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SOCIOECONOMIA Desenvolvimento do agronegócio de caprinos e ovinos no sertão da Bahia A o contrário da si_mples espe~ializa- çao econorruca, o desenvolvimento local integra- do e sustentável requer a formação de uma cadeia de iniciativas e empreendimentos que, sem intervir na racionalida- de própria do mercado, se complementem, maximizando as potencialidades de produção, comércio, serviços e consumos locais. Ou seja, diversidade e complementaridade são as palavras-chave. Nesse sentido, a zona caprinícola do sertão baiano do São Francisco, conhecida como a "zona do bode", parece satisfazer Clovis Guimarães Filho * Evandro Vasconcelos de Holanda Júnior** plenamente os requerimentos básicos para implementar um processo dessa natureza, considerando a multiplicidade de atividades, que lá ocorre. A área de abrangência da "zona do bode" corresponde, principalmente, aos municípios de Juazeiro, Curaçá, Sobra- dinho, Casa Nova, Remanso, Sento Sé, Uauá, Canudos, Campo Formoso e Jaguarari. O espaço agrário abrangido por estes dez municípios correspon- de a uma área aproximada de 56 mil km 2 com uma população total superior a 500 mil habitan- tes, 40% dos quais distribuídos em cerca de 32 mil estabeleci- mentos agropecuários. Sob o ponto de vista quantitativo, a "zona do bode" da Bahia é considerada a mais importante do Nordeste. Os dez municípios concentram um rebanho de quase 1,4 milhão de cabeças, correspondentes a, aproximada- mente, 20% do rebanho nordes- tino.

SOCIOECONOMIA Desenvolvimento do agronegócio de caprinos

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Page 1: SOCIOECONOMIA Desenvolvimento do agronegócio de caprinos

SOCIOECONOMIA

Desenvolvimento doagronegócio de caprinos

e ovinos no sertão da Bahia

Ao contrário dasi_mples espe~ializa-çao econorruca, o

desenvolvimento local integra-do e sustentável requer aformação de uma cadeia deiniciativas e empreendimentosque, sem intervir na racionalida-de própria do mercado, secomplementem, maximizandoas potencialidades de produção,comércio, serviços e consumoslocais. Ou seja, diversidade ecomplementaridade são aspalavras-chave. Nesse sentido, azona caprinícola do sertãobaiano do São Francisco,conhecida como a "zona dobode", parece satisfazer

Clovis Guimarães Filho *Evandro Vasconcelos de Holanda Júnior**

plenamente os requerimentosbásicos para implementar umprocesso dessa natureza,considerando a multiplicidadede atividades, que lá ocorre.

A área de abrangência da"zona do bode" corresponde,principalmente, aos municípiosde Juazeiro, Curaçá, Sobra-dinho, Casa Nova, Remanso,Sento Sé, Uauá, Canudos,Campo Formoso e Jaguarari. Oespaço agrário abrangido porestes dez municípios correspon-de a uma área aproximada de 56mil km2 com uma populaçãototal superior a 500 mil habitan-

tes, 40% dos quais distribuídosem cerca de 32 mil estabeleci-mentos agropecuários. Sob oponto de vista quantitativo, a"zona do bode" da Bahia éconsiderada a mais importantedo Nordeste. Os dez municípiosconcentram um rebanho dequase 1,4 milhão de cabeças,correspondentes a, aproximada-mente, 20% do rebanho nordes-tino.

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Dados da Embrapa Semi-Árido, ainda não publicados,mostram que a caprino-ovinocultura daquela região épraticada por quatro tiposprincipais (Quadro 1): O tipo A,o mais numeroso deles, comcerca de 58% dos produtores,possui uma área média de 15hectares e obtém uma rendamédia bruta inferior a 1,4 saláriomínimo/mês. O tipo D, o menosnumeroso, com menos de 3% dototal, possui uma área média de377 hectares e obtém uma rendamédia bruta de pouco mais de4,0 salários mínimos/mês.

Esta receita é extremamentediversificada (Quadro 2). Ela seorigina para todos os tipos, deatividades internas à unidadeprodutiva (criação de caprinos,ovinos e bovinos, lavouras desequeiro e extrativismo) e

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externas (venda de mão-de-obra, aposentadoria e remessade familiares), demonstrandoque essa zona não seria assimtão "caprinícola". As receitasexternas, contudo, só superamas internas no tipo A. A criaçãode caprinos e ovinos constitui aprincipal fonte de receitasinternas para os três primeirostipos.

Analisada como agronegócio,a cadeia produtiva de caprinos eovinos da região é aindabastante incipiente, apresentan-do acentuadas debilidades tantono segmento produtivo comonos segmentos transformador edistribuidor, resultando emprodutos de baixa qualidade, deoferta irregular e de custos nãocompetitivos (Guimarães Filhoe Correia, 2001). Falta aocaprino-ovinocultor típico da

Quadro 1Perfil do caprino-ovinocultor do sertão baiano do São Francisco

TIPOSINDICADORES

A B C D

Distribuição dos tipos (%) 58,67 29,72 9,44 2,17Residentes na propriedade (%) 77,31 75,00 78,69 57,14Area média (ha) 15,08 52,53 137,50 377,07Área e/culturas tradicionais (ha) 1,52 2,29 1,87 2,46Área c/culturas comerciais (ha) 0,81 2,07 2,65 3,30Area e/pastagens (ha) 3,32 10,22 20,53 25,18Rebanho caprino (UA) 5,95 10,33 20,34 18,99Rebanho ovino (UA) 4,75 6,51 11,41 14,80Rebanho bovino (UA) 2,75 6,00 18,51 22,01Uso de feno/silagem (%) 0,0 2,06 3,28 7,14Uso de fundo de pasto (%) 82,85 79,69 81,97 85,71Renda bruta (salários mínimos/mês) 1,36 2,10 3,46 4,11

Fonte: Embrapa Sem i-Árido (dados não publicados)

Quadro 2Estrutura de renda do caprino-ovinocultor do sertão baiano doSão Francisco

FONTETIPO 1 TIPO 1 TIPO 1 TIPO 1

% % % %

Produção vegetal 12,4 15,9 13,3 31,7

Caprino ovinocultura 18,4 21,7 30,8 16,4

Bovinocultura 7,5 16,9 20,0 15,17

Venda de mão de obra 10,0 2,9 0,9 1,21

Outras receitas da propriedade 6,7 7,2 7,7 5,0

Aposentadoria 28,2 22,8 18,0 24,13

Outras receitas 16,2 12,4 9,3 6,39

TOTAL 100,0 100,0 100,0 100,0

Fonte: Embrapa Serni-Árido (dados não publicados)

B a v V.5 n 3 J.. 2003

região uma visão mais objetivado contexto econômico em quevive e das estratégias de valori-zação dos seus produtos capazesde lhe propiciar uma base maissegura na busca de uma maiorinserção no mercado. Há,efetivamente, um grandepotencial de mercado, represen-tado por uma demanda nãosatisfeita, estimada em 12 miltoneladas anuais de carnescaprina e ovina e um incrementoanual de consumo superior a10%. Com base em projeções, épossível estimar que, somentepara atender as cidades-pólo deJuazeiro e Petrolina, sãoabatidas diariamente, cerca de700 cabeças de caprinos eovinos, o que corresponde a umconsumo per capita superior a8,0 kg/ano. Com relação a peles,o déficit regional estimado pelaindústria de curtumes é de 4,5milhões unidades/ano.

O fortalecimento do agrone-gócio de qualquer produtopressupõe a necessidade deespecialização. Por outro lado, ofortalecimento dos sistemasprodutivos de base familiarimplica o oposto, a diversifica-ção. A dinamização da economiadas áreas de sequeiro dessaregião deve buscar a conciliaçãodesses tradicionais enfoques(agronegócio x agriculturafamiliar), associando as alterna-tivas agrícolas dependentes dechuva às opções não-agrícolas eàs próprias atividades agrícolasespecializadas dos perímetrosirrigados, beneficiando-se desuas inúmeras complementari-dades. As duas estratégias nãosão antagônicas e a própriarealidade da região mostra istoperfeitamente. As atividadesagropecuárias já são diversifica-das dentro da propriedade,existindo naturalmente entreelas, uma ou duas que sedestacam pela sua maiorinserção no mercado.

O que a proposta de desenvol-vimento para essa região deveprivilegiar é a busca de formas

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de maximização da eficiênciadesses sistemas, que impliquem,simultaneamente, maior inte-ração entre os subsistemasdentro da unidade e desta com asdemais atividades agrícolas enão-agrícolas fora da unidadeprodutiva. É perfeitamentepossível o desenvolvimento desistemas diversificados de basefamiliar, incluindo a criação decaprinos e ovinos, oferecendo aomercado, pelo menos um dosprodutos com as qualificaçõesmercadológicas de ordemsanitária, sensorial e de usoexigi das pelo consumidor. Oaumento da oferta de empregosagrícolas e não-agrícolas em umprograma como esse, estará,portanto, diretamente vinculadoao fortalecimento da naturezapluriativa de sua economia e daeficiente exploração do poten-cial de sinergias entre os seusdistintos setores.

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Além, naturalmente, dogrande potencial para fortalecera sua caprino-ovinocultura, aregião apresenta uma série devantagens competitivas e com-parativas, capazes de funda-mentar estratégias específicaspara uma proposta destanatureza, merecendo sercitadas a diversidade atual deatividades e a possibilidade deintegração de algumas delascom os perímetros de irrigação.O forte dispositivo institucio-nal técnico-científico existentena região constitui outroimportante fator de apoio.

A Figura 1 ilustra a acentuadamultiplicidade de atividades quea região apresenta, algumasdelas já consolidadas, outrasainda incipientes, porém comum grande potencial de cresci-mento. São cerca de 150 milpessoas ocupadas apenas nosestabelecimentos rurais. Estas

atividades incluem, desde opróprio sistema extensivo decriação de caprinos e ovinos,associado ou não a lavouras desubsistência (milho, feijão,mandioca), até sistemas intensi-vos de cultivos irrigados defrutíferas para exportação(manga e uva), passando pormineração (cobre, calcário,mármore, granito, pedrassemipreciosas), artesanato(couro, madeira e minério),agroecoturismo (fruticulturairrigada, vinícolas, grutas,reservas ecológicas, sítioshistóricos, lazer e esportesaquáticos), piscicultura (gran-des açudes e rio São Francisco),além de indústrias e comérciosde bens e serviços agrícolas enão-agrícolas. As grutas Toca daBoa Vista e Toca da Barriguda,em Campo Formoso, considera-das as duas mais extensas doBrasil, o sítio histórico de

Figura 1Pluratividade na zona caprinícola do sertão baiano do São Francisco

- Rodovias asfaltadas

LEGENDA

~ - Grandes açudes

I\. -Projetos deU Irrigação em operação

Ç\ - Projetos de Irrigação eml2) Implantação/previstos

- Mineração/Jazidas

I!!I - Ecoturismo/lazer

•• - Sitio histórico

r~-Área de preservação ambiental

~ -Rios

- Adulora

______ - Limite municipal

Bahia Agríc .. v.5, n.3, jul2003

@ - Sede municipal

• - Vilas e povoados maiores

- Zona da caprino-ovinocultura

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Canudos, o lago da barragem deSobradinho e as inscriçõesrupestres da reserva ecológicada Serra do Mulato, são exem-plos marcantes do potencial daregião para um programaintegrado com as áreas irrigadase de sequeiro. Até mesmo ofortalecimento das festaspopulares (vaquejadas, feiras,exposições) podem se constituirem valioso instrumento degeração de emprego e renda. Aesse respeito DeI Grossi eGraziano da Silva (2002)chamam a atenção para o fato dafesta do peão boiadeiro deBarretos movimentar, anual-mente, o valor correspondente amais de duas vezes o movimen-tado pelo carnaval carioca.

Esse quadro de diversificaçãofavorece sobremaneira assinergias entre os setoresprimário, secundário e terciárioda economia. Segundo Veiga eta!. (2001), a estratégia dearticulações intermunicipaisdeve incluir a participação domunicípio de maior dinamismoeconômico (Juazeiro, no caso),de modo a que os municípiosmenores possam contrabalançara sua "força de gravidade". Osmunicípios que compõem a"zona caprinícola" do sertãobaiano do São Franciscoapresentam fortes vínculossócio-econômicos e culturais.Estes vínculos necessitam sertrabalhados de forma a consti-tuir a argamassa principal paraum esforço comum de desenvol-vimento regional. O consórciode municípios é uma alternativa.

Existem na região quase 25mil hectares irrigados, já emoperação, e mais de 60 mil emfase de implantação ou progra-mados. A integração dasatividades agropecuáriasexercidas nas áreas de sequeirocom as das áreas irrigadasrepresenta um formidávelpotencial de beneficios econô-micos e sociais, ainda hojesubvalorizado e negligenciado

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Carne caprina defumada

nos projetos públicos e privados,direcionados para estas duasáreas. Na prática, já existe umaforte interdependência entre asduas situações, embora osprojetos públicos se apresentemmais como verdadeiras "ilhas"de riqueza, rodeadas de favelasde pobreza e de subdesenvolvi-mento. A fruticultura irrigada éaltamente dependente do estercoda zona de sequeiro. Ela também

Bahia Agric. v.5, n.3, jul 2003

necessita, fundamentalmente, dasua mão-de-obra (bacia deempregos). Outras formas deintegração entre as duas áreascompreendem trocas e serviçosmais qualificados que começama proliferar (restos de cultivosirrigados para alimentaçãoanimal, podas, pulverizações,serviços mecanizados, forneci-mento de carne e leite, transpor-te, etc.). Para o caprino-ovinocultor, contudo, a explora-ção dessas espécies em integra-ção com as áreas irrigadas, naforma de cria no sequeiro eacabamento nas áreas irrigadas(confinamento, a pasto ou emconsórcio com frutíferas), seria aalternativa de maiores perspecti-vas.

A proposta para a caprino-ovinocultura representaria aprimeira etapa de um plano dedesenvolvimento local, sob oenfoque de territorialidade,incluindo etapas subseqüentesde fortalecimento integrado dasdemais atividades, consolidandoum eixo econômico agricultura

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irrigada-caprino e ovinocultura-agroecoturismo-mineração,naquele espaço ocupado pelosdez municípios.

O trabalho de pesquisa jádisponibilizou um protótipo desistema de produção capaz deoferecer ao mercado, comoproduto principal, carne caprina,com certificação de origem,dotada de qualidades nutritivas,sanitárias e organolépticassuperiores, em relação aoproduto atual disponibilizado eproduzido dentro dos padrões desustentabilidade exigidos paraobtenção dos instrumentoscertificadores. O produto deveráter uma marca, tipo "cabritoecológico do Semi-árido" ou"cabrito verde da caatinga", a serdefinida posteriormente. Aqualificação desse produto deveresultar de um processo partici-pativo de construção social,refletida na sua identificaçãocom o território de origem emsuas dimensões geográfica,histórica e cultural. O produtoapresenta características de forteapelo mercado lógico, como o"sabor da caatinga" e o reduzidoteor de colesterol. Entretanto,características como essasprecisam ainda de uma constru-ção pelo "marketing", posicio-nando o produto no mercadoatravés de trabalho de comuni-cação mais amplo sobre suaimagem. Um produto efetiva-mente diferenciado e dificil deser imitado, como este, atenderiaa uma opção de mercado até bempouco tempo inexistente e seconstituiria em importantecontribuição para reafirmaçãoda identidade local, pelo resgatesocial e econômico do caprino-cultor da região semi-árida daBahia e pela reversão doacentuado processo de degrada-ção dos recursos naturais que aatinge.

Considerando a questãocaprino-ovinocultura, asseguintes linhas de ação seriamsimultânea e prioritariamentecontempladas: organização

SOCIOECONOMIA

social e profissional do produtor,mudança do padrão tecnológico,capacitação gerencial, apoio àvalorização e a comercializaçãodos produtos, adequação docrédito e da infra-estruturacomplementar de apoio e ofortalecimento das interaçõesentre os segmentos da cadeia edesta, com as demais atividadesagrícolas e não-agrícolas.

Todas essas ações deverão serdirecionadas para estabelecerum dispositivo capaz de nãoapenas exteriorizar os recursosespecíficos internos do territó-rio (produtos, conhecimentotécnico local, rede de atores,instituições), mas, também, deexpressar sua capacidade derecombiná-los e de associá-losaos recursos externos necessá-rios (Dei Grossi e Graziano daSilva, 2002). As ações devem tercomo referência balizadora aconservação da biodiversidade,procurando conciliar a intensi-dade de cada uma das atividadescom as restrições ambientaisnecessárias a neutralizar aerosão dessa diversidade

Bahla Agnc v.5. n.3 lul2003

biológica. A regiao, comoexposto anteriormente, preen-che todos os requisitos pararesponder positivamente a umprograma dessa natureza,contribuindo para um melhorordenamento e maior equilíbriono processo de integraçãoeconômica e social entre asdistintas condições agroecológi-cas lá existentes.

REFERÊNCIAS

DEL GROSSI, M.E.; GRAZIANO DASILVA, 1. O Novo Rural: uma aborda-gem ilustrada. Londrina: InstitutoAgronômico do Paraná, 2002. v.2. 49p.

GUIMARÃES FILHO, C.; CORREIA,R.C. Subsídios para o fortalecimento doagronegócio da caprino-ovinocultura nosemi-árido brasileiro. RevistaEconômica do Nordeste, Fortaleza,v.32, n.3,p.430-5, 2001.

VEIGA, J.E.; FAVARETO, A.;AZEVEDO, C.M.A.; BITTENCOURT,0.; VECCHIATI, K.; MAGALHÃES,R.; ROGÉRIO, J. O Brasil precisa deuma estratégia de desenvolvimento.Br as il i a: Convênio FIPE-JICA(MDA/CNDRS/NEAD),2001.108p.