oferece um cami-nho que leva, atravs dos mtodos cientficos mais recentes e estritamente com

    base terica, a uma rica teoria da sociedade moderna. Luhmann abre conexespara a sociologia com outras cincias, e isso possibilita que ele integre o fluxo danova pesquisa sobre sua teoria. Dois grupos de problemas podem ser examinadosna busca futura de uma teoria da sociedade. Primeiro, podemos nos perguntar separtilhamos da descrio de Luhmann do problema de proceder consistentementede uma constituio intra-social de teoria. Isso j resolver bastante. Segundo,temos de rever sua soluo de conceber a teoria da sociedade como uma teoria dosistema social, ou troc-la por uma alternativa razovel. Como, de todo modo, nonecessitamos mais chegar a concluses finais, agora uma questo de descobrir

    continuaes teis, uma vez que est claro que, mesmo depois de Luhmann, have-r ainda descries sociolgicas e outras descries da sociedade. A questo meramente se elas alcanaro o nvel e o grau de complexidade presente no traba-lho de Luhmann, especialmente na sua ltima monografia. Como disse Adorno:S uma teoria madura da sociedade pode dizer o que a sociedade. Talvez aperspectiva de Luhmann tenha nos levado um passo mais perto disso.

    Recebido para publicao em agosto/2001

    Traduo de Marina H. G. MacRae

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    KEY WORDS:Niklas Luhmann,sociology,

    society,

    systems theory.

    BECHMANN, Gotthard & STEHR, Nico. Niklas Luhmann. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,13(2): 185-200, November 2001.

    ABSTRACT: This paper is a concise intellectual portrait of Niklas Luhmann

    focusing mainly on his social theory; it highlights the ideas found in The society

    of societythat reveal the constructivist nucleus of modern social systems theory.

    By discussing the central distinctions of that work, between system and

    environment, the authors identify the basic breaking off points of Luhmanns

    theory with regard to the classical cognitive model of the European tradition

    and its humanist cosmology. Then, they present three basic conceptions of his

    sociological analysis: society without people; society as communication; and

    society as world society. Finally, they present some critical thoughts on the

    possibilities and limits of post-ontological theory of society as a self-referential

    system.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    LUHMANN, Niklas. (1997)Die Gesellschaft der Gesellschaft. Frankfurt amMain, Suhrkamp.

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    Sugestes para outras leituras

    LUHMANN, Niklas. (1989) Ecological communication. Chicago, Universityof Chicago Press.

    _______. (1990) Essays on self-reference. New York, Columbia UniversityPress.

    _______. (1993)Risk: a sociological theory. New York, Aldine de Gruyter.

    _______. (1995) Social systems. Stanford, Stanford University Press.