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SOCIOLOGIA E MUDANÇA SOCIAL NO BRASIL E NA ARGENTINA

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SOCIOLOGIA E MUDANÇA SOCIAL NO BRASIL E NA ARGENTINA 

    

         

   

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Maria da Gloria Bonelli  Martha Diaz Villegas de Landa 

(Orgs.)                

SOCIOLOGIA E MUDANÇA SOCIAL NO BRASIL E NA ARGENTINA 

   

          

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Copyright © dos autores  Todos  os direitos  garantidos. Qualquer parte desta  obra pode  ser  reproduzida, transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos dos autores.    Maria da Gloria Bonelli & Martha Diaz Villegas de Landa [Orgs.)  

Sociologia  e  mudança  social  no  Brasil  e  na  Argentina.  São  Carlos: Compacta Gráfica e Editora, 2013. 340p.  ISBN 978‐85‐88533‐74‐5  

1. Sociologia. 2. Mudança Social. 3. Mudança Social no Brasil. 4. Mudança Social na Argentina. I. Título.  

CDD – 300 e 320  Capa: Marcos Antonio Bessa‐Oliveira Editor: José Marino   Tradução do espanhol de Beatriz Medeiros de Melo e Deise Mugnaro. 

  

         

  

 Compacta Gráfica e Editora  

São Carlos – SP 2013

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SUMÁRIO   

Apresentação   Maria da Gloria Bonelli e Martha Diaz Villegas de Landa 

 Parte I 

 Raça, identidade e contingência: esboço para uma reflexão das 

experiências latino‐americanas Maximiliano Gaviglio 

Multiculturalismo e metamorfose na racialização: notas preliminares sobre a experiência contemporânea brasileira 

Valter Roberto Silvério O ativismo político‐cristão na Argentina e no Brasil 

André Ricardo de Souza, María Candelaria Sgró Ruata e Maximiliano Campana 

Gestão da monstruosidade: os corpos do obeso e do zumbi María Inés Landa, Jorge Leite Jr. e Andrea Torrano 

 Parte II 

 Direito e mudança social: a formação jurídica e as recentes 

demandas de reconhecimento no Brasil e na Argentina  Richard Miskolci e Maximiliano Campana 

A construção de identidades homossexuais na advocacia paulista: uma abordagem sociológica de profissionalismo e 

diferença Dafne Araújo e Maria da Gloria Bonelli 

As mulheres na magistratura: comparações entre Argentina e Brasil 

Camila de Pieri Benedito e Maria Eugenia Gastiazoro Participação popular e legitimidade judicial: sobre o julgamento 

por júri María Inés Bergoglio 

 

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Parte III  

Políticas urbanas e habitacionais e seus efeitos sociais.  Um estudo do Programa “Minha Casa, Minha Vida” no Brasil e 

na Argentina María Alejandra Ciuffolini e Lúcia Zanin Shimbo 

A tradução contemporânea das demandas populares  (ou do conflito que emerge do universo popular) nos espaços 

públicos: o caso do Córdoba, Argentina Gerardo Avalle  

Territórios e populações marginais em tempo de desenvolvimento: modos de gestão do conflito social no Brasil 

contemporâneo Gabriel de Santis Feltran 

Por uma sociologia das narrativas sobre o meio ambiente Rodrigo Constante Martins 

 

  

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 Apresentação    

Este  livro  resulta  da  cooperação  internacional  promovida  pela CAPES  (Coordenação  de  Aperfeiçoamento  de  Pessoal  de  Ensino Superior)  e  pela  CONEAU  (Comisión  Nacional  de  Evaluatión  y Acreditación  Universitária),  da  Argentina,  denominada  Centros Associados para o Fortalecimento da Pós‐Graduação, entre o Programa de  Pós‐Graduação  em  Sociologia,  da  Universidade  Federal  de  São Carlos  e  a  Maestria  em  Sociología,  da  Universidad  Nacional  de Córdoba. Várias missões de trabalho e de estudo foram realizadas entre 2011‐2014 possibilitando o desenvolvimento de análises  comparadas e da consolidação de grupos de pesquisa com participação de docentes e discentes brasileiros e argentinos. 

Essas interlocuções se materializam nos capítulos deste volume, que  abordam  sociologicamente  as  mudanças  sociais  no  Brasil  e  na Argentina  contemporâneos.  São  doze  trabalhos  organizados  em  três unidades. A primeira delas “Cultura, diferença e desigualdade” reúne análises sobre as ressignificações do conceito de raça no contexto latino‐americano;  sobre  a  biopolítica  da  monstruosidade  e  de  corpos  que fogem da norma; e sobre o ativismo cristão na Argentina e no Brasil. 

A segunda unidade aglutina estudos que abordam as profissões jurídicas,  seja  sobre  o  impacto  dessa  formação  na  atuação  dos advogados e do  reconhecimento à diferença,  seja  sobre a participação das mulheres e da diversidade sexual nas carreiras  jurídicas, seja sobre o sistema de  jurado na Argentina, que introduz a participação popular visando a democratização do funcionamento da justiça.  

A  terceira  parte  focaliza  os  temas  de  políticas  públicas, conflitualidade,  desigualdade  social  e  apropriação mercantilizada  de recursos naturais e sociais. A partir das particularidades desta temática, os capítulos agrupados nesta parte se caracterizam por compreender a problemática  que  a  envolve  enquanto  externalidades  da  lógica capitalista,  que  se  revela  nos  diferentes  processos  de  produção  e reprodução social que têm lugar tanto na Argentina e no Brasil. Discute‐

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se,  desse  modo,  as  políticas  de  habitação  popular  no  Brasil  e  na Argentina,  as  narrativas  sobre  a  questão  ambiental  e  os  problemas relativos  ao  uso  e  acesso  à  agua,  o  controle  do  espaço  público  e  os conflitos sociais por  territórios e espaços urbanos e como  tais questões expressam dinâmicas de inclusão/exclusão, segmentações socioespaciais e racionalizações próprias da, e compatíveis com a, lógica do mercado. 

Abrindo a primeira unidade Maximiliano Gaviglio apresenta a discussão sobre o conceito de raça e o uso do termo na Argentina, com o intuito  de  destacar  a  complexidade  semântica  que  este  adquire  no contexto latino‐americano, enfatizando não só o que há de comum, mas principalmente as especificidades das representações locais e regionais. Indo  mais  além  das  polêmicas  em  torno  dos  significados  usuais  e acadêmicos da palavra raça, e das classificações de corpos e sujeitos que ela  produz,  o  autor  soma‐se  às  abordagens  que  criticam  a fundamentação genética e essencialista da  ideia de raça. Ele entende o conceito como “uma construção social historicamente contingente cujo uso deve ser concebido em relação a práticas discursivas e materiais concretas que, desde o  terreno do  imaginário e o simbólico, aludem a processos mais amplos de construção de identidades sociais” (p. 24). 

Gaviglio destaca que embora as representações sobre o cadinho de  raças,  o  crisol  de  raças,  a  fábula  das  três  raças  nos  contextos argentino  e  brasileiro  pareçam  semelhantes,  tais  fenômenos  não  são idênticos e precisam ser interpretados à luz de suas diferenças, já que tal percepção  resulta  de  discursos  hegemônicos  de  produção  de identidades nacionais.   No segundo capítulo Valter Roberto Silvério detém‐se no debate sobre  racialização com o objetivo de vinculá‐lo às mudanças operadas na  forma  como  a  sociedade  brasileira  se  auto‐representa.  Da representação  hegemônica  que  assimilava  as  raças  pela  democracia racial,  a  identificação  no  Brasil  comportaria  agora  a  diferença  étnico‐racial.  No  argumento  do  autor,  esse  fenômeno  é  “decorrente  do processo de luta política pela (res) significação / deslocamento do lugar do ser negro no processo de racialização de sua experiência coletiva” (p. 49).  

Na fundamentação de um conceito que se contraponha ao reino biológico, Silvério apóia‐se na construção teórica de Winant (1996) sobre 

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a formação racial, enfatizando três determinações sociais no conceito de raça: a dimensão política, a global comparativa e a histórico‐temporal. Com esta abordagem, mostra como o movimento negro atuou para que a visão do Brasil como uma comunidade  imaginada homogeneamente desse  lugar a uma comunidade que se  imagina diversa culturalmente. Assim,  analisa  as  políticas  públicas  de  igualdade  racial,  de  educação étnico‐racial, de relações globais sul ‐ sul e da política externa brasileira com a diáspora africana. 

No terceiro capítulo, André Ricardo de Souza, María Candelária Sgró  Ruata  e  Maximiliano  Campana  contrastam  a  conformação  do campo religioso no Brasil e na Argentina, analisando o ativismo político cristão.  O  catolicismo  tem  peso  demográfico  e  jurídico  maior  na Argentina, com 76,5%, preservando vínculos com o Estado, enquanto o protestantismo  fica  na  casa  dos  9%.  No  Brasil,  o  catolicismo  segue retraindo  sua  porcentagem  na  população,  com  64,6%  enquanto  os evangélicos crescem em ritmo acelerado representando 22,2%.  

Os  autores  observam  que  “em  ambos  os  países  os  segmentos católicos  e  evangélicos  se  posicionam  no  espaço  público,  mediante manifestações  organizadas  e  militância  político‐partidária  tanto  na defesa  de  seus  interesses  como  de  seus  valores  doutrinários”  (p.  64). Eles demonstram  como as questões de moral  sexual  estão atualmente na  essência  da  mobilização  do  ativismo  cristão,  de  católicos  e evangélicos.  

No quarto capítulo, Maria  Inés Landa,  Jorge Leite  Jr. e Andrea Torrano  tratam da biopolítica da monstruosidade sobre os corpos que se  distanciam  da  normatividade,  como  aqueles  classificados  de obesidade  epidêmica,  na  perspectiva  biomédica,  ou  os  zumbis,  na ficção.  O  texto  detalha  como  cada  época  engendra  seus  monstros, fenômeno que fala sobre as irregularidades imagináveis, expressando as transgressões  da  fronteira  do  propriamente  humano.  Os  autores querem destacar como a análise do corpo obeso e do zumbi contrastam com os discursos tradicionais sobre a monstruosidade, que convertiam o monstro em alteridade absoluta do humano. Esse monstro atual é um “interior externalizado” do humano, que está en(tre) nós.  

 

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“O obeso e o zumbi seriam manifestações de corpos que perdem sua forma  humana,  no  primeiro  caso,  por  descuido,  no  segundo,  por decomposição; o obeso encarna a enfermidade do corpo constituindo‐se em um perigo contra os princípios sanitário‐empresariais, enquanto que o  zumbi  perde  toda  possibilidade  de  redenção,  seu  corpo  evoca  um estigma do corpo corrompido e corruptor” (p. 95).   A  obesidade  epidêmica  indicaria  a monstruosidade  do  corpo 

humano  e  o  zumbi  representaria  a  humanidade  do  monstro,  corpo humano em decomposição borrando as  fronteiras entre o humano e o monstruoso. 

O  quinto  capítulo,  que  abre  a  segunda  parte  do  livro,  é  de autoria de Richard Miskolci e Maximiliano Campana. Eles analisam o impacto da  formação  tradicional  em Direito  sobre os  litígios voltados para  impulsionar  mudanças  sociais,  como  a  agenda  contemporânea pelo  reconhecimento  à diferença.   O  argumento dos  autores  é que  as práticas que buscam nos tribunais a ampliação de direitos difusos e de equidade  para  minorias  encontram  barreiras  nos  próprios  valores partilhados na socialização profissional  jurídica, que se  inicia no curso superior.   Assim,  analisam  como  as motivações por um  ideal  social  e humanitário  de  justiça  que  impulsionam  algumas  das  escolhas estudantis pela formação em Direito vão, ao longo da faculdade, dando lugar  a  uma  concepção  formal  e  instrumental  de  justiça,  baseada  no ideário da neutralidade que predomina no profissionalismo.  

Neste sentido, destacam a distância entre a atuação e os valores da  base  do  grupo  profissional  da  advocacia  com  as  decisões  dos tribunais  superiores,  que  têm  impulsionado  alguns  dos  direitos  que reconhecem  diferenças,  como  o  do  casamento  homossexual  na Argentina e o princípio constitucional que valida a ação afirmativa na modalidade cota no Brasil. 

Apontando  as  possibilidades  de  transformação  da  formação acadêmica,  voltando‐se  a  uma  perspectiva  educacional  dialógica  e reflexiva,  Miskolci  e  Campana  abordam  como  o  reconhecimento  à diferença  amplia  essa  mudança  superando  as  limitações  que consideram persistir na concepção da diversidade.   

 

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“Distinguir  entre  diferença  e  diversidade  exige  abandonar  uma concepção normativa e fossilizada de sociedade. Se a diversidade apela para  uma  concepção  horizontalizada de  relações  em  que  se  afasta  o conflito e a divergência em nome da conciliação, lidar com a diferença é  algo  incomensurável,  mas  potencialmente  mais  democrático  e promissor.  Uma  perspectiva  informada  pelas  diferenças  pode questionar  e  até  modificar  hierarquias,  colocar  em  diálogo  os subalternizados com o hegemônico de forma, quiçá, a mudar a ordem que mantém e reproduz desigualdades” (p. 155‐156).  No  sexto  capítulo,  Dafne  Araújo  e  Maria  da  Gloria  Bonelli 

analisam  as  continuidades  e  as  mudanças  que  vêm  ocorrendo  na advocacia  paulista,  no  que  diz  respeito  ao  profissionalismo  e  à diferença.  Focalizando  a  diversidade  sexual,  abordam  situações  de trabalho  nas  quais  as  intersecções  entre  a  identidade  profissional,  de gênero  e  sexual  se  entrecruzam  de  formas  distintas.  Contrastam  as experiências  de  atuação  jurídica  no  Grupo  de  Advogados  pela Diversidade Sexual com a de advogados gays que exercem a advocacia em escritórios e sociedades de advogados. No primeiro caso, observam como a  identidade homoafetiva  cruza a profissionalização,  resultando em redirecionamento para prática na especialidade dos direitos LGBT.  

Segundo elas:   

“A  força  da  identificação  sexual  configura  o  caminho  profissional, mostrando  uma  interseção  na  qual  se  busca  reconhecimento  para  o valor de sua expertise, rejeitando a desqualificação de seu saber com a reconversão de seu capital jurídico para a atuação na especialidade dos direitos homoafetivos” (p. 182).  No  segundo  caso,  registram  como os advogados gays que não 

fazem  essa  reconversão,  atuando  nos  escritórios  que  lidam  com  as demais  especialidades  jurídicas,  sentem  o  estigma  e  as  pressões  dos pares para manterem a sexualidade invisível.   

 “Os  profissionais  gays,  envolvidos  ou  não  em  lutas  contra  a discriminação sexual apagam as marcas dessa diferença ao agirem em sintonia com esse valor normativo, que coloca em pólos opostos a vida profissional  e  a  intimidade,  mantendo  no  armário  sua 

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homossexualidade. Nestes  casos,  a  intersecção  entre  identidades  fica sujeita  ao  predomínio  do  status  profissional  perante  o  estigma  da diferença sexual” (p. 182).  No sétimo capítulo, Benedito e Gastiazoro realizam uma análise 

comparada  da  inserção  profissional  de  mulheres  na  magistratura brasileira e argentina, e das percepções sobre gênero nessas carreiras do Judiciário.  Elas partem de abordagens teóricas distintas, mas chegam a conclusões  que  dialogam  entre  si,  com  semelhanças  na  estratificação marcada  pelo  gênero.  No  caso  de  Córdoba,  embora  a  segregação horizontal tenha diminuído em relação ao passado recente, ainda existe alguma diferença nessa distribuição com maior participação de homens na  área  penal,  o  que  diminui  na  área  civil  e  comercial.  Nas magistraturas  estadual  e  federal  paulistas  não  foram  observadas segmentação de gênero,  com  juízes  e  juízas  atuando na  justiça  civil  e criminal. A  justiça do  trabalho que é mais  feminina, não  foi analisada nessa pesquisa.  

Quanto  à  segregação  vertical,  observou‐se  forte  estratificação por gênero no  judiciário estadual paulista, mas bem menos acentuada no judiciário federal de São Paulo. A explicação dada por elas é o maior insulamento da carreira decorrente da consolidação do profissionalismo antes  do  ingresso  feminino  na  magistratura  estadual,  o  que  não  se passou na  justiça  federal. Assim, o  fechamento generificado  teria  sido maior no Tribunal de Justiça de São Paulo, do que no Tribunal Regional Federal. Na Argentina, a segregação vertical foi observada em todos os foros. 

As  autoras  chegam  à  seguinte  conclusão  sobre  a  relação  entre profissionalismo e gênero:  

 “A  implementação de sistemas meritocráticos pode  ter efeito positivo para a redução das desigualdades de gênero, porém  tais sistemas são mais  exigentes  com  as mulheres,  inseridas  numa  sociedade  na  qual persiste a divisão sexual do trabalho, o que faz com que as diferenças de  gênero  se  estanquem  no  interior  de  uma  profissão  na  qual  a proporção de graduadas é cada vez maior” (p. 211).  

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O oitavo e último capítulo da segunda unidade é um estudo de Maria  Inés  Bergoglio  sobre  a  implantação  do  sistema  de  júri  na Argentina, com objetivo de ampliar a participação popular na justiça e a legitimidade  judicial. A pergunta que a autora se coloca é se o objetivo de aumentar o reconhecimento popular de um  judiciário marcado pela baixa  confiança  da  população  na  justiça,  foi  alcançado  com  os ‘Julgamentos por  júri’. Para  tanto, ela pesquisa a participação  leiga em tribunais mistos, que  foram  criados  em Córdoba,  a partir de  2005, na esfera  penal,  combinando  a  atuação  profissional  com  a  dos  jurados.  Para  tanto, ela  compara pesquisas de opinião pública  realizadas entre 1993 e 2011, analisando as mudanças de atitude em relação aos juízes e aos jurados.  

Em síntese, Bergoglio conclui que:  

“Embora  já  exista  evidência  de  que  aqueles  que  têm  atuado  como jurados melhoram  sua opinião  sobre o  funcionamento da  justiça, por enquanto o caráter limitado da experiência cordobesa sugere que seus efeitos  sobre  a  legitimidade  judicial  na  cidadania  geral  podem  ser muito fracos ainda.” (p. 215).  A  terceira parte do  livro começa com uma análise comparativa 

das políticas de habitação social implementadas na cidade de Córdoba‐Argentina  e  várias  áreas  urbanas  do  Brasil,  no  âmbito  do  programa ʺMinha Casa, Minha Vidaʺ, de caráter estadual no primeiro caso, e de âmbito nacional no  segundo. As  autoras Maria Alejandra Ciuffolini  e Lúcia Zanin Shimbo esclarecem que, embora os respectivos programas tenham a mesma denominação em ambos os países, eles diferem no que respeita  aos  beneficiários  aos  quais  os  programas  se  dirigem,  aos mecanismos de  implementação e à extensão  territorial de aplicação. O Programa  “Minha Casa, Minha Vida”  foi  lançado  em  2009  no  Brasil, quase uma década depois do programa homônimo  implementado em Córdoba. O propósito das duas autoras  é  caracterizar  tais programas, destacando  semelhanças  e  diferenças  e,  sobretudo,  reconhecer  o impacto dessas políticas nas relações sociais e processos de subjetivação a que dão lugar. Este dado, já observado no caso argentino, por tratar‐se de um programa mais antigo, poderá replicar em um futuro próximo no Brasil – em função da própria lógica do programa brasileiro. 

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O  texto  do  capítulo  nono  está  dividido  em  duas  seções:  a primeira sobre o caso de Córdoba‐Argentina, e, a segunda, sobre o caso brasileiro. Ambas as seções dedicam sua primeira parte à descrição das políticas  habitacionais  que  incorporam  os  programas  estudados, enquanto que a segunda parte se ocupa da análise crítica do produto de tais políticas e de seu impacto urbano e social. 

A conclusão mais geral que as autoras destacam para cada caso se resume nos seguintes parágrafos: 

 (Programa  Córdoba‐Argentina)  “...  favorece  um  tratamento  ágil  e focalizado  dos  problemas,  em  detrimento  de  uma  ação  integral  que ofereça soluções ao complexo fenômeno da pobreza. Assim, o PMCMV atende prontamente a questão da falta de moradia, mas reproduz, em seu  desenho,  as  formas  de  exclusão  a  ela  associadas. Nesse  sentido, vale  destacar  a  intensificação  da  segregação  espacial.  Isso  ocorre porque  o  programa  opera  um  deslocamento  geográfico  dos  pobres para  as margens da  cidade,  agravando  outras  situações de  exclusão, como  as de  emprego, de  acesso  a  serviços básicos,  como  saúde  e/ou transporte,  etc.  Consequentemente,  criam‐se  novos  ou  reforçam‐se velhos padrões de desigualdade e de acesso e uso da cidade (p. 249).  (Programa‐Brasil)  “...  não  procura  constituir  propriamente  uma política de habitação, que estaria centrada numa  lógica universal dos direitos e que pautariam o conteúdo normativo da política pública (...). Trata‐se,  genericamente,  de  “um  programa  de  crédito  tanto  ao consumidor  quanto  ao  produtor”,  (...).  Portanto,  os  parâmetros financeiros e a solvabilidade do sistema importam muito mais do que o conteúdo universalizante da política e a articulação com a produção da cidade  ‐  que  requisitaria  uma  abordagem  integrada  entre  política habitacional,  política  urbana,  política  fundiária  e  política  social.”  (p. 261‐262). 

 Gerardo  Avalle  introduz  o  décimo  capítulo  “A  tradução 

contemporânea das demandas populares (ou do conflito que emerge do universo popular) nos espaços públicos: o caso do Córdoba, Argentina”, sugerindo  que  essas  expressões  denunciam  o  pano  de  fundo  de inclusão/exclusão  que  se  manifesta  em  cada  sociedade,  bem  como 

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evidenciam  as  tensões  que  se  escondem  nas  formas  em  que  as demandas são processadas pelos dispositivos governamentais. 

Através do percurso histórico‐político dos últimos  20  anos, de processos de demandas populares por emprego, alimentação e moradia na Argentina  e  particularmente  em Córdoba,  recuperado  a  partir  do relato de atores dos setores populares, Avalle pretende  testemunhar a afirmação de que ʺA gramática popular adverte sobre o avesso de uma política  de  (des)igualdade  (p.  272)ʺ.  Em  outros  termos,  e  utilizando novamente as palavras do autor,  ʺa  inscrição dos  sujeitos nos espaços públicos  e  as  demandas  por maior  igualdade  enfrentam‐se  com  um risco  permanente  de  desativação  política  e  inclusão  degradada  na linguagem da cidadaniaʺ. (p. 272) 

O capítulo está organizado em três seções. A primeira reconstrói, a  partir  da  percepção  dos  setores  populares,  a  dinâmica  política argentina que,  impulsionada pelo projeto neoliberal, atravessa os anos 90  para  desembocar  na  crise  de  2001.  E  se  debruça,  particularmente, sobre  o projeto político  emergente  a partir de  2003. A  segunda  seção aponta para o surgimento de novos atores coletivos como consequência da crise de 2001. Por  fim, analisa a ação do Estado e das organizações populares, focalizando seus desdobramentos na província de Córdoba. 

O  autor  conclui,  fundamentalmente,  que,  tomadas  as  políticas públicas a partir da perspectiva dos setores populares, uma dentre suas consequências,  independentemente  do  objetivo  que  tais  políticas perseguem, é a desativação da mobilização e  iniciativa popular,  já que estas  representam  um  risco,  uma  ameaça  ao  controle  que  o  governo busca exercer sobre essas populações. Empreende‐se, a partir do Estado, uma nova técnica de gestão, mais estável, mas que não necessariamente oferece maiores garantias de direitos. 

 “O  cenário  que  se  apresenta,  então,  é  de  uma  dupla  aprendizagem, onde o Estado toma as lutas e a organização popular como doutrinas, e aquelas fazem de sua prática e da relação com o Estado uma caixa de ferramentas  e  um  estado  de  coisas  que  estabelece  permanentemente novos pontos de partida e  instâncias de demandas  (...) que permitem (...), escapar à desativação (...) ʺ(p. 291). 

 

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O  décimo  primeiro  capítulo,  de  autoria  de  Gabriel  de  Santis Feltran,  discute  a  relação  paradoxal  entre  conflitividade  social  e  as transformações  sociais  e  econômicas  induzidas  pelo  significativo desenvolvimento econômico ocorrido nas últimas décadas no Brasil. O objetivo  deste  ensaio  é  revelar  questões  analíticas,  teóricas, metodológicas  e  políticas  implicadas  na  gestão  e  compreensão contemporânea da  existência  e das práticas das populações marginais no Brasil urbano. O autor realiza tal discussão partindo de observações etnográficas de grupos urbanos composto por:  i) adolescentes e  jovens inscritos em atividades criminosas, moradores de bairros das periferias urbanas; ii) moradores de rua; iii) prostitutas localizadas nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. 

As constatações tomadas de investigações já concluídas, que são a base do ensaio “Territórios e populações “marginais” em  tempos de desenvolvimento”, e a revisão bibliográfica que as informam, orientam a  revisão  crítica  dos  três  eixos  tomados  pelo  estudo,  bem  como  a observação  e  a  formulação  de  políticas  públicas  relacionadas  à marginalidade. 

Um  primeiro  eixo,  de  caráter  teórico‐metodológico,  gira  em torno do sentido atribuído às noções de marginalidade, e sua associação com  termos  tais como a pobreza, desordem,  incivilidade,  imoralidade, violência, marginalidade, criminalidade. 

Uma  segunda  questão  “...  é  aquela  que  percebe  as  dinâmicas sociais  e  políticas  dos  setores  populares  a  partir  da  mudança,  da transformação, registrada empiricamente pelos mais variados métodos – das pesquisas por questionário ao georreferenciamento, das buscas por trajetórias  individuais  às  que  procuram  captar  transformações estruturais no Estado ou na economia” (p. 305‐306).  

Por fim, o ensaio problematiza a contradição que gera a própria presença do Estado  nos  territórios marginais,  a  qual  contribui para  a construção de uma série de bipolaridades sociais a partir das quais se reforçam a exclusão, o mascaramento e a reconfiguração da pluralidade que se expressa nos territórios marginais. 

Encerra  o  conteúdo  da  terceira  parte  o  trabalho  “Por  uma sociologia das narrativas sobre o meio ambienteʺ, de Rodrigo Constante Martins. O capítulo analisa as narrativas hegemônicas acerca do uso e 

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acesso  aos  recursos  hídricos,  num  contexto  de  narrativas  em  disputa sobre  a  explicação  e  as  consequências  da  atual  crise  ambiental.  O crescente interesse pela difusão e aplicação de instrumentos econômicos de  gestão  ambiental  é  uma  preocupação  emergente,  nacional  e internacional,  por  implementar  estratégias  eficazes  para  regular  o consumo social da água. 

O  propósito  do  capítulo  é  interpretar  criticamente  a  narrativa que subjaz e sustenta a confiança nas regulações e disposições contidas nos  instrumentos  econômicos de gestão  ambiental. Na primeira parte do  texto  são  descritas  experiências  nacionais  de  gestão  da  água,  em particular a brasileira. Na segunda, se discute os pressupostos teóricos que justificam as narrativas produzidas pelos especialistas da economia da água. Aprofundando os aspectos críticos da narrativa hegemônica de regulação do uso  e do  acesso  à  água, baseada nos princípios de uma economia  política  fundada  no  neoclassicismo  marginalista,  o  autor atenta, nas últimas duas partes do capítulo, para as noções de ʺofertaʺ, ʺescassezʺ e ʺgestãoʺ do recurso. 

Martins  conclui  sua  análise  destacando  que  um  dos  pontos cruciais no  tocante às orientações que adotam atualmente a gestão da água é que “... há sempre uma intencionalidade simbólica corporificada no código de recursos socialmente desejáveis” (p. 335)., e o fato de que a água, como recurso natural, é também um recurso simbólico no qual se condensam  diversos  sentidos  –  extrapolando  sua  redução  excludente enquanto  bem  econômico  –  que  variam  de  acordo  com  diferentes grupos e sociedades. 

Os  doze  trabalhos  que  compõem  este  livro mostram  como  os diálogos entre o Programa de Pós‐Graduação em Sociologia da UFSCar e  a  Maestria  en  Sociología  da  Universidad  Nacional  de  Córdoba caminham na trilha do mútuo reconhecimento, para a consolidação da produção acadêmica latino‐americana e das relações institucionais sul – sul, o que no  caso da Sociologia  representa a pluralização do modelo hegemônico da internacionalização norte‐sul.  

Outros  colegas  em  São  Carlos  e  em  Córdoba  participam  do programa  “Centros  Associados  para  o  Fortalecimento  da  Pós‐Graduação”,  colaborando para  o  avanço do  conhecimento  sociológico comparado sobre a mudança social no Brasil e na Argentina, mas não 

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puderam  participar  deste  volume.  Agradecemos  a  eles  e  a  elas  as oportunidades de  interlocução em outras atividades,  como as missões de  trabalho  e  estudo  que  resultaram  em  uma  compreensão  mais aprofundada das semelhanças e das especificidades regionais e locais.   

Registramos  nossos  agradecimentos  ao  acolhimento  das coordenadoras  do  PPGS  e  da Maestria  en  Sociología,  bem  como  ao apoio  das  secretarias  dessas  unidades  para  que  as  missões  se viabilizassem.  Institucionalmente,  a  cooperação  da  Universidade Federal de São Carlos e da Universidad Nacional de Córdoba tornaram viável a realização do projeto, que só pode ser executado devido a essa recepção positiva. Contamos também com a pronta atenção dos técnicos da  CAPES  e  da  CONEAU  no  atendimento  das  várias  solicitações, inclusive  aquelas  que  viabilizaram  a  organização  deste  livro. Finalmente,  agradecemos  aos  colegas  que  contribuíram  com  suas pesquisas e análises para dar vida a este volume, e aos profissionais que nos ajudaram com os trabalhos de tradução, revisão, e edição.    

    Maria da Gloria Bonelli e Martha Diaz Villegas de Landa 

  Coordenadoras do CAFP e organizadoras do livro               

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PARTE I   

Raça, identidade e contingência:  esboço para uma reflexão das experiências latino‐americanas 

 Maximiliano Gaviglio1 

  

ʺos  animais  são  divididos  em  a]  pertencentes  ao imperador,  b]  embalsamados,  c]  treinados,  d]  leitões,  e] sereias,  f]  fabulosos  g]  cães  vadios,  h]  incluídos  nesta classificação, i] que se agitam como loucos, j] inumeráveis, k]  desenhados  com  um  pincel  muito  fino  de  pêlo  de camelo,  l] etcétera ʺ, m] que acabaram de quebrar o  jarro, n]  que  de  longe  se  parecem  com  moscas”.  Jorge  Luis Borges.  ʺEl  idioma  analítico  de  John  Wilkinsʺ,  Otras inquisiciones, 1960. 

 No prefácio de ʺAs palavras e as coisasʺ Michel Foucault (1995) 

admite que foi essa inverossímil e inquietante taxonomia que o inspirou a  refletir sobre as possibilidades do conhecimento humano. Para além da simpatia que provoca o absurdo (e sem pretender cair nos excessos de  um  esteta),  esta  referência  nos  resulta  verdadeiramente  útil  para iniciar uma reflexão sobre o tema que nos ocupamos: a categoria ʺraçaʺ como  uma  forma  de  classificação  (de  corpos  e  sujeitos)  e  suas representações na América Latina.  1. Introdução 

 Se  tivéssemos que começar com uma pergunta, o mais  sensato 

seria  questionar‐nos  a  respeito  do  que  falamos  quando  falamos  de 

                                                            1 Licenciado em Comunicação Social (Escola de Ciências da Informação – Universidade Nacional  de  Córdoba);  colaborador  vinculado  às  cadeiras  de  ʺComunicação  em Publicidade  e  Propagandaʺ  e  ʺWorkshop  de  Imagem  Institucionalʺ  do  curso  de Comunicação  Social  (ECI‐UNC).  Atualmente  está  finalizando  um  mestrado  em Sociologia no Centro de Estudos Avançados da Universidade Nacional de Córdoba.   

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ʺraçaʺ?  E  estou  seguro  que,  se  a  pergunta  fosse  realizada  em  um auditório,  surgiria  um  sem‐número  de  acordos  e  desacordos  parciais (ou,  talvez,  totais).  Por  evocar  um  universo  de  significação  amplo,  o termo ʺraçaʺ nos surge como um termo problemático que pode suscitar um  sem‐número  de  leituras  possíveis  em  relação  direta  com  os contextos  em que  ele  tem  lugar:  se  trata de uma  categoria  contingente que,  longe de  ser  concebida em  termos essencialistas, manifesta‐se de modo distinto em discursos historicamente situados. 

Para  facilitar  o  desenvolvimento  de  meu  argumento,  abordarei alguns dos usos do  termo, a  fim de apresentar de maneira breve uma série de critérios e definições teóricas que nos permitem definir pautas (ou  nós  problemáticos)  a  partir  dos  quais  seja  possível  analisar  a complexidade semântica da  ideia em questão em relação à experiência latino‐americana.  

Para começar, podemos tomar uma série de definições formalizadas, tais como as estabelecidas pela Real Academia Espanhola: Raça (“raza”): (Do lat. *radĭa, de radĭus). 1. f. Casta ou qualidade de origem ou linhagem. 2. f. Cada um dos grupos nos quais se subdividem algumas espécies biológicas  e  cujas  características  diferenciais  são  perpetuadas  por herança. 3. f. Fenda, rachadura. 4. f. Raio de luz que penetra por uma abertura. 5. f. Rachadura que às vezes se forma na parte superior do capacete das cavalarias. 6. f. Lista, em pano ou outra tela, em que o tecido está mais claro do que no resto. 7. f. Qualidade de algumas coisas, em relação a certas características que as definem2. Um  dos  usos  ou  acepções  mais  comum  ou  ao  menos  mais 

reconhecida  ‐  a  definição  número  2  ‐  é  aquela  que  é  utilizada  pela biologia  para  designar  grupos  nos  quais  se  subdividem  algumas espécies  biológicas  a  partir  de  uma  série  de  características  que  são transmitidas por herança genética. Esta maneira de  conceber  a  “raça” 

                                                            2 Real Academia Española, http://buscon.rae.es/draeI/. Acessado em: 17/02/13. 

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teve, na esteira das discussões da antropologia física (que tentou definir os  critérios  de  conhecimento  do  social  a  partir  do  paradigma  das ciências  naturais),  uma  influência  notável  no  pensamento  social  do século XIX, dando lugar a um sistema de classificação por meio do qual se pretendeu ordenar e interpretar as diferenças visíveis ‐ fenotípicas e socioculturais ‐ da espécie humana. Como conceito analítico, essa ideia de ʺraçaʺ  passou  a  obscurecer  a  diversidade  cultural  (que  era  diluída, reduzida ou, diretamente,  ignorada) em detrimento das características biológicas  ‐  e  sobretudo  as  fenotípicas  ‐,  naturalizando  a  divisão  de grupos  sociais diferenciados  sobre  a  base de  critérios  frequentemente estigmatizantes  que  se  presumiam  como  condições  invariáveis  (como uma forma de sentença genética). 

Se  retomamos  a  ideia  de  contingência  histórica  e  identificamos  a ciência  como uma  leitura que  emerge no  e  para  o Ocidente, podemos dizer  que  a  gênese  do  conceito  de  ʺraçaʺ,  enquanto  categoria socioanalítica,  foi  determinada  pelo  choque  (encontro/desencontro)  e relação  entre  o  ocidental  e  o  não‐ocidental  (como  transformação  ou cristalização da tensão que, durante os diferentes períodos de conquista, se  estabeleceu  entre  o  europeu  e  o  não‐europeu).  Neste  sentido, podemos definir uma interrogação ‐ Por que eles não são como nós? ‐ como forma  de  problematizar  a  diversidade  humana  enquanto  conflito  ou tensão entre a cultura ocidental e as culturas orientais, médio‐orientais, africanas e americanas (em toda a sua amplitude)3. 

Mas  o  termo  não  foi  gestado  exclusivamente  a  partir  do  campo científico,  a  problematização  da  diferença  e  da  diversidade  constitui uma  preocupação  que  vem  se  erguendo  durante  séculos. No Antigo Testamento  –  e  em  particular  no  livro  do Gênesis  ‐,  por  exemplo,  é 

                                                            3 Em princípio,  esta preocupação  teve  seu desenvolvimento  acadêmico mais  acabado nos denominados países ʺcentraisʺ da Europa (estendendo‐se, posteriormente, para os Estados Unidos). Ou seja, naqueles países onde a ciência social como tal se gestou e se consolidou,  originaram‐se diferentes  tradições  teóricas  que,  à  luz de  seus  próprios paradigmas, se posicionavam como lugar central ‐ isto é, como espaço preferencial e legítimo do debate acadêmico científico. Não obstante, à luz de situações posteriores ‐ como os processos de descolonização na África e Ásia, que tiveram lugar em meados do  século  XX  ‐,  a  inadequação  dos  esquemas  tradicionais  possibilitou  que  os progressos acadêmicos sofressem um descentramento que permitiu o posicionamento de estudos e investigações antes considerados periféricos (Slenes, 2010). 

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atribuída aos três filhos de Noé ‐ Sem, Cam e Jafé – a descendência das raças branca, negra e amarela4. O conceito de raça, assim entendido, está vinculado  à  definição  número  1  ‐  ʺcasta  ou  qualidade  da  origem  ou linhagemʺ  ‐, por meio da qual a comunidade dá  forma a uma série de discursos  de  origem  que  permitem  afirmar  a  identidade  do  coletivo, assumindo  suas  raízes  comuns  e  suas diferenças  em  relação  a  outras comunidades.  Mas  a  relação  quantidade/qualidade  também  se manifesta de maneira explícita na definição número 7  ‐  ʺqualidade de algumas coisas, em relação a certas características que as definemʺ. Esta forma de  identificar os atributos de raça de acordo com os critérios de valor  (qualidades  desejáveis  versus  qualidades  indesejáveis),  embora possa apelar ou não ao recurso de origem, nos permite definir a lógica de  diferenciação  tanto  como  lógica  de  hierarquização  social,  quanto como  uma manifestação  discursiva  do  estado de  luta  que  caracteriza uma  determinada  ordem  social  ‐  definida,  particularmente,  pela distribuição  de  agentes  posicionados  ao  redor  de  capitais  e  valores disputados e distribuídos de forma desigual. 

Com  base  nesta  discussão,  podemos  inferir  que,  para  além  dos significados  acadêmico‐científicos,  ʺraçaʺ  é  uma  ideia  cujo  uso generalizado carrega uma série de conotações  ‐ e efeitos de sentido que tem  lugar  na  e  pela  experiência  objetiva  –  que  permitem  pensar  numa lógica mais  ampla através da qual,  a partir do  ideológico,  certos grupos pensam a si e aos outros, ou seja: outrificam (Segato, 2007). Será, portanto, necessário  elucidar o  significado desta  categoria  em  relação a ordens de representação  determinadas,  que  não  apenas  devem  pôr  em  causa  as condições que subjazem e dão suporte aos discursos vernáculos enquanto fundados na e para a prática5, mas que também deverão problematizar as categorias  socioanalíticas  construídas  no  interior  do  campo  científico, posto que nenhum esquema de classificação pode ser esvaziado das lutas 

                                                            4  “E  tendo  Noé  quinhentos  anos,  gerou  a  Sem,  a  Cam  e  a  Jafet”,  Gênesis  5:32.  A denominação “semita” evoca a origem hebraica enquanto descendência de Sem. 

5 Por ʺcategorias da práticaʺ, na direção de Bourdieu, entendemos algo próximo ao que outros  têm  chamado  categorias  ʺnativasʺ,  ʺfolclóricasʺ  ou  ʺcorrentesʺ:  categorias da experiência social cotidiana, desenvolvidas pelos agentes sociais, e que se diferenciam das categorias da experiência distante, utilizadas pelos analistas sociais (Brubaker & Cooper, 2001). 

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materiais e simbólicas que tem lugar entre aqueles que compartilham um ou outro modo de classificação6.  

  Figura  1.  Classificação  das  raças  utilizadas  no  Censo  dos  EUA  de  2010, anexado às ʺNormas para a classificação dos dados federais sobre raça e etniaʺ emitidas pela OMB7. 

                                                            6 A frequente invocação da autoridade científica ‐ que permite construir uma ordem de representações  hegemônicas,  na  medida  em  que  tem  a  possibilidade  de  ser reconhecida como fonte de legitimidade – transforma em realidade e em razão o recorte arbitrário  que  pretende  impor  (Bourdieu,  2006,  p.  172). O  ato  de  categorizar,  em relação  a  seus  efeitos  performativos,  quando  é  reconhecido  enquanto  autoridade passa a exercer poder por si mesmo e  institui uma realidade:  ʺo ato de magia social que  consiste  em produzir  a  existência da  coisa  nomeada,  em  fazê‐la  existir  no  ato mesmo da enunciaçãoʺ. 

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2. Representação, experiência e história  Temos  dito  que  uma  vez  rejeitada  a  ideia  de  ʺraçaʺ  em  sua 

fundamentação  genética  ou  essencialista,  o  conceito  passa  a  ser entendido  como  construção  social  historicamente  contingente,  cujo  uso deve ser concebido em relação a práticas discursivas e materiais concretas que,  a  partir  do  campo  do  imaginário  e  do  simbólico,  aludem  a processos  mais  amplos  de  construção  de  identidades  sociais.  Como categoria  histórica,  é  resultado  das  lutas  passadas  que  conjugam  no presente  trajetórias  e  situações  de  exclusão  prévias  que,  podendo atenuar‐se  ou  radicalizar‐se,  atualizam  a  luta de  classes  em discursos culturalmente enraizados. Nas palavras de Segato (2007, p.23.) 

 “Raça  não  é  necessariamente  sinal  de  povo  constituído,  de  grupo étnico, de comunidade outra, mas um traço, como rastros no corpo da marcha  de  uma  história  outrificadora  que  construiu  ‘raça’  para construir ‘Europa’ como uma ideia epistêmica, econômica, tecnológica e jurídico‐moral, que distribui valor e significado em nosso mundo.”  Por discurso,  ao modo que  a  ele  se  refere Ernesto Laclau, não 

devemos entender algo essencialmente restrito aos âmbitos da fala e da escrita, mas sim um complexo de elementos no qual as relações passam a assumir um papel constitutivo que, longe de reduzir os significantes ao campo da retórica superficial, definem os discursos como manifestação de uma racionalidade particular (Laclau, 2010). 

Enquanto  categoria  nativa,  ou  seja,  como  uma  categoria utilizada pelos  sujeitos e  cujo  significado  será associado a  seu mundo prático e efetivo, se trata de um termo disposicional, que designa o que Brubaker e Cooper, evocando a idéia de ʺsentido práticoʺ de Bourdieu, chamam  de  uma  ʺsubjetividade  situadaʺ,  que  se  assume  como  auto‐afirmação  ‐  cognitiva  e  emocional  ‐  do  sentido  de  quem  somente  é alguém  em  relação  à  própria  localização  social  (Brubaker &  Cooper,                                                                                                                                                 7 Neste quadro pode‐se notar que a definição de raça ʺbrancaʺ não manifesta sinais de diversidade,  enquanto que as  raças  ʺnão‐brancasʺ  se desdobram  em oito  categorias diferentes.  Fonte:  [http://www.whitehouse.gov/omb/fedreg/1997standards.html ʺRevisions  to  the  Standards  for  the  Classification  of  Federal  Data  on  Race  and Ethnicityʺ. 

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2001). Portanto, a noção de raça não apenas passa a ser entendida como uma  categoria que  se  refere ao âmbito do que é dito, mas  também ao âmbito do vivido  como  experiência, uma vez que,  tal  como  evidenciado por Avtar  Brah  (2011),  os  discursos  que  repousam  na  estigmatização das  diferenças  são  baseados  em  relações  de  opressão  que moldam  a experiência dos sujeitos, não apenas na relação com o grupo (enquanto definições  de  identidades  coletivas  aceitas  intersubjetivamente),  mas também  consigo  mesmos  (em  virtude  da  influência  de  esquemas subjetivos de apropriação do eu). 

Em  referência  às  condições  objetivas  que  fazem  possível  a emergência  destes  significantes,  a  definição  de  classificações  raciais  ‐ cuja dinâmica  pode  ser  pensada  como  um  processo de  racialização  – traduz, no plano ideológico, algumas das tensões econômicas, políticas e culturais de dada  sociedade8. Neste  sentido, podemos perceber uma dupla dinâmica, onde as condições objetivas dão lugar a manifestações ideológicas que, mediante a afirmação dos princípios objetivos no plano simbólico, reproduzem, modelam e cristalizam as oposições estruturais no plano discursivo. Além disso, retomando as contribuições de Pierre Bourdieu (2006), a investigação dos critérios ʺobjetivosʺ ‐ marcadores de diferença  suscetíveis  de  funcionar  como  indicadores  de  identidades sociais  (cor, dialeto, gênero,  língua,  sotaque, práticas  étnico‐religiosas, etc) ‐ deve levar em consideração que na prática social tais critérios são susceptíveis  de  se  manifestar  de  duas  maneiras:  como  objetos  de representações mentais, ou seja, de atos de percepção e de apreciação, de conhecimento  e  reconhecimento,  onde  os  agentes  investem  seus interesses e  seus pressupostos; e  como  representações  objetais, de  coisas (emblemas, bandeiras, imagens, etc.) ou atos, estratégias interessadas de manipulação simbólica, que visam determinar a representação (mental) que  os  outros  podem  construir  acerca dessas  propriedades  e de  seus portadores.  Características  percebidas  e  apreciadas  (e  descritas  pelos 

                                                            8 Se  tomamos como exemplo as sociedades escravistas, a segregação  racial sustentada por discursos racistas pode ser entendida como reflexo da ideologia hegemônica que, por extensão, põe em manifesto as situações de conflito entre as posições diferenciais que, no político, no econômico e no cultural, caracterizam as posições dos ʺsenhores brancosʺ e dos ʺescravosʺ. 

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analistas)  funcionam  como  sinais,  emblemas ou  estigmas. E,  tal  como define Segato (2007): a raça passa a ser concebida como signo. 

Do  mesmo  modo  como  pode  se  manifestar  em  discursos hegemônicos  (como  é  o  caso  dos  discursos  que,  a  partir  do  Estado, foram  orientados  para  definir  a  constituição  de  uma  identidade nacional), as situações de desigualdade e marginalidade estrutural têm a capacidade de unificar coletivos que, embora heterogêneos em relação à raça, cor ou etnia, podem estabelecer laços de solidariedade em torno de um estado de necessidade – em suma, uma experiência comum – que os une (Brah, 2011; Segato, 2007). Dito isto, a raça pode surgir associada a outros  marcadores  de  diferenças,  adquirindo  um  sentido  e  uma relevância  particular  em  função  do  contexto  em  que  ocorrem,  o  que implica  desafios  e  riscos  tanto  para  a  análise  da  constituição  das identidades  sociais  como para  a definição de  estratégias políticas que tentam ser articuladas pelos grupos envolvidos9.  3. Crisol de representações 

 A partir do referido anteriormente é possível entrever que uma 

análise das representações de raça na experiência latino‐americana que tomasse  em  conta o  tratamento  adequado das  complexidades que  ela supõe poderia resultar excessiva para os limites desse artigo. Mas, além das  limitações evidentes e, a  fim de gerar possibilidades  interessantes de definição de questões ou nós problemáticos,  tentarei  identificar um 

                                                            9  A  raça  pode  associar‐se  distintivamente  a  outros  significantes,  sob  diferentes gramáticas (Segato, 2007). Entendidos como o cenário dos processos de construção da identidade coletiva, um conjunto de significantes tem a capacidade de consolidar um imaginário  compartilhado  por meio  do  qual  é  possível  fortalecer  um  vínculo  de equivalência  que  contribui  para  que  se  estabeleça  a  definição  de  uma  comunidade imaginada.  Assim,  a  partir  de  uma  dinâmica  de  inclusão/exclusão  baseada  na afirmação  e  negação  de  elementos  particulares  que  definem  o  todo,  a  adoção  de significantes  em uma  cadeia de  equivalências permite  instituir  o pertencimento de certos sujeitos ao  interior de um grupo, definindo, por consequência, a exclusão de outros sujeitos que não compartilham de tal vínculo. A ideia de ponto nodal na teoria de Zizek  permite  pensar  que  estes  significantes  não designam  algo  positivamente, mas possibilitam, em termos performativos, a unidade do campo: a palavra enquanto palavra unifica um campo determinado constituindo sua identidade. 

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conjunto  de  condicionamentos  que  podem  ser  considerados  ao  se abordar esse crisol de representações. 

Embora  os  países  latino‐americanos  compartilhem  uma  série  de experiências  (suas conformações e desenvolvimentos são marcados de modo  particular  pela  experiência  colonial  e  pela  relação  de  tensão constante  com  os  centros  de  poder  ocidentais),  e  tenham  alcançado êxitos  no  que  se  refere  à  integração  regional,  devemos  considerar  de todo modo as diferenças que persistem entre eles, levando em conta: 

• A  trajetória  e  constituição  dos  Estados‐Nação  (que  define  uma comunidade nacional em seus limites, em função da mobilização de um discurso hegemônico reconhecido como legítimo); 

• As condições geopolíticas e econômicas que marcaram a relação com as potências coloniais  (Espanha, Brasil e Portugal), com as potências imperialistas do século XIX (Inglaterra, França), as do século XX (Rússia e EUA) e as relações (por vezes conflitantes e contraditórias) entre os países da região; 

• A presença  e  o  impacto de povos  originários  ou  indígenas  (de composição  e  características  variáveis,  impossíveis  de  serem reduzidas a um mesmo perfil analítico); 

•  O  impacto  da  escravidão  (que  constitui  fator  essencial  da composição demográfica de países  como Brasil  e daqueles que compõe a região do Caribe); 

• O fator imigratório (no passado e no presente), a diversidade dos grupos imigrantes em relação aos países de origem e destino, as variações  no  desenvolvimento  demográfico  e  as  formas dissimiles de assentamento e integração populacionais; 

• As características dos assentamentos rurais, urbanos e das zonas de  fronteira  (onde  a  coesão  ou  os  limites  do  nacional  podem parecer  difusos,  parcial  ou  totalmente  transformados  e resignificados  a  partir  de  uma  experiência  marcada  pelo entrecruzamento); 

• O contexto social, econômico e político de cada Estado, etc.  Estas  variáveis  ‐  que  não  se  pretendem  exaustivas,  mas  que 

definem um escopo de análise suficientemente complexo para não ser subestimado  –  permitem  pensar  que  um  estudo  das  representações 

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associadas à  ideia de  ʺraçaʺ deveria partir de uma problematização  local ou regional, posto que os agregados nacionais ou supranacionais podem colocar problemas no momento de explicar sua diversidade interna. Na Argentina, por exemplo, as associações entre  raça, cor e classe podem variar de acordo com a região em questão: 

 • na região metropolitana do corredor Córdoba‐Rosario‐Buenos Aires,  onde  a  imigração  européia  (sobretudo  de  italianos  e espanhóis)  teve  um  impacto  notável  e  onde  a  hierarquização social  se  manifesta  na  delimitação  de  áreas  de  exclusão específicas, como é o caso das ʺvilas miseriasʺ (eufemisticamente chamadas  de  ʺvilas  de  emergênciaʺ),  o  racial  pode  ceder  ou articular‐se com uma  leitura de classe que associa a cor ʺnegraʺ como estigma ou marcador de diferença visível para o indivíduo de classe mais baixa (marcadores que podem associar distinções negativas, inclusive, a grupos de imigrantes de países da própria região, como é o caso das comunidades peruanas e bolivianas); •  em  contraste  com  o  caso  anterior,  no  literal  argentino  a articulação  ʺcor  negraʺ  ‐  “classe  baixa”  perde  força  devido  à presença de descendentes europeus em situação de pobreza; •  nas  regiões  com  presença  de  povos  originários  a  discussão sobre  as  identidades  sociais  incorpora  com  mais  força  o componente étnico10; 

                                                            10 De acordo com os relatórios do Instituto Nacional de Assuntos Indígenas (INAI), na Argentina  existem  18  povos  indígenas  que  contabilizam  um  número  estimado  de 600.329 pessoas que se reconhecem pertencentes e/ou descendentes de primeira geração. A  maioria  da  população  se  encontra  na  Região  Noroeste  (NOA),  em  13  aldeias (Atacama,  Ava  Guarani,  Chorote,  Chulupi,  Diaguita  /  Diaguita  Calchaquí,  Kolla, Omaguaca,  Wichí,  Quechua,  Tapieté,  Chané  e  Maimará),  e  concentram‐se  nas províncias de Salta e  Jujuy,  seguindo a costa Nordeste  (NEA‐Litoral) com 6 aldeias (Chulupi, Mbya Guaraní, Mocovi, Pilagá, Toba e Wichí) e nas províncias de Chaco, Formosa  e  Santa  Fé;  na  região  da  Patagônia,  com  4  aldeias  (Tehuelche,  Ona, Rankulche e Mapuche), concentram‐se nas províncias de Chubut, Santa Cruz e Tierra del  Fuego;  e  na  Região  Central,  com  5  aldeias  (Guarani,  Comechingón,  Huarpe Sanavirón e Tupi Guarani)  concentram‐se na Cidade de Buenos Aires e na Grande Buenos Aires. 

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• menção à parte constitui o caso da herança africana: embora haja  destaque  para  alguns  grupos  de  afrodescendentes  ‐ atualmente entre 12.000 e 15.000 descendentes de imigrantes de Cabo  Verde  residem  em  Ensenada,  Dock  Sud,  San  Nicolas  e Rosário  ‐,  a  invisibilidade  do  componente  afro  na  cultura argentina11 contrasta com a realidade de países vizinhos, como o caso do Uruguai ou, particularmente, do Brasil.  Estas  assertivas  evidenciam  contextos  distintos  dentro  de  um 

mesmo  país.  Embora  seja  possível  e  necessário  realizar  análises  que tomem  o  Estado  como  unidade  analítica  privilegiada  (especialmente quando  se  trata  da  análise  de  políticas  e  instituições  formais),  uma observação  regionalizada  pode  possibilitar  contextualizações  mais precisas  que  permitam  identificar  as  diferentes  gramáticas (dimensionando  elementos  que  não  necessariamente  estejam  em conformidade  com  os  parâmetros  de  formalização  estatais).  Estas considerações  nos  permitem  argumentar  a  favor  dos  estudos comparativos  (seja  entre  regiões  de  um mesmo  país,  entre  países  ou regiões supranacionais, seja entre as experiências de grupos específicos em cada um desses contextos), uma vez que a possibilidade de realizar uma reflexão abrangente das experiências latino‐americanas dependerá necessariamente da articulação de estudos dessa natureza. 

Para  concluir,  nos  interessa  destacar  que  representações assumidas  como  semelhantes,  como  é  o  caso das  ideias de  ʺcrisol de razasʺ  (Argentina),  ʺmelting potʺ  (EUA),  ʺcadinho de raçasʺ ou  ʺfábula das  três  raçasʺ  (como  se  costuma  fazer  referência no Brasil),  longe de querer  representar  fenômenos  idênticos devem  ser  interpretadas à  luz de suas diferenças, uma vez que, com frequência, essas manifestações – enquanto produções associadas a uma  lógica discursiva hegemônica – recorrem  a  recursos  homogeneizadores  que,  colocando  o  foco  na integração  das  diversidades  como  componentes  de  uma  identidade nacional  única,  permitem,  em  verdade,  sustentar  definições                                                             11  No  século  XIX,  a  presença  afroamericana  era  reconhecida  e  abertamente estigmatizada,  ilustração  disso  encontramos  na  obra  de  Martín  Fierro  (livro emblemático da literatura argentina): Dos brancos fez Deus /dos mulatos, São Pedro/ dos negros fez o diabo/ para brasa do inferno (Capítulo 7). 

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hierarquizadas na medida em que fazem desaparecer as visões opostas que muitos coletivos assumem como suas. 

De  todo  modo,  merecem  atenção  aquelas  manifestações discursivas  que,  insistentemente,  reproduzem  estereótipos estigmatizantes,  como  no  caso  dos  discursos  publicitários  ‐  que, fortalecidos por um sistema de produtos e serviços transnacionalizados, interpelam  a  um  público  de  consumidores  potenciais  fomentando valores de consumo assumidos como globais. Conforme defende Segato (2007),  qualquer  análise  deve  procurar  estabelecer  uma  crítica  a  um ʺmapa  multicultural  limitado  e  esquemático  que  projeta  uma diversidade fixa no tempo, reificada em seus conteúdos e despojada das dialéticas que conferem historicidade, mobilidade e enraizamento local, regional e nacionalʺ.  4. À guisa de conclusão 

 A multiplicidade de  contextos de uso da  ideia de  ʺraçaʺ  como 

termo  classificatório  pode  suscitar  confusões  ou  resultar,  em  alguma medida,  bastante  indeterminado. Mas  é  necessário  considerar  que  esta indeterminação,  ao  invés  de  simplesmente  aludir  a  uma  forma  de pobreza  semântica,  pode  representar  o  resultado  de  uma  lógica  de significação  específica  que  deve  ser  analisada  em  relação  a  contextos discursivos particulares. 

Retomando  aquela  categorização  impossível  desenvolvida  por Borges,  podemos  nos  questionar  (novamente  ao  modo  de  Foucault) acerca  das  condições  a  partir  das  quais  era  e  é  possível  demarcar identidades  fundadas  na  ʺraçaʺ,  levando  em  consideração  critérios  de certeza que permitem assumir tais taxonomias ou gramáticas como algo pensável  (susceptível de  ser  administrado  e delimitado  em  campos de conhecimento  específicos).  Assumindo  sua  contingência,  o questionamento  acerca  de  um  regime  de  representação  exigirá determinar  quais  são  as  condições  históricas  que  fizeram  emergir  o conceito enquanto definindo uma ordem, já que ele impõe, sob a forma de um discurso hegemônico, uma autoridade semântica capaz de tornar possível  vislumbrar  a  instituição  de  uma  diferença  social  cristalizada em  situações  de  exclusão,  instituição  esta  que  encontra  fundamento 

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numa  rede  de  relações  que  se  estabelecem  em  um  campo  social estruturado e hierarquizado. 

A análise discursiva que se articula com o estudo das práticas, problematiza, a partir do real, a representação do real  (ou a  luta pelas representações  que  buscam  definir  o  real),  ou  seja:  as  lutas  pelo monopólio de fazer ver e de fazer crer, de fazer conhecer e reconhecer, de  impor  a  visão  legítima  das  divisões  do mundo  social  (Bourdieu, 2006). 

O  estudo  da  diversidade  de  experiências  pode  enriquecer  a integração real de nossos povos. Tal e como se refere Segato: ʺAfirmar a diferença  das  culturas  em  um  sentido  profundo  é  afirmar  a possibilidade de que outros valores e outros fins orientem a convivência humana.ʺ    Bibliografia  BOURDIEU,  Pierre.  La  identidad  y  la  representación:  elementos  para  una reflexión crítica de la idea de región. Ecuador Debate, nº 67 , 165‐184, 2006. BRAH,  Avtar.  Cartografías  de  la  diáspora.  Identidades  en  cuestión.  Madrid: Traficantes de Sueños, 2011. BRUBAKER, Roger, & Cooper, Frederick.. Más allá de la identidad. Apuntes de investigación del CECYP, nº7 , 30‐67, 2001. FOUCAULT,  Michel.  As  palavras  e  as  coisas.  São  Paulo,  Editora  Martins Fontes, 1995. LACLAU,  Ernesto.  La  razón  populista.  México  D.F.:  Fondo  de  Cultura Económica, 2010. SEGATO, Rita L. La Nación y  sus Otros. Raza,  etnicidad y diversidad  religiosa  en tiempos de Políticas de la Identidad. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2007. SLENES, Robert. A Importância da África para as Ciências Humanas. Historia Social, nº19, 2010.      

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Multiculturalismo e metamorfose na racialização: notas preliminares sobre a experiência contemporânea brasileira 

 Valter Roberto Silvério1 

  

“O  racismo  e  o  colonialismo  deveriam  ser  entendidos como modos socialmente gerados de ver o mundo e viver nele”. (Frantz Fanon)  

  1. Introdução 

 O  argumento  desenvolvido  no  presente  texto  é  de  que  o 

deslocamento  na  forma  como  a  sociedade  brasileira  se autorrepresentava  é  decorrente  do  processo  de  luta  política  pela (res)significação/deslocamento  do  lugar  do  ser  negro  no  processo  de racialização  de  sua  experiência  coletiva. Com  base  nas  conquistas  do movimento  negro  é  possível  destacar  alguns  aspectos  que  permitem sustentar  essa  linha  de  raciocínio,  a  saber:  1)  o  tratamento  político‐jurídico  da  temática  da  diversidade  e  da  igualdade  racial  na Constituição  de  1988;  2)  a  alteração  da  Lei  de Diretrizes  e  Bases  da educação  brasileira,  e  as  diretrizes  que  a  acompanham,  orienta  para uma  mudança  significativa  nos  conteúdos  curriculares  nacionais,  ao prescrever  a  obrigatoriedade  de  uma  educação  que  possibilite  a construção de relações étnico‐raciais saudáveis e que inclua a história e a cultura afro‐brasileira e africana e, também, indígena. E, finalmente, a interação  entre as mudanças  internas  e o papel que o Brasil passou a representar  transnacionalmente nos últimos anos, não exclusivamente, mas em especial para os países da comunidade de língua portuguesa do continente africano. 

Uma  das  preocupações  centrais  de  Fanon  foi  demonstrar  os efeitos  do  colonialismo  sobre  o  colonizado,  buscando  entender  as 

                                                            1 Professor Associado do Departamento e Programa de Pós‐Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Coordenador em exercício do Núcleo de Estudos Afro‐Brasileiros da mesma universidade.  

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implicações para o desenvolvimento nacional depois do sucesso total da luta anti‐colonial. Neste sentido, fez um conjunto de comentários acerca da  natureza  do  racismo  em  1956.  Três  de  suas  observações  têm  sido mais  amplamente  articuladas  recentemente.  Na  primeira,  Fanon argumentou  que  racismo  não  é  um  fenômeno  estático,  mas  sim constantemente  renovado  e  transformado.  No  segundo  comentário, observa  que  o  racismo  primitivo  se  afirmou  no  terreno  da  biologia correspondendo  a  uma  fase  do  colonialismo,  pois  estes  argumentos tinham  sido  desacreditados  pelas  consequências  do  fascismo  na Alemanha. Finalmente, afirmou que racismo foi um aspecto central da dominação  colonial,  o  qual,  em  conjunto  com  outros  mecanismos, intencionava  transformar  a  população  colonizada  em  objetos  usados para os propósitos do colonizador (Fanon, 1970: 41‐54).  

Na  perspectiva  de  Fanon,  o  racismo  primitivo  tem  sido substituído por um racismo cultural que tem como seu objeto não o ser humano individual, mas uma certa “forma de existência” e que racismo é  somente  um  elemento  de  uma  vasta  e  sistematizada  totalidade  de opressão  de  um  povo  (1970:  43).  Tal  sugestão  tem  inspirado  um conjunto de estudos nas sociedades com passado colonial ou sociedades racialmente estruturadas de acordo com Hall (Hall, 1980).  

Esta  substituição  de  um  racismo  primitivo  (biológico)  por  um racismo  cultural  foi  retida  e  tem  sido  fundamental para a análise dos desdobramentos da  formação racial nos Estados Unidos, por exemplo, no período pós‐movimento dos direitos civis, na Europa, especialmente na Inglaterra, na definição do “New Racism”.  

A palavra racismo deriva da ideia de que raça determina cultura e,  como  consequência,  afirma  a  superioridade  racial de  alguns povos em  relação a outros. Na atualidade, este significado original do  termo nem  sempre  fica  evidente  pelo  uso  diversificado  da  palavra.  No entanto, o conceito de racialização2, que foi utilizado pela primeira vez 

                                                            2  A  ideia  contemporânea  de  “racialização”  ou  “formação  de  raça”  se  baseia  no argumento  de  que  a  raça  é  uma  construção  social  e  categoria  não  universal  ou essencial da biologia. Raças não existem fora da representação. Em vez disso, elas são formadas na e pela simbolização em um processo de luta pelo poder social e político. O  conceito  de  racialização  refere‐se  aos  casos  em  que  as  relações  sociais  entre  as 

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por Frantz Fanon na discussão sobre as dificuldades enfrentadas pelos intelectuais  africanos  quando  confrontados  com  os  desafios  da construção  de  uma  “nova”  cultura  no  pós‐colonialismo,  pode  nos auxiliar a compreender os novos sentidos do  termo raça  (Fanon, 1967: 170‐1). Para Banton, racialização está relacionada ao caminho através do qual  as  teorias  científicas  construíram  tipologias  raciais  que  foram utilizadas  para  categorizar  populações  (Banton,  1977:  18).  Reeves distinguiu  entre  racialização  “ideológica”  e  racialização  “prática” usando  a  primeira  em  referência  ao  discurso  sobre  a  raça  e  a  última para se referir à formação de “grupos raciais” (Reeves, 1983: 173‐6).  

O  conceito  de  racialização,  em  Miles,  focaliza  o  processo  de atribuição  de  significados  a  características  somáticas,  isto  é,  um processo  dialético  de  significação.  Ao  imputar  uma  real  ou  alegada característica  biológica  como meio de definir  o Outro,  o Eu  se define pelo mesmo critério (Miles, 1989: 73‐7).  

Para Webster,  nenhuma  das  concepções  sociológicas  correntes de  racialização  identifica  ou  desafia  seu  principal  elemento  que  é  a afirmação de que  raça é uma  realidade social ou política. Assim, para Webster,  o  aspecto  científico  social  da  racialização  incorpora  uma organização de  estudos das  relações  sociais passadas  e presentes,  em torno  das  classificações  raciais  que  são  apresentadas  como  reais  e, então,  justificadas  como  um  objeto  de  estudo  em  termos  de  sua realidade. Racialização  é,  por  isso,  classificação  racial  construída  com características de autoperpetuação (Webster, 1992: 26).  

Omi  e Winant  usam  o  conceito  de  racialização  para  realçar  a extensão do significado de raça em relações, práticas sociais ou grupais não classificadas previamente como raciais. Deste modo, racialização é um processo  lógico‐ideal, uma especificidade histórica  (Omi e Winant, 1986: 64; Winant, 1996: 59). Para Winant, o exemplo deste processo nos Estados Unidos foi a consolidação da categoria black para os africanos que anteriormente se identificavam ou eram identificados como Mande, Akan, Ovimbundu  ou  Ibo,  paralelamente  à  evolução  do  termo white como  uma  forma  crucial  de  autoidentidade  para  os  europeus  que  se 

                                                                                                                                                pessoas  foram  estruturadas pela  significação de  características biológicas humanas, de tal modo a definir e construir coletividades sociais diferenciadas. 

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autodenominavam,  inicialmente,  como  cristãos,  ingleses  e  livres (Winant, 1996: 59).  

Pouca concordância há nestes vários usos do termo, entretanto, é possível  identificar ao menos  três sentidos distintos em que o conceito de  racialização pode  ser  apreendido:  em um primeiro uso, o  conceito aparece com referência a um processo representacional através do qual o  significado  social  é  atribuído  a  certas  características  biológicas humanas  (usualmente  fenotípicas) que  se  constituem na base, a partir da qual aquelas pessoas que possuem tais características são designadas como uma  coletividade distinta. O  segundo uso do  conceito  se  refere àquelas  práticas  científicas  e  político‐institucionais  que  perpetuam  a competição  entre  raças  e  ou  etnias.  Por  último  a  racialização  aparece como um processo lógico‐ideal constitutivo da própria modernidade.  

Nos  dois  primeiros  usos  do  conceito,  aparentemente,  a racialização  é uma  característica  erradicável das  sociedades humanas, mas  em  seu  último  uso  ela  aparece  como  um  processo  que  está  nas origens da  cultura ocidental moderna. As variações do  conceito  estão associadas ao modo através do qual os autores concebem raça. 

A emergência e utilização da idéia de “raça” é uma fase histórica central da racialização, em termos de periodização, embora não seja seu solo de origem. De qualquer forma, desde o século XVIII, a população mundial  tem  sido  classificada  no  pensamento  europeu  em  “raças”. Miles usa o conceito de racialização para se referir ao processo dialético pelo qual significado é atribuido a características biológicas particulares dos seres humanos, resultando na possível alocação de  indivíduos em categorias  gerais  de  pessoas  as  quais  reproduzem  a  si  mesmas biologicamente. Ela é, portanto, um processo ideológico.  

De outra perspectiva, Webster está preocupado em identificar e refutar o que ele chama de “teoria racial geral”. Segundo ele, há mais de dois séculos, os estudos sociais e as políticas públicas estão dominadas por  esta  teoria  nos  Estados  Unidos.  Focando  menos  os  grupos  ou pessoas e seus motivos políticos, a origem racial ou os atributos raciais, as  definições  de  termos,  as  premissas  e  as  implicações  lógicas  dos argumentos científicos presentes no debate, Webster se propõe a refutar a  afirmação  básica  de  que  raça  tem  sido  uma  força  formativa  e propulsora da sociedade norte‐americana (Webster, 1992: 2).  

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Winant,  de  uma  outra  perspectiva,  argumenta  que  mais importante do que negar o estatuto científico da idéia e do conceito de raça é  focalizar a  continuidade de  sua  significância e as mudanças no seu  significado.  Neste  sentido,  este  autor  procura  criticar  quatro tendências  presentes  na  discussão  contemporânea  em  torno  do significado  da  raça:  a  primeira  tendência  tenta  demonstrar  o  caráter ilusório da natureza da raça; a segunda busca a transcendência da raça; a terceira assegura a morte do conceito de raça e a última simplesmente substitui  a  categoria  raça por  categorias  supostamente mais  objetivas, como  etnicidade,  nacionalidade  ou  classe.  Para  Winant,  todas  estas iniciativas  são  equivocadas  e  intelectualmente  desonestas  por considerarem raça uma construção ideológica ou uma condição objetiva (Winant, 1996: 14).  

Winant  observa  que  mesmo  os  autores  considerados  do mainstream  (corrente  principal)  teorizam  raça  em  termos  de  sua exiguidade e  flexibilidade e de  seu  caráter  contingente.  Isto é, mesmo aqueles pensadores que inquestionavelmente rejeitam a teoria racial em seu  formato  biológico,  não  conseguem  escapar  de  certo  tipo  de objetivismo. Daí,  o  surgimento de uma  explicação modal nos  escritos sobre raça:  

 “…as  circunstâncias  sociopolíticas  mudam  através  do  tempo histórico, os grupos racialmente definidos se adaptam ou falham em  se  adaptarem  às  mudanças,  adquirem  mobilidade  ou permanecem na pobreza. O problema é que nesta lógica não há espaço para a (re) conceitualização da identidade grupal a partir das constantes alterações de parâmetros através dos quais raça é pensada,  interesses  de  grupos  são  subscritos,  status  são atribuídos,  agências  são  criadas  e  papéis  sociais  são desempenhados” (Winant, 1996: 17).   Omi  e Winant,  afirmam  que,  nas  últimas  décadas,  nós  temos 

testemunhado  através  do  espectro  político,  a  tentativa  na  vida institucional de, por um  lado, definir um  significado apropriado para raça  e,  por  outro  lado,  estabelecer  identidades  raciais  coerentes baseadas em  tais  significados. Na visão destes autores, estes objetivos foram  e  continuam  a  ser  impossíveis,  principalmente,  porque  raça  é 

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preeminentemente uma construção social que está inerentemente sujeita à contestação por seu significado intrinsicamente instável.  

Assim,  eles  propõem  que,  no  interior  da  perspectiva  de  uma formação  racial,  raça  deve  ser  entendida  como  um  complexo  de significados sociais fluídos, instáveis e “descentrados”, constantemente transformados pelo conflito político (Omi e Winant, 1986).  

Deste modo, a  raça modela  tanto a psique  e os  relacionamentos entre  indivíduos de “cores” diferentes quanto fornece um componente irredutível  das  identidades  coletivas  e  da  estrutura  social.  Assim,  é possível  interpretar o significado de  raça não em  termos de definição, mas  em  termos  de  processos  de  formação  racial.  Entre  os  elementos principais destes processos está a construção de identidades raciais e os significados que Winant chama de racialização (Winant, 1996: 58‐59).  

O  argumento  básico  é  que  na  sociedade  contemporânea  existe uma amplificação do conflito racial em  termos globais. Sem assumir a existência de qualquer uniformidade neste rápido aumento de tensão e forte consciência em matéria racial, Winant está interessado em focar a interação entre estrutura social e significação, levando em consideração a grande variação entre ordens raciais  locais. Para Winant, a dinâmica da significação racial é sempre relacional. Esta afirmação o diferencia de Miles,  para  quem  um  significado  sobre  o Outro  é,  aprioristicamente construído  e, no momento posterior,  incorporado pelo próprio Outro. Da mesma  forma, o diferencia de Webster para quem o significado de raça é uma construção científica e política.  

As  dimensões  globais  da  formação  racial  podem  ser  mais facilmente observadas através de fenômenos tais como o surgimento da “diáspora”  negra,  a  criação  de  comunidades  “pan‐étnicas”,  formadas por latinos e asiáticos nos países do Reino Unido e nos Estados Unidos, os  quais  evidenciam  uma  derrubada  de  fronteiras  tanto  na  Europa quanto  na América  do Norte.  Tudo  parece  estar  se  hibridizando,  se transculturando  e  se  racializando  nos  grupos  previamente  nacionais, culturas e  identidades. Em razão destas  transformações, a comparação das  ordens  política  e  social  local,  baseadas  na  raça,  se  torna fundamental. Similarmente, pela primeira vez nós começamos a pensar nas variações na identidade racial, não como desviantes de uma norma supostamente  modal  (imperialista),  mas  como  parte  flexível  de  um 

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contexto  e  repertório  específico.  Finalmente,  a  dissolução  da transparência da identidade racial do grupo formalmente dominante, a crescente  racialização  dos  brancos  na  Europa  e  nos  Estados  Unidos devem  ser  também  reconhecidas  como  procedentes  da  crescente dimensão globalizada da raça (Winant, 1996: 118).  

Desta  forma,  se  raça  não  é  algo  natural  ou  inato  ou  uma  ilusão, importa  saber  as  razões  e  condições  nas  quais  o  discurso  sobre  raça  é empregado  na  tentativa  de  rotular,  constituir,  excluir  ou  incluir subalternamente coletividades sociais. Segundo Winant, na perspectiva da formação  racial,  este  percurso  pode  ser  trilhado  a  partir  de  três determinações que devem  ser  incorporadas  teoricamente  ao  conceito de raça, de modo a tratar raça como alguma coisa nem fantasmagórica, nem tangível,  nem  verdadeira,  nem  falsa.  Tais  determinações  indicam:  a dimensão  política,  a  global  comparativa  e  a  histórico‐temporal.  Com  a introdução dessas determinações, o conceito teórico de raça seria removido definitivamente do reino biológico para ser alocado no reino social.  

A  dimensão  política  se  refere  às  novas  relações  que  surgiram, principalmente,  onde  alguns  poderes  contra‐hegemônicos  e/ou  pós‐coloniais estão presentes, propiciando a proliferação dos significados e das articulações políticas com base na  raça. Três aspectos se destacam nesta dimensão: 1) a insuficiência do simples dualismo contido na ideia da  “Europa  e  seus  Outros”,  captada  pelo  debate  da  ampliação  e amplificação  da  subjetividade  e  identidade  pós‐colonial,  2)  a possibilidade de perpetuar a dominação racial sem qualquer referência explícita  à  raça  por  meio  de  significados  raciais  codificados subtextualmente  ou  da  simples  negação  de  sua  continuidade  da significação,  3)  a  possibilidade  de  resistir  inteiramente,  por  novos caminhos,  à  dominação  racial,  particularmente  pela  limitação  do alcance e penetração do sistema político na vida cotidiana, pela geração de  novas  identidades,  novas  coletividades,  novas  comunidades (imaginadas), relativamente menos permeáveis ao sistema hegemônico (Winant, 1996: 19).  

A  dimensão  global  comparativa  é  aquela  referente  ao  contexto globalizante no qual raça opera. Isto é, a geografia racial se tornou mais complexa,  tanto  em  termos  do  seu  alcance  imperial,  colonial  e migratório,  quanto  pela  globalização  do  espaço  racial  que  se  torna 

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acessível  a  um  novo  tipo  de  análise  comparativa. Na  perspectiva  de Winant,  chegamos  a  um  ponto  em  que  os  ex‐sujeitos  (neo)coloniais, agora  redefinidos  como  “imigrantes”,  desafiam  o  status  dos  grupos metropolitanos majoritários  (os brancos, os europeus, os “americanos” ou “franceses” etc.). Ao mesmo tempo, surgem fenômenos tais como a diáspora  negra,  a  criação  de  uma  comunidade  latina  e  de  uma comunidade  asiática  “pan‐étnica”  (no  Reino  Unido  e  nos  Estados Unidos).  Paralelamente,  o  fechamento  de  fronteiras  na  Europa  e  na América  do  Norte  indica  prévia  racialização  de  políticas  nacionais, culturas e identidades. O exemplo mais visível é a cultura popular que mundializa  a  consciência  racial  quase  instantaneamente  como  faz  o reggae,  rap, samba e vários outros estilos pop africanos que  transitam velozmente de um continente para outro (Winant, 1996: 19‐20).  

Para este autor, esta conscientização não é mera reação ou simples negação  do  domínio  teórico‐cultural  “Ocidental”.  Noções  como consciência  diaspórica  ou  epistemologias  racialmente  informadas ganham mais atenção  como um  esforço para  expressar a globalização contemporânea do espaço racial e apontam para a construção de novas identidades  raciais  ou  para  a  dinâmica  da  “panetnicidade”,  agora, global. A  dissolução  da  transparência  da  identidade  racial  do  grupo formalmente dominante, isto é, a avançada racialização dos brancos na Europa  e  nos  Estados  Unidos  deve  também  ser  reconhecida  como conduzindo  a  uma  dimensão  globalizada  crescente  da  raça.  Dito  de outra  forma,  a  “brancura”  se  torna  uma  matéria  de  ansiedade  e preocupação (Winant, 1996: 20).  

Quanto  à  dimensão  histórico‐temporal,  Winant  observa  que muitos dos escritos pós‐estruturalistas, preocupados com as diferenças entre os seres humanos, têm feito esforço para explicar o “Ocidente” ou o  tempo  colonial  como  um  vasto  projeto  de  demarcação  das “diferenças”  humanas  ou  mais  globalmente,  argumentando  sobre  a formação  parcial  de  identidades  coletivas,  em  termos  de  “Outros” externalizados como lembra Todorov (Todorov, 1985).  

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Ao criticar o polêmico trabalho de Wilson3, Winant observa que a análise  ali  contida  demonstra  não  a  existência  de  uma  subclasse  em uma sociedade em que a significância da  raça está em declínio, mas a continuidade  da  significância  do  racismo  institucional  ou  o  chamado “metaracismo”, como lembra Kovel (Kovel, 1984).  

A  justificativa  sociopolítica  e  legal  oferecida  para  uma  política supostamente  neutra  do  ponto  de  vista  racial  é  uma  reinterpretação conservadora e  individualista das medidas  igualitárias propostas pelo movimento dos direitos  civis dos  anos  60. Esta  é  a  forma de  racismo apropriada  para  o  atual  momento  histórico,  no  qual  o  estado  não organiza  e  força  a  supremacia  branca, mas  se  esconde  atrás  de  uma política  oficial  ‐  ou  de  fachada  –  de  neutralidade  racial. Racismo,  no presente, toma a forma de supremacia branca ou metaracismo que tem consequências de classe.  

Brasil, África do Sul e Estados Unidos são países em que a forma de  colonização  condicionou  a  estrutura  da  formação  do  Estado  e  da sociedade civil, bem como as  inter‐relações entre estas duas esferas da vida  social,  especificamente, no  tratamento da questão  racial. Em que pese  às  diferenças  em  relação  ao  período  no  qual  ocorreram  os processos  de  conquista,  colonização  e  independência,  estes  Estados foram  marcados  por  formas  de  dominação  racial  e,  atualmente  em proporções diferenciadas e variáveis, comportam uma dinâmica em que a estrutura social é racialmente organizada o que, aparentemente,  tem impedido a possibilidade do pleno exercício dos direitos fundamentais de cidadania a todos.  

Marx  observa  que,  “nos  três  casos,  a  ordem  racial  certamente refletiu  e  acelerou  o  desenvolvimento  econômico,  mas  de  forma complexa. O  apartheid  e  Jim  Crow  diluíram  a  concorrência  entre  os brancos  que  ameaçava  a  estabilidade  e  o  crescimento,  embora  o crescimento  e  a  concorrência  não  tenham  levado  à  aplicação  de  tais políticas no Brasil. O conflito de classe, real ou potencial, nos três casos, tinha  de  ser  resolvido  para  assegurar  a  estabilidade,  exigência mais 

                                                            3  The  Declining  Significance  of  Race:  Blacks  and  Changing  American  Institutions, University of Chicago Press, 1980. 

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fundamental,  tanto  para  o  desenvolvimento  econômico,  como  para  a consolidação do estado nação” (Marx, 1996: 18‐19).  

É na reconciliação entre ingleses e africânderes, após a guerra do Bôeres, que se encontra os termos para a segregação dos negros, que se tornaria um  fator  central na  construção do Estado  sul‐africano. Como demonstra Marx,  através  da  fala  de  um  alto  comissário  britânico  sir Alfred Milner, em 1897:  

 “(…) para vencer os holandeses […] basta sacrificar absolutamente  ‘os negros’  e  o  jogo  fica  fácil  […]  governo  autônomo  […]  e  lealdade colonial  […]  [exigiriam]  o  abandono das  raças negras”  (Lemay,  1965: 11‐2; citado em Marx, 1996: 20).   O  caso  norte‐americano  tem  muita  similaridade  com  o  sul‐

africano,  embora  o  conflito, na  consolidação do Estado Nacional, não tenha sido entre dois fragmentos de grupos europeus, mas entre grupos regionais.  A  população  indígena  dos  Estados  Unidos  foi  quase totalmente  exterminada,  mas  os  escravos  continuaram  sendo numerosos  e,  portanto,  o  núcleo  da  discórdia  regional.  Um  fato relevante indicativo da tensão regional foi a decisão denominada Dred Scott,  de  1857,  que  considerou  que  as  garantias  formais  do  direito  à igualdade e à cidadania eram inaplicáveis aos negros (Foner, 1970: 292‐3; Marx, 1996: 21).  

Depois da Guerra Civil americana, a nação adotou  três emendas constitucionais: a 13ª, em 1865, extinguia a escravidão; a 14ª, em 1868, tornava  todos  os  negros  cidadãos  dos  Estados Unidos  e  proibia  leis estaduais  que  negassem  igual  proteção  aos  negros  e  a  15ª,  em  1870, proibindo a discriminação racial em votações. No fundamental, a 14ª e a 15ª  emendas  não  eram  cumpridas  em  todo  país, mas  apresentavam maior visibilidade no sul.  

Esses Estados geraram categorizações raciais distintas. Assim, nos Estados  Unidos  e  na  África  do  Sul,  onde  o  preconceito  enfatiza  a origem,  a  identidade do  indivíduo  ou do  grupo  será  construída  com base  na  origem  racial  e  ou  étnica  fundada  no  princípio  de hipodescendência.  No  Brasil,  a  ênfase  recai  sobre  marca  ou  na  cor, combinando a miscigenação e a situação sociocultural dos  indivíduos. 

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Essa distinção implicou no desenvolvimento de dois tipos de racismo, o diferencialista e o assimilacionista.  

Munanga,  por  exemplo,  observa  que  o  racismo  diferencialista engendrou  o  antirracismo  diferencialista  e  o  racismo  universalista (assimilacionista)  engendrou  o  antirracismo  universalista.  “O  anti‐racismo  universalista  busca  a  integração  na  sociedade  nacional, baseando‐se  nos  valores  universais  da  natureza  humana,  sem discriminação de cor, raça, sexo, cultura, religião, classe social, etc. É o chamado  integracionismo fundamentado no  indivíduo “universal”. De modo oposto, “o antirracismo diferencialista busca a construção de uma sociedade  igualitária  baseada  no  respeito  das  diferenças  tidas  como valores positivos e como riqueza da humanidade. Os quais pressupõem a construção  de  sociedades  plurirraciais  e  pluriculturais;  defende  a coexistência no mesmo espaço geopolítico no mesmo pé de igualdade de direitos, de comunidades e culturas diversas” (Munanga, 1999: 115‐6).  

No Brasil, de acordo com Guimarães, é somente a partir dos anos 1980 que o movimento negro passou a assumir um discurso racialista e multicultural. Assim,  tanto o alvo da Frente Negra Brasileira  (FNB), na década de 30,  isto é, a  luta contra a segregação e a discriminação racial, quanto o alvo do Teatro Experimental do Negro (TEN) nos anos 50, isto é,  a  luta  pela  recuperação  da  autoestima  negra,  passam  a  ser reinterpretadas  pelo  ideário  multiculturalista  em  que  se  revaloriza  a herança  africana,  procurando  desvencilhá‐la  das  adaptações  e  dos sincretismos  com  a  cultura  nacional  brasileira. O  autor  chama  atenção para dois aspectos  fundamentais: primeiro, é a neutralidade da agenda ou programa delineado nesta mobilização negra, permitindo a aceitação das mais diferentes tendências ideológicas do movimento negro por meio de um discurso que evoca o carisma da raça negra visando à formação de uma identidade racial negra.  Os três pontos básicos da agenda são:  

 “(a) recuperação da autoestima negra através da modificação de valores estéticos, da  reapropriação de valores  culturais, da  recuperação de  seu papel na história nacional, do avivamento do orgulho racial e cultural; (b) combate  à  discriminação  racial  através  da  universalização  da  garantia dos  direitos  e  das  liberdades  individuais,  incluindo  os  negros,  os mestiços  e  os  pobres;  (c)  combate  às  desigualdades  raciais  através  de 

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políticas públicas é o discurso que evoca o carisma da raça negra visando à formação de uma identidade racial negra (Guimarães, (1999: 115).   O segundo aspecto observado por Guimarães está relacionado às 

dificuldades encontradas pelos grupos e instituições antirracistas para a mobilização coletiva dos negros. Para esse autor, estas dificuldades têm recebido  dois  tipos  de  diagnósticos:  ou  se  trata  o movimento  negro como um movimento de  classe média, distante do povo negro; ou  se trata  o  movimento  negro  como  presa  ou  vítima  da  ideologia.  Ao discordar desses diagnósticos, Guimarães  conclui que, diferentemente dos Estados Unidos e da África do Sul onde a identidade racial tem um efeito cumulativo natural, isto é, não se sobrepõe à família, no Brasil, a identidade  racial  continuará  sua  formação  contornando  as solidariedades  familiares  ou  comunitárias.  Em  outros  termos,  se  nos Estados Unidos e África do Sul, a identidade racial ou étnica serviu para a mobilização política,  no Brasil  tem  sido útil, primordialmente, para reforçar  a  auto‐estima  negra,  embora  não  encontre  a  necessária ressonância no plano da mobilização política (Guimarães, 1999: 111).  

Munanga  observa  que  as  dificuldades  da  mobilização  da identidade  racial  negra  no  Brasil  estariam  relacionadas  à  categoria mestiço. Assim, se é verdade que a mestiçagem não conseguiu resolver os efeitos da hierarquização dos três grupos de origem e os conflitos de desigualdades  raciais  resultantes  dessa  hierarquização,  também,  é verdade que não constituem uma categoria estanque pelo fato de ser de cor e não de origem; portanto, dependendo do grau de mestiçagem e da condição  socioeconômica,  eles  podem  atravessar  a  linha  de  cor  e reclassificar‐se no grupo branco (Munanga, 1999: 121).  

Para  esse  autor,  a  proposta  dos  movimentos  negros  no  Brasil esbarra  na  mestiçagem  cultural,  pois  o  espaço  do  jogo  de  todas  as identidades  não  é  nitidamente  delimitado.  Neste  sentido,  Munanga reconhece  tanto os esforços dos movimentos negros na redefinição e a caminho  de  uma  consciência  política  e  uma  identidade  étnica mobilizadoras,  contrariando  a  democracia  racial,  quanto  à  pequena efetividade  das  propostas  racialistas  que  nascem  do  antirracismo diferencialista e sustentam as propostas multiculturalistas em um país de ideologia uniculturalista como o nosso (Munanga, 1999: 125‐126).  

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Quanto aos Estados Unidos, o antirracismo (racialista) se depara com um discurso semelhante ao discurso sobre a raça existente no Brasil que, em poucas palavras, nega  a persistência do  racismo. Ao  fazer  isso,  este discurso  sinaliza para o  fim das políticas de ação  afirmativa,  ao mesmo tempo,  que  afirma  que  as  políticas  públicas  para  serem  antirracistas precisam  ser  universalista  e  “color  blind”  (Guimarães,  1999:  112).  Em outros  termos,  o  antirracismo  racialista  norte‐americano  convive, atualmente,  com  o  nascimento  de  um  discurso  universalista  que  tenta encobrir  e  ou  esconder  as desigualdades  que  persistem  entre  brancos  e não‐brancos.  Deste  modo,  ao  discutir  uma  agenda  integrada  do antirracismo,  Guimarães  acredita  que  o  fato  do  povo  sul‐africano (multiétnico e multirracial) ter optado pela construção de um Estado não‐racialista pode nos ensinar alguma coisa. No momento de reconstrução da nação e do Estado, “a África do Sul não pode, por um lado, definir‐se como um prolongamento da Europa, como o Brasil e Estados Unidos  fizeram, sob  pena  de  alienar  a  grande maioria  da  população  africana; mas  não poderá  também  definir‐se  segundo  as  tradições  africanas  mais provincianas,  ignorando  mais  de  três  séculos  de  contato  cultural” (Guimarães, 1999: 114). Assim, “é a África do Sul que poderá nos indicar um modelo  de  nação multicultural, multi‐étnica  e  não‐racialista  para  a agenda anti‐racialista no Brasil e nos Estados Unidos”  (Guimarães, 1999: 114).  

A  agenda  antirracista  deve  ser  pensada  em  três  dimensões:  o Estado, a nação, os  indivíduos. No plano do Estado, além de  todas as garantias  democráticas  que  já  constam  nas  cartas  constitucionais  dos três  países,  o  princípio  do  não‐racialismo  não  pode  impedir  a elaboração e execução de legislações especiais visando combater formas duradouras de opressão social. No plano da nação, para Guimarães, o desafio está na reconstrução das nacionalidades em bases pluriculturais e  pluriétnicas.  Os  ideais  de  assimilação  e  de  integração  do  Estado‐Nação  terão  que  ser  substituídos  pela  integração  ao  nível  do  Estado (dos direitos) (Guimarães, 1999: 114). Isto, por sua vez, pode conduzir à superação da  equação  “do  século XIX  (um Estado= uma  nação= uma raça= uma  cultura)” por uma  equação  em  que  teremos:  “um Estado= várias heranças  culturais= várias  raças= várias  etnias. Não que não  se possa  desenvolver  uma  cultura  cívica  particular, mas  tal  cultura  não 

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pode  significar  a  negação  das  diversas  heranças  e  tradições  culturais que formam a nação” (Guimarães, 1999: 114).  

No  plano  individual  e  das  identidades  grupais,  “o  antirracismo deve visar os estigmas raciais (de cor, raça e classe, no Brasil; de raça e cor nos Estados Unidos e de etnia, na África do Sul)” (Guimarães, 1999: 114). 

Convém  retomar  Mandani  e  lembrar  que  a  forma  de “tribalização”  ocorrida  durante  o  período  colonial  persistiu  após  a queda do apartheid,  constituindo‐se  em um dos grandes obstáculos à democratização do país. Isto é, para se tornar multicultural, a África do Sul,  aparentemente,  tem  que  “destribalizar”  a  sociedade  civil, possibilitando  uma  convivência  democrática  plural  e  criando  a possibilidade  de  uma  cidadania  equitativa.  A  distinção  entre pluricultural e multicultural pode desvendar melhor o que está por trás da oposição não‐racialismo/racialismo. Uma sociedade pluralista (racial e etnicamente) universalizante ou uma sociedade com projetos raciais e étnicos particularizantes em disputa por posições nas diferentes esferas da  vida  social.  A  escolha,  entre  uma  ou  outra  forma  de  sociedade, implica  em  caminhos  distintos  rumo  à  consolidação  do  processo democrático em qualquer dos países estudados. Mas, o que se pode ter certeza é que a racialização do mundo tornou‐se uma realidade global.   2. Desdobramentos contemporâneos na sociedade brasileira 

 Ao  se  observar  o  preâmbulo  da Constituição  Federal  de  1988, 

tem‐se  a  impressão  de  que  a  concepção  de  “democracia  racial” permanece presente. No entanto, ela contém uma série de desencontros e sinonímias decorrentes da pouca precisão na forma de  termos como, por  exemplo,  “preconceito”,  “prática  de  racismo”,  “diferença  de tratamento” e “discriminação” (Santos, 2010).   

 “Nós,  representantes  do  povo  brasileiro,  reunidos  em  Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança,  o  bem‐estar,  o  desenvolvimento,  a  igualdade  e  a  justiça como  valores  supremos  de  uma  sociedade  fraterna,  pluralista  e  sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a 

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proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.” (Brasil, 1998, Preâmbulo; grifo nosso).   A  tensão  entre  a  visão  de  que  somos  uma  comunidade 

imaginada homogênea, fraterna e harmônica está em contradição com o próprio texto constitucional, e pode ser explicada pela erosão paulatina do discurso da  “democracia  racial”  e pela  emergência de um  “novo” discurso, em  tese mais  representativo, das aspirações populares em se ver representada em suas diferenças de origem étnico‐racial, isto é, uma comunidade que  se  imagina diversa culturalmente. Do ponto de vista institucional,  a  criação,  no  primeiro  governo  do  Presidente  Lula  da SEPPIR4 e da SECAD5, sinalizaram para um avanço na compreensão do Estado em relação ao problema racial presente na sociedade brasileira e, também,  em  relação  a  possíveis  caminhos  para  equacioná‐lo  em resposta à pressão dos setores organizados da população negra. 

Nesse sentido, ao se revisitar o argumento de Anderson (2008) de que  a  identidade  nacional  é  uma  “comunidade  imaginada”  em  suas consequências,  nem  sempre  analisadas  em  nosso  país,  é  possível  uma nova compreensão das mudanças sociais em curso, em especial no que diz respeito à diversidade étnico‐racial brasileira, como segue: a primeira é que  as  culturas nacionais  são  compostas não  somente de  instituições culturais, mas de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso  –  uma  maneira  de  construir  significados  que  influenciam  e organizam  tanto  nossas  ações,  quanto  nossas  concepções  sobre  nós mesmos; a segunda é que  tais culturas nacionais constroem  identidades ao produzirem significados sobre a “nação” com os quais podemos nos 

                                                            4 A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), criada pelo governo federal  no  dia  21  de  março  de  2003,  no  Dia  Internacional  pela  Eliminação  da Discriminação Racial, objetiva o reconhecimento das lutas históricas do movimento negro brasileiro e o estabelecimento de iniciativas contra as desigualdades raciais no país. 

5 A Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação  (SECAD/MEC),  oficialmente  criada  em  julho de  2004,  reúne  temas  como alfabetização  e  educação  de  jovens  e  adultos,  educação  do  campo,  educação ambiental,  educação  escolar  indígena  e  diversidade  étnico‐racial,  temas  antes distribuídos  em  outras  secretarias.  A  criação  da  Secad  marcou  a  valorização  da diversidade da população brasileira, por meio da formulação de políticas públicas e sociais como instrumento de cidadania. 

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identificar. Estes significados estão contidos nas histórias que são contadas sobre ela, nas memórias que conectam seu presente com seu passado, e nas imagens que são construídas a propósito delas [nações]. 

De acordo com Bhabha  (2010: 11), “as nações, como narrativas, perdem  suas  origens  nos  mitos  do  tempo  e  somente  percebem inteiramente seus horizontes nos olhos da mente”. Daí a importância de nos perguntarmos: Como a narrativa da cultura nacional é contada? 

Segundo  Hall,  cinco  aspectos  importantes  se  destacam,  dentre muitos, para uma resposta compreensível à questão: 

1) A  narrativa  da  nação,  contada  e  recontada  nas  histórias  e literaturas nacionais, na mídia e na cultura popular, oferece um conjunto  de  histórias,  imagens,  paisagens,  cenários,  eventos históricos,  símbolos  e  rituais  nacionais  que  sustentam,  ou representam,  as  experiências,  as  tristezas  compartilhadas,  os triunfos e desastres que dão sentido à nação; 

2) Há  ênfase  nas  origens,  na  continuidade,  na  tradição  e  na atemporalidade.  A  identidade  nacional  é  representada  como primordial. O essencial do caráter nacional permanece imutável através de todas as vicissitudes da história; 

3)  “(...)  a  tradição  inventada  [significa]  um  conjunto  de  práticas, (...) de uma natureza simbólica ou ritual que procuram inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição que  automaticamente  implica  a  continuidade  de  um  passado histórico adequado” (Hobsbawn & Ranger, 1983: 1); 

4) O mito fundante é uma história que localiza a origem da nação, as pessoas e suas características nacionais como tão antigas que elas estão perdidas na névoa do tempo, não “real”, mas mítico; 

5) A  identidade  nacional  é  também,  muitas  vezes,  baseada simbolicamente na ideia de um povo ou “folk” puro, original. 

Desse modo,  uma  cultura  nacional  funciona  como  uma  fonte  de significados  culturais,  como  um  foco  de  identificação  e  como  um sistema de representação. Em seu famoso ensaio sobre o assunto, Renan (2010)  nos  diz  que  três  coisas  constituem  o  princípio  da  unidade  da nação:  a  posse  comum  de  um  legado  de  memória  (memórias  do passado);  o  desejo  de  viver  conjuntamente  (o  desejo  de  vida  em 

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comum);  a  vontade  de  perpetuar  a  herança  que  se  recebeu  em  uma forma indivisível (a perpetuação da herança). 

Thimothy Brenan nos lembra que a palavra nação refere‐se “tanto ao Estado nacional moderno quanto a algo mais antigo  e nebuloso –  a natio –, uma comunidade local, domicílio, família, condição de pertença” (Brennan,  2010:  66).  As  identidades  nacionais  representavam precisamente  o  resultado  da  junção  destas  duas metades  da  equação nacional – oferecendo tanto a filiação política ao Estado nacional, quanto a  identificação  com  a  cultura  nacional:  “tornar  cultura  e  política congruentes” e  favorecer “as culturas razoavelmente homogêneas, cada qual com seu próprio teto político” (Gellner, 1983: 43). 

De  acordo  com  Santos,  a  representação  da  mestiçagem6 encarnou nos brasileiros, por meio do ideal da democracia racial, o não reconhecimento  da  existência  e,  consequentemente,  da  relevância  das raças  na  formação  e  na  dinâmica  social  brasileira,  estas  entendidas como  cordiais  e  assimilacionistas.  Este  não  reconhecimento  das  raças resultou na dedução da  inexistência do racismo, ou melhor, confiaram que  o  antirracialismo  promoveria  o  antirracismo  no  país.  Entretanto, sorrateiramente,  as  práticas  racistas  permaneceram  (e  permanecem), marginalizando,  simbólica  e materialmente,  os  negros  (Santos,  2010). No entanto, com base na perspectiva de Winant se verifica, a partir da agência do movimento social negro, a possibilidade de analisar o caso brasileiro com base na incorporação das três determinações de modo a tratar raça como alguma coisa nem fantasmagórica, nem tangível, nem                                                             6  O  conceito  de  mestiçagem  é  uma  construção  que  só  adquire  sentido  quando considerada em relação com seu par, a noção de raça. Ele nos conduz a um paradoxo básico da ideia de mestiçagem. Um mestiço se forma a partir de duas ou mais raças. Assim,  o paradigma dominante das  ciências  biológicas  afirma  veementemente  que não existem raças, que só existe uma raça humana. De acordo com esta concepção foi se  convencionando a noção de populações humanas  como um  substituto heurístico do conceito obsoleto de raça, de modo que nos permite continuar usando a  ideia de mestiçagem. Contudo, a palavra mestiçagem encontra sua maior difusão no sentido ideológico  de  caracterizar  alguns  grupos  humanos  que  se  autodefinem estrategicamente, frente a outros considerados “puros” ou homogêneos racialmente, como mestiços. Esta ideologia da mestiçagem é especialmente importante na America Latina que se vê mestiça em oposição aos Estados Unidos da América e a África do Sul  (durante o regime do Apartheid); nações que se definem como segregadas e, em consequência, não mestiças (Barañano et al., 2007).  

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verdadeira, nem falsa. Tais determinações indicam: a dimensão política, a global comparativa e a histórico‐temporal. 

A  nossa  hipótese  é  de  que  o  deslocamento  na  forma  como  a sociedade brasileira  se autorrepresentava é decorrente do processo de luta política pela  (res)significação/deslocamento do  lugar do ser negro no processo de racialização de sua experiência coletiva.  

No plano político, o questionamento  ao  ideário da democracia racial  e  a  demonstração  empírica  da  desigualdade  de  tratamento  de brancos  e  não‐brancos  no mercado  de  trabalho  têm  provocado  uma rediscussão  em  torno  da  forma  e  conteúdo  da  presença  das  culturas africanas  na  formação  social  brasileira.  É  possível  destacar  alguns aspectos que permitem sustentar essa  linha de raciocínio, a saber: 1) o tratamento político‐jurídico da temática da diversidade e da  igualdade racial na Constituição de 1988; 2) a alteração da Lei de Diretrizes e Bases da educação brasileira, e as diretrizes que a acompanham, orienta para uma  mudança  significativa  nos  conteúdos  curriculares  nacionais,  ao prescrever  a  obrigatoriedade  de  uma  educação  que  possibilite  a construção de relações étnico‐raciais saudáveis e que inclua a história e a cultura afro‐brasileira e africana e, também, indígena.  

De  acordo  com  Silva  Jr.,  a  Constituição  de  1988  representa, também,  um  marco  no  tratamento  político‐jurídico  da  temática  da diversidade  e  da  igualdade  racial,  como  um  dos  reflexos  da  atuação política do movimento negro. Para o  autor,  alguns  aspectos merecem destaque: 

1) A  reconsideração  do  papel  da  África  na  formação  da nacionalidade brasileira; 

2) O reconhecimento do caráter pluriétnico da sociedade brasileira como fundamento constitucional do currículo escolar; 

3) O  direito  constitucional  à  identidade  étnica  como fundamento do currículo escolar; 

4) A cultura negra como base do processo civilizatório nacional e como um eixo estruturante do currículo escolar.  

Uma  leitura  possível  das  diretrizes  e  de  seu  plano  nacional  de implementação,  verifica  que  estas,  em  suas  questões  introdutórias, procuram  oferecer  uma  resposta  na  área  de  educação  à  demanda  da população  afrodescendente por políticas de  ação  afirmativa,  entendida 

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tanto na dimensão reparatória quanto na dimensão do reconhecimento e valorização de sua história, cultura e identidade. “Trata, ele, [o parecer], de  política  curricular,  fundada  em  dimensões  históricas,  sociais, antropológicas oriundas da realidade brasileira, com o objetivo explicito de combater o racismo e as discriminações que atingem particularmente os  negros”  (Diretrizes,  2004:  6).  Para  tanto,  de  forma  propositiva,  as diretrizes  recomendam  a  divulgação  e  produção  de  conhecimentos;  a formação  de  atitudes,  posturas  e  valores  que  eduquem  cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnico‐racial; a criação de condições, no ambiente escolar, para que professores e alunos interajam na construção de  uma  nação  democrática;  e  sugerem  a  consolidação/obtenção  de direitos  que  garantam  a  valorização  de  sua  identidade.  No  que  diz respeito às metas, as diretrizes estabelecem as seguintes:  

1)  o  direito  dos  negros  se  reconhecerem  na  cultura  nacional, manifestarem  seus  pensamentos  com  autonomia,  individual  e coletiva, e expressarem visões próprias de mundo;  2) o direito dos negros cursarem cada um dos níveis de ensino das diferentes áreas de conhecimento, com  formação para  lidar com as tensas relações produzidas pelo racismo e discriminações sensíveis e capazes de conduzir à reeducação das relações entre diferentes grupos étnico‐raciais. Em  consonância  com o debate  sobre políticas de  reparação, de 

reconhecimento  e  valorização  da  população  negra  e,  também,  com  o artigo  205  da Constituição  Federal  de  1988,  as  diretrizes  acentuam  o papel  do  Estado  em  promover  e  incentivar  políticas  de  reparações. Quanto  à  educação  das  relações  étnico‐raciais,  elas  sugerem  a necessidade  de  reeducá‐las. Assim,  as  diretrizes  enfatizam  que,  para reeducar as relações étnico‐raciais, impõe‐se à educação aprendizagens entre  negros  e  brancos,  trocas  de  conhecimento,  quebra  de desconfianças, projetos conjuntos para a construção de uma sociedade justa,  igual,  equânime. Para  tanto,  impõe‐se  a necessidade de  rever  e atualizar o papel da escola, onde a formação para um tipo de cidadania regulada  tem  se  tensionado  com  a  construção/preservação  da identidade particular dos afrodescendentes. 

Em  relação  à  formação  de  professores,  as  diretrizes  orientam  no sentido de  se desfazer a mentalidade  racista e discriminadora  secular; 

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para  a  necessidade  de  superar  o  etnocentrismo  europeu;  para  a desalienação dos processos pedagógicos; para a construção de projetos pedagógicos,  e  pedagogias  que  desvendem  os mecanismos  racistas  e discriminatórios  com o objetivo de  reeducar as  relações  étnico‐raciais. Nesse  sentido,  elas  arrolam  algumas  providências  a  serem  tomadas pelos gestores dos sistemas de ensino e autoridades  responsáveis pela política pública educacional: 

1) Ampliar  o  foco  dos  currículos  escolares  para  a  diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira;  

2)  A  autonomia dos  estabelecimentos de  ensino para  compor  os projetos pedagógicos, no cumprimento ao exigido pelo artigo 26 da Lei n. 9.394/1996, permite que eles se valham da colaboração das  comunidades  a  que  a  escola  serve,  do  apoio  direto  ou indireto de estudiosos e do movimento negro; 

3) Caberá aos sistemas de ensino, às mantenedoras, à coordenação pedagógica  dos  estabelecimentos  de  ensino  e  aos  professores, com base no Parecer, estabelecer conteúdos de ensino, unidades de  estudos,  projetos  e  programas,  abrangendo  os  diferentes componentes curriculares; 

4) Caberá  aos  administradores  dos  sistemas  de  ensino  e  das mantenedoras  prover  as  escolas,  seus  professores  e  alunos  de material bibliográfico e de outros materiais didáticos, relativos à educação  das  relações  étnico‐raciais  e  do  ensino  de  história  e cultura  afro‐brasileira  e  africana,  além  de  acompanhar  os trabalhos  desenvolvidos  tanto  na  formação  inicial  como continuada de professores.  

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De  acordo  com  as diretrizes7,  bem  como  o  plano  nacional de  sua implementação,  tais  condições  são  necessárias,  tanto  para  a (des)racialização de uma sociedade que se utiliza da desvalorização da cultura  de  matriz  africana  e  dos  aspectos  físicos  herdados  pelos descendentes  de  africanos,  quanto  para  o  processo  de  construção  da identidade negra no Brasil, de forma condizente com o legado histórico das culturas africanas no país.  

A História Geral da África (HGA), desde a publicação do primeiro dos  oito  volumes,  pela  Unesco  de  Paris,  passou  a  inspirar  jovens descendentes  de  africanos  em  diferentes  regiões  do  globo  e, especialmente, no Brasil. As denúncias sobre discriminação e racismo e a demonstração pública do conteúdo de uma leitura recriada das culturas africanas na diáspora, por exemplo, por meio dos blocos afros tais como o Olodum  e  o  Ilê  Ayê,  são  aspectos  fundamentais  do  processo  da  luta política  para  construção  de  uma  identidade  negra  que  tem  revelado menos a erosão e mais a resignificação do mito da democracia racial.  

A  junção entre cultura e política é constitutiva do  tipo de ação das  denominadas,  por  seus  próprios  membros,  entidades  ou organizações  negras.  Assim,  a  reivindicação  por  educação  surge  em consonância  com  o  legado  das  gerações  anteriores  de  militantes  da causa negra, mesmo antes do processo de redemocratização do Estado brasileiro. A  questão,  a  saber,  é  a  seguinte: Há  algo  novo  a  se  dizer sobre as relações raciais no Brasil contemporâneo? A resposta é sim. E a novidade  é  decorrente  da  centralidade  que  a  política  pública educacional  passou  a  adquirir,  para  o  movimento  negro 

                                                            7 O  Plano Nacional  de  Implementação  das Diretrizes  Curriculares Nacionais  para  a Educação das Relações Étnico‐Raciais  e para  o Ensino de História  e Cultura Afro‐Brasileira  e Africana  é  o  resultado das  solicitações  advindas dos  anseios  regionais, consubstanciadas  pelo  documento  Contribuições  para  a  Implementação  da  Lei  n. 10.639/2003:  Proposta  de  Plano  Nacional  de  Implementação  das  Diretrizes  Curriculares Nacionais  da Educação  das Relações Étnico‐Raciais  e  para  o Ensino  de História  e Cultura Afro‐Brasileira  e  Africana,  fruto  de  seis  encontros  denominados Diálogos  Regionais sobre  a  Implementação  da  Lei  n.  10.639/03,  do  conjunto  de  ações  que  o  MEC desenvolve, principalmente a partir do surgimento da Secad, em 2004, documentos e textos  legais sobre o assunto. Cabe aqui registrar a participação estratégica do Setor de  Educação  da  Unesco  do  Brasil,  do  movimento  negro,  além  de  intelectuais  e ativistas da causa antirracista. 

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contemporâneo, como  lugar de disputa da articulação de dois tipos de demandas  que  se  tenta  equacionar  em  seu  interior.  A  primeira,  em relação  à  qualidade  da  educação  formal  que  é  vista  tanto  como  um direito, quanto como a forma por excelência de mobilidade ocupacional e social. A segunda é a luta política por mais e melhor educação a qual continua  tendo  como exigência o  resgate da  contribuição das  culturas africanas para a formação social brasileira. 

Dessa forma, a obrigatoriedade, em todo o sistema de ensino, de conteúdos que proporcionem o conhecimento de história e cultura afro‐brasileira  e  africana,  em  toda  a  educação  básica,  por  um  lado,  exige mudanças no conteúdo curricular de todos os cursos superiores do país e, por outro lado, é uma oportunidade de uma ressignificação do país e de  sua  história,  levando‐se  em  conta  a  perspectiva  daqueles considerados como o “outro”.  

Nesse  aspecto,  a  comparação  com  os Estados Unidos  e  com  a África do Sul é inevitável quando se considera a globalização do espaço racial;  não  é mais  possível  o  simples  contraste  entre  preconceito  de origem  (EUA  e África do Sul)  e preconceito de marca  (Brasil). Novas pesquisas  poderão  desvendar  como  os  movimentos  de  luta  de libertação  no  continente  africano,  o movimento dos direitos  civis  nos EUA, a derrocada do apartheid na África do Sul, impactaram nas lutas dos  afro‐brasileiros  a  partir  da  percepção  de  que  a  diferenciação  dos processos  de  colonização  não  impediu  que  o  elemento  africano  fosse racializado  nos  diferentes  contextos.  Ao  mesmo,  tais  movimentos geraram novas formas de solidariedade e uma consciência renovada em termos da dimensão global da discriminação racial e do racismo.   

Quando  se  considera  o papel  que  o Brasil  tem desempenhado como potencial ator global, em especial, na última década, no diálogo sul‐sul  e  com  atenção  à  relação  com  o  continente  africano,  as expectativas da União Africana em relação à sexta região8 e os sentidos 

                                                            8 O Protocolo de Emendas ao Ato Constitutivo da União Africana, adotado pela Sessão Extraordinária da Primeira Assembleia dos Chefes de Estado e de Governo em Addis Abeba,  Etiópia,  em  Janeiro  de  2003,  e  em  particular  o  artigo  3º  (q),  que  convida  a diáspora  africana  a  participar  como  um  importante  componente  na  construção  da União Africana. O protocolo  insiste na  ideia de que os descendentes de africanos, em especial os residentes no continente americano, formariam a sexta região do continente. 

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da ação do movimento negro brasileiro no que diz respeito à diáspora, é possível pensar a seguinte questão: o que o discurso sobre a diáspora, efetivamente, pode articular? 

O discurso  sobre  a diáspora  articula,  a partir do  simbolismo  e de representações que ele emana, expectativas, ações, resultados práticos e dimensões institucionais distintas, a saber:  

1) a  União  Africana  se  caracteriza  como  uma  confederação  de Estados nacionais, na qual  têm assento 53 chefes de Estado. De acordo  com  seu  ato  constitutivo,  foi  inspirada  nos  ideais  que nortearam os fundadores da organização continental e gerações de  pan‐africanistas  em  sua  determinação  de  promover  a unidade, a solidariedade, coesão e cooperação entre os povos da África  e  os  Estados  africanos;  posteriormente,  foram acrescentados  no  ato  constitutivo  todos  os  afrodescendentes dispersos pelo mundo; 

2) a partir da  influência das culturas africanas que participaram da formação  social  brasileira  e  da  presença  de  um  grande contingente  de  população  negra,  o  Estado  operacionaliza  um discurso  pelo  qual  molda  atitudes,  representações  e  políticas. Estas se assentam, sobretudo, na crença da ausência de racismo, na  harmonia  social  brasileira  e  nas  virtudes  da  brasilidade.  A ideia de diáspora africana, portanto, pode ser pensada como um dos sustentáculos da política externa brasileira para construção do país  como  ator  global  e  como  o  principal  elo  comercial  e econômico  com  os  países  africanos,  além  de  possibilitar  um discurso intranacional em resposta a setores do movimento negro; 

3) o movimento negro não pode mais  ser  lido  como unitário,  em termos  de  sua  perspectiva  de  ação  a  partir  do  conceito  de diáspora;  em  particular,  na  perspectiva  de  Brah  (1996),  que propõe  a  distinção  entre  o  conceito  teórico  de  diáspora  e  a experiência de diáspora. Com tal distinção, a autora sugere que este  conceito  seja  apreendido  como  “genealogias” historicamente  contingentes,  no  sentido  de  Foucault,  ou  seja, como um conjunto de  tecnologias de pesquisa que constroem a história das  trajetórias das diferentes diásporas e analisam seus relacionamentos através dos campos sociais, da subjetividade e 

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da identidade. Para a autora, o conceito de diáspora oferece uma crítica  aos  discursos  que  fazem  exame  preconcebido  de determinadas  origens  imutáveis,  tendo  em  conta  o  desejo  de voltar para  casa,  que não  é  o mesmo  que  voltar  à  “pátria”. A distinção é  importante porque nem  todas as diásporas mantêm uma  ideologia de  “retorno”; mais  ainda, Brah  (op.  cit.)  afirma que  o  subtexto  “lar”,  que  compreende  o  conceito de diáspora, permite  a  análise  da  problemática  da  posição  do  sujeito “autóctone” e sua precária relação com os discursos “nativistas”. 

 Em  relação  aos  negros  brasileiros,  se  não  encontramos  uma 

ideologia de retorno físico à origem africana, identificamos pelo menos dois discursos distintos: um que dilui a origem africana na brasilidade; outro,  no  qual  a  origem  africana  é  discursivamente  constitutiva  da identidade, daí a utilização recente de expressões como afrodescendente e afro‐brasileiro. A impossibilidade de voltar para a casa da mãe África em  ambos  os  discursos  permite  observar  lógicas  distintas  no  uso  do conceito de diáspora: uma que contigencia e restringe a origem africana a uma dinâmica nacional; outra na qual aquela origem é utilizada como elemento de  crítica da posição do  sujeito negro na  sua  relação  com  a sociedade que, ao racializar sua pertença étnica, o hierarquiza, podendo ele, no entanto, ao  recriar  sua origem para além da  fronteira nacional numa  perspectiva  diaspórica,  denunciar  a  forma  como  a  diferença  é transformada  em  desigualdade  social  no  Brasil,  e  em  vários  Estados nacionais latino‐americanos. 

Do ponto de vista de uma nova agenda de pesquisa sobre o negro no Brasil a dimensão histórico‐temporal, proposta por Winant, pode nos reorientar  para  uma  aproximação  teórica  aos  escritos  pós‐estruturalistas, preocupados com as diferenças entre os seres humanos em especial aqueles que  têm  feito esforços para explicar o “Ocidente” ou  o  tempo  colonial  como  um  vasto  projeto  de  demarcação  das “diferenças”  humanas,  ou  mais  globalmente,  argumentando  sobre  a formação  parcial  de  identidades  coletivas,  em  termos  de  “Outros” externalizados.    

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O ativismo político‐cristão na Argentina e no Brasil  

André Ricardo de Souza1 María Candelaria Sgró Ruata2 

Maximiliano Campana3   1. Introdução  

Este  texto  apresenta  dados  e  reflexões  sobre  alguns  aspectos  do cristianismo  no  Brasil  e  na  Argentina4.  Em  ambos  os  países  os segmentos  católicos  e  evangélicos  se  posicionam  no  espaço  público, mediante  manifestações  organizadas  e  militância  político‐partidária, tanto na defesa de  seus  interesses  como de  seus valores doutrinários. Tentam  e,  às  vezes,  conseguem  pressionar  os  governos  instituídos, sobretudo através de sua representação parlamentária. Alguns ativistas cristãos,  bastante  identificados  com  as  igrejas,  chegam  inclusive  a ocupar cargos executivos relevantes.  

A questão da moral sexual ocupa  lugar de destaque em  termos de mobilização de militantes católicos e evangélicos, exercendo  influência também  sobre  os  processos  eleitorais.  O  texto  traça  um  panorama religioso desses países, destacando a presença cristã e discutindo como suas instituições e lideranças se articulam em questões controversas.  

                                                            1  Doutor  em  Sociologia  pela  Universidade  de  São  Paulo  e  professor  adjunto  do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos. 

2 Licenciada  em Comunicação  Social pela Universidade Nacional de Córdoba  (UNC‐Argentina). Mestranda em Sociologia e Doutoranda em Estudos Sociais da América Latina do Centro de Estudos Avançados (CEA‐UNC). Bolsista da CONICET‐ CIECS.  

3 Advogado. Universidade Nacional  de Córdoba. Doutorando  em Direito  e Ciências Sociais (CEA‐UNC). Bolsista da CONICET – CIJS. 

4  Por  opção metodológica,  uma  importante  vertente  cristã  foi  deixada  de  lado  neste texto:  o  espiritismo  kardecista.  Tal  exclusão,  evidentemente  sociológica,  e  não teológica, se deve ao fato de que os espíritas promovem a materialização do princípio cristão  da  caridade  em  significativas  obras  de  assistência  social  e  em  função  da centralidade do  culto  a  Jesus Cristo  em  seus preceitos doutrinários.  (Arribas,  2010; Souza, 2012). Ainda que  seja a  terceira maior  religião no Brasil  (2%),  sua expressão política e demográfica na Argentina é quase nula.  

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Para  isso  este  trabalho  se  divide  em  duas  grandes  sessões.  Na primeira,  são  apresentadas  algumas  dimensões  e  características particulares em relação à conformação do campo religioso no Brasil e na Argentina. Apesar das diferenças entre ambos os países no registro de dados  sobre variáveis  religiosas na população,  se pretende  configurar um  panorama  geral  que  servirá  para  levantar  alguns  elementos comparativos.  Na  segunda  sessão,  por  meio  de  exemplos,  são levantados  debates  sobre  políticas  de  sexualidade  e  reprodução,  em ambos os contextos, a fim de delinear o ativismo dos setores religiosos ao redor da busca de definições da moral sexual.  2. O campo religioso  2.1 A demografia religiosa no Brasil 

 A sociologia da religião no Brasil, assim como em muitos outros 

países,  têm  se  debruçado  principalmente  ao  cristianismo, caracterizando‐se  como  uma  “Sociologia  do  catolicismo  em  queda” (Pierucci,  2004:19),  fenômeno  que  origina  uma  ainda  modesta diversificação  religiosa. Em 1940, os católicos  representavam 96,2% no primeiro censo demográfico em que o Instituto Brasileiro de Geografia (IBGE) considerou a questão  religiosa. Esta cifra chegou em 2010, ano do  último  censo  com  dados  disponíveis,  a  64,6%.  Por  outro  lado,  os protestantes,  tanto os missionários ou históricos como os pentecostais, formavam  naquele  primeiro  censo  2,6%,  passando  a  compor  sete décadas depois a 22,2% da população total. Mas o contingente que mais cresceu foi o dos “sem religião”, que de 0,2% passou a 8,0%5.  

Os dados mostram que em 1970 os  ‘sem  religião’ dobraram de tamanho  e  na  década  posterior  tiveram  um  notável  crescimento  de quase 200%. Já os anos 90 foram marcados por um grande crescimento evangélico  (73%),  devido  a  uma  explosão  Pentecostal,  provocada principalmente  pela  expansão  da  Igreja Universal  do  Reino  de Deus (IURD), fundada no Rio de Janeiro em 1977. Como consequência disso e                                                             5 Fernandes  e Pita  (2006:131)  apontam um dado  curioso  sobre os  sem  religião:  33,2% deles  eram  antes pentecostais,  enquanto que  23,1%  e  11,8%,  respectivamente,  eram católicos e protestantes históricos.  

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do também contínuo crescimento dos sem religião, o segmento católico teve  uma  redução  proporcionalmente  maior  que  o  crescimento evangélico  (128%).  Conclui‐se  que,  ao  final  do  século  XX,  tornou‐se bastante  mais  fácil  não  ser  católico  e  abraçar  o  protestantismo  ou, inclusive, nenhum credo religioso.  

         Tabela 1. Religiosidade no Brasil – 1940‐2010. 

Ano  Católicos  Evangélicos  Outras religiões 

Sem religião 

1940  95,2  2,6  1,9  0,2 1950  93,7  3,4  2,4  0,3 1960  93,1  4,3  2,4  0,5 1970  91,8  5,2  2,3  0,8 1980  89,0  6,6  2,5  1,6 1991  83,3  9,0  2,9  4,7 2000  73,9  15,6  3,5  7,4 2010  64,6  22,2  5,2  8,0 

Fonte: IBGE ‐ censos demográficos (% da população nacional).  No  universo  católico  existe  certa  diversidade,  sendo  ainda  a 

distinção  básica  aquela  que  se  refere  ao  catolicismo  nominal  e  ao internalizado. Os  católicos nominais  abrangem  a versão  tradicional,  tanto rural  como  urbana  (Camargo,  1973).  No  âmbito  do  catolicismo internalizado,  as  duas  grandes  vertentes  são:  a  Renovação  Carismática Católica  e  a  Teologia  da  Libertação/Comunidades  eclesiásticas  de  base (CEBs).  

            Tabela 2. Diversificação dos católicos em 1994. 

Vertentes  % Tradicionais ou Nominais  61,4 Identificados com a Renovação Carismática  3,8 Identificados com as Comunidades Eclesiásticas de Base  1,8 Identificados com outros movimentos  7,9 Total  74,9 Fonte: Datafolha (1994) – Pierucci & Prandi (1996).  

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A pesquisa realizada por Pierucci e Prandi (1995), com dados do Instituto Datafolha sobre as eleições presidenciais de 1994, mostrou que havia  61,4%  de  católicos  tradicionais  ou  nominais,  3,8%  de  católicos carismáticos, 1,8% de participantes das CEBs e 7,9% vinculados a outros movimentos  internos da  igreja. Havia, portanto, 14% de praticantes do catolicismo internalizado.    

Em  termos de protestantismo,  a divisão  básica  ocorre  entre  as igrejas protestantes históricas ou missionárias e as pentecostais. Entre as históricas  se  encontram:  a  Batista,  a  Presbiteriana,  a  Luterana  e  a Metodista. No âmbito do pentecostalismo, temos três categorias básicas de igrejas: pentecostais clássicas, instaladas no Brasil no início do século XX  (Congregação Cristã do Brasil e Assembleia de Deus), pentecostais de cura divina, inseridas ou criadas no país entre as décadas de 50 e 60 (Evangelho  Quadrangular,  Brasil  para  Cristo  e  Deus  é  Amor),  e neopentecostais,  formadas  a  partir  da  década  de  1970. As  principais denominações neopentecostais são: Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional da Graça de Deus, Sara Nossa Terra, Igreja Mundial do  Poder  de Deus  e  Renascer  em Cristo  (Souza,  1969;  Freston,  1993, Mariano,  1999).  Em  termos  de  tamanho,  o  pentecostalismo  clássico aparece em primeiro  lugar, seguido pelo neopentecostalismo. A  IURD novamente  se destaca  em  função da  relação  entre  seu  tamanho  e  seu tempo  de  existência.  Enquanto  as  instituições  que  possuem  mais adeptos que  ela  são, no mínimo,  centenárias,  esta  instituição  religiosa tem  somente  trinta  e  cinco  anos  de  idade.  Ou  seja,  conta  com  uma trajetória de expansão bastante acelerada.  

 2.2 O campo religioso na Argentina 

 Na  Argentina6  a  crença  em  Deus  se  encontra  amplamente 

enraizada,  representando  91,1% da população. Entretanto,  esta média varia de acordo com o gênero7, a idade8 e a escolaridade9.                                                              6  Nos  censos  populacionais  realizados  na  Argentina,  somente  se  revelaram  dados relacionados à religião nos dos anos 1875, 1947 e 1960 (DGEC, 2010) pelo que se sabe de informações atualizadas provenientes do INDEC (Instituto Nacional de Estatística e Censos). Para a reconstrução do panorama religioso na Argentina foram usados os dados  coletados  pela  “Primeira  pesquisa  sobre  crenças  e  atitudes  religiosas  na Argentina” (Mallimaci y Esquivel, 2008). 

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Em  relação  às  filiações  religiosas,  76,5%  das  pessoas  se consideram  católicas,  9%  evangélicas10,  1,2%  testemunhas  de  Jeová, 0,9% mórmons,  1,2%  professa  outras  religiões  e  11,3%  se  consideram indiferentes11.  

No  entanto,  embora 90% dos argentinos  creiam  em Deus,  essa proporção  diminui  em  relação  ao  ato  de  frequentar  lugares  de  culto: quase 76% disseram que  raramente ou nunca  frequentam  tais  lugares (embora  no  caso  dos  evangélicos,  mais  de  60%  disseram  que frequentemente estão presentes). Neste sentido, é  interessante  também apontar que 86% acham que podem ser bons religiosos sem frequentar a igreja  ou  um  templo,  76,3%  acham  que  deveria  ser  permitido  o casamento  de  padres  católicos  e  60,3%  que  deveria  ser  permitido  o sacerdócio às mulheres. 

Estes  dados,  entretanto,  apresentam  importantes  disparidades segundo a região argentina  tratada. Assim, o noroeste argentino, mais tradicional  e  conservador,  possui  os  índices  mais  altos  de  católicos, representando 91,7% do total. A região patagônica, por outro  lado, é a menos  católica  (61,5%),  e  a  que  possui  os  índices  mais  altos  de evangélicos, mórmons e testemunhas de Jeová (25,3%). Buenos Aires e sua área metropolitana, em contrapartida, concentra o maior número de pessoas indiferentes frente às religiões e crenças religiosas (18%).  

                                                                                                                                                7  As mulheres  creem mais  em  Deus  que  os  homens,  representando  93,6%  e  88,3%, respectivamente. 

8 A porcentagem de pessoas acima de 65 anos que se considera crente é de 96,7%, caindo progressivamente até a faixa etária que vai dos 18 aos 29 anos, na qual se consideram crentes 85,1%. 

9 Em geral, quanto maior a escolaridade, menor a porcentagem de argentinos que creem em Deus. Neste sentido, os percentuais se classificam do seguinte modo: pessoas sem estudos: 95,7%; com nível elementar completo: 93%; com nível médio: 88%;  técnico: 83,1% e superior: 84,5%.  

10 Entre elas se incluem: Pentecostal, Batista, Luterana, Metodista, Adventista e a Igreja Universal do Reino de Deus.  

11 Neste caso, se incluem agnósticos, ateus e os que não possuem nenhuma religião. 

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Vale  destacar  que  atualmente  a  Argentina  determina12  em  sua constituição  nacional  (artigo  segundo)  que  “O  governo  federal  apoie  o culto católico apostólico romano” pondo em destaque, desta maneira, um reconhecimento privilegiado da Igreja católica na ordem jurídica, política e econômica do país13. Deste modo, o Estado (com suas forças de segurança) e  a  Igreja  Católica  são  tomados  como  fundadores  e  garantidores  da argentinidade desde as origens da nação. (Mallimaci, 2001).  

E, ademais, Esquivel (2010) lembra que   

“[a]s  iconografias  católicas  que  decoram  os  organismos  oficiais  e  a convocação  para  a  realização  do  Tedeum  não  estão  prescritas  na legislação, mas sua permanência e continuidade denotam com clareza o  indiscutido  e naturalizado papel protagonista que a  Igreja Católica detém  no  cenário público  argentino.  Se  a  relação  entre  o Estado  e  a Igreja Católica é regida pelo Acordo de 1966, a Constituição Nacional e a miríade de leis (…), o vínculo com os credos restantes se canaliza por meio do Registro Nacional de Cultos. Criado nos tempos da ditadura militar, em 1978 (Lei N° 21.745), o Registro Nacional de Cultos supõe que todas as entidades religiosas que exerçam suas atividades de culto na Argentina,  com  exceção  da  Igreja Católica,  devem  promover  sua inscrição  e  reconhecimento  oficial,  como  condição  prévia  para  sua atuação.”  No entanto, a pesar da forte supremacia política e legal da Igreja 

católica recém descrita desde a sanção da constituição nacional em 1853 e  até  à  atualidade,  o  artigo  14  dispõe  que  “Todos  os  habitantes  da Confederação  gozam  dos  seguintes  direitos:  (…)  de  professar 

                                                            12  Apesar  dos  inúmeros  processos  de  reforma  constitucional,  o  artigo  segundo  de reconhecimento privilegiado da  Igreja católica segue vigente. Vale mencionar que a constituição  argentina  foi  reformada  nos  anos  1860,  1866,  1898,  1949  (embora  esta reforma tenha sido anulada), 1957, 1972 e 1994. 

13  Apesar  de  negar  a  existência  de  um  projeto  de  nação  secular,  impulsionado principalmente durante as presidências de Domingo F. Sarmiento e Júlio A. Roca, “[a] secularização da sociedade argentina realizada pela burguesia liberal, que importou o modelo econômico de Londres e o modelo  cultural de Paris, estava  incompleta. As leis  do  ensino  laico  e  do  registro  civil  de  nascimentos,  matrimônios  e  mortes reduziram a  influência eclesiástica. Mas, ao contrário de países vizinhos, a dinâmica das reformas não foi suficiente para separar o Estado da Igreja.ʺ 

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livremente seu culto.” Esta liberdade de cultos data de 1825, quando se celebrou  o  tratado  de  amizade,  comércio  e  navegação  com  a  Coroa Britânica,  que  concedia  aos  imigrantes  ingleses  a  possibilidade  de celebrar seu culto de forma privada, sendo o pontapé inicial para o que logo constituiria o campo evangélico na Argentina.    Em  relação  ao  denominado  “campo  religioso  evangélico”, Wynarczyk (2003) adverte que devem se distinguir três movimentos no tempo:  um  primeiro,  vinculado  àqueles  herdeiros  da  Reforma Protestante do século XVI e chegados à Argentina durante os processos migratórios impulsionados no fim do século XIX; um segundo formado por  aqueles  evangélicos  afiliados  às  ideias  da  denominada  “Reforma Radical”  do  século  XVI,  e  que  chegaram  à  Argentina  através  das missões  conversionistas;  e  por  último,  um  terceiro  movimento,  com características  pentecostais,  que  se  estabeleceu  principalmente  nos setores  populares  do  país.  Durante  os  anos  noventa,  os  setores evangélicos começaram a ganhar adeptos e, dessa maneira, chegaram a se  fortalecer  como  a  primeira  minoria  religiosa  do  país  (Frigerio  e Wynarczyk, 2008).  

Atualmente,  na  Argentina  os  evangélicos  formam  a  minoria religiosa mais  importante,  cujo percentual varia de 5 a 10% da nação. Isso seria equivalente a uma população de 3,5 a 5 milhões de habitantes. Neste sentido, um dado  interessante é que há divergências associadas aos  níveis  socioeconômicos.  Em  geral,  se  estima  que  o  percentual  de evangélicos nos  setores populares urbanos pode alcançar  ‐ e  inclusive superar  ‐  20%  da  população  (principalmente  os  pentecostais).  Os percentuais  diminuem  quando  se  trata  de  setores  com  população  de renda média e média alta, onde os evangélicos representam entre 3% e 5%. (Esquivel et al., 2001; Frigerio e Wynarczyk, 2008).   

Além de representar a principal minoria religiosa na Argentina, os evangélicos representam cerca de 75% do total de cultos não católicos matriculados  nos  registros  da  Secretaria  de  Culto  da  Nação (Wynarczyk, 2003), evidenciando que o campo evangélico, longe de ser um  todo  homogêneo,  se  apresenta  como  um  campo  complexo  e fragmentado,  com  grandes  igrejas  e  templos  que  possuem  uma  certa independência e que nem sempre apresentam os mesmos objetivos nem são regidos pelos mesmos princípios doutrinários. 

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3. Religião e política  3.1. O cristianismo brasileiro e a política partidária     Em  termos de engajamento com o mundo político, os católicos têm  um  envolvimento  histórico  através  de  seus  intelectuais  e instituições, tendo exercido uma grande influência sobre os governos da República Velha e do presidente Getúlio Vargas. Mais tarde, no período mais difícil da ditadura militar, as pastorais sociais e as CEBs católicas exerceriam  um  importante  papel  na  resistência,  abrigo  e  apoio  aos ativistas de esquerda (Mainwaring, 1989). Nos anos noventa, a Teologia da Libertação perdeu  forças,  abrindo um grande  espaço  à Renovação Carismática  Católica,  por  meio  de  um  processo  de  despolitização (Prandi e Souza, 1996). Mais recentemente, os carismáticos católicos têm escolhido parlamentares que estejam envolvidos com a defesa de causas particulares  do  catolicismo  (Mianda,  1999; Mariz,  2001;  Senna,  2008; Reis, 2011).    O  crescimento  demográfico  dos  evangélicos  no  Brasil  se traduziu também em uma maior força política desse segmento religioso. Durante  a  maior  parte  do  século  XX,  predominava  uma  postura evangélica  dupla:  aprovação  dos  governos  e  rejeição  da  política partidária. Consequentemente, a participação do segmento religioso no Congresso  foi  relativamente pequena  até  a primeira metade dos  anos 80,  contando  quase  que  exclusivamente  com  alguns  parlamentares adeptos das igrejas protestantes missionárias.   Em  1985,  quando  o  país  voltou  a  ter,  com  José  Sarney,  um presidente civil e viveu a expectativa das eleições de uma Assembleia Constituinte  para  o  ano  seguinte,  os  evangélicos  pentecostais  se lançaram  efetivamente  em  direção  a  uma  política  partidária. Preocupados  com um possível  aumento de privilégios  constitucionais para a Igreja Católica, eles passaram a reivindicar a liberdade religiosa, e  a  perceber  também,  nas  eleições  de  1986,  uma  oportunidade  para aumentar  os  lucros  para  as  suas  igrejas,  principalmente  na  forma  de concessões de emissoras de rádio. (Pierucci, 1989; Freston, 1993).   Enquanto  que  em  1982  haviam  sido  eleitos  12  deputados federais  evangélicos,  sendo  apenas  dois  pentecostais,  nas  eleições 

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seguintes  foram  eleitos  32  parlamentares  desse  segmento,  sendo  18 deles  pentecostais.  Com  este  significativo  crescimento  de  900%  de representação  pentecostal,  a  prevalência  foi  da  Assembleia  de  Deus, com 13 deputados eleitos. 

A  representação  evangélica  nas  eleições  seguintes  cresceria ainda  mais,  atingindo  o  número  de  30  deputados  em  1994  e  49 deputados  quatro  anos  depois.  Com  parlamentares  de  diferentes partidos,  mas,  principalmente,  do  Partido  Social  Cristão  (PSC),  a Assembleia de Deus perdurou como a  igreja com maior representação parlamentar até 1998. Naquele ano, surgiram a partir dela 12 deputados federais, sendo superada pela IURD, que ganhou 14 cadeiras. (Freston, 2001; Fonseca, 2002:126).  

Os deputados evangélicos têm sido bastante ativos em questões relacionadas  à  reprodução  humana  e  à  moral  sexual,  opondo‐se firmemente  às  reivindicações homoafetivas. Eles  se destacam  também na apresentação de emendas parlamentares do  tipo assistencial, sendo algumas  delas  algo  questionáveis.  Desde  2003,  existe  a  Frente Parlamentar  Evangélica  (FPE),  marcada  pela  heterogeneidade partidária  e  também  denominacional,  garantindo  certa  coesão  nos temas  que  envolvem  a moralidade  cristã  tradicional  e  nos  interesses institucionais das igrejas. 

No Senado, os evangélicos conquistaram duas cadeiras em 1998, sendo uma delas de  Íris Rezende, do PMDB e da Comunidade Cristã Evangélica. A outra  era de uma  adepta da Assembleia de Deus  e  ex‐militante  católica  de  CEBs  e,  portanto,  do  PT  (Partido  dos Trabalhadores), Marina Silva. O número de senadores vinculados a esse segmento  religioso,  incluindo  os  suplentes  que  assumiram  o  cargo, chegou a ser de seis, atualmente é de três: Eduardo Lopes (IURD) e os batistas  Walter  Pinheiro  e  Magno  Malta.  Destaca‐se  o  evangélico Marcelo  Crivella,  atualmente  em  licença  e  que  será  mencionado posteriormente neste texto.   Embora não seja proporcional ao tamanho de sua população, os evangélicos  têm  uma  significativa  presença  também  em  outros parlamentos  brasileiros.  Um  levantamento  realizado  no  segundo semestre  de  2012,  utilizando  portais  de  internet  do  PFE,  das Assembleias  Legislativas  Estaduais,  da  Câmara  do Distrito  Federal  e 

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das  câmaras municipais  de  todas  as  capitais  brasileiras mostrou  que nesses  locais  havia  238  parlamentares  reconhecidamente  evangélicos (10% do total). 

No  âmbito  do  Poder  Executivo,  os  evangélicos  também  vêm exercendo  uma  forte  influência,  chegando  inclusive  a  ocupar  cargos importantes. O primeiro a se destacar foi Íris Rezende, eleito prefeito da capital de Goiânia, em 1965. Ao bater a disputa no estado de Goiás, em 1982, Rezende  tornou‐se  o primeiro  governador  evangélico. Em  1986, assumiu  o Ministério  da  Agricultura  durante  o  governo  de  Sarney. Também foi ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso durante seu primeiro mandato presidencial, entre 1997 e 1998.    Outros  governadores  evangélicos  foram  eleitos  no  Rio  de Janeiro:  o  casamento  de  Anthony  Garotinho  e  Rosinha  Matheus. Garotinho chegou a concorrer à presidência da República pelo Partido Socialista  Brasileiro,  em  2002.  Sem  sucesso  na  disputa  presidencial, conseguiu  ao  menos  que  sua  esposa  Rosinha  Matheus  se  tornasse governadora do Rio pelo mesmo partido no primeiro turno.   Em 1989, os evangélicos  tiveram uma participação significativa na primeira eleição presidencial direta após a  reabertura democrática. Uma articulação entre pastores, líderes e parlamentares desse segmento influenciou  a disputa  eleitoral. Os  evangélicos  rejeitavam o  candidato Luiz  Inácio  Lula  da  Silva,  percebendo‐o  como  um  defensor  dos interesses  católicos,  dada  a  vinculação  entre  o  Partido  dos Trabalhadores (PT) com as CEBs e as pastorais sociais. O candidato do PT era visto também como um ʺrepresentante do comunismo ateuʺ, que deveria  ser  fortemente  combatido. Como  resultado desse processo, os pentecostais votaram em massa em Fernando Collor no segundo turno a fim de impedir a vitória do PT (Pierucci e Mariano, 1992).   Na eleição de 1994, os evangélicos continuaram posicionando‐se contra Lula, apoiando enfaticamente o candidato do Partido da Social Democracia Brasileira  (PSBD), Fernando Henrique Cardoso  (Pierucci e Prandi,  1996). Os parlamentares  evangélicos  também votaram  a  favor da  mudança  constitucional,  viabilizando  assim  a  candidatura  à reeleição do presidente do PSBD, chegando a apoiá‐la exitosamente na segunda campanha. 

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   Em 2002, os evangélicos tinham diante de si um quadro eleitoral mais  complexo. O  desgaste  da  gestão  de Cardoso  fez  com  que  parte deste  segmento  religioso  não  aderisse  ao  candidato  do  PSBD,  o  ex‐ministro do Planejamento e Saúde do governo, José Serra, apoiado pela Assembleia  de  Deus.  Além  disso,  pela  primeira  vez,  havia  um candidato evangélico  competitivo na disputa: Anthony Garotinho14. A transmissão  do  programa  de  rádio  do  então  governador  do  Rio  de Janeiro para outros estados, bem como a sua propagação para as igrejas de  outros  estados,  foram  estratégias  adotadas  para  aumentar  sua popularidade e viabilizar sua candidatura presidencial. (Fonseca, 2002: 207‐214). 

Garotinho conseguiu que 51,3% dos evangélicos votassem nele, sendo, no entanto, rejeitado pelos católicos que lhe deram apenas 6% de seus votos (Bohn, 2004:323). O presbiteriano terminou em terceiro lugar, dando um importante apoio no segundo turno ao vencedor ʺLulaʺ, que finalmente acabou entrando na disputa presidencial com apoio parcial do eleitorado Pentecostal: a  IURD15. Naquela que  foi a quarta disputa presidencial seguida de Lula, houve uma aliança inusitada entre o PT e o Partido Liberal, fortemente marcada pela influência da IURD. 

No  primeiro  ano  da  presidência  de  Lula,  houve  mais  uma mostra da força política evangélica no país: a participação no processo de  regulamentação  do  novo  Código  Civil.  Na  versão  de  1916,  as organizações  religiosas  tinham  privilégios  no  tratamento  legal,  mas, com a  legislação aprovada, elas passariam a receber o mesmo controle estatal exercido sobre organizações laicas sem fins lucrativos. Mais uma vez,  denunciando  uma  suposta  perseguição  ideológica, constitucionalmente  proibida,  os  evangélicos  se  articularam  com representantes  católicos,  conseguindo  assim  aprovar  mudanças  na redação de dois artigos da lei 10.406, que instituiu o novo Código Civil. A  sanção presidencial para  tal mudança  foi destacada por Lula  como um ʺgrande ato em favor da liberdade religiosaʺ (Mariano, 2006).  

                                                            14 O  primeiro  presidente  protestante  do  Brasil  foi  o  general  luterano  Ernesto Geisel, governante entre 1974 e 1979, e que teve uma vida religiosa bastante discreta. 

15  Duas  grandes  igrejas  pentecostais  permaneceram  sem  envolver‐se  na  política partidária: a Congregação Cristã do Brasil e “Deus é Amor”. 

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A  partir  daquela  penetração  inicial  no  eleitorado  pentecostal, Lula procurou  estreitar  relações, participando de  eventos  evangélicos, formando  comitês,  pedindo  votos  e  orações  e  prometendo  parcerias (Mariano et al., 2006:66). Com esse capital político, ele conseguiu evitar a candidatura de Garotinho e enfrentou a reeleição. 

Outra  líder  política  oriunda  do  universo  evangélico  emergia. Depois de exercer por cinco anos o cargo de Ministra do Meio Ambiente do governo Lula, Marina Silva volta ao Senado e, em seguida, passou a atuar  no  Partido  Verde  em  2009  para  se  tornar  então  candidata presidencial no ano seguinte. O  terceiro  lugar na disputa pelo Palácio do Planalto seria mais uma vez para uma pessoa evangélica. Ainda que uma missionária da Assembleia de Deus, paradoxalmente, tenha feito a campanha mais  laica  entre  os  principais  candidatos,  uma  vez  que  a presença da religião foi realmente muito forte nesta disputa. 

Mais uma vez  candidato pelo PSBD,  José Serra  contava  com o forte  apoio  da  Convenção  Nacional  das  Assembleias  de  Deus (CONAMAD),  a  maior  agremiação  da  Assembleia  de  Deus.  Teve também a adesão de outras igrejas: a Igreja Mundial do Poder de Deus e a Igreja Bola de Neve. Na frente evangélica pró‐Serra se destacava Silas Malafaia,  líder  da  Associação  Vitória  em  Cristo  (derivação  da Assembleia de Deus). Serra capitalizou a indignação evangélica contra a terceira  versão  do  Plano Nacional  de Direitos Humanos  (NHDP  III), lançado  pelo Governo  Federal  em  2009.  Parlamentares  evangélicos  e católicos  se  mobilizaram  principalmente  contra  a  proposta  de descriminalização  do  aborto16.  Os  pentecostais  também  se  opuseram firmemente  contra  o  projeto  de  Lei  nº  122  de  2006  (PL  122/2006), apresentado pela deputada Iara Bernardi (PT de SP) que tornava crime os atos de homofobia no país. As questões da legalização do aborto e a criminalização  da  homofobia  acabaram  sendo  usadas  como  armas eleitorais pelo candidato do PSDB. 

Por outro lado, já na segunda etapa da disputa, estava a ex‐chefe da Casa Civil do governo Lula, Dilma Rousseff, que tinha se declarado                                                             16 Em maio de 2010, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) se posicionou firmemente  contra  a  III  PNHD  em  um  documento  e  recomendou  aos  fiéis  que votassem em  ʺpessoas comprometidas com o respeito  incondicional à vidaʺ  (Gold e Mariano, 2010:25). 

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agnóstica  em uma  entrevista  concedida  à  revista Época  em  2007, mas que  durante  a  carreira  eleitoral  participava  de  eventos  religiosos  e missas  para mostrar‐se  católica.  Líderes  e  parlamentares  evangélicos determinavam que Dilma se comprometesse em resguardar a liberdade religiosa e vetar, caso  fosse eleita, qualquer projeto  ʺcontra a vida e os valores da famíliaʺ, ou seja, projetos que favorecessem o aborto, a união civil  e  adoção  de  crianças  por  parte  de  casais  homossexuais,  a regulamentação  da  atividade  para  aqueles  trabalhadores  do  sexo  e assuntos  relacionados  a  estas  temáticas. A  campanha  do  PT  se  voltou fortemente  em  direção  aos  eleitores  evangélicos,  ressaltando  que  o  III NHDP já estava sendo analisado pelo governo, que a candidata estava “a favor  da  vida”  e  que,  portanto,  não  tomaria  nenhuma  iniciativa  de mudança  na  legislação  a  respeito  do  aborto,  tampouco  de  questões relacionadas à família e à liberdade religiosa. (Oro e Mariano, 2010:24‐29). 

A campanha do PSBD, por outro  lado, continuou com seu  tom religioso  conservador,  utilizando  a  mídia  religiosa  (católicos  e protestantes),  as  redes  sociais  e  inclusive  os  cultos  nas  igrejas  para ʺdefender a vidaʺ e a moral sexual cristã tradicional. 

Sua esposa, Mônica Serra, que chegou a acusar Dilma de  ser a favor da ʺmatança de criançasʺ, foi questionada por uma nota publicada no  jornal  Folha  de  S.  Paulo  de  16  de  outubro  daquele  ano. O  jornal apresentava  o  relato de uma  ex‐aluna da  Sra.  Serra, da Universidade Estadual de Campinas, a quem ela tinha confessado ter feito um aborto, o  que  foi  confirmado  por  outra  ex‐aluna.  Devido  a  esses acontecimentos, José Serra acabou ganhando a antipatia da classe média e de  setores  intelectuais  e  liberais da população, perdendo  assim  sua segunda eleição presidencial.  3.2 Liderança política e moral sexual 

 Sobrinho do  fundador  e  líder da  IURD, Edir Macedo,  o Bispo 

Marcelo Crivella  ganhou  popularidade  no meio  evangélico  com  seus sucessos  como  cantor  gospel.  Crivella  conquistou  uma  cadeira  no Senado  em  2002,  sendo  reeleito  oito  anos  depois.  Ajudou  Dilma Rousseff a enfrentar a polêmica sobre o aborto no mundo evangélico e a vencer as eleições presidenciais de 2010. Apesar de novamente se aliar 

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ao governo petista que  estava  sendo  instalado em 2011, o  senador da IURD não deixou de tirar proveito de sua posição Pentecostal durante a presidência de Dilma, algo que provavelmente iria beneficiá‐lo.  

Os parlamentares  evangélicos  conseguiram  impedir, durante  o primeiro ano do novo governo, a distribuição de material didático anti‐homofobia,  rotulado  de  ʺkit  gayʺ,  que  tinha  sido  encomendado  pelo Ministério  da  Educação,  com  Fernando  Haddad.  Dilma  Rousseff determinou  a  suspensão  da  medida  educativa.  Desde  o  início  do governo,  os  representantes  políticos  dos  pentecostais  também mostraram enfaticamente sua insatisfação com a nomeação da socióloga do  PT  Eleonora  Menicucci  para  a  Secretaria  de  Políticas  para  as Mulheres. A militante  feminista, amiga de Dilma desde os  tempos da guerrilha  contra  o  regime  militar,  é  uma  reconhecida  defensora  da descriminalização do aborto, tendo inclusive abortado duas vezes. 

Irritados  com  o  governo Dilma,  os  parlamentares  evangélicos exigiram e obtiveram em  fevereiro de 2012 uma  retratação pública do titular  da  Secretaria  Geral  da  Presidência  da  República,  Gilberto Carvalho.  Ex‐seminarista  católico  e  interlocutor  do  governo  junto  às igrejas  e movimentos  sociais, Carvalho havia  encorajado os militantes presentes no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, no mês anterior, a realizarem uma ʺdisputa ideológica pela nova classe médiaʺ, que estaria sob  a  hegemonia  evangélica.  Em  resposta  à  indignação  parlamentar Pentecostal  com  Carvalho,  Dilma  Rousseff  nomeou Marcelo  Crivella como Ministro da Pesca. Com  a medida,  a presidente  tentou  acalmar seus aliados religiosos, inclusive em relação às eleições na cidade de São Paulo,  onde  Fernando  Haddad  se  apresentava  como  candidato  a prefeito pelo PT. Crivella assumiu seu novo cargo ressaltando que era totalmente leigo naquela área e que a sua nomeação não significaria dar uma  trégua  ao  governo  federal  em  relação  a  qualquer  iniciativa favorável  ao  aborto  e  à  união  civil  entre  homossexuais. A  presidente teve de  tolerar  a  imposição  evangélica  e o  ʺfogo  amigo do  fiel  aliado evangélicoʺ. 

Inclusive antes de ser confirmado como candidato do PT para a Prefeitura de São Paulo em 2012, Fernando Haddad  já  contava  com a animosidade  Pentecostal  devido  ao  “kit  gay”.  Teria  de  enfrentar também  um  candidato  representante  dos  interesses  da  IURD:  Celso 

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Russomanno.  Ex‐apresentador  de  televisão,  Russomanno  era  o candidato do Partido Republicano Brasileiro (PRB), da mesma linha de Crivella,  tendo  como  braço  direito  o  Bispo  da  IURD Marcos  Pereira, presidente  nacional  desta  linha  e  ex‐vice‐presidente  da  Rede  Record, pertencente a Macedo. 

Do  outro  lado  da  disputa,  novamente,  estava  José  Serra,  que também tentaria tirar proveito da fragilidade do PT no meio Pentecostal devido  à  questão  da  homofobia.  Serra  continuava  com  o  apoio  da Assembleia  de Deus  CONAMAD  e  contava  também  com Valdemiro Santiago e a sua crescente  Igreja Mundial do Poder de Deus. Lula e o candidato do PT escolhido por ele, Fernando Haddad, tinham diante de si,  como  principais  obstáculos,  o  tradicional  adversário  do  PSDB  e  o inusitado candidato da Igreja Universal do Reino de Deus. 

No segundo turno, a Assembleia de Deus ‐ Ministério Madureira no bairro paulistano do Brás em São Paulo, liderada pelo pastor Samuel Ferreira,  passou  a  apoiar  José  Serra  devido  ao  famoso  ʺkit  gayʺ.  O ataque  a  essa  medida  anti‐homofóbica,  atribuída  ao  ex‐ministro  da Educação  e  candidato  do  PT, Haddad,  teria  ressoado  fortemente  nos discursos  de  Silas Malafaia,  que, mais  uma  vez,  era  uma  espécie  de porta‐voz de Serra dentro do eleitorado Pentecostal17. A tônica ofensiva da campanha de Serra contra o adversário do PT se baseou, em grande medida, na questão religiosa, mas o efeito eleitoral foi contrário a ele, já que foi outra vez derrotado. 

Como se vê, os evangélicos vêm apresentando uma considerável participação  na  vida  político‐partidária  do  Brasil  desde  sua redemocratização.  Se  a  eleição  constituinte  de  1934  levou  o  primeiro pastor protestante a se tornar deputado federal, a de 1986 fez com que os  pentecostais  se mobilizassem  de maneira  efetiva  para  eleger  seus representantes,  impulsionando o crescimento evangélico no Congresso Nacional  e  nos  demais  parlamentos  brasileiros.  Surgiam  assim,  no cenário político, figuras de representantes oficiais de diferentes credos. No Senado, os pioneiros evangélicos foram Marina Silva e Íris Rezende, tornando‐se  também  ministros  de  estado,  e  este  último  o  primeiro                                                             17 O fato de que o governo paulista de Serra tinha distribuído em 2009 cartilhas contra a homofobia em escolas de ensino médio ‐ segundo a edição de 16 de outubro da Folha de S. Paulo ‐ foi ignorado ou deixado de lado pelos evangélicos.  

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governador Pentecostal18. Porém o primeiro chefe de governo estadual vinculado  explicitamente  ao  seu  perfil  evangélico  foi  Anthony Garotinho,  que  usaria  isso  também  como  uma  estratégia  para  sua candidatura à presidência da República.  

A maior  denominação  evangélica  do  Brasil,  a  Assembleia  de Deus,  foi  também uma precursora na  inserção Pentecostal na política partidária,  tendo  parlamentares  em  diferentes  partidos,  mas principalmente  no PSC. Em  segundo  lugar,  em  termos demográficos, está  a  IURD,  cujo braço político  é o PRB. O bispo  licenciado,  e  agora ministro  de  Pesca,  Marcelo  Crivella,  personifica  a  força  política  da Frente Parlamentar Evangélica junto ao governo federal.  

O  chamado  “kit  gay”  representou para  as  eleições de  2012  na cidade de São Paulo o que o aborto havia representado para as eleições presidenciais do ano anterior. Nas duas situações, o candidato do PSDB José  Serra  procurou  tirar  proveito  do  moralismo  evangélico  nas questões da reprodução e moral sexual, ainda que sem sucesso. Assim como  há  uma  barreira  nas  eleições  majoritárias  para  um  candidato fortemente  identificado  com  um  determinado  segmento  religioso, também  no  catolicismo  hegemônico  há  um  limite  para  o  uso  de bandeiras tingidas com forte apelo religioso. Ainda que os candidatos a cargos  executivos  visitem  bispos,  pastores,  missas,  cultos  e  outras manifestações, esse apoio parece ser necessário, mas não suficiente para ganhar as eleições.  

Os parlamentares evangélicos atuam há muito tempo no cenário político  brasileiro,  sendo  que  os  representantes  oficiais  ou “despachantes” das  igrejas  surgiram  somente  com  a  ascensão política Pentecostal  (Campos,  2005).  Em  nome  da  liberdade  religiosa,  os interesses  das  igrejas  são  estrategicamente  defendidos  durante  as campanhas  eleitorais,  as  legislaturas  e  os mandatos do  executivo. No caso da  IURD,  a  representação parlamentar  se  combina  com  o poder midiático, exercido por meio de sua rede de  televisão de canal aberto, levando  a  uma  maior  influência  junto  ao  governo  federal.  Os evangélicos  podem  não  ter  força  suficiente  para  decidir  eleições  em 

                                                            18 Sobre a existência anterior de governadores pentecostais, se sabe que Leonel Brizola tinha sido metodista em sua juventude.  

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favor  seus  candidatos  religiosos  ou  apoiados  por  suas  igrejas,  mas provavelmente  continuem  a  ser  elogiados,  cortejados  e  atendidos  em algumas de suas exigências em “nome do Senhor”.  3.3. Argentina: as crenças religiosas no campo legislativo 

 Diferentemente  do  caso  brasileiro,  o  Congresso  Nacional 

argentino  carece de blocos  e/ou partidos que  se  relacionem  a  alguma instituição  religiosa.  Entretanto,  a  partir  dos  dados  gerados  por  um estudo  realizado por Esquivel  e Vaggione  (2011)19  é possível  explorar algumas das maneiras  com  que  as  instituições  religiosas  se  conectam com  as  decisões  e/ou  posições  dos  legisladores  quando  se  discute políticas de sexualidade e reprodução. 

Assim,  este  estudo  nos  permite  reconhecer  que  65%  dos parlamentares acessados pela pesquisa declararam crer em Deus. Neste sentido,  60%  se  dizem  “católicos”  e  46%  se  consideram  “muito religiosos”  enquanto  que,  ao  contrário,  26% dizem  “não  ter  religião”. Além  disso,  um  fato  interessante  é  que  quase  a  totalidade  dos/as deputados/as e senadores/as questionados acreditam que as convicções religiosas dos parlamentares influenciam o conteúdo dos projetos de lei e nas votações do Congresso Nacional. No entanto, esta percepção gera opiniões  divergentes:  49%  concordam  com  a  influência  das  crenças religiosas nas  tomadas de decisão,  enquanto  que  49% discordam  (2% não opinaram). 

Em relação aos projetos de  lei  ‐ que no momento da realização da  pesquisa  se mostravam  controversos  devido  à manifesta  oposição das  confissões  religiosas majoritárias  (por  estar  vinculados  ao  avanço 

                                                            19 Nesta  seção  vamos  utilizar  os  dados  gerados  por  Esquivel  e  Vaggione  (2011)  no âmbito do projeto PIP CONICET 359/08 “Disputas en el espacio público argentino. Dirigencia  política,  instituciones  religiosas  y  organizaciones  sociales  pro‐derechos, frente a las políticas estatales en materia educativa y de regulación familiar y sexual”. Os dados foram extraídos de uma pesquisa do tipo questionário estruturado, aplicado à totalidade dos membros da Câmara dos Deputados e Senadores, com uma margem de erro de 5%  ‐ para 95% de confiança  ‐, e o período de  levantamento de dados se estendeu  de  novembro  de  2009  a maio  de  2010.  Essa  pesquisa  foi  publicada  pelo jornal Página 12. Consulte “A Dios rogando, pero en la gente pensando” (2012, 14 de janeiro).  

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dos direitos sexuais e reprodutivos) – os parlamentares se mostraram a favor da  autonomia de decisão  e  liberdade de  consciência. Assim,  os projetos  de  fertilização  assistida  e  identidade  de  gênero20  são  os  que registram maior  grau  de  aprovação  (84  e  75%,  respectivamente). No mesmo  sentido,  uma  parcela  importante  se  manifestou  a  favor  da descriminalização do  aborto  nas primeiras doze  semanas de  gestação (64%)21.  Com  menor  peso  ‐  ainda  que  superando  50%  ‐  houve  um acordo  em  relação  ao  casamento  entre  pessoas  do  mesmo  sexo22,  à autorização  para  a  criopreservação  de  embriões  (56%),  a  eutanásia (52%)23 e a adoção de crianças por casais do mesmo sexo (51%).  

                                                            20A lei de identidade de gênero (Lei 26743) foi aprovada por unanimidade no Senado, e por ampla maioria na Câmara dos Deputados, sendo promulgada em 9 de maio de 2012. 

21O aborto  tem sido  (e continua sendo) um  tema bastante polêmico na Argentina, por isso esses dados chamam a atenção. As opiniões pessoais dos parlamentares sobre o aborto  indicaram  que  a  maioria  (83%)  acredita  que  ele  deve  ser  permitido.  No entanto, 36% dos parlamentares não votariam a favor da descriminalização do aborto e apenas 6% acreditam que deve ser “banido para sempre”. Outro fato interessante é que  quase  a metade deles  atribui  alguma  conduta moral  reprovável  em  relação  às mulheres que abortam espontaneamente. Atualmente, o aborto é referido em vários artigos do Código Penal. Embora seja considerada uma prática criminosa, há exceções em que o direito penal não se aplica. Essas exceções estão relacionadas com o risco à saúde ou à vida da mãe, em caso de estupros ou,  finalmente, atentado ao pudor de uma mulher demente  (art. 86 do Código Penal). No entanto, este artigo  tem gerado fortes  controvérsias doutrinárias dentro do  campo  jurídico  entre  os  que  lutam por uma aplicação  restritiva e os que  interpretam que deveria  ser mais ampla. Por esta razão, a Corte Suprema de Justiça da Nação, no conhecido caso “F.A.L”, emitido no final  de  2012,  esclareceu  os  limites  e  alcances  das  exceções.  Apesar  disso,  as discussões doutrinárias não têm sido solucionados, e na prática, um posicionamento restritivo, que impede a realização do aborto em todos os casos, continua impondo‐se no país.  

22Lei n. 26.618, sancionada em 15 de julho de 2010, e que permite não só a celebração do casamento civil para pessoas do mesmo sexo, mas também a possibilidade de adoção. Lembramos que a pesquisa referida  foi realizada antes da aplicação e aprovação de tais alterações no Código civil.  

23Lei n. 26.742, denominada “lei da morte digna” ou da eutanásia passiva, que concede aos  doentes  terminais  internados  o  direito  a  recusarem  procedimentos  de prolongamento da vida quando estes  lhes causarem um sofrimento significativo, foi sancionada em 9 de maio (a mesma data em que se sancionou a lei de identidade de gênero, mencionada na nota 9). 

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Além disso, é  comum que os/as parlamentares  se  reúnam  com diferentes líderes religiosos24 na condição de parlamentares. Isto é, mais da metade declarou  que  se  encontrou  com  um  bispo  e  45%  com  um padre católico no último ano.  

Outro  fato  significativo  é  a  opinião  sobre  a  relação  do  Estado com  os  credos  religiosos. Neste  sentido,  a maioria  declara  que  todos devem  ser  tratados da mesma maneira  e  considera que o Estado não deveria apoiar economicamente os cultos25.  

Esta  pesquisa mostra  que,  embora  as  ideias  religiosas  estejam profundamente  enraizadas nos  senadores  e deputados  acessados pela pesquisa26, não há um vínculo tão forte entre essas  ideias e as decisões que tomam durante as votações e deliberações no Senado27, fato que de alguma forma contesta os dados obtidos em nível populacional.  

 3.4 O cristianismo na Argentina e a mobilização social 

 Em  julho  de  2010,  na  Argentina  é  sancionada  a  alteração  do 

código civil que permite o reconhecimento da instituição matrimonial a casais compostos por pessoas do mesmo sexo (Lei 26.618).  

Assim como em outros países em que o casamento entre pessoas do mesmo  sexo  entra na agenda política  (assim  como outras políticas em torno da demanda de DDSSRR), as mobilizações de rua se colocam 

                                                            24Um  fato  interessante  que  surgiu  foi  que  embora haja um  amplo  apoio  aos projetos relacionados  aos  direitos  civis,  mais  de  90%  dos  parlamentares  entrevistados acreditam que outros parlamentares  colocam em  jogo  suas  convicções  religiosas ao votarem  as  leis.  Neste  sentido,  observa‐se  um  contraste  entre  o  posicionamento individual (a favor dos projetos de lei) e a percepção coletiva com forte influência da Igreja Católica. 

25No entanto, os recursos estatais dos colégios religiosos recebem uma maior aceitação por  parte  dos/as  representantes  nacionais.  Em  relação  à  presença  de  símbolos religiosos  nas  escolas  públicas,  apenas  3  de  cada  10  consideram  que  devem  ser proibidos. 

26Embora  as  pesquisas  tivessem  sido  enviadas  a  todos/as  os/as  deputados/as  e senadores/as nacionais, apenas 102 responderam, representando cerca de um terço do total.  

27Durante  o  debate  sobre  o  denominado  “casamento  igualitário”,  muitos/as parlamentares se consideravam católicos/as e se posicionaram contra o projeto. Veja Vaggione, Juan Marco (2011).  

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como uma das práticas comuns por parte dos grupos ou setores sociais que procuram  impedir as  reformas28. Na Argentina, um dia antes  (ou seja,  13 de  julho de  2010) da votação definitiva do projeto, diferentes setores  sociais  convocaram  uma  marcha  nacional  na  Praça  do Congresso  (na  capital  federal)  para  exigir  dos  senadores29  votos  em “defesa do casamento e da família”.  

Os  organizadores  foram  o  Departamento  de  Leigos  da Conferência  Episcopal  da  Argentina  (DEPLAI),  a  Aliança  Cristã  das Igrejas  Evangélicas  da  Argentina  (ACIERA),  a  Federação Confraternidade  Evangélica  Pentecostal  (FECEP)  e  as  Famílias Argentinas Autoconvocadas. A partir daí a chamada foi levada adiante pela  associação  de  uma  diversidade  de  atores  pertencentes  tanto  a organizações civis como eclesiásticas.  

ACIERA  e  FECEP30  são duas  organizações  que  reúnem  igrejas evangélicas  pentecostais  que  integram  o  denominado  “polo conservador  bíblico”  (Wynarczyk,  2009)  e  se  posicionam  como  os 

                                                            28Neste  sentido, por  exemplo, uma  história  interessante  é  a mobilização  realizada  na Espanha durante as discussões sobre o casamento em 2005, organizada pelo Fórum Espanhol da Família, a Igreja católica e o partido popular, entidades que formavam a frente  de  oposição  no  debate  espanhol  (Etxazarra,  2007).  Vale  mencionar  que acontecimentos parecidos ocorreram mais recentemente na França, onde segundo os meios de comunicação, mais de 300 mil pessoas se mobilizaram para recusar o projeto de  lei de  casamento  entre pessoas do mesmo  sexo  (La Nación, 2010, 14 de  janeiro; Clarín, 2010, 12 de janeiro).  

29 O projeto tinha conseguido metade da aprovação na Câmara dos Deputados em maio. Posteriormente, foi discutido na Comissão de Legislação Geral do Senado, que a 6 de julho assinou o parecer para o tratamento em sessão da Câmara dos Senadores em 14 de julho de 2010.  

30 A ACIERA  foi  fundada na Argentina na década de oitenta, no período de  transição democrática do país; compunha um subsetor evangélico (de igrejas batistas e irmãos livres, principalmente) (Jones e Cunial, 2011). A ACIERA se define como uma aliança entre  “denominações,  congregações  locais  e  entidades  livremente  associadas  a  fins específicos, que reconhece como hierarquia única e absoluta o Pai, o Filho e o Espírito Santo e aceita as Sagradas Escrituras como regra de fé e conduta” (Informação obtida em www.aciera.org). Enquanto que a segunda se difunde quase uma década antes, nos  anos  setenta,  e  era  formada  pelas  “Igrejas  locais,  organizações  e  instituições pentecostais argentinas, inscritas no Registro Nacional de Cultos” (Informação obtida em www.fecep.org.ar) 

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setores evangélicos mais visíveis na organização da marcha nacional e na sua militância contra a aprovação da lei.  

Por  sua  vez,  a  DEPLAI  é  um  organismo  que  pertence  à Comissão Episcopal de Leigos e da Família e se dedica a articular ações de  apoio  à  comissão  para  a  difusão  dos  princípios  doutrinais.  A DEPLAI  se posiciona  como o  setor  representante da  igreja  católica na organização  da mobilização.  Entretanto,  um  considerável  número  de bispos  também participou na difusão da  convocação, o que provocou um  grande  impacto  na  sua  mediatização.  Por  exemplo,  o  então arcebispo  de  Buenos  Aires,  o  Cardeal  Mario  Bergoglio,  pediu publicamente  aos  párocos  das  igrejas  do  país  que  difundissem  a convocação para a mobilização nacional:  

 “(...)  [DEPLAI] organizou para a  terça‐feira, 13 de  julho, às 18:30 um ato em frente ao Congresso Nacional sob o lema “Queremos mãe e pai para nossos filhos” (...) A proposta é que seja um ato no qual não haja mais  do  que  bandeiras  argentinas  ou  valores  positivos  sobre  o casamento  homem‐mulher  (...)  peço  que  se  informem  sobre  isso  e facilitem  a participação de  teus  fiéis,  assim  como  que nas Missas de domingo, 11 de  julho, se leia a declaração do Episcopado e nas preces haja  intenções pela  família. Também peço que  concedam  lugares aos leigos do DEPLAI que recolherão assinaturas.  (...)  (AICA, 2010, 22 de junho).  

 Aos setores religiosos se unem outros setores da sociedade civil 

que  se  associam  sob  a  denominação  de  “Famílias  Argentinas Autoconvocadas”. Neste sentido é interessante mencionar a agremiação criada sob o nome de “Argentinos pelas crianças” (AxC)31. Deste modo, a  mobilização  nacional  tentou  se  instalar  como  uma  manifestação “cidadã”,  ativando  uma  série  de  elementos  neste  sentido,  que 

                                                            31  Segundo  publicação  da  AICA  (Agência  de  Informação  Católica  Argentina,  18  de junho de 2010) AxC  é um  espaço de associação  entre diferentes  classes  sociais que buscam defender os valores da família. Fruto do grupo “Famílias Argentinas”, o AxC foi  criado  como  uma  página  no  Facebook,  cujo  objetivo  é  defender  o  casamento heterossexual  e  servir  como  instância de  articulação para  a  geração de  ações neste sentido.  

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permitiram uma  identificação não necessariamente  ligada a uma  igreja ou dogma religioso em particular. 

Se  por  um  lado  os  organizadores da marcha  aglutinam  e  dão visibilidade a  setores  conservadores  católicos e evangélicos, por outro também procuram agregar a  ideia de “família”  (em geral) como parte da  ação.  Para  isso  foram  criados  diferentes materiais  que  procuram destacar uma  identificação desvinculada de discursos  confessionais,  e afirmar  uma  identificação  política. Neste  sentido,  um  dos  elementos criados para funcionar como identificador da defesa da família foi a cor alaranjada  (Sgró,  2011;  Rabbia  e  Iosa,  2010).  Usando  esta  cor  (e diferentes  lemas,  que  todavia  são  coincidentes  na  defesa  da  família fundada  em  uma  união  heterossexual)  se  produziram  uma multiplicidade de produtos gráficos e audiovisuais que circularam e se reproduziram  pelas  redes  de  comunicação  digitais.  O  alaranjado também  foi adotado como marca nacional da marcha, e nas chamadas era solicitado que se levasse essa cor para a manifestação.  

Um exemplo significativo  foi a adoção de um  logo usado  tanto por  organizações  envolvidas  na  difusão  da  convocação  como usuárias/os para  se  identificarem  com  a  recusa da  reforma do  código civil  (ver  Figura  1).  Nesse  sentido,  a  concentração  na  Praça  do Congresso Nacional foi visivelmente marcada por bandeiras argentinas e bandeiras alaranjadas com variados slogans, tais como: “casamento = homem e mulher”, “O que importa é a família”, “Argentina = Sodoma”, “Salvemos a família”, entre outros.   

Figura 1:Logo Casamento 

 

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No ato foi lido o “Manifesto pelo casamento e direito prioritário das crianças32” a partir dos quais se apresenta o posicionamento político em  relação  às  demandas  dos  setores  reunidos  na manifestação33.  Os setores  conservadores,  ainda  quando  se  mostravam  visivelmente alinhados  à  igrejas  católica  e  evangélica,  insistiam  em  declarar  no encerramento do ato que a manifestação é produto de uma articulação cidadã,  de  uma maioria  que  “deve”  ser  escutada  e  representada  no Congresso Nacional. Essa “maioria silenciosa”34 que “se fez escutar” é a que  compõe  a mobilização  e  reivindica  o  direito  das  crianças. Deste modo  se  explicita  a  condição  de  ativismo  em  defesa  da  vida  e  da família,  significantes  centrais  do  posicionamento  das  hierarquias religiosas conservadoras quando se discutem políticas de sexualidade e reprodução.   4. Considerações Finais 

 Muito  além  da  questão  do  espiritismo  kardecista,  já 

mencionado, o cristianismo apresenta diferentes características nos dois países  tratados neste  texto. Na Argentina, o  catolicismo  tem um peso demográfico (76,5%) e jurídico maior, já que ainda mantém seu vínculo com  o  Estado,  enquanto  que  o  protestantismo  (9,0%)  é  relativamente pequeno.  No  Brasil,  ao  contrário,  o  catolicismo  se  encontra  mais reduzido  (64,6%)  face a um acelerado  crescimento evangélico  (22,2%), duas  vezes maior  em  relação  ao  país  vizinho. Na  Argentina  há  um pouco  mais  de  pessoas  sem  religião  que  no  Brasil,  mas  em contrapartida, a diversidade religiosa é menor. 

Em termos de presença no espaço público, em ambos os países o catolicismo  exerce  um  papel  significativo,  ainda  que  na  Argentina atualmente  haja  certo  enfrentamento  ao  governo.  No  Brasil,  onde  a                                                             32 Consultar  http://www.aicaold.com.ar/docs_blanco.php?id=488  [Último Acesso:  3  de abril de 2013] 

33 O “Manifesto” além de ressaltar as noções de família e casamento defendidas, serviu para realizar uma revisão das várias ações levadas adiante pelo ativismo conservador e  afirmar  o  apelo  aos  legisladores  que  votariam  no  dia  seguinte  o  casamento igualitário.  

34  O Manifesto  expressa:  “...se  fez  ouvir  a  «maioria  silenciosa».  Esta  voz  deve  ser escutada e respeitada por nossos representantes políticos”. 

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Teologia  da  Libertação  foi  muito  mais  expressiva  e  ativa,  a  igreja exerceu um importante papel de apoio a militantes políticos e sindicais durante  o  enfrentamento  com  a  ditadura  militar.  A  relação  com  o regime  é  um  aspecto  bastante  controverso  do  catolicismo  argentino, debate  que  tem  sido  retomado  em  função  da  eleição  do  cardeal  de Buenos  Aires,  Jorge Mario  Bergoglio  para  Papa.  Ainda  que  o  Papa Francisco seja coerente em  termos de vida simples e proximidade com os pobres, não  foi  assim quando  era bispo  e defensor da Teologia da Libertação.  Com  relação  a  isso,  ele  recebe  desde  o  início  de  seu pontificado o apoio explícito e entusiasmado do maior expoente dessa vertente católica, o  teólogo e ex‐frade  franciscano brasileiro: Leonardo Boff. 

Do  lado  evangélico,  a  inserção  na  vida  político‐partidária ganhou  importância  no  Brasil  na  década  de  1980,  quando  os pentecostais decidiram ocupar seu espaço na Assembleia Constituinte. Ainda  que  na  Argentina  a  reinstauração  da  democracia  ocorreu  em 1983,  a  inserção  político‐evangélica  somente  começou  a  ocorrer  na década seguinte.  

Houve no Brasil uma mobilização de católicos e evangélicos em torno  da  preservação  de  privilégios  de  organizações  religiosas  no Código Civil sancionado em 2003. Na Argentina, a reforma do Código Civil aprovada em 2010 permitiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo, algo que provocou a reação enfática e organizada de instituições e líderes católicos e evangélicos.  

Em  ambos  os  países,  as  questões  de  moral  sexual  estão atualmente na essência da mobilização de ativistas cristãos, evangélicos e católicos. Uma pesquisa realizada pelo Datafolha e publicada no Brasil em  24  de  março  de  2013  no  jornal  Folha  de  S.  Paulo  permite  a comparação  com  alguns dados da  realidade  argentina. Enquanto  que 76,3%  dos  argentinos  se mostram  favoráveis  à  união matrimonial  de sacerdotes católicos, no Brasil o percentual é de 56%; da mesma forma, 60,3% dos  argentinos  se mostram  a  favor do  sacerdócio de mulheres, enquanto que 58% dos brasileiros defendem essa posição. Com relação ao  polêmico  tema  do  aborto,  64%  da  população  argentina  tolera  em todos  ou  alguns  casos  sua  prática,  enquanto  que  no  Brasil  essa porcentagem cai quase pela metade, ou seja, 37%. Esses dados apontam 

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um caráter mais  liberal da Argentina em relação ao Brasil. Uma maior presença evangélica neste último está diretamente ligada a esse fator. E como  consequência,  tendem  a  ocorrer mais manifestações  públicas  e político‐partidárias de ativistas cristãos, em ambos os países, em  torno dessas questões.  

   

Bibliografia   ARRIBAS, Célia. Afinal,  espiritismo  é  religião? São Paulo: Alameda  e FAPESP, 2010.. BOHN,  Simone  Rodrigues.  “Evangélicos  no  Brasil:  perfil  socioeconômico, afinidades  ideológicas  e determinantes do  comportamento  eleitoral”. Opinião Pública. v. X, nº 2, p. 288‐338, 2004. CAMPOS, Leonildo Silveira. De políticos evangélicos a políticos de Cristo:  la trayectoria de  las acciones y mentalidad política de  lós evangélicos brasileños em El paso del signo XX al siglo XXI. Ciencias Sociales y Religión. nº 7, p. 157‐186, 2005.  CAMPOS, Leonildo Silveira. De políticos evangélicos a políticos de Cristo: uma análise do comportamento político de protestantes históricos e pentecostais no Brasil.  In:  BURITY,  Joanildo  &  ORO,  Ari  Pedro  (Orgs.).  Os  votos  de  Deus: evangélicos, política e eleições no Brasil. Recife: Fundação  Joaquim Nabuco e Ed. Massangana, 2006. ESQUIVEL,  Juan  Cruz.  “¿Religión  oficial?  La  preponderancia  católica  en  la legislación  nacional  y  provincial”,  2010.  Versión  online,  disponible  en http://www.nuevatierra.org.ar/2010/10/248/, último acceso, 10/02/13 ESQUIVEL,  Juan  Fabián García; HADIDA, María, HOUDIN, Victor. Creencias  y religiones en el Gran Buenos Aires: el caso de Quilmes. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, 2001.  ESQUIVEL,  Juan  y  VAGGIONE,  Juan Marco.  Informe  de  Trabajo  Proyecto “Disputas  en  el  espacio  público  argentino.  Dirigencia  política,  instituciones religiosas y organizaciones sociales pro‐derechos, frente a las políticas estatales en materia educativa y de regulación familiar y sexual” (MIMEO), 2011. ETXAZARRA, L “La legalización del matrimonio homosexual (el cómo y el por qué  de  una  movilización)”.  Papeles  del  CEIC,  vol.  1,  número  26.  España: Universidad del País Vasco, 2007.  FERNANDES, Silvia Regina e PITTA, Marcelo. Mapeando as rotas do trânsito religioso no Brasil. Religião e Sociedade, nº 26 (2), pp.121‐154, 2006. 

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Gestão da monstruosidade: os corpos do obeso e do zumbi  

María Inés Landa1 Jorge Leite Jr.2 

Andrea Torrano3   1. Introdução 

 Cada  época  engendra  seus  monstros,  os  quais,  a  partir  de 

diferentes  perspectivas,  nos  contam  sobre  as  irregularidades imagináveis desta particular encruzilhada histórica. Aqui nos propomos abordar  os  monstros  contemporâneos  enquanto  locus  de  significado pelos quais  transita a  inteligibilidade do presente, expressando aquilo que põe em causa o normal do humano. 

Definir o que e quem é um monstro é uma tarefa que apresenta grandes dificuldades. Como assinala Kappler ʺnão existe uma definição de monstro, mas algumas  tentativas de definir que variam segundo os autores  e,  sobretudo,  segundo  as  épocas. Num  sentido mais  geral,  o monstro  é  definido  em  relação  à  normaʺ  (Kappler,  1993:  291. Grifos  e tradução do autor). 

O  conceito  “monstro”,  mais  exatamente,  funciona  como  um ʺoperador  conceitualʺ  (Gil,  2012:  13),  na medida  em  que  representa  o desenvolvimento  de  todas  as  irregularidades  possíveis,  e  afronta  ‐  ou coloca em questão – a norma do humano. Neste sentido, afirma Foucault, o monstro é  ʺum princípio de  inteligibilidadeʺ de todas as anomalias, e, ainda  assim,  é  um  ʺprincípio  verdadeiramente  tautológicoʺ,  porque  a propriedade do monstro  consiste em  se afirmar enquanto  tal, “explicar em si mesmo todos os desvios que podem resultar dele, mas sem que seja                                                             1Investigadora  asistente  do  CONICET,  CIECS‐CONICET/UNC,  Centro  de Investigaciones y Estudios sobre la Cultura y la Sociedad (CIECS), Consejo Nacional de  Investigaciones  Ciéntificas  y  Técnicas  (CONICET),  Universidad  Nacional  de Córdoba (UNC) – Argentina.  

2 Professor  adjunto do Departamento de  Sociologia, da Universidade  Federal de  São Carlos (UFSCar), Brasil . 

3Professora assistente da Facultad de Direito e Ciências Sociais, UNC, bolsista doutoral IDH‐CONICET, Universidad Nacional de Córdoba – Argentina.  

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em si mesmo  inteligívelʺ  (Foucault, 2000: 62‐63)4. Portanto, mais do que tentar definir o monstro em sentido afirmativo,  se  trata de mostrar seu sentido em função daquilo a que ele se opõe. 

De nossa perspectiva, o monstro deve confrontar‐se com o que considera  normativamente  humano.  Mas  isso  não  significa  que  o monstro  represente  a  alteridade  absoluta,  mas  sim,  nos  termos  de Agamben, ele é uma exclusão  inclusiva, “uma forma extrema de relação que inclui qualquer coisa através de sua exclusão” (Agamben, 2003: 31). Ou seja, o humano e o monstro se encontram em uma tensão tal que um é  o  reverso  e  o  complemento  do  outro.  Neste  sentido,  embora  se confronte com a norma do humano, o monstro não é  ʺexterior e pura alteridade em  relação ao homem, mas  sim um  ‘interior externalizado’ do ser humanoʺ (Giorgi, 2009: 325). 

Desse modo, o monstro não apenas se confronta com a norma do humano, como se se tratasse exclusivamente de um desafio à ordem da vida,  onde  a  monstruosidade  é  posta  em  jogo  no  campo  da ʺnormatividade da vidaʺ5. Como expressa Canguilhem: 

                                                            4No  curso  Os  Anormais  (1974‐1975),  Foucault  se  refere  ao  ʺmonstro  humanoʺ distinguindo dois momentos:  o primeiro, desde  a  Idade Média  até  o  século XVIII, onde o monstro é considerado um conceito  jurídico‐biológico, uma mistura de reinos, de  individualidades e de gêneros. E um  segundo momento, entre o  final do  século XVIII e  início do  século XIX, quando ele é  identificado  com as más  formações, que serão  a  explicação  de  determinadas  condutas  criminosas,  é,  portanto,  um  conceito jurídico  moral.  A  primeira  manifestação  do  monstro  jurídico  moral  é  o  ʺmonstro políticoʺ,  o  criminoso  político,  aquele  que  está  fora  do  pacto  social.  Esta monstruosidade é a do tirano, dos revolucionários e, ainda, do delinquente comum. Daí o autor conclui afirmando que, em finais do século XIX, o conceito de monstro é abandonado  pelo  de  anormal.  Isso  ocorre  porque  a monstruosidade  deixa  de  ser entendida  como  uma  categoria  jurídico‐política  e  se  converte  em  uma  noção fundamental da psiquiatria criminal. 

5 De acordo  com Canguilhem, viver  significa aceitar algumas  coisas e  recusar outras, eliminar  obstáculos,  abandonar  o  que  impede  o  pleno  desenvolvimento, mas,  ao mesmo tempo, aceitar e impulsionar aquilo que reafirma a possibilidade de viver. A vida  significa,  portanto,  ʺpolaridade  dinâmicaʺ  traduzida  em  juízos  de  valor,  em normas. Apenas o vivente tem a capacidade de produzir padrões biológicos, porque ʺao não se submeter ao meio ambiente, mas instituir seu próprio meio ambiente, ele mesmo  atribui  valores  não  apenas  ao  meio  ambiente,  mas  também  ao  próprio organismoʺ  (Canguilhem,  1976:  175). Essa  atividade  é  chamada de  ʺnormatividade biológicaʺ, ou seja, a capacidade de cada indivíduo de impor a si mesmo uma norma 

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ʺdevemos,  portanto,  compreender  na  definição  de  monstro  sua natureza viva. O monstro é o vivente de valor negativo. (...) o que faz dos  viventes  seres  valorizados  em  relação  ao  modo  de  ser  do  seu ambiente físico é sua consistência específica (...). Assim, o monstro não é apenas um vivente de valor diminuído, ele é um vivente cujo valor é repelir  (...)  é  a monstruosidade,  e  não  a morte,  o  contravalor  vitalʺ (Canguilhem, 1976: 202‐203). 

 Pelo contrário, a partir do momento que a vida do homem como 

indivíduo biológico está imbricada na do homem como sujeito político, ou, nos  termos de Foucault,  se  ʺo homem moderno  é um animal  em  cuja política é posta em causa sua vida de ser viventeʺ (Foucault, 2002b: 173), a vida e a política entram em uma relação de implicação tal que se pode inferir uma biologização da política e uma politização da biologia (Esposito, 2008‐2009), em suma, uma biopolítica. 

Assim, é possível afirmar que o monstro, ao  irromper na ordem da  vida,  irrompe  também  na  ordem  da  política.  Como  expressa Lucchese  e  Bove:  ʺse  a  presença  de monstros  biológicos  questiona  a ordem da vida, o monstro também interpela necessariamente a ordem e as hierarquias no universo  ético  e político da históriaʺ  (Del Lucchese, Bove,  2008:  21. Tradução dos  autores). Consequentemente,  o monstro impacta a ordem do biopolítico, é um conceito biopolítico. 

Tal como advertia Foucault, os dispositivos de poder não podem funcionar  senão  mediante  a  formação  e  circulação  de  um  saber:  ʺo 

                                                                                                                                                biológica,  diferente  em  relação  ao  ambiente  em  que  vive.  Portanto,  somente  em relação ao indivíduo é que se pode estabelecer o normal e o patológico ou, em outros termos,  a  saúde  e  a  enfermidade.  Isto  significa  que  a  fronteira  entre  o  normal  e  o patológico apenas pode ser definida se se  toma em conta sucessivamente um único indivíduo. Em condições determinadas, o normal pode converter‐se em patológico se estas  condições mudam  e  o  indivíduo  permanece  o mesmo. Mas  esta  delimitação entre  o  normal  e  o  patológico  não  pode  ser  determinada  para  a  totalidade  dos indivíduos. Neste sentido, normalidade e a patologia seriam dois conceitos de valor não  redutíveis  quantitativamente.  No  entanto,  esta  normatividade  biológica  do indivíduo  é  convertida pela  ciência  em uma medida quantitativa. Assim, o normal vivente  é  substituído  pelo  normal  científico.  O  homem  de  ciência  encontra,  no conceito de média um  equivalente objetivo  e  cientificamente válido do  conceito de normal  ou  de  norma.  E  como  considera  que  a média  tem  uma  significação mais objetiva, tenta reduzir a norma à média (Canguilhem, 1971: 115‐123). 

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poder  produz  saber  (...);  poder  e  saber  se  implicam  diretamente  um sobre o outro; não existe relação de poder sem a constituição correlata de um campo de saber, nem de saber que não suponha e não constitua ao mesmo  tempo  relações de poderʺ  (Foucault,  2002a:  34). Em nossas sociedades se produz um saber sobre a população humana, através de estatística  e  da  probabilidade,  que  permite  identificar  suas regularidades  (nascimento,  mortalidade,  saúde,  expectativa  de  vida, etc.) e a partir daí é possível estabelecer a norma do humano. Ou seja, toma‐se  os  processos  da  vida  para  administrá‐los,  controlá‐los  e modificá‐los,  em  outras  palavras,  se  utilizam  os  dados  da  realidade como suporte para influir sobre a realidade (Foucault, 2006). 

Neste sentido, podemos dizer que os monstros não são excluídos, já que são parte da realidade que se quer administrar. Assim, eles não se encontram fora da distribuição do normal, mas são localizados mais ou menos distantes da norma. A monstruosidade pode ser estabelecida em termos de graus: o mais ou menos monstruoso é definido em função da distância  em  relação  à  norma.  Consequentemente,  a monstruosidade desafia  a norma  a partir de  sua própria  interioridade,  é uma  ameaça inerente à norma do humano. 

A monstruosidade é algo que convive em(entre) nós e, como parte da  realidade que habitamos,  é  algo que  se deve  administrar,  já que  é parte (ameaçadora) da população. Quando se assume esta concepção de monstruosidade  como  um  mal  necessário,  a  gestão  da  população considera  que  o  monstro  se  apresenta  como  um  risco  que  se  deve controlar,  prognosticar  e  prevenir  (OʹMalley,  2006:  21).  Portanto,  a gestão  da  vida  é  exercida,  em  maior  medida,  sobre  os  chamados ʺgrupos produtores de riscoʺ, ou seja, sobre sujeitos sociais coletivos (De Giorgi, 2005: 39) que  são  considerados uma ameaça para a população que se pretende proteger6. 

                                                            6  A  categoria  ʺgrupoʺ,  como  conjunto  de  indivíduos  que  apresentam  certas características comuns e aos quais são atribuídos uma identidade, torna‐se o objeto e o objetivo do poder. A gestão não é exercida tanto sobre corpos  individuais – o que Foucault  denomina  anatomopolítica  ‐  nem  sobre  a  totalidade  da  população  ‐  a biopolítica  (Foucault, 2002b: 168‐169), mas sim sobre os grupos caracterizados como perigosos. 

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A  partir  desta  consideração  são  implementadas  estratégias  que permitem  identificar estes grupos e que possibilitam a  intervenção das autoridades administrativas sobre eles de forma preventiva. O governo sobre a vida dos grupos de risco é realizado através da vigilância e do controle que, como adverte Deleuze, nas sociedades de controle (Deleuze, 1991)  em  que  vivemos  trata‐se  inclusive  de  uma  (auto)vigilância  e (auto)controle. 

Deste modo, a monstruosidade explicita como o “poder funciona diferentemente, tomando como alvo certas populações, administrando‐as,  realizando a humanidade de sujeitos que poderiam constituir uma comunidade  unida  por  leis  comuns  a  todosʺ  (Butler,  2006:  98).  Isto significa  que  sobre  o  continuum  da  população  são  produzidos  cortes entre a população que se quer defender (os que representam a norma) e os grupos de risco  (aqueles que se desviam da norma) que podem ser caracterizados  como  monstros.  Em  outras  palavras,  sobre  o  plano neutro  da  população  o  poder  distingue  a  ʺvida  que  não merece  ser vivida (...) e a vida digna de ser vivida (ou viver)ʺ (Agamben, 2003: 173), entre vidas vivíveis com mortes lamentáveis e vidas inumanas que não ʺmerecem  ser  choradasʺ  (Butler,  2010b:  13‐56),  entre  ʺcorpos  que importamʺ e os corpos descartáveis (Butler, 2010a: 53‐94). 

Assim,  advertimos que  o  conceito monstro,  enquanto  ʺoperador conceitualʺ,  permite  compreender,  por  um  lado,  ʺa  precariedade  da identidade humanaʺ, e, por outro, a representaçãoda antítese da ordem social, enquanto um risco sempre ameaçador de romper com esta, e, por fim,  como  o  elemento  necessário  para  legitimar  e  justificar  a implementação de estratégias de prevenção de riscos e de aumento do controle social (Neocleous, 2005: 5). 

É  nesta  dupla  dimensão  da  monstruosidade,  enquanto questionamento  de  uma  identidade  humana  normativa  e  como caracterização  do  risco  que  apresentam  certos  grupos  populacionais, que  encontramos  neste  conceito  a  possibilidade de  uma  aproximação analítica  em  relação  às  estruturas de poder  tecno‐somáticas nas quais repousam as corporalidades do presente. O monstro desafia a norma do ʺhumanoʺ  e  sua  aplicação,  se  instala  no  centro  de  uma  política  do vivente que deve distribuir os corpos segundo um regime específico de poder para sua utilização e descarte.  

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Se,  como  adverte  Haraway,  assistimos  na  atualidade  a  uma ficção  política  (ciência  política)  na  qual  a definição do  que  é  o  corpo humano se torna cada vez mais problemática7, a obesidade epidêmica e os zumbis, sobre os quais refletiremos neste artigo, evidenciam, um a partir do discurso da ciência (biomédica), e outro, da ficção, manifestações de transgressões de fronteira do propriamente humano. 

Do  ponto  de  vista  do  enfoque  biomédico  a  obesidade  se configura  tanto  como  fonte  de  enfermidades  e  de  riscos  (incluindo  a manifestação  de  disposições  subjetivas  de  marginalização  social), quanto  como  ameaça  somático‐política  que  atenta  contra  a  crença sanitário‐empresarial  da  (auto)liderança  individual  e  comunitária.  A volumosidade,  flacidez  e  carnalidade  amorfa  do  corpo  obeso  se constituem  em marcas  somáticas  que  confessam,  através  do  registro visual,  a  transgressão dos  cidadãos biológicos, que  se  apresentam  em sua  condição  de  desvio  radical  entre  os  limites  do  humano/não‐humano. 

O zumbi, ou morto‐vivo, é um corpo que se situa na zona que separa a vida da morte, sua presença não apenas manifesta um corpo decomposto,  mas  também  põe  em  causa  estas  duas  ordens diferenciadas. Desse modo, o zumbi representa tanto uma transgressão à constituição orgânica do corpo humano, como uma ameaça aos limites que  separam  o mundo  dos  vivos  e  o mundo  dos mortos,  em  outras palavras, a vida humana da vida não‐humana. Como assinala Cortés‐Rocca  ʺo zumbi define uma nova  tipologia do monstruoso, na medida em que  implica um perigo – como  todo monstro – que  todavia não se define a partir da simples diferença,  tal como ocorre com os monstros clássicos como o dragão, o energúmeno ou o fantasma, mas a partir de uma deformação do humanoʺ (Cortés‐Rocca, 2009: 341‐342). 

                                                            7 Haraway se apropria da noção de cyborg, organismo cibernético, enquanto criatura de realidade social e  também de  ficção, para representar as  transgressões de  fronteiras, as fusões poderosas e as possibilidades de resistência dos corpos em sua composição orgânico‐artificial.  Em  sua  perspectiva,  o  cyborg  reúne  três  rupturas  cruciais:  1)  a fronteira  entre  o  humano  eo  animal,  2)  a  distinção  entre  os  organismos  (animais, humanos) e máquinas e 3) as fronteiras entre o físico e o não‐físico (Haraway, 1995: 256‐262). 

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Precisamente o que queremos evidenciar através da análise do corpo obeso e do zumbi é que, ao contrário dos discursos  tradicionais sobre  a  monstruosidade  que  transformam  o  monstro  na  alteridade absoluta  do  humano,  o  monstro  é  um  ʺinterior  externalizadoʺ  do humano, está en(tre) nós. 

O obeso e o zumbi seriam manifestações de corpos que perdem sua  forma  humana,  no  primeiro  caso,  por  descuido,  e  no  segundo,  por decomposição; o obseso encarna a enfermidade do corpo, constituindo‐se em  um  perigo  contra  os  princípios  sanitário‐empresariais,  enquanto  o zumbi perde qualquer possibilidade de  redenção,  seu  corpo  evoca um estigma do corpo corrompido e corruptor.  2. O governo do tamanho e do peso corporal: o dispositivo discursivo de obesidade (epidêmica) 

 Um  dos  discursos  mais  influentes  nos  modos  de  perceber  o 

próprio  corpo  e o dos  outros na  atualidade  é o da  obesidade  epidêmica (Wright,  2009:1). No  entanto,  sua  força  e  proliferação  não  podem  ser compreendidas  se  não  consideramos  também  as  tecnologias  de normalização corporal e de otimização de si, que supõe as políticas de consolidação  de  uma  ʺcidadania  biológicaʺ8  que  redefine  suas prioridades vitais e regimes subjetivos (Rose, 2012:270). 

Um  cenário  comum  em  várias  metrópoles  de  nossa contemporaneidade  é o da  coexistência de um discurso que promove um estilo de vida ativo e saudável, que se vincula com uma aparência 

                                                            8 Para Rose (2012: 270) o conceito de cidadania biológica permite, por um lado, explorar a biologização da política a partir da perspectiva da cidadania e, por outro, analisar as reterritorializações  da  cidadania,  em  termos  biológicos,  nos  cenários  locais  e transnacionais  contemporâneos.  Segundo  este  autor,  na  atualidade  se  estaria produzindo  uma  redefinição  do  valor  humano  como  consequência  do  intenso desenvolvimento que têm se dado nas últimas décadas na biologia, na biotecnologia e na genômica. Esta  redefinição  supõe uma progressiva biologização da  cidadania  e, portanto, também da política e da sociedade. Entre outras práticas políticas e sociais, tais  como as práticas de aborto  seletivo ou de diagnóstico genético, Rose oferece o exemplo dos processos de implementação de políticas de saúde pública. As políticas preventivas da OMS para minimizar a epidemia da obesidade e a pandemia do vírus de gripe A são casos paradigmáticos deste tipo de políticas. 

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harmônica  e  tonificada,  e  a  propagação,  por  diversos  meios,  de narrativas  em  tom  catastrófico  sobre  os  perigos  que  representam  a obesidade e o sobrepeso à saúde individual, comunitária e mundial. 

Apesar da naturalização desses discursos, é necessário assinalar que a forma como percebemos a corpulência, que associamos à idéia de obesidade,  é  uma  característica  de  nossa  época.  A  não mais  de  um século atrás, a obesidade,  longe de representar  feiura ou enfermidade, augurava bonança e saúde promissora (Jutel, 2009: 60). Como observam Lebesco e Fraziel (2001:2), foi necessário construir uma cultura obcecada pelo peso  e pela magreza para  que  os  significantes  gordura,  sobrepeso, obesidade adquirissem o tom inquietante que apresentam na atualidade. 

Nesta seção nos propomos a desembaraçar alguns dos  fios que enlaçam  as  redes  que  configuram,  na  atualidade,  o  dispositivo discursivo  da  obesidade  (epidêmica).  Para  tanto,  em  primeiro  lugar analisamos  o  discurso  que  circula  na  e  que  é  difundido  pela Organização Mundial  de  Saúde  (OMS)  a  respeito  do  sobrepeso  e  da obesidade  quando  incorpora  a  perspectiva  biomédica  sobre  estes estados  corporais particulares. Encontramos  na  invenção  e  no uso de um  instrumento de medição,  o  índice de massa  corporal  (IMC), uma das condições de possibilidade para a construção, por parte de diversos organismos governamentais e  sanitários, de um discurso que define a obesidade como uma epidemia do século XXI. Mostramos,  finalmente, como  através  da  circulação  de  um  conjunto  de  biopedagogias,  que operam  tanto através de um  registro prescritivo  como de um  registro escópico,  se  instala  uma  maquinaria  moralizante  que  infunde  na população aversão em relação à figura do obeso, de tal forma que ela é exibida como uma condição de anomalia e monstruosidade.  2.1. A patologização da obesidade no discurso virtuoso da OMS 

 Nas  últimas  trinta  décadas  a  obesidade  tem  sido  considerada, 

em escala mundial, como um problema de saúde global que apresenta crescimento significativo (Flegal et. Al., 2011). Seu incremento não seria objeto de preocupação governamental e  social não  fosse a quantidade de  efeitos  adversos  à  saúde  que  a  ela  estão  associados  (Flegal,  2006). 

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Uma  das  instituições  que  tem  proposto  intervenções  a  respeito  da questão, a nível mundial, é a Organização Mundial de Saúde (OMS). 

A  OMS  é  um  dos  organismos  de  referência  em  matéria  de concepção  e  implementação  de  políticas  de  saúde  pública  a  nível mundial. A partir dessa  entidade  se  têm dirigido  e  coordenado  ações sanitárias no sistema das Nações Unidas  (WHO, 2013a). A  função que esta  cumpre, no  tocante  à  saúde pública,  é  a de definir diretrizes  em relação  às  questões  sanitárias  mundiais,  configurar  a  agenda  das investigações  em  saúde,  fornecer  apoio  técnico  aos países,  estabelecer normas  e  supervisionar  as  tendências  sanitárias  mundiais  (WHO, 2013b). 

Para  a OMS,  a  obesidade  e  o  sobrepeso  representam  o  quinto principal fator de risco de morte no mundo, e são definidos ʺcomo um acúmulo  anormal  ou  excessivo  de  gordura  que  pode  ser  prejudicial  à saúdeʺ (WHO, 2012. Grifos do autor). Conforme informações da página da instituição ʺmorrem a cada ano, pelo menos, 2,8 milhões de pessoas adultas como consequência de sobrepeso ou obesidade. Ademais, 44% dos  casos de  diabetes,  23%  das  cardiopatias  isquêmicas  e  entre  7%  e 41% da ocorrência de alguns  tipos de câncer, podem ser atribuídos ao sobrepeso e à obesidadeʺ (WHO, 2012). 

Nesta definição,  o  componente  ruim  é  atribuído  ao  excesso de gordura.  Este  excesso  é  calculado  por  um  instrumento  de  medição denominado  índice  de  massa  corporal  (IMC),  que  é  usado  para  a construção  das  categorias  abaixo  do  peso,  peso  normal,  sobrepeso  e obesidade,  e  para  a  posterior  identificação  das mesmas  na  população. Consequentemente,  a  conceitualização  desses  estados  para  a OMS  se completa  incorporando  um  limiar  numérico  que  padroniza  as categorias e permite sua diferenciação entre um IMC igual ou superior a 25, enquanto que ao grupo classificado como obeso corresponde um IMC igual ou superior a 30. Daí se deduz uma relação linear e de graus entre um estado e outro. 

O  IMC deriva do  índice de Quetelet desenvolvido entre 1830 e 1850 ecriado pelo estatístico Adolphe Quetelet para registrar a variação de peso  e  altura dos  recrutas do  serviço militar  francês  (Oliver,  2006; Halse, 2009: 46). Em suas observações, Quetelet percebe a existência de uma  distribuição  gaussiana  (normal)  dos  níveis  de  peso  e  altura  na 

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população estudada, a partir do qual cria um  índice para realizar uma descrição  estatística  do  “homem  tipo”  (Oliver,  2006).  Atualmente,  o IMC  é uma  representação matemática que  fornece uma  estimativa da composição  corporal,  e  é  calculado  dividindo  o  peso  corporal  em quilogramas pelo quadrado da altura do corpo em metros  (Wilmore e Costill, 2001: 492). 

A  centralidade  que  adquire  este  índice  nas definições de peso corporal cunhadas pela OMS  responde ao que essa entidade necessita para cumprir sua função de proporcionar à comunidade de governos e agências  internacionais  de  financiamento  dados  confiáveis  sobre  o problema da obesidade, a partir dos quais permite diferenciar os grupos normais dos patológicos no interior de uma população específica, e assim justificar a implementação de políticas de prevenção. 

Neste sentido, o IMC supõe um índice que requer tão somente a aplicação de uma fórmula para realizar o cálculo, e desse modo confere aos  estudos  uma  aura  de  objetividade  e  transparência  que  é  sempre bem  recebida  pela  comunidade  de  especialistas  que  atuam  nesses organismos. Além disso, a padronização de pesos corporais a partir de um  mesmo  conceito  e  de  uma  mesma  medida  facilita,  portanto,  a realização de estudos estatísticos de tipo comparativo, uma vez que, ao homogeneizar  as  categorias  e  reduzir  sua  complexidade,  ignora  as diferenças  conceituais  e  neutraliza  as  variações  no  interior  das categorias estabelecidas. 

Isso  não  tem passado despercebido por  estudiosos da  questão (Halse,  2009;  Jutel,  2009;  Stuart,  2013).  Entre  outras  questões,  Stuart (2013) argumenta que a redução da complexidade inerente às noções de obesidade e sobrepeso, o estabelecimento do sobrepeso como um estado de proto‐enfermidade  e,  fundamentalmente, a migração de descrições de  tipo  qualitativas  sobre  a  obesidade  em  direção  a  outras  definidas unilateralmente  por  medições  de  tipo  estatísticas,  tem  catalisado  a produção  não  apenas  da  obesidade  epidêmica,  mas  também  da pandemia. 

Não obstante, e apesar dessas polêmicas e controvérsias, o IMC tem  prevalecido  como  discurso  virtuoso  que  classifica  em  normal  e anormal,  em  saudável  e  patológico  e  em  seguro  e  arriscado,  os  pesos  e tamanhos corporais de populações e indivíduos. 

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Um discurso virtuoso é constituído por um conjunto de valores, crenças,  práticas  e  ações  que  estabelecem  regimes  de  verdade destinados a moldar os sujeitos através da construção de determinados comportamentos  como  valiosos,  desejáveis  e  saudáveis  (Halse,  2009: 47). O que distingue um discurso virtuoso de outros discursos é que o virtuosismo  se  configura  como  um  estado  cuja  dinâmica  de comportamento é assintótica. Isso significa que não há limite nas ações que se pode empreender para alcançar o  ideal normativo  imposto por aquilo que o ICM postula como o peso normal. Isso se torna evidente na oferta de um sem‐número de produtos e serviços que são colocados à disposição dos consumidores e usuários que desejam se aproximar do dito corpo ideal. 

Se googleamos as palavras peso ideal e IMC o instrumento de busca levantará  cerca de  100.000 páginas dentre  as  quais uma porcentagem considerável  corresponde  a  empresas  ou  profissionais  liberais (nutricionistas,  personal  trainers,  cirurgiões  estéticos,  entre  outros)  que oferecem  programas  de  nutrição  e  de  atividades  físicas,  entre  outros produtos,  para  reduzir  o  peso  corporal  e  a  massa  de  gordura. Escolhendo uma página ao acaso encontramos um  teste que o próprio internauta pode realizar para saber se seu peso está adequado para sua altura.  Note‐se  a  menção  à  OMS  enquanto  entidade  que  legitima  a informação que é publicada no site.  

Peso Ideal ‐ Calcule seu peso ideal de acordo com sua altura “O peso está diretamente  relacionado ao nosso bem‐estar. Por  isso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Sociedade Espanhola para o Estudo da Obesidade  (seedo)  recomendam controlá‐lo e mantê‐lo em equilíbrio. [...] Com esta ferramenta você poderá saber o seu peso ideal em segundos, preenchendo os campos abaixo. No resultado você obterá o seu Índice de Massa Corporal (IMC) [...]” (Cálculo de IMC, peso recomendado e % do peso corporal. Publicado em “Dietas a tu medida”, 2011). 

 Apesar de se ter afirmado, em diferentes lugares, que o IMC não 

é  válido  como  ferramenta  para  o  diagnóstico  clínico,  e muito menos 

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para  o  auto‐diagnóstico  (Kuczmarski  e  Flegal,  2000)9,  esta medida  se está enraizando no tecido social como parâmetro normativo. 

 “Se seu resultado é o “normopeso”, você está em uma forma ideal    [...] Por outro lado, quando você tem mais quilos do que é aconselhado em função de sua altura e data de nascimento, as opções apresentadas são duas: sobrepeso (de grau I ou II), dado que mostra que deve se cuidar um  pouco,  mas  sua  saúde  não  se  encontra  em  risco  grave;  ou obesidade (de tipo I, tipo II, tipo III ou mórbida, e tipo IV ou extrema). [...] Se  seu  resultado  é  este,  você  deve  procurar  por  um  nutricionista, depois de consultar seu médico generalista, pois sua saúde pode estar em perigo...” (Cálculo de IMC, peso recomendado e % do peso corporal. Publicado em “Dietas a tu medida”, 2011) 

 O  IMC,  por  ser  um  índice  que  pode  ser  aferido  por  qualquer 

pessoa  que  tenha  conhecimentos  mínimos  de  matemática,  tem  sido amplamente adotado  tanto pelos órgãos de saúde pública, nacionais e internacionais,  como  por  empresas  que  oferecem  produtos  e  serviços para o emagrecimento. Portanto, esta medida não apenas se  torna um ideal  dificilmente  realizável,  mas  também  se  ajusta  a  uma  norma 

                                                            9 Os conceitos de obesidade e sobrepeso cunhados pela OMS remetem a um excesso de gordura no corpo humano. Uma das críticas centrais que tem sido feito ao ICM é que ele  não  é  um  método  adequado  para  medir  massa  magra,  mas  que  o  que  ele efetivamente  mede  é  a  massa  corporal.  A  variável  “peso  do  corpo”  medida  em quilogramas  compreende  a  massa  magra,  mas  também  se  correlaciona  com  a densidade  óssea  do  corpo  e,  especificamente,  a massa  corporal  (Finer,  2012,  apud Stuart 2013). Métodos como medição de dobrascutâneas, pletismografia corporal ou a obsorciometria de  raio‐X e de energia dupla  (DEXA)  seriam, em  todos os  casos, os métodos  apropriados  para medir  a massa magra do  corpo  em  nível  individual  (e, possivelmente, também seriam mais confiáveis do que o ICM em nível populacional). Todavia  sua  implementação  supõe um  custo mais  elevado que o  ICM. Ademais, o ICM foi criado, nas suas origens (índice de Quetelet), com a finalidade de determinar médias  em  uma  população,  e  não  para  ser  aplicado  em  nível  individual,  e muito menos em contextos clínicos. 

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estratégica no marco de um discurso altamente moralizante que opera sobre a base de uma noção alargada de saúde10. 

 “O índice de massa corporal (IMC) é um indicador simples da relação entre  o  peso  e  a  altura,  que  é  comumente  usado  para  identificar  o sobrepeso e a obesidade em adultos.  [...] O  IMC  fornece  a medida mais  útil  do  sobrepeso  e da  obesidade  na população, uma vez que ela é a mesma para ambos os  sexos, e para adultos de todas as idades.” (WHO, 2012)  O ICM, ao classificar pesos corporais, também classifica pessoas. 

Por  exemplo,  a  valoração  geral  de  pessoas  em  condição  normal  ou patológica  contribui  para  a  geração  de  estereótipos  em  um  sentido estigmatizante,  como  acontece  com  a  conhecida  associação  entre  a obesidade,  a  gordura  e  termos  como  doença,  preguiça,  passividade, gula, lerdeza, falta de autoestima, entre outros. 

O ICM invoca e se baseia em uma lógica binária e normalizadora na  qual  aqueles  que  se  aproximam  do  ideal,  do  peso  normal,  estão  a salvo  das  enfermidades  e  dos  riscos  associados  aos  estados (potencialmente)  patológicos,  que  são  aqueles  que  se  desviam,  por excesso ou déficit, dos valores definidos como ʺnormaisʺ.  

“Um  IMC elevado é um  importante  fator de risco para enfermidades não  transmissíveis, como: diabetes,  transtornos do aparato  locomotor (especialmente  a  osteoartrite),  doenças  cardiovasculares (principalmente cardiopatia e acidente vascular cerebral). [...] O  risco  de  contrair  estas  doenças  não  transmissíveis  cresce  com  o aumento do IMC.” (WHO, 2012) 

                                                            10 Saúde, para a OMS, já não significa ausência de doença, mas estende seu significado a uma idéia ambivalente, subjetiva, de bem‐estar individual. Esta redefinição do termo inagura uma nova episteme em saúde, na qual o processo de medicalização  indefinida, tão  lucidamente  descrito  por  Foucault  (1996:  75‐80),  move‐se  de  um  paradigma centrado  na  doença,  e  em  seu  diagnóstico,  em  direção  a  outro  que  amplifica  o mecanismo  da  vigilância,  incorporando  as  funções  orgânicas  em  equilíbrio,  a vitalidade  física e a disposição sócio‐mental dos cidadãos:  ʺA saúde é um estado de completo bem estar físico, mental e social, e não meramente a ausência de doenças ou enfermidadesʺ (OMS, 1948). 

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As crônicas do risco ganham peso político‐sanitário por meio de uma  narrativa de matiz  epidemiológica  que  correlaciona  a prática de estilos  de  vida  específicos  com  a  probabilidade  de  desenvolver determinadas  doenças  degenerativas.  O  sedentarismo  e  uma  dieta desequilibrada  (rica  em  gorduras)  aparecem,  nos  marcos  de  tal narrativa,  como  os  principais  fatores  de  risco  que  contribuem  para elevar  as  taxas  de  morbidade  e  mortalidade  por  doenças  não transmissíveis em todo o mundo. 

Este  epidemiologiado  risco  legitima  a  promoção  de  um  estilo  de vida ativo, apontando que tipo de condutas são prejudiciais à saúde, ao mesmo  tempo  em  que  adverte  a  população  acerca  do  tipo  de precauções que devem  ser  tomadas para  se  ter uma vida  livre de  tais enfermidades (Lupton , 1999, citado em Fraga, 2005: 81). 

 “O  sobrepeso  e  a  obesidade,  assim  como  seus males  associados  não transmissíveis,  são  em  grande  parte  preveníveis.  Para  apoiar  as pessoas no processo de fazer escolhas, de modo que a opção mais fácil seja  a  mais  saudável  em  matéria  de  alimentação  e  atividade  física periódica,  e,  em  consequência,  de  prevenção  da  obesidade,  são fundamentais as comunidades e os contextos favoráveis.” (WHO, 2012) 

 Isso  envolve o  estabelecimento de  territórios de  fronteira onde 

os sujeitos são categorizados em ir/responsáveis, a/normais, e saudáveis ou doentes.  Estas  narrativas  colocam  nas  mãos  dos  cidadãos  a responsabilidade  por  suas  escolhas  vitais  e  pelas  consequências des/favorável que resultam delas. 

 “No nível individual, as pessoas podem: ‐  limitar  a  ingestão  energética procedente da quantidade de gordura total; ‐  aumentar  o  consumo  de  frutas  e  verduras,  bem  como  legumes, cereais integrais e frutas secas; ‐ limitar a ingestão de açúcares; ‐ realizar uma atividade física períodica, e ‐ atingir o equilíbrio energético e um peso saudável.” (WHO, 2012) 

 

Mapa 1. O quadro global da obesidade. Publicado em Daily Downey Obesity Report em junho del 2012. 

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É  traçada,  desta  forma,  uma  cartografia  dos  novos  marginais, identificados como ameaças ao bem‐estar nacional e mundial. O obeso e a obesa integram esta extensa lista.  

“Muitos países de baixa e média renda atualmente estão enfrentando uma  ʺdupla  cargaʺ  da morbidade.  [...]  Enquanto  continuam  lidando com  os problemas de doenças  infecciosas  e desnutrição,  estes países estão  experimentando  um  aumento  brusco  nos  fatores de  risco  para doenças  não  transmissíveis,  como  a  obesidade  eo  sobrepeso, especialmente em ambientes urbanos.” (WHO, 2012). 

 

Em  torno desta  topografia moral se ergue um aparato político‐pedagógico que organiza e dissemina um conjunto de saberes e técnicas de  autogestão  que  o  coletivo  social  deve  interiorizar  e  incorporar  se deseja  alcançar  esse  respeitado  estado  saudável. Tal  como Hardwood (2008:15‐30),  denominaremos  esse  conjunto  de  práticas  de ʺbiopedagogiasʺ.  As  biopedagogias  operam  sobre  a  base  de  uma concepção neoliberal de ʺindivíduoʺ, capaz de gerir sua própria saúde e controlar os riscos que a cercam. É depositada, assim, total confiança em sua ação empreendedora e em sua capacidade de (auto)transformação, (auto)correção  e  adaptação.  A  implementação  de  dispositivos discursivos moralizantes que estimulam as pessoas a adotar práticas de (auto)controle e  (auto)viligância, alguns dos quais apresentamos neste artigo, são baseados neste paradigma.  

“A  responsabilidade  individual  só  terá  eficácia  plena  quando  as pessoas  tiverem  acesso  a  um  estilo  de  vida  saudável.  Portanto,  em matéria social é importante: ‐  Apoiar  as  pessoas  no  cumprimento  das  recomendações  acima, mediante  um  compromisso  político  sustentado  e  a  colaboração  das múltiplas partes interessadas, públicas e privadas, e ‐  Fazer  com  que  a  atividade  física  regular  e  os  hábitos  alimentares saudáveis  sejam  economicamente  acessíveis  e  inteligíveis  por  todos, especialmente os mais pobres. (WHO, 2012) 

 

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Aquilo  que  se  tem  chamado  de  obesidade  epidêmica11  tem  dado origem a novas modalidades de disciplinamento e controle, em outras palavras,  biopedagogias.  Estas  se  organizam  como  práticas  de  governo orientadas  para  a  gestão  dos  corpos  com  o  propósito  explícito  de reduzir  a  porcentagem  de  população  obesa,  assinalando  os  riscos implicados em tal condição. 

 A  OMS  estabeleceu  o  Plano  de  Acção  2008‐2013  para  a  estratégia mundial de prevenção e controle de doenças não transmissíveis, a  fim de ajudar os milhões de pessoas que  já  estão afetadas por  estas doenças, que passam toda a vida enfrentando e prevenindo suas complicações secundárias. O  Plano  de  Acção  se  baseia  na  Convenção‐Quadro  da  OMS  para  o Controle  do  Tabaco  e  na  Estratégia  mundial  da  OMS  sobre  dieta alimentar, atividade  física e  saúde,  e  fornece um  roteiro para a  criação  e fortalecimento de iniciativas de vigilância, prevenção e tratamento das doenças não transmissíveis. (WHO, 2012) 

 Neste deslizamento do poder  se  instaura uma  biopolítica  que, 

em  articulação  com  as  formações  disciplinares,  funciona  como  um controle  aberto  e  contínuo,  sancionando,  desta  maneira,  uma  nova educação corporal e sanitária (Fraga, 2005: 77; Deleuze, 1991). 

Neste  regime  os  indivíduos  não  estão  apenas  submetidos  a condições contínuas de vigilância empreendida por estas biopedagogias, mas  também  pressionados  a  realizar  automonitoramentos  constantes através  de  saberes  (conhecimentos  científicos)  que  os  orientam  sobre como comer de modo saudável e manter‐se ativo, ao mesmo  tempo em que informam sobre a obesidade e seus riscos associados. 

O estilo de vida ativo que a OMS promove glorifica a vida ativa e demoniza a obesidade e os desvios que a ela são atribuídos (Fraga, 2005; Rail et.al., 2010). Este paradigma opera sobre a base de: a) uma ideia de perigo  vinculada  à  existência  de  formas  de  vida  classificadas  como arriscadas:  sedentarismo,  alcoolismo,  consumo de  tabaco,  etc.  (Rail  et 

                                                            11Vale destacar o  terreno escorregadio sobre o qual respousa o conceito de epidemia da obesidade, já que esta não é uma doença contagiosa (não se espalha através do contato entre as pessoas) e é difícil pensar que se poderá fazer um antídoto para sua redução na população global. 

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al., 2010); b) o mito de que atividade física é saúde12, e que sua prática sistemática  pode  impactar  positivamente  na  prevenção  dos  riscos relacionados  à  obesidade  (Carvalho  de  1998,  Fraga,  2005);  c)  uma perspectiva sobre o saudável representada por uma forma/composição corporal/muscular mensurável, que  identifica no  acúmulo  de  gordura o agente do  perigo; d) uma  noção neoliberal de pessoa  entendida  como um  indivíduo responsável por si e por suas ações, capaz de modificar seus  hábitos  e  estilos de  vida  através da  incorporação de  técnicas de (auto)disciplinamento  (Vazquez  Garcia,  2005);  e,  finalmente,  e)  uma política de prevenção que valoriza a divulgação como forma de educar quanto  aos  benefícios  da  prática  regular  de  atividade  física  para  a saúde,  por  um  lado,  e  por  outro  como  meio  de  informar  sobre  as novidades,  em  matéria  de  riscos,  que  os  diferentes  estilos  de  vida identificados  como  prejudiciais  à  saúde  representam  para  a  vida individual e coletiva (Fraga, 2005). 

Em  resumo,  o  estilo  de  vida  ativo,  e  a  consequente estigmatização do sedentarismo e da obesidade, operamsobre a base de 

                                                            12  A  noção  de  mito  é  tomada  da  investigação  realizada  por  Yara  Maria  Carvalho intitulada  ʺEl  ʹMitoʹ de  la Actividad Físicaʺ, no qual se correlaciona a noção de mito com a crença generalizada de que atividade física é saúde. A autora adverte que, para além da validade de certas hipóteses sobre a questão da saúde e da prática sistemática de  atividades  físicas,  de  rituais  e  de  relações  repetitivas  que  os  sujeitos contemporâneos estabelecem em  torno desta crença, em grande parte  impulsionada pelos meios  de  comunicação,  naturalizam  os  saberes  científicos  da medicina  e  da fisiologia do exercício como verdades últimas. Neste  sentido, é  importante  resgatar também o  trabalho de Eric Oliver Fat Politics The Real Story Behind America’s Obesity Epidemia no qual  se discute alguns discursos extremistas que associam a obesidade com  riscos  de morbilidade  e mortalidade  na  população  norteamericana. Ademais, inversamente, há uma  infinidade de  exemplos  que mostram  que  a  atividade  física pode ou não ser saudável, e que isso é condicionado por quem, quando, onde e como se praticam as atividades esportivas e a ginástica. Em resumo: o mito é um discurso que se converte em uma crença concebida como verdade inquestionável, e em torno da qual se organizam rituais e práticas que são naturalizados na esfera do social e do religioso. A partir desta perspectiva, a equação atividade física e saúde transforma‐se num mito na  sociedade  contemporânea, na medida  em que  é  incorporada na vida familiar  e  comunitária,  naturalizando  (ou  seja,  ritualizando)  a  relação  entre  os sujeitos, as tecnologias corporais, a medicina e os corpos, e reproduzindo dispositivos de  saber‐poder  e de  espe(ta)cularização que  sacralizam as associações  entre beleza, saúde e cuidado do corpo como formas universais. 

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um  conjunto  de  estratégias  biopedagógicas  que  ensinam/orientam  as pessoas  a  respeito de  como  e  o  que  é  ser um  bom  biocidadão  (Halse de 2009; Harwood, 2009).  2.2. As confissões carnais de obesidade do corpo   

Os biopedagogías sobre as quais fizemos menção na seção anterior operam na base de dois registros: um prescritivo e outro escópico. 

O  registro prescritivo coloca em circulação saberes e narrativas tendentes a inscrever os corpos no conceito amplo de saúde e bem‐estar. Para isso, usa uma retórica que pode transitar entre um tom informativo ou de  conselho, a outro entusiasta e amigável. Pode ainda adotar um estilo intimidante que beira o terror. 

O regime escópico ativa uma dinânima de produção de imagens que  operam  a  partir  da  criação  de  figuras  dicotômicas  tais  como a/normal e in/desejável, associadas à lógica de operação binária do ICM e do par ʺmodelo (exemplo)/estigmaʺ (Barthes, 1974: 48, Goffman, 2003). 

É  interessante  observar  como  são  apresentadas,  em  diferentes meios de comunicação de massa, a idéia de beleza, cuja imagem está em acordo com o estabelecido pelo regime prescritivo e, por sua vez, com a perspectiva  hegemonizante  do  discurso  sanitário.  Por  exemplo,  a obsessão  paranóica  por  reduzir  os  excedentes  abdominais  até  a conquista da pureza muscular parece enraizada no diagnóstico mítico da chamada obesidade andróide, ʺo padrão típico de acúmulo de gordura em um  homem,  no  qual  a  gordura  se  deposita  principalmente  na  parte superior do corpo, especialmente no abdômenʺ (Wilmore e Costill, 2001: 541). O mesmo ocorre com a obesidade ginóide, tipicamente feminina, cuja concentração  de  gordura  e  volume  se  concentrado  na  região  dos glúteos,  quadris  e  coxas,  ou  seja,  os  mesmos  locais  do  corpo  que constituem  o  foco  da  preocupação  estética  de  diversos  produtos  e técnicas de emagrecimento (Wilmore e Costill, 2001: 541). 

Do mesmo modo como um abdômen magro, fibroso, musculoso em um homem  é um  sinal de  sensualidade  e vitalidade, uma barriga proeminente de  cerveja  é percebida, pelo  contrário, não  apenas  como um  desagradável  fator  estético,  mas,  principalmente,  como  um  fiel indicador de desvios em sua forma corporal. 

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Figura 2.  Imagen  exibida no artigo  “As gorduras  são  imprescindíveis para a vida?” Publicado em Revista Muy Interesante (8/1995: 8). 

 A  gordura  que  se  acumula  na  região  central  do  corpo  é 

anunciada metabolicamente  como  a mais  perigosa  para  a  saúde.  Os fatores que são reconhecidos como responsáveis por sua produção são, em  maioria,  aqueles  associados  a  um  estilo  de  vida  sedentário  e degenerado.  Daí  se  conclui  que  sua  redução  ou  aumento  estão relacionados  às  práticas  in/sanas  do  indivíduo  afetado  pelo  nocivo excedente  corporal.  Se  este  persiste  na  forma  insana,  diz‐se  que  o indivíduo é merecedor dos riscos auto‐degenerativos. 

O peso moral que regula o entendimento social é organizado em torno do princípio normativo neocapitalista que clama a que cada um se responsabilize  por  seu  próprio  bem‐estar.  Seu  des/cumprimento  se evidencia por meio da (própria) ʺapresentação pessoalʺ (Goffman, 1989). 

Metafórica  e  conceitualmente,  e  a  partir  de  um  registro  quase religioso,  a  obesidade  é  tratada  pelo  dispositivo  da  saúde  e  do  bem‐estar  como  um  pecado  contra  o  credo  sanitário‐empresarial  da (auto)liderança  individual  e,  portanto,  da  (auto)gestão  corporal  e pessoal. O  obeso  e  o  sedentário  representam,  desse modo,  o  fora  do 

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ideal,  que  regula  a  performatização  dos  corpos  saudáveis,  bonitos  e produtivos (Fuss, 1999). É demarcada, assim, uma ordem moral que se polariza em uma série de dicotomias, onde o primeiro elemento do par converge com o ideal empresarial enquanto o segundo, sustentando seu oposto,  condena  o  desvio  de  maior  visibilidade.  O  pecador  é representado,  então,  como  o  sujeito  irresponsável,  incapaz  de autocontrole,  desorganizado,  passional,  impulsivo,  cuja  compulsão  o leva ao caminho da ruína, do vício e da consequente destruição.  

Figura 3. Fotografia exibida no artigo “É  verdade  que  se  sou  obeso  terei disfunção  erétil?”  (Gómez,  2008) publicado  na  Revista  Men’s  Health (2/2008: 8).  

O  corpo do obeso  ingressa em  uma  trama  confessando  sua transgressão.  Sua  volumosidade, flacidez e  carnalidade amorfa não fazem  mais  que  narrar  o conglomerado  de  faltas  que  este mortal  comete  em  seu  dia  a  dia. Tal  diagnóstico  clínico  e governamental  implica  em  um conjunto  de  práticas  visuais:  a observação  social,  a  espionagem em torno das formas corporais dos 

ʺoutrosʺ e até mesmo a confissão dos  ʺtrangressoresʺ, são  fruto de um olhar estigmatizante e inquisitor (Scholz, 2009). 

O obeso é situado neste imaginário nos limites do humano/ não‐humano e do bárbaro/ civilizado, a partir de um repertório de figurações que vão desde o grotesco e o monstruoso até o alienígena, assexuado e infantil. Os  obesos,  pecadores por  terem  se distanciado das normas de sua sociedade, tornam‐se espetáculo cujo castigo é posto no duplo efeito de  sua  aparência:  da  perspectiva  estética,  seus  excessos  comunicam monstruosidade  física, enquanto que a partir da abordagem santitária, 

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os mesmos são  tidos como enfermidades, riscos e até mesmo  tomados como fatores subjetivos de marginalização social. 

 Figura 4. Empresa: Del Mar  ‐ Medical Spa Empresa, especialista em programas de perda de peso. (Mercado Fitness, 5,6/2010: 82). 

 Figura 5. Imagen de uma campanha de 2009  do  Ministério  de  Saúde  de Portugal.  Texto:  Os  sedentários  nao conseguem  escapar  das  doenças.  Faça exercício.  (Mercado  Fitness,  5,  6/2010: 83) 

 A  exposição  ridicularizada 

destes  sujeitos pelos diversos meios de  comunicação  opera  como  um biopedagogia que mostra o que pode acontecer  com  quem  se  afasta  da regra  compulsória da vida  saudável e ativa. Como  reflete Prosa  (2010,  s. p.):  

Os  super‐heróis da gula, de Gargantúa  até Diamond  Jim Brady,  têm sido  relegados  a  um  passado  distante,  ignorante  e  atrasado.  Seus 

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herdeiros  –  os  grandes  comilões  de  hoje  –  são  costumeiramente considerados seres anormais ou sociopatas ou, ainda mais comumente, perdedores  medíocres,  desajustados  ou  espécimes  humanos desgraçados.  Ocasionalmente,  pessoas  extremamente  obesas  (nais quais  talvez vejamos  imagens aterradoras do que pode nos acontecer se  ignoramos  os  escrúpulos  de  controle  social  e  nossos  próprios superegos vacilantes) aparecem no noticiário do jornal da noite ou nos programas com testemunhos de violência em horário nobre. 

 O  bom,  a massa magra,  e  o  ruim,  a massa  gorda,  se  enfrentam, 

como num território de batalha, na própria corporalidade. Assim, corpos obesos  convertem‐se  em  textos  nos  quais  se  pode  ler  a  diferença,  a enfermidade,  a dis/funcionalidade,  a  in/docilidade  e  a monstruosidade (Torras,  2007:17).  Esta  textualidade  pode  ser  reescrita,  corrigida, adaptada,  ou  ao  menos  simular  normalidade,  em  uma  aparência espe(ta)cular e/ou em um organismo que se move, produz, figura, opera segundo a norma de uma forma‐função normalizada. 

Portanto,  o  discurso  do  saudável,  cuja  finalidade  é  sustentar  a ficção  do  sujeito  empreendedor  e  a  representação  positiva  de  si mesmo (também  fictícia  em  si),  deve  se  estruturar  como  dialeticamente polissêmico/a  e  ambivalente  para  que  possa  nomear,  apropriando‐se  e suprimindo  todos  os  possíveis  comportamentos  dos  outros,  toda  a multiplicidade  subversiva derivada de um  excesso  simbólico que pode vir a afrontar a hegemonia  sanitária da  cultura ativa  (Figari, 2009: 225; Boltanski, 2002: 167).  3. O (des)governo dos zumbis  

Através da  figura do morto‐vivo, este  ser que  trai um dos  tabus sociais mais  antigos  e  firmemente  estabelecidos,  uma  série  de  valores, medos  e  conflitos  históricos  socialmente  delimitados  podem  ser analisados. Este parece o caso dos zumbis contemporâneos, personagens da  cultura  do  entretenimento  que,  de  origem  colonial  e  religiosa, alcançaram  no  início  do  século  XXI  o  status  midiático  de  uma  das principais metáforas do caos social (Drezner, 2011), conforme exemplifica o 

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Centro de Controle e Prevenção de Doenças do governo estadunidense13 em sua campanha Prontidão zumbi, criada para explicar como a população deste país deve agir caso aconteça um ataque destes seres: se você está bem equipado  para  lidar  com  um  apocalipse  zumbi,  você  estará  preparado  para  um furacão, uma pandemia, um terremoto ou um ataque terrorista14. 

No mundo  do  entretenimento  contemporâneo,  seja  em  filmes, livros,  quadrinhos  ou  videogames  (Russel,  2010),  os  zumbis predominam  como  o  principal  exemplo  fantástico  e  ficcional  de  um inimigo  instintivamente  agressivo,  numericamente  superior, absolutamente  sem  compaixão  (porque  não  possui  nenhum  tipo  de emoção),  irracionalmente  eficaz,  devorador  literal  de  vidas  e  cuja origem  é misteriosa  e  confusa. Este  último  fator  é,  inclusive,  um dos elementos  característicos  deste  morto‐vivo  pós‐moderno:  sua procedência  tem  versões  distintas  nas mais  variadas  narrativas,  indo desde  um  efeito  desconhecido  da  radiação  nuclear15  (que  causa  a “ressurreição”  dos  cadáveres)  à  manipulação  genética  de  vírus desenvolvidos  para  guerras  bacteriológicas  e  que  fogem  ao  controle16 (causando  a  agressividade,  a  decomposição  dos  corpos  e  a  urgente necessidade de  se  alimentarem de  carne  humana). Para  este  artigo,  a origem  histórica  deste  monstro  tão  recente  e  ocidental  quanto internacionalmente expressivo17 é fundamental.  3.1. Cadáveres famintos 

 Conforme  Mary  Del  Priore,  em  seu  estudo  sobre  monstros, 

durante o século XVII na região dos Balcãs, na Grécia, na parte oriental do  Império  Austro‐Húngaro  e  na  Rússia,  houve  uma  grande 

                                                            13Center for Disease Control and Prevention – CDC ‐ http://www.cdc.gov/ 14Zombie  preparedness.  Disponível  em:  http://www.cdc.gov/phpr/zombies.htm.  Acesso em: 05/03/2013. Todas as traduções são dos autores. 

15 Como no filme fundador da figura do zumbi contemporâneo, A noite dos mortos vivos (Night of the living dead, dir: George Romero, EUA, 1968). 

16 Como no filme Extermínio (28 days later, dir: Danny Boyle, Reino Unido, 2002). 17  Existem  filmes  de  zumbis  produzidos  em  vários  países  do mundo,  com  culturas políticas e temores sociais tão distintos quanto África do Sul, Bélgica, Brasil, Canadá, Coréia do Sul, Cuba, Filipinas, Haiti, Itália, Japão, México, Nigéria, Nova Zelândia e Romênia, entre outros (Russel, 2010). 

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propagação  de  ideias  a  respeito  de  mortos‐vivos,  pessoas  que  por castigo  divino  ou  ligações  com  demônios,  depois  de  mortas “mastigavam” em seus túmulos e podiam sair para sugar o sangue (ou carne) de outras pessoas  (Del Priore,  2000). Estes  seres  conhecidos na Grécia  como  vrykolakas,  se  tornaram  política  e  popularmente importantes  durante  as  epidemias  de  vários  tipos  de  pestes  que ocorreram  no  início  do  século  XVIII  em  grandes  regiões  do  leste europeu e em parte da Europa ocidental, deixando centenas de doentes e cadáveres insepultos pelas vilas e estradas.  

Ainda conforme a autora, um caso de repercussão internacional no período  foi  o de Arnaldo Paole  acusado, depois de  sua morte, do desaparecimento  de  várias  pessoas  da  cidade  de  Medwegya,  na Hungria.  Após  as  autoridades  investigarem  o  caso  e  colherem depoimentos  de  policiais  e  médicos,  um  relatório  oficial  escrito  em alemão foi publicado em 1732 e, no mesmo ano, divulgado em jornais e revistas  de  língua  francesa  e  inglesa.  É  graças  a  este  relatório  e  suas traduções  que  aparece  escrita  pela  primeira  vez,  com  diferença  nas grafias regionais, a palavra “vampiro” (Del Priore, 2000: 108). 

Este é um dado extremamente  importante: os primeiros  relatos modernos  ocidentais  sobre  mortos  que  saem  de  suas  tumbas procurando devorar pessoas e transformando suas vítimas também em mortos‐vivos, vão se desenvolver na personagem do vampiro18 que, até a metade da década de 80 do século XX, era o representante do mal, da luxúria  e  da  desumanização  antropofágica  na  cultura  de  massas.  A partir  desse  período,  a  grande  maioria  das  personagens  vampiros tornam‐se  cada  dez  mais  sentimentais,  envolvidas  em  crises  de identidade  e  em  profundo  conflito  entre  sua  natureza  assassina  e  o amor‐paixão romântico burguês.  

                                                            18 Na passagem do século XIX para o XX, a figura da múmia também vai contribuir para o imaginário sobre mortos que saem de suas tumbas (Loudermilk, 2003). Mas, apesar de  intimamente  associado  ao  colonialismo  europeu  e de  seu  caráter de  realeza da Antiguidade, este morto‐vivo de inspiração egípcia não se desenvolveu com a mesma vitalidade  que  o  vampiro.  Talvez  tenha  contribuído  para  isso  a  sua  falta  de sensualidade e o completo distanciamento do universo erótico, tão importante para a literatura de horror da época. 

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Em  exata  oposição  aos  tradicionais defuntos mastigadores dos relatos  oitocentistas  ou  aos  clássicos  e  sensuais  bebedores  de  sangue inspirados em Drácula, na primeira década do século XXI os vampiros que  fazem  sucesso  na  literatura  e  no  cinema  são  adolescentes  que desejam, mais do que  tudo, casar virgens e não  lembram em nada um cadáver ambulante19. Com o crepúsculo dos aristocráticos e erotizados mortos‐vivos  vampiros,  vem  o  amanhecer  das massas  putrefatas  de mortos‐vivos zumbis.  3.2. O espírito colonial  

 Conforme  Kyle  Bishop  (2008),  a  primeira  vez  que  o  termo 

“zombie”  aparece  escrito  é  em  1792,  no  texto  do  francês Moreau  de Saint‐Méry,  definindo‐o  como  “palavra  criola  que  significa  espírito, aparição” (apud Bishop, 2008; 143) e, no século XIX, este mesmo termo aparece  associado  ao  nome  do  revolucionário  haitiano  Jean‐Jacques Dessalines, também conhecido como Jean Zombie (Bishop, 2008). Ele foi um dos principais atores da sangrenta revolta de escravos que, em 1794, levou este país a ser o primeiro a abolir a escravidão e, expulsando as tropas dos colonizadores  franceses em 1804, declarar‐se  independente, tornando‐se também a primeira república governada por negros.  

Já para  Jamie Russel, o  termo zumbi aparece no mundo anglo‐saxão em 1889 em um artigo no Harper´s Magazine do jornalista Lafcadio Hern  sobre o Haiti  intitulado “A  terra dos que voltam”  (Russel, 2010: 23). Em 1819 a palavra aparece no Oxford English Dictionary, afirmando que  foi  escrita  pela  primeira  vez  na  língua  inglesa  em  uma  obra  do mesmo ano chamada História do Brasil, de Robert Southey, e ressaltando que zumbi era sinônimo de diabo (Russel, 2010: 23).  

Segundo o dicionário brasileiro Aurélio,   

“Zumbi.  [Do  quimb.  nzumbi,  ‘duende’.]  S.  m.  1.  Bras.  O  chefe  do quilombo  dos  Palmares,  na  sua  fase  final;  zambi.  2.  Bras.  Fantasma que, segundo a crença popular afro‐brasileira, vaga pela noite morta; 

                                                            19 Como na saga literária “Crepúsculo” de autoria da norte‐americana Stephanie Meyer e  suas  continuações,  todas  transformadas  em uma  série homônima de  cinema pela Paris Filmes. 

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cazumbi. 3. Bras. Indivíduo que só sai à noite. 4. Bras., Al. Designação dada no  interior, à alma de certos animais, como, p. ex. O cavalo e o boi. 5. Bras. Lugar deserto no sertão” (Ferreira, 2004: 2097).  Não podemos nos esquecer que o último e mais famoso líder do 

maior  quilombo  que  o  Brasil  teve,  o  de  Palmares,  no  século  XVII, também  era  conhecido  como  Zumbi  ‐  conforme  lembra  o  primeiro significado  deste  dicionário20.  Sua  fama  de  guerreiro  chegou  até Portugal e,  como a etimologia de  seu nome parece  indicar, evocava o medo  provocado  por  uma  figura  valente,  inteligente,  espectral  e  que lutava  ferozmente  contra  a  ordem  escravocrata  estabelecida.  Sua inspiração  libertária  não  se  restringiu  a  seu  período  histórico,  sendo resgatada  no  fim  do  século  XX  pelos  movimentos  sociais  negros  e transformando  a  data  de  sua  morte,  20  de  novembro,  no  Dia  da Consciência Negra no Brasil.  

Se  Jamie  Russel  (2010)  estiver  correto  e  a  primeira  vez  que  o termo zumbi aparece em língua inglesa é num livro do século XIX sobre a  história  do  Brasil,  podemos  perceber  o  quanto  este  nome  já amedrontava o poder colonial nas Américas provavelmente há alguns séculos,  evocando  em  uma  mesma  palavra  insinuações  de  rebelião política  e  forças  sobrenaturais.  Zumbi  dos  Palmares  e  Jean  Zombi corporificaram  o  espírito  que  assombrou  o  colonialismo  de  suas respectivas épocas históricas e culturas  locais nas quais, não por caso, tal  espírito  foi  interpretado  como  força  maligna  e  demoníaca.  Ao contrário dos dois líderes negros, o termo zumbi vai se desenvolver não como inspirador de coragem e rebeldia contra as injustiças sociais, mas como  sinônimo  de  um  escravo  sem  vontade  e  autonomia  –  e  depois como  um  monstro  irracional  e  desumano  ‐  mostrando  o  quanto  a opressão  colonial  e  o  medo  do  colonizador  ajudou  a  formar  o imaginário deste ser. 

Mas é apenas em 1929 que a  figura do zumbi chegou à cultura de massas norte‐americana, alcançando pela primeira vez pessoas que não viviam nas colônias caribenhas nem estavam  ligadas nos assuntos de  administração  colonial  ou  política  internacional.  Depois  de  um                                                             20 Russel  (2010)  e  Bishop  (2008) mostram  como  existe  uma  controvérsia  entre  vários pesquisadores sobre a origem etimológica da palavra zumbi. 

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grande período  interno de  instabilidade política e econômica, em 1915 os  Estados  Unidos  invadem  o  Haiti  sob  o  pretexto  de  pacificar  os conflitos  e  reorganizar  a  economia  local,  controlando  política  e militarmente  o  país21  (Russel,  2010). Neste  contexto,  o  aventureiro  e jornalista William  Seabrook  chegou  a  esta  terra  em  1928  e,  um  ano depois, lançou o livro “A ilha da magia” (Seabrook, sem data).  

É este livro que vai divulgar massivamente para um público que se  considerava moderno,  racionalista,  urbano  e  ávido  por  novidades exóticas, a religião vodu como algo primitivo e a figura do zumbi como sendo um infeliz escravo rural morto‐vivo (Bishop, 2008; Russel, 2010). O  texto  tornou‐se um  sucesso  imediato  em  vários países  ocidentais  e iniciou uma crescente busca no mundo do entretenimento22 por pessoas mortas  de  culturas  e  nações  subalternas  que,  através  de  poderes mágicos e sobrenaturais, permaneciam vivas e mortas ao mesmo tempo. Hoje, essa imagem parece ser uma excelente metáfora para a situação de tantos povos  que  viviam  sob  o domínio de nações  estrangeiras  e  sua brutal e desumanizante maneira de lidar com as populações e culturas nativas mas,  na  época,  tal  imagem  foi  compreendida  como  um  sinal inequívoco da barbárie, ignorância e depravação sexual em que viviam os negros quando deixados  a  seu autogoverno,  justificando  a  invasão militar e a política segregacionista. 

Curiosamente,  o  encontro  deste  aventureiro  com  um  zumbi  é apenas uma breve – e  impactante  ‐ passagem do  livro. Ao narrar suas conversas  com Polynice, um  fazendeiro da  região que não  acreditava nas crenças nativas, o autor se surpreende com a crença nos zumbis por parte  deste  poderoso  senhor.  Ressaltando  a  ligação  fundamental encontrada na lenda entre o zumbi e o trabalho escravo, Seabrook narra seu encontro com esses trabalhadores amaldiçoados e infelizes em uma das passagens mais impactantes do livro: 

 “Minha  primeira  impressão  dos  três  zumbis,  que  continuavam  a trabalhar, foi a de que eles tinham realmente alguma coisa de estranho. 

                                                            21 As tropas norte‐americanas se retiram apenas em 1934. 22 Inicialmente o entretenimento  literário não ficcional, depois o cinematográfico e, daí em  diante,  adquirindo  formas  em  todos  os  tipos  de  produções  culturais:  games, televisão, quadrinhos, literatura, música etc. 

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Seus gestos eram de autômatos. Não podia ver seus rostos, por estarem próximos  ao  chão, mas  Polynice  segurou  um  deles  pelos  ombros  e pediu que  endireitasse os ombros. Dócil  como um animal, o homem levantou‐se  e o que vi  então  causou‐me um  choque desagradável. O mais  horrível  era  o  olhar,  ou melhor,  a  ausência  de  olhar. Os  olhos estavam mortos, como se fossem cegos, desprovidos de expressão. Não eram  olhos  de  um  cego, mas  de  um morto.  Todo  o  semblante  era inexpressivo, incapaz de expressar‐se” (Seabrook, sem data: 84).  Procurando  justificar o que vira através de causas naturais para 

este estado humano, como a letargia23, o autor vai concluir que o zumbi é  um  dos  grandes  mistérios  do  Haiti,  terra  onde  a  razão  ocidental encontra seu limite operacional.  

Outro trabalho extremamente importante sobre o tema dos zumbis haitianos foram os livros do antropólogo e etnobiologista canadense Wade Davis, chamados “A serpente o e arco‐íris”, lançado em 198524 e “Passage of darkness:  the  ethnobiology  of  the  haitian  zombie”, de  1988. Nestes  relatos,  o autor narra sua pesquisa no Haiti patrocinada por médicos americanos em busca  de  explicações  químicas  e  científicas  para  o  processo  de zumbificação. O tema estava novamente na mídia internacional decorrente dos conflitos políticos que estavam ocorrendo naquele país, com o auge da crise  do  governo  ditatorial  de  Jean Claude Duvalier,  o  Baby  doc,  e  que culminaria em sua deposição por um golpe militar. 

Além  disso,  o Haiti  se  tornaria  na  década  de  80  o  país mais pobre  da América  Latina.  Como  se  não  bastasse,  os  Estados Unidos nesse  período  o  culpam  pela  epidemia  de  AIDS  (através  de  sangue contaminado  usado  para  transfusões),  mais  uma  vez  associando  o desregramento  sexual dos negros  à  catástrofe  e  consequente  ruína da                                                             23 Este hipótese será pesquisada apenas na década de 80 do século XX, nos estudos de Wade Davis. 

24  Fazendo  tanto  sucesso  quanto  a  obra  de  Seabrook,  rapidamente  este  livro  foi adaptado para o cinema e lançado em 1988 com o mesmo título. No filme, a aventura do pesquisador e o interessante debate conceitual sobre religião e ciência expostos no início  da  película  rapidamente  dão  lugar  a  um  terror  simplório  e  incapaz  de desenvolver a  importante questão de  fundo que a própria obra apresenta: a relação entre política e a religião vodu no Haiti, especialmente no período Duvalier. No Brasil o  filme  foi  lançado  com  o  assombroso  título  “A maldição  dos mortos‐vivos”  (The serpent and the rainbow, dir: Wes Craven, EUA, 1988). 

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civilização branca. Apenas depois de protestos diplomáticos, o Centro de  Controle  e  Prevenção  de  Doenças25  reviu  sua  posição desresponsabilizando  as  pessoas  negras  haitianas  pelo  avanço  da doença  nos  EUA  (Parker  e  Aggleton,  2001).  Mesmo  assim,  ficou reforçada  a  íntima  relação  entre  o  Haiti  e  o  perigo  do  contágio  de doenças  altamente mortais,  sendo  este  último  elemento  fundamental para o imaginário do zumbi contemporâneo.   Em busca do poderoso veneno/ anestésico encontrado no baiacu e  que  seria  o  elemento  principal  de  uma  poção  que  transformaria pessoas vivas em mortas‐vivas, Davis percebeu o quanto a crença neste seres era um dos elementos mais importantes de controle social através da  religião.  Nas  muitas  sociedades  secretas  voduistas  que  se espalhavam por um Haiti predominantemente rural, ser  transformado em zumbi, ou seja, alguém cujo destino após o  túmulo seria  tornar‐se um escravo sem vontade ou autonomia, era visto como a mais terrível punição contra os  inimigos sociais. Conforme entrevista recente com o autor,   

“[Na  lenda] um zumbi é alguém que  teve sua alma  roubada por um feitiço  e que  fica  capturado  em um  estado de purgatório perpétuo  e que acaba sendo mandado para trabalhar como escravo em plantações. Hoje  sabemos  que não há nenhum  tipo de  incentivo para  criar uma força de escravos‐zumbis no Haiti, mas dada a história colonial aliada à ideia de perder a sua alma – o que significa perder a possibilidade de ter  uma morte  digna  para  o  vuduista  ‐,  tornar‐se  um  zumbi  é  um destino pior do que a morte. É por  isso que no Haiti não  se  teme os zumbis, mas se tornar um zumbi” (Assis, 2010). 

   Outro elemento fundamental dos trabalhos de Davis foi mostrar 

a morte como um dado muito mais cultural e social do que biológico. Ao  passar  pelos  rituais  de  velório  e  sepultamento,  o  indivíduo  é considerado  morto  pela  comunidade,  independente  de  seu funcionamento  biológico. Desta  forma,  uma  pessoa  que  foi  velada  e 

                                                            25 O mesmo órgão governamental que em 2012,  como vimos, vai  lançar a “Prontidão zumbi”. 

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enterrada, se for reencontrada novamente andando ou trabalhando, não será vista como alguém vivo como antes, mas sim como um morto‐vivo.  

Desta forma, podemos perceber o quanto o zumbi “tradicional”, ou  “haitiano”  era  associado  a um  imaginário  colonial  e  religioso. Sua figura evocava o trágico destino de uma morte sem descanso, tornando a pessoa zumbificada um eterno trabalhador escravo, sempre à serviço de  seu mestre e  senhor,  sem desejos, esperanças ou qualquer grau de liberdade. O zumbi representava, entre outras coisas, um conflito entre a  tradicional ordem escravocrata e o moderno sistema capitalista, cuja solução  provisória  era  apoiada  e  consagrada  pelo  discurso  religioso. Seja política, econômica ou espiritualmente, o zumbi das colônias era o grande paradoxo e pesadelo do sonho liberal: a liberdade econômica de um capitalismo que escraviza.   No  cinema  da  primeira metade  do  século  XX,  foram  dois  os principais  filmes  que  trataram  do  zumbi  haitiano: White  zombie26,  de 1931 e I walked with a zombie27, de 1943 (Russel, 2010). Ambos os filmes (mas  principalmente  o  primeiro)  espetacularizaram  para  as  grandes audiências  cinematográficas  um  monstro  originado  dos  países colonizados do Novo Mundo,  insinuando que a “barbárie nativa” dos povos subalternizados era uma ameaça real e constante. Em seu artigo sobre  White  zombie,  Bishop  (2008:  141)  afirma:  em  outras  palavras,  o verdadeiro horror nestes filmes está na perspectiva de um ocidental tornando‐se dominado, subjugado e efetivamente “colonizado” por um nativo pagão. 

Depois  de  algumas  décadas  de  filmes  com  baixo  orçamento, originados  de  vários  países,  apresentando  mortos  quase  vivos assombrando vivos quase mortos e misturando magia, extraterrestres e terror  psicológico,  é  o  cinema  norteamericano  independente  que  vai criar a figura do zumbi contemporâneo e  iniciar o contágio deste tema em todo o universo do entretenimento.  

    

                                                            26White zombie, dir: Victor Halperin, EUA, 1931. 27I walked with a zombie, dir: Jacques Tourneur, EUA, 1943 

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3.3. O zumbi contemporâneo  

Em  1968, George  Romero  lança  o  filme  “A  noite  dos mortos‐vivos”. Causando um choque na época, este filme de baixo orçamento e imagens consideradas extremamente violentas, vai originar a figura do zumbi contemporâneo: um morto que  retorna à vida sem consciência, comumente  atacando  em  grupo  e  cujo  único  objetivo  é  devorar  os humanos vivos, transformando aqueles que foram mordidos em novos zumbis. 

Neste filme em preto e branco, um grupo de pessoas que não se conhecem é encurralado dentro de uma casa abandonada e cercada por estas criaturas, cuja origem ninguém compreende – embora as notícias da televisão digam que os mortos vivos devem ter alguma ligação com a  radiação  atômica.  Liderados  por  um  homem  negro,  o  grupo  tenta sobreviver  e  descobrir  o  que  está  acontecendo,  enquanto  os  vários conflitos  entre  eles  apenas  pioram  a  situação  e  aceleram  seu  final trágico.  “A  noite  dos mortos  vivos”  foi  considerado  subversivo28  sob vários aspectos:  imagens explícitas29 de violência; a completa ausência de  confiança  nas  forças  estatais  e  nas  instituições  públicas  (como  a polícia e o próprio governo); a descrença na solidariedade e capacidade de ajuda mútua entre as pessoas e, principalmente, colocar um homem negro  não  como  um  zumbi  (igual  aos  zumbis  do  colonialismo), mas como a personagem principal e  líder da “resistência”, mostrando‐se o único sensato e altruísta naquele grupo. Conforme Russel (2010: 112): “o que  torna  a  visão  apocalíptica  de  Romero  tão  desconcertante  é  o niilismo  que  a  anima.  O  levante  dos  mortos  contra  os  vivos  é representado  por  um  ataque  repetido  contra  toda  a  verdade,  valor  e conforto que a civilização se apega”. 

                                                            28 Conforme Russel (2010) a quase totalidade da crítica do período viu no filme apenas o exemplo de um enredo  fraco e solto que servia de desculpa para cenas de violência desmedida e gratuita. 

29 Revivendo a  tradição do Grand‐guinol europeu  (Hand e Wilson, 2002) e ajudando a iniciar o chamado  cinema “gore” ou “splatter”,  com  imagens exageradas e das mais realistas  até  então  realizadas,  apresentando  cenas  de  sangue, mortes, mutilações  e violências físicas. 

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Entre  todos  os  autores pesquisados,  é unânime  a  ideia de que esta  película  é  um marco  do  cinema  de  horror  e  a  obra  que  criou  a figura contemporânea do zumbi, estabelecendo  inclusive os principais elementos  narrativos  que  formarão  este  gênero  de  filme30.  Podemos citar em primeiro  lugar as  imagens diretas e explícitas de mutilação e morte, onde o  corpo humano  é  apresentado  em detalhes apenas para realçar o efeito causado pelas imagens de sua violenta destruição.  

As  pessoas  sendo  perseguidas  e  encurraladas  como  uma  caça também é outra constante destas produções. Seja cercadas em uma casa, presas  em  uma  ilha,  isoladas  em  um  bunker  ou  shopping  Center,  a sensação  de  clausura  e  muitas  vezes  de  claustrofobia  está  sempre presente31.  Outro  elemento  importante,  normalmente  surgido  como consequência  do  acossamento  é  o  convívio  forçado  entre  sujeitos totalmente  distintos  em  vários  níveis:  social,  econômico,  cultural  e moral. Disto  resultam conflitos  internos muitas vezes emocionalmente tão  violentos  quanto  os  ataques  dos  zumbis.  No  universo  destas produções,  o  bom  convívio  humano  é  um  ideal  tão  ilusório  quanto destrutivo.  

A  origem  dos  zumbis  e  a  causa  de  sua  necessidade  de exterminar  os  vivos  também  nunca  é  clara,  ajudando  a  construir  o                                                             30 Não  queremos  com  isso  dizer  que  todos  os  filmes  de  zumbis  sigam  à  risca  estes elementos;  apenas  sugerimos  que  eles  são  os mais  comuns  e  que  os  filmes mais criativos e originais sobre este tema justamente são os que conseguem subverter estes elementos‐chave que caracterizam as narrativas e o “gênero” sobre zumbis. 

31 A ideia de um grupo de humanos cercado por inimigos não humanos representando o colapso da vida social e da civilização remete ao final de um dos clássicos da ficção científica,  a  peça  “R.U.R.”,  do  tcheco  Karel  Tchápek  (lançada  no  Brasil  como  “A fábrica de  robôs”). Escrita em 1920 e encenada em 1921, ela narra a estória de uma empresa  que  constrói  empregados‐escravos  meio‐mecânicos  meio‐orgânicos  para trabalharem  em  fábricas,  que  revoltam‐se  contra  seus  empregadores  humanos.  Foi esta  obra  que  criou  o  termo  robô,  originado  do  tcheco,  significando  “servidão, trabalho  forçado”. Cansados de  serem  explorados,  os  robôs  se unem para destruir seus  opressores.  Escrita  como  clara  referência  ao  socialismo  e  sua  crítica  ao capitalismo,  o  texto  trabalhava  a  tomada  de  consciência  dos  trabalhadores  robôs escravos  e  a  derrocada  capitalista  pela  organização  e  ascensão  desta  nova  classe social. Da  ficção científica do  início do século XX ao  terror  fisiológico do  fim deste, uma  mudança  parece  clara:  o  capitalismo  atual  não  teme  mais  a  tomada  da consciência  de  classe  pelos  organizados  e  politizados  trabalhadores, mas  a  revolta daqueles que já são considerados “mortos” por este modelo. 

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ambiente  de  insegurança  e  desconfiança  presente  nestas  obras.  Da mesma forma, a multidão de zumbis é fundamental: eles são inúmeros e sua quantidade cresce na mesma proporção em que fazem vítimas. Os zumbis  nunca  estão  sozinhos,  mas  sempre  em  grupos.  Mais  que inteligência  ou  habilidade  física,  os  zumbis  representam uma  ameaça pela sua incontrolável e crescente quantidade.  

Mas  os  elementos mais  inovadores  criados  por Romero  e  que definitivamente rompem a continuidade do zumbi contemporâneo com seu homônimo haitiano são o canibalismo e o contágio. A partir de “A noite dos mortos vivos”, os zumbis se desenvolveram como seres que perseguem  as  pessoas  para  devorá‐las  e  que,  tendo  contato  com  as secreções, mordidas ou arranhões deles, os humanos  estão  fatalmente condenados à tornarem‐se também um cadáver faminto32.  

Ora, o zumbi haitiano não era canibal. Seabrook inclusive fala das lendas a respeito de sua alimentação, que deveria ser completamente sem sal,  pois  este  tempero  poderia  trazer  da  volta  sua  consciência adormecida. A dieta deste  resignado monstro  colonial  era  estritamente regulada,  enquanto  que  a  do monstro  contemporâneo  e  globalizado  é descontrolada e insaciável, na mesma proporção em que o outro monstro analisado neste artigo – o obeso – deve controlar seu apetite. 

Como vimos, o zumbi caribenho era principalmente um escravo, indissociável de um  senhor  e de uma  relação de  servidão,  encarnando uma  punição  contra  aqueles  que  desafiavam  o  poder  estabelecido  e assombrando o imaginário colonial. Já o zumbi contemporâneo pertence a  um  imaginário  global  e  apocalíptico,  onde  imperam  o  caos  e  a desordem. O primeiro  inspirava medo por  sua evocação à manutenção aterrorizantemente  imposta da ordem  social; o  segundo provoca medo por sua referência violenta à falta de qualquer ordem social. 

Se  no  Haiti  rural  os  inimigos  sócio‐políticos  eram  as  vítimas preferidas  da  zumbificação,  no  imaginário  do  mundo  globalizado qualquer  pessoa  pode  vir  a  se  tornar  um  zumbi.  Para  isso,  não  é necessário ser encarada como uma ameaça política, mas simplesmente                                                             32 Curiosamente, em nenhum momento desta película fundante, a palavra “zumbi(s)” é proferida. O  termo  usado  é  sempre  “mortos  vivos”  ou, mais  comumente,  apenas “mortos”.  Talvez  com  isso  o  diretor  já  quisesse  deixar  claro  a  não  relação  entre  o zumbi haitiano e os defuntos ambulantes contemporáneos. 

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ser vitima de um contágio. O trágico zumbi haitiano era um miserável físico  e  um  amaldiçoado  espiritual,  enquanto  o  agressivo  zumbi contemporâneo  é  um  contagioso  cadáver  decomposto,  afastado  de qualquer referencial transcendente ou sagrado. Ao perder a relação com a  magia  e  a  religião  (Filho  e  Suppia,  2011),  o  morto  vivo  atual  se biologizou e se medicalizou33. Sua principal característica não é mais a alma aprisionada e abatida, mas o corpo putrefato e sempre pronto para contaminar e corromper os ideais de saúde física e social.  

A  corporeidade do zumbi  contemporâneo é um de  seus  traços definidores.  Enquanto  estes  seres  haitianos  possuíam  estrutura  física intacta, machucada pela rudeza da vida escrava, mas viva o suficiente para  trabalhar,  os  mortos  vivos  contemporâneos  são  cadáveres decompostos. O locus da morte do zumbi caribenho estava na alma e se manifestava espiritualmente. O do zumbi contemporâneo está no plano biofisiológico,  manifesto  no  apodrecimento  explícito  de  sua  carne  e órgãos. Ora,  a  visão  da  interioridade  do  corpo  humano  é  justamente uma das características da cultura visual de nossa época. Seja na ciência, com  os  avanços  das  tecnologias médicas;  na  arte,  com  o  cinema  de vísceras  expostas ou na mídia  em geral  – que  apresenta  imagens que vão de exames clínicos dos órgãos internos ao cadáver despedaçado de uma  vítima  de  violencia  ‐  a  imagem  do  corpo  aberto,  fragmentado, desmembrado  e  expondo  seu  interior  é uma  constante  (Moraes,  2010, Ortega, 2013). 

 “Numa  cultura  na  qual  a  intimidade  deixou  de  ser  valorizada  e protegida,  passando  a  ser  exposta  nos  mais  ínfimos  detalhes  em realityshows,  programas  de  auditório,  diários  na  Internet  e  outros teatros do eu contemporâneos, a  interioridade visceral revelada pelas novas imagens acompanha esse processo de externalização. Apesar de essas imagens serem tão pessoais e ‘íntimas’ por pressagiar de maneira tão  eficaz  nossa  condição  mortal,  estamos  nos  acostumando  à  sua difusão e reprodutibilidade.” (Ortega, 2013: 91).  

                                                            33 Entre os  filmes que pretendem  explicar  a origem dos  zumbis, o  argumento de um vírus ou de uma experiência laboratorial mal‐sucedida é uma constante. 

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Assim, a figura do zumbi apresenta a maneira como estamos nos adaptando a ver o corpo humano: um agrupamento de vísceras, ossos e secreções cada vez mais expostas. Nesta nova maneira de apresentar e representar o corpo, a pele perde sua função de velar pelo encobrimento de seu  interior, acabando com o “pudor orgânico”. A  função primeira da  carne  nestas  imagens passa  ser  a de demonstrar  sua  fragilidade  e declarar que não existem mais segredos fisiológicos escondidos.   3.4 A precariedade da vida zumbificada  

Como vimos, este específico morto vivo ameaça não apenas por sua fome insaciável de carne humana e do elemento contagioso de sua condição, mas por estar sempre associado a um colapso civilizacional. Não por acaso, o  termo “apocalipse zumbi” é constante em  tais obras. Assim,  podemos  afirmar  que  o  zumbi  contemporâneo  representa primeiramente o  inumano ou, melhor dizendo, um ser humano que  já não é mais humano.  

Este  é  um  elemento  extremamente  importante,  principalmente nos filmes: o constante aviso que os zumbis já foram humanos, mas não o são mais. Parentes, amigos, vizinhos, amantes ou filhos, todas aquelas pessoas  que  antes possuíam um  forte  laço  afetivo  e  constituíam uma rede  de  solidariedade,  após  o  “contágio”  passam  a  ser  vistas  como inimigas,  ameaças  que  devem  ser  unicamente  exterminadas  sem  o menor  traço  de  afeto  ou  compaixão. Os  zumbis  parecem  legitimar  a noção de que ser reconhecido como humano é um privilégio de poucos – privilégio esse que pode ser retirado a qualquer momento. 

O  tema  do  reconhecimento  do  Outro  como  humano  e  a fragilidade  deste  vínculo  é  um  dos  temas  trabalhados  pela  filósofa estadunidense Judith Butler. Em muitos de seus trabalhos (Butler, 2006; 2010; 2011), esta autora analisa o que chama de “vida precária”, ou seja, o  caráter  contingente  e vulnerável da própria noção do que pode  ser considerado  como  “vida  humana”  e,  assim,  conferir  a  determinadas pessoas  ou  grupos  o  status  de  humanos,  merecedores  de  afetos, cuidados, proteção e inteligibilidade. 

Para a autora, a “vida” não é pensada como um dado natural e biológico,  mas  como  uma  relação  de  forças  sociais,  simbólicas  e 

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biopolíticas que  legitimam determinadas “vidas” a  serem vistas  como importantes  e  merecedoras  de  reconhecimento  enquanto  outras  são encaradas como supérfulas, desnecessárias e incovenientes.  

Refletindo  sobre a guerra – especialmente a “guerra ao  terror” estadunidense ‐ e sua lógica de desumanizar o inimigo, em um esforço que  envolve  não  apenas  propaganda  e  campanhas  militares  mas necessita da  cumplicidade e apoio da mídia, Butler nos mostra  como, nestas  relações  de  poder,  determinados  grupos  ou  pessoas  não  são compreendidos  como  totalmente  humanos.  Sendo  assim,  essas  vidas podem  ser arruinadas,  tornadas miseráveis ou mesmo destruídas  sem que  isso  venha  a  abalar  aqueles  que  as  destroem  ou mesmo  os  que apenas  “se  informam”  sobre  tais  acontecimentos. Conforme  a  autora (2006: 58): “certas vidas estão altamente protegidas e o atentado contra sua  santidade  basta para mobilizar  as  forças da  guerra. Outras  vidas não  gozam  de  um  apoio  tão  imediato  e  furioso  e  não  se  qualificam inclusive como vidas que ‘valham a pena’”. 

Ora,  como vimos, a  figura do zumbi  contemporâneo parece  se encaixar perfeita e literalmente neste modelo de vidas que não são mais reconhecidas  como  vidas,  tornando  seus  sujeitos  não‐humanos. Seguindo a lógica da guerra, as obras sobre zumbis parecem proclamar que  existem pessoas ou grupos que não  são humanos  (mesmo que  já tenham sido algum dia) e que seu extermínio é necessário, não devendo ser pensado  como  algo  cruel ou  “desumano”. Ainda  conforme Butler (2010, 54), “por isso, quando tais vidas se perdem elas não são objeto de dor, pois na retorcida lógica que racionaliza sua morte, a perda de tais populações é considerada necessária para proteger a vida dos  ‘vivos’”. Exatamente o mesmo discurso usado nas obras com zumbis. 

Assim,  visto  como  uma  relação  política  de  legitimação  de determinados grupos, valores e  ideias sobre outros, a  figura do zumbi contemporâneo  com  sua  ameaça  civilizacional  pode  ser  pensada  não apenas como metáfora do caos social internacional que se instalaria com um ataque destes seres (Drezner, 2011), mas como o incontável números de  pessoas  e  vidas  em  todo  o  planeta  que  são  encaradas  como perigosas,  repugnantes  e  desimportantes.  Como  os  zumbis,  muitas vezes  o  fim destes  seres  que  não  são mais  vistos  como  humanos  é  o 

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extermínio,  sem direito  ao  luto  ou mesmo  ao  reconhecimento de  sua humanidade. 

Neste  sentido,  o  zumbi  globalizado  contemporâneo  é  igual  ao seu  antecessor  caribenho  e  colonizado:  ambos  são monstros  por  não conseguirem  ser  pensados  como  humanos.  Suas  “vidas  mortas” representam nem  tanto o questionamento dos  limites culturais entre a vida  e  a morte, mas  principalmente  um  jogo  de  poder  político  que determina quem deve ser visto como um morto, uma ameaça impura e, consequentemente, ser descartado como uma vida que não vale a pena ser vivida. 

 “São  vidas  nas  quais  não  cabe  nenhum  pesar  porque  já  estavam perdidas  para  sempre  ou  porque  na  verdade  nunca  o  “foram”,  e devem  ser  eliminadas  desde  o  momento  em  que  parecem  viver obstinadamente nesse estado moribundo. A violência se renova frente ao caráter aparentemente inesgotável de seu objeto. A desrealização do ʺOutroʺ  quer  dizer  que  ele  não  está  vivo  nem morto, mas  em  uma interminável condição de espectro”. (Butler, 2006: 60). 

 Em  um mundo  em  que,  apesar  dos  esforços  em  contrário,  o 

racismo, o sexismo, as discriminações por etnias, sexos, gêneros, classe, nação,  cultura  ou  traços  físicos,  entre  outras,  não  apenas  continuam vivas mas renascem quando acreditava‐se que elas não existissem mais, uma  questão  fica  no  ar:  se  ideias  que  já  deveriam  estar  mortas  e enterradas continuam saindo de suas tumbas e encontrando abrigo em nossas  mentes  e  atitudes,  talvez  os  zumbis  não  sejam  apenas  uma personagem de ficção. Talvez zumbis sejamos nós.  4. Reflexões finais  

Tal como aponta Foucault, desde o alvorecer do século XVIII, o corpo e a vida  foram convertidos nos objetos e objetivos do poder  (cf. Foucault,  2002a,  2002b).  Quando  a  vida  do  homem  biológico  está imbricada  na do  homem  político,  se  assiste  a uma  reconfiguração da política. A política  se  converte  em vigilância  e  gestão de  corpos  e da vida. 

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O  corpo  perde  sua  caracterização  naturalista  e  essencialista,  e passa  a  ser  compreendido  como  uma  configuração  do  poder.  Como expressa Haraway ʺos corpos (...) não nascem, eles são fabricados. Eles foram  completamente  desnaturalizados  enquanto  símbolo,  contexto  e tempoʺ  (Haraway,  1995:  357).  O  corpo  e  a  vida  não  são  um  fato biológico,  mas  um  complexo  campo  de  inscrição  de  códigos socioculturais que devem ser decifrados. 

Neste contexto, podemos dizer que tanto o corpo monstruoso do obeso como a vida monstruosa do zumbi – questões sobre as quais nos detivemos  nesse  artigo  ‐,  são  duas  imagens  da monstruosidade  que devem ser decifradas a partir deste horizonte biopolítico. O monstro é um conceito biopolítico, definido na identidade entre vida e política. 

Enquanto  operador  conceitual,  o monstro  se  opõe  à norma do humano. O monstro é uma figura transgressora das categorias estéticas, epistêmicas,  jurídicas  e  políticas  a  partir  das  quais  se  reconhece  o humano. O monstro encarna o limite entre o bonito e o feio, o saudável e o enfermo, o humano e o  inumano, o vivo e o morto, o natural e o artificial. Representa uma figura específica do poder que ameaça o que é definido  como  humano.  Portanto,  o  monstro  tensiona  a  pretensão classificatória e normalizadora do biopoder.  

Embora os  limites do humano  e do monstruoso pareçam  estar delimitados  e  fixados,  a  presença  de  corpos  monstruosos  e  vidas monstruosas  problematiza  tais  demarcações  e  aponta  uma  zona  onde esses limites tendem a se confundir. A obesidade epidêmica e os zumbis, do ponto  de  vista  do  discurso  da  ciência  (biomédica)  e  da  ficção, questionam  as  definições  sobre  o  que  é  um  corpo  e  uma  vida propriamente humanos. 

Por  um  lado,  a  obsesidade  epidêmica  aponta  para  a monstruosidade  do  corpo  humano,  a  monstruosidade  (a  gordura)  que assombra  o  corpo  a  partir  de  seu  interior  até  apoderar‐se  dele.  A obesidade é a manifestação, transcrita no corpo, da monstruosidade que está  no  humano,  é  um  humano  convertido  em  monstro.  A volumosidade,  flacidez  e  carnalidade  amorfa  do  corpo  são  marcas somáticas que confessam, em seu corpo, a transgressão dos limites entre o humano (saudável e belo) e o não‐humano (enfermo e feio). 

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Por outro lado, o zumbi representa a desumanidade do monstro, é um corpo humano em decomposição, um morto‐vivo que perdeu certas manifestações  humanas:  rosto,  linguagem,  afetividade.  O  zumbi  é também  um  humano  convertido  em monstro,  portador  de  uma  vida menos que vida, de uma vida que conduz à própria morte. 

Ambas as imagens da monstruosidade informam que, apesar de sua constituição em oposição à norma do humano, não se trata de uma alteridade  radical  com  relação  ao  humano,  mas  de  uma  ʺexclusão inclusivaʺ (Agamben, 2005), uma exteriorização do monstro que habita, que  está  incluído,  no  humano. A monstruosidade  desafia  a  norma  a partir de  sua própria  interioridade,  é um perigo  inerente  à norma do humano. 

Os critérios normativos sobre os quais se estabelece ʺo humanoʺ permitem  uma  gestão  desigual  sobre  a  população  considerada ʺhumanaʺ e aquela que se tem desumanizado. O monstro, como perda de humanidade, seja por portar um corpo monstruoso – o obeso –, seja por  levar uma vida monstruosa  – o  zumbi  –,  é objeto de uma gestão política que o define como um ser carente de valor. Consequentemente, sobre o continuum da população se produzem cortes entre a população que se quer defender  (os que representem a norma) e os monstros  (os que  se  desviam  dela),  ou,  em  outros  termos,  entre  os  ʺcorpos  que importamʺ  e  ʺas  vidas  dignas  de  serem  vividasʺ,  e  os  ʺcorpos descartáveisʺ e as ʺvidas que não merecem ser vividasʺ. 

A monstruosidade se  lança em uma economia política da vida, na qual se decide o que constitui e o que não constitui uma  forma de vida  humana.  Produz  uma  vida  qualificada  positivamente,  uma  vida que  deve  ser  protegida,  e  uma  vida  qualificada  negativamente,  em termos de monstruosidade. 

O monstro não é apenas um ser sem valor, mas, como expressa Canguilhem,  é  um  vivente  com  valor  negativo  cuja  função  é  repelir. Neste sentido, o monstro é portador de um corpo e de uma vida que é considerada  como  uma  ameaça,  uma  vida  que  é  excluída  do  que  é considerado vida ʺnormalʺ ou ʺvivívelʺ, uma vida com valor negativo. 

Isso coloca em evidência o  sentido moralizante que  se esconde por  detrás  da  identificação  do monstro.  O  obeso  e  o  zumbi  seriam manifestações de  corpos que perderam  sua  forma humana em  função 

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do desvio de seu comportamento. O obeso não apenas apresentaria um corpo doente, mas  também um  estado vital  atribuído  ao  abandono,  à falta de vontade  e  autoestima. É um  corpo que  foi monstrificado por descuido e  se apresenta  como um perigo para os princípios  sanitário‐empresariais. Por outro  lado, o  zumbi  é um  corpo  em decomposição, que perdeu toda a possibilidade de redenção, que evoca um símbolo do corpo corrompido e de uma vida corruptora. 

As  figuras  da  obesidade  epidêmica  e  do  zumbi  permitem compreender a instabilidade da norma do humano e, por outro lado, a oposição  à  ordem  social  que  a  caracteriza.  Os  monstros  são  uma epidemia que ameaça, a partir da interioridade, a ordem normativa do humano.  Os  monstros  irrompem  no  campo  da  biopolítica  para  nos mostrar a fragilidade do humano, para nos ensinar que a humanidade monstrifica, que somos monstros.    Bibliografia  AGAMBEN, G. Homo sacer. Poder soberano y vida desnuda. Valencia: Pre‐Textos, 2003. ASSIS, Diego. Cientista defende verdades por  trás do mito dos  zumbis –  entrevista com Wade Davis.  Portal G1,  28/01/2010. Disponível  em:  <http://g1.globo.com/ Noticias/PopArte/0,,MUL1466802‐7084,00‐CIENTISTA+DEFENDE+ VERDADES+POR+TRAS+DO+MITO+DOS+ZUMBIS.html>.  Acessado  em: 15/03/2013 BARTHES, Roland. Mitologías. Buenos Aires: Siglo XXI, 1980. BISHOP,  Kyle.  The  sub‐subaltern  monster:  imperialist  hegemony  and  the cinematic voodoo zombie.  In:The  Journal of American Culture,Volume 31,  Issue 2, 12 may 2008. BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Eve. El nuevo espíritu del capitalismo. Madrid: Akal, 2002. BUTLER,  Judith.  Vida  precária.  In:  Contemporânea  –  Revista  de  sociologia  da UFSCar,  São  Carlos,  Departamento  de  Programa  de  Pós‐Graduação  em sociologia  da UFSCar,  2011,  n.1,  disponível  em:  http://www.contemporanea. ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/18/3 BUTLER, Judith. Marcos de guerra. Las vidas lloradas. Buenos Aires: Paidós, 2010 

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PARTE II  

 Direito e mudança social: a formação jurídica e as recentes demandas 

de reconhecimento no Brasil e na Argentina   

Richard Miskolci1  Maximiliano Campana2 

  1. Introdução  

Martha  Minow,  ao  escrever  sobre  a  relação  entre  direito  e mudança social começa expressando o seguinte:  

 “Penso que existem duas classes de pessoas quando se  trata do  tema do direito e mudança social: aquelas que pensam que o direito é um importante  instrumento de mudança  social  e  aquelas que não  creem que  seja.  […] Quando  se  trata  das  relações  entre  direito  e mudança social, não posso dizer quem está errado” (2000, p.1). 

   Essa  reflexão parece‐nos  interessante  como um pontapé  inicial para  realizar  algumas  considerações  em  torno da utilização do  litígio como  instrumento  de  mudança  social  nas  demandas  por reconhecimento de direitos. Mas para entender melhor como e para que se mobiliza o direito,  é  interessante primeiro adentrar no processo de formação  e  socialização  profissional  dos/as  estudantes  de  advocacia para seu futuro exercício profissional. 

                                                            1 Richard Miskolci é professor do Departamento e do Programa de Pós‐Graduação em Sociologia  da  UFSCar  e  pesquisador  do  CNPq.  Tem  publicações  na  área  de sexualidade, gênero e direitos humanos.  

2 Advogado pela Universidade Nacional de Córdoba (UNC). Doutorando em Direito e Ciências  Sociais  (UNC),  coordenador  do  Programa  dos  Direitos  Sexuais  e Reprodutivos  da  Faculdade  de  Direito  (UNC)  e  coordenador  da  área  de  litígio estratégico da Clínica de Interesse Público de Córdoba. 

 

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A maioria das pessoas vê o Direito como a área profissional de quem  se  sente  vinculado/a  às demandas por  justiça. Não  é  incomum ouvir  jovens  às vésperas de  entrar na universidade  refletindo  sobre  a advocacia como uma possibilidade atraente por causa de seus ideais de fazer  valer  a  igualdade  de  todos  perante  a  lei  e  contribuir  para  uma sociedade  mais  justa.  No  entanto,  pesquisas  em  vários  contextos nacionais  indicam que  se o  impulso  inicial para  a  carreira pode  ser  a busca por  justiça, a estrutura  formativa no Direito  tende a  frustrá‐la e até mesmo substituí‐la por objetivos mais práticos.3   Neste  artigo,  buscamos  discutir  como  a  formação  de advogados/as  poderia  ser  vinculada  proficuamente  a  um comprometimento  com  a  justiça  e  a  igualdade.  O  compromisso (commitment)  com  esses  valores  poderia  ter  um  efeito  positivo  de democratização  de  sociedades  com  uma  história  marcada  por desigualdades,  injustiças  e  autoritarismos.  Em  especial,  nos  casos brasileiro  e  argentino,  essas  três  chagas  culturais  demandam  que  a atuação da área da justiça se engaje em um processo em andamento de gradativa transformação social pelo qual passam nossos países desde o fim de suas últimas ditaturas militares. 

 2. Formação jurídica e socialização dos advogados 

 Voltemo‐nos  para  a  formação  de  advogados/as.  Para 

compreendê‐la melhor podemos nos basear em Basil Bernstein (1977) e seu conceito de “código de conhecimento educativo”, o qual se compõe pelo currículo, a pedagogia e a avaliação: 

 “Ao aplicar a  ideia de código à  transmissão educativa que  tem  lugar nas  escolas,  Bernstein  trata  de  demostrar  que  a  organização,  a transmissão  e  a  avaliação  do  conhecimento  (ou  seja,  o  currículo,  a pedagogia  e  a  avaliação  respectivamente)  estão  intimamente 

                                                            3 Dentre essas pesquisas destacamos as de Carlos Lista e sua equipe na Argentina e a de Boaventura de Souza Santos  (2012)  em Portugal. No Brasil, há várias  investigações sobre o tema e também uma vertente que analisa o contraste entre os ideais de justiça e neutralidade e a forma como a profissionalização os impede ou frustra. Sobre esse último tópico consulte as pesquisas de Bonelli et alli (2008) e Bonelli (2011).  

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relacionadas  com  os  padrões  de  autoridade  e  de  controle  social vigentes  na  sociedade.  […]  Enfim,  o  código  educativo  explica  a estrutura de poder e os princípios de controle vigentes na instituição” (Brígido, 2006a, p.45).   Dessa maneira, aquele/as alunos/as que  tenham  internalizado o 

“código de conhecimento educativo” da instituição de maneira correta, terão  assegurado  o  êxito  na  carreira  educativa  e  universitária. Desse modo,  o  triunfo  e  a  imposição  de  determinados  “códigos”  nas faculdades  de  direito  redundará  em  determinadas  concepções  de justiça,  equidade,  liberdade  e  direitos,  concepções  que  atualmente  se caracterizam por  serem  conservadoras  e  individualistas. Essa  questão não  deixa  de  ser  relevante  ao  levar  em  conta  que  em  países  como  a Argentina,  o  acesso  à  justiça  só  é  possível  pela  mão  de  um/a advogado/a, o que implica a conversão de estudantes de advocacia em profissionais  que  finalmente  custodiariam  a  liberdade  individual  e  a propriedade  privada,  dois  valores  sumamente  importantes  na sociedade argentina.4  

Diante  desse  panorama,  quais  são  as  motivações  dos/as estudantes no momento de escolher a carreira de advocacia e quando devem inserir‐se no mercado de trabalho? 

Para  responder essa pergunta, Tessio Conca  (2006) nos adverte que existe uma  importante variação na resposta dos/as estudantes. Em geral,  essas  motivações  podem  se  enquadrar  em  quatro  grupos5:  o primeiro  deles  se  vincula  com  a  influência  de  um  círculo  próximo, constituído por  familiares  e  amigos/as  advogados/as, que  influenciam na decisão. Um segundo grupo, por sua parte, manifesta ter escolhido a profissão  por  sentir  certa  inclinação  por  disciplinas  vinculadas  às ciências  sociais  e,  depois  de  ter  considerado  opções  como  ciência 

                                                            4 A representação de um advogado matriculado é obrigatória para atuar frente às cortes de  justiça, e a condição de advogado condição necessária para ocupar alguns cargos públicos, em particular para  ser  juiz em qualquer  instância do sistema de  justiça. É por isso que se deve sublinhar que, na Argentina, os advogados têm o “monopólio” do acesso à justiça e as faculdades de direito um grande poder político.  

5 Havia um quinto grupo, que manifestou ter escolhido a carreira “por eliminação”, por não  saber  o  que  estudar  ou  não  ter  podido  ingressar  em  outras  carreiras  de  seu agrado.   

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política,  serviço  social  ou  sociologia,  escolhem  a  advocacia  por considerá‐la uma carreira que abre perspectivas seguras de trabalho, ao que  também  incluem  a  posição  de  prestígio  e  poder  que  ela  permite alcançar. O  terceiro tipo de motivações está vinculado à busca de uma carreira que abra as portas de uma profissão  tradicional, prestigiosa e economicamente  rentável.  Finalmente,  encontramos  como  principal motivação da  escolha da  carreira  a necessidade de dar  resposta a um ideal social e humanitário. 

No  caso  desses  ideais,  os/as  estudantes  manifestam  que  sua verdadeira motivação se vincula ao seu interesse pela justiça, a busca de una sociedade mais igualitária e a defesa dos direitos dos demais: “[…] o que me levou a escolher essa profissão [foi] a sede de justiça, e se me perguntam o que é, digo: buscar que se respeitem as instituições, as leis e as constituições”  (apud Tessio Conca, 2006, p.63) Com essa resposta, um  estudante  se  associa  claramente  com  esse  último  grupo  de alternativas. Com certeza, a autora adverte que:  

 “Conforme vão avançando no curso, suas motivações iniciais começam a  se  ver  contrariadas. A  própria  estrutura  da  agência  educativa,  os conteúdos  que  se  transmitem  e  as  metodologias  de  ensino  vão defendendo uma percepção mais ajustada das possibilidades reais que têm  o  advogado  para mudar  situações  de  injustiça”  (Tessio  Conca, 2006, p.63).   Desse modo,  os/as  alunos/as  que  alguma  vez  acreditaram  na 

possibilidade  de  satisfazer  seu  desejo  por  uma  sociedade mais  justa como  advogados/as  terminam  convencendo‐se  de  que  o  papel verdadeiro  do/advogado/a  se  centra  principalmente  em  “litigar  e ganhar”  e  que  aqueles  valores  vinculados  à  proteção  de  direitos  de pessoas desprotegidas e a busca de maior justiça e igualdade social são ideais dificilmente realizáveis no exercício profissional. 

Isso  se  deve,  principalmente,  ao modo  em  que  se  estrutura  a educação legal em países como o Brasil e a Argentina. Neles, a maioria dos advogados e advogadas são formados dentro de disciplinas em que 

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a formação se caracteriza por ser marcadamente teórica,6 e nas quais se encontram dois núcleos  temáticos claros: um central que se vincula ao direito positivo (como é o direito civil, penal ou comercial) e outro, mais periférico,  formado  por  disciplinas  consideradas  auxiliares  ou meramente  informativas  (entre  as  quais  se  encontram  a  história,  a economia e a sociologia). Tudo isso implica uma ausência de conteúdos e  debates  que  fomentem  nos/as  estudantes  perspectivas  críticas  que discutam  com  os  discursos  jurídicos  dominantes. A  consequência  de tudo  isso  é  que  as  carreiras  de  advocacia  acabam  promovendo  uma identidade  profissional  pouco  comprometida  socialmente,  carente  de crítica  diante  dos  discursos  sócio‐jurídicos  tradicionais  e  altamente individualistas, onde os  futuros  advogados  e  advogadas  se  limitam  a reproduzir a ordem social existente (Brígido, 2006b).    Segundo  Lista  (2011),  a  predominância  de  uma  concepção formal e instrumental de justiça na formação de estudantes de direito na Argentina  faz  com  que  eles/as  não  percebam  ou  reconheçam  a existência de relações de poder. É como se a “neutralidade” da justiça a impedisse  de  reconhecer  desigualdades  e,  principalmente,  diferenças. Denominamos  desigualdade  o  contraste  relacional  entre  sujeitos detentores  de  condições  econômicas,  culturais  e  mesmo  de  acesso privilegiado  à  justiça  e  aqueles/as  que  não  detém  essas  condições  no mesmo nível. Diferenças, por  sua  vez,  referem‐se  à  forma  como  cada sociedade  distingue/marca  as  pessoas  com  relação  ao  gênero,  à sexualidade, à raça, etnia, geração, entre outras categorias.  

Se  em  relação  às  desigualdades  socioeconômicas  a  esfera jurídica  até  busca  fazer  frente  ainda  é menor  o  reconhecimento  das diferenças como  também engendrando desigualdades, as quais não se resumem  à  renda  ou  classe  social,  antes  a  experiências  sociais  de discriminação, preconceito e outras formas de violência simbólica.  

                                                            6  De  qualquer  forma,  nos  últimos  28  anos  de  transição  democrática  argentina experimentamos diversas mudanças curriculares que apontam para a inclusão em um núcleo de  formação prática, a associação do segundo núcleo  temático com matérias interdisciplinares que  flexibilizariam o currículo,  também a diminuição dos anos de curso e a incentivar uma perspectiva crítica na aproximação pedagógica. Nem todos esses objetivos  foram alcançados e a  implementação dessas  reformas ainda está em execução. 

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  Os contextos brasileiro e argentino são similares na formação de advogados/as, em ambos predominam os aspectos ressaltados por Lista como  a  predominância  da  transmissão  de  conhecimento  sobre  o desenvolvimento  de  habilidades  que  combina  três  aspectos:  “a centralidade do direito e da monodisciplinaridade, fragmentação, forte classificação  e  hierarquização  do  conhecimento  e  a  reprodução  da abordagem  legal  positivista  e  formalista  como modelo  hegemônico” (2011, p.5).  

Nesse modelo  de  ensino  e  aprendizado,  o Direito  tende  a  ser isolado  de  suas  origens  sociais  e  políticas,  portanto  apagando  sua contingência  de  forma  a  reproduzir  violências  simbólicas  típicas  da sociedade em que ele  se estabeleceu. O passado autoritário e  classista em  que  o  acesso  à  justiça  foi  mantido  um  privilégio  das  elites dominantes  é  ignorado  de  forma  a  preservar  intocadas  as  estruturas legais  e  culturais  que  as  beneficiam  até  hoje.  Assim,  não  é  de  se estranhar o contraste, ao menos no caso argentino, entre os  ideais com os  quais  estudantes  ingressam  nos  cursos  e  o  pragmatismo desencantado com que os deixam tornando‐se profissionais às custas da adoção de um apoliticismo alienante. Afinal, a neutralidade da  justiça não  pode  ser  confundida  com  cegueira  com  relação  às  condições  de desigualdade  em  que  ela  é  aplicada  ou,  inclusive,  não  é  aplicada, mantendo  boa  parte  da  população  apartada  de  seus  direitos  e  do reconhecimento de sua cidadania. 

Em  parte,  isso  se  passa  porque  o  sociológico  e  o  histórico tendem  a  ser mantidos  fora  ou  apenas  parcialmente  incorporados  na formação  legal, por meio, por  exemplo, da  filtragem das  reflexões de cunho  sociológico  e  político  pela  perspectiva  do  direito.  É  clara  a tendência  dos  cursos  brasileiros  a  priorizarem  a  contratação  de advogados  para  oferecerem  disciplinas  que  permitiriam  maior permeabilidade  da  formação  às  discussões  históricas,  sociológicas, antropológicas  e políticas. Buscando  evitar  esses  contatos  e  trocas,  os cursos levam a uma formação que prioriza a manutenção – e até mesmo o  reforço  ‐  de  um  hermetismo  do  direito,  o  que  contribui  para  que estudantes  passem  a  ver  com  desconfiança  fontes  que  poderiam problematizar  conteúdos  apresentados  como doutrinas  e/ou  verdades inquestionáveis. 

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No  Brasil,  como  analisado  por  Lista  na Argentina,  o  discurso pedagógico do direito tem quatro características que clamam por crítica: a centralidade e autoridade dos professores, a passividade e indiferença dos  estudantes,  o  estilo  ritualístico  e  dogmático  do  ensino  e  a arbitrariedade  e  o  antagonismo  nas  discussões  (Cf.  Lista,  2011,  p.8). Trata‐se de características não apenas da área do Direito, mas  também de sociedades  latino‐americanas que vivenciaram uma história comum marcada pelo autoritarismo e pela manutenção do acesso à justiça como privilégio das elites.  

Nossas  sociedades mudaram  e  se democratizaram nas últimas décadas e análises críticas como esta ou a de Lista são produtos dessa nova  realidade  político‐institucional,  a  qual,  infelizmente  ainda  não interferiu ou modificou a esfera de formação dos aplicadores do direito. Segundo Boaventura de Souza Santos:   

“O principal desafio que se coloca nesse contexto é que todo o sistema de  justiça,  incluindo  o  sistema  de  ensino  e  formação,  não  foi  criado para  responder  a  um  novo  tipo  de  sociedade  e  a  um  novo  tipo  de funções. O  sistema  foi criado, não para um processo de  inovação, de ruptura, mas para um processo de continuidade para  fazer melhor o que sempre tinha feito” (2012, p.81).  Estudantes  de  Direito  formam  um  contingente  grande  e 

potencialmente  poderoso  de  profissionais  que  poderia  auxiliar  no aprofundamento  da  democracia  em  nossos  países.  Infelizmente,  sua potencialidade  democrática  mantém‐se  controlada  por  valores historicamente  arraigados  e  que  tendem  mais  a  frear  processos  de mudança  social  do  que  os  aprofundar.  É  paradoxal  que  as  recentes conquistas  no  Supremo  Tribunal  Federal  brasileiro,  como  o reconhecimento  das  uniões  entre  pessoas  do  mesmo  sexo  e  a constitucionalidade das  cotas  raciais,7  se deem  em um país  em que  a graduação  em  Direito  mantém  um  perfil  dogmático  e  conservador. Qual a origem desse descompasso? 

                                                            7 A respeito das discussões sobre a constitucionalidade das cotas consulte Silvério (2012) e sobre as uniões entre pessoas do mesmo sexo veja Oliveira (2012). 

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Estudos  como  os  de  Bonelli  (2008;  2011)  demonstram  que  as carreiras  jurídicas  brasileiras,  marcadas  por  alta  competitividade, tendem a inculcar nos  jovens profissionais discursos universalistas que apagam  as  problemáticas  das  diferenças.  Quem  quer  conseguir  e manter um emprego como advogado é  induzido a adotar estratégias e discursos  em  que  o  profissionalismo  se  confunde  com  neutralidade. Bonelli  et  alli  (2008)  mostra  como  isso  se  passa  com  mulheres advogadas que, na base da profissão, afirmam não reconhecer nenhuma particularidade ou dificuldade extra por serem mulheres em uma área de  atuação majoritariamente masculina.  Compreensivelmente,  depois de  ascender  profissionalmente  o  discurso  ganha  nuances  e  muitas mulheres reconhecem e trazem ao discurso as dificuldades enfrentadas para  serem  reconhecidas  como  boas  profissionais  em  contextos historicamente masculinos.8 

Assim,  o  paradoxo  entre  as  recentes  decisões  do  Supremo Tribunal  Federal  brasileiro  e  os  discursos  predominantes  na  base profissional  –  em  especial  na  esfera  de  formação  –  se  torna  mais compreensível. A  lógica de  entrada na  área de  trabalho  ainda  é  a da adoção,  o mais  irrestrita  possível,  das  concepções mais  tradicionais  e arraigadas  do  que  é  o Direito,  a  profissão  de  advogado/a,  do  que  é passível de discussão ou não. O reconhecimento das diferenças sociais, das desigualdades ou mesmo do acesso desigual à justiça ainda é quase um  privilégio  de  quem  conseguiu  um  emprego  e  certa  estabilidade profissional.  

 3. O caso argentino dos advogados/as ativistas: os avanços LGBT e o poder conservador dos movimentos contra o aborto   

Em  contraste  com  o  cenário  brasileiro  mencionado  no  item anterior,  vale  a  pena  conhecer  uma  particularidade  argentina. Conforme  alguns  teóricos  (Lista,  2012, Manzo,  2011, Vecchioli,  2006), uma nova classe de advogados/as  litigantes estaria emergindo no país, fundamentalmente  por  meio  das  transformações  sociopolíticas  e 

                                                            8 Bonelli et alli (2008) conceitua como “apagamento de gênero” a característica marcante de como a incorporação de mulheres na base da profissão tem se dado em nosso país. 

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jurídicas  que  se  deram  desde  a  reinstauração  da  democracia.  Esses novos  profissionais  poderiam  ser  chamados  de  “ativistas”  e  se caracterizam  por  estarem  vinculados  a  movimentos  sociais  e/ou organizações não‐governamentais e compreenderem que o direito pode ser  entendido  também  como  uma  ferramenta  de  mudança  e transformação social e que o acesso à  justiça não pode ser considerado apenas  de  um  ponto  de  vista  formal,  antes  ser  plenamente  exercido pelos/as  afetados/as.  Em  relação  a  isso,  e  ao  referir‐se  aos/às advogados/as ativistas, Lista (2012, p.148) reflete: 

 “Quem adota e promove uma definição de acesso à justiça mais ampla, dinâmica  e  com base  substantiva  […]  tende  a  conceber  a politização dos  conflitos  sociais  como  uma  estratégia  jurídica  na  demanda  e  na defesa  dos  direitos  dos  peticionantes.  Por  sua  vez,  ao  promover  a participação  e  a  incorporação  dos  setores  mais  desprotegidos  nas relações  de  desigualdade  social,  tendem  a  reforçar  o  poder  de  tais setores e fortalecer sua autonomia”.    A  origem  desses  novos  “ativistas”  foi  favorecida  por  diversos 

fatores,  entre  os quais  se destacam  a  reforma  constitucional de  19949, um maior  nível  de mobilização  de  organizações  não‐governamentais em  defesa  dos  direitos  de  incidência  coletiva10,  uma  situação  política favorável para a mobilização do direito, a  incorporação por parte dos movimentos  sociais  de  profissionais  legais  em  suas  fileiras,  a  adoção por  parte  desses movimentos  de  um  discurso  de  direitos  humanos  e fundamentalmente  pelas  ajudas  econômicas  recebidas  por  parte  de organismos internacionais que exigiam, em troca, que entre as medidas 

                                                            9  Tal  reforma  implicou  a  incorporação  do  reconhecimento  de  direitos  de  incidência coletiva e instrumentos jurídicos próprios para a defesa desse tipo de direitos, como o amparo coletivo e a ação de habeas data. 

10 Por “direitos de  incidência  coletiva” entendemos aqueles direitos que possuem um número  indeterminado  de  indivíduos,  os  quais  podem  ver‐se  afetados  diante  de determinadas  ações  ou  medidas  tanto  do  Estado  como  de  outros  indivíduos.  Se incluem  nos  direitos  de  usuários  e  consumidores,  direitos  a  um  ambiente  sadio, direitos das minorias (sexuais, raciais, etc), entre outros.  

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a  serem  implementadas  deviam  se  desenhar  estratégias  de  litígio  de interesse público.11  

Dentro desse contexto, surgem as primeiras clínicas jurídicas na Argentina  (incentivadas  pelo  financiamento  externo  e  aplicando  um modelo e uma metodologia de trabalho que surgiu nos Estados Unidos na década de 1920 e foi transplantada para a América Latina quase um século depois) que pretendiam  ser  espaços de  reflexão  e  formação de futuros/as advogados/as, com a ideia de alterar a concepção tradicional do  direito  em  dois  sentidos:  por  um  lado,  educando  advogados/as diferentes,  com maior  sensibilidade  social  em defesa dos direitos dos mais  desprotegidos,  bem  treinados  em  questões  de  interpretação  e crítica ao direito e às instituições; também, a médio e longo prazo, que o direito  fosse mobilizado como uma verdadeira arma de  transformação social,  diminuindo  as  desigualdades  sociais  e  protegendo  direitos historicamente postergados (Puga, 2002).  

Desde  então,  advogados  e  advogadas  comprometidos/as  com causas  de  interesse  público  ou  com  a  defesa  de  interesses  de movimentos sociais não deixaram de proliferar, e os tribunais em todo país conheceram e resolveram causas novas que vão desde pedidos de proteção ao meio ambiente sadio, saneamento de rios e bacias hídricas, proteção  a  usuários  e  consumidores,  discriminação  racial  ou  por motivos  de  gênero,  sexualidade,  direitos  de  propriedade  dos  povos originários, entre muitos outros. E apesar do  incômodo e da reticência que  essas  demandas  causaram  (e  ainda  causam)  nos  distintos  órgãos judiciais, uma posição favorável por parte da Corte Suprema de Justiça da Nação diante desse tipo de demandas, na última década, incentivou a  utilização  estratégica  do  direito  por  parte  desses/as  novos/as profissionais.  

Nos últimos anos, em matéria de direitos sexuais e reprodutivos, diversos  grupos  vinculados  ao  movimento  da  diversidade  sexual12 

                                                            11Por  litígio de interesse público entendemos a estratégia de  judicializar diversos casos com a finalidade de penetrar nas agendas públicas, gerar mudanças políticas e sociais ou  impactar  nas políticas de  governo. Em  relação  à  ajuda  econômica  recebida por parte dessas organizações, foi particularmente importante a proveniente da Fundação Ford, que exigia a utilização desse tipo de litígio (Teles, 2008) 

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tiveram  um  grande  êxito  no  momento  de  obter  respostas  às  suas demandas. Essas se vincularam  fundamentalmente ao  reconhecimento de  direitos,  por  parte  do  Estado,  para  conseguir  o  matrimônio  em condições  iguais  às  dos  casais  heterossexuais  e,  posteriormente,  para que  fosse  reconhecida  a  identidade  de  gênero  autoconferida  de  toda pessoa  que  assim  o  deseje. Durante  as  campanhas  desenvolvidas,  se desenharam estratégias  judiciais e políticas tendentes a obter respostas judiciais aos seus pedidos, e, em alguns casos, dando bons resultados. É por  isso que  se deve  considerar que  esse movimento  soube mobilizar com grande efetividade o direito (Manzo, 2011). 

No  caso  das  estratégias  para  o  casamento  entre  pessoas  do mesmo sexo, sua origem data do ano de 2006, quando um conjunto de organizações LGBT13 decidiram nuclear‐se em uma federação (imitando o mesmo modelo  que  tinha  demonstrado  êxito  na  Espanha).  Assim, surgiu a FALGBT: Federación Argentina de Lesbianas, Gays, Bisexuales y Trans14. Um ano mais  tarde, essa  federação  lançou a campanha pelo reconhecimento  do  direito  ao  casamento  para  casais  formados  por pessoas  do  mesmo  sexo  (denominada  “Campanha  pelo  Casamento Igualitário”), com apresentações diante da justiça. A principal estratégia não  consistia  tanto  em  obter uma  sentença  judicial  favorável,  antes  o 

                                                                                                                                                12 Cabe  esclarecer  que  o movimento pela diversidade  sexual na Argentina não  é um bloco unitário  e homogêneo. Ao  contrário,  existem diversas  e  importantes divisões dentro  dele  (Meccia,  2006).  O mesmo  se  passa  no  Brasil,  país  em  que  não  se  dá unificação similar à observada na Argentina. A ABGLT, com sede em Curitiba, não foi criada a partir de uma coalizão das diversas vertentes LGBT brasileiras tampouco tem um discurso e/ou metas partilhados com elas. Em outras palavras, no Brasil há mais divergências e menos coesão do que na Argentina no que toca às demandas de diversidade sexual.  

13 A sigla LGBT faz referência a “Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros/as”.  14  Em  relação  a  isso,  Litardo  (2009:171)  menciona  que  a  FALGBT  surge  como consequência da “experiência espanhola, FELGBT – Federación Estatal de Lesbianas, gais, bisexuales y  trans  ‐  (…) a que possibilitou a  reforma do código civil espanhol para o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo” no ano de 2005 e que a federação na Argentina “tem uma série de objetivos que se destacam a priori por uma nacionalização  da  questão GLTTTBI  em  todo  território  argentino. A  Federación  se instalou  como um  espaço de  integração  regional  em  busca de uma  articulação  em nível  federal  como  estratégia de  integração  na  luta  e demanda por direitos  civis  e políticos da comunidade GLTTTBI”.  

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que se buscava era  instalar o debate sobre a reforma do casamento na agenda  pública  de  então.  Foi  por  isso  que,  alguns meses mais  tarde, diversos  deputados  apresentaram  na  Câmara  um  projeto  de  lei  de “casamento igualitário” no marco da mesma campanha. 

De maneira surpreendente, a estratégia  judicial funcionou e, no dia  10  de  novembro  de  2009,  uma  juíza  da  cidade  de  Buenos Aires resolveu  o  caso  declarando  a  inconstitucionalidade  dos  artigos  do Código  Civil  que  regulavam  o  matrimônio,  classificando‐a  de discriminatória. Em poucos meses, na cidade de Buenos Aires, distintos juízes  reconheceram novamente esse direito, gerando uma  importante jurisprudência  vinculada  ao  reconhecimento  dessas  demandas.  Com esses  precedentes  favoráveis,  a  FALGBT  anunciou  que  lançaria  uma “campanha  judicial em  todo o  território nacional” com a finalidade de obter  novas  sentenças  desse  tipo  em  lugares  diferentes  do  país.  As representações  se  fariam  por  parte  de  advogados  e  advogadas  da Federación e contariam com a colaboração do Instituto Nacional contra la Discriminación,  la Xenofobia  y  el Racismo  (INADI)  (Campana,  2011). As respostas  a  essas  novas  demandas  não  foram  favoráveis  e  a  questão caiu nas mãos da Corte Suprema de Justicia de la Nación.  

Não  foi  necessário  que  o  órgão  máximo  judicial  do  país resolvesse: no dia 15 de julho de 2010, o Congresso argentino aprovava as modificações no Código Civil15, permitindo  o  acesso  ao  casamento para os/as homossexuais.  

Obtido o direito ao casamento, a FALGBT lançava uma segunda campanha denominada “Derecho a la identidad, derecho a tener derecho” e, com  ela,  o  reconhecimento  da  identidade  de  gênero  se  convertia  na nova  demanda  do movimento  pela  diversidade  sexual  na Argentina. Nesse  caso,  a  estratégia  seguida  foi  a  mesma:  pressionar  tanto  no âmbito  legislativo  quanto  no  judicial.  No  primeiro,  se  apresentaram vários  projetos  de  lei  e,  em  novembro  de  2011,  as  comissões  de “Legislación General” e “Justicia” da Câmara dos Deputados discutiram e aprovaram  um  deles16,  começando  assim  o  processo  legislativo.  No                                                             15 Lei nacional número 26.618. 16  Veja  “Un  paso  hacia  la  identidad  de  género”.  Disponível  em  http://www. pagina12.com.ar/diario/sociedad/3‐180876‐2011‐11‐09.html.  (último  acesso:  30  de novembro de 2011).  

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âmbito judicial, levaram‐se a cabo vários pedidos de reconhecimento de identidade de gênero diante da justiça e autorização para mudar nomes nos  documentos  públicos. A  novidade  dessas  solicitações  foram  que os/as afetados/as alegavam que era sua identidade autodeclarada a que deveria  se  levar  em  conta  no momento  de  resolver,  e  não  o  fato  de terem sido submetidos/as a intervenções cirúrgicas ou perícias médicas, psicológicas  ou  psiquiátricas.17  Essas  demandas  obtiveram  uma recepção  favorável  nos  mesmos  tribunais  de  Buenos  Aires  que consideraram  que  a  instituição  civil  do  matrimônio  compreendido apenas como entre homem e mulher era inconstitucional (enquanto que, nos  tribunais do  resto do país, diante da mesma demanda, a  resposta era muito  diferente),  autorizando  aos  demandantes  a mudarem  suas identidades  sem  obrigá‐los/as  a  submeterem‐se  a perícias médicas  ou psicológicas, e levando em consideração somente a autonomia de quem demandava. Essa demanda  também se  resolveu no âmbito  legislativo, com a  lei nacional 26.743, a qual  reconhece a  identidade de gênero de todas as pessoas do país.  

Nesse caso, resulta difícil aferir a influência que a estratégia judicial pôde ter na decisão do Congresso Nacional argentino. Na verdade, o que se pode supor é que a lei de identidade de gênero seria o primeiro passo de um  processo  de  transformações  em  diferentes  instituições  estatais  (nas quais se incluem a justiça) que já havia começado.18  

                                                            17  É  importante  sublinhar  que  até  o  momento,  os  pedidos  de  reconhecimento  de identidade de gênero para  realizar  intervenções  cirúrgicas de mudança de  sexo ou retificar documentos públicos, em sua maioria se caracterizavam por: 1.  Outorgar  uma  grande  relevância  às  distintas  perícias  a  que  as  pessoas  trans deveriam  submeter‐se  e  os  informes  de  experts  (médicos  forenses,  psiquiatras, psicólogos, entre outros) que, em consequência, se produziam.  2. O relato de uma vida de sofrimento. Esses casos, em geral, tratavam sobre pessoas trans que  já tinham sofrido intervenções cirúrgicas, e que por suas histórias de vida, caracterizadas  pelo  sofrimento  constante  e  a  discriminação  permanente,  logravam convencer ao  juíz  sobre a necessidade de  intervenção  cirúrgica  e/ou  retificação dos registros documentais. 

18  Já existia o  reconhecimento da  identidade de gênero das pessoas  trans em distintas repartições públicas no momento de aprovação e sanção da lei. Assim, por exemplo, na  província  de  Córdoba,  no  ano  de  2011,  o  Ministério  da  Saúde  reconheceu  a identidade de gênero de  travestis  e  transsexuais que  foram atendidas  em hospitais públicos  da  Província  (Resol.  Ministerial  146/2001).  A  Universidade  Nacional  de 

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Quando  se  faz  referência  ao  uso  estratégico  do  direito  na Argentina,  em  geral  os  teóricos  têm  uma  perspectiva  otimista,  e entendem que a mobilização do direito pode ser entendida como uma ferramenta  capaz  de  conseguir  mudanças  sociais  significativas  no reconhecimento de direitos por meio de  vitórias  em  campos  judiciais (Böhmer,  1997;  Courtis,  2003;  CELS,  2008).  Inclusive  quando  as respostas dos juízes não são favoráveis, se considera que o mero feito de ter utilizado os  tribunais produz “efeitos  indiretos” benéficos, pois em alguns casos as demandas se  instalaram na opinião pública, nos meios de  comunicação  e  nos  setores  políticos  e  acadêmicos. Dessa maneira, mantém‐se  justificada  a  estratégia  jurídica.  Essa  postura  se  baseia  na visão estadunidense exposta por Michael W. McCann, o qual, em  sua obra  Rights  at  Work  (1994),  considera  que  o  direito  pode  participar diretamente em um processo político de contestação contra uma ordem estabelecida. Como  sublinha  esse  autor  em um  artigo mais  recente, o direito  proporciona  “simultaneamente  princípios  normativos  e estratégicos para a direção das lutas sociais” (McCann, 2004, p.508). 

Dentro dessa perspectiva se poderia entender porque uma parte importante  do  movimento  da  diversidade  sexual  optou  por  uma inclusão  de  estratégias  judiciais  em  suas  campanhas  pelo reconhecimento de direitos. Além disso, nos permitiria  justificar como as decisões da  justiça  asseguraram direta  e  indiretamente  o  êxito das campanhas lançadas. Desse modo, o uso estratégico do direito por parte do movimento  LGBT  seria  um  claro  exemplo  de  quanto  os  tribunais podem contribuir à mudança social.  

Com certeza, se fizermos uma leitura mais detalhada, em ambos os  casos,  as  demandas  se  resolveram  definitivamente  no  Congresso Nacional e não na justiça. Além disso, não é possível encontrar vínculos diretos  entre  essas  sentenças que  reconheciam direitos  e  a decisão do 

                                                                                                                                                Córdoba, por sua parte fez o mesmo em outubro, sendo a primeira universidade na Argentina  que  legislou  sobre  esse  assunto,  garantindo  o  respeito  à  identidade  de gênero autopercebida de  seus membros  (Ord. HCS 9/11),  e, posteriormente, viria a resolução 1181/2011 do Ministério de Seguridad de la Nación, estabelecendo que “Las personas trans deberán ser reconocidas por  la  identidad de género adecuada a su percepción, tanto en el trato personal como para cualquier tipo de trámite, comunicación o publicación al interior de las Fuerzas”.  

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Poder Legislativo. E mais, em quase todos os casos, as sentenças que se ditaram  fora  da  cidade  de  Buenos Aires  não  reconheciam  os  direitos que  o  movimento  demandava.  Assim  mesmo,  a  maior  parte  da imprensa  escrita  se  centrou  no  debate  parlamentar  e  houve, comparativamente,  uma  escassa  cobertura  dos  fatos  judiciais  (Sgró Ruata e Rabbia, 2011). Tudo isso nos leva a duvidar da efetividade que tiveram realmente as estratégias  judiciais empregadas pelo movimento e  quanto  essas  estratégias  trouxeram  para  suas  lutas  por reconhecimento.  

Ainda  que  não  possamos  concluir  que  o  movimento  pela diversidade  sexual  tenha  sido  exitoso  pelo  emprego  de  estratégias judiciais, é possível admitir que outros setores, aos quais denominamos “pró vida”  têm uma grande eficácia no momento de usar os  tribunais argentinos.  Esses  setores  se  caracterizam  por  serem  marcadamente conservadores,  estarem  relacionados  com  instituições  católicas, manterem uma concepção estática e tradicional da sexualidade (à qual vinculam exclusivamente com  seu papel  reprodutivo) e expressar que seu principal objetivo é a defesa da vida desde a concepção. Ademais, esses setores se caracterizam por ter utilizado tradicionalmente a arena judicial  para  impedir  o  avanço  em  matéria  de  sexualidade  e  (não) reprodução.  De  fato,  atualmente,  o  Ministerio  de  Salud  de  la  Nación enfrenta nove demandas judiciais somente contra o Programa Nacional de Salud Sexual y Procreación Responsable19 (Peñas Defagó, 2009). 

De todos os casos, o mais emblemático foi o “Portal de Belén”20. O caso  se  originou  quando  um  laboratório  farmacêutico  obteve  uma autorização do Ministerio de Salud de la Nación para produzir a pílula de anticoncepção hormonal de emergência (conhecida como “pílula do dia seguinte”). Essa autorização fez com que uma ONG chamada “Portal de Belén” se apresentasse diante da  justiça argumentando que  tais pílulas atentavam  contra  a  vida  das  crianças  por  nascer,  e  solicitou  que  se tirasse  sua  autorização  e  se  proibisse  sua  fabricação,  distribuição  e comercialização  em  todo país. A Corte Suprema  de  Justicia  de  la Nación aceitou a demanda  considerando que a vida humana  começa desde a                                                             19 Lei 25.673 20 Caso  “Portal  de  Belén Asociación Civil  sin  fines  de  lucro  c/Ministerio  de  Salud  y Acción Social de la Nación s/Amparo”. 

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concepção  e  tal  fármaco  devia  ser  considerado  abortivo  e,  em consequência, ilegal.  

Os  casos  não  se  esgotam  aqui.  Esses  grupos  obtiveram resoluções judiciais favoráveis que impediram as realizações de abortos permitidos  pela  lei,  o  ensino  de  educação  sexual  nas  escolas,  a distribuição  de  métodos  contraceptivos  em  hospitais  públicos  e, inclusive, a anulação dos primeiros casamentos entre pessoas do mesmo sexo  a  que  fizemos  referência  anteriormente  (Campana,  2011).  Se  a maioria desses casos  se caracteriza por utilizar o  sistema  judicial para impedir o avanço dos direitos, os tribunais em todo país se mostraram bastante receptivos a esse tipo de demanda, convertendo‐se em aliados importantes quando se disputam essas questões.  

O  caso  dos  avanços  alcançados  pelas  demandas  de  direitos LGBT  argentinos  e  a manutenção  de  uma  visão  negativa  do  aborto podem ser pensados dentro da dinâmica maior em que se enquadram essas  disputas  judiciais  no  período  democrático  recente:  uma rediscussão do que  é  a nação  argentina. De  forma paralela,  o mesmo tem  se  passado  no  Brasil,  no  qual  não  apenas  o  aborto  continua criminalizado como os direitos LGBT têm avançado mais timidamente. É perceptível que a partir do Governo Dilma Rousseff a agenda geral dos direitos humanos sofreu uma freada, o que o caso recente da eleição de um parlamentar da frente evangélica para a presidência da Comissão do Congresso sobre Direitos Humanos vem corroborar.  

De forma apenas parcial e controlada, o que temos assistido em terras brasileiras são algumas conquistas envolvendo nossa diversidade étnico‐cultural,  em  especial  o  reconhecimento  da  constitucionalidade das  cotas  nas  universidades  pelo  Supremo  Tribunal  Federal. Compreensivelmente, devido às diferentes  composições populacionais e às diferentes histórias, o caso argentino se desenvolve de maneira que demandas de reconhecimento e direitos se dão em uma sociedade que (ainda)  se  vê  de  forma  mais  homogênea  enquanto  no  Brasil  a problemática de uma sociedade multirracial se impõe.  

A despeito das diferenças, ambas as sociedades passam por um processo  democrático  de  reavaliação  do  que  se  compreende  como  a nação  argentina  ou  brasileira.  A  seguir  refletimos  preliminarmente como  essa  transformação  da  forma  como  compreendemos  quem  faz 

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parte  de  nossas  respectivas  nações  tem  se  dado  a  partir  de  um enquadramento multiculturalista,  o  qual  tem marcas  das  sociedades que  criaram  a noção de diversidade  e podem  limitar os  avanços  e  as conquistas em dois países do Sul Global.  4. Diversidade e diferenças: para onde caminham as nações? 

 Em  relação  ao  caso  argentino  e  suas  conquistas  recentes,  a 

sociedade brasileira e seu  legado cultural autoritário parece amortecer as  conquistas democráticas  recentes  em uma das  esferas  em  que  elas mais  poderiam  florescer.  Afinal,  como  já  observamos,  entre  as motivações que levam estudantes a optarem pelo Direito se encontram ideais  como  o  de  prestar  um  serviço  à  sociedade  e  aos  que  mais precisam. 

Trata‐se  de  algo  similar  ao  que  se  passa  em  outras  esferas profissionais e políticas que mantém esses compromissos vinculados a vertentes  de  reflexão  sobre  diversidade  e  multiculturalismo.  As melhores  das  intenções  terminam  por  traduzir  demandas  de transformação das  relações de poder  e diminuição das desigualdades sociais  em  discursos  que  apelam  à  retórica  da  tolerância  e  da incorporação  de  grupos  sociais  minoritários  sem  modificar  os privilégios dos socialmente majoritários, leia‐se, frequentemente não os mais  numerosos,  antes  os  que  detém  o  poder  regulador  da  ordem social.  

O  fato  acima  é  perceptível  no  contrassenso  de  chamar  as mulheres  ou  os  negros  de  minorais  em  uma  sociedade  como  a brasileira,  em  que  eles/as  são  metade  ou  mais  da  população.  Na verdade,  minorias,  diversidade  e  multiculturalismo  formam  um vocabulário  tímido  e  conservador  para  lidar  com  desigualdades  e injustiças. O termo diversidade é uma noção teórico‐política que surgiu na  América  do  Norte  em meio  à  preocupação  com  conflitos  étnico‐raciais,  e mesmo  culturais,  entre  a década de  80  e  a de  90 do  século passado. Nesse período, havia, por  exemplo, desde  conflitos  culturais entre  diferentes  comunidades  de  imigrantes  de  ex‐colônias  na Inglaterra,  na  França  e  na  Holanda  até,  na  América  do  Norte,  a rivalidade  entre  as  partes  de  fala  francesa  e  inglesa  no  Canadá  que 

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levou a uma tentativa de transformar o Quebec em um outro país. Nos Estados Unidos, no  início da década de 1990, entraram para a história episódios  de  conflitos  raciais  entre  negros  e  brancos  como  os  que  se passaram em Los Angeles.  

É neste contexto histórico de grande preocupação social que surge a  demanda  por  reflexões  acadêmicas  e  políticas  apaziguadoras  e conciliatórias. Em 1990, é lançado um texto fundamental sobre o tema, The Politics of Recognition [A política do reconhecimento] do filósofo canadense Charles Taylor. Nesse artigo há uma reflexão que serve de base para boa parte do  que  foi  produzido daí  por diante  sobre diversidade,  tanto  em termos  acadêmicos  como  na  forma  de  políticas  sociais.  A  noção  de diversidade busca compreender as demandas por respeito, das demandas por acesso a direitos por parte de pessoas que historicamente não tiveram esses direitos reconhecidos como negros, povos indígenas, homossexuais, mas de forma a que esses direitos particulares sejam reconhecidos dentro de um contexto institucional universalista. 

O universalismo se revela  intransigente e  incapaz de  lidar com transformações  históricas  e  sociais  em  que  o  apelo  à  igualdade  se sobrepõe  ao  reconhecimento  das  injustiças  sobre  o  qual  sua  tradição intelectual, social e  legal se assentou desde ao menos o final do século XVIII  (cf. Miskolci, 2010). O multiculturalismo, por sua vez, menos do que antagonizar com o universalismo busca atualizá‐lo para a realidade contemporânea,  em  particular  das  nações  mais  heterogêneas  ou  – melhor dizendo – mais abertas ao  reconhecimento de  sua diversidade interna. A despeito dos avanços, o multiculturalismo mantém intocado e inquestionado o olhar hegemônico sobre o qual assenta seus ideais, o qual pode ser claramente definido como os dos grupos estabelecidos e detentores do poder econômico, cultural e político desde a colonização.   

No  Brasil,  um  país  marcado  por  séculos  de  colonização exploratória e pela escravidão, a República foi criada em fins do XIX de forma a preservar os privilégios das classes dominantes brancas, ricas e letradas. Desde então predominou o discurso universalista e os  ideais de um liberalismo aparentemente fora de lugar, mas cuja lógica servia a 

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manter a imensa maioria da população sem cidadania plena.21 De forma simplificada, pode‐se dizer que apenas após o final da última ditadura militar  (1964‐1985)  é  que  surgiram  condições  políticas  abertas  a demandas de reconhecimento de diferenças anteriormente ignoradas ou violentamente negadas.  

A Assembleia Constituinte de meados da década de 1980  foi um marco ao  impulsionar debates democráticos sobre nossa sociedade e seu resultado, a Constituição de 1988, estabeleceu o marco institucional dentro do qual floresceriam as demandas por reconhecimento das diferenças em fins do século XX. Dentre elas, algumas das mais visíveis foram a demanda de  igualdade  de  direitos  por  parte  de  homossexuais,  a  luta  dos movimentos negros pelas ações afirmativas e de indígenas e quilombolas por demarcação de suas terras e reconhecimento de suas culturas.  

Na  Argentina,  a  situação  não  é  muito  diferente.  O  modelo agroexportador,  desenhado  no  final  do  século  XIX,  por  uma  elite capitalista e liberal quase não se modificou até hoje. E ainda que, formal e  legalmente,  a  cidadania  plena  se  alcançou  em  1947,  quando  se reconheceu  o  direito  ao  voto  feminino,  e  os movimentos  operários  e sindicais  estavam  bem  estabelecidos,  não  foi  antes  de  1983,  com  a reinstauração  da  democracia,  que  os  diversos  movimentos  sociais  e atores  coletivos  começaram  a  ter  participação  na  vida  política  e institucional do país.  

A  crescente  importância política  e  institucional que  começou a cobrar a sociedade civil na arena política  foi  juridicamente  respaldada pela  reforma  constitucional  de  1994.  Essa  reforma  implicou  uma importante transformação nas instituições do país, o reconhecimento de novos direitos e instrumentos  jurídicos tendentes a garantir o exercício efetivo deles. Mas, além disso, durante a década de 1990  se produziu uma importante retirada por parte do Estado de várias de suas funções tradicionais e, consequentemente, o surgimento de muitas organizações políticas e sociais  tendentes a suprir esse vazio. Dentro desse contexto político  e  institucional  favorável  é  que  floresceram  diversas  das demandas por reconhecimento de direitos e das diferenças.                                                              21  Sobre  essa  profícua  linha  de  reflexão  sobre  os  aparentes  paradoxos  brasileiros consulte a clássica discussão de Roberto Schwarz intitulada “As ideias fora de lugar” (2000). 

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Apenas dentro do que as pessoas de fala inglesa denominam de constitutional  law  e  que  podemos  traduzir  por  Estado  de  Direito podemos  debater  os  termos  de  convivência  em  uma  sociedade  que pretende um dia ser plenamente democrática. Muito além das também fundamentais  conquistas  das  eleições  diretas,  do  voto  universal,  a democracia é um construto histórico e cultural que depende do grau de liberdade de rediscussão dos limites da cidadania, sobretudo buscando ampliá‐la  para  aqueles  e  aquelas  que  não  têm  reconhecida  sua humanidade,  seus  direitos,  sua  igualdade  jurídica  e  social.  Apenas depois  dos  anos  oitenta  que  as  sociedades  brasileira  e  argentina passaram a viver dentro dessas condições, portanto há apenas menos de três décadas, um curto período dentro de nossa longa história.  

Quando  alguém  se  pergunta  por  que  ainda  vivemos  em  uma sociedade injusta e autoritária é só refletir sobre como nossa experiência democrática é recente e curta. No caso brasileiro, vinte e cinco anos são muito  pouco  tempo  dentro  desses  séculos  de  experiência  histórica colonial,  escravagista  e  mesmo  imperial  ou  republicana  dentro  dos quais  se  forjou  uma  sociedade  altamente  desigual  não  apenas  em termos  econômicos,  mas  também  em  outros  aspectos  não  menos importantes  como  raça/etnia,  gênero,  sexualidade,  etc.  De  qualquer forma,  o Brasil  conquistou muito neste  quarto de  século  e  avançou  a passos  largos em comparação com muitas outras nações com histórias similares. Ainda há muito o que fazer, mas vivemos dentro de um clima democrático profícuo para as  transformações que, quiçá, possam vir a nos  tornar uma  sociedade plenamente democrática e  com  justiça para todos/as.  

No caso argentino, os contínuos golpes de estado, a instabilidade das  instituições  políticas,  a  alternância  entre  regimes  ditatoriais  e democráticos, um modelo baseado na exportação de matérias agrícolas e  importação de manufaturas e a dependência econômica das grandes potências produziram um paulatino empobrecimento da maior parte da população, convertendo‐se também em um país altamente desigual.  

É em meio ao cenário inaugurado pelas novas Constituições e a rearticulação dos movimentos sociais na década de 1990 que começa a surgir  uma  nova  forma  de  compreensão  da  nação  e  do  acesso  à cidadania. As políticas criadas sob o rótulo da diversidade buscam fazer 

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frente  a  este  novo  cenário  cultural  e  político  tão  recente  quanto imprevisível. Não é de se estranhar que em sociedades marcadas pelo comando por elites temerosas com relação ao povo e à possibilidade de perda de  sua posição de  comando22 busquem,  ao menos  inicialmente, fazer frente às demandas sociais de reconhecimento das diferenças por meio  do  filtro  político  que  as  traduz  na  linguagem  da  tolerância  da diversidade.  

Tolerar é muito diferente de reconhecer alteridades, de valorizá‐las em sua especificidade e conviver com a diversidade também não quer dizer aceitá‐la. Em termos teóricos, diversidade é uma noção derivada de uma  concepção  estática  de  cultura  que  advoga  a  tolerância  dos “diferentes”,  mas  mantendo  a  cultura  dominante  intocada  por  esses “Outros”  sociais.  É  como  se  da  ignorância  ou  do  apagamento  das diferenças  sociais  passássemos  apenas  a  reconhecê‐las  recusando  nos relacionarmos/transformarmos  pelo  contato  com  elas.  A  retórica  da diversidade busca manter  intocada a cultura dominante criando apenas condições de tolerância para os diferentes, os estranhos, os “outros”. Seu resultado, o multiculturalismo, tende a criar condições sociais e políticas de gestão das diferenças ou, sendo mais direto e claro, o estabelecimento de  um  regime  atualizado  das  antigas  formas  de  segregação  que caracterizaram historicamente sociedades como a norte‐americana.  

A  retórica  da  diversidade  tem  forte  apelo,  e  não  apenas  no Brasil, na Argentina ou na esfera da política, pois apresenta o mundo como  podendo  ser  diverso  sem modificar  hierarquias  ou  relações  de poder.  Alguns  falam  de  diversidade  por  meio  do  termo multiculturalismo,  essa  utopia  euro‐norte‐americana  da  convivência com  imigrantes, não‐brancos, não‐heterossexuais, entre outros, a partir de  uma  perspectiva  que  mal  encobre  sua  origem  branca,  cristã, ocidental e masculina. Trata‐se de uma utopia dos nostálgicos do poder branco  colonial, na qual as diferenças  seriam  toleradas  sem modificar profundamente  os  valores  e  os  privilégios  dos  grupos  sociais dominantes.                                                              22 Sobre as origens históricas desse medo da elite brasileira em relação ao povo consulte Miskolci (2012) e Azevedo (1987). Azevedo mostra que o temor da Abolição originou o medo  dos  negros  no  Brasil, Miskolci  por  sua  vez  analisa  como  esse  temor  dos negros foi transformado em medo do povo após a proclamação da República. 

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Distinguir  entre diferença  e diversidade  exige  abandonar uma concepção normativa e fossilizada de sociedade. Se a diversidade apela para  uma  concepção  horizontalizada  de  relações  em  que  se  afasta  o conflito e a divergência em nome da conciliação, lidar com a diferença é algo  incomensurável,  mas  potencialmente  mais  democrático  e promissor.  Uma  perspectiva  informada  pelas  diferenças  pode questionar  e  até  modificar  hierarquias,  colocar  em  diálogo  os subalternizados com o hegemônico de  forma, quiçá, a mudar a ordem que mantém e reproduz desigualdades. 

Os discursos jurídicos e a formação em Direito ainda constituem um conjunto de técnicas que buscam fazer o Outro se enquadrar ou ser reconhecido  sem  modificar  as  concepções  hegemônicas  de  justiça  e igualdade. Ou seja, demandas de reconhecimento e  igualdade a partir da diferença tendem a ser enquadradas em um modelo legal autoritário, normativo,  violento.  Podemos  reavaliá‐lo  de  forma  que,  ao  invés  de homogeneizar ou alocar confortavelmente cada um em uma gaveta por meio  das  diferenças  possamos  modificá‐lo  e  atualizá‐lo  de  forma  a mudar  sua  histórica  conformação  aos  interesses  dos  grupos dominantes.  

Nas sábias palavras de Adriana Vianna:  “Falar de “direito à diferença” implica, em primeiro lugar, reconhecer a possibilidade de heterogeneidade cultural e social como algo legítimo em  universos  políticos  mais  amplos,  dotados  de  uma  suposta “unidade”,  como  se  dá  nos  Estados‐nação  modernos. Mais  do  que apreender a diferença como condição inerente aos grupos sociais, isso equivale  a  defendê‐la  como  algo  relevante  na  constituição  da especificidade de  indivíduos e coletividades que não desejam negá‐la para  serem  reconhecidos  como  participantes  legítimos  de  unidades abrangentes” (Vianna, 2012, p. 204‐205). 

   Percebe‐se como as demandas de reconhecimento e acolhimento das diferenças questionam a compreensão ainda corrente do que seria a nação brasileira ou mesmo a argentina. Esse construto cultural e legal, a nação,  pode  ser  repensado  e  adquirir  uma  acepção mais  inclusiva  e democrática.  A  noção  de  diversidade  busca  amortecer  as  críticas  e incorporar  de  forma  controlada  e/ou  subalterna  grupos  sociais  cuja 

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história se confunde com uma de luta constante contra o aniquilamento de suas singularidades. A perspectiva das diferenças tende a ser temida como  trazendo  consigo  necessariamente  o  conflito  e  a  discórdia, interpretação  dos  estabelecidos  sociais  que  deixa  de  reconhecer  as alteridades  internas  à  sociedade  brasileira  ou  argentina  como interlocutoras em nível de igualdade.  

As  diferenças  podem  incitar  o  debate,  fazer  com  que  as divergências  se  traduzam  em diálogos  e  negociações. Talvez  o maior desafio  de  nossas  democracias  seja  o  de  deixar  para  trás  os  temores elitistas  sobre  o  povo  ou  as  demandas  subalternas  como  ameaças  à ordem. Superar este medo dos grupos sociais  injustamente mantidos à margem do reconhecimento, do respeito e da  justiça exige modificar a histórica aversão de nossas elites políticas, intelectuais e econômicas às divergências ou ao  conflito. Em um  contexto plenamente democrático todos/as  –  e  especialmente  cada  um/a  –  tem  o  direito  de  divergir  ao mesmo  tempo  que  demanda  seu  reconhecimento  como  parte  da coletividade.  

É nesse contexto em que o papel da formação dos advogados e das  advogadas,  na Argentina  e  no  Brasil,  cumpre  um  papel  central. Concepções  jus‐naturalistas,  arcaicas,  positivistas  e  conservadoras continuam  dominando  o  currículo  quando  se  tratam  de  profissões jurídicas. Os estudantes são meros receptores passivos de discursos que não podem ser colocados em dúvida  tampouco discutir, são  formados sem  ferramentas  críticas  e,  em  sua maioria,  carecem de  compromisso social  e  ideal de  justiça. Desse modo,  se  formam operadores  jurídicos cujo papel é reproduzir a ordem existente.  

No  caso  argentino,  os/as  advogados/as  ativistas  têm  pouca margem  para  produzir  mudanças  significativas  no  que  se  refere  ao reconhecimento  de  direitos.  Nesse  mesmo  contexto,  aqueles/as advogados/as  que  se  oponham  ao  avanço  dos  direitos  encontram  na justiça um campo propício para tornar efetivas suas demandas. Cenário similar se encontra no Brasil, de forma que em ambos os países o direito e a mudança social parecem não se dar bem.  

Uma modificação na esfera formativa do Direito seria uma bem‐vinda  contribuição para  o  aprofundamento de nossas democracias. A transformação poderia começar pela  incorporação de uma perspectiva 

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educacional  dialógica,  o  incentivo  ao  debate  em  sala  de  aula  e  a incorporação  de  fontes  históricas  e  sociológicas  que  tensionam, mas também  enriquecem,  o  aprendizado  legal  por  meio  do  incentivo  à reflexão e a contextualização da prática profissional. Dessa maneira, o próprio Direito  passaria  a  incorporar  as  diferenças  reconhecendo  seu papel social não apenas de mantenedor da tradição ou do estabelecido, mas também de veículo de transformação social. 

A prática profissional pode adaptar‐se às demandas atuais por maior  acesso  à  justiça,  reconhecimento  de  diferenças  historicamente ignoradas ou negadas pela ordem  jurídica herdada de nosso passado autoritário. Em  suma,  o Direto pode manter  seu  compromisso  com  a ordem  sem  deixar  de  incorporar  as  demandas  que  apontam  para  a construção  de  uma  sociedade mais  justa,  a  qual  não  alcançará  seus ideais de igualdade sem o apoio da esfera jurídica.       Bibliografia  AZEVEDO,  Celia  Maria  Marinho  de.  Onda  negra,  medo  branco:  o  negro  no imaginário das elites do XIX. São Paulo, Paz e Terra, 1987. BERNSTEIN,  Basil.  “Class,  codes  and  control”.  Londres.  Routledge & Keegan Paul, 1977.  BONELLI,  Maria  da  Gloria.  Profissionalismo,  gênero  e  significados  da diferença entre  juízes e  juízas estaduais e federais. In: Contemporânea – Revista de  Sociologia  da  UFSCar.  São  Carlos,  Departamento  e  Programa  de  Pós‐Graduação em Sociologia, pp. 103‐123, 2011. BONELLI, Maria da Gloria; CUNHA, Luciana G.; OLIVEIRA, Fabiana L. De; SILVEIRA,  M.  Natália  B.  da.  Profissionalização  por  gênero  em  escritórios paulistas de advocacia In: Tempo Social‐ Revista de Sociologia da USP. São Paulo: PPGS‐USP, v. 20, n.1, pp. 265‐290, 2008.  BOHMER,  Martín  F.  “Sobre  la  inexistencia  del  derecho  de  interés  público  en Argentina”. En Revista  Jurídica de  la Universidad de Palermo. Buenos Aires, 1997.  BRÍGIDO,  Ana  María.  “Claves  teóricas  para  interpretar  el  proceso  de socialización  profesional  de  los  futuros  abogados”.  En  La  socialización  de  los estudiantes  de  abogacía.  Crónica  de  una metamorfosis.  Brígido, Ana María  et  al. Córdoba. Hispania Editorial, 2006a.  

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A construção de identidades homossexuais na advocacia paulista: uma abordagem sociológica de profissionalismo e diferença  

 Dafne Araújo1   Maria da Gloria Bonelli2 

  1. Introdução 

 Este  texto procura mostrar as  continuidades  e as mudanças que 

vêm ocorrendo na advocacia no que diz respeito à diversidade sexual3 no  exercício  profissional.  Introduzindo  novas  questões  para  reflexão acerca  da  homossexualidade,  identidade  e  diferença,  visa  ampliar  a perspectiva  binária  heterossexual  que  predomina  nos  estudos  sobre gênero  nas  profissões  jurídicas,  centrada  numa  dimensão  relacional restrita ao masculino e feminino. Complementando a investigação sobre profissionalismo e diferença no mundo do Direito, este estudo focaliza advogados e advogadas na cidade de São Paulo, que se identificam ou não  como  homoafetivos  e  que  trabalham  com  a  problemática  da diversidade, em especial na defesa de vítimas de discriminação sexual. 

A  abertura  para  a  diversidade  dentro  das  carreiras  jurídicas  é fruto de várias transformações que tiveram origem na década de 1990, no  Brasil.  Até  essa  data,  a  advocacia  era  exercida  em  escritórios  de pequeno e médio porte. Posteriormente, os escritórios foram crescendo de  acordo  com  o  cenário  da  globalização  e  efervescência  econômica. Essas grandes mudanças no mundo  jurídico  se deram principalmente pela privatização das  grandes  empresas públicas naquele  contexto. A demanda por  operadores(as) de direito  cresceu  e houve um  aumento                                                             1  Dafne  Araújo  é  mestranda  do  Programa  de  Pós‐Graduação  em  Sociologia,  da Universidade  Federal  de  São  Carlos  e  pesquisadora  do  grupo  Sociologia  das Profissões, da UFSCar.  

2  Maria  da  Gloria  Bonelli  é  professora  titular  do  Departamento  de  Sociologia  da Universidade Federal de São Carlos, onde coordena o grupo de pesquisa Sociologia das Profissões, que conta com apoio do CNPq.  

3  Mantivemos  o  uso  da  expressão  diversidade  sexual,  embora  trabalhemos  com  a abordagem da diferença, pela opção de manter a  forma como o grupo estudado  se nomeia.  

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significativo  na  oferta  de  cursos  superiores.  Como  consequência,  a participação feminina na carreira se ampliou.4  

Além da feminização das carreiras jurídicas, a visibilidade de gays no mercado de  trabalho  também é  fruto de  transformações culturais e comportamentais que  foram  atribuídas  às  situações de  trabalho  e,  ass do  im, reduziram as oposições às mudanças na forma tradicional de se exercer  a  profissão  no  Brasil.  Este  capítulo  discute  as  diferentes dinâmicas  que  ocorrem  na  situação  de  trabalho  dos  advogados  que assumem sua homossexualidade.  

 O  estudo  se  destinou  a  desenvolver  os  seguintes  aspectos:  a investigação  a  respeito  das  mudanças  ocorridas  entre  operadores  e operadoras do direito  sobre  a diversidade  sexual  e  a visibilidade dos homossexuais no mercado de trabalho jurídico; e como os entrevistados equacionam os possíveis conflitos entre a visibilidade homoafetiva e o ideário da neutralidade profissional. 

Para  compreender  melhor  essas  mudanças,  procurou‐se  captar como  se  dá  a  inserção  de  advogados  e  advogadas  no  mercado  de trabalho, articulando‐a com as abordagens  teóricas referentes a gênero que  fornecem  fundamentação  para  análise.  Essa  bibliografia  trata  as diferenças  na  profissionalização  segundo  o  gênero  que  se  desloca  do binarismo e do determinismo biológico. Dessa maneira, aponta como o gênero é produto de uma construção social que fixa identidades a partir de diferenças percebidas entre os sexos. 

A pesquisa de campo ocorreu em dois momentos: inicialmente, a equipe  do  projeto  Profissionalismo,  gênero  e  diferença  nas  carreiras jurídicas  entrevistou  quatorze  advogados  atuantes  em  escritórios  e sociedades de advogados da capital e do interior, abordando a questão da  diferença  de  gênero  e  sexualidade  na  prática  jurídica.  Depois focamos  exclusivamente  o  Grupo  de  Advogados  pela  Diversidade Sexual  – GADvS, na  cidade de São Paulo. Para  compor  esta parte do estudo,  realizamos  cinco  entrevistas,  sendo  três  com  advogados  gays militantes  da  causa  LGBT  (lésbicas,  gays,  bissexuais  e  transexuais); houve  também  o  acompanhamento  de  eventos  no  GADvS,  o levantamento de notícias e artigos através de redes sociais e do site da 

                                                            4 Bonelli, et. al., 2008. 

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Ordem  dos  Advogados  do  Brasil,  seccional  São  Paulo  (OAB  –  SP). Procuramos  delinear  e  comparar  suas  trajetórias  profissionais, compreendendo  as  formas  como  percebem  e  vivenciam  a homossexualidade na profissão.   2. O profissionalismo e as mudanças na advocacia brasileira 

 Ao  pensar  profissões,  articulamos  a  abordagem  de  Freidson 

(2001)  ‐  que  aponta  as  limitações  do  foco  nos  processos  de profissionalização e direciona a análise para o profissionalismo ‐ com a proposta  de  Evetts  (2011),  que  critica  a  tipologia  sugerida  por  esse autor,  incorporando a ela negociações de  significados que os próprios profissionais realizam em torno de tal conceito. 

 Para  Freidson5,  o  profissionalismo  é  uma  das  formas  de  se estabelecer relações no mundo do trabalho e concorre com outras duas formas pela  legitimação na sociedade: a de mercado e a burocrática. A forma de organização do  trabalho pelo profissionalismo é um modelo que  valoriza  o  saber  especializado  (o  saber  abstrato),  obtido  em instituição  de  ensino  superior.  É  acompanhada  da  regulação  de  seus membros  pelos  pares  através  do  credenciamento  e  do  controle  do ingresso  no  mercado,  sendo  longa  a  permanência  na  atividade.  A ideologia  que  sustenta  essa  terceira  lógica  é  a  da  especialização discricionária para a prestação de serviços de qualidade, da autonomia da expertise frente aos interesses específicos dos clientes, do Estado e do mercado. A ênfase na neutralidade do profissionalismo  fundamenta o privilégio dessa autonomia e do monopólio.  

Na  lógica  de  mercado,  o  treinamento  costuma  acontecer  no próprio  ambiente de  trabalho, havendo baixa permanência na mesma ocupação, já que o ingresso na atividade é aberto e a especialização é do cotidiano. A  ideologia  da  livre‐concorrência  prioriza  o  conhecimento generalizado ao especializado, a livre escolha do consumidor em vez do controle do mercado. A  lógica  burocrática  por  sua  vez  estrutura‐se  a partir  de  uma  relação  hierárquica  de  comando,  a  porta  de  entrada  é controlada pelo  setor de  recursos humanos,  sendo médio o  tempo de 

                                                            5 Freidson, 2001. 

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permanência  na  ocupação,  ascendendo‐se  no  interior  da  organização. Ideologicamente,  ela  se  embasada  na  valorização  do  caráter administrativo,  da  produtividade  da  especialização  mecânica  e  da eficiência. 

O  controle  do  ingresso  nas  atividades  exclusivas  da  profissão são garantidas por  jurisdições, que reservam esse mercado de trabalho especializado aos habilitados, protegendo‐o da concorrência dos leigos. Além  desse  fechamento,  a  construção  de  carreiras  controladas  pelos pares, que avaliam a expertise daqueles que progridem nesse percurso, é a  forma de  insular a profissão em  relação às  influências políticas. O insulamento  das  carreiras  jurídicas  públicas  dá  a  dimensão  da autonomia profissional e da independência das instituições da justiça. O fechamento  estabelece  quem  pode  tentar  ingressar  na  carreira, exigindo‐se requisitos para o recrutamento que antecedem a aprovação nos  concursos,  como  possuir  a  formação  superior  em  Direito,  a credencial da OAB, a experiência anterior na advocacia. O insulamento é  a  garantia  dos  membros  que  ingressaram  na  carreira  de  que  os critérios  de  promoção  serão  definidos  pelos  pares,  sem  ingerências externas.  Instituições  públicas  se  organizam  principalmente  na  forma burocrática  e  na  profissional.  O  avanço  desta  última  sobre  aquela depende das conquistas de seus membros nas relações com o Estado. 

Contemporaneamente, estudiosos das profissões têm questionado a persistência das fronteiras entre o tipo ocupacional, o burocrático e o do mercado,  com  o  surgimento  de  hibridismos  que  põe  em  xeque  essa terceira  lógica.  Evetts6  segue  nessa  direção,  detendo‐se  na  análise  das mudanças  que  vêm  ocorrendo  no  profissionalismo  devido  ao  trabalho dos profissionais nas grandes empresas e corporações internacionais. Ela identifica duas maneiras de se conceber o profissionalismo: como valor ocupacional  e  como  discurso.  Na  primeira  –  profissionalismo ocupacional – o apelo a esse valor é  iniciativa do próprio grupo, dando ênfase  às  relações  entre  os  pares,  à  construção  de  uma  identificação comum,  à  discricionariedade  e  a  confiança.  A  segunda  maneira  – profissionalismo organizacional – é  imposta de fora do grupo, vindo de 

                                                            6 Evetts, 2011, p.407. 

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cima, principalmente dos chefes e patrões; esta prioriza o gerencialismo, a burocracia, a padronização e o desempenho.  

Para  a  autora,  o  profissionalismo  como  valor  ocupacional  tem predominado na  literatura especializada, sendo visto como sistema de valores  normativo  e  como  ideologia. O  primeiro  sentido  reflete  uma visão  otimista  das  contribuições  do  profissionalismo  para  a  coesão  e ordem  social. O  segundo  sentido é  crítico desse primeiro, percebendo negativamente  o  profissionalismo  como  ideologia  que  sustenta  o fechamento  do  mercado  aos  não  credenciados  e  o  monopólio  do controle do trabalho.  

 Evetts7  aponta  o  surgimento  mais  recente  de  uma  terceira interpretação do profissionalismo como valor ocupacional: aquela que analisa  o  discurso  administrativo,  característico  do  profissionalismo organizacional,  que  visa  impulsionar  a  racionalização  e  a  disciplina, reorganizando  e  controlando  o  trabalho.  Tal  discurso  surge  fora  do grupo,  geralmente  nas  organizações  privadas  e  no  Estado descaracterizando o sentido da autonomia profissional e do controle do trabalho pelos pares. A  ênfase  recai no  controle dos praticantes pelos gerentes  e  supervisores,  na  competitividade  e  no  individualismo,  em substituição  às  relações  colegiadas  e  à  competição  jurisdicional  para garantir  o  monopólio  da  atividade.  No  Estado,  tal  profissionalismo adquire o sentido de eficiência administrativa e produtivismo. 

 Sobre esse apelo, Evetts considera que:   

“é  necessário  tentar  compreender  de  que  forma  o  profissionalismo como sistema normativo de valores e como ideologia agora está sendo crescentemente usado nas modernas organizações, e outras instituições e lugares de trabalho, como um mecanismo para facilitar e promover a mudança ocupacional.”8 

 O modelo híbrido  que  transpõe  fronteiras  foi  situado por Evetts 

(2011) como externo ao grupo profissional, vindo de cima. A abordagem da autora vincula os valores manifestos nos discursos do profissionalismo aos interesses conflitantes da profissão, do Estado e do mercado.  

                                                            7 Evetts, 2011, p.410. 8 Evetts, 2011, p.407. Tradução livre. 

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As  mudanças  que  vêm  ocorrendo  na  advocacia  brasileira  são acompanhadas  da  passagem  do  predomínio  do  profissionalismo  como valor  ocupacional  normativo,  quando  a  prática  jurídica  era  solo  ou partilhada por colegas, para o crescimento do discurso do profissionalismo organizacional, com a proximidade dos sócios das grandes sociedades de advogados em relação a seus clientes corporativos.   

A  advocacia diversificou  suas  formas de  atuação,  combinando  o exercício  liberal  em  escritórios  de  pequeno  porte  atendendo principalmente clientes individuais, com a expansão das médias e grandes sociedades de advogados, que estratificaram a profissão. Os sócios dessas firmas  contratam  advogados  associados  para  dar  conta  dos  serviços jurídicos demandados principalmente pelos clientes empresariais.  

Houve  também  o  aumento  expressivo  na  oferta  de  cursos  de ensino superior de direito, com a ampliação do número de  ingressantes no mercado de  trabalho. Em 2001, o Brasil  tinha 380 cursos de direito e em  2011  havia  saltado  para  1.210.  Em  julho  de  2013,  a OAB  nacional contava  com  773.908  advogados,  sendo  45.6%  de  mulheres.  A  maior oferta dos cursos superiores contribuiu para mudar as formas de exercer a profissão  no Brasil. Além de  representar um  expressivo  aumento da participação  feminina  na  carreira,  observou‐se  a  estratificação  do tamanho  dos  escritórios  e  da  posição  dos  advogados  neles,  seja  como sócios  ou  associados. O  crescimento das  sociedades de  advogados que lidavam  com  as  especializações  na  área  de  negócios  e  no  direito empresarial foi outra mudança observada na prática jurídica, a partir das grandes privatizações de  empresas públicas, no  final dos  anos  1990. A globalização  econômica  também  foi  responsável  por  parte  dessas mudanças, com a atuação direta dos Estados Unidos em transferências de modelos de instituições e adaptação de cultura jurídica.9 

Junto  com  a  clientela  corporativa  veio,  além  da  especialização criteriosa,  a  demanda  por  trabalhos  de  caráter  rotineiro  e  repetitivo, como as milhares de ações de consumidores contra grandes empresas de telefonia, bancos, entre outras. 

Portanto, a organização do  trabalho  jurídico  foi perdendo  suas características homogêneas como profissão: o predomínio da advocacia 

                                                            9 Bonelli, et. al., 2008. 

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solo  ou  em  escritórios  pequenos  combinou‐se  com  as  sociedades  de advogados médias e grandes; a advocacia generalista  foi diversificada pela expertise em áreas de elevada especialização e, pelo seu oposto , o trabalho jurídico repetitivo.  

Resultado  da  internacionalização  da  profissão,  o  modelo  de sociedades  de  advogados  trouxe  consigo  o  intercâmbio  de conhecimento  especializado  entre  países,  através  da  padronização transnacional  de  serviços  jurídicos.  Para  que  isso  seja  possível,  é necessário que o profissional domine línguas estrangeiras, em especial o inglês, além  ter experiência de cursos ou estágios no exterior. Um dos advogados  entrevistados  teve  a  oportunidade  de  fazer  um  curso  nos Estados Unidos e gerenciar a  filial de um escritório paulista em Nova York.  Na  mesma  sociedade  de  advogados  encontra‐se  a  elite  dos profissionais  internacionalizados  e  os  associados  que  assumem  as tarefas  desvalorizadas.  O  processo  de  estratificação  da  profissão  é acompanhado  de  sua  generificação,  com  homens  predominando  nas áreas  mais  especializadas  e  mulheres  concentradas  nos  trabalhos jurídicos rotineiros.  

A visibilidade do gênero na carreira pode, portanto, associar‐se à estratificação  do  grupo  e  às maiores  ou menores  chances  de  sucesso profissional. Por esta razão, conhecida nos escritórios, várias advogadas atuam para que as marcas de gênero não venham para o primeiro plano na prática profissional, procurando deixá‐las restrita ao âmbito privado. Se  esse padrão  é  conhecido para a  recepção à diferença de gênero na advocacia,  nos  perguntamos  neste  capítulo  como  a  homoafetividade repercute  nas  carreiras  dos  advogados?  Ela  produz  o  tipo  de estratificação  observada  para  as  mulheres?  Como  se  busca  dar visibilidade ou apagar as marcas da sexualidade na advocacia?    3. Conceituando gênero e sexualidade  

 Scott  (1990)  tratou  o  gênero  como  categoria  analítica  e 

desconstruiu  a  concepção  biologizada,  abordando  como  a  diferença sexual é socialmente construída. A segregação no mercado de trabalho é, para a autora, parte do processo de construção binária do gênero e das relações de poder que engendram. 

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Sendo assim, gênero não é característica essencial fixa e imutável do  ser. As  diferenças  anatômicas  foram  essencializadas  em  contextos históricos  e  culturais  específicos.  Segundo Butler  (2003),  a  cultura  é  a forma  de  distinguir  sexo  e  gênero.  A  autora  contrasta  sexo  como diferença  biológica  entre macho  e  fêmea,  e  gênero  como  construção social,  cultural  e  psicológica. A  partir  desse  pressuposto,  identidades fixas  e  essencializadas  em  “homens”  e  “mulheres”  puderam  ser discutidas. Desse modo, Butler  concebe o gênero  como gradiente que combina  masculino  e  feminino  com  heterossexualidade  e homossexualidade, sem oposições entre eles. Segundo ela, o gênero que o  corpo  expressa  é  resultado  de  atos  e  gestos  performáticos  que fabricam identidades normalizadas, imitadas ou parodiadas do mito da feminilidade e da masculinidade.  

Segundo Barbalho  (2008, p.46) “as pessoas  tendem a pensar de maneira  heteronormativa,  de  forma  que  ao  pensar  nas  identidades  a primeira noção de  classificação  é binária, ou  seja, homem ou mulher, masculino ou feminino.”. 

Não só o gênero é culturalmente construído, mas o sexo também, superando  o  binarismo  sexo‐natureza,  gênero‐cultura.  A  partir  dessa perspectiva,  gênero  deixa  de  se  referir  ao masculino  e  ao  feminino,  e passa  a  apresentar múltiplas  possibilidades  de  identificações  que  não estão essencializadas em  formas duais de diferença sexual e de gênero. Scott  (1990) criticou a visão hegemônica de que a dominação masculina se  justificava por diferenças biológicas,  entre homens e mulheres. Scott adota  uma  visão  foucaultiana  ao  encarar  que  o poder  circula  em uma perspectiva relacional, possibilitando assim o acesso feminino ao poder, mesmo que este seja desigual ao dos homens. 

Para  Butler  (2003),  tanto  o  sexo  (que  se  refere  às  diferenças biológicas),  quanto  o  gênero  (que  envolve  as  diferenças  culturais, sociais, e psicológicas) são produzidos culturalmente e historicamente. De acordo com essa visão, o gênero deixa de se limitar ao masculino e ao  feminino,  possibilitando  assim  diversas  identificações  que  não seguem necessariamente o padrão dual de diferenciação sexual. 

Essa  autora  ainda  afirma  que  o  gênero  carrega  consigo  as relações de poder  que  produzem  o  efeito de um  sexo pré‐discursivo, este  que  é  construído  culturalmente.  Essas  relações  sociais  de  poder 

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desenvolvem‐se  em  contextos  específicos,  não  sendo  permanentes. A discriminação e a desigualdade entre os sexos e os gêneros resultam de relações de dominação que podem ser mudadas.  

O  preconceito  em  relação  à  diversidade  sexual  é  uma  dessas relações de dominação. A percepção da homossexualidade no ambiente de  trabalho das  carreiras  jurídicas desnuda os  limites da neutralidade da  expertise  e  do  mérito  nesta  dimensão.  A  ideologia  do profissionalismo  carrega  consigo  o  apagamento  dos  processos  de construção social das diferenças de gênero, que são realimentados pela essencialização à medida que elas são usadas para reafirmar qualidades profissionais femininas e masculinas.  

A visibilidade da diferença  sexual está engendrada à  lógica do armário abordada por Segdwick (1990), que se impõe ao homossexual e também  aos  heterossexuais  já  que  os  profissionais,  em  sua maioria, declaram não ter preconceito em relação à diferença sexual, mas ela tem de  ser  mantida  sob  discrição,  para  não  interferir  na  carreira.  Para Segdwick, todos, homens e mulheres, hetero ou homo‐orientados, estão dispostos dentro dos mesmos processos sociais de regulação de nossas vidas a partir da sexualidade. 

Apesar  disso,  hoje  é  possível  perceber  maior  visibilidade homoafetiva nas carreiras jurídicas. Isso decorre de mudanças culturais que  se  processam  nas  grandes  firmas  de  advocacia  globalizadas  e  se refletem  nas  sociedades  de  advogados  brasileiras.  Elas  se  empenham em ter como modelo as sociedades norte‐americanas, visando ampliar a circulação  internacional  e  as  parcerias  nessas  redes,  que  tratam  as políticas de diversidade como diferencial positivo.  

A  diversidade  sexual  vem  sendo  discutida  no  âmbito  dos direitos  como  reconhecimento  à  diferença  nas  identidades  pessoais  e sociais.  O  olhar  crítico  sobre  a  construção  heteronormativa  permite perceber as barreiras à expressão livre da identificação homoafetiva e a produção de desigualdades no exercício do desejo e da sexualidade.  

 4. A identidade homosexual na profissão do(a) advogado(a) 

 Em  22  de março  de  2011  foi  criada,  no  âmbito  do  Conselho 

Federal  da  OAB,  a  Comissão  da  Diversidade  Sexual  e  Combate  à 

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Homofobia,  destinada  a  discutir  e  coordenar  as matérias,  projetos  e ações da entidade nessa área. Representando uma importante mudança no cenário  jurídico nacional, o apoio da comunidade  jurídica tornou‐se importante  para  a  visibilidade de  homossexuais  em  uma  profissão  já consolidada. 

As conquistas dos homossexuais que estão sendo concretizadas nos tribunais, têm contado com o apoio da comunidade de advogados que vem se mobilizando para defender os direitos homoafetivos. Em 28 de fevereiro de 2010, a Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo10 fechou parceria com o Escritório Lessi e Advogados Associados. O acordo visa atender de forma gratuita os associados da APOLGBT e demais  pessoas  que  procuram  pelos  serviços  da  associação.  Segundo notícias  veiculadas  na  época,  a  iniciativa  partiu  do  presidente  do escritório, Pedro Lessi, que representa vários casos de discriminação por orientação sexual. Para ele, o respeito à orientação sexual é um direito fundamental  e  todo  indivíduo  deve  ter  esse  direito  garantido  nos tribunais,  já  que  não  são  garantidos  pelo  Legislativo.  Desde  então, desde  questões  contratuais  menores,  como  desrespeito  ao  uso  da logomarca da APOLGBT,  até questões de  repercussão  nacional,  como ofensas públicas à população LGBT, podem ser objeto de representação jurídica. 

Inicialmente, a pesquisa teve a intenção de articular sexualidade e  profissionalismo,  partindo  da  hipótese  de  que  operadores  e operadoras do direito não revelassem a homossexualidade, mantendo‐a na  intimidade  sob a  lógica oculta do armário,  com discrição para não afetar  de  forma  negativa  sua  carreira.  Priorizariam  assim  sua identificação  profissional  perante  sua  identificação  sexual. Entrevistamos  alguns  advogados gays que  são bem  sucedidos na  sua atuação em sociedades de advogados, e observamos a confirmação do apagamento  da  visibilidade  da  sexualidade,  para  superar  barreiras  à 

                                                            10A Associação  da  Parada  do Orgulho  LGBT  de  São  Paulo é  uma  entidade  civil,  de direito privado, sem fins lucrativos, fundada em 1º de fevereiro de 1999, tendo como missão a garantia da cidadania de  lésbicas, gays, bissexuais,  travestis e  transexuais, assim como a promoção da visibilidade e autoestima desta população e a educação da sociedade para o  fim da discriminação, preconceito e violência homofóbica.  (Fonte: http://www.paradasp.org.br/ associacao.php) 

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progressão.  No  entanto,  além  desse  tipo  de  conduta,  o  trabalho  de campo permitiu  localizar outro  comportamento entre os profissionais. Foi  possível  encontrar  advogados  e  advogadas  que  assumissem publicamente sua homossexualidade, que se apresentam como  figuras públicas do Direito, e como militantes da causa homoafetiva na cidade de São Paulo e em outras grandes cidades do país. A pesquisa de campo permitiu tomar conhecimento de um grupo de profissionais do Direito que,  além  de  reconhecer  publicamente  sua  identidade  homossexual, luta  por  direitos  e  trabalha  com  causas  relacionadas  à  sexualidade contra‐hegemônica. Eles  também  trabalham com clientes empresariais, nas  sociedades  de  advogados,  nos  escritórios  que  lidam  com  outras especialidades, além da defesa contra a discriminação  sexual. Trata‐se de um grupo ativo nas causas acerca do direito homoafetivo e para o respeito de operadores e operadoras do direito homossexuais: o Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual. 

Formado  por  operadores  do  Direito,  o  Grupo  de  Advogados pela Diversidade  Sexual  – GADvS  é  uma  entidade  privada  que  tem como objetivo principal garantir os direitos de cidadania da população homossexual. Além de advogados  e advogadas, o grupo  conta  com a atuação  de  profissionais  de  diversas  áreas,  numa  perspectiva multidisciplinar  na  luta  pelos  direitos  LGBTs.  Com  dois  anos  de existência,  o  grupo  luta  em  prol  do  respeito  à  diversidade  sexual, juntamente  com  a  atuação  no  judiciário,  e  é  referência  em  casos  de sucesso. Seus membros se sentem preparados para dar suporte jurídico e  orientação  a  qualquer  cidadão,  principalmente  os  de  orientação homoafetiva.  

Para eles, o desafio é declarar e tornar legítimo o direito de gays ao  casamento  e  às  uniões  estáveis,  além  do  reconhecimento  que  a homofobia é uma conduta criminosa, assim como o  racismo. O grupo destaca  a  premissa  básica  de  que  todos  são  iguais  perante  a  lei,  se colocando  o  objetivo  de  reduzir  a  violência  moral  e  física  que  a população LGBT vem  sofrendo. Para o diretor do GADvS  (advogado, gay, militante da  causa LGBT), o  avanço dos direitos da  comunidade gay não é um modismo, mas um processo histórico. Apesar de alguns projetos de  leis  tramitarem por mais de uma década  (como o  caso de 

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parceria  civil  e  criminalização  de  homofobia),  ainda  não  existem  leis federais protetivas. 

Os  valores  normativos  predominante  no  profissionalismo enfatizam  a  neutralidade  da  expertise, mas  a  agenda  da  diversidade sexual que é encampada pelo GADvS dá visibilidade a essa diferença.  As  identificações  profissionais,  embora  coletivas  aos  advogados,  não são fixas e vivenciadas da mesma forma pelos pares. As interseções com as marcas das diferenças pluralizam esses processos identitários, podem ganhar ou não visibilidade. As lutas simbólicas em torno desse ideário profissional foram observadas nas entrevistas realizadas pela equipe da pesquisa.  Encontramos  advogados  e  advogadas  que  foram  bastante firmes em se apresentar como pessoas não preconceituosas em relação ao profissional gay, mas pouco dispostas a aceitar a visibilidade dessa diferença, como na fala a seguir:  

 “O  [nome do advogado] está saindo do armário agora, ele ainda não falou  para  nós,  isso  não  é  problema,  a  atitude  dele  tem  que  ser diferente,  o  problema  dele  são  os  pais,  desde  a  contratação  eu  já percebi. (...) Não;  isso não é problema não, a atitude dele tem que ser diferente, desde  que  não  ofenda  ninguém,  ele  só  não pode  é  chegar aqui de Maria Chiquinha etc, etc, porque não condiz com o ambiente, ele tem que se comportar de acordo com o ambiente. Se eu chego num ambiente gls eu não posso ficar assim, né?(fez trejeitos com as mãos), como  uma  pessoa  homossexual  chega  num  ambiente  ele  tem  que respeitar o ambiente onde  ele  está, um  casal que vai num boteco  ele não vai ficar se agarrando, se beijando, não vai ficar sentando no colo do  outro  em  público,  isso  depende  da  postura  da  pessoa,  não  da opção.”  (Joyce,  advogada  sócia,  escritório  familiar  no  interior,  46‐50 anos, divorciada, com filhos)  

  Alguns dos advogados gays entrevistados também reforçaram a neutralidade  do  profissionalismo,  para  evitar  que  as  marcas  da homoafetividade abalem o status conquistado na carreira. A passagem abaixo aborda a questão da “postura profissional neutra”, na visão de um deles.  

 “Eu acho o seguinte, a questão do trejeito, de ser afeminado ou não, eu acho que  isso  implica numa postura de confiança que eu acho que o 

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senso geral da  sociedade  tem, por  exemplo,  eu acho que você vai  se sentir  mais  confortável  sendo  atendido  por  um  profissional  se  ele mantém  uma  linha  reta,  não  é  pra  ser  o machão,  grosseiro,  aquele típico macho, entendeu, homem, e  também não é pra ser uma pessoa que  é  homem  e  quer  ser mulher  entendeu.  Eu  acho  que  isso  acaba criando  um  problema  de,  talvez  confiabilidade  no  profissional,  a pessoa acha meio estranho. Eu não tenho preconceito com isso, eu acho que tanto faz, mas eu acho que em geral as pessoas têm essa percepção. (...) Eu acho que pra parar  com questão de preconceito  eu acho que  tem que parar de participar às pessoas se é gay, se é  lésbica, se é  isso ou aquele  outro.  Você  não  é  nada,  você  é  você,  uma  pessoa,  um  ser humano que trabalha. Pronto, ponto final. ” (Jonas, advogado sócio de renda, 26‐30 anos, solteiro, sem filhos) 

   O  apagamento  das  marcas  visíveis  da  diferença  quanto  à sexualidade  realizada por esse entrevistado é acompanhado da ênfase na  identificação  com  a profissão, que  se  sobrepõe  ao pertencimento  a outra  comunidade,  como  a  homoafetiva.  O  profissionalismo  repõe  o status  social negado às pessoas gays na sociedade e  traz  recompensas através do reconhecimento obtido pelo domínio da expertise.    Rumens e Kerfoot  (2009) analisaram homens gays no  trabalho em organizações receptivas à inclusão. Eles sugerem que mesmo nesses ambientes,  os  homens  gays  atuam  sobre  o  self  para  se  identificarem como profissionais, vivendo empoderamento. Dessa forma, não deixam de  ser  afetados  pelas  normas  que  tratam  a  sexualidade  e  o profissionalismo como polos opostos. 

Em  contraste  com  essa  forma  de  lidar  com  a  diferença  na profissão,  temos  entre  os  profissionais  do  GADvS  aqueles  que vivenciam a  interseção entre a  identificação profissional e homoafetiva de forma pública. Nosso interesse neste aspecto é registrar as dinâmicas nas situações de trabalho dos advogados que assumem abertamente sua sexualidade  em  comparação  com  aqueles  que  não  o  fazem,  ou  que entendem  que  a  sexualidade  é  assunto  da  intimidade,  restrito  ao privado.  

 As lutas concorrenciais entre o apagamento da diferença, com a política do armário e a visibilidade da identificação profissional e sexual 

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apontam oportunidades de mudanças nessas relações, ao se questionar a hegemonia da neutralidade.  Jovens advogados  formados em 2009  já presenciavam em suas universidades maior abertura para a diversidade sexual, seja na carreira, seja no preparo para casos e clientes. Segundo o advogado João, a faculdade em que cursou direito sempre foi ativa na defesa da não discriminação sexual.  

 ʺhavendo  inclusive  cadeiras  de  Psicologia  e  Sociologia  dentro  do Direito, visando promover debates para que a comunidade aceitasse os ʺgaysʺ.  Tive  até mesmo  uma  professora  homossexual  não  assumida, mas que levantava a bandeira. Notei receio com tal tema somente com relação àqueles alunos mais velhos, de outra época. Os mais jovens têm aceitado  a  diversidade  sexual  sem  problemasʺ.  (João,  advogado,  24 anos, solteiro, gay não assumido)  Advogados  do  GADvS  também  compartilham  da  opinião  e 

afirmam  que  existe  hoje  a  possibilidade  de  assumir  e  afirmar  a identidade gay  já na faculdade. Para eles, a geração de advogados que se  formou  na  década  de  90,  e  hoje  tem  entre  35  e  40  anos,  só  pode assumir  sua  sexualidade  após  chegar  ao  topo  da  carreira.  Assim aconteceu com Joaquim, que só “saiu do armário” após se tornar sócio de um importante escritório de São Paulo.  

Para o entrevistado Jorge, estudante de direito, existe a  

“certeza que  está havendo uma  abertura para mais homossexuais  se assumirem,  não  que  deixou  de  existir  a  discriminação,  porém  a abertura para se falar no tema e se assumir atualmente está sendo mais aceita, na faculdade de Direito existe muitos homossexuais assumidos, na minha própria  faculdade  existe uma  trans  que  está  no  3º  ano da faculdade, o fator formal na formação do Bacharel em Direito está bem mais  informal,  tal  informalidade  possibilita  o  que  chamamos  de diversidade ser mais perceptível e difundida, o que ajuda também com a  extinção  de  estereótipos,  como  de  que  todo  homossexual  é cabeleireiro. Grupos de diversidade sexual estão presentes em apenas Universidades Públicas (pelo menos é até onde sei), não existe (ou não conheço)  um  grupo  dentro  de  uma  faculdade  de  Direito especificamente, mais  sim grupos  interdisciplinares”.  (Jorge,  20 anos, estudante de direito, solteiro, gay não assumido) 

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Em contrapartida, João vê como algo negativo para a carreira de um  advogado  caso  ele,  segundo  suas  palavras,  ‘levante  a  bandeira’  e demonstre  a  sua  opção  sexual  para  a  sociedade.  Diz  não  ser preconceituoso, mas não vê motivos para que  a  sexualidade  e a opção sexual de cada um sejam declaradas e divulgadas, visto que não necessita disso para exercer sua profissão, e acrescenta: ʺé algo que deve ser mais fechado,  não  necessitando  de  publicização  até  mesmo  para  evitar preconceitos. Há  colegas  gays  que  não  divulgam  sua  opção  sexual,  e apenas exercem suas profissões como se heterossexuais fossem.ʺ  

No  que  se  refere  ao  ambiente  de  trabalho  e  a  relação  com  os clientes, João acredita que  

 ʺA marca da sexualidade não implica na não escolha do advogado pelo cliente,  entretanto,  desde  que  este  advogado  se  porte  como  um advogado  e  não  como  um  “advogado  gay”.  Quero  dizer,  ele  não precisa a todo instante demonstrar sua opção sexual e fazer questão de que  ela  seja  exposta,  pois  neste  caso  enfrentará  preconceito  de  uma sociedade  que  ainda  não  está  preparada  para  enfrentar  tal  tipo  de situação.ʺ (João, advogado, 24 anos, solteiro, gay não assumido)  A  ideia de que o advogado,  independente de  sua  sexualidade, 

deve  se  portar  como  “macho”  está  presente  em  todas  as  falas desses entrevistados. Tanto para eles quanto para outros advogados e outras advogadas  entrevistados,  é  necessário  que  se mantenha  uma  postura profissional  para  não  sofrer  preconceitos  na  carreira.  Ao  questionar como seria  tal postura, as respostas eram sempre em relação ao modo de  se  vestir,  de  falar,  de  andar. O  ideal  é  que  um  advogado  que  se assuma gay não seja afeminado.  

Para  Jorge,  o  advogado  homossexual  tem  grandes  chances  de subir  na  carreira,  desde  que  seja  ou  pareça  homem  hetero,  branco, casado e pai de  família. O homossexual  terá sua ascensão profissional garantida  ao  não  se mostrar  afeminado.  Além  disso,  afirma  que  ser homem  no  mundo  jurídico  é  fácil:  “a  maior  facilidade  em  relação homem versus mulher seria a de que no mundo jurídico, os homens são predominantes, mais não  conheço mulheres  que  tiveram dificuldades em subir na sua carreira profissional”. No entanto, existe a ideia de que aqueles  que  se  assumem  gays  teriam  que  se  qualificar mais  que  os 

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outros. Assim como as mulheres, que acreditam estar em desvantagem na  carreira  em  relação  aos  homens,  os  advogados  que  assumem  sua opção  sexual  estudam  e  se  dedicam mais  ao  trabalho  para  não  dar brechas para a discriminação.  

 “Eu acho que a minha opção sexual sempre me fez dar mais duro, mais duro  porque  eu  acho  que  o medo de  ser discriminado  e  tudo mais, você  acaba buscando uma proteção para  seu  sucesso profissional. Se você  tem  sucesso profissional  é mais difícil  a pessoa  sobrepujar  isso com você” (Joaquim, advogado, 38 anos, sócio de um escritório e gay assumido). 

 O  que  nossa  pesquisa  indica  é  que  não  podemos  falar  de 

profissionalismo  como  se  seu  sentido  fosse  único  e  coeso,  já  que  a neutralidade  e  o  apagamento  das  diferenças  estão  sujeitos  a questionamentos,  bem  como  a  reafirmações.  A  visibilidade  da homoafetividade desses profissionais é algo que está sendo construído e produzido  historicamente.  Tais  mudanças  estão  intimamente relacionadas à  fragmentação da ordem  tradicional que deu origem ao modelo  das  profissões  no  século  XIX,  e  é  hoje  acompanhada  da pluralização  dos  valores  na  sociedade  contemporânea,  como  também dos embates em torno do ideário do profissionalismo.  

Tal  como  ocorre  com  o  gênero,  os papéis  sexuais  são  forjados socialmente e, por esse motivo, criam‐se expectativas e comportamentos apropriados para homens e mulheres. Quando tratamos do ambiente de trabalho, que se construiu em contraste com o da casa, espera‐se uma conduta que demarque  fronteiras difíceis de serem mantidas, como as do jogo das identidades no público e no privado. O profissionalismo foi um  aliado  para  se  constituir  essas  fronteiras  fixas,  mas  elas  estão sujeitas a deslocamentos e às disputas discursivas sobre seu significado.  

O  depoimento  abaixo  revela  os  custos  do  cruzamento  das fronteiras entre público e privado na visibilidade da homossexualidade. As  diferenças  de  comportamento,  a  forma  de  se  vestir,  de  falar produzem estereótipos que estigmatizam o profissional no ambiente de trabalho com os pares e no relacionamento com clientes. 

 

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Eu acho que talvez pelo fato dele ser um pouco mais afeminado, que pode  ter originado esse  tipo de preconceito,  isso é uma  coisa que eu realmente vejo nas pessoas, eu acho que hoje em dia a opção sexual é muito menos tabu, mas ela é menos tabu com as pessoas que não tem os trejeitos, marcas visíveis, o que é muito triste. E qual é o problema? Eu  realmente  me  considero  uma  pessoa  totalmente  desprovida  de preconceito. (Joaquim, advogado, 38 anos, sócio de um escritório e gay assumido)  Como  os  estereótipos  produzem  padrões  de  comportamento 

homossexual  no  qual  o  homem  age  de  forma  mais  afeminada  e  a mulher mais masculinizada, quando uma advogada é considerada mais dura  e  firme  em  seu  trabalho,  rumores  acerca  da  sua  sexualidade entram em pautas veladas nos corredores dos escritórios de advocacia.  

A hipótese inicial a respeito da maior abertura na cidade de São Paulo  foi  confirmada pelos  entrevistados. Quando perguntados  se  há diferença entre a visibilidade homoafetiva em São Paulo e em cidades do interior ou outras regiões do país: 

 “Na cidade onde moro, que é São Paulo, a abertura profissional para profissionais homossexuais é bem aceita, porém em cidades menores existe um  tabu muito  grande.”  (Jorge,  20  anos,  estudante de direito, solteiro, gay não assumido)  “Por estarmos em São Paulo, eu acho que é um  lugar onde você  tem mais  contato  em  relação  a  isso,  as pessoas  são mais  abertas pra  esse tipo de  coisa”  (Joaquim, advogado, 38 anos,  sócio de um escritório e gay assumido).  

5. A diferença sexual e identificação homossexual no Brasil   

Os  advogados  homossexuais  dizem  que  não  devem  se  portar como  tal, mas  existe  uma  única maneira  de  representar  e  praticar  a homossexualidade? O  que  é  ser  um  homossexual  na  carreira? O  que isso representa? Quais são as implicações em assumir tal identidade na profissão? Abordaremos agora essas questões. 

Os movimentos  homossexuais  surgiram  no  Brasil  no  final  da década de 1970. De acordo com Fry e Macrae  (1983), em um pequeno ensaio  sobre  a  história  da  construção  médico‐legal  da 

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homossexualidade  e  as  suas manifestações  no  Brasil,  os movimentos sexuais  surgiram  com  o  propósito  de  repensar  a  identidade homossexual e combater as manifestações do preconceito. Além disso, proporcionou maior visibilidade da homossexualidade para o público como um  todo. A  imprensa passou a dedicar mais espaço ao assunto, além da  televisão  que,  apesar de  representar uma  identidade  sempre caricata para o homossexual, tornou possível a visibilidade social desse grupo de pessoas que antes viviam no anonimato e nos guetos sociais.  

Tais mudanças  criaram  condições  sociais mais  favoráveis  para que profissionais viessem a assumir  sua homossexualidade dentro do ambiente  de  trabalho. Não  é  possível  dizer  que  a  homossexualidade aumentou, não existem dados que  comprovem  isso, mas os processos de luta para a redução do estigma social garantiram maior visibilidade aos homossexuais do que antes disso.  

A  visibilidade  da  identidade  homoafetiva  entre  operadores  e operadoras de direito se ampliou, e é possível verificar essas mudanças no  cenário  atual  da  cidade  de  São  Paulo.  Importante  ressaltar  nessa análise,  os  advogados  entrevistados  e  também  aqueles  com  os  quais pudemos entrar em contato, apesar de ocuparem um  lugar subalterno, enquanto  homossexuais  são  parte  dos  segmentos  favorecidos  da população, muitos deles em posições dominantes na hierarquia social.  

Além  disso,  como  vimos  acima,  no  mundo  do  Direito,  a ideologia predominante no profissionalismo é baseada na neutralidade afetiva.  Dessa  maneira,  aqueles  que  se  enquadram  no  perfil  do profissional sério, competente e que se adequam às construções sociais de  feminino  e  masculino  tendem  a  prevalecer  diante  daqueles  que fogem do padrão.  

 “Os que são suspeitos de não virem a se dedicar totalmente à carreira (cuidados com a família), ou aqueles que corporificam uma imagem de si  percebida  como  a  antítese  do  neutro  (a  sexualidade  visível,  a emotividade,  a  politização,  o  trajar  diferente  do  ‘terno‐terninho’) perdem a pressuposição de sua competência, atestada pelo mérito da proveniência  do  diploma,  da  credencial  da  OAB  e  do  currículo.” (Bonelli e Barbalho, 2008, p.286)  

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Como os profissionais do direito  lidam então com a  identidade profissional  e  a  identidade  homoafetiva?  Elas  entram  em  conflito? Segundo Hall (2003), resultado de mudanças estruturais e institucionais, o  sujeito  passa  a  ser  composto  de  várias  identidades,  sendo  elas algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. A  identidade  torna‐se algo em contínua transformação, definida histórica e culturalmente, não mais  biologicamente.  As  várias  identidades  não  unificadas  no  self resultam em uma identificação constantemente deslocada.  

A contemporaneidade apresenta múltiplas identidades culturais com  as  quais  o  indivíduo pode  se  identificar,  fazendo‐o possuir uma multiplicidade  de  identidades  possíveis.  Hall  argumenta  que  a modernidade  tardia pode  ser caracterizada pela diferença que produz múltiplas posições de sujeitos, isto é, diferentes identidades.  

Se antes dessa modernidade o que prevalecia eram as identidades de  classe  e/ou  gênero,  agora  as  categorias  gênero,  sexualidade,  raça, classe,  nacionalidade,  entre  outras,  que  podem  entrar  em  conflito, constituem uma totalidade de identidades através das narrativas do self. A  representação  torna‐se  elemento  importante  para  que  identidades formadas e transformadas culturalmente possam se cruzar. 

No  final  da  década  de  1990,  o  debate mudou  de  direção  e  os teóricos passaram a aludir suas análises à emergência de categorias que se  referiam  à multiplicidade  de  diferenciações  que  se  articulavam  ao gênero. Tais categorias são chamadas de categorias de articulação e de interseccionalidades. Os questionamentos passaram a ser realizados em torno  do  deslocamento  nos  referenciais  teóricos  utilizados  e  de abordagens desconstrutivistas.  

Se  os  indivíduos  são  formados  por  diversas  noções  de identidades,  é  necessário mais  de  uma  categoria  para  compreendê‐lo como  um  todo.  Interseccionalidades  e/ou  categorias  de  articulação oferecem  ferramentas  analíticas para  a  compreensão  e  articulação das múltiplas diferenças e desigualdades.  

 “É importante destacar que já não se trata da diferença sexual, nem da relação entre gênero e raça ou gênero e sexualidade, mas da diferença, em  sentido  amplo  para  dar  cabo  às  interações  entre  possíveis diferenças presentes em contextos específicos.” (Piscitelli, 2008, p.266) 

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Ao debater as categorias de articulação e  intersseccionalidades, Piscitelli critica as identidades fixas dentro das teorias de gênero. Para a autora, o gênero deve ser problematizado e não mais visto sob modelos teóricos totalizantes e universalizantes.  

Piscitelli  (2008),  assim  como  Avtar  Brah  rejeita  o  conceito  de patriarcado  como  algo  universal.  Brah  (2006)  abordou  o  debate  da articulação entre gênero,  raça, etnicidade e sexualidade, no  feminismo negro, na  Inglaterra. A proposta de Brah era  trabalhar diferença como categoria  analítica,  pensando  na  diferença  como  experiência,  como relação social, como subjetividade e como identidade. 

 “A autora afirma que há discursos que apresentam diferenças, como o racismo, que traçam limites fixos. Entretanto, outras diferenças podem ser  apresentadas  como  relacionais,  contingentes.  Como  a  diferença nem  sempre  é  um  marcador  de  hierarquia  nem  de  opressão,  uma pergunta  a  ser  constantemente  feita  é  se  a  diferença  remete  à desigualdade,  opressão,  exploração. Ou,  ao  contrário,  se  a  diferença remete  a  igualitarismo,  diversidade,  ou  a  formas  democráticas  de agência política”. (Piscitelli, 2008, p.269)  Essa  linha  de  pensamento  que  intersecciona  as  diferenciações, 

pode ser usada para se pensar em como as construções de diferença e distribuições de poder contribuem para o posicionamento desigual dos sujeitos  no  âmbito  global.  Para  melhor  compreensão,  é  necessário pensar como Scott (1998) em que os sujeitos são constituídos mediante a experiência. Por esse motivo, a sua identidade vai estar relacionada com o  lugar  e  tempo  em  que  se  situa.  Uma  mulher  brasileira,  branca, estudante e de  classe média é vista de maneira diferente dependendo do país em que se situa. Na Europa pode ser vista como migrante, latina e outras posições que não teria se estivesse em seu país de origem. 

As identidades são construídas dentro dos discursos e emergem em um jogo específico de poder e por isso são produtos da marcação da diferença e da exclusão11 . O autor usa o termo “identificação” de Homi Bhabha  por  ser menos  ardiloso  que  o de  identidade,  pois  ambos  são conceitos não muito bem desenvolvidos da teoria social. 

                                                            11 Hall, 2001. 

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A identificação é uma constante construção, um processo nunca completado. Ela é um processo de articulação e suturação porque está sujeita  a  historicização,  estando  constantemente  em  processo  de mudança e  transformação. Além disso, as  identidades são constituídas por meio da diferença e não fora dela. Avtar Brah  já se questionava de que  forma  era possível  teorizar  o vínculo  entre  a  realidade  social  e  a realidade psíquica, para  assim  teorizar  o  sujeito pós‐colonial  em  suas diferentes identidades. 

Stuart  Hall  (2000)  concentra‐se  em  uma  discussão  da problemática da formação da identidade e da subjetividade, colocando‐se a importante pergunta: por que acabamos preenchendo as posições‐de‐sujeito para as quais somos convocados? 

Como  já dito anteriormente, Hall salienta que está acontecendo uma  desconstrução  das  visões  sobre  a  identidade  em  diversas disciplinas, as quais põem em crise a noção de uma identidade integral, originária  e  unificada.  Um  conceito‐chave  é  o  de  “agência”,  que expressa  a  identificação  como  uma  construção,  como  um  processo nunca  terminado.  A  identificação  é,  portanto,  um  processo  de articulação. Há sempre “demasiado” ou “muito pouco”, mas nunca um ajuste  total. Mas o conceito principal é o de  identidade, que não é, em Stuart  Hall,  uma  noção  essencialista, mas  um  conceito  estratégico  e posicional,  ou  seja,  as  identidades  jamais  são  unas.  Em  suma,  as identidades  operam  através da  exclusão, da  construção discursiva de uma  exterioridade  constitutiva  e  da  produção  de  sujeitos marginalizados,  na  superfície  exilados  do  universo  simbólico  ou  do representável.  

A  compreensão  de  identidades  aos  olhos  de  autores  pós‐coloniais mostra  desde  a  produção  de  novos  sujeitos  devido  à  nova ordem  global,  até  a  difusão  das  interseccionalidades  e  categorias  de articulação para abordar as diferenças. O que se pode concluir é que as identidades  foram  percebidas  como  um  conjunto  de  diferenças  que caracterizam  os  indivíduos  e  os  identifica  dentro  das  práticas discursivas  e  psicanalíticas.  As  identificações,  por  pertencerem  ao imaginário, sempre são reafirmadas pelos próprios sujeitos que desejam se inserir na dinâmica das estruturas de poder.  

 

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6. Conclusões  A  pesquisa  seguiu  um  percurso  que  mostrou  o  recorte  da 

visibilidade de  advogados que  lidam  com  a  identidade profissional  e homoafetiva e acabam seguindo para a militância LGBT. O enfoque que foi  dado  ao GADvS  e  aos  advogados militantes  serviu  de  base  para argumentação  de  como  a  homoafetividade  irá  interferir  na  profissão, dando outros rumos a partir da militância no movimento LGBT. A força da  identificação  sexual  configura  o  caminho  profissional, mostrando uma  interseção na qual  se busca  reconhecimento para  o valor de  sua expertise, rejeitando a desqualificação de seu saber com a reconversão de  seu  capital  jurídico  para  a  atuação  na  especialidade  dos  direitos homoafetivos.   

Quando os profissionais não  fazem essa  reconversão, os custos dos  estigmas  são  pesados.  Os  pares  profissionais  produzem  as invisibilidades  ao  partilharem  o  ideário  da  neutralidade  do profissionalismo  como  fundamental para o exercício da advocacia. Os profissionais gays, envolvidos ou não em  lutas contra a discriminação sexual  apagam  as marcas dessa diferença  ao  agirem  em  sintonia  com esse valor normativo, que coloca em pólos opostos a vida profissional e a  intimidade,  mantendo  no  armário  sua  homossexualidade.  Nestes casos,  a  intersecção  entre  identidades  fica  sujeita  ao  predomínio  do status profissional perante o estigma da diferença sexual. 

Por  fim,  a  análise  dessas  trajetórias  profissionais  permitiu compreender  os  processos  de  mudança  que  estão  ocorrendo  na advocacia  paulista  e  os  novos  arranjos  institucionais,  visando  a diversidade sexual, desde as  instâncias da OAB‐ SP, como a Comissão da Diversidade  Sexual  e Combate  a Homofobia  até  as  sociedades  de advogados  que  vêem na diversidade  a possibilidade de  ampliar  suas redes nas grandes firmas internacionais.        

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Bibliografia  BARBALHO, Rennê M. A feminização das carreiras jurídicas e seus reflexos no profissionalismo. São Carlos, UFSCar , tese de doutorado, 2008. BONELLI, M. G; BARBALHO, R. M. O  profissionalismo  e  a  construção dos gêneros na advocacia paulista. Sociedade e Cultura, v.11, n. 2, p. 275‐284, 2008. BONELLI,  M.G.;  CUNHA,  L.G.;  OLIVEIRA,  F.L.e  SILVEIRA,  M.  N.  B. “Profissionalização por gênero  em  escritórios paulistas de  advocacia”. Tempo Social v.20, n.1, p. 265‐290, 2008. BRAH, A. Diferença, diversidade e diferenciação. Cadernos Pagu, São Paulo, v. 26, p. 329‐376, 2006. BUTLER,  Judith. Problemas de gênero – Feminismo  e  subversão da  identidade. RJ, Civilização Brasileira, 2013. EVETTS,  J.  A  new  professionalism?  Challenges  and  opportunities.  Current Sociology, Londres,v. 59, n.4, p. 406‐422, 2011. FREIDSON, E. Professionalism: the third logic. Cambridge: Polity Press, 2001. FRY,  Peter;  MACRAE,  Edward.  O  que  é  homossexualidade.  São  Paulo, Brasiliense, 1983.  HALL,  Stuart. A  identidade  cultural  na  pós‐modernidade.  Tradução.  Tomás Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. 6. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. HALL, Stuart. Quem precisa da  identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu  (org. e trad.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais.. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 103‐133  PISCITELLI, Adriana.  “Re‐criando  a  (categoria) mulher?”  In: Algranti,  Leila Mezan (org.) A prática feminista e o conceito de gênero. Coleção Textos Didáticos n. 48, 2002, Campinas, Unicamp, pp.7‐42.  PISCITELLI,  Adriana.  Interseccionalidades,  categorias  de  articulação  e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e cultura, Vol. 11, Núm. 2,  jul‐dez, pp. 263‐274, 2008.  RUMEENS, N.; KERFOOT, D. Gay men at work:  (Re)constructing  the  self as professional. Human Relations, v. 62, p. 763‐786, 2009. SCOTT,  Joan. A  Invisibilidade da experiência.  In: Projeto História. São Paulo, EDUC, n. 16, fev. 1998. SEDGWICK, E. K. A epistemologia do armário. Cadernos Pagu, Campinas, n. 28, p.19‐54, 2007.  

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As mulheres na magistratura: comparações entre Argentina e Brasil  

Camila de Pieri Benedito1 Maria Eugenia Gastiazoro2 

  

1. Introdução  A  proposta  deste  capítulo  é  a  análise  comparativa  sobre  as 

diferentes  formas  de  inserção  profissional,  como  também  sobre percepções  de  gênero,  no  judiciário  argentino  (Córdoba)  e  brasileiro (estado de São Paulo). Comparam‐se dados qualitativos de entrevistas realizadas com magistradas para discutir questões teóricas sobre gênero e profissão jurídica. 

Como  reconstitui  a  pesquisadora  Margareth  Rago  (2001),  a exclusão das mulheres por um  largo período das  funções públicas na política, nas  ciências e na  filosofia,  são  consequências de um  contexto histórico e social que se  refletiu nas ciências – como a medicina – que retratavam  a  mulher  como  diferente  dos  homens,  sendo  estas consideradas inferiores intelectualmente, fisicamente e moralmente.  

A  constituição  do  direito  e  de  suas  instituições  entrelaçou‐se com  este  contexto  tornando  sua  presença,  em  relação  a  dos  homens, inferior  quantitativamente.  Em  suas  origens,  o  judiciário  brasileiro  e argentino  foi  composto  unicamente  por  homens  brancos  e  da  elite política (Coelho, 1999; Kohen, 2008) assim como o corpo estudantil das universidades  de  direito.  As  primeiras mulheres  advogadas  também demoraram a surgir (Argentina: Bergoglio, 2007, Sánchez, 2005, Kohen, 2005, Bergallo,  2005, Gastiazoro,  2008; Brasil:  Junqueira,  2007, Bonelli, 2012). 

Além  das  lutas  feministas  que  impactam  sobre  o  papel  da mulher em nossa  sociedade, auxiliando  seu maior  ingresso em  cursos 

                                                            1  Mestre  em  Sociologia.  Programa  de  Pós‐Graduação  em  Sociologia,  Universidade Federal de São Carlos. Pesquisadora do grupo Sociologia das Profissões, UFSCar. 

2 María  Eugenia  Gastiazoro: Mestre  em  Sociologia  (Centro  de  Estudos  Avançados, UNC) e Advogada (Universidad Nacional de Córdoba). Auxiliar Docente na Cátedra Sociologia Jurídica da Faculdade de Direito e Ciências Sociais da UNC.  

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universitários e na vida pública, outros movimentos ocorrem  tanto no Brasil  como  na  Argentina  refletindo  na  feminização  das  carreiras jurídicas:  a  organização  empresarial  dos  escritórios  jurídicos intensificou‐se  no  contexto  da  internacionalização  da  economia  nos anos  90.  Ambos  os  países  reformaram  seus  sistemas  judiciários  no sentido  de  modernizar  e  racionalizar  o  seu  funcionamento,  muitas vezes  sob  a  direção  de  organismos  internacionais.  Por  sua  vez  os processos de democratização da  educação  trouxeram um aumento do número  de  profissionais  do  direito,  sendo  destacado  o  ingresso qualitativo de mulheres na profissão (Bergoglio, 2007; Junqueira, 1998). 

Na  Argentina,  a  tendência  à  organização  empresarial  do trabalho  dos  advogados  significou  um  aumento  no  tamanho  dos escritórios,  bem  como  um  aprofundamento  da  divisão  do  trabalho jurídico  e  um  aumento  da  especialização.  O  surgimento  de  grandes empresas jurídicas – escritórios com mais de cinquenta advogados – ao lado  dos  pequenos  e  médios  escritórios  de  advocacia,  expressa claramente estas transformações (Bergoglio, 2005). 

No  caso do Brasil,  Junqueira  (1999, 1998) analisa  este processo iniciado  pelo  contexto  de  privatizações  do  governo  de  Fernando Henrique Cardoso  e  se  estende  sobre  o maior  ingresso  de mulheres. Sobre  as diferenças  entre  advogados  e  advogadas,  a  autora  retoma  o conceito de  glass  ceiling3  – ou  teto de vidro  – que  corresponde  a uma barreira  invisível que  impede que homens  e mulheres ocupem  com  a mesma facilidade os espaços de maior prestígio, pois para que possam alcançar estes postos precisam se esforçar mais que os homens que são colocados  nas  posições mais  prestigiadas  enquanto  elas  permanecem nos trabalhos burocráticos e de menores privilégios. 

Na  Argentina,  a  reforma  da  administração  judiciária  e  sua modernização  implicaram  uma  série  de mudanças  que  ampliaram  a oferta  de  trabalho  no  setor  público.  Embora  a  feminização  do  poder judiciário não seja um processo recente, a possibilidade que existe hoje de prestar  concursos  abertos  influi na  crescente  inserção de mulheres neste campo de  trabalho. Entretanto, vários estudos mostram que elas 

                                                            3  Junqueira utiliza‐se do conceito de glass ceiling cunhado por Margareth Thornton no texto Dissonance and Distrust: Women in the Legal Profession (1996). 

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estão  sub‐representadas nos postos de maior hierarquia, ao passo que são  sobre‐representadas  em  posições  de  menor  poder  e  decisão (Mackinson  e  Goldstein,  1988;  Gastron,  1991;  Bergallo,  2005;  Kohen, 2008; Gastiazoro, 2010). De modo semelhante, no Brasil a participação feminina  nas  carreiras  jurídicas  públicas  se  intensificou  a  partir  do momento em que as provas objetivas passaram a manter a  identidade de  candidatos  e  candidatas  anônima  (Bonelli,  2011)  apesar  de  haver ainda o peso do gênero durante a parte subjetiva, de entrevistas. 

Estas variáveis, brevemente elucidadas, ilustram como a questão da  equidade  na  participação  feminina  e  masculina  nas  carreiras jurídicas  não  pode  ser  considerada  somente  a  partir  da  questão temporal. Neste artigo, são resgatadas as perspectivas de mulheres que trabalham no poder judiciário de Córdoba e também de juízas estaduais e federais paulistas no Brasil. A  ideia é comparar como operadoras do direito  no  Brasil  e  na  Argentina  têm  observado  a  questão  da participação das mulheres no direito para  então discutirmos questões teóricas sobre diferença de gênero e carreiras jurídicas. 

Na próxima  seção do  artigo  serão destacadas as bases  teórico‐metodológicas  das  duas  análises  para  que  seja  possível  realizar  a explanação mais detalhada das pesquisas nos dois países. No trecho A inserção das mulheres no poder judicial em Cordoba, será posto em destaque a pesquisa de Gastiazoro enquanto na seção A percepção de gênero entre juízas  estaduais  e  juízas  federais  no  interior  do  estado  de  São  Paulo  será exposta a de Benedito no Brasil.  2. Aspectos teóricos e metodológicos da investigação 

 A  investigação  na  Argentina  foi  realizada  sobre  o  Poder 

Judiciário  da  Província  de  Córdoba  e  a  Justiça  Federal  de  Córdoba. Depois da análise de dados quantitativos que dão conta de processos de segregação vertical  e horizontal nos poderes  judiciários  considerados, foram  feitas  entrevistas  com  mulheres  que  lá  trabalham  para compreender as desigualdades de gênero. Neste presente artigo foram analisadas  entrevistas  tomadas a mulheres  juízas de diferentes níveis, ademais do caso de uma secretária da Justiça Federal. 

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Embora se venham produzindo transformações tanto no mundo do  trabalho  como na  vida,  a divisão  sexual do  trabalho  ainda  é uma estrutura que afeta as atividades das mulheres, e a gestão de seu tempo, tanto no campo do privado como do público, elemento cuja repercussão ultrapassa aquilo que elas são capazes de ʺnegociarʺ ou ʺrenegociarʺ na esfera privada. Ademais, persiste nos agentes um olhar que percebe e valoriza as diferenças de gênero dentro de uma visão binária que incide de  maneira  negativa  sobre  as  próprias  mulheres.  Essa  situação  se reproduz através da violência simbólica presente nas relações sociais, o que impõe uma construção social arbitrária do biológico, e em especial do  corpo  (Bourdieu, 2005). Neste  sentido, as desigualdades de gênero dentro da profissão  jurídica  se  sustentam em arbitrariedades culturais que se evidenciam como naturais. 

Entre  os  modelos  teóricos  explicativos  das  desigualdades  de gênero apresentados por Hull e Nelson  (2000), aquele das  escolhas dos atores  postula  que  são  as  próprias  mulheres  que  incidem  na configuração das desigualdades de gênero. A partir desta perspectiva, argumenta‐se  –  segundo  a  teoria  do  capital  humano  de Gary  Becker (1985)  –  que  as  diferenças  de  gênero  são  consequência  dos investimentos individuais em educação, mas também em experiência e treinamento  profissional  que  homens  e  mulheres  investem  em  si. Enquanto  as  mulheres  fazem  escolhas  que  privilegiam  as responsabilidades  familiares  contra  o  próprio  crescimento  na  carreira profissional,  os  homens  concentram  sua  atenção  em  sua  formação  e especialização  profissional.  Esta  explicação  resulta  criticável  porque coloca o foco no individual sem levar em conta as barreiras estruturais, a  discriminação  e  orientação  institucional  de  gênero.  Investigações sobre  o  tema  observaram  que,  por mais  que  as mulheres  tenham  a mesma  formação  e  experiência  de  trabalho  que  os  homens,  tais características  não  são  efetivamente  valorizadas  da  mesma  forma quando se trata de obter promoções (Fiona e Hagan, 1999; Rhode, 2003). Além  disso,  as  pautas  de  trabalho  nas  empresas  jurídicas,  como  a extensa  jornada de trabalho e a consequente sobreposição crescente da vida com o  trabalho são barreiras que potencializam as desigualdades em  detrimento  das  mulheres,  sustentadas  pela  divisão  sexual  do trabalho (Bergoglio, 2007a). Nesse sentido: 

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“... os níveis concretos de autonomia e autodeterminação efetivamente alcançados  pelas  pessoas  não  depende  apenas  de  suas  aspirações  e esforços  pessoais,  mas  também  do  gênero,  da  idade,  etnia  e  setor socioeconômico  em  que  eles  estão  situados...  a  individualização  está sempre  inscrita  em  um  campo  de  lutas...  que  determinarão  quais sujeitos  efetivamente  possuem  autonomia”.  (Stecher  Godoy  e  Diaz, 2005:94)  A  teoria  de  Bourdieu  (2005:105)  permite  adentrarmos  na 

ʺ(re)construção  social,  sempre  reproduzida,  dos  princípios  de  visão  e divisão  geradores  dos  gênerosʺ,  que  ocorre  dentro  das  estruturas institucionais que, por sua vez, são sustentadas por meio das estratégias que  os  agentes  colocam  em marcha. A  lógica  do modelo  da  divisão entre o masculino e o feminino se instaura e reinstaura por meio de um trabalho constante de diferenciação a que os agentes não deixam de ser submetidos  e  que  os  leva  a  distinguir‐se  por meio  de  processos  de masculinização ou feminização. 

É certo que:  

“as mudanças provadas pela globalização enfraqueceram os costumes e o senso comum  tradicionais: o paradigma de gênero mudou,  já não se baseia mais no modelo  capitalista  anterior do homem provedor  e das mulheres no espaço doméstico, alcançando também a recuperação de uma perspectiva mais complexa de gênero, superando a perspectiva reducionista  que  o  coloca  como  oposição  binária  entre  mulheres  e homens. No  entanto,  estes  avanços deixaram basicamente  intocada a divisão  sexual  do  trabalho  como  forma  organizativa  da  sociedade, tornando muito mais opressora suas múltiplas jornadas e convertendo o  tempo  –  sua  escassez  –  em  um  lugar  de  sujeiçãoʺ  (Manifesto  dos Direitos Sexuais e Reprodutivos, 2006:8).  Sendo, então, a solução culturalmente institucionalizada na vida 

cotidiana que:  

“as estratégias de conciliação do  trabalho, do doméstico‐familiar e do pessoal  são  uma  questão  de  caráter  privado,  sendo  as mulheres  os agentes que protagonizam estas estratégias privadasʺ (Missa e Unceta, 2008). 

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Neste  sentido,  as  relações  estabelecidas  entre  os  espaços  e tempos  do  produtivo  e  reprodutivo,  do  privado  e  do  público,  do familiar e do trabalho são aqui fundamentais.  

No  caso  do  trabalho  de  Benedito,  foram  selecionadas  para  a análise  duas  carreiras  jurídicas  públicas  brasileiras:  a  magistratura estadual  e  a magistratura  federal  paulistas,  analisando  desta  forma  a presença das mulheres no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e no Tribunal Regional Federal da 3ª Região  (TRF3). A pesquisa e a análise dividem‐se  em  duas  partes:  a  primeira,  quantitativa,  relaciona  o conceito de profissionalismo com a maior ou menor presença feminina nestas carreiras como também a abertura mais ou menos flexível para a presença  destas  nas  instituições.  A  segunda  parte,  qualitativa,  é  a análise  dos  discursos  de  juízas  federais  e  estaduais  de  onde  são resgatadas suas percepções sobre a presença feminina nas instituições. 

O conceito chave na análise é o profissionalismo,  tanto em seu aspecto  institucional  pelas  contribuições  de  Freidson  (1996)  como  o definido  em  forma  de  discurso  a  partir  de  Evetts  (2003).  Freidson constrói as variáveis do profissionalismo como um tipo ideal4, segundo o  autor  o  trabalho  organizado  pela  lógica  do  profissionalismo  se distingue de outras  formas de  trabalho5 em  três pontos essenciais: em primeiro lugar diferencia‐se do trabalho realizado pelas ocupações que são  uma  especialização  mecânica,  sendo  então  uma  especialização criteriosa,  ou  seja,  que  demanda  um  estudo  especializado  e aprofundado  realizado  na  universidade.  Este  saber  é  abstrato, característica  que  compõe  o  segundo  elemento  do  profissionalismo  e 

                                                            4 O  tipo  ideal de Freidson é distinto daquele concebido por Weber. Neste caso, o  tipo ideal  se  constrói  em um  conceito mutável  a partir das diferentes  variáveis  com  as quais se encontra como organização estatal e condições históricas e geográficas. 

5  Freidson  coloca  que  o  profissionalismo  concorre  com  outras  duas  formas  de organização  do  trabalho  em  nossa  sociedade:  a  lógica  de  mercado  e  a  lógica burocrática. A  lógica  de mercado  se  contrapõe  ao  profissionalismo  ao  criticar  seu caráter  monopolista  em  relação  ao  mercado  de  trabalho  e  o  credencialismo  ‐ obrigatoriedade de diploma. Desta forma, nesta lógica o treinamento dos ingressantes costuma acontecer no próprio ambiente de trabalho e seus membros são transitórios. Já a lógica burocrática compreende um Estado controlador e hierárquico, sendo uma organização  ideologicamente embasada pela valorização do caráter administrativo e de eficiência. 

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funciona como um mecanismo de reserva de mercado e construção de credenciais – os diplomas,  terceiro elemento – que permitem  somente aos iniciados o ingresso nos grupos profissionais. 

As  carreiras  jurídicas  podem  ser  consideradas  profissões  por serem  concebidas nestes moldes.  Somente  indivíduos  com  o  título de bacharel  em  direito  podem  fazer  parte  destas  instituições  que  ainda demandam  processos  de  seleção  individuais,  ou  seja,  provas  e concursos  especiais  para  que  os(as)  bacharéis  possam  se  tornar advogados(as),  juízes(as),  promotores(as)  de  justiça,  dentre  outros tantos profissionais do mundo  jurídico. A história de cada uma destas carreiras e a forma como constituíram sua autonomia e profissionalismo –  como  descrito  nos moldes  de  Freidson  –  variam  entre  si,  existindo carreiras mais e outras menos consolidadas6. 

A hipótese, que é  inclusive confirmada pelos dados, coloca que as carreiras mais antigas e prestigiadas são também as que possuem um menor número de mulheres  e menor  flexibilidade para o  crescimento quantitativo  de  seu  ingresso  como  também  sua  presença  nos  cargos mais altos. Em dados de 2010 (Benedito, 2011) na primeira instância da magistratura federal havia 37,01% de mulheres, número que sobe para 46,15% na segunda instância. No caso do TJSP em primeira instância o número  é  próximo  do  TRF  com  36,70%  mulheres,  mas  cai dramaticamente para 3,98% na segunda instância. 

Como  colocado  em  Bonelli  (2011),  o  TJSP  é  uma  das  mais prestigiadas  instituições  jurídicas do país e que mais cedo estabeleceu sua  autonomia  e  espaço no mundo do direito. Com uma  composição inicial  estritamente  masculina,  branca  e  elitizada,  estes  patamares permanecem  ainda  hoje  na  carreira  com  uma  criteriosa  seleção  de 

                                                            6 A  legitimação das  carreiras  frente a  sociedade  também  se  compõe por um processo mais  complexo  e  em  constante  transformação  que  ocorre  desde  o  surgimento  das carreiras aos dias atuais, havendo um constante diálogo entre as instituições e entre as instituições  e  a  sociedade. A  definição  de Andrew Abbott  (apud  Rodrigues,  1997) sobre  o  profissionalismo  o  descreve  como  o  equilíbrio  de  um  sistema  sempre dinâmico  que  absorve  e  regula  transformações  internas  e  externas.  As  profissões detém o monopólio de um serviço prestado (por exemplo a medicina pelo cuidado da saúde humana) que Abbott descreve como jurisdição, disputas entre as profissões pelo monopólio  de  áreas  de  conhecimento  e  atuação.  Estas  disputas  ocorrem simultaneamente de forma intra e interprofissional (Rodrigues, 1997). 

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membros.  Sua  capacidade  de  definição  dos  patamares  de  seleção  e promoção explicam a fraca presença feminina, em especial na segunda instância. 

Já  no  caso  da  magistratura  federal,  um  processo  histórico distinto com o impacto do executivo sobre ela – a extinguindo durante o governo Vargas, ressurgindo apenas durante a ditadura militar –, pelas novas atribuições  e  transformações a partir da Constituição de 1988  e um processo de seleção para a segunda instância não autônomo que se realiza conjuntamente ao executivo, transformam sua composição: 

 “A maior  feminização  na  segunda  instância  da  Justiça  Federal  tem então a ver com a sua menor autonomia de promoções e de controle de seus membros, resultado tanto de sua dependência do executivo para as  promoções  como  pela  sua  tardia  consolidação  como  profissão. Assim,  foi mais  fácil  a  entrada  da mulher  na  segunda  instância  da carreira pelo fato de a carreira ter se iniciado em um momento que as mulheres  estavam  começando  a  aumentar de  número  nos  cursos de graduação  e  intensificando  sua  entrada  no  mercado  de  trabalho”. (Benedito, 2011, p.55). 

 Além  do  âmbito  quantitativo  da  feminização  das  carreiras 

jurídicas  é  possível,  a  partir  da  construção  teórica  de  Julia  Evetts, aprofundar  a análise  sobre as  construções  subjetivas das mulheres no TJSP  e  na  Magistratura  Federal.  Para  Evetts  o  profissionalismo  se constitui  e  se  legitima  frente  a  sociedade  como  um  discurso  de competência  e  altruísmo,  delimitando  seu  espaço  como  detentor  do monopólio daquele  saber  e do  serviço prestado. Analisando o uso do termo do profissionalismo no âmbito privado, a autora percebeu como este tem sido utilizado como disciplina7, definindo e moldando perfis e corpos desejáveis dentro das instituições. 

Sob a perspectiva foucaultiana, os corpos podem ser entendidos como resultados de um processo histórico e dinâmico que incide sobre 

                                                            7 “O uso do discurso do profissionalismo em uma grande empresa privada de serviços, pela  gerência,  serve  para  orientar  identidades  de  trabalho,  condutas  e  práticas ‘apropriadas’” (Evetts, 2006, p. 525). 

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eles um efeito de poder8. Conjuntamente aos discursos do gênero, pode se considerar que as construções identitárias das magistradas articulam os discursos do profissionalismo com os de gênero que é entendido aqui a partir das contribuições de Judith Butler que foge de uma análise que parte do sexo natural onde se impõe uma história de gênero masculina e feminina e passa a compreendê‐lo como uma identidade construída e performática em que “a platéia social mundana,  incluindo os próprios atores,  passa  a  acreditar,  exercendo‐a  sob  a  forma  de  uma  crença” (Butler, 2003, p. 200). 

O  gênero  e  o profissionalismo  se  encontram  na  construção de uma  corporalidade  adequada  ao  mundo  jurídico.  A  ideia  é  de  que sendo profissões constituídas a partir do masculino, existe um processo de negociação da diferença que ora busca uma essencialização positiva de atributos naturalizados  como  femininos ora os  invisibiliza  e, dessa forma,  as  posturas  reservadas  e  as  roupas  despidas  de  qualquer conotação  sexualizada demonstram um processo de  invisibilização da diferença enquanto que a relevância dada às qualidades  femininas e o ganho  das  carreiras  jurídicas  com  elas  realiza  uma  essencialização positiva.   3. A inserção das mulheres no Poder Judiciário em Córdoba. 

 3.1 O tratamento diferenciado 

 A profissão jurídica foi um campo masculino até princípios do 

século  XX.  Apesar  das  dificuldades,  a  presença  das  mulheres  nesta profissão foi aumentando ao longo do século, sendo hoje significativa a percentagem  de  mulheres  tanto  ingressando  na  carreira  como  no exercício profissional (Kohen, 2005; Bergoglio, 2005). 

                                                            8 A analítica do poder é um recurso teórico empenhado por Foucault que se distingue daquela denominada pelo autor como teoria do poder na qual este é proposto como soberano e  fonte da dominação. Na analítica do poder, não  sendo  concebido  como algo  que possui dono  ou  que pode  ser  repassado,  que possui  origem, meio  e  fim, entendido a partir como relações que emergem historicamente em meio a negociações e  lutas que se expandem pela sociedade como regimes de verdade que constroem e moldam os corpos (Foucault, 2003). 

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O  ingresso  crescente  de  mulheres  no  poder  judiciário  da província  de  Córdoba  é  destacado  pelas  entrevistadas  como  um processo que era evidente já nos anos 80, e cujos obstáculos expressos as mulheres  deveriam  superar.  Havia  certas  resistências  quanto  ao ingresso  massivo  das mulheres,  e  a  elas  eram  exigidos,  para  serem admitidas, maiores atributos em comparação com os homens. 

Uma  depoente  conta‐nos  que  algumas  vezes,  nos  escritórios jurídicos,  a  atacavam  por  se mulher,  e  esclarece  que  nem  sequer  se costumava  dizer:  ʺsenhora  juízaʺ.  Apesar  de  seu  sexo,  a  estrutura  a identificava como um juiz – homem –, igualando‐a à retórica masculina e  conta,  inclusive, que  isso estava estampado no próprio  carimbo que ela utilizava: 

 

“Nas palavras escritas me atacavam por ser uma mulher, mas eu nunca lia essas coisas. Em outras palavras, diziam: ʺVocê, juiz, eu a rejeitoʺ. Porque nem  sequer  se usava  ʺsenhora  juízaʺ. Desde  85  que  eu  era  juiz,  eu  era ʺsenhor  juizʺ... meu  carimbo  dizia:  ʺDoutora  ...ʺ  e  abaixo  dizia  ʺsenhor juizʺ, não dizia ʺsenhora juízaʺ oficialmente. Isso ninguém se lembra, mas eu o tenho muito presente” [Vogal, Civil e Comercial, PJ Córdoba].  

Esta situação dá conta de elementos da estrutura ocupacional que formalmente impunham a forma masculina nas práticas de todos os agentes implicados na justiça, independentemente de seu gênero, já que tradicionalmente essa era uma profissão masculina. 

Outra  entrevistada,  que  foi  juíza  de  um  tribunal  de  foro múltiplo no interior de Córdoba, relatou como foi posta à prova por sua condição de mulher,  sobretudo nos casos que  requeriam a atuação da polícia: 

 

“Foi difícil minha tarefa porque, sobretudo quando eu tinha que lidar com a polícia, aí sim eu reconheço que tornavam a questão difícil pra mim. Porque, por exemplo, eu  tinha uma violação e desde o médico legista,  que  escrevia  os  relatórios  em  termos  vulgares... Então  o  que eles queriam era... Ainda por cima, se eles me viam andando com um vestidinho branco nessa época, digamos... era como um desgaste, um jogo de provocações, que queriam não sei... Eu sempre tive um caráter muito forte, não sou uma pessoa autoritária, mas eu sempre fui muito firme,  e  para  a  população  isso  lhes  oferecia  muita  segurança” [Múltiplo, Juiz Jurisdição, PJ Córdoba]. 

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O tratamento dados às mulheres se assemelha ao analisado por Boigeol  (2005)  na  França.  A  investigadora  argumenta  que  lá,  um primeiro  acesso  das  mulheres  à  magistratura,  sobretudo  nos  postos mais  altos  do  poder  judiciário,  foi  entendido  como  um  atentado  ao modelo  tradicional  familiar  e  aos  atributos  constitutivos da profissão, bem  como  uma  concorrência  em  relação  à  qual  os  juízes  estavam plenamente  conscientes  de  sua  fragilidade.  Embora  todos  os  casos expostos  sejam  de mulheres  com mais  de  50  anos  de  idade,  também algumas mais  jovens, cuja  idade gira em  torno dos 30 anos, percebem que as mulheres continuam sofrendo algum preconceito de gênero em relação ao tratamento dado a elas por seus chefes. 

O  tratamento  diferenciado  dado  às  mulheres  também  foi observado em  tribunais  federais de Córdoba, e uma das entrevistadas relatou como, no momento de investigar as causas de direitos humanos, foram subestimados por sua condição de mulheres, o que não significou que não persistiram com seu trabalho. 

 3.2 Regime de trabalho e práticas que consolidam as marcas de gênero  

As mulheres destacam que a administração  judiciária  tem uma estrutura  profissional  que  lhes  permite  conciliar  as  exigências  do trabalho  com  as  da  vida  familiar,  algo  distinto  do  que  acontece  no campo do exercício da advocacia. Nos tribunais, as mulheres encontram um  horário  fixo  que  oscila  entre  6  a  8  horas  diárias,  conforme  sejam contratadas  ou  funcionárias  públicas,  respectivamente,  ademais  há regime de licenças, férias, o que incentiva a inserção das mulheres nesse campo. Assim o percebem as próprias entrevistadas:  

“As  empregadas  contratadas  que  começam  a  trabalhar  valorizam muito poder levar, digamos, adiante um projeto de família com filhos, gravidez, com um horário que é bastante acessível para as mulheres, porque as duas da  tarde as contratadas  já podem  ir para sua casa  (as funcionárias  públicas,  as  4  da  tarde),  elas  tem  3  meses  de  licença maternidade, tem duas férias por ano, têm todo o mês de janeiro livre, oito dias úteis em  julho, tem  licença para amamentação, e também 20 dias ao ano por adoecimento  familiar, ou seja,  tudo  isso elas  tem, e é 

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muito respeitado, se respeita muito a licença maternidade” [Juiz, Civil e Comercial, PJ Córdoba]. 

 Mas,  embora  a  estrutura  ocupacional  da  administração 

judiciária  leve  a  que  as mulheres  busquem  inserir‐se  neste  campo de trabalho,  o  sistema  de  licenças muitas  vezes  age  contra  elas,  já  que alguns juízes veem isso como um problema para o desenvolvimento do trabalho dos tribunais.  

“a  licença maternidade e a  licença amamentação causam um  impacto muito  grande  no  tribunal,  porque  não  se  cobrem  as  licença  de maternidade,  então  comigo  aconteceu, por  exemplo, no  final do  ano passado, desde outubro e novembro até o começo de março deste ano, ter duas pessoas a menos para trabalhar... Isso é muito problemático e pode  levar,  indiretamente, à discriminação de  juízes que não querem empregar mulheres” [Juiz, civil e comercial, PJ Córdoba]. 

 Por exemplo, esta mesma juíza conta o caso de uma empregada 

que  é  uma mãe  solteira  com  um  filho,  que  não  conta  com  uma  rede social  familiar em Córdoba porque é de outra província. Ela  teve que sair  de  um  tribunal  do  qual  pediu  transferência  porque  sua  chefa  se incomodava cada vez que ela faltava quando seu filho estava doente. 

Por outro lado, as entrevistadas notam que, em geral, os homens tendem  a  ser  cada  vez  menos  contratados;  observam  que,  como contratados, os homens são muito poucos. As mulheres que trabalham nos tribunais da província relatam que a pouca presença de homens faz com que, muitas vezes, eles sejam mais solicitados do que as mulheres, inclusive há casos em que são solicitados especificamente homens.  

“Há muitos tribunais civis onde toda a equipe, desde a secretária até o escrevente,  são  todas  mulheres.  Nós  aqui  temos  um  assistente‐secretário  homem,  contratados  nós  temos  um  empregado  efetivo,  e dois estagiários homens... somos o tribunal que mais homens tem. Sei de  um  tribunal  no  qual  o  juiz  é  homem,  e  que  dizem,  extra‐oficialmente, as pessoas têm dito que ele quer que seu tribunal venha a ser  integralmente  composto  por  homen”  [Juiz, Civil  e Comercial,  PJ Córdoba]. 

 

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3.3 Diferenciação do trabalho por gênero  

A segregação horizontal é um processo que  tem a sua história. Se rastreamos o que contam as mulheres que ingressaram em tribunais da  província  há mais  de  20  anos,  observamos  que  havia  obstáculos explícitos  para  o  acesso  a determinadas  foros. Em  geral,  as mulheres não eram nem admitidas nem desejadas no âmbito do direito penal ou do  trabalho, essas eram matérias  reservadas aos homens. Eram muito poucas  as  que  entravam  ali.  Havia  uma  segregação  horizontal  que vedava às mulheres trabalhar no campo da justiça penal, o que por sua vez  incidia  em  uma  segregação  vertical,  como  se  deduz  da  citação acima. Assim, por seu gênero as mulheres eram excluídas dos âmbitos de trabalho considerados não adequados para elas. Um desses espaços eram os tribunais criminais, onde se exerce um poder muito importante, o  exercício  da  coerção  física  sobre  os  cidadãos.  As  justificativas apresentadas eram que ali não colocavam mulheres em função do tipo de  crimes  que  tratava,  principalmente  os  que  afetavam  a  integridade sexual.  Isto  significa  que  os  delitos  nos  quais  as  vítimas  geralmente eram mulheres  ficavam nas mãos dos homens, sob sua decisão, sendo as mulheres excluídas desse âmbito do poder.  

Algumas mulheres que  ingressaram em  foros específicos como civil ou de menores, enviadas a eles apesar de seu interesse por outros ramos, em geral permaneceram ali, porque  começaram a  se  interessar ou  a  gostar.  Além  do  mais,  ter  trajetória  num  mesmo  foro  é conveniente, já que é um antecedente pra ascender dentro dele. Embora hoje não haja  restrições  institucionais para que as mulheres  ingressem no  foro  penal,  a  percentagem  de  homens  neste  foro  ainda  é maior, sobretudo  nos  cargos  de  magistrados  e  funcionários.  Este  limite explícito  que  existia,  já não  existe na  estrutura  institucional,  inclusive quando há vagas no foro penal é muito possível que elas as ocupem. Os concursos para ingressar na polícia judiciária têm permitido e permitem que  muitas  mulheres  entrem  nesse  setor.  Todavia,  as  entrevistadas apontam  que  trabalhar  na  penal  continua  sendo mais  difícil  para  as mulheres em função das condições de trabalho e, em alguns casos, isso implica que as mulheres peçam transferência para outras jurisdições. 

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Como  vemos  hoje,  as mulheres  participam  cada  vez mais  em foros  tradicionalmente  masculinos.  Mas  se  observa  ainda  uma segregação horizontal acentuada entre os âmbitos de  civil e  comercial por um lado, e penal de outro. Os tribunais do trabalho, embora tenham sido um espaço de acesso  restrito para as mulheres, hoje são um  foro que se destaca pela forte presença delas. 

Outra questão que surge no relato das entrevistadas se refere à diversidade de condições de  trabalho que existem nos diferentes  foros dentro dos  tribunais. Ao  comparar os  foros de  civil  com os de penal, observam que os de  civil  são mais precários e hostis a elas que os de penal.  

“as condições de trabalho na civil são muito duras, porque a carga de trabalho é significativamente mais pesada que em qualquer outro foro, é  impressionante  a  quantidade  de  causas  que  se movem  por  dia,  é necessário  um  trabalho  muito  mais  dedicado,  as  condições  de infraestrutura  dos  tribunais  civis  são  espantosas  em  relação  aos tribunais  penais,  que  têm muita  comodidade,  tem  ar  condicionado, cada funcionário tem um computador, um telefone, um escritório, um espaço próprio  que  aqui não  tem...  aqui  às vezes não  tem um  lugar onde  colocar  um  estagiário,  aqui  todo  mundo  fica  amontoado,  eu tenho um escritório muito pequeno, às vezes  juízes têm um escritório maior, ás vezes tem dois funcionários trabalhando no escritório do juiz porque não tem espaço” [Juiz, Civil e Comercial, PJ Córdoba]. 

 Por outro  lado, o  tratamento  entre  empregados  e advogados  é 

muito diferente na civil e na penal. Alguns entrevistados apontam como isso parece influenciar os funcionários do sexo masculino, que preferem migrar para a penal, por exemplo, porque não suportam os maus tratos, enquanto as mulheres tendem a ficar. 

Ademais encontramos os típicos argumentos que apontam para a  inserção  diferenciada  de  homens  e  mulheres  dentro  do  poder judiciário  em  função  de  uma  questão  de  afinidades  distintas,  quase natural  entre  os  sexos.  Essa  afinidade  é  expressa  por  outra  das entrevistadas que, embora observe que as mulheres hoje estão em todos os  âmbitos  do  poder  judiciário,  em  sua  opinião  a  penal  é  para  os 

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homens, já que as mulheres, por sua sensibilidade costumam ficar mais expostas nesse lugar. 

Também nos  tribunais  federais de Córdoba a diferenciação por foro  persiste,  embora  sua marca  não  seja  tão  profunda  como  era  há vinte anos atrás. Uma das entrevistadas conta o caso específico de sua corte,  onde  a  juíza  é  mulher,  o  que  permitiu  que  as  mulheres ingressassem  no  tribunal  e  estivessem  claramente  representadas  em todos os foros.  

“desde quando eu entrei  já eram todas mulheres na Civil e, em Penal eram  todos  homens,  há  20  anos.  E  em  alguns  tribunais  isso  têm  se mantido,  ou  têm  ingressado  mulheres  mas  continua  tendo  mais homens que mulheres. Agora, em um fórum, a partir do momento que a juíza é mulher, que é desde... de 91, ou seja... bem, aí se tem invertido e  cada vez mais mulheres  são  empregadas. Aqui na Secretaria Penal predominam mulheres  e  em  todo  o  fórum  predominam mulheres” [Secretaria Criminal, Tribunal Federal, Córdoba]. 

 

Como sucede nos tribunais provinciais, aponta que as condições de trabalho na penal podem incidir numa maior presença de homens, já que requer mais dedicação ou disponibilidade de tempo. Mas, para elas, as diferenças de gênero em penal não se expressam como nos  juizados provinciais em função do tipo de delitos que tratam.  

“Sim, mas na parte federal nem tanto. Talvez a questão de existir mais homens  na  penal  seja  porque  eles  têm  que  trabalhar  no  período  da tarde,  às  vezes,  na  penal.  Porque  na  província,  na  penal,  chegam alguns assuntos, alguns crimes, que a mulher mesmo trata de... evitar. Veja, por exemplo, estupros, homicídios, você tem todos esses arquivos com  fotos, e muitas mulheres por aí dizem... Não, não  tenho vontade de me meter a  investigar esse  tipo de coisa, ou  lidar  com a polícia e tudo  isso,  que  é  bem...  por  isso  que  as mulheres  tratam  de,  de  se afastar. Aqui já não é tão duro, porque as causas que nós temos são por drogas, vem os consumidores, não, não é... ou fraudes contra o Estado nacional, ou por... adulteração de documentos...” [Secretaria Criminal, Tribunal Federal, Córdoba]. 

    

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3.4 Diferenciação de gênero nos níveis de ocupação  A  distribuição  por  gênero  nos  diferentes  níveis  do  sistema 

judiciário  é  observada  pelas  entrevistadas,  embora  nem  todas  o percebam  como  um  processo  produtor  de  desigualdades.  O  caso  a seguir  põe  em  manifesto  a  diferenciação  por  gênero  em  termos  de níveis de ocupação: 

 “Agora, o que eu posso  te dizer, o que eu percebo, por exemplo, nos foros  civis,  há  tribunais  que  têm maioria  de  empregadas mulheres, poucos  homens,  mas  há  homens...  há  uma  maioria  de  mulheres empregadas, mas a nível de decisão, digamos, no nível hierárquico há mais homens do que mulheres. Ou  tantos homens quanto mulheres. Ou seja, também poderíamos interpretar que nas posições de decisão e de  responsabilidade  existem mais  possibilidades  para  os  homens do que para as mulheres, porque não se mantém o mesmo percentual das categorias mais baixas nas mais elevadas”  [Juiz, Civil e comercial, PJ Córdoba].  Por outro lado, o grau de segregação vertical tem relação com o 

tipo  de  foro,  o  que  quer  dizer  que  se  intersecta  com  a  segregação horizontal.  Assim,  na  esfera  penal,  são  muito  poucas  as  mulheres ocupando  o  lugar  de  representantes  de  Câmara,  enquanto  que  uma representante do foro de família observa o contrário em seu campo: 

 “Mas veja nas câmaras como está equiparado, nesta câmara são duas mulheres e um homem, e na câmara superior são dois homens e uma mulher. E nos tribunais não, nos tribunais há mais mulheres, havia um homem que  se  foi,  e  agora vem outro  e o outro que  estava  era meu companheiro.  Mas  se  nos  Tribunais  de  Família  há  uma  marcada predominância  feminina,  o  notável  é  que  nas  câmaras  estamos empatados” [Família, Vogal, PJ P. J. Córdoba].  As  mulheres  que  dizem  não  perceber  segregação  vertical 

costumam citar quase sempre o caso de mulheres que hoje são membros do  Tribunal  Superior  de  Justiça  como  um  paradigma  da  igualdade  e prova do acesso das mulheres aos postos mais altos do poder judiciário. O  acesso das mulheres  aos  tribunais  superiores  é uma  imagem  forte, 

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que  impõe  uma  percepção  de  igualdade  para  todos  os  escalões  do poder judiciário, quando na realidade isso não ocorre, já que persistem os processos de segregação vertical. 

Se  tomarmos  a  profissão  jurídica  como  um  todo,  na  qual  se distinguem dois âmbitos – o poder judiciário, por um lado, e o exercício da profissão, de outro – observamos que a  retórica –  ligada ao poder simbólico  de  definir  as  coisas  –  tem  força  na  definição  dos  locais  de trabalho que por um lado devem ocupar as mulheres e que, por outro, elas  decidem  ocupar,  que  são  sobretudo  lugares  compatíveis  com  a divisão  sexual  do  trabalho. Nesse  sentido  os  tribunais  se  apresentam como  um  campo de  trabalho  específico desta  retórica,  cada  vez mais acessíveis através do sistema de concursos, como é o caso dos tribunais de Córdoba. É muito destacado o discurso de que as mulheres vão para o  Judiciário  porque  deste modo  lhes  é  possível  ter  uma  família.  Isso mostra  a  persistência  da  tradicional  divisão  sexual  do  trabalho  que repercute  tanto  na  construção da  identidade  profissional  e de  gênero das mulheres como na estrutura da divisão dual do trabalho jurídico. 

 Seguimos  notando  os  processos  de  diferenciação  que,  apesar das mudanças,  tornam  a  se  reproduzir. Hoje,  embora nos  campos do poder  judiciário  e  penal  haja  mais  mulheres,  não  significa  que  a diferenciação  se  desvaneça  em  prol  da  equidade, mas  que  há  novos processos de diferenciação. Consequentemente, o Judiciário se feminiza, e ademais o peso recai sobre as mulheres, já que os homens começam a ganhar  vantagens  por  serem  cada  vez  mais  escassos  e,  em consequência, mais solicitados dentro do espaço dos tribunais. 

O  profissional  se  identifica  com  a  abstração,  a  igualdade  e neutralidade  no  campo  do  trabalho  sem  aperceber‐se  dos  vieses  de gênero  que  se  evidenciam  nos  dados  quantitativos  que  enfatizam  a segregação.  Este  viés  de  gênero mostra  que  a  direção  que  homens  e mulheres  dão  a  suas  carreiras  profissionais  e  a  seus  interesses  e compromissos  profissionais  está  condicionada  pela  divisão  sexual  do trabalho, tanto no âmbito da profissional como da vida privada. 

Em  uma  sociedade  na  qual  se  põe  ênfase  no  indivíduo, mas onde as  transformações econômicas estruturam o mundo do  trabalho, as estratégias dos agentes assumem diferentes expressões. Temos hoje uma  profissão  jurídica  que  está  incorporada  no mundo  do  trabalho 

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mais  amplo  no  qual  se  registra  uma  desigualdade  de  gênero  nos rendimentos auferidos, ademais do  impacto negativo que as condições informais de  trabalho  têm  sobre as mulheres,  e o  campo da profissão não  é  alheio  a  essas  vicissitudes. Especificamente,  tanto  as mudanças estruturais da economia como as reformas do poder judiciário ocorridas nas últimas décadas implicaram uma reorganização do trabalho jurídico (Bergoglio, 2005). O impacto dessas mudanças significou o progressivo assalariamento da profissão  e, nesse  sentido, muitos profissionais  são absorvidos  pela  administração  judiciária,  e  muitos  outros  pelas empresas  jurídicas  (Bergoglio, 2005; Sanchez, 2005). Neste contexto, as mulheres  valorizam,  no momento  de  tomar  decisões  chaves  em  sua carreira, a necessidade de segurança e a importância de um salário fixo ou  de  licenças  que  sejam  respeitadas.  Estas  escolhas  impactam diferencialmente  sobre  as mulheres:  aquelas  incorporadas pela  justiça destacam  a  importância  do  salário  fixo,  enquanto  que  no  campo  do exercício da profissão afirma‐se que os  rendimentos podem  ser muito mais altos.  

 4. A percepção do gênero entre  juízas estaduais e  juízas  federais no interior do estado de São Paulo 

 Para  a  análise  das  percepções  subjetivas  por  parte  das 

operadoras  do  direito  brasileiras,  foram  selecionadas  entrevistas  com magistradas no interior de São Paulo. Os depoimentos são de três juízas federais (TRF3), Ana Alice, Mariana e Carolina e duas  juízas estaduais do TJSP,  Juliana  e Marcela. As magistradas  atuam nos municípios de Laranjeiras,  Rio  das  Pedras  e  Água  Vermelha,  todos  localizados  na região central do estado9. As entrevistas se focaram na percepção destas magistradas  sobre  a  participação  das  mulheres  nas  carreiras  e  nas principais barreiras que estas podem vir a enfrentar por serem mulheres e ocuparem uma posição de poder e prestígio. Nas respostas é possível observar: o  impacto da maternidade e dos  cuidados  com a  família na articulação  entre  a  vida pessoal  e  a  vida profissional,  a  separação do 

                                                            9  Com  o  compromisso  de manter  a  identidade  das  entrevistadas  preservadas,  seus nomes e os nomes das cidades são fictícios. 

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preconceito  sofrido  pelas  mulheres  na  carreira  do  que  ocorre  na sociedade  como  um  todo  e  a  essencialização  de  características masculinas e femininas que afloram na atuação profissional. 

Das  cinco  entrevistadas  três  são mães,  porém  a maternidade aparece na fala de todas como a principal dificuldade enfrentada pelas mulheres  na  magistratura.  Nos  discursos  é  possível  resgatar  esta questão a partir de três falas: a primeira que se coloca a partir da intensa tarefa  em  articular  as  longas  jornadas  de  trabalho  com  o  cuidado  da família, a segunda que  resgata a necessidade de uma vida social mais restrita e, por fim, o  impacto da maternidade como um empecilho que dificulta promoções e o aprofundamento dos estudos.  

Ana Alice é juíza federal e na época da entrevista estava com 44 anos, é mãe de duas filhas e sua primeira formação é como engenheira. Para ela, articular  trabalho, maternidade e estudos  foi sem dúvida seu maior enfrentamento como magistrada e atualmente com doutorado na área  do  direito,  um  livro  publicado  e  a  consequente  estabilidade profissional,  cumpriu  grande  parte  de  suas  expectativas,  mas  ainda assim entende como o maior impedimento à ascensão na magistratura a maternidade: 

 “Chega  um  determinado  nível,  vamos  dizer,  quando  você  já  é  juiz titular,  as perspectivas  são um pouco  limitadas, porque o  acesso  aos Tribunais  é bem difícil,  tem o  componente de  certa  forma político,  e também  tem que conciliar o  trabalho com a ascensão profissional, de modo que tudo isso é muito dificultoso no dia a dia, porque se você se concentra no  trabalho e na  família, de uma certa  forma,  sobra pouco tempo para você,  vamos dizer,  se dedicar  a  algumas  atividades  que talvez sejam necessárias para você subir na carreira, como fazer outros cursos que  isso seria  interessante, só que não há  tempo muitas vezes suficiente  para  tudo  isso”  [Entrevista  com  Ana  Alice,  magistrada federal].  Juliana  é  uma magistrada  estadual  que  desde  a  infância,  por 

influência do pai  também  juiz do TJSP,  sonhava  em  ser  juíza  e, para tanto,  organizou  toda  a  sua  vida  em  direção  ao  direito  e  mais especificamente  ao  tribunal.  Atualmente  com  42  anos,  é  juíza  cível, diretora do  fórum e mãe de um garoto de dois anos, o que  torna  sua 

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vida bastante atribulada. Sobre a questão das dificuldades na carreira, aponta a maternidade da seguinte forma: 

 “Eu  tenho  um  filho  pequeno,  até  retardei  muito  a  minha,  o  meu ingresso na vida materna, por conta da profissão, né? Depois de quinze anos de magistratura que eu  tomei coragem e engravidei, até porque havia uma  questão  biológica  na minha  vida...  eu  tava  com  quarenta anos  e  eu não  tinha mais  tempo para  retardar  a maternidade  (...). A gente, mulher ainda, a questão complica bastante... você é profissional, você  é mãe,  você  é  esposa,  você  tem  funcionários  para  administrar, você tem uma casa pra administrar, por mais que você tenha pessoas que te ajudem o encargo fica todo sobre a gente, né?” [Entrevista com Juliana, magistrada estadual]. 

 Da  mesma  forma  esta  questão  aparece  no  depoimento  de 

Marcela, magistrada  estadual  e mãe  de  dois  filhos. A maternidade  é também colocada como um trabalho a mais e especialmente feminino: 

 “Dentro  da  carreira  em  si,  dentro  da magistratura  em  si,  eu  nunca enfrentei nenhuma dificuldade pelo fato de ser mulher, eu acho que a condição de mulher nos  traz dificuldades em relação à administração do  seu  tempo  pessoal,  que  eu  vejo  os  colegas  homens,  eles muitas vezes deixam  toda  a  administração doméstica  e os  cuidados  com  os filhos  exclusivamente  com  a  esposa,  e  por mais  que  o meu marido divida comigo todas essas atribuições, muitas vezes as crianças até por um apego decorrente da gestação, da amamentação, eles querem muito mais a mãe do que o pai, a criança muitas vezes quando chora quer a mãe e tudo isso traz uma sobrecarga pessoal significativa” [Entrevista com Marcela, magistrada estadual].  Carolina, na época recém ingressa na magistratura federal e com 

apenas  29  anos,  era  casada  e  não  tinha  filhos,  uma  escolha  tomada justamente  pela  dificuldade  de  articular  a maternidade  com  a  longa jornada de estudos para o  ingresso no  judiciário e depois por conta da alta movimentação dos recém‐ingressos:  

 “...  quanto mais  qualificada  é  a mulher mais  difícil  fica  para  ela  ter filhos, principalmente antes dos  trinta anos, mas do meu concurso só 

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tem uma mulher com  filhos,  tem uma outra que engravidou agora o bebê  nasce  acho  que  até  agora  novembro, dezembro, mas  a maioria acaba  tendo  filhos mais  tarde. A dificuldade para entrar na carreira é um dos  fatores, não  existe,  é muito  complicado  estudar o necessário para  passar  e  ficar  grávida  ou  cuidar  de  uma  criança,  isso  é muito complicado. O fato de ter que mudar, ou seja, você vai, tem gente que foi  para  Ponta  Porã,  para  Corumbá,  para  Dourados,  para  Jales  e  a família não. Então  isso é uma outra dificuldade, mas não é um  fator impeditivo,  no máximo  o projeto  fica um pouco  adiado”  [Entrevista com Carolina, magistrada federal]. 

 Para Mariana,  que  é  divorciada,  a maternidade  aparece  como 

uma  escolha  delicada.  Escolheu  não  ter  filhos  e  pesando  diversos fatores concluiu ter tomado a melhor decisão. 

Nos  estudos  que  relacionam  trabalho  e  gênero  no  Brasil  e internacionalmente, a  relação  entre o papel  social da mulher  sobre os cuidados da  família e a  consequente pressão no ambiente de  trabalho são postos em análise. Hochschild  (apud Bonelli, 2004) mostra como as mulheres  sofrem  não  uma  dupla  jornada  de  trabalho  na  casa  e  no trabalho,  mas  tripla.  A  primeira  jornada  de  trabalho  seria  aquela realizada no escritório em que deve haver uma dedicação máxima para a realização de um serviço bem feito, a segunda seria feita em casa onde se deve demonstrar ser uma boa mãe, esposa e dona‐de‐casa enquanto a terceira e última jornada de trabalho se compõe pelo trabalho emocional que conecta subjetivamente as duas primeiras e constrói um sentimento de satisfação. 

 “O  trabalho das emoções  feito principalmente pela mulher para  lidar com  a  dupla  jornada  de  trabalho,  e  o  custo  emocional  que  ele representa  tanto  na  negação  do  problema  quanto  nas  separações conjugais que causam, tornam‐se uma terceira  jornada de trabalho na vida cotidiana” (Bonelli, 2004, p. 362). 

 O  controle da vida pessoal pelas magistradas  se  intercala  com 

estas  questões  indo  até  a  necessidade  de  uma  vida  menos movimentada.  Isso  se  relaciona  tanto  com  a  necessidade  da  própria 

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carreira  que  as  coloca  no  patamar  de  figuras  públicas10  como  pelos compromissos da maternidade.  

 “Quando meu  filho dorme é onze horas da noite e eu  tô morta e eu quero dormir  (risos) e aqui no  fórum não dá  tempo de nada a gente realmente é uma constante, a gente observa que a maioria dos  juízes não  tem, não conseguem  ter uma vida social muito  intensa e é assim comigo também” [Entrevista com Juliana, magistrada estadual]. 

 O profissionalismo como um discurso, no sentido de Evetts, serve 

para analisar como condutas e corpos são moldados nas instituições. Isso se inicia desde os bancos escolares, se aprofunda nos processos de seleção que separam os adequados daqueles que não o são, vai até o cotidiano do trabalho  com  as demandas  sobre  posturas  sóbrias,  atitude  reservada  e vestimentas  formais.  As  origens  do  judiciário  como  homogeneamente branco,  masculino  e  de  elite  repercute  até  os  dias  atuais  com  uma presença  feminina  de  origens  privilegiadas  –  como  é  o  caso  das entrevistadas  –  e  as  roupas  que  excluem  qualquer  possibilidade  de sensualidade desloca seus corpos para o âmbito masculino. 

Como operadoras do direito são sujeitos ativos e as vestimentas sóbrias que encobrem os corpos a partir do corte “correto” das saias e dos decotes conservadores e dos  tecidos sem  transparências e  largos o suficiente  para  não marcarem  os  corpos  realizam  esse  deslizamento entre  o  passivo  e  o  ativo. Como Butler  coloca,  o  gênero  existe  em  sua corporalidade pela performance, sendo possível se observar nos corpos como  as  negociações  da  presença  feminina  nas  carreiras  jurídicas ocorrem. 

Além  dessas  questões  ainda  existem  processos  de essencialização positiva de características naturalizadas como femininas como é possível ver nos seguintes depoimentos: 

 “...acho  que  nessa  carreira  não  tem  diferença  entre  homem  ou  a mulher. Tem que  ter esse perfil de  isolamento, de gostar de  leitura, e ficar  sozinho, muito  tempo  de  concentração  lendo,  não  sei  se  isso  é 

                                                            10 O discurso é de que ao fazerem parte do judiciário tornam‐se algo como modelos de conduta tanto pelo respeito à instituição da qual fazem parte como pela posição que ocupam de julgar sobre a lei. 

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uma  característica  que  predomina  em  mulheres,  talvez  outras características  não  existam  tanto  em  mulher...  essa  coisa  da agressividade  policial  de  investigar,  mas  é  mais  fácil  encontrar indivíduos que  tenham esse perfil, homens, mas aqui não sei se mais mulheres gostam disso, eu acho que tanto faz se é homem ou mulher não dá diferença nenhuma” [Entrevista com Mariana, magistrada]. 

 “Na verdade a gente ouve muito elogio até,  falando que as mulheres que  são  da  magistratura,  elas  são  mais  humanas,  elas  são  mais cuidadosas, são bem mais cautelosas, mais decididas, a gente sempre ouve  isso, pelo menos eu sempre ouço  isso como um elogio e nunca senti preconceito e assim nunca eu acho que às vezes o preconceito a gente  que  cria do  outro  para  com  você  né? Eu  acho  que  tem muito disso, uma coisa que eu não fico puxando “Ah, então é porque eu sou mulher,  por  isso  que  o  senhor  não  gostou  da  minha  sentença?” Entendeu?  Sabe,  não  tinha  isso  na  cabeça,  então  eu  nunca  senti diferença. Eu acho... que a gente também não é homem, mas eu sempre recebi assim, muitos elogios, dos advogados e, hoje o universo tá muito feminino e então é, bastante comum  ter uma  juíza, duas advogadas e às vezes duas mulheres como parte, então hoje  tá muito comum  isso já” [Entrevista com Juliana, magistrada estadual].  “Eu  acredito  que  a  sensibilidade  feminina  realmente  a diferencia do trabalho,  eu  vejo  que  os  homens  na  carreira  jurídica  eles  entendem, tomam decisões  e atuam de uma  forma muito mais  fria  e prática do que  a  mulher,  resolvendo  aquele  problema  que  se  propõe  naquele momento, isso a maioria, enquanto que a mulher muitas vezes procura ver  o  que  tem  por  trás,  principalmente  nas  questões  de  família” [Entrevista com Marcela, magistrada estadual]. 

 Para finalizar, outra fala que se repete é sobre a não existência de 

qualquer  tipo  de  preconceito  dentro  das  instituições,  a  partir  do argumento de ser uma instituição intelectualizada que demanda de seus membros o nível universitário. Sobre isso a seguinte fala é um exemplo: 

 “...  acho  muito  proveitosa  que  seja  objeto  de  estudo  todo  esse desenvolvimento da mulher na carreira [no caso as carreiras jurídicas] porque, embora eu acredite que, que nem eu disse, que não é objeto de preconceito  o  trabalho  da  mulher  na  carreira  jurídica,  eu  acredito 

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também que isso não exista na maior parte das outras áreas, a mulher ainda hoje  é vítima de muito preconceito na  sociedade  (...)  tudo  isso demonstra  o  quanto  nossa  sociedade  ainda  precisa  se  desenvolver muito, para oferecer a mulher a dignidade que merece na sociedade” [Entrevista com Marcela, magistrada estadual].  Deve  se  levar  em  consideração  como  a  participação  das 

mulheres nas carreiras jurídicas é sutilmente negociada no cotidiano do fórum de  justiça e na vida pessoal e profissional dos membros destas carreiras. A  palavra  sutil  é  aqui  utilizada,  pois  remete  ao  fato  de  as percepções de gênero, da participação feminina, da existência ou não de preconceitos e mesmo na definição do que significa ser um bom ou uma boa  profissional  estão  profundamente  entrelaçadas  com  ideias naturalizadas sobre quem são os homens e quem são as mulheres, o que fazem, como sentem e como trabalham. 

A presença feminina pode ser tanto vista como um ganho para o mundo  jurídico  a  partir  de  uma  essencialização  positiva  de características  femininas dadas  como naturais  como  também pode  ser apagada a partir dos trajes escolhidos que escondem qualquer sinal de passividade,  fragilidade  ou  sexo,  que  se  encontram  culturalmente imbricados ao  feminino. O discurso do profissionalismo permeia estas negociações  construindo  e  negociando,  constantemente,  performances de gênero e construindo subjetividades que remetem ao sucesso e que, por conta de uma origem exclusivamente masculina, acabam por serem constituídas  a  partir  de  características  também  tipicamente  colocadas como masculinas, como a força e a capacidade de decisão. 

 “Então  você  ser  uma  boa  juíza  sem  deixar  de  ser mulher,  porque  a questão  é  essa,  vamos  dizer,  não  confundir  os  papeis,  porque  na verdade  um  papel  é  um  papel  profissional  com  o  outro  lado  seu pessoal,  e  há  quem  confunda  ou  que  exagere  muitas  vezes.  Então tradicionalmente talvez uma vocação mais masculina. Acho que assim, nesse  sentido  sim,  porque  justamente  o  homem  que  está  mais acostumado a  tomar  certas decisões que  causam  impacto, ou que ele mesmo decide do modo dele, enfim, então essa dificuldade ela existe, não vou dizer que não exista, mas você se acostuma a  lidar com  isso, você se acostuma a decidir, a ter que tomar decisão, muitas vezes que 

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contraria  interesses.  Então  você  sabe  que  não  dá  para  agradar  todo mundo,  então  é  uma  questão  também  de  costume,  de  experiência” [Entrevista com Ana Alice, magistrada federal]. 

 Em  seu  trabalho  sobre  as  mulheres  nos  esportes  equestres, 

Miriam Adelman  (2011)  se  depara  com  uma  situação  semelhante  em que mulheres  passam  a  integrar  esportes  de  origens  exclusivamente masculinas,  nos  quais  o  sucesso  se  baseia  em  características  como  a força  e  o  vigor  físico.  Como  coloca  no  texto,  a  partir  da  revisão bibliográfica sobre o tema e sua articulação com o objeto de pesquisa, “a atividade esportiva  feminina era  inicialmente  terreno para a expressão de  sujeitos  femininos  rebeldes  e  desobedientes”  (Adelman,  p.  936), demonstrando  o  impacto da  chegada de  sujeitos  vistos  culturalmente como  frágeis,  delicados  em  um  mundo  onde  a  força  e  mesmo  a agressividade são dados como necessários. 

Utilizando‐se do conceito de Sedgwick (apud Adelman, 2011) de homossociabilidade, a autora coloca como as  identidades são negociadas em contextos de sociabilidade masculina. Intercalado a esses espaços de sociabilidade  vêm  a  tona  noções  arraigadas  de  feminilidade relacionadas  ao  frágil  e  aos  cuidados do  lar que  afastam  as mulheres destes  espaços,  vistos  como  incompatíveis  com  suas  naturezas.  A sociabilidade  nestes  esportes  é  permeada  por  formas  de  interação masculinas em que existe certa dificuldade e uma constante necessidade de prova das mulheres que pretendem fazer parte deste circuito.  

No caso das mulheres nas carreiras jurídicas públicas o impacto de  sua presença no direito  já parece  ter passado deste  estágio  inicial, que é possível ser analisado como  tendo ocorrido ainda no século XX. Porém, atualmente, ainda é possível perceber como a presença feminina é  ainda motivo  de  conflitos  e  necessita  ser  interpretada  e  negociada pelos membros  das  instituições,  tanto  homens  como mulheres. Além das  manifestações  discursivas  é  possível  perceber  como  os  trajes funcionam  como  uma  ferramenta  subjetiva  assim  como  também  a essencialização  positiva  que  busca  adequar  as  mulheres  ao  que  se compõe como uma atuação profissional de excelência.  

  

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5. Considerações finais  As  abordagens  teórico‐metodológicas  escolhidas  pelas 

pesquisadoras  para  a  análise  dos  dois  contextos  –  o  argentino  e  o brasileiro –  são entre  si distintas mas é possível ainda assim perceber aproximações  entre  os  dois  trabalhos.  Nos  dois  casos  a  questão  da maternidade  e  dos  cuidados  da  família  aparece  como  um  dado  de grande relevância sobre a participação da mulher nas carreiras jurídicas. Culturalmente associadas aos cuidados domésticos, como profissionais no  direito  acabam  por  acumular  o  trabalho  profissional  com  aquele realizado  em  casa. Tanto no  caso do Brasil  como no da Argentina, as carreiras  públicas  aparecem  como  uma  escolha  empregatícia  mais adequada àquelas que buscam constituir  família por se estabelecer em horários determinados e pela possibilidade de licenças. 

No caso da segregação horizontal, observou‐se em Córdoba que, até cerca de vinte anos atrás, determinados espaços de trabalho estavam restringidos  e  outros  eram  criados  para  as  mulheres,  por  decisões provenientes da própria instituição do poder judiciário. Atualmente, se registra  maior  participação  das  mulheres  em  matérias  que  eram tradicionalmente masculinas,  ainda  que  subsista marcada  segregação horizontal entre os âmbitos de civil e comercial, por um  lado, e penal por  outro.  Embora  possam  aceder  aos  espaços  vinculados  à administração  de  penas,  ainda  se  evidenciam  alguns  obstáculos  que incidem no desempenho das mulheres nestes espaços. Já no trabalho de Benedito  no  Brasil  esta  questão  não  aparece  com  grande  visibilidade principalmente  por  conta  do  foco  escolhido  para  as  entrevistas  com magistradas da justiça federal e da justiça estadual. Talvez se houvesse uma  pesquisa  no  caso  da  advocacia  a  situação  poderia  ter  sido diferente. 

No  caso  da  segregação  vertical,  o  trabalho  de  Benedito demonstra uma inequidade bastante dramática no número de homens e mulheres nos níveis mais altos das magistraturas em foco, que, em sua pesquisa,  é  explicada  pelo  insulamento  institucional  dessas  carreiras que  acabaram  por  construir  um  perfil  homogêneo  de membros  que ainda  hoje  se  faz  presente  –  apesar  de  estar  se  transformando.  A segregação  vertical  por  gênero  se  apresenta  em  todos  os  foros 

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analisados na Argentina. A  implementação de  sistemas meritocráticos pode  ter  efeito positivo para  a  redução das desigualdades de gênero, porém  tais  sistemas  são  mais  exigentes  com  as  mulheres,  inseridas numa sociedade na qual persiste a divisão sexual do trabalho, o que faz com  que  as  diferenças  de  gênero  se  estanquem  no  interior  de  uma profissão na qual a proporção de graduadas é cada vez maior. 

   

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Participação popular e legitimidade judicial:  sobre o julgamento por júri 

               María Inés Bergoglio1 

  1. Introdução  

Como destacou Tocqueville, os países que têm chamado os cidadãos comuns  para  compartilhar  as  responsabilidades  judiciais,  se caracterizam pelo alto reconhecimento popular da magistratura. Resta‐nos  perguntar,  entretanto,  até  onde  estes  efeitos  são  registrados  nas nações  que,  em  contextos marcados  pela  insatisfação  com  o  trabalho judicial, têm incorporado recentemente a participação leiga na justiça. 

Este  artigo  explora  as  relações  entre  a  participação  leiga  na administração  da  justiça  e  legitimidade  judicial  em  Córdoba,  na Argentina, onde os  tribunais mistos  têm  sido  implantados desde 2005 para  o  julgamento  de  alguns  crimes  aberrantes.  Para  isso  são empregadas diversas  fontes empíricas, dentre as quais se destacam os dados de pesquisa da população geral obtidos em Córdoba em 1993 e 2011. 

Embora  já  exista  evidências de que aqueles que  têm atuado  como jurados melhoram suas opiniões sobre o funcionamento da  justiça, por enquanto o caráter  limitado da experiência cordobesa sugere que seus efeitos sobre a legitimidade judicial na cidadania geral podem ser muito fracos ainda. 

Nos últimos anos, diversos países ‐ Japão, Coreia, Espanha, Croácia, Rússia, Argentina  ‐  têm  introduzido  a participação de  leigos  em  seus sistemas  judiciais,  muitas  vezes  no  contexto  de  reformas  orientadas para  aprofundar  os  processos  de  democratização.  É  necessário interrogarmo‐nos  sobre  as  consequências  destas  inovações institucionais, já que a presença dos cidadãos comuns entre aqueles que 

                                                            1 Faculdade de Direito, Universidade Nacional de Córdoba. Agradecimentos ao apoio para  este  projeto  outorgados  pela  Secretaria  de  Ciência  e  Técnica  ‐  Universidade Nacional de Córdoba 

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tomam decisões  legais  significativas pode afetar o  sistema  legal  como um todo. 

A  contribuição dos  sistemas de  júri à  consolidação das  formas democráticas  de  governo  tem  sido  extensamente  discutida2.  Em primeiro  lugar, foi salientado que constitui uma forma de participação cívica. O  júri provê uma oportunidade  institucionalizada para que os cidadãos  se  reúnam,  deliberem  e  tomem  decisões  legalmente significativas.  Transfere  abertamente  poder  aos  cidadãos  e  destaca  o lugar que ocupam no Estado.  

Aqueles que promovem a participação dos cidadãos comuns nos procedimentos penais destacam também que a instituição cumpre uma função global de  controle. A presença dos  leigos nos  tribunais penais contribui  para  garantir  que  os  veredictos  sejam  consistentes  com  as ideias de moralidade  e  justiça  vigentes  na  comunidade,  e  promove  a equidade dos procedimentos  (Machura, 2003). Lempert  (2007) destaca que, de  todo modo,  há  uma melhora  na  transparência das  ações dos juízes. 

De  fato, várias  iniciativas  recentes para  instaurar o  julgamento por  júri  são  registradas  em  contextos marcados  pela  desconfiança  na justiça. Assim, Klijn & Croes (2007) informam sobre uma iniciativa para incorporar  a  participação  cidadã  nas  decisões  cidadãs,  que  surgiu  na Holanda  em  meio  a  um  clima  de  descontentamento  popular  pela excessiva clemência dos  juízes. Enquanto  isso, Fukurai e Krooth (2010) relatam uma proposta para instaurar o júri popular no México, inserida num conjunto de medidas para  reformular a administração da  justiça, considerada vulnerável à corrupção relacionada ao tráfico de drogas. A experiência  de  tribunais  mistos  em  Córdoba,  Argentina,  começou também  num  contexto  de  insatisfação  com  o  trabalho  judicial3.  Estas iniciativas  têm  em  comum  o  fato  de  que  a  participação  dos  leigos  é concebida como uma forma de controlar o poder dos juízes, no contexto de uma situação caracterizada pela insatisfação com o trabalho  judicial ou a falta de confiança na justiça.                                                             2 Para uma revisão detalhada dos efeitos esperados do  julgamento por  júri, ver  (Hans 2008; Voigt 2008). 

3 Na sessão 5 se explica com maiores detalhes a  introdução do  julgamento por  júri em Córdoba, Argentina. 

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Tem‐se  sustentado, ainda, que  esta  instituição  contribui para a legitimação do poder judicial. Tocqueville já havia observado o impacto positivo que a interação entre os  juízes e cidadãos comuns tem sobre o prestígio  dos  juízes:  ʺO  júri,  que  parece  diminuir  os  direitos  da magistratura, funda, na verdade, o seu próprio império, e não há países onde  os  juízes  sejam  tão  poderosos  quanto  naqueles  onde  o  povo participa da distribuição de privilégiosʺ (2001; e.o. 1840, p. 138). A partir de pesquisa  sócio‐jurídica, Machura  (2003)  e Marder  (2005)  revelaram os efeitos positivos da participação cidadã na administração da  justiça sobre  a  confiança  nos  juízes. Voigt  (2008)  relata  correlações  positivas entre a confiança no sistema legal e a incorporação da participação dos leigos. 

Na  teorização  contemporânea  sobre a democracia,  se destaca a contribuição da deliberação pública para a construção da  legitimidade de ordem política. Os pesquisadores que trabalham com este marco de referência têm destacado que a sala do júri se parece com a situação da fala ideal habermasiana, pois oferece um espaço para o debate racional entre  iguais,  governado  pela  força  do melhor  argumento  (Iontcheva, 2003; Gastil & Weiser, 2006). 

Resta‐nos questionar, entretanto, até que ponto a introdução dos tribunais por  júri seria eficaz no sentido de melhorar a legitimidade da administração da  justiça. Trata‐se de uma questão para a qual é difícil obter evidência empírica,  já que requer comparações internacionais4 ou estudos de  séries  históricas. A  questão  é particularmente  interessante desde  uma  perspectiva  latino‐americana,  uma  vez  que  na  região  os baixos níveis de confiança na justiça são crônicos. 

Com o objetivo de fornecer alguns elementos para o avanço da discussão desta questão, o  trabalho  revisa a evolução da  confiança na justiça em Córdoba, Argentina, onde foi introduzida a participação dos leigos  no  campo  penal  em  2005.  Através  de  dados  de  pesquisas  de opinião pública, analisamos as mudanças nas atitudes  em  relação aos juízes e júris, na população em geral, entre 1993 e 2011.  

                                                            4  Ver  por  exemplo  a  tentativa  de  Voigt  (2009)  de  comparar  mais  de  80  países, classificados segundo o tipo de participação leiga que implementa. 

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2. Legitimidade e confiança na justiça: questões teóricas  O  trabalho  de Weber  continua  sendo  o mais  influente  na  análise 

contemporânea  sobre  a  legitimidade.  A  partir  de  sua  perspectiva,  a legitimidade  é  entendida  como  a  qualidade  de  uma  autoridade  ou instituição  que  leva  as pessoas  a  se  sentirem  obrigadas  a  seguir  suas regras  ou  decisões.  Todos  os  poderes  desejam,  por  isso,  alimentar  a crença em sua legitimidade, e só é possível analisar essa legitimidade a partir de uma abordagem relacional. 

Sua  tipologia  sobre  as  formas  de  dominação  legítima  tem  sido utilizada por décadas na investigação sociojurídica. Recentemente, têm‐se observado que a utilidade dessa classificação  tende a se  reduzir no mundo  contemporâneo,  enquanto  que  a  grande maioria  dos  regimes legítimos corresponde ao  tipo racional‐legal  (Dogan, 2010). Esta crítica parece menos  justificada a partir da perspectiva  latino‐americana, uma vez  que  na  região  o  enfraquecimento  dos  partidos  tradicionais acompanha a crescente personalização da política. (Cheresky, 2010). 

Rosanvallon  (2009)  apontou  também  que,  nas  sociedades contemporâneas,  onde  a  expressão  eleitoral  perde  sua  centralidade, surgem novas  formas de aproximação da  ideia de  interesse público, o que  dá  origem  a  novas  formas  de  legitimação,  que  entendem  por legitimidade  a  imparcialidade,  a  reflexividade  e  a  proximidade.  Ao contrário da  legitimidade  tradicional de  estabelecimento, obtida pelos governos democráticos através do mecanismo eleitoral, esses modos de legitimação  apontam  para  as  qualidades  da  relação  entre  os  que exercem o poder e os cidadãos. Essas qualidades nunca são definitivas, por isso as autoridades necessitam se relegitimar continuamente. 

A  perspectiva  relacional  é  hoje  o  principal  legado  weberiano presente neste  campo de pesquisa. Como destaca Lembcke  (2008),  tal perspectiva está presente entre os que adotam um enfoque top‐down e se concentram em descrever os esforços dos poderosos ou das instituições para  que  suas  pretensões  de  legitimidade  sejam  aceitas.  O  enfoque relacional  também  se  encontra  entre  os  que  definem  a  legitimidade como  a  crença na  correção de  tais pretensões por parte daqueles que estão  sujeitos  a  um  sistema de dominação. Neste  caso,  o  foco  não  se 

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dirige tanto para os esforços do poder para validar sua dominação, mas para os motivos de concordância com as demandas de poder. 

Esta  segunda  abordagem,  do  tipo  bottom‐up,  é  adotada  neste trabalho, que analisa a  legitimidade a partir das  convicções  subjetivas dos  cidadãos. A  partir desta  perspectiva,  é  possível  fazer  afirmações, empiricamente  fundamentadas,  sobre  a  extensão  da  aprovação  que recebe  um  sistema  de  dominação,  ou  descrever  dinamicamente  sua evolução.  

Na  análise  empírica  da  legitimidade  dos  tribunais  se  utiliza frequentemente a noção de apoio difuso, inicialmente desenvolvida por Easton  (1965).  O  apoio  específico  se  refere  ao  consentimento  a  uma decisão  em  particular.  Mas  a  autoridade  seria  frágil  se  tivesse  que depender  inteiramente de  tais acordos,  já que  a  tomada de decisões  ‐ especialmente  nos  tribunais  ‐  sempre  favorece  alguns  e  prejudica outros. A autoridade  sobrevive graças a um ambiente de apoio geral, que não está relacionado a uma medida específica, mas que é difuso, e que lhe permite decidir à discrição. 

O  apoio difuso pode  ser  entendido  como um  reservatório de  boa vontade,  e  implica  que  as  pessoas  têm  confiança  na  capacidade  de certas  instituições de  fazer políticas desejáveis em  longo prazo. Supõe certa lealdade à autoridade, e implica que o fracasso ao realizar políticas desejáveis  a  curto  prazo  não  prejudica  o  compromisso  básico  das pessoas com a instituição. Esta noção de apoio difuso tem sido utilizada para estudar empiricamente a legitimidade judicial (JL Gibson, Caldeira e Spence, 2005; J. Gibson, 2007) entendida como a confiança no sistema judicial, e é empregada da mesma forma nesta investigação.  3. A confiança na justiça: questões metodológicas 

 Na  América  Latina,  a  pesquisa  empírica  sobre  a  legitimidade 

institucional tem utilizado dados de pesquisas de opinião provenientes de  duas  fontes  de  dados  comparativos  em  nível  regional  ‐ Gallup  e Latinobarómetro  ‐ que utilizam as clássicas perguntas sobre o grau de 

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confiança  em  diferentes  instituições5.  A  principal  utilidade  destas medidas  é  a  possibilidade  de  realizar  análises  comparativas  entre diversos países, assim como de seguir a evolução no  tempo dos níveis de legitimidade. Ao que se refere à Argentina, Turner & Carballo (2010) publicaram  dados  sobre  a  confiança  na  justiça  para  várias  datas, começando por  1984. Por  outro  lado,  a  série Latinobarómetro  oferece medições anuais desde 1995. 

Tem‐se  destacado,  entretanto,  que  uma  medida  adequada  da legitimidade deve incluir tanto itens atitudinais ‐ como a confiança nas instituições ‐ como itens condutuais6, que permitam observar o grau de obediência  à  autoridade,  ou  a  disposição  para  cumprir  com  seus mandatos. A  crítica  é  digna  de  consideração,  especialmente  em  uma região onde a baixa legitimidade das instituições judiciais não impediu a crescente  judicialização da política (Sieder, Schjolden e Angell, 2005). A  observação  é  particularmente  importante  em  um  país  como  a Argentina,  onde  são  registrados,  ao mesmo  tempo,  baixos  níveis  de legitimidade  das  instituições  judiciais  e  consideráveis  taxas  de litigiosidade. 

Em  nosso  país,  o  índice  de  confiança  na  justiça  elaborado  pela equipe  da  Universidade  Di  Tella  considera  tanto  os  indicadores condutuais  como  atitudinais.  Entre  os  primeiros  se  incluem  os  itens relacionados  à  disposição  para  recorrer  à  justiça  em  conflitos patrimoniais, de trabalho e familiares; entre os segundos se encontram as questões de opinião sobre a  imparcialidade, eficiência e  integridade da  justiça. A  série,  iniciada  em  2004, mostra  sistematicamente valores mais elevados nos itens condutuais do que nos atitudinais 7. 

Neste  projeto  foram  utilizadas  duas  medidas  diferentes  de confiança na justiça, ambas destinadas a detectar as atitudes em direção aos magistrados. A primeira delas  está  centrada na  figura pessoal do 

                                                            5  A  formulação  da  questão  é  a  seguinte:  Por  favor,  diga,  para  cada  um  dos  grupos, instituições  ou  pessoas mencionadas  na  lista,  quanta  confiança  você  tem  neles: muita  (1), alguma  (2),  pouca  (3)  ou  nenhuma  (4)  confiança  em...?  O  Congresso  Nacional,  o  Poder Judiciário, os partidos políticos, as Forças Armadas, a Igreja, os Meios de comunicação, etc. 

6 Para mais detalhes sobre tal classificação de indicadores ver Power e Cyr (2010). 7  Ver  em  http://www.utdt.edu/ver_contenido.php?id_contenido=521&id_item_menu =1601 maiores detalhes sobre a construção deste índice e os resultados alcançados. 

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juiz,  e  é  resultado da  resposta mais  simples  para  o  público  em  geral (Você  acha  que  o  juiz  inspira muita,  bastante  ou  pouca  confiança  e sensação  de  proteção).  A  segunda  utiliza  a  medida  tradicional  de confiança  nas  instituições,  usada  na  pesquisa  comparativa internacional, mencionada acima. 

Foram utilizados os dados de duas pesquisas de opinião pública, realizadas  na  cidade  de  Córdoba  por  esta  equipe  de  pesquisa.  A primeira delas  incluiu 400 casos, e ocorreu muito antes da  introdução da participação dos  leigos,  em  1993. Nesta  foi medida  a  confiança na figura  do  juiz  como  pessoa,  e  foram  obtidas  opiniões  com  relação  a temas  como  a  independência,  a  imparcialidade,  a  eficiência  e  a honestidade da justiça. 

O  segundo  estudo  foi  realizado  em  2011,  quando  os  tribunais mistos  já funcionavam há seis anos, e foram realizadas 434 entrevistas. Além da confiança na figura pessoal do  juiz foi medida a confiança no poder judiciário. Isso permitiu observar que a correlação (R de Pearson) entre ambas as medidas  é de 0,443,  com um nível de  significância de 0,000. As opiniões  relativas à avaliação da  justiça  foram  recolhidas da mesma forma que no projeto anterior. 

Também  foram utilizadas  as  bases de dados do Latinobarômetro para  o  período  de  1995‐2010  para  a  descrição  da  situação  argentina dentro do contexto regional.  4. A confiança na justiça na Argentina 

 Na  Argentina,  as  pesquisas  de  opinião  revelam  níveis 

relativamente baixos de confiança nas instituições, entre elas, no poder judiciário. Os dados do Latinobarômetro  indicam que somente um em cada três cidadãos (34,5%) declarou ter muita ou alguma confiança nos tribunais  em  2010. A  informação  comparativa  permite  contextualizar esta cifra. 

Como  pode  ser  visto  na  Tabela  1,  na  União  Europeia  os  dados recolhidos pelo Eurobarômetro indicam um valor de 47% para a mesma data. Além da homogeneidade das médias, as diferenças entre os países europeus são destacadas. Na área germano‐escandinava a proporção de cidadãos que confiam no Judiciário está acima de 60%. No Reino Unido, 

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a  confiança  nos  tribunais  também  é  maioritária,  enquanto  que  os valores diminuem nos países que recentemente aderiram à democracia, como a Espanha, ou se caracterizam pela frequência de crises políticas, como  a  Itália.  As  recentes  democracias  da  Croácia  ou  da  Letônia registraram valores semelhantes aos argentinos. 

Esta conexão entre a solidez da democracia e a confiança na justiça é  igualmente  visível  quando  observamos  os dados norte‐americanos8. Enquanto  no  espaço  europeu  quase  metade  dos  cidadãos  confia  na justiça, na América Latina a proporção regional atinge 32%. Na região, os países com maior tradição democrática, como o Uruguai ou a Costa Rica, ultrapassam claramente a média  regional. Também é  importante notar que o Brasil  ‐ o país  latino‐americano com a mais  longa  tradição de júri, cuja participação dos leigos na administração da justiça funciona desde  1822  (Amietta,  2010)  ‐  registra  níveis  de  confiança  na  justiça significativamente maiores que a média da área. 

A  capacidade  das  instituições  para  responder  às  demandas socioeconômicas  dos  cidadãos  também  influencia  os  níveis  de legitimidade  institucional. Como mostram os estudos comparativos de Gilley (2006) e Power e Cyr (2010), não é de se estranhar que os países latino‐americanos  com  maiores  níveis  de  desenvolvimento  humano contem instituições de maior respaldo social. 

Esses dados permitem observar que a confiança no poder judiciário registrada na Argentina apresenta valores próximos à média regional. É um  pouco  maior  do  que  encontramos  em  países  com  significativas desigualdades  étnicas,  como  Peru,  Bolívia  e  México,  cujo  sistema judicial formal concorre com práticas  judiciais dos povos originários, o que  acaba por  enfraquecer  ainda mais  a  confiança nas  instituições do Estado. (Power e Cyr, 2010).  

Esta  revisão  da  informação  disponível  sobre  os  níveis  de legitimidade  institucional, em nível  regional,  indica que vários  fatores influenciam a confiança na  justiça, tais como: a tradição democrática, a capacidade das instituições de responder às demandas socioeconômicas dos cidadãos ou as desigualdades étnicas.                                                             8  Para  uma  discussão  detalhada,  empiricamente  fundamentada,  da  relação  entre  a experiência democrática e os níveis de  legitimidade na América Latina, ver Power e Cyr (2010). 

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Tabela 1 ‐ Confiança no Poder Judiciário, 2010.  

América Latina  Muita/alguma confiança 

Pouca/nenhuma confiança 

Não sabe /não respondeu 

Uruguay  58,1%  38,5%  3,4% Brasil  51,1%  45,4%  3,6% Costa Rica  46%  49,9%  4,1% Venezuela  37,8%  58,1%  4,1% Chile  36,9%  61,5%  1,6% Argentina  34,5%  63,6%  2% Colômbia  34%  59,4%  6,6% Panamá  33,6%  61,3%  5,1% México  27,5%  67,7%  4,8% Paraguai  27%  69,8%  3,3% Bolivia  23,5%  68,3%  8,2% Peru  14,7%  82,7%  2,6% Média  32,4%  63,2%  4,3% 

Europa  Muita/alguma confiança 

Pouca/nenhuma confiança 

Não sabe /não respondeu 

Dinamarca  84%  14%  2% Suécia  73%  25%  2% Áustria  71%  26%  3% Alemanha  60%  34%  6% Reino Unido  50%  45%  5% França  45%  50%  5% Espanha  44%  51%  5% Itália  42%  52%  6% Letônia  36%  54%  10% Croácia  20%  76%  4% União Européia  47%  48%  5% Fonte: Para América Latina, Latinobarômetro (www.latinobarometro.org). Para Europa, Eurobarômetro  (http://ec.europa.eu/public_opinion/index_en.htm). Dados  processados para este projeto.       

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Tabela 2 ‐ Confiança no Poder Judiciário – Argentina, 1995 ‐2010.  Ano  N  Muita/alguma 

confiança Pouca/nenhuma confiança 

Não sabe/ não respondeu 

1995  1200 (100%)  33,6%  62,1%  4,4% 1996  1199 (100%)  23,1%  72,4%  4,5% 1997  1196 (100%)  20,5%  75,1%  4,2% 1998  1264 (100%)  19,6%  78,5%  1,9% 2000  1200 (100%)  27,5%  68%  4,5% 2001  1200 (100%)  20,5%  77%  2,5% 2002  1200 (100%)  8,6%  90,4%  0,9% 2003  1200 (100%)  16,2%  81,2%  2,6% 2004  1200 (100%)  26,2%  72,4%  1,4% 2005  1200 (100%)  26,1%  71,7%  2,3% 2006  1200 (100%)  31,9%  66,9%  1,3% 2007  1200 (100%)  22,7%  74,5%  2,8% 2008  1200 (100%)  24,6%  74,1%  1,3% 2009  1200 (100%)  24,5%  73,3%  2,1% 2010  1200 (100%)  34,5%  63,6%  2% Fonte:  Latinobarômetro,  (www.latinobarometro.org).  Dados processados para este projeto. 

 A análise dos dados históricos sobre a legitimidade da justiça na 

Argentina  mostra  variações  consideráveis  desde  a  restauração  da democracia.  Analisando  a  evolução  da  confiança  nas  instituições  no período  de  1984‐2006,  Turner  e  Carballo  (2010)  destacaram  a deterioração  da  legitimidade  tanto  do  poder  legislativo  como  do judiciário, ocorrida desde o  retorno da democracia. Usando dados do Gallup, demonstraram  que  em  2006  os  níveis de  confiança  na  justiça chegaram a 20%, praticamente um terço dos níveis registrados em 1984, momento que se segue à recuperação da democracia (58%). Tal análise vincula  a  queda  nos  níveis  de  legitimidade  à  baixa  capacidade  das instituições  em  atender  as  expectativas  econômicas  dos  cidadãos,  e salienta que a perda de confiança nas instituições não se limita ao poder judiciário, mas se estende a outros poderes do Estado. 

A série de dados do Latinobarômetro, iniciada em 1995, permite acompanhar  a  recente  evolução dos níveis de  legitimidade na  justiça. 

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Além das oscilações anuais, nota‐se que a crise do corralito e do “que se vayan todos” colocou a legitimidade da justiça em seu mínimo histórico. Naquele momento, menos de um em cada dez argentinos confiava nos juízes. A posterior recuperação, provavelmente vinculada às mudanças no mecanismo  de  nomeação  dos  juízes  do  Supremo  Tribunal  assim como  nos  esforços para melhorar  a difusão da  atividade  judicial9,  foi relativamente  rápida,  colocando  os  níveis  de  confiança  em  números semelhantes  aos  de  1995:  em  2010  cerca  de  um  terço  dos  argentinos confiava na justiça. 

O  exposto até  então  é  suficiente para  indicar que,  como pode  ser previsto  a  partir  de  uma  abordagem  relacional  de  legitimidade,  a confiança  na  justiça  é  uma  variável  complexa,  sujeita  a  diversas influências. Por  isso,  a  revisão de  sua  relação  com  a participação dos leigos  na  administração  da  justiça,  que  será  realizada  a  seguir,  tem caráter tão somente exploratório.  5. A experiência cordobesa de tribunais mistos 

 Ainda que sua implementação seja recente, a instituição do júri tem 

na  Argentina  profundas  raízes  históricas.  Entendida  como  garantia contra  o  abuso  do  poder  do  Estado,  é  encontrada  em  projetos elaborados em 1813, assim como nas Constituições de 1819 e 182610. A Constituição Nacional de 1853 a prescreve, em seus artigos 24, 64 inc. 11 e 9911. A longa presença dos projetos de  julgamento por  júri é um bom indicador  da  profunda  aspiração  democrática  dos  argentinos,  assim como de sua ampla tolerância à brecha entre o texto da lei e as práticas sociais.  Atualmente,  os  julgamentos  por  júri  vigoram  somente  na província de Córdoba.                                                              9 Para uma descrição dos esforços realizados para restaurar a legitimidade do Tribunal após a crise, ver Ruibal  (2010). O  lançamento do canal  jurídico de CIJ TV, canal de notícias  de  transmissão  ao  vivo  pela  Internet  de  todo  o  Poder  Judicial,  feito  pela Suprema  Corte  de  Justiça,  em  agosto  de  2011,  foi  um marco  significativo  dessas estratégias. 

10  Para  uma  revisão  histórica  da  presença  dos  julgamentos  por  júri  na  normativa argentina, ver Cavallero e Hendler (1988) e Jorge (2004).  

11 Estas prescrições se mantiveram após a reforma de 1994, ainda que a numeração dos artigos agora seja 24, 75 inc. 12 e 118. 

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Nesta província, a participação dos cidadãos nos processos penais foi ordenada pela Constituição de 198712. Foi colocada em prática pela primeira vez em 1998, sob a forma de um tribunal misto, composto por três  juízes profissionais e dois cidadãos comuns ‐ escabino ‐, chamado a intervir em  crimes graves, quando o advogado, promotor ou a vítima assim o solicitam. A participação cidadã alcançada foi bastante limitada: apenas trinta e três casos foram decididos por meio da intervenção leiga entre 1998 e 2004 (Vilanova, 2004).   Desde  2004,  a  província  de Córdoba  ampliou  a  participação  cidadã nas decisões penais mediante a lei 9.182. A lei foi aprovada no contexto de um debate nacional sobre as medidas para combater a insegurança, impulsionado por Juan Carlos Blumberg13. Assessorado pelo Manhattan Institute, de Nova York14, Blumberg reclamava o endurecimento penal e a reforma judicial como meios para melhorar a segurança urbana, assim como  a  inclusão  do  julgamento  por  júri  segundo  o  clássico modelo anglo‐saxão. 

A concorrência multitudinária das marchas de Blumberg levou à sanção  da  lei  provincial  9.182,  que  ampliava  a  experiência  de participação  popular  nos  tribunais  criminais. A  lei  criou  um  tribunal misto,  com maioria  leiga,  composto  por  oito  cidadãos  comuns  e  três juízes profissionais, que decide por maioria simples em casos de crimes hediondos e de corrupção. 

Durante o debate parlamentar ficou evidente que esta iniciativa também  havia  sido  impulsionada  pelo  interesse  em  recuperar  a confiança na Justiça. O membro que representava a maioria expressou o principal objetivo da lei nos seguintes termos:  

“... o povo argentino pediu justiça porque sentiu que não tinha; o povo argentino pediu segurança, porque não tinha; o povo argentino pediu para  acreditar  em  suas  instituições  porque  já  não  acreditava.  Então, 

                                                            12 Constituição da província de Córdoba, Artigo 162. La ley puede determinar los casos en que los Tribunales colegiados son también integrados por jurados. 

13  Para  uma  análise  mais  detalhada  do  discurso  deste  movimento  social  consultar Pegoraro (2004) e Tufró (2007). 

14 Blumberg. Se Reunió con Policías en Nueva York, La Nación, Jun. 6, 2004. Disponível em: http://buscador.lanacion.com.ar/Nota.asp?nota_id=607975&high=Manhattan%20Institute. 

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nós, os legisladores de Córdoba, devemos responder ao apelo popular e  criar  as  instituições  que  nos  permitam  repor  um  pacto  social  que estava perdido, para criar uma ponte entre o povo e seus líderes, para gerar aquela crença que se perdeu no  tempo. Temos de  reconstruir o contrato social. Para isso, são necessários os julgamentos por júri, pois esse é um instrumento que nos leva ao objetivo  já mencionadoʺ (texto do debate transcrito em Ferrer e Grundy, 2005, p.101).  

 O objetivo de relegitimar o poder judiciário por esta via também 

era compartilhado naquele momento por outros atores sociais. Assim, o presidente  da Associação  de Magistrados, Víctor Vélez,  convocado  à Legislatura para discutir a iniciativa, expressou [em relação à ampliação do  número  de  júris]:  “é  uma  porta  que  se  abre,  por  onde  entra  um saudável sentimento de equidade natural, e por onde sai uma boa ideia sobre o funcionamento da justiça”15. 

As principais  resistências  à  iniciativa procederam da profissão jurídica. O temor de que, num contexto dominado pelo medo diante do delito, a participação dos leigos levasse a um endurecimento das penas, estimulou  a  oposição  dos  advogados.  O  forte  apoio  oferecido  pelo Tribunal  Superior  de  Justiça  contribuiu  para  a  aceitação  do  novo sistema, que após sete anos de aplicação contínua, pode ser considerado em vias de consolidação16. 

Em  particular,  a  sua  aceitação  por  aqueles  que  tiveram  a oportunidade  de  participar  como  jurados  é  alta,  como  mostram  as pesquisas realizadas pela própria Administração da  Justiça, em 2006 e 2010.  Esses  estudos  também mostraram  um  aumento  significativo  da boa imagem da justiça penal após a experiência participativa17. 

É  importante  observar,  entretanto, que  a  limitada  competência atribuída aos  tribunais mistos  cordobeses é  representada pelo  registro 

                                                            15 Publicado em La Voz del Interior, 7/08/2004. Acesso em: http://buscador.lavoz.com.ar/  16 Para uma análise detalhada do processo de aceitação desta inovação institucional, ver Bergoglio (2010). 

17  Andruet,  Ferrer  e  Croccia  (2007)  relatam  que  o  percentual  dos  que  tinham  uma imagem  boa  ou  muito  boa  da  justiça  penal  passou  de  44%  para  98%  após  a experiência  participativa. A  repetição  da mesma  pesquisa  em  2010 mostrou  que  a proporção  aumentou  de  52,3%  para  97,7%.  (Ver  este  último  relatório  em http://www.justiciacordoba.gob.ar/justiciacordoba/indexDetalle.aspx?id = 110). 

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de  apenas  150 processos no período de  2005‐2010. Durante  esses  seis anos, apenas mil e duzentas pessoas comuns tiveram oportunidade de participar das decisões penais.    Por  enquanto,  estes  dados  sugerem  que  os  efeitos  da participação leiga sobre a confiança que os cidadãos comuns depositam nas instituições judiciais podem ser ainda muito débeis. 

 6. A confiança na justiça em Córdoba  

 Os  dados  disponíveis  para  este  projeto  permitem  comparar  a 

evolução  da  confiança  na  justiça  entre  1993  e  2011,  assim  como permitem analisar algumas das dimensões dessas mudanças. Tal como se observa na  tabela abaixo, a confiança na  justiça  tem experimentado uma  leve melhora  nestes  dezoito  anos.  Embora  o  aumento  dos  que declaram que a figura do  juiz  lhes  inspira muita ou bastante confiança seja modesto, as opiniões negativas têm diminuído consideravelmente. Os  que mostravam  ter  pouca  ou muito  pouca  confiança  superavam 50%, e atualmente representam 40%.  Tabela 3. Confiança na figura do juiz, 1993‐2011.  

Ano O juiz inspira     1993  2011   Muita confiança  3,6%  3,7%    Bastante confiança  14,5%  16,6%    Confiança regular  28,7%  39,4%    Pouca confiança  38,1%  23,7%   Muito pouca confiança  15,2%  16,6% Total  100,0%  100,0% Relação estatisticamente significativa –  Qui Quadrado = 21,663 significativo para p<.000 Fonte: Pesquisas de população geral, Córdoba capital, 1993 e 2011. 

 Entender estas mudanças requer também entender as modificações 

experimentadas  nos  pontos  de  vista  sobre  os  diversos  aspectos  da administração  da  justiça,  que  são  avaliados  pelos  cidadãos  na construção  de  suas  opiniões.  Para  este  projeto  foi  selecionado  um 

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conjunto de dimensões  conectadas  com valores democráticos  centrais, tal  como  a  independência  do  poder  político,  a  imparcialidade  diante dos  interesses  econômicos,  e  a  igualdade  de  tratamento  a  todos  os cidadãos,  sem  importar  sua  condição.  Também  foram  incorporadas outras: como a honestidade dos magistrados (entendida coletivamente), e sua eficácia no desenvolvimento de tarefas específicas, incluindo aqui um  nível de  castigo penal  suficiente, desde  a perspectiva do  cidadão comum. 

Ao  revisar  as modificações  da  opinião  cidadã  nestes  aspectos, importa  considerar  que  a  experiência  direta  com  a  administração  de justiça se tornou mais frequente: a porcentagem da população que tinha contato com tribunais passou de 33% a 45% nos últimos dezoito anos. O dado fornece uma representação empírica da tendência à legalização da vida, destacada por Habermas. 

É  interessante  observar  que  a  percepção  do  cidadão  sobre  a independência  dos  tribunais  com  relação  ao  governo  parece  menos negativa;  a  diferença,  relativamente  baixa,  alcança  uma  significância estatística18. O mesmo  ocorre  com  a  avaliação  cidadã  da  honestidade dos  magistrados,  onde  as  observações  críticas  têm  diminuído.  No período  transcorrido  também  tem  melhorado  a  opinião  sobre  a eficiência  dos  tribunais  no  cumprimento  de  suas  tarefas  específicas. Estas  mudanças,  estatisticamente  significativas,  podem  estar relacionadas com a maior  transparência da  função  judicial promovida pela participação leiga no processo penal. 

A Tabela 4 informa, da mesma forma, que a proporção de cidadãos que pensam que o delito recebe um nível suficiente de castigo penal tem aumentado,  relação  que  alcança  significância  estatística.  É  interessante observar que a maior satisfação com os resultados do processo penal não procede de um endurecimento das penas, pois a análise pormenorizada das sentenças emitidas pelos tribunais mistos indica que isso não ocorreu (Bergoglio e Amietta, 2010). Este resultado sugere que a participação leiga melhora  a  legitimação  das  decisões  penais,  moderando  as  críticas  em direção aos resultados dos processos (Park, 2010).                                                             18 Deve‐se observar que a melhoria na imagem da independência judicial no período de 1993‐2011  também  pode  se  conectar  às mudanças  no  processo  de  designação  dos magistrados, iniciadas em 2000 com a criação do Conselho de Magistratura. 

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Tabela 4 – Opiniões sobre a justiça, 1993 – 2011.  

Ano    1993  2011 

Qui‐quadrado 

Muito alta  5,8%  6,2% Bastante alta  13,7%  19,9% Bastante baixa  32,0%  40,7% 

Independência dos tribunais  com relação ao governo 

Baixa  48,5%  33,3% Total  100,0% 100,0%

18,19 significativo para p <,000 

Concordo  31,9%  30,5% Imparcialidade nos  julgamentos penais  

Discordo  68,1%  69,5% 

Total  100,0% 100,0%

0, 18 Não significativo 

Concordo  20,8%  26,0% Imparcialidade nos  processos econômicos  

Discordo  79,2%  74,0% 

Total  100,0% 100,0%

2,95 Não significativo 

É  dado  o  mesmo tratamento a todos 

7,1%  8,3% Na  aplicação  das leis penais 

Se  faz  diferença  de acordo  com  quem  se trata 

92,9%  91,7% 

Total  100,0% 100,0%

0,46 Não significativo 

Sim  10,0%  15,4% Pune‐se suficientemente  a delito  

Não 90,0%  84,6% 

Total  100,0%  100,0% 

5,42 significativo  para p < ,02 

Muitos  23,5%  20,9% Bastante  42,5%  33,9% Poucos  28,9%  41,4% 

Casos  de  corrupção entre os juízes  

Nenhum  5,1%  3,8% Total  100,0%  100,0% 

12,17 significativo  para p <,007 

Muito bom/bom  16,0%  27,7% Regular  62,5%  55,2% 

Funcionamento  dos tribunais  

Mal/Muito mal  21,5%  17,1% Total  100,0%  100,0% 

26,39 significativo  para p <,000 

Fonte: Pesquisas de opinião da população, Córdoba capital, 1993 e 2011.   

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A tabela mostra também que as opiniões sobre a capacidade dos juízes em tomar decisões independentes de pressões econômicas, tanto em  matéria  penal  como  em  outros  assuntos,  praticamente  não  se alterou.  Tanto  em  1993  como  em  2011,  mais  de  dois  terços  dos entrevistados  questionaram  a  imparcialidade  dos  juízes;  a  proporção não  sofreu  diferenças  estatisticamente  significativas  no  período considerado.  Da  mesma  forma,  a  observação  acerca  do  tratamento dispensado pelos  juízes aos cidadãos reflete que as diferenças sociais e econômicas  se mantiveram  em  níveis  semelhantes  aos  de  1993.  Estes dados sugerem que ainda são necessários maiores esforços no sentido de  promover  a  realização  dos  ideais  de  igualdade  perante  a  lei  em vários aspectos do contato dos cidadãos com a administração da justiça.     As  mudanças  no  modo  como  os  cidadãos  avaliam  a independência  e  a honestidade dos magistrados,  assim  como o modo que  funcionam  os  tribunais  em  geral,  e  particularmente  os  penais, permite  explicar  a  ligeira  melhora  na  confiança  na  justiça experimentada  em Córdoba no período de 1993‐2011. Como mostra a Tabela 5 todas estas dimensões se relacionam significativamente com a confiança na justiça.   O  quadro  mostra,  da  mesma  forma,  que  a  opinião  sobre  a imparcialidade  dos  juízes  e  sua  capacidade  de  proporcionar  aos cidadãos  igualdade  de  tratamento  ‐  dimensões  em  que  a  avaliação cidadã  é  negativa  para  ambas  as  datas  ‐,  também  estão  associadas  à confiança na justiça. Isso provavelmente explica o modesto aumento de confiança  na  justiça  registrado  no  período  considerado  e  sugere possíveis rumos para a futura ação orientada a melhorar a relação entre judiciáveis e juízes.          

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Tabela  5  –  Correlações  entre  a  avaliação  da  ação  judicial  e  a  confiança  na justiça.  Dimensão     1993  2011 

Correlação de Pearson 1  1 Sig. (bilateral)  .  . O juiz inspira confiança N  394  434 Correlação de Pearson ,180(**)  ,128(*) Sig. (bilateral)  ,000  ,010 

Independência dos tribunais em relação ao governo 

N  394  401 Correlação de Pearson ,246(**)  ,235(**) Sig. (bilateral)  ,000  ,000 

Imparcialidade nos julgamentos penais  

N  381  415 Correlação de Pearson ,263(**)  ,299(**) Sig. (bilateral)  ,000  ,000 

Imparcialidade em processos econômicos 

N  375  415 Correlação de Pearson ,233(**)  ,192(**) Sig. (bilateral)  ,000  ,000 

Tratamento na aplicação das leis penais 

N  391  426 Correlação de Pearson ,370(**)  ,356(**) Sig. (bilateral)  ,000  ,000 Funcionamento dos tribunais N  372  394 Correlação de Pearson ‐,305(**)  ‐,324(**) Sig. (bilateral)  ,000  ,000 Casos de corrupção entre os juízesN  309  420 Correlação de Pearson ,160(**)  ,152(**) Sig. (bilateral)  ,002  ,002  Pune‐se suficientemente o delito N  387  416 

* A correlação é significativa ao nível 0,05 (bilateral). ** A correlação é significativa ao nível 0,01 (bilateral).  7. A opinião sobre o julgamento por júri  

 Os  dados  coletados  também  permitem  analisar  como  o  apoio  ao 

julgamento por  júri  evoluiu  entre  1993  e  2011. Duas perguntas  foram utilizadas  para  analisar  a  opinião  diante  da  participação  pública  na 

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justiça penal, utilizando uma formulação geral e outra personalizada19. Como se pode ver na Tabela 6, em ambas as datas o apoio à intervenção dos  leigos  nos  processos  penais  é  claramente maioritária.  Também  é possível  observar  que  é  baixa  a  proporção  dos  que  se  opõem abertamente ao sistema. 

É  interessante  observar,  entretanto,  que  a  implementação  da instituição não representou grandes mudanças na atitude dos cidadãos em relação ao julgamento por júri. Foi registrado um pequeno aumento da  opinião  favorável  (não  significativo),  alcançado  especialmente  por aqueles  que  não  expressaram  opinião  em  1993.  A  desagregação  dos dados  indica  que  esse  avanço  na  adesão  à  instituição  é  registrado principalmente entre as pessoas com baixo nível de escolaridade.  Tabela 6 – Evolução da opinião sobre o julgamento por júri.  

Ano    1993  2011 

Qui Quadrado 

A favor  58,9%  62,3% Nem a favor nem contra  25,3%  21,9% 

Opinião  sobre  o julgamento por júri 

Contra  15,8%  15,8% Total  100,0%  100,0% 

1,43 Não significativo 

Os juizes  33,8%  38,0% Se  você  fosse acusado,  preferiria que decidissem  

Um júri formado por pessoas comuns 

66,2%  62,0% 

Total  100,0%  100,0% 

1,51 Não significativo 

Fonte: Pesquisas de opinião da população  em geral, Córdoba  capital,  1993  e 2011.  

As pesquisas  empíricas  têm demonstrado que  é  comum que  a imagem  dos  júris  seja mais  favorável  que  a  dos  juízes  nos  países  do Common Law, como ocorre na Inglaterra e no País de Gales, na Nova 

                                                            19 A  formulação  utilizada  foi:  Como  você  sabe,  em  Córdoba  um  júri  de  cidadãos  comuns escolhidos  por  sorteio  atua,  juntamente  com  juízes,  em  julgamentos  criminais  graves,  para decidir se o acusado é culpado ou não do crime de que é acusado. No geral, qual é sua opinião sobre este sistema? E se você fosse o réu, quem você preferiria que decidisse se ele é culpado ou inocente? 

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Zelândia e nos Estados Unidos. Por outro lado, as pesquisas realizadas nos países de  tradição  civilista mostram uma  variedade de  situações. (Roberts e Hough, 2009). 

Os dados disponíveis também permitem observar a relação entre a  atitude  em  direção  ao  julgamento  por  júri  e  a  confiança  na  justiça (Tabela 7). Em 1993, quando a instituição não estava em vigor, a adesão a essa forma de  julgamento penal parecia mais frequente entre aqueles que confiavam pouco na justiça. Esta relação se fazia visível no que diz respeito  ao  apoio  em  geral,  como  o  recolhido  de  modo  pessoal,  e alcançava  também  significância  estatística.  Tal  como  foi mencionado acima, o  interesse em  implementar a participação dos  leigos  foi maior entre aqueles que tinham uma opinião negativa dos magistrados. 

Por outro  lado,  em 2011,  esta  ligação do apelo da participação popular nas decisões penais com a desconfiança na justiça desapareceu. O apoio geral para o julgamento por júri não foi influenciado pelo nível de confiança na  justiça. Trata‐se de um traço  interessante, que  indica a aceitação paulatina da instituição entre os cidadãos comuns.   Tabela 7 – Confiança na justiça e a opinião sobre o julgamento por júri.  

1993  2011 

Confiança nos juízes  Confiança nos juízes 

 Muita /bastante Regular

Pouca/ muito pouca 

Muita /bastante Regular

Pouca/ muito pouca 

A favor  47,0%  55,0%  66,0%  63,6%  59,5%  63,6% Nem  a favor  nem contra 

28,8%  29,4%  21,4%  22,7%  22,7%  20,8% 

Contra  24,2%  15,6%  12,6%  13,6%  17,8%  15,6% Total  100,0%  100,0%  100,0%  100,0%  100,0%  100,0% 

Opinião  do julgamento por júri  

R  de Pearson 

‐0,158(**),  significativa  para p < 0,002  

0,010, não significativa  

* A correlação é significativa ao nível 0,05 (bilateral). ** A correlação é significativa ao nível 0,01 (bilateral).  

Esta interpretação é reforçada pelo vínculo entre a disposição para atuar  como  jurado  e  a  confiança na  justiça,  já que os que  confiam na 

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justiça mostram maior disponibilidade em assumir as responsabilidades nas decisões penais.  8. Considerações finais 

 Tal como foi destacado na introdução, a relação entre o julgamento 

por  júri  e  a  confiança  nos  magistrados  é  complexa.  A  experiência comparada  mostra  que  o  apelo  de  participação  popular  na administração da justiça surge habitualmente em condições de crises na relação  entre os  juízes  e os  judiciáveis, quando a  confiança  cidadã no modo  em  que  os  magistrados  cumprem  suas  responsabilidades  se debilita.  Entretanto,  em  longo  prazo,  a  participação  leiga  na administração  da  justiça  tem  efeitos  positivos  sobre  a  confiança  na justiça, uma vez que consegue consolidar o prestígio dos magistrados.  

Os mecanismos que  contribuem para  este  resultado  são variados. Em  primeiro  lugar,  tal  como  destaca  Park  (2010)  analisando  o  caso coreano,  a  simples  presença  dos  cidadãos  comuns modera  as  críticas nas  decisões  penais.  Este  resultado  é  mais  provável  quando  os processos penais recebem uma cobertura ampla da mídia. 

Em  segundo  lugar,  tal  como  observou  Tocqueville,  na  interação entre os  juízes e  jurados as diferenças de conhecimentos entre  leigos e letrados  são  evidentes,  o  que  permite  consolidar  o  prestígio  dos magistrados. Nos  tribunais mistos,  onde  a  deliberação  é  conjunta,  há muitas oportunidades para este tipo de interação. 

Por  outro  lado,  espera‐se  que  aqueles  que  participaram  como jurados  avaliem  positivamente  sua  experiência  e  a  compartilhem  nas várias  redes  sociais  nas  quais  participam.  O  fato  de  que  as  pessoas comuns  discutam  seus  encontros  positivos  com  a  administração  da justiça beneficia a legitimidade do sistema como um todo. 

Em Córdoba, o contexto em que surgiu a lei 9.182 foi marcado pela débil  legitimidade da administração da  justiça. Os dados coletados em 1993 confirmam a associação entre a desconfiança nos magistrados e a adesão ao  julgamento por  júri, uma relação que apareceu  também nos debates parlamentares da lei 9.182, em 2004. 

As pesquisas de opinião realizadas entre os cidadãos comuns após seis  anos  de  aplicação  contínua  dos  tribunais  mistos  revelam  uma 

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melhoria  da  confiança  na  justiça,  pequena,  mas  estatisticamente significativa. Para  interpretar essas mudanças, é necessário observar se os mecanismos  que  explicam  a  ligação  entre  a  participação  leiga  e  a legitimidade da justiça também estão presentes. 

De fato, desde a incorporação do sistema, a cobertura da mídia dos processos com  intervenção  leiga  tem sido  intensa20, por  isso é possível esperar o efeito anunciado por Park, no sentido de que a presença dos cidadãos  comuns  reduz  as  críticas  externas  nas  decisões  penais.  Na verdade,  nos  dados  coletados  em  2011,  se  observa  que  a  satisfação cidadã  com o nível de punição  criminal melhorou,  conforme  relatado acima. 

Por outro  lado, como  foi relatada em estudos que  incluíam dados qualitativos,  a  interação  entre  os  juízes  e  jurados  no  âmbito  dos tribunais mistos cordobeses se desenrola geralmente como uma relação pedagógica,  na  qual  os  juízes  se  posicionam  como  professores permanentemente disponíveis para ajudar com seus conhecimentos os cidadãos  comuns  e  responder  as  suas  perguntas21. Da mesma  forma, aqueles que prestaram  serviço  como  jurados  estão  satisfeitos  com  sua experiência  e  melhoraram  suas  opiniões  sobre  a  administração  da justiça22. 

Dadas  estas  condições  favoráveis para  que  o  efeito  esperado  seja registrado, cabe questionar por que este resulta relativamente modesto. É necessário  levar  em  conta que  a  experiência  cordobesa de  tribunais mistos  é  bastante  limitada:  apenas  150  processos  ao  longo  de  um período  de  seis  anos. Neste  sentido, mesmo  que  a  experiência  tenha sido  favorável,  o  número  de  pessoas  comuns  envolvidas  é  baixo  em comparação à população23. 

                                                            20 O mais  importante  jornal da província, La Voz del  Interior, publicou 162 notas sobre estas questões durante o ano de 2007 e 178 notas em 2008. Em cidades pequenas, a intensidade da cobertura da mídia provocou  reclamações dos  jurados entrevistados para este projeto. (Bergoglio, 2011). 

21 Ver Bergoglio e Amietta (2010) e Amietta (2011). 22 Ver referências na nota 17. 23 A  comparação  internacional do número de  convocações para o  serviço de  jurado a cada  ano  ilustra  este  ponto.  Park  (2010)  estima  que  nos  Estados  Unidos  foram distribuídos aproximadamente 2.000.000 de convocações para o serviço de júri a cada 

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Deve‐se  considerar  também  que  a  experiência  cordobesa  em julgamentos  por  júri  ocorreu  durante  um  período  marcado  pela tendência a uma certa melhoria na imagem da administração da justiça no país (ver Tabela 2). No entanto, um estudo recente que compara as avaliações  sobre  o  funcionamento  da  justiça  em  diferentes  regiões descobriu  que  as  opiniões  positivas  são  ligeiramente  maiores  na província de Córdoba,  em  comparação ao  resto do país, onde não  foi implementada a intervenção leiga na administração da justiça24. 

Estes  dados  sugerem  que  a  implementação  dos  julgamentos  por júri poderia  ter  ‐ a  longo prazo  ‐ efeitos positivos sobre a  imagem dos magistrados,  como  sugerido  teoricamente  e  observado  nos  dados coletados de cidadãos com experiência em participação em julgamentos por júri. Neste sentido, caberia esperar que, no futuro, a consolidação da experiência  de  julgamentos  por  júri  em  Córdoba  melhore significativamente a legitimidade do poder judiciário.    Bibliografia  AMIETTA,  Santiago.  “Tendencias  en  Juicios  por  Jurados  en  Latinoamérica” chapter  in Bergoglio M.I.  (Ed.) Subiendo al Estrado, La Experiencia Cordobesa de Juicios por Jurados, Advocatus, Córdoba, 2010, pp. 37‐51.  AMIETTA,  Santiago,  Governance  in  Córdoba’s  Mixed  Tribunal:  A  Study  on Microphysics of Power.  Oñati Socio‐Legal Series, Vol. 1, No. 1, 2011. Disponible en SSRN: http://ssrn.com/abstract=1735502 AMIETTA, Santiago. “Poder y Saber en la experiencia de juicios con jurados en Córdoba,  Argentina.  Un  estudio  sobre  la  microfísica  del  poder.”  en  XII Congreso nacional de Sociología Jurídica. Santa Rosa de La Pampa, Argentina, pp. 1‐18, 2011. ANDRUET,  Armando,  Carlos  Francisco  Ferrer  y  Laura  Croccia,  “Jurados populares” en Gestión del sistema de Administración de Justicia y su impacto social”,                                                                                                                                                 ano,  o  que  representa  1  a  cada  154  pessoas.  Em  Córdoba  se  distribuíram  4822 convocações em 2009, ou seja, 1 por 686 habitantes. 

24 O estudo, realizado pela Universidad Siglo 21 em 2011 a nível nacional, registrou que 16%  dos  inquiridos  considerou  que  em Córdoba  a  justiça  funciona  bem  ou muito bem. Essa mesma proporção  foi de  12%  a nível nacional. Mais detalhes  sobre  esta investigação em http://www.21.edu.ar/institucional‐investigacion‐proyectos.html 

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          PARTE III   Políticas urbanas e habitacionais e seus efeitos sociais. Um estudo do Programa “Minha Casa, Minha Vida” no Brasil e na Argentina 

 María Alejandra Ciuffolini1   

Lúcia Zanin Shimbo2   1. Introdução 

 A  marginalização  social,  econômica  e  política  de  porções 

significativas da população na América Latina conflui – na maior parte dos países – com um constante processo de segregação espacial. Estas circunstâncias  de  segregação  sócio‐espacial  são  resultado  de  um conjunto  de  processos  políticos‐institucionais  e  econômicos3  mais amplos e de longa data, que têm limitado o acesso aos recursos sociais para parcelas cada vez mais significativas da população. 

No que diz  respeito  às  condições de habitabilidade urbana,  se registra  uma  dinâmica  de  isolamento  espacial  especialmente  dirigida aos  segmentos mais  pobres  da  sociedade,  sendo,  como  diz  Katzman (2000), o caso paradigmático de exclusão social hoje. 

                                                            1 Pós‐Graduação em Relações Internacionais (UCC), Mestre em Administração Pública (UNC),  doutora  em  Ciências  Sociais  (UBA).  Professora  e  pesquisadora  da Universidade Nacional de Córdoba e Universidade Católica de Córdoba. Diretora da Equipe de Pesquisa “El llano en llamasʺ. Linha de pesquisa: políticas públicas, lutas e conflitos sociais. 

2  Graduação  em  Arquitetura  e  Urbanismo  (FAU/USP),  mestrado,  doutorado  em Arquitetura e Urbanismo (EESC/USP) e pós‐doutorado no Laboratório de Habitação e Assentamentos  Humanos  (LABHAB  ‐  FAU/USP).  Docente  e  pesquisadora  do Instituto  de  Arquitetura  e  Urbanismo,  da  Universidade  de  São  Paulo  (IAU/USP). Linha de pesquisa: política habitacional, mercado  imobiliário e  trabalho no canteiro de obras.  

3 Um tratamento mais detalhado destas questões foi desenvolvido em Ciuffolini (2010a). 

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Esta tendência é observada tanto na Argentina como no Brasil, a partir de programas e experiências diferentes, mas que paradoxalmente são  nomeados  da mesma  forma. Os  programas  ʺMinha Casa, Minha Vidaʺ,  têm  um  desenho,  um  alcance  e  uma  implementação completamente distintos no caso do Brasil e de Córdoba‐Argentina. Este artigo  se  propõe  a  realizar  tanto  uma  análise  desses  programas, pontuando  suas  semelhanças  e  diferenças,  quanto  tomar  o  caso argentino,  por  ser mais  antigo,  como  referência  analítica  e  como  um anúncio de um problema empírico de larga escala para o caso do Brasil, em  relação  ao  impacto  sobre  as  relações  sociais  e  os  processos  de subjetivação a que dão lugar. 

Dessa  forma, o artigo está organizado em duas grandes  seções que  abordam  cada  um  dos  casos:  Córdoba‐Argentina  e  Brasil.  A primeira,  que  trata  do  caso  de  Córdoba,  está  organizada  em  duas partes:  a  primeira  é  uma  descrição  do  ʺMinha  Casa,  Minha  Vidaʺ (PMCMV)  e  a  segunda  analisa  o  espaço  a  partir  da  lógica  de  valor, circulação  e  significação.  A  segunda  seção  aborda  o  caso  do  Brasil, estruturada  em  duas  partes:  a  primeira  refere‐se  à  descrição  do programa, e a segunda  trata das questões  relacionadas à produção da habitação  e  às  tensões  entre  política  habitacional  e  o  PMCMV. Finalmente, na conclusão, se oferece um conjunto de reflexões sobre os mecanismos  dos  programas  analisados  e  seus  efeitos,  não  apenas habitacionais,  mas  também  sociais  e  urbanos,  a  partir  de  uma perspectiva comparativa das duas experiências.   2. ʺMinha Casa, Minha Vidaʺ, Córdoba‐Argentina 

 Um  ponto  de  partida  comum  tem  sido  o  de  entender  que  a 

habitação não é um elemento neutro, mas que possui uma  importante carga de condicionamento e controle; ao mesmo  tempo que reflete um mundo  de  signos,  desejos  e  frustrações.  Essa  condição  da  casa,  não apenas material, mas também simbólica e ideologicamente constituída, a coloca em conexão direta com a estrutura social e espacial. 

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É por isso que, em nossa investigação4, o programa – PMCMV – de  relocalização  de  populações  em  situação  de  risco  ambiental  e/ou social,  implica  uma  análise  do  processo  de  deslocalização/ deslocamento,  a partir de um marco  que  entende  o  espaço  como um recurso organizacional e como uma  força de produção do  capitalismo (Lefebvre,  1974;  Smith,  1990; Harvey,  2008). Essa  abordagem  também exige uma  compreensão do espaço  como aquele que  resulta das  lutas desencadeadas  pelo  controle  e  posse  de  recursos  sociais.  Em consequência, solicita uma análise sobre o imaginário social, as relações de  poder  e  as  formas  de  dominação  e  resistência  que  nele  se organizam5. 

O  processo  de  deslocalização/deslocamento  que  o  programa oferece,  está  guiado  pelos  imperativos  de  uma  racionalidade  técnica, uma compreensão do urbanismo e da intervenção pública que prioriza a constituição de um espaço e de uma ordem abstratos e homogêneos: ʺpaisagem anódina e repetida, cubos replicados...ʺ, no dizer de Gómez Luque (2010), ʺcidades outrasʺ6. 

Da  investigação  realizada  se  depreende  que,  embora  as melhorias habitacionais, de serviços e de equipamentos urbanos7 sejam                                                             4 A pesquisa foi realizada graças ao apoio oferecido pela Secretaria de Ciência e Técnica e pelo Centro de Investigações Jurídicas e Sociais da F. de Direito e Ciências Sociais da Universidade Nacional de Córdoba. 

5 Situados a partir de uma episteme  interpretativa que permite explorar as experiências de relocalização e suas implicações na subjetividade política, se realizou um dedicado trabalho de campo em 6 bairros da cidade de Córdoba ao longo de um ano (setembro de 2008 a novembro de 2009). Foram realizadas um total de 96 entrevistas nos bairros: Bairro Ciudad de Mis  Sueños  (18  entrevistas), Bairro Ciudad Obispo Angelelli  (19 entrevistas), Bairro Ciudad Ampliación Ferreyra (23 entrevistas), Bairro Ciudad de los Niños (5 entrevistas), Bairro Ciudad Ampliación Cabildo (23 entrevistas), Ciudad Sol Naciente  (8  entrevistas).  O  estudo  precedente  de  documentos  governamentais  e dados secundários governamentais se serve de de estatísticas oficiais. 

6 Gomez Luque, M. “La casa o  la  ciudad,  la arquitectura de  los barrios ciudades”. En Scarponetti, P. y Ciuffolini, M.A. (comps. 2010) Ojos que no ven, corazón que no siente. Relocalización territorial y conflicto vidad  social:  un  estudio  sobre  los  Barrios  Ciudades  de Córdoba. Buenos Aires: Nobuko 

7  Os  ʺbairros  cidadesʺ  possuem  os  serviços  básicos  (água  corrente,  energia  elétrica, iluminação  pública)  e  de  equipamentos  de  saúde,  ensino  fundamental,  creches  e posto policial. As casas são unidades iguais, que constam de uma cozinha, banheiro e dois quartos, em lotes autônomos com cercas e sem muros de divisão (42 m2 de área 

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inegáveis,  como  também  o  é  a  envergadura  do  plano,  é  igualmente certo que a remoção e a relocalização de numerosos assentamentos em direção aos “bairros cidades” têm gerado um complexo leque de novos problemas e, também, novas formas de precariedade e desigualdade.  2.1. Descrição do Programa ʺMinha Casa, Minha Vidaʺ, em Córdoba 

 O  PMCMV  merece  uma  análise  destacada  na  trajetória  das 

políticas  estaduais  de  habitação  tanto  por  seu  impacto,  relativamente maior,  em  comparação  com  outras  políticas  habitacionais  que  foram aplicadas  simultaneamente  na  cidade8,  como  por  apresentar características singulares e inovadoras para estas latitudes. 

Em  primeiro  lugar,  em  termos  de  recursos  aplicados,  o programa significou o maior dos  investimentos na cidade de Córdoba em matéria de política habitacional para os assentamentos precários e para as favelas. Esta escala de aplicação foi possível graças aos recursos provenientes de crédito do Banco  Interamericano de Desenvolvimento (BID)9,  o  que  solicitou  uma  adaptação  das  políticas  às  orientações  e condições  que  tal  instituição  requeria  para  o  outorgamento  dos créditos10. 

                                                                                                                                                construída  e  aproximadamente  300 m2 de  terreno). Se pensarmos na  família  típica, com  média  de  seis  pessoas  ou  mais,  estas  medidas  condenam  a  uma  intensa aglomeração;  ao  que  parece,  do  ponto  de  vista  das  políticas  públicas,  essas consequências parecem não ter sido levadas em conta no momento de se projetar os conjuntos habitacionais.  

8 Exemplos destes são: 1) O Programa Nacional PROMEBA  (Programa Melhoramento de  Bairros),  que  na  cidade  de  Córdoba  tinha  conseguido  urbanizar  apenas  três assentamentos,  que  reuniu  cerca  de  700  famílias  até  o  ano  de  2007  (Buthet  et.  all, 2007). 2) A prefeitura da cidade, sob a direção de Luis Juez entre 2004 e 2007, também foi responsável por urbanizar alguns assentamentos, mas sem muito resultado sobre o total da população que vive nas vilas. 

9 Por outro lado, o orçamento que recebia há anos atrás a Mesa de Concertación provinha do cálculo de fundos provinciais e nacionais, não de financiamento externo. 

10 Ademais das condições gerais de concessão de empréstimos, a proposta de utilização dos mesmos deve ser compatível com as políticas do BID sobre ʺDesastres Naturais e Inesperadosʺ (OP‐704), ʺReassentamentos Involuntáriosʺ (OP‐710), ʺDesenvolvimento urbano e habitaçãoʺ (OP‐751) “Meio Ambienteʺ (OP‐703). 

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A aplicação do plano implicou a relocalização de pouco mais de 35 assentamentos dos 158 que existiam em 2001 (Buthet et.al., 2007). Isso teve  um  impacto  direto  sobre  os  levantamentos  e  censos  que  foram realizados  após  sua  implementação,  que  registraram uma diminuição tanto da quantidade de pessoas que viviam em “favelas de emergência” como do número de favelas registradas na cidade. 

Por sua vez, as condições de administração do PMCMV também foram  inovadoras. Em primeiro  lugar, o plano estava enquadrado em uma  nova  constelação  administrativa  que  organizava  o  aparato burocrático do Estado Provincial em ʺAgênciasʺ, em conformidade com as  propostas  de modernização  e  reforma  do  Estado11.  Isso  anunciava uma  nova  perspectiva  para  articular  atores  privados  e  públicos  no campo das políticas públicas e realizar mudanças nas modalidades de projeto e execução12. Em segundo  lugar, o plano fez convergir, em sua estratégia,  três  unidades  administrativas  diferentes:  o  Departamento Provincial da Habitação do Ministério de Obras e Serviços Públicos, e a ex‐Agência Córdoba Solidária (antigo Ministério do Desenvolvimento e Assistência  Social  e  atual  Ministério  da  Solidariedade)  e  a  Agência Córdoba Ambiente. 

O  PMCMV  foi  destinado  para  os  grupos  vulneráveis  que habitavam zonas inundáveis13 da cidade de Córdoba, com necessidades básicas  insatisfeitas  (NBI).  Ele  envolveu  a  relocalização  de  favelas  e assentamentos de  emergência  em novos bairros,  longe das  regiões de origem. Também contemplou a construção de pequenos assentamentos com menores dimensões do que os “bairros cidades”. 

O  programa  previa  a  construção  de  12.000  unidades habitacionais,  das  quais  8.537  foram  realizadas.  Estas  casas  estão incluídas  no  Programa  de  Regularização  de  Habitações  Sociais (Programa  Escrituração  de  Vivendas  Sociales)  do  Ministério  do Desenvolvimento  Social,  que  concede  a  escritura  gratuita  às  famílias 

                                                            11 Leis provinciais de Reforma do Estado: Lei de  8835  (ʺCarta  ao  cidadãoʺ), Lei  8.836 (ʺModernização  do  Estadoʺ),  Lei  8837  (ʺIncorporação  de  capital  privado  ao  setor públicoʺ). 

12 Ver Boito et. al (2009), Nallino (2003). 13 Em seguida, se estendeu à população em risco social. 

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beneficiárias,  completando  o  que  previa  o  PMCMV  em  relação  à regularização de posse. 

O  programa  previu  a  entrega  às  famílias  de  módulos habitacionais que compreendiam dois quartos, cozinha e banheiro, com uma  área  de  42 metros  quadrados. Além  disso,  os  “bairros  cidades” foram equipados com escolas de nível inicial e primário, posto policial, posto  de  saúde,  áreas  comerciais  e  área  de  esportes,  contando,  em alguns  casos,  com um  centro de  capacitação – O Conselho Territorial. Ademais,  eles  foram  equipados  com  infraestrutura  de  rede  de  água potável, energia elétrica,  iluminação pública, calçadas, pavimentação e rede de esgoto com estação de tratamento da água. 

Para  levar  adiante  este  Programa,  uma  equipe  da  área  de Habitação Social do Ministério da Solidariedade realizou censos com os beneficiários,  anunciando  o  futuro  remanejamento.  Posteriormente, promoveram oficinas para  capacitar os novos proprietários quanto ao manejo adequado da infraestrutura habitacional antes da transferência. 

A  transferência  foi  realizada  pela  Guarda  Nacional,  forças policiais  e  uma  equipe  do Ministério  do Desenvolvimento  Social. As casas desocupadas eram demolidas por tratores presentes no local para evitar  a  ocupação  das mesmas  por  outras  pessoas,  e  para  realizar  a reabilitação  ambiental  dessas  áreas,  conforme  estipulava  o  convênio com o BID. 

O  PMCMV  foi  financiado  pelo  BID,  juntamente  com  uma contrapartida da província. O primeiro empréstimo se concretizou em 2000  –  empréstimo  1287/OC‐AR  –  através  do  qual  o  BID  avalizou  o ʺPlano  de Apoio  à Modernização  do  Estadoʺ  (Programa  de Apoyo  a  la Modernización  del Estado  ‐ PAME)14. Dentro do marco deste programa tomam corpo o ʺProjeto de Emergência para a Reabilitação Habitacional dos  Grupos  Vulneráveis  Afetados  pelas  Inundações  na  Cidade  de 

                                                            14 BID  empréstimo  1287/OC‐AR. Montante  total  aprovado pelo BID: USD  215.000.000 (USD  93.282.000  corresponderam  ao  componente  de  emergência  habitacional). Financiamento: 20 anos, 7,03% de juros anuais. Montante total de contrapartida local (Província):  USD  215.000.000.  Data  de  Aprovação:  2000.  Data  de  finalização  do projeto: 2007. Avalista: Governo Nacional. Além do empréstimo obtido com o BID, tomadas para este fim de modernização, a Província conseguiu a aprovação de outro empréstimo pelo Banco Mundial (Córdoba Provincial Reform Loan, 4585‐AR). 

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Córdobaʺ (Proyecto de Emergencia para la Rehabilitación Habitacional de los Grupos Vulnerables Afectados por las Inundaciones en la Ciudad de Córdoba) e  o  programa  ʺMinha  Casa, Minha  Vidaʺ  (PMCMV).  Em  2006,  este programa  recebe outra ajuda  como parte de um  segundo empréstimo concedido  também  pelo  BID  à  Província  de  Córdoba:  o  empréstimo 1765/OC‐AR, conhecido como ʺPrograma de Desenvolvimento Social na Província de Córdobaʺ  (Programa  de Desarrollo Social  en  la Provincia  de Córdoba)15. 

Os objetivos do PMCMV eram: contribuir para o melhoramento integral da moradia e das condições de vida das famílias beneficiárias; apoiar  os  processos  de  organização  social,  promoção  comunitária  e desenvolvimento auto‐sustentável dos grupos que foram afetados pelas inundações do Rio Suquía,  seus afluentes e canais, e as áreas de  risco antrópicas, especialmente aquelas relacionadas às situações de pobreza e de vulnerabilidade social; relocalizar em um Novo Bairro as famílias beneficiárias, dando‐lhes uma moradia com serviços básicos e escritura individual;  prover  as  novas  localizações  de  equipamentos  e infraestrutura social, possibilitando o acesso aos serviços de educação e saúde;  fortalecer  os  processos  de  organização  social  e  as  redes comunitárias  da  população  beneficiária;  promover  a  participação  das famílias na gestão do projeto16. 

Alguns dos “bairros cidades” criados pelo PMCMV são: Ciudad de Mis Sueños (565 casas); Ciudad Obispo Angelelli (564); Ciudad Evita (574); Barrio 29 de Mayo‐Ciudad de  los Cuartetos (480); Ciudad de  los Niños  (412);  Ciudad  Juan  Pablo  II  (359);  Ampliación  Ferreyra  (460); Ciudad  Villa  Retiro  (264);  Ciudad  Parque  Las  Rosas‐Matienzo  (312); Ampliación  Cabildo  (570);  Ciudad  Esperanza  (380)  e  Ciudad  Sol Naciente  (638).  Outros  bairros  incluídos  no  PMCMV:  Barrio Renacimiento  (233);  Barrio  San  Lucas  (230);  Zepa  (380),  Villa  Bustos (197), Los Boulevares (98), Parque Liceo (25), El Quebracho Anexo (230), 

                                                            15 BID empréstimo 1765/OC‐AR. Montante  total aprovado pelo BID: USD 180.000.000. Financiamento: 25 anos, a juros baseados na LIBOR. Montante total de contrapartida local  (Província):  USD  35.000.000.  Data  de  Aprovação:  2006.  Avalista:  Governo Nacional. 

16  Projeto  de  Emergência  para  a  Reabilitação Habitacional  dos Grupos  Vulneráveis Afetados pelas Inundações na cidade de Córdoba. 

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Villa Azalais  (359) Argüello Anexo  (147  casas),  San Lorenzo  (574), La Esperanza  (80),  Chachapoyas  (202),  Los Álamos  (178),  Yapeyú  (138), Villa Boedo  (128),  Jardín del Pilar  (312), Las Lilas  (81), Los Chingolos (266),  Santa  Isabel  (54),  San  Antonio  (188),  Inaudi  Anexo  (60);  e  na Grande Córdoba: Malvinas Argentinas (131, nos planos 1 e 2) y Juárez Celman (412), e o bairro de Alta Gracia denominado Cafferata (76). 

A estas características que concedem singularidades ao PMCMV se acrescenta outra: certa retórica da emergência e da urgência em sua concepção  e  justificativa.  Trata‐se  de  um  argumento  no  qual  a ʺemergênciaʺ está associada a uma situação de risco que, enquanto tal, não pode ser enfrentada com os meios ordinários, e cujo perigo latente exige  um  tratamento  urgente,  diante  do  qual  se  requer  uma  ação imediata  do  Estado.  Consequentemente,  se  suspende  o  tratamento legislativo  que  tais  medidas  implicariam,  dando  lugar  ao  uso  de faculdades  puras  do  poder  executivo,  como  o  decreto17.  Neste  caso, ademais,  a  agilidade  nas  ações  é  uma  exigência  da  agência financiadora18  –  BID  –,  já  que  a  situação  de  emergência  impõe  uma dinâmica  de  flexibilidade  jurídica,  na  qual  as  normas  têm  a particularidade  de  ser  pragmaticamente  adaptáveis  às  circunstância cambiantes. 

Em outras palavras, a emergência torna‐se a base para um novo ʺpacto  socialʺ  entre  os  indivíduos  e  a  estatalidade.  Como  explicou Murillo  (2008), essa nova relação  já não se assenta na  ideia de direitos sociais universais, mas  sim  em uma  espécie de novo humanismo que reduz  a  questão  social  à  atenção  a  um  mínimo  biológico:  ʺas necessidades  básicasʺ.  A  política  social  tem  assim  seu  eixo  em  uma visão  ʺminimizadoraʺ  das  necessidades  humanas  que  tende,  por  um lado,  a  se mostrar  com  certa  aparência  de  intervenção  voluntária  ou moral das políticas de Estado e, por outro  lado, digna‐se a  legitimar a 

                                                            17 Esta situação foi formalizada pelo Decreto de Necessidade e Urgência Provincial N º 2565/01 que declara ʺo estado de emergência hídrica e social na capital da província, em  tudo o que ocorre às  imediações e margens do Rio Suquía,  canais de  irrigação, margens de leite de rios e em áreas sujeitas a inundaçõesʺ. 

18 De acordo  com o Regulamento Operacional do BID OP 704:  ʺPara obter assistência imediata  em  caso  de  desastre,  o  país  mutuário  deve  declarar  um  estado  de emergência e solicitar assistência do Banco em função da sequela do desastreʺ. 

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existência de limiares de cidadania ou de diferentes níveis de cidadania (Ciuffolini  e  Vega,  de  2009;  de  la  Vega,  2010)  que  negam  qualquer caráter igualitário de direitos. 

Esse desenho de intervenção estatal favorece um tratamento ágil e  focalizado dos problemas,  em detrimento de uma ação  integral que ofereça soluções ao complexo fenômeno da pobreza. Assim, o PMCMV atende prontamente a questão da  falta de moradia, mas reproduz, em seu desenho, as formas de exclusão a ela associadas. Nesse sentido, vale destacar  a  intensificação da  segregação  espacial.  Isso  ocorre porque  o programa  opera  um  deslocamento  geográfico  dos  pobres  para  as margens da cidade, agravando outras situações de exclusão, como as de emprego, de acesso a serviços básicos, como saúde e/ou transporte, etc. Consequentemente,  criam‐se novos  ou  reforçam‐se velhos padrões de desigualdade e de acesso e uso da cidade. 

O  deslocamento  massivo  e  a  relocalização  de  tantos assentamentos  para  os  ʺbairros  cidadesʺ  têm  ʺliberadoʺ  importantes espaços  na  área  central  para  empreendimentos  privados  e  públicos, revalorizando  a  terra  e  tornando‐a  inacessível  aos  segmentos de mais baixa  renda.  Isso  leva  a  um  processo  de  ʺsuburbanizaçãoʺ,  porque  a população  se  estabelece  cada  vez mais  longe  dos  núcleos  centrais,  e produz  uma menor  densidade  habitacional  na  cidade. Assim,  a  área destinada ao uso urbano aumentou,  entre 1991  e 2001,  em 320% para além  do  crescimento  populacional,  produto  tanto  do  mercado imobiliário  quanto  dos  planos  estatais  de  habitação  e,  ainda,  das famílias que se veem obrigadas a afastar‐se cada vez mais em busca de terrenos acessíveis.  2.2 O espaço: lógicas de circulação, significação e valor 

 A  estrutura  da  economia  capitalista  funciona  assumindo  todo 

aquele conteúdo do qual deseja se proteger. O que ameaça o capital não é  a  violência, mas  o  seu  exterior:  que  exista  algo  fora  dele.  Por  esta razão, sua dinâmica é a de um processo constante de  reintrodução de tudo  aquilo  que  lhe  é  alheio.  Este  processo  de  mercantilização permanente da  lógica econômico‐política é o mecanismo através do qual se administra e promove a reprodução das relações sociais capitalistas. 

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Nesta  reprodução  intervém  –  algumas  vezes,  por  momentos solidários, em outros, competitivos ou conflitantes – o Estado e o capital privado. O  jogo que se estabelece entre ambos reorganiza, redefine ou mesmo  reconfigura o uso do espaço e as  significações  sociais que  são tecidas sobre ele. Assim, “toda  intervenção urbana é acompanhada de transformações das atividades e dos valores da sociedade considerada, assim  como  de  transformações  efetivas  dos  indivíduos  e  dos  objetos sociaisʺ (Castoriadis, 1989:21). 

A  infraestrutura  urbana,  sua  disponibilidade,  acessibilidade  e significado,  se  mostra,  parafraseando  a  Gonzales  Ordovaz  (1998) também,  como  um mundo  de  signos,  desejos,  frustrações,  restrições evidentes  de  oportunidades  de  inserção  social.  Neste  sentido,  a habitação, sua localização e sua relação espacial com o centro da cidade e com os centros de consumo e de trabalho, etc., permitem perceber com toda clareza a simbologia e a ideologia urbana. 

Nesse  sentido,  o  funcionamento  do  PMCMV  se  orientou principalmente a retirar, da zona central e do interior do anel viário que circunda  a  cidade,  as  favelas  de  emergência  e  dos  pobres.  ʺValiososʺ terrenos  foram  desocupados  para  uso  público  ou  para empreendimentos  privados,  configurando  um  novo mapa  espacial  e social no qual a pobreza  está  confinada às periferias da  cidade. Essas dinâmicas do Estado no uso e na valorização de espaços e populações através de políticas públicas, e a forma como o mercado define algumas áreas  como  de  boa  qualidade  e,  portanto,  de  seu  interesse,  implicam toda uma engenharia do urbano na qual a população se reacomoda e se distribui de acordo com as possibilidades  financeiras para consumir e com as oportunidades de trabalhar e de produzir (Cravino, et.al., 2009). 

A população  recategorizada  socialmente  leva a  constituição de uma  cidade  dual:  por  um  lado,  a  cidade  da  população  produtora, proprietária,  que  consome  e  trabalha;  e  por  outro,  a  cidade  dos assistidos,  desapropriados,  trabalhadores  precários  e  consumidores intermitentes.  Nesses  dois  espaços  se  entrelaçam,  de  maneira diferenciada,  a  reprodução  capitalista  das  relações  sociais  e  a cotidianidade. 

É a interconexão, as articulações e as tensões reais ou potenciais entre esses espaços, que dão origem às relações de classe específicas que 

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são  produzidas  pelos  processos  históricos  –  ou  seja,  em  um  espaço‐tempo particular – de posicionamento e espacialização do trabalho, das relações sociais e das interações face‐a‐face. 

Visto desta  forma, o  espaço  compreende  as barreiras no mapa (arquitetônica  e  socialmente  delimitadas)  e  nos  horizontes  da  vida social.  A  divisão  espacial  oferece  uma  série  de  possibilidades estrategicamente  seletivas,  no  sentido  de  desenvolver  relações  sociais através  do  tempo  e  do  espaço  (Jessop,  2007:33).  Precisamente,  o  que queremos  dizer  é  que  o  espaço,  o  lugar,  o  tempo  e  a  interação favorecem  ou  não  uma  conjuntura  de  insurgência  e  resistência.  Por outro  lado,  os deslocamentos  e  relocalizações  implicam destruição de redes  de  interação,  de  solidariedades  tecidas  no  tempo  e  no  espaço (Hernandez, Mestres e Liberal Ibáñez, 2010). 

O  movimento  massivo  de  população  pobre  que  implicou  o PMCMV  teve  como  consequência  não  só  o  desenraizamento,  mas também  o  desmantelamento  das  estratégias  de  sobrevivência  que  os pobres  haviam  constituído  ao  longo  do  tempo,  as  quais  implicavam redes  de  controle  e  solidariedade  tanto  entre  os  sujeitos  como  em relação à comunidade. Especialmente problemático foi o impacto sobre as  relações  de  trabalho,  já  que  em  suas  antigas  localizações  tinham acesso  fácil  e  próximo  a  oportunidades  de  emprego  –  quer  fossem trabalhos precários e  temporários, quer  fossem serviços domésticos ou trabalhos  domiciliares,  como  costura,  carpintaria,  etc.  –,  e  o distanciamento  que  a  erradicação  implicou  em  relação  aos  demais setores sociais os colocou à margem do trabalho e,  inclusive, de outras instâncias de integração, como escolas e serviço de saúde. 

Além disso, e concomitantemente com a política de erradicação de  favelas,  ocorre  em  Córdoba  a  implantação  de  uma  política  de segurança  que  reforça  ainda mais  a  exclusão.  Ela  consiste  em  limitar e/ou controlar a circulação da população pobre – especialmente  jovens do sexo masculino – para além das fronteiras que delimitam os bairros. Assim, a mobilidade dos  segmentos populares pela cidade é  regulada pela força policial e sua política estigmatizante, que atribui à pobreza – assim, em geral – as práticas da delinquência e do crime. 

Essa  concomitância  de  políticas  de  habitação  para  setores populares  e políticas de  segurança  agudizam  as práticas de  exclusão, 

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confinando os pobres a  situações cada vez mais precárias de vida. As dinâmicas  institucionais  e  econômicas  se  combinam  em  sua  ação cotidiana,  resultando  em  formas  de  regulação,  disciplinamento  e reprodução das relações sociais classistas e capitalistas. 

Em  síntese,  nas  cidades  se  expressam  com  toda  transparência, através das localizações, dos percursos e dos consumos que se habilitam a determinados grupos, os signos das classes sociais. O espaço urbano, seu  traçado, desenho,  infraestrutura  e  aspectos  semióticos  fazem dele um espaço ocupado, carregado de qualidades, de relações, sentidos, ou seja, de  significados que  falam  a  respeito de poder, prestígio  e  status social,  e  definem,  para  cada  grupo  em  particular,  possibilidades  e restrições no acesso e uso do comum, isto é, da cidade.   3. “Minha Casa, Minha Vida” no Brasil e o protagonismo do mercado 

na política habitacional  O Programa “Minha Casa, Minha Vida” foi lançado em 2009 no 

Brasil,  portanto,  quase  uma  década  depois  do  programa  homônimo implementado  em  Córdoba.  Assim  como  o  PMCMV  de  Córdoba merece uma análise especial dentre os programas estaduais, o PMCMV – Brasil representa um marco na trajetória dos programas nacionais de habitação  dado  o  volume  de  investimentos  públicos  e  privados,  a quantidade de unidades habitacionais a serem produzidas e a sua área de  abrangência,  levando  alguns  autores  afirmar  que  “talvez  seja  o programa habitacional mais ambicioso já desenvolvido no país, mesmo considerando  os  ‘áureos  tempos’  do  BNH  [Banco  Nacional  de Habitação]” (Cardoso e Lago, 2013: 14). 

Mais do que  isso, o programa vem  corroborar o protagonismo do mercado  imobiliário na política habitacional brasileira, que  já vinha sendo  privilegiado  em  diversas medidas  regulatórias  e  institucionais desde  meados  dos  anos  1990.  Para  Arretche  (2002),  os  programas habitacionais  voltados  para  os  setores  de  renda mais  baixa  seguiram duas vertentes desde então. A primeira vertente dava continuidade ao modelo  baseado  na  promoção  pública,  por  intermédio  de  Estados  e municípios,  já praticado desde o Banco Nacional de Habitação  (BNH), 

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entre  1960  e  1980.19  A  segunda  vertente,  entretanto,  rompia  com  o desenho  institucional  do  modelo  anterior:  instaurava‐se  a  linha  de financiamento  direto  ao  mutuário  final  e  introduzia  um  novo “paradigma”  na  provisão  de  habitação  brasileira,  pautado  nos princípios de mercado.  

A  “abordagem  de mercado”  da  política  habitacional  das  duas gestões de governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso  (1995‐2002), apesar de apresentar uma significativa redução na capacidade de financiamento diante de um cenário de recessão econômica,  inovou ao criar o programa “Carta de Crédito” que permitia o acesso direto dos consumidores,  sem  a  intermediação  de  incorporadoras  ou  órgãos públicos  de  promoção  de moradia  –  como  era  necessário  até  então  ‐ para a aquisição de financiamento para obtenção da casa própria, tanto de  um  imóvel  novo  ou  usado.  Esse  programa  utilizava  os  dois principais fundos de financiamento habitacional, estabelecidos desde o BNH: o Fundo de Garantia de Tempo de  Serviço  (FGTS)  e o  Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE).20 

A  partir  de  2005,  a  produção  privada  de  moradias  se potencializou com a entrada do capital financeiro em grandes empresas construtoras e incorporadoras e com o vertiginoso aumento de recursos 

                                                            19 Nos  seus  vinte  e  dois  anos  de  existência,  entre  1964  e  1985,  o  BNH  financiou  a produção de 4,45 milhões de unidades habitacionais, correspondendo a 25% do total de novas unidades construídas no país – e dessas 4,45 milhões de unidades, somente 33,1% foi destinada para faixas de renda de 1 a 3 salários mínimos. (Royer, 2009). O modelo  de  financiamento  habitacional  adotado  desde  então  no  Brasil,  dentro  do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), foi o de criação de instrumentos de captação de  poupanças  privadas  (voluntárias  no  caso  do  Sistema  Brasileiro  de  Poupança  e Empréstimo  –  SBPE;  e  compulsórias, no  caso do  Fundo de Garantia de Tempo de Serviço – FGTS), para aplicação primordial em investimentos habitacionais, tanto na esfera da produção quanto na do consumo (Cardoso e Aragão, 2013).  

20 De  acordo  com Cardoso  e Aragão  (2013),  os  recursos  do  FGTS  são  destinados  ao investimento habitacional para o atendimento de população de baixa renda e também para  o  financiamento  de  investimentos  em  saneamento  ambiental,  remunerados  a baixas  taxas  de  juros,  sendo  atualmente  operacionalizados  pela  Caixa  Econômica Federal.  Já  os  recursos  das  cadernetas  de  poupança,  que  compõem  o  SBPE,  são administrados pelo  sistema bancário  (público  e privado),  remunerados  a uma  taxa um  pouco  superior  ao  do  FGTS  e  destinados  primordialmente  ao  financiamento habitacional para os setores de renda média. (Cardoso e Aragão, 2013: 17‐18) 

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públicos  para  o  financiamento  habitacional  para  obtenção  da  casa própria,  além de  outros  fatores  conjunturais,  tais  como  o  crescimento econômico do país, a  redução das  taxas de  juros  e a  elevação  real do valor do salário mínimo.  

A  ampliação  da  capacidade  de  financiamento  habitacional  era prevista na Política Nacional de Habitação  (PNH), elaborada em 2004 pelo primeiro governo federal de Luiz Inácio Lula da Silva (2003‐2006), que  buscava  ampliar  o mercado  para  atingir  os  “setores  populares”, permitindo a “otimização econômica dos  recursos públicos e privados investidos no setor habitacional”. Para  tanto, era prevista a criação de mecanismos  tanto de proteção  aos  financiamentos habitacionais  como de captação de recursos, entre os quais, aqueles disponíveis no mercado de capitais. (Brasil, 2004). 

Além disso, o Ministério das Cidades  foi criado, em 2003, com um  caráter  de  órgão  coordenador,  gestor  e  formulador  da  Política Nacional  de  Desenvolvimento  Urbano  (PNDU),  e  sendo  responsável pela  gestão  da  política  habitacional.  Entretanto,  ele  perdia  força operacional  diante  da  manutenção  da  Caixa  Econômica  Federal (CAIXA)21,  subordinada  ao Ministério da Fazenda,  e que  continuou  e continua a exercer enorme poder na execução da política habitacional, como agente operador dos programas e principal agente financeiro dos recursos do FGTS. 

Desde  então,  os  agentes  privados  souberam  atuar  na liminaridade  entre  o  que  a  política  especificava  como  “habitação  de interesse social” e como “habitação de mercado”, tirando proveito disso e  expandindo  consideravelmente  a  produção  habitacional  para  os setores populacionais de  renda média  e  baixa,  até  então desprezados pelas grandes empresas construtoras nacionais. Muitas dessas empresas produziram  um  estoque  de  unidades  habitacionais,  cujos  preços variavam  até  o  limite máximo  de USD  100 mil,  em  diversas  cidades 

                                                            21 Desde a falência do BNH, a CAIXA se tornou o principal agente operador e financeiro dos programas habitacionais. Assim, segundo Azevedo (2007), houve a transferência do problema da habitação a uma agência  financeira de vocação social, mas que não deixa  de  lado  os  paradigmas  institucionais  de  um  banco  comercial  (como,  por exemplo, a busca de equilíbrio financeiro, necessidade de retorno do capital aplicado etc.). 

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brasileiras, dentro daquilo que o mercado imobiliário passou a chamar, grosso modo, de “segmento econômico”.22 

A  crise  financeira  internacional  ocorrida  no  final  de  2008 ameaçou,  de  certa  forma,  a  comercialização  desse  estoque  (seja  em unidades  já produzidas, seja em  terrenos adquiridos) e a continuidade da  expansão  da  produção  habitacional  levada  a  cabo  por  grandes empresas. Em março de 2009, PMCMV‐Brasil foi lançado com o objetivo de construir um milhão de moradias e  foi apresentado como uma das principais ações do governo em reação à crise econômica internacional e também  como uma política  social de grande  escala. Ao mobilizar um conjunto de medidas de estímulo à produção habitacional, mantendo o desenvolvimento  dos  setores  imobiliário  e  da  construção  civil,  o programa atendia dois imperativos econômicos e sociais – por um lado, a criação de empregos no setor da construção, e, por outro, a provisão de moradias. Segundo Fix  e Arantes  (2009),  se  as “classes C  e D”23  já haviam sido descobertas por quase todas as empresas nos últimos anos, ainda havia  limites para a efetivação desse mercado, os quais o pacote pretendia, a princípio, superar por meio do “apoio decisivo dos fundos públicos e semipúblicos”.                                                             22 Em  Shimbo  (2012), há  o desenvolvimento do  argumento de  que  a habitação  social transformou‐se, de fato, num mercado. O mercado imobiliário descobriu e constituiu um nicho bastante lucrativo: a incorporação e a construção de unidades habitacionais com valores até duzentos mil  reais  (ou USD 100 mil), destinadas para  famílias que podem acessar os  subsídios públicos ou não – mas que necessariamente acessam o crédito  imobiliário.  Assim,  há  uma  fronteira  de  indistinção,  que  se  estabelece empiricamente, entre a forma de produção destinada à habitação de interesse social e aquela voltada para a habitação de mercado. Ou seja, considero que numa eventual gradação  que  procure  classificar,  num  extremo,  a  produção  pública  e,  no  outro,  a produção  privada,  há  uma  zona  intermediária  híbrida  –  a  “habitação  social  de mercado”. 

23 Há estudos no Brasil, baseados nos dados de renda domiciliar mensal, que classificam a população em cinco classes de renda. Neri (2008) especifica a seguinte classificação: a classe E  são aquelas  famílias que  recebem até R$768,00  (ou aproximadamente até USD 450, em dólares de março de 2008) de renda mensal; a classe D, entre R$768,00 e 1.064,00  (entre USD  450  e  630);  a  classe C  (ou  “classe média”),  entre R$1.064,00  e 4.591,00 (entre USD 630 e 2,700); e classes A e B, acima de R$4.591,00 (acima de USD 2,700).  Esse  estudo  apontou  para  o  aumento,  nos  últimos  anos  no  Brasil,  da participação da classe C. Vale destacar ainda a  renda domiciliar média, R$ 1.957,00 (ou USD 1,150). Cf. NERI, 2008. 

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3.1 Descrição do Programa “Minha Casa, Minha Vida” ‐ Brasil  Na Fase 1 do PMCMV‐Brasil, para a construção de um milhão 

de moradias em todo o território nacional foram alocados R$ 34 bilhões (ou USD 14 bilhões, em dólares de março de 2009), dos quais 75% eram provenientes  do  Orçamento  Geral  da  União  (estritamente  público  e, portanto, a fundo perdido) e 25% do FGTS (recursos onerosos a serem devolvidos ao Sistema Financeiro da Habitação ‐ SFH). Desses recursos, 82%  se  destinavam  para  subsídios  para  moradias,  15%  para infraestrutura  urbana  e  3%  para  financiamento  à  cadeia  produtiva. (Ferreira, 2012; Cardoso e Aragão, 2013) 

Em 2011,  foi  lançada a Fase 2 do programa,  com a meta de  se construir mais 2 milhões de unidades, contando com recursos entre R$ 120 bilhões e R$ 140 bilhões (ou entre USD 72 bilhões e USD 84 bilhões, em dólares de março de 2011), de acordo com reportagens no momento do  lançamento,  sem haver uma divulgação precisa da  quantidade de recursos  proveniente  de  cada  fundo.  A meta  física  foi  ampliada  em 2012, passando para 2,4 milhões de unidades habitacionais.  

O  PMCMV‐Brasil  se  apresenta  formalmente  como  um  único programa  habitacional,  mas  que  se  estrutura  operacionalmente  em linhas  ou modalidades  distintas,  de  acordo  com  faixa  de  renda  dos beneficiários, origem dos recursos e instituição proponente. Tais linhas estão agrupadas em, basicamente, duas faixas de renda: de 0 a 3 salários mínimos (SM)24 e de 3 a 10 SMs – posteriormente, a referência deixou de ser o  salário mínimo e passou a  ter um valor  fixo, ou  seja, a primeira faixa  até  R$  1.600,00  (ou  aproximadamente USD  960,  em  dólares  de março de 2011) de renda familiar mensal e a segunda, entre R$ 1.600,00 e R$5.000,00  (ou entre USD 960 e USD 3.000). Na primeira  faixa, há o subsídio  com  o  uso  de  recursos  do  Orçamento  Geral  da  União.  Na segunda,  uma  pequena  parte  é  composta  por  recursos  não  onerosos (utilizados  como  “descontos”)  e  a  grande maioria  advém de  recursos onerosos  provenientes  do  Fundo  de Garantia  por  Tempo  de  Serviço 

                                                            24 Em outubro de 2012, um salário mínimo equivale a R$622,00 ou, aproximadamente, USD 300. 

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(FGTS).  Em  ambas  as  faixas,  a  CAIXA  é  o  agente  financeiro  do programa. (Ferreira, 2012) 

Analiticamente, a primeira faixa corresponde aos programas de habitação  de  interesse  social  já  operacionalizados  no  Brasil  desde  a primeira gestão Lula, com algumas mudanças quanto ao montante de recursos,  aliás,  bastante  considerável,  e  ao  papel  dos  agentes promotores.  A  segunda  faixa  incorpora  o  segmento  econômico  à política habitacional, tornando‐se evidente o incentivo do poder público aos agentes privados na produção de habitação voltada para os setores de renda média baixa e média.  

Em  termos  de  gestão  e  de  operacionalização,  para  a  primeira faixa,  é  possível  notar  que  o  PMCMV‐Brasil  foi  paulatinamente absorvendo  linhas  de  financiamento  que  não  estavam  presentes  no momento do seu lançamento, indicando um processo de acomodação e de aperfeiçoamento do próprio programa durante sua  implementação. Em  2009,  o  programa  enfatizava  a  produção  “por  oferta”  via construtoras e aqui  trazia uma novidade quanto ao papel dos agentes promotores. Nesse  caso,  “a  construtora  define  o  terreno  e  o  projeto, aprova‐o  junto  aos  órgãos  competentes  e  vende  integralmente  o  que produzir  para  a  CAIXA,  sem  gastos  de  incorporação  imobiliária  e comercialização,  e  sem  risco  de  inadimplência  dos  compradores  ou vacância  das  unidades”.  (Cardoso  e  Aragão,  2013:  37).  A  CAIXA seleciona  e  aprova  as propostas das  construtoras  e define o  acesso  às unidades,  a partir de  listas de demanda,  elaboradas pelas prefeituras municipais. Além desse  cadastro, as prefeituras podem participar por meio da doação de  terrenos,  isenção  tributária, desburocratização nos processos  de  aprovação  e  flexibilização  das  normas  urbanísticas  para aumentar os  índices de ocupação do solo. Portanto, nessa modalidade, estão envolvidos, basicamente, empresas, CAIXA e municípios.  

Numa outra modalidade,  com menor  recurso disponível que a anterior, o agente promotor pode ser uma entidade sem fins lucrativos (cooperativas, associações de moradia etc.) que apresenta seu projeto à CAIXA que, por sua vez, efetua a análise e encaminha para o Ministério das Cidades, que faz a seleção dos projetos. Após aprovado, a entidade selecionada  envia  a  lista  de  beneficiários  a  serem  atendidos.  Nessa modalidade,  encontravam‐se  as  entidades  ligadas  às  famílias 

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moradoras em áreas rurais e os agentes principais eram: entidade sem fins lucrativos, CAIXA e Ministério das Cidades. 

Em  2013,  o  PMCMV‐Brasil  passou  a  ter  outras  linhas  de financiamento, absorvendo municípios com menos de 50 mil habitantes e  a  questão  da  moradia  rural  e,  portanto,  abrange  agora  a  quase totalidade dos programas habitacionais anteriores ao PMCMV. Assim, atualmente, há para  as  famílias  com  renda mensal  até R$  1.600,00,  as seguintes linhas: 1.  PMCMV  Empresas:  com  recursos  provenientes  do  Fundo  de Arrendamento  Residencial  (FAR),  voltado  para  capitais  estaduais, regiões metropolitanas e municípios com população igual ou superior a 50 mil habitantes, com operacionalização “por oferta” via construtoras, como explicado acima.  2.  PMCMV  Entidades:  com  recursos  do  Fundo  de  Desenvolvimento Social  (FDS), voltado para áreas urbanas de  todo o  território nacional, com operacionalização “por oferta” via entidades sem fins lucrativos. 3. PMCMV Oferta Pública: com recursos do Orçamento Geral da União (OGU)  voltado  para municípios  com  até  50 mil  habitantes  (que  não eram  atendidos  pelo  PMCMV  –  Fase  1),  com  operacionalização diferente dos anteriores, na medida em que ocorre por oferta pública de recursos a agentes financeiros privados autorizados pelo Ministério das Cidades (e não pela CAIXA).  4. Programa Nacional de Habitação Rural: voltado para áreas rurais de todo o  território nacional. Divide‐se em  três sublinhas:  i) Para  famílias com renda anual bruta de até R$ 15.000,00: com recursos do Orçamento Geral  da União;  ii)  Para  famílias  com  renda  anual  bruta  de  entre R$ 15.001,00 e R$ 30.000,00: com recursos do FGTS;  iii) Para  famílias com renda anual bruta de entre R$ 30.001,00 e R$ 60.000,00: com recursos do FGTS.  Vale  destacar  que  é  a  única  modalidade  do  PMCMV  que apresenta  a  linha  de  financiamento  para  reforma  e  ou  ampliação  de unidades habitacionais. 

Já para a segunda faixa, destinadas às famílias com renda entre R$ 1.600,00 e R$ 5.000,00, a operacionalização não se alterou desde 2009, embora  os  valores  máximos  de  financiamento  das  unidades habitacionais  tenham  sido  aumentados, devido  à pressão política das próprias  construtoras.  O  modelo  operacional  é  o  seguinte:  “as 

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construtoras  ou  incorporadoras  apresentam  projetos  de empreendimentos  à  CAIXA,  que  realiza  pré‐avaliação  e  autoriza  o lançamento e a comercialização.” (Cardoso e Aragão, 2013: 39). Após a conclusão  da  análise,  a  construtora  pode  obter  um  Contrato  de Financiamento à Produção ou apenas enquadrar  seu empreendimento para ser comercializado dentro do programa. A comercialização é feita pelas  construtoras  ou  pelos  “feirões”  da  CAIXA  e  os  consumidores podem obter uma carta de crédito dentro do PMCMV para financiarem a aquisição do imóvel. Para as famílias com renda até R$ 3.100,00, há a possibilidade  de  subvenção  de  até  R$  23.000,00,  variando  de  acordo com  a  renda  e  com  a  localidade. Nessa  faixa, portanto,  os  agentes  se resumem às construtoras e à CAIXA. 

Em  relação  às metas  físicas do PMCMV,  é possível notar uma grande  alteração  em  relação  aos  números  de  unidades  previstas  em cada uma das  faixas  entre  as  Fase  1  e  2 do programa25. Em primeiro lugar,  na  Fase  1,  evidencia‐se  o  direcionamento  dos  recursos  para  o segmento econômico do mercado  imobiliário, destinando 60% do  total do número de unidades habitacionais, ou seja, 600 mil unidades, para as faixas  de  renda  que  representam  apenas  10%  do  déficit  habitacional brasileiro26, ou  seja para as  famílias  com  renda entre R$ 1.395,00 e R$ 4.650,00. E, para a faixa de renda de até 3 SMs (ou até R$ 1.395,00), que concentra aproximadamente 90% do déficit, foram destinadas, 40% das unidades, ou seja, 400 mil unidades.  

Em segundo lugar, reforça o argumento de que o programa foi, aos  poucos,  se  acomodando  e  se  voltando  para  as  modalidades  da habitação  social  strictu  sensu  –  na  Fase  2,  a  faixa  até  3  SM  passa  a concentrar 67% do  total das unidades previstas, ou seja, 1,2 milhão de unidades. Mesmo assim, não corresponde ainda à proporcionalidade do déficit por faixa de renda. A atuação dos agentes privados no PMCMV prepondera em todas as faixas, pois entre as diferentes modalidades da 

                                                            25 Tais números encontram‐se compilados por Cardoso e Aragão (2013) e Brasil (2013). 26 O déficit habitacional brasileiro estimado em 2007 é de 6,273 milhões de domicílios, dos quais 83% estão localizados nas áreas urbanas. Desse total, 89,4% se refere à faixa da população  com  renda média  familiar mensal de até  três  salários mínimos  (SM), correspondendo a 4,616 milhões de domicílios; 6,5% na  faixa  entre  três e  cinco SM (333 mil); 4,1% na faixa acima de cinco SM (209 mil). Cf. Brasil, 2009. 

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Faixa 1, na Fase 2 do PMCMV, apenas 60 mil unidades são destinadas às entidades sem fins lucrativos. 

Apesar do déficit habitacional não ter sido uma referência para o cálculo das metas  físicas, ele  foi utilizado na distribuição dos  recursos entre as diversas unidades da federação, de forma proporcional, ou seja, quanto maior o déficit do estado, maior a  cota máxima de acesso aos recursos do respectivo estado. (Cardoso e Aragão, 2013)  3.2  A  produção  do  “Minha  Casa,  Minha  Vida”  –  Brasil  e  a 

consolidação de um mercado de habitação  O  PMCMV‐Brasil  veio  legitimar  e  consolidar  um  “padrão 

econômico” da habitação ‐ ou affordable housing, em inglês, que já vinha sendo  esboçado desde  o  final dos  anos  1990. Castro  e  Shimbo  (2011) analisam  a  trajetória  desse  padrão,  inicialmente  proposto  pelas empresas  que  atuavam  com  autofinanciamento  e  por  cooperativas autofinanciadas  na  década  de  1990,  que  foi,  posteriormente, potencializado por grandes empresas (em grande parte, financeirizadas) com forte apoio estatal antes mesmo do PMCMV. 

O  padrão  arquitetônico  e  urbanístico  da  habitação  social  de mercado que vem sendo implementado desde então pode ser resumido em  três  modalidades  básicas:  conjuntos  de  edifícios  verticais  (em grande  parte,  edifícios  de  até  cinco  pavimentos  sem  elevador); empreendimentos horizontais (casas térreas ou sobrepostas, em muitos casos, geminadas); e uma combinação das duas modalidades anteriores no mesmo  terreno.  Em  grande  parte,  estão  presentes  os muros  que circundam o empreendimento e prepondera a forma “condomínio” de gestão desses espaços.  

A  padronização  dos  produtos  habitacionais  aponta,  por  um lado,  para  processos  de  produção mais  racionalizados  e,  em  alguma medida,  industrializados. Por outro,  ela não  significa necessariamente uma qualidade arquitetônica, urbanística e construtiva. Nesse sentido, é marcante a compacidade da área interna da unidade, a concentração de um  alto  número  de  unidades  por  empreendimento  e  a  presença  de áreas  de  lazer  (mesmo  que  diminutas)  conformando  aquilo  que diversos  autores  têm  denominado  como  “condomínio  clube”.  Além 

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disso,  o  mesmo  padrão  é  repetido  em  diferentes  regiões  do  país, independente  das  condições  climáticas,  culturais  e  morfológicas  do local (Ferreira, 2012).  

Além da baixa qualidade arquitetônica e urbanística, outra crítica frequente ao PMCMV‐ Brasil diz  respeito aos efeitos  territoriais de  sua produção. Cardoso  (2013)  compila  estudos  recentes  sobre  essa  questão em  quatro  regiões  metropolitanas  do  Brasil  (Rio  de  Janeiro,  Belém, Fortaleza e Goiânia) que discutem a periferização dos empreendimentos do  PMCMV  e  destacam  a  falta  de  articulação  desses  novos empreendimentos  tanto  com  a  política  urbana  municipal  (os  Planos Diretores) quanto com o plano local de habitação de interesse social.  

Esse  descolamento  não  se  restringe  apenas  às  políticas  de desenvolvimento  urbano,  mas  também  a  outros  programas  sociais regulados  pelo  próprio  governo  federal.  Isso  porque  a  seleção  da demanda para a Faixa 1 do PMCMV‐Brasil fica a cargo das prefeituras locais.  Os  critérios  para  seleção  dos  beneficiários  podem  priorizar moradores  de  áreas  de  risco  ou  de  assentamentos  irregulares  ou  de outros locais que apresentam precariedades habitacionais, e até mesmo beneficiários  de  outros  programas  de  transferência  condicionada  de renda  (como, por exemplo, o Bolsa Família), mas não só. E é aqui que pode entrar a margem para um atendimento clientelista das prefeituras locais, pois o critério principal é a renda familiar.  

Portanto, o PMCMV‐Brasil não procura constituir propriamente uma política de habitação, que estaria centrada numa  lógica universal dos direitos e que pautariam o conteúdo normativo da política pública – ou  a  “verdadeira  política  pública”,  como  lembra  Dagnino  (2002)27. Trata‐se,  genericamente,  de  “um  programa  de  crédito  tanto  ao consumidor  quanto  ao  produtor”,  como  sintetiza  Cardoso  e  Aragão (2013:40).  Portanto,  os  parâmetros  financeiros  e  a  solvabilidade  do 

                                                            27 Dagnino  (2002)  problematiza  as  críticas  em  torno dos  “encontros”  entre  sociedade civil  e Estado que  ressaltam,  como um dos  resultados desse  encontro, a  criação de políticas  fragmentadas, setorializadas, compensatórias etc. – em contraponto ao que seria “a verdadeira política pública”. Para a autora, é necessário que se explicitem os pressupostos  dessas  críticas  e  se  aprofunde  na  questão  que  está  implícita  nelas  – modelos alternativos de formulação de políticas públicas – e que se remete ao âmbito mais amplo dos modelos de gestão do Estado.  

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sistema  importam muito mais  do  que  o  conteúdo  universalizante  da política e a articulação com a produção da cidade ‐ que requisitaria uma abordagem  integrada  entre  política  habitacional,  política  urbana, política fundiária e política social. 

A  partir  do  momento  em  que  o  paradigma  da  política habitacional  passa  a  ser  regido  pela  lógica  privada  –  como Arretche (2002)  já  anunciava  desde  a  década  de  1990  –,  o modelo  de  gestão empresarial  cabe  perfeitamente  na  operacionalização  da  própria política. Ambos,  Estado  e  empresa,  procuram  rápidos  resultados  e  a solvabilidade do sistema (ou dos negócios). Para o PMCMV‐Brasil, que se  lançou  com  a meta  total  de  se  produzir  3,4 milhões  de  unidades habitacionais,  é  interessante  que  esse  número  seja  atingido  em  curto prazo,  o que  só poderia  ser viabilizado pela  “eficiência” da  iniciativa privada, segundo uma visão de mercado sobre a política. 

O  importante  aqui  é  destacar  que  a  habitação  social transformou‐se,  de  fato,  num  mercado  no  Brasil,  em  termos  de  sua lógica de produção. Ou, em outras palavras, o mercado  imobiliário  já havia descoberto, antes do PMCMV‐Brasil, um nicho bastante lucrativo: a incorporação e a construção de unidades habitacionais com valores até cem  mil  dólares,  destinadas  para  famílias  que  podem  acessar  os subsídios públicos ou não – mas que necessariamente acessam o crédito imobiliário.   4. Considerações Finais 

 O  comum  a  toda  forma  social  de  dominação  é  que  ela  se 

configura no e pelo espaço, em estreita relação com a lógica da produção e  da  circulação.  Esse  processo  de  inscrição  espacial,  dos  modos  de produzir, consumir e, especialmente, habitar, é condição necessária para a  configuração  das  relações  sociais,  suas  possibilidades  e  restrições. Nesta  operação  de  demarcação,  ocupa  um  lugar  privilegiado  a infraestrutura urbana, sua disponibilidade, acessibilidade e significado, que  expõe  claramente  o  mundo  dos  signos,  desejos,  possibilidades, frustrações,  restrições  expressas,  oportunidades de  inserção  social  em um momento determinado. Mas, no interior da infraestrutura urbana, é a moradia, sua localização e sua relação espacial com o centro urbano e 

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com  os  centros  de  consumo,  trabalho,  lazer,  etc.,  aquilo  que  permite apreciar de modo privilegiado a simbologia e ideologia urbana. 

Consequentemente,  quando  se  analisam  programas  de habitação,  tem‐se a oportunidade de aprofundar a análise do  impacto social,  econômico  e  político  dos  mesmos,  além  de  observar  sua implementação,  pertinência  e  seus  resultados.  No  desenvolvimento deste  artigo,  oferecemos  uma  minuciosa  descrição  dos  Programas ʺMinha Casa, Minha Vidaʺ, postos em marcha em ambos os países, na tentativa  de  explicar  seus  mecanismos  e  seus  efeitos,  não  apenas habitacionais, mas também sociais. 

A primeira questão em relação a esses programas, é que embora seus  nomes  sejam  idênticos28,  os  conteúdos,  as  escalas,  os  agentes,  as formas  de  produção  e  de  regulamentação  são  totalmente  distintos. Entretanto, os empreendimentos habitacionais produzidos e os espaços urbanos  resultantes  em  ambos  os  programas  são muito  semelhantes. Trata‐se  da  produção  de  grandes  assentamentos  que  conformam  ora condomínios fechados, ora “bairros‐cidades”.  

Uma  segunda  questão  na  qual  podemos  encontrar  outra semelhança é o processo de  segregação  sócio‐espacial, que no caso de Córdoba  se  manifesta  explicitamente,  enquanto  no  Brasil,  que  tem linhas  e  modalidades  diferenciadas,  parece  afetar  especialmente  a parcela de beneficiários com menores salários. Estudos recentes indicam justamente que os empreendimentos da Faixa 1, portanto das  famílias mais pobres,  encontram‐se  localizados  em  áreas de  expansão urbana, mais afastados dos centros do que os empreendimentos das Faixas 2 e 3, voltados para população com maior renda. 

Entretanto,  no  Brasil,  o  programa  é  muito  recente  para  se analisarem  os  efeitos  sociais  e  territoriais  advindos  desse  tipo  de aglomeração urbana e de habitação. O caso argentino é emblemático e serve  como  referência  sobre  o  que  pode  acontecer  no  Brasil,  numa escala muito mais ampliada, em relação ao aprofundamento de práticas de exclusão e de constituição de territórios de precariedades, sejam elas habitacionais, urbanas e sociais.                                                              28  E,  neste  aspecto,  outro  estudo  seria  necessário  para  verificar  se  o  nome  argentino inspirou o  caso brasileiro, que pode  ser uma possibilidade plausível  em  épocas de internacionalização de programas sociais, ou se foi apenas uma coincidência.  

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Outra  semelhança  entre  ambos  os  programas  é  sua  baixa qualidade  arquitetônica  e  urbanística.  Os  emergentes  desequilíbrios territoriais gerados pelas  intervenções por meio das políticas públicas impactam, de maneira imediata, sobre os percursos e os usos sociais do espaço.  O  deslocamento  para  as  áreas  suburbanas  e  escassamente equipadas  tem  como  resultado  uma  experiência  controversa  entre  a condição  de  classe  e  o  status  de  cidadãos. A  brecha  aberta  entre  um status e outro, e as contradições entre eles, são um  terreno  igualmente fértil para a  constituição de dois processos  completamente opostos. O primeiro  faz  da  contradição,  e  da  consciência  acerca  dela,  o  lugar privilegiado  para  a  constituição  do  político  como  resistência  à dominação:  as  lutas  políticas  e  sociais  são  gestadas  precisamente  na experiência que os  indivíduos  têm desta  inconsistência. O  segundo  se edifica a partir das experiências de desprezo – dor, raiva ou indignação. Os  processos  de  exclusão  violam  os  pressupostos  normativos  da interação e da coesão e afetam de modo direto os  sentimentos morais dos  sujeitos  (Honneth, 2009, p.263). Desse modo as  formas estruturais de desprezo estão associadas aos sentimentos de injustiça. 

No  que  diz  respeito  às  diferenças,  cabe  destacar  que,  embora ambos  os  programas  se  apresentem  formalmente  como  um  único programa  habitacional,  no  caso  do  Brasil,  ele  se  estrutura operacionalmente em  linhas ou modalidades distintas, de acordo  com faixa  de  renda  dos  beneficiários,  origem  dos  recursos  e  instituição proponente. Já em Córdoba há uma única modalidade de operação, que se  constitui  através  de  financiamentos  provenientes  sobretudo  de crédito  internacional,  e  em  menor  medida  de  fundos  próprios  do governo provincial. Ademais, esse último é implementado diretamente a partir do âmbito governamental, sendo que seu produto é a moradia já  construída.  No  caso  do  PMCMV‐Brasil,  de  outro  modo,  trata‐se, genericamente,  de  “um  programa  de  crédito  tanto  ao  consumidor quanto ao produtor”29, com fundos públicos ou com fundos controlados pelo  Sistema  Financeiro  da  Habitação,  todos  de  origem  nacional  – 

                                                            29  Um  programa  de  alcance  nacional  como  o  PMCVM‐Brasil,  que  trabalha  desde  a operação do financiamento, é o programa PROCREAR, implementado pelo Governo Federal. 

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apesar  da  entrada  de  capital  financeiro  internacional  nas  grandes empresas construtoras. 

Em ambos os programas, a produção da habitação está dentro de  um  processo  de mercantilização mais  amplo  de  políticas  sociais. Nessa  produção  e  reprodução  intervêm  –  de  maneiras  por  vezes solidárias, em outras competitivas ou conflitantes – o Estado e o capital privado. No  caso  brasileiro,  houve  a  constituição  de  um mercado  de habitação  social,  que  embora  requisite  fundos  públicos,  está  pautado por critérios de eficiência privada. Como apontou Oliveira (1998, p.13), para  se construir “o pretenso mercado auto‐regulado, que dispensaria tudo  o  mais  a  não  ser  os  próprios  critérios  da  lucratividade”,  é necessário  “muito  Estado, muitos  recursos  públicos”.  Nesse  sentido, houve  uma mudança  recente  das  relações  do  fundo  público  com  os capitais particulares e com a reprodução da força de trabalho: o fundo público  funciona  como  prerrogativa  (“ex‐ante”)  das  condições  de reprodução  e  não  mais  como  “ex‐post”,  típico  do  capitalismo concorrencial. Isso significa, ainda de acordo com Oliveira (1998, p.21), que  a  “per‐equação  da  formação  da  taxa  de  lucro  passa  pelo  fundo público,  o  que  o  torna um  componente  estrutural  insubstituível”. No caso  do  PMCMV‐Brasil,  além  dessa  per‐equação,  a  decisão  sobre  as formas  de  regulamentação  do  fundo  público  passou  também  pelas empresas.  

Para  finalizar,  e  ir  além  das  semelhanças  e  diferenças decorrentes dos programas ʺMinha Casa, Minha Vidaʺ antes pontuadas, cabe ressaltar que tanto no Brasil como em Córdoba‐Argentina o déficit habitacional é muito elevado e afeta fortemente o segmento mais pobre da  população. Daí  a  importância  dos  programas  habitacionais,  como espaços  de  constituição  de  direitos  e  formas  de  inclusão  social.  No entanto, a validade e a  legitimidade dos mesmos são postas em xeque toda vez que, por meio deles, se procede a uma nova exclusão,  isto é, quando  suas  formas  de  operacionalização  aumentam  a  segregação sócio‐espacial já existente, e obstruem ou restringem o acesso e o uso da cidade como espaço comum e inclusivo.    

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A tradução contemporânea das demandas populares (ou do conflito que emerge do universo popular) nos espaços públicos:  

o caso do Córdoba, Argentina  

Gerardo Avalle1    1. Introdução  

O  modo  de  inscrição  das  demandas  populares  nos  espaços públicos  é  um  fenômeno  que  adverte  sobre  as  dinâmicas  da inclusão/exclusão que assume cada sociedade. Particularmente, o modo como esses horizontes de expectativas são processados por dispositivos governamentais torna visíveis as tensões do presente. 

Estas  formas  de  nomeação,  de  construir  e  de  impregnar  os sentidos  da  política,  estão  longe  de  ser  uma  pretensão  unívoca.  Ao contrário,  tanto  espaço  público,  política,  como  Estado  e  governo  são conceitos que, para além da institucionalidade que os acompanham, são objeto de permanentes disputas e tensões, uma disputa permanente de posições, onde alguns dominam e outros resistem, que representam as formas  de  dominação  do  presente  e  as  relações  de  força  que sedimentam. 

Consequentemente,  um  olhar  que  se  aproxime das  linguagens que assumem as demandas populares, e de sua inscrição nos interstícios da  política,  implica  necessariamente  identificar  as  instâncias  de tradução –  institucionais – onde o potencial da  resistência é  transcrito nas ordens da administração pública. Isto não significa, de sobressalto, o desaparecimento do conflito; pelo contrário, de nossa perspectiva é o início do desacordo e da  resistência a serem processados pelo sistema político. Nesse  sentido,  observar  as  linguagens  com  que  as  políticas públicas  –  e  especialmente  as  sociais  –  interpelam  e  processam  as 

                                                            1 Pós‐graduado em Ciência Política  (UCC), mestre em Sociologia  (UNC), estudante de PhD em Política e Governo  (UCC‐UCM). Professor de Sociologia e Metodologia na Universidade  Católica  de  Córdoba,  professor  de  pós‐graduação  na  Universidade Nacional  de  Córdoba.  Pesquisador  UCC  em  conflitos  e  lutas  sociais. Membro  da equipe de pesquisa El Llano em Llamas. 

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expectativas  populares  permite  compreender  os  dispositivos governamentais empregados sobre a população. 

A gramática popular adverte sobre o avesso de uma política de (des)igualdade, e esta é a afirmação que desenvolveremos neste texto: a inscrição dos  sujeitos  nos  espaços públicos  e  as demandas por maior igualdade  enfrentam‐se  com  um  risco  permanente  de  desativação política e inclusão degradada na linguagem da cidadania. 

A possibilidade de sustentar esse tipo de afirmações requer uma contextualização que marque, dentro da trajetória das políticas públicas, aquelas transformações que as fazem (radicalmente) diferentes de seus antecessores,  apesar de manter  linguagens  idênticas. Neste  sentido,  a configuração do cenário político e  social argentino  tem  registrado, em termos  gerais,  comportamentos  singulares.  Especificamente,  nos referimos  às modificações  que  se  começaram  a  registrar  em  todos  os parâmetros  de  relevância  pública:  Estado,  pobreza,  democracia, cidadania, direitos. Neste trabalho, decidimos tomar parte dessas vozes de demanda e impugnação, recuperando aqueles trechos de entrevistas e observações de campo realizadas durante vários anos na província de Córdoba,  Argentina2,  que  nos  permitem  compreender  estas transformações  e  continuidades  que  o  relato  popular  adverte.  Os discursos mostram,  neste  sentido,  uma  continuidade  quase  estrutural em relação ao modo de pensar o político e o público. 

                                                            2  O  corpus  dos  dados  é  constituído  a  partir  do  trabalho  em  diferentes  projetos  de investigação: ʺTerritórios em disputa. Um estudo sobre o conflitos territoriais urbanos e rurais na Província de Córdoba ʺ. Dir. Dr. M. A. Ciuffolini. Universidad Nacional de Córdoba  e Universidad Católica de Córdoba. MynCyT;  ʺApropriação/Expropriação de  territorialidades  sociais.  Análise  comparativa  de  processos  de  erradicação/ relocalização de grupos  sociais empobrecidos em  cidades argentinas”. Dir. Dr. Ana Nuñez, M.  A.  Ciuffolini.,  P.  Scarponetti.  Universidad Nacional  de Mar  del  Plata. FONCYT;  ʺA  construção  política  da  (des)igualdade:  pobreza  e  sexualidade  nas políticas públicas da província de Córdobaʺ. Dir.: Dr. M. A. Ciuffolini, Co‐Dir.:  JM Vaggione,  Universidad  Católica  de  Córdoba,  MinCyT;  ʺRelocalização  territorial, conflitividade  social  e processos de  subjetividade políticaʺ. Dir.: Dr. P.  Scarponetti, Co‐Dir. Dr. M. A. Ciuffolini, Universidad Nacional de Córdoba, ʺO chão em chamas. Movimentos e lutas sociais urbanas e camponesas na Córdoba de hojeʺ. Dir.: Dr. M. A. Ciuffolini, Universidad Católica de Córdoba, Agência Córdoba Ciência; ʺCulturas políticas em  setores populares de Córdobaʺ. Dir.: Dr. M. A. Ciuffolini, Universidad Católica de Córdoba. 

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O presente  trabalho está organizado em  três seções: a primeira contextualiza,  a  partir  da  percepção  dos  setores  populares,  o  caso argentino;  o  segundo  adverte  sobre  a  emergência  de  novos  atores coletivos no marco da crise econômica de 2001; e, finalmente, a terceira desenvolve  a  trajetória  dos  dispositivos  estatais  e  das  organizações populares, abordadas nas seções anteriores, mas desta vez no território da  província  de  Córdoba.  Córdoba  é  um  estado  localizado geograficamente no centro da Argentina, com uma população de mais de 3 milhões de habitantes, sendo a segunda província mais populosa, depois  de  Buenos  Aires.  As  relações  com  a  administração  central sempre  foram  tensas,  independentemente  da  orientação  política  dos respectivos  governos.  Durante  a  década  de  90,  a  província  foi governada por diferentes frações do centenário partido Radical (UCR), enquanto a administração central era ocupada pelo peronismo (PJ). No final da década, o governo local passa para as mãos do PJ, e o governo nacional é liderado por uma mesma orientação política. No entanto, os vínculos  nunca  foram  pacíficos,  e muitas  vezes  extrapolaram  as  vias institucionais de resolução.  2. Argentina: a percepção popular de um modelo excludente 

 Argentina  começa  um  processo  neoliberalizador  a  partir  da 

instauração do governo estabelecido pela ditadura militar em 1976. Isto se  aprofunda  sob  as  bases  do  conhecido  ʺConsenso  de Washingtonʺ durante  a  presidência  de  Carlos  Menem  (1989‐1999).  Durante  esta década,  os  indicadores  sociais  (pobreza,  desemprego, miséria,  saúde, educação, etc.) se viram fortemente afetados. 

A dinâmica da implementação de reformas estruturais foi dramática e poucas vezes consensual.  Isso supôs  importantes deslocamentos dos atores  coletivos envolvidos nas  tomadas de decisões, o  realinhamento no  campo  popular,  e  a  emergência  de  novos  atores  organizados  em torno  de  demandas  reivindicativas  básicas  como  o  acesso  a  direitos sociais,  coberturas  assistenciais  e  contenção  diante  do  crescente desemprego.  Esta  situação  acabou  implodindo  nos  dramáticos acontecimentos  que  ocorreram  no  final  de  2001  e  princípio  de  2002, reflexo de uma crise política, econômica e social. 

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A  crise  de  2001  reafirmou  a  dinâmica  do  capitalismo  local:  não existem  transições  ordenadas  sem  rupturas  e  permanentes  disputas entre os distintos segmentos do capital. Ao contrário do que ocorre no país vizinho, Brasil, a capital nacional argentina sempre foi dependente da  política  estatal  e  da  dinâmica  do  capital  internacionalizado.  Os mercados locais (agrícola, industrial e financeiro) sempre se mostraram dóceis  diante  do  capital  internacional,  incapazes  de  ser  hegemônicos dentro de um projeto de acumulação, o que implicou sucessivas crises e transições caóticas entre cada modelo econômico (Aspiazu e Basualdo, 2012; Sidicaro, 2006). Pós‐2001 o Estado aparece como o ʺmediadorʺ que atualmente confronta com os principais grupos concentrados de poder; e  trata de  consolidar um bloco hegemônico que gire  em  torno de um capital  nacional  produtivo,  industrialização  da  matéria‐prima  e estímulo  ao  consumo,  além  de  promover  o  capital  financeiro  e  a dinâmica  extrativa  dos  recursos  naturais,  situação  que  guarda  certa semelhança com o  restante do país  (Seoane, 2012; CEPAL, 2011; Katz, 2010; Gudynas, 2009). 

Esta configuração do campo de  força  também se  traduziu em uma reconfiguração  do  discurso  político  e  nas  próprias  práticas  da estatalidade  (Svampa,  2005).  Parafraseando Dagnino  (2006),  o  que  se observa  é  um  processo  de  ʺconfluência  perversaʺ  entre  um  projeto político neoliberal e outro mais democratizante e participativo. E o que sucede  é  que,  por  detrás  de  um  discurso  de  inclusão  que  começa  a aparecer  fortemente  a  partir  do  ano  2003,  se  observam  trajetórias dissimiles  no  que  se  refere  à  implementação  de  políticas  públicas (sociais,  trabalhistas,  de  infraestrutura,  etc.)  em  nível  nacional  e, especialmente,  nas  administrações  provinciais.  Nesse  contexto, indagamos, a partir do  testemunho  fornecido pelos  setores populares, como é percebida esta dinâmica do sistema político, e as defasagens que aparecem  entre  o  discurso  e  a  prática  concreta  empreendida  pela estatalidade. 

A situação que se expressa nos relatos sobre a experiência local não se restringe a sua faceta econômica, o legado da ditadura não foi apenas de modelos econômicos excludentes e  restritivos  (ʺpara poucosʺ), mas também  uma  tragédia  (ʺdestruídaʺ)  para  toda  uma  geração  de militantes. 

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ʺNós  que  temos  filhos  queremos  deixar  algo  a  eles,  já  que  nossa geração, a famosa geração dos setenta, foi destruída por esse processo, e aqueles que  restaram  são a escória, e por  isso  temos os  líderes que temosʺ (bairro Coordenador assembleias, Córdoba, 2002).  ʺCom  esse  eufemismo  se  propunha  privatizar  a  saúde,  privatizar ferrovias, privatizar (‐) era a receita concreta do fim do Estado de bem‐estar,  de  um modelo,  que  com  seus  prós  e  seus  contras,  vínhamos construindo na Argentinaʺ (Sindicato, CTA 01, Córdoba, 2005).  Esse  processo  neoliberal  é  claramente  identificado  como  uma 

consequência da ditadura militar, e nesse ato constitutivo é que se inicia uma mudança de paradigma, e as gerações  seguintes  são aqueles que devem atravessar as consequências estruturais da mudança de políticas e da primazia do mercado. 

 ʺMas nós lutamos contra um modelo que esteve vigente na Argentina desde  a ditadura militar  em diante  que,  bom,  foi  o modelo  que  nos deixou  como  estamos,  digamos,  feito  merdas.  E,  bem,  lutamos basicamente  contra  isso  e  contra  qualquer  um  que  represente  esse modeloʺ (Movimento Piqueteiro, BDP 06, Córdoba, 2005).  ʺnos anos noventa foi Menem, em 2001 De la Rua, hoje sei lá quem, aqui na Província De  la  Sota... Entende o que quero dizer? Gente que  está ligada ao liberalismo e que... continua construindo um país para poucos e não para todosʺ (Movimento Piqueteiro, BDP 05, Córdoba, 2005).  Por isso quando recuperamos a tese da ʺconfluência perversaʺ de 

projetos políticos (Dagnino, 2006) e afirmamos que no  interior de cada relação  de  força  dominante  persistem  as  consequências  e  tensões  de cada  fração  de  poder,  não  fazemos  mais  que  tentar  compreender  a aparente contradição entre a narrativa de ʺinclusãoʺ que a política pós‐neoliberal  expressa,  e  a  percepção  social  de  certa  continuidade  da situação de exclusão e desintegração social no presente. 

 ʺfalar de desocupação na Argentina é hoje, depois de todo o processo de  privatizações,  falar  de  um  problema  estrutural  que  não  vai  se resolver de um dia para outro ou com discursos bonitos. Crianças de 

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manhã vão e  tomam café da manhã na escola, almoçam no  refeitório da  escola,  a  tarde  tomam  um  copo  de  leite  e  a  noite  passam  pelo refeitório  de  uma  organização  para  pegar  a  comida.  Isso  já  faz  oito anos que vem acontecendo, que perspectiva pode ter uma criança que cresceu assim?ʺ (Movimento Piqueteiro, MTR 02, Córdoba, 2005). 

 ʺNosso salário é o resultado de todas as medidas de ajuste que foram aplicadas na última década, onde, obviamente, reduziram nosso poder aquisitivo  e  outros  setores  têm  feito  horrores  e  lucrado  com  issoʺ (União, ATE 01, Córdoba, 2006).  O que ocorreu foi que a crise de um projeto político (econômico, 

social, cultural), que de certa forma se expressou nos acontecimentos de 2001,  não  realizou  uma  ruptura  total  com  a  institucionalidade  e  os modos  de  participação  política  instituídos  durante  as  décadas anteriores. Neste sentido, durante os anos 90 a construção democrática e de  cidadania  representou, usando as palavras de Dagnino  (2006), a consolidação  de  um  ʺprojeto  neoliberalʺ  que  conseguiu  esconder, temporariamente, as tensões entre Estado e mercado. 

Isto supôs a privatização do espaço público, sua fragmentação, a retração do Estado e a concepção de cidadão consumidor. Este marco de  ação,  de  práticas  culturais,  de  formas  institucionais,  não desapareceu, em última instância começou a se reconfigurar. A tensão imanente à constituição dos dois projetos, que de certo modo confluem contemporaneamente  (e perversamente) para uma  ʺformaʺ de  relação gerencial  entre  Estado  e  sociedade.  Os  conteúdos  dos  projetos, entretanto, não confluem, o conflito entre eles se torna mais velado. 

O relato que segue abaixo expressa essa tensão entre uma prática política que tenta dissolver um modo de conceber o público e político, por um lado, e a posição subjetiva que orienta os indivíduos dentro do sistema social. 

 ʺAs Assembleias, tratando de construir uma questão nova que busque um  senso  de  justiça  através  de  uma  forte  participação  política,  se deparam  com  limites muito  concretos, nenhum dos  assembleístas  tem proposto  colocar‐se  como  cidadão,  como  contribuinte,  do  sistema econômico,  político  e  financeiro  onde  estamos...  as Assembleias  não têm proposto uma rebelião fiscal... temos que incluir em nossos temas 

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de deliberação... assuntos que tenham relação com a gestão pública do comum...  das  políticas  aplicadas  em  nível  municipal,  estadual  e nacional.ʺ (Assembleia Praça Los Naranjos, Córdoba, 2002).  Os relatos dos entrevistados deslizam dentro de um conjunto de 

argumentos que vão advertindo  sobre o  sentir da população em  cada contexto.  O  final  dos  anos  90  expressam  um  sentimento  de  forte insatisfação  da  população  com  relação  à  política  e  suas  instituições, produto de décadas de individualismo e de cidadania mercantilizada e ʺcontribuinteʺ;  contudo,  é  também  neste  contexto  que  começam  a  se pronunciar  fortes discursos de  impugnação  institucional e emergência de  novas  formas  de  organização  alternativas  aos  canais  habituais  de participação. Como se observa no relato dos entrevistados, o olhar sobre o Estado vai se deslocando a partir de uma rejeição e impugnação total, ampliada  logo após a crise de 2001 no caso argentino, até se converter no centro das demandas dos tempos atuais. 

 ʺDesde  o  início,  sentimos  a  necessidade  de  nos  reunir  para  discutir questões  que  estavam  pesando  sobre  nossas  vidas...  pessoas  que buscam o acordo entre seus pares, participando das Assembleias... as Assembleias são formadas pela porção mais próxima do povoado, por cada vizinho ʺ(Assembleia Bairro Alto Alberdi, D3).  ʺtodo esforço que é  feito a partir da assembleia é construir um poder alternativo  que  discuta  plenamente  sua  posição  diante  do  Estadoʺ (Assembleia Praça Los Naranjos, Córdoba, 2002).  ʺDesconhecemos a autoridade municipal, desconhecemos todo tipo de legislação que tenta impedir nosso desenvolvimento... desconhecemos esses instrumentos como parte de uma prática que... tenta nos esmagar como  povoʺ  (Assembleia  Bairros  San  Martin  e  Paraísos,  Córdoba, 2002).  ʺnem  os  partidos  políticos  nem  o  Estado  têm  sabido  proteger  este direito  básico  de  qualquer  sociedade  que  é  o  de  se  alimentar  e  se reproduzir  biologicamente...  a  sociedade  já  não  acredita  nas instituições,  porque  elas  já  não  sustentam  normas  e  valores...  As pessoas não acreditam no Estado... e é lógico, é o corretoʺ (Assembleia Seccional 14, Córdoba, 2002). 

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3. Novas formas de organização, novos discursos, novos projetos  Este  cenário  de  antipolítica,  contra‐hegemonia  ou  democracia 

direta  que  foi  gerado  no  final  do  século  teve  impactos  na  estrutura institucional,  nos  discursos  públicos,  e  nas  formas  organizativas  que assumiram  os  setores  populares.  Os  relatos  mencionados  acima  se referem,  principalmente,  a  dois  tipos  organizativos  diferentes.  Um muito  próprio  do  cenário  de  crise,  que  foram  as  ʺassembleias  de bairroʺ,  cuja  duração  foi  curta  no  tempo, mas  que  foi  o  espaço  que concentrou um amplo conjunto da população que não encontrava, nas vias  tradicionais  de  participação,  um  espaço  de  canalização  de  suas demandas. A dinâmica das assembleias consistiu em recriar os espaços de deliberação e ação coletiva. 

Por sua vez, os movimentos piqueteiros são organizações que se gestaram  como  consequência  do  desemprego  massivo  durante  a década  anterior,  que  acabou  expulsando,  em  2002, mais  de  25%  da população do mundo do  trabalho. Os  ʺpiqueteirosʺ  se  caracterizaram por  implementar medidas  de  ação  direta,  entre  elas  os  piquetes  ou bloqueios,  como  sua  principal  prática  para  forçar  uma  resposta concreta do Estado. 

Inevitavelmente,  este  contexto  implicou  uma  mudança  nos modos  de  ação,  intervenção  e  operação  da  estatalidade.  O  final  do século  veio  acompanhado,  por  toda  a  região,  de  um  ar  renovador. Linguagem  que  inclusive  permeou  o  discurso  dos  organismos financeiros internacionais, incorporando uma perspectiva mais ʺsocialʺ no  tratamento das problemáticas que  surgiam  como  consequência da defesa  tenaz  do  modelo  de  mercado.  Assim,  as  estruturas institucionais,  para  além  de  toda  possível  resistência  à mudança,  se viram  empurradas  a  um  novo  cenário  político.  O  Estado  reaparece como  responsável  pelas  condições  de  vida  de  cada  indivíduo  e  pelo destino coletivo da população. 

Neste  contexto,  o  que  parece  interessante  é  investigar  as ausências  e  continuidades  que  contêm  esses  discursos,  enquanto remanescentes de antigos projetos em coexistência com os novos.  Isto porque cada  lógica da estatalidade condensa a expressão das relações de  força  de  cada  período  (Poulantzas,  2001;  Foucault,  2006).  E  neste 

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sentido,  que  não  sejam  hegemônicas  não  implica  que  tenham desaparecido. De modo  que  é  provável  que  o  ranço mercantil  esteja sempre presente, e à espreita a cada crise, apelando aos  já conhecidos argumentos que colocaram em xeque a estrutura de proteção social de meados do século passado. 

Os relatos que aparecem a seguir falam sobre recuperar o papel do Estado em relação aos problemas sociais, à regulação da economia e à  distribuição  de  recursos. Mas  frente  a  este  papel  ativo  que  se  lhe atribuem, novamente se recuperam as velhas críticas aos estados sócio‐interventores,  como  a  de  serem  funcionais  à  lógica  da  acumulação capitalista,  ou  de  atuar  como  representantes  dos  interesses empresariais frente às demandas trabalhistas. 

 ʺAcho  que  o  Estado  é  quem  deve  centralizar  o  uso  do  poder... indispensável,  o Estado  tem  coisas das  quais  ele pode  escapar,  ele  é responsável  pela  saúde,  pela  educação,  pela  segurança,  por  fazer justiça, são coisas tão prioritárias o que tudo isso traz à dignidade e ao desenvolvimento  do  homem,  que  o  único  responsável  é  o  Estadoʺ (ONGs 01 Carlos Paz, Córdoba, 2000).  ʺo  que...  o  imperialismo  busca  e...  e  o  governo  representando  o imperialismo,  é  poder  continuar  mantendo  esse  sistema  de acumulação,  onde  ganham  uns  poucos,  quer  dizer,  quem  lucra  na América Latina, na África, na Ásia... são os grandes cartéis, os grandes monopóliosʺ (Movimento Piqueteiro, Córdoba, CTD‐AV 04, 2005).  O  modelo  emergente  se  afirmou,  em  primeiro  lugar, 

recuperando  a  figura  do  Estado  como  ator  político  chave  do  qual emanam as diretrizes da política e da gestão pública (Mecle, 2010). Isso implicou, necessariamente, um redimensionamento de toda a estrutura de  proteção  social  e,  especialmente  os  mecanismos  de  regulação/ assistência  aos  setores  mais  desprotegidos  (não‐empregáveis, desempregados, menores, mulheres, idosos, etc.). 

O  paradigma  emergente  requereu,  em  primeiro  lugar, incorporar  na  agenda  pública  a  problemática  da  desigualdade  como um  problema  social.  Assim,  o  parâmetro  da  política  social  alteraria significativamente  seu  lugar de  enunciação. A  assistência  continuaria 

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chamando‐se  assistência, mas  sua  sustentação  deixaria  de  ser  –  pelo menos  de modo  direto  –  a  compensação  de  uma  carência,  o  pobre vulnerável. Agora, a  linguagem começaria a circular dentro do campo da  ʺinclusãoʺ3,  e  desse  modo,  o  apelo  dos  ʺdireitos  humanosʺ  se converteria  numa  caixa  de  ressonância  para  incorporar  o  direito  à saúde,  educação,  cultura,  trabalho,  entre  outros,  como  argumento de sustentação da penetração estatal. 

 ʺSe o governo implementa programas... sei lá, o Hambre Más Urgente, o Manos a La Obra, não é que  faça  isso porque seja BOM, mas o  faz em função de uma pressão social que existe, que coloca diante de seu nariz este  problema  da  comida...  bem...  este  problema...  e  o  do  trabalhoʺ (Movimento Piqueteiro, MTR 02, Córdoba, 2005).  Dois exemplos são ilustrativos neste caso, o Plano Jefes y Jefas de 

Hogar  Desocupados  criado  em  2002  na  Argentina  tem  nos  seus fundamentos  uma  linguagem  marcada  pelas  noções  de  ʺinclusãoʺ, ʺdireitos  humanosʺ  e  ʺcidadaniaʺ,  começando  a  reconhecer  situações estruturais  de  vida  que  antes  eram  entendidas  como  temporárias  e isoladas, quer  seja a pobreza ou o desemprego  (Avalle, De  la Vega e Ferrero, 2009). Outro exemplo é o Plano Jóvenes Más y Mejor Trabajo, de 2003, quando o Estado reconhece a existência de problemas estruturais na geração de emprego e  inclusão no mercado de  trabalho de grande parte da população, modificando a estratégia de contenção e assistência que  eram  pressupostos  dos  seguros  de  desemprego  ou  dos  planos sociais criados em meados dos anos 90 como o ʺPlan Trabajarʺ (Avalle e Brandan, 2010).  4. Córdoba,  demandas  e  conflitos  no  território:  participação,  terra  e trabalho. 

 Córdoba  é  uma  das  maiores  províncias  do  interior  da 

Argentina.  Os  níveis  de  pobreza  e  desocupação  tiveram  níveis semelhantes  ou  superiores  à  média  nacional  durante  as  últimas 

                                                            3 Ver Informe de Políticas Sociais do Ministério de Desenvolvimento Social (2007). 

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décadas4.  O  problema  da  habitação,  ou  déficit  habitacional5,  é  um fenômeno  crônico que  se viu agravado  em diferentes momentos pela falta de políticas habitacionais para os setores populares, pela crescente pobreza  e  desemprego  na  década  de  90  e,  atualmente,  pela revalorização  e  criação  de  valor  sobre  territórios  localizados  nos assentamentos  urbanos.  Segundo  os dados disponíveis,  atualmente  a Província de Córdoba apresenta um déficit significativo em matéria de habitação,  todavia  ainda mais  significativo  é o número de domicílios que  registram  propriedade  irregular  da  terra  e/ou  da  moradia  que habitam. 

                                                            4  Durante  os  anos  70,  o  desemprego  foi  registrado  em  aproximadamente  3,8%  da população economicamente ativa. Na década seguinte sobe a 5,8%. Ambos os valores muito  inferiores  aos  obtidos durante  a década  neoliberal,  onde  o  índice  alcançou  os 11,6%,  com  um  pico  18,4%  em maio  de  1995. A  partir  do  ano  1998,  este  indicador começa uma escalada que supera os valores históricos alcançados em 2002, chegando a 21,5%  da  população  economicamente  ativa. A  partir  desse momento  se  registra  um descenso insistente situando‐se, no quarto trimestre de 2008, no nível mais baixo desde outubro de 1992 e maio de 1989, chegando a 7,3%. No primeiro semestre de 2009 volta a se notar um  incremento neste  indicador,  situando‐se  em  8,6%,  encerrando  com uma média anual de 8,68% da população desocupada. No entanto, os níveis de desocupação relativamente  ʺbaixosʺ  das  primeiras  duas  décadas  não  seriam  acompanhados  da mesma forma pelos índices de pobreza. Durante o ano de 1989 a população em situação de pobreza ascendia a 29,1%, e a população indigente superava a porção desocupada da população  economicamente  ativa.  Em  1990,  o  comportamento  desses  indicadores  é ainda mais claro, enquanto se registra uma ligeira queda da desocupação, os níveis de pobreza  e  indigência marcam um pico de  44,9%  e  14,5%,  respectivamente. Em  1991, uma  ligeira  queda  da  desocupação  é  acompanhada  por  uma  queda  em  ambos  os índices.  Os  efeitos  regionais  que  gerou  a  crise  mexicana  de  1995  impulsionaram novamente o crescimento da desocupação e da pobreza. No entanto, esta última não perderá seu impulso ascendente, alcançando os 57,5% em outubro de 2002, superando os níveis de 1989. No que se refere aos níveis de desemprego, a província de Córdoba é um  das  que  apresenta maior  volatilidade. Com  uma  tendência  de  se  aproximar  ou superar  a média nacional, particularmente nos  anos de  1989,  1997,  2002  e  2007‐2009. Quanto  aos  níveis  de  pobreza,  estes  se  mostram  semelhante  à  média  nacional, superando‐a nos momentos de crise local ou nacional. 

5 Na Argentina, a média de gastos sociais com habitação para a década de 90 não chega a superar 1,7% do PIB, inclusive há a evidência de um ligeiro aumento nos cinco anos a partir de 2000  (CEPAL, 2009). Nas políticas habitacionais, especificamente,  com a abertura  democrática  se  alterava  o  índice  de  0,7%  do  PIB,  decaindo  ao  longo  da década de 90 para 0,4% do PIB (Rodriguez e Taborda, 2009). 

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Considerando‐se  de  maneira  conjunta  a  situação  de aglomeração  crítica  e  as  condições  deficitárias  de  moradia,  a percentagem  de  domicílios  é  de  13%,  enquanto  os  problemas  de propriedade afeta a 35% dos domicílios na província. Disso resulta que quase a metade dos domicílios da província manifesta algum problema habitacional. Um  levantamento  comparativo  de  preços  aponta  que  o valor dos terrenos dentro do Anel Viário da cidade de Córdoba subiu, em média – entre novembro de 2007 e fevereiro de 2011 – cerca de 50 por cento, ou seja, 10 por cento ao ano. Ainda assim, existem áreas em que  o  aumento  foi  superior  a  70  por  cento  e,  em  alguns  casos específicos, cem por cento6. 

O  comportamento  que  essas  variáveis  descrevem  sobre  a situação  habitacional  tem  sido  uma  constante  nos  últimos  20  anos, dando  lugar  a  distintas  reações  e  demandas  por  parte  dos  setores populares.  Somando‐se  à  crise  econômica  do  final  do  século,  este contexto  adquiriu  uma  dimensão  dramática,  que  resultou  em  uma confluência  de  demandas  por  trabalho,  habitação  e  alimentação;  e políticas  públicas  tendentes  a  neutralizar  o  problema, mas  com  uma forte dinâmica segregacionista e revalorização de terras centrais. 

 ʺporque  há muitas  casas  que,  por  si  só,  nos  deixam meio  retirados porque  somos  ascendentes  de  favela  (procedentes  de  favela),  e  não havia espaço mais perto do centro para construir casas. E outra, acho que o governador, ele não quer as favelas perto do centro, mas  longe dali, porque eles  já sabem a  forma de viver das  favelas, que roubam, que são sujos, que não são todos iguais, mas por isso também estamos meio retirados. Ainda que tenha muito espaço perto da usina, mas isso é  para  o  país,  traz  mais  dinheiro,  a  favela  nãoʺ  (Assentamento Relocalizado, Bairro A. Cabildo 09, Córdoba, 2008).  No  entanto,  a  trajetória  dessa  problemática  teve 

comportamentos diferentes ao longo do tempo. A organização popular em torno da habitação traduziu as demandas e expectativas sociais de ʺcasa própriaʺ construindo um horizonte de mobilidade social e acesso                                                             6Realizado  pelo  jornal  La  Voz  del  Interior  e  publicado  em  fevereiro  de  2013 http://www.lavoz.com.ar/cordoba/tierra‐cada‐vez‐mas‐cara‐escasa  [Acessado  em: 25/05/2013] 

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a direitos ʺvioladosʺ. O problema da moradia provocou, em finais dos anos 80 em Córdoba, a multiplicação de organizações populares que se formaram  em  torno da gestão das necessidades básicas  (alimentação, vestimenta,  água,  luz,  etc.).  Isto  implicou  uma  crescente  organização territorial  para  resolver,  de  modo  comunitário,  os  problemas cotidianos.  Ao  mesmo  tempo,  um  consistente  posicionamento  no espaço público como atores com grande capacidade de mobilização e controle territorial. 

 ʺAqui na Vila, por exemplo, há 10 anos não  tínhamos água, então as pessoas  eram  uma  coisa  assim  que  lutavam  todo  santo  dia  e  se organizavam em torno da água, chegou um momento em que a favela estava sitiada, porque não havia água, então se  faziam bloqueios por todos  os  lugares  em  que  parecia  bom  fazê‐lo,  mas  eram  todos  os vizinhos, não era uma organização, uma  coisa  real, uma necessidade básica que não tínhamos e, bom, se organizaram e assim conseguiram ter água potávelʺ (Movimento Piqueteiro, Unidhos 01, 2005).  Neste  contexto  é  que  ganham  forças  as demandas  sociais  por 

ʺacesso à cidadeʺ (Ciuffolini, 2007). Um conceito que engloba o direito à terra, moradia,  saúde,  educação  e  serviços  básicos.  Simultaneamente, diante da ameaça que esta demanda  representava para a estabilidade dos  governos  é  que  começam  a  se  ativar  diferentes  dispositivos  de regulação. Neste marco surge, no início dos anos 90, em Córdoba, o que se  denominou  “Mesa  de  Concertación  de  Organizaciones  de  Baseʺ,  um espaço  institucional,  com  financiamento  público,  que  supõe  a  gestão colegiada  da  política  de  habitação  e  infraestrutura  social  entre  os setores populares organizados e o governo (Avalle e Ibanez, 2011). 

Na  seção  anterior  mencionamos  que  os  dois  atores protagonistas de finais do século foram as assembleias de bairros e os movimentos piqueteiros. Os dez anos que o antecederam tiveram como principais referências as organizações de bairro e de base territorial dos setores  populares  cordobeses.  Organizações  que  se  constituíam  em torno  da  gestão  de  necessidades  básicas  como  alimentação,  saúde, moradia,  foram  articulando‐se  entre  si  e  conseguiram  formar  duas frentes organizadas de bairros que mobilizaram mais de 100 bairros da cidade. Eles são a Unión de Organizaciones de Base (UOB) e o Movimiento 

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de Organizaciones  de Base  (MOB), que,  em  seguida,  se  integraram  à  já mencionada “Mesa de Concertaciónʺ. 

 ʺMe  dediquei  muito  ao  que  chamamos  de  levar  refeitórios  e...  era muito  trabalho, sabe, e ainda mais na época de Angeloz, de Alfonsín (década  de  80)  foi  o  período mais  forte,  onde  eu  comecei  a  fazer  o trabalho,  porque  eu  via muitas  das  necessidades  do  povo,  e  eu me somei,  eu... me  juntei,  com  um  bairro  de  Saldán  e  fui  a Cáritas,  de Saldán trabalhei em Cáritas por um ano. Então aí formamos uma inter‐bairro, assim se chamava, uma... era um integrado de todos os bairros, onde  este...  trazíamos  as  necessidades  do  bairro  e  víamos concretamente  o  que  podíamos  fazer  pelos  bairros  (...)  Fazíamos atividades  (...)  vendíamos  empanadas,  todas  essas  coisas,  até  que vimos  a  possibilidade  de  comprar  sacos  de  farinha,  açúcar,  pão,  e colaborar  com  o  refeitório”  (Organizações  Territoriais,  MOB  03, Córdoba, 2005).  ʺDesde o início de 1992, tinha sido, digamos, por um lado a unidade... e,  por  outro  lado,  o  acesso  à  habitação,  acesso  à  terra  e  à moradia, digamos que esta foi a luta mais forte que teve a União. Quer dizer, era o  que  ela  tinha  de  forte  (‐)  E  não  deixou  de  discutir  a  questão  da educação,  da  saúde  e  do  trabalho,  que  em  diferentes...  etapas conseguiu  desenvolver,  que,  digamos,  de  alguma  forma  a  União discutiu  profundamente,  mas  não  resolveu  esse  assuntoʺ (Organizações Territoriais, UOB 01, Córdoba, 2005).  Em meados  dessa mesma  décadas  se  configura  um  cenário 

fortemente  adverso  para  o  protesto  social.  O  Estado  provincial reafirmaria  sua  face  repressiva  e  concentraria novamente  o poder de decisão  com  respeito  à  política  pública.  Em  um  contexto  de  crise econômica e fiscal significativa, com crescentes níveis de desemprego e pobreza, a gestão do  conflito abandona a  linguagem do diálogo  e da ʺconcertaciónʺ.  Neste  marco  se  empregam  numerosas  políticas  de contenção  que  buscariam  frear  a  conflitividade  a  partir  de  uma proliferação  de  recursos  públicos  destinados  a  subsídios  de desemprego,  planos  alimentares,  pensões,  etc.,  juntamente  com  uma permanente prática de desqualificação pública das mobilizações  e do assédio a seus dirigentes com o objetivo de cooptá‐los. 

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Se essas tentativas não alcançavam os resultados esperados, a repressão  direta  assumia  o  protagonismo.  O  problema  que  se avizinhava era a confluência de demandas e reivindicações sociais nos espaços  públicos.  Os  relatos  sobre  este  caso  mostram  essas confluências,  quando  organizações  de  bairro,  trabalhadores desocupados, sindicatos, entre outros, começam a delinear um inimigo comum. 

Dois processos, embora aparentemente separados, encontram uma linguagem comum para construir seu projeto de futuro. Assim, a demanda por  trabalho e por moradia contém uma  linguagem coletiva que  condensa desejos  e  expectativas de  amplos  setores da  sociedade que pretendem ser parte de ʺprojetos políticosʺ que os contenham. No entanto,  a  tradução  dessas  demandas  resultou  em  um  processo  de permanente fragmentação e despolitização dos atores coletivos. 

 “É como se o Estado adotasse uma estratégia abrangente para destruir o movimento  piqueteiro...  (‐)  Sim,  alguns  se  apressaram  deste  lado para  dizer  ʺOs  bloqueios  não  vão  mais  acontecerʺ.  Também  não  é assim, (...) na realidade o Estado tem chamado nossa luta de doutrina, e por isso nos reprime de diferentes maneiras, nós também temos que fazer  doutrinas,  mas...  isso  não  significa  desacreditar  das  melhores ferramentas de  luta que nos últimos anos o povo  tem gestado  e que não  apenas  estão  sendo  utilizadas  pelo...  têm  sido  utilizadas  pelo movimento  piqueteiro,  mas  também  pelos  trabalhadores  ocupados, pelos  docentes,  vimos  isso  aqui  em  Córdoba,  cheio  de  piquetes  e bloqueios” (Organização Piqueteira, Córdoba , CTD‐AV 08, 2005).  Como  consequência  disso,  a  política  de  impugnação  se 

converteu em uma política de gestão, com a consequente despolitização dos  espaços  coletivos  de  base. O  dispositivo  de  governo  agiu,  desse modo,  traduzindo  a  queixa  popular  na  gestão mesma  das  decisões públicas,  reduzindo  o  potencial  de  conflito.  A  administração  se converteu em uma  imposição para os setores organizados, subtraindo espaço  para  o  debate  político.  Desativada  a  ameaça  mediante  a desorganização, um segundo processo consistiu na extinção do espaço político. 

 

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ʺquando  entrou  um  governo  (provincial)  que  foi  comprando  toda  a liderança, sabe? (...) comprando líderes fortes, os  líderes que tinham... os que tinham força de  luta, e bem, foi corrompendo eles (...), porque se você notar, hoje não  temos uma mobilização na ruaʺ  (Organização Territorial, Córdoba, MOB 03, 2005).  Os  relatos  que  se  seguem narram  o processo de desativação 

que  sofreram  as  organizações  de  base  no  final  dos  anos  90,  sob  o mandato  do  governo  peronista  de  De  la  Sota  na  província.  Estas organizações experimentam, em um curto espaço de tempo, a perda de influência  nos  espaços  institucionais,  a  perda  de  recursos,  que  são destinados para financiamento de novas obras de  infraestrutura social que não  conseguiriam nem mesmo  se  capitalizar, e o  rompimento de solidariedades dentro de suas próprias bases. 

 ʺEu tenho um problema com a minha cooperativa, nós temos um plano de habitação e, depois, compramos outras parcelas de terra e entramos nos novos planos, em novos bairros, então o governo fez a estrutura e depois saiu, politicamente, vendendo isso, dizendo que eram os novos bairros  que  ele  dava,  sendo  que  a  terra  é  nossa.  Então,  temos  duas coisas, as pessoas que vivem em um novo plano de habitação dizem, ‘a minha  casa quem me deu  foi o governo’, mas nós  temos uma outra parte que não vai receber a escritura do governo, quem vai receber a escritura  é  a  cooperativa, porque quem  tem  a  (...)  a propriedade  é  a cooperativa. Então,  até  isso  os  rachou,  os  rachou  como  organização, porque  nós,  muitos  e  muitos  anos  de  luta,  5  anos  de  luta  para conseguir  terra  para  um  novo  plano de  habitação,  quando  ele  entra (em 1999) é feito um acordo político dentro da nossa cooperativa com eles, feito um pacto político onde se doavam quarenta lotes desde que o  governo  desse  a  estrutura.  E  nos  enrolou  justo  aí,  deu  escola, iluminação pública para  nós, deu  asfalto, deu  tudo, mas  foi  quando ficamos  entregues,  o  governo  dizendo  que  era  um  novo  bairro, estrutura  de  bairro  novo,  e  acreditávamos  que  esse  novo  plano  de habitação  era  o  novo  Plano  De  La  Sotaʺ  (Organização  Territorial, Córdoba, MOB 04, 2005). 

 ʺO  que  vemos  é  que  parte  do  Estado  está  sempre  tentando  nos institucionalizar... como por exemplo... eles  te dão esse subsídio para o copo de  leite...  a partir de  agora  se  chama Centro  Infantil  e  centro de 

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cuidado infantil... isso... e te dão a vaga quando eles querem, e te dizem que  tipo  de  filhos  você  tem  que  ter  e  com  o  que  (...)  você  tem  que trabalhar...  as pessoas  são uma  espécie de gestores do Estado...  (risos) quando eles não ditam o lugar, não colocam o esforço, não organizam as pessoas... colocam o dinheiro, que aliás não é a quantidade de dinheiro que eles têm que colocar ... mas você trabalha de acordo com os critérios deles...  tantas  pessoas...  tantos meninos  aqui...  tantos meninos  aqui...ʺ (Movimento Piqueteiro, MTR 01 Córdoba, 2005).  Uma vez desativada a capacidade de mobilização por meio da 

cooptação  e  ruptura  das  organizações  de  base,  a  demanda  por habitação era totalmente desarticulada. A necessidade não desaparecia, mas  já não havia organização nem articulação popular conjunta que a sustentasse no espaço público. A ausência de conflito permitia, assim, a resolução de um problema gestado diretamente a partir das instâncias institucionais. 

Neste marco aparece um conjunto de políticas cuja  tendência seria a de neutralizar a demanda central: o emprego, a alimentação e o teto. Em nível nacional são implementados em meados de 2002 o Plano Jefas  y  Jefes  de  Hogar  Desocupados7;  em  nível  local,  o mega‐plano  de habitação ʺMi Casa, Mi Vidaʺ8, ambos financiados pelo BID. O primeiro exigiu  uma  reincorporação  do  beneficiário  à  disciplina  do  trabalho: prestação  de  serviços  em  órgãos  públicos,  controle  de  saúde  e reinserção  no  sistema  educacional.  Em  suma,  uma  regulação sistemática  do  indivíduo  desempregado.  O  segundo9,  o  plano  de habitação,  foi  implementado  de  maneira  vertiginosa  e  arbitrária, através da criação de bairros populares que tinham duas características fundamentais:  situar‐se  nas  periferias  da  cidade,  e  contar  com  a presença  de  todos  os  equipamentos  do  Estado  (polícia,  ministérios, escolas,  refeitórios).  Isto  se  traduziu  em  uma  política  diretamente destinada à regulação do espaço e ao deslocamento da população. No 

                                                            7 Programa público que envolveu a transferência de dinheiro para os beneficiários e, em troca, a remuneração por horas de controles de trabalho, saúde e educação. 

8  Programa  habitacional  destinado  a  setores  ʺvulneráveisʺ  e  ʺrisco  ambientalʺ  que envolvem a transferência de assentamentos irregulares e à prestação de uma casa de família. 

9 Este plano é discutido no artigo de Shimbo e Ciuffolini presente neste livro. 

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entanto, isso não implicou ou deteve o crescente problema habitacional, mas exatamente o contrário10. 

A  política  intensiva  de  revalorização  territorial  promoveu  a expulsão de populações de seus  locais de residência sem dar‐lhes um novo  destino,  levando  ao  ressurgimento  das  ocupações  de  terra  que aconteciam há 15 anos atrás. 

 ʺE  é  assim  como,  sabe  quando dizem  ʹDeus  cria,  eles  se  juntam  e  o vento os amontoaʺ, e bom, nos amontoou neste caso aqui ... e eu, isso é verdade,  eu me  senti  excluído  de  um monte  de...  do  sistema...  nos chutava  para  fora,  não  entrávamos  nem  na  classe  média,  nem  na média‐baixa,  nem  em  nenhuma  classe,  não  existíamos  e  prontoʺ (Ocupação de Terra 04, Icho Cruz, Córdoba, 2012).  ʺE sempre disse a meu filho: ʹOlha, temos a casa porque ganhamos ela com  o  nosso  sacrifício,  papai,  mamãe,  lutou,  você  também  lutou. Resistimos, todos os dias’. E quando chegam famílias digo a elas ʹesta é a minha casa, tanto lutei que vim para cá. E é assim. E aí você tem sua casa, tem o orgulho de dizer ‘moro lá’ʺ (Ocupação de Terra, Córdoba, 2012).  ʺA questão da habitação sempre  representava para nós um problema porque  não  podíamos... muitas  vezes,  por  exemplo  no  ano  passado, quando  estávamos  alugando,  que  foi  o  ano  retrasado,  chegou  um momento  em  que  em  alguns  meses  tínhamos  que  decidir  entre comprar  um  par  de  sapatilhas  Brisa  e  pagar  o  aluguel  completoʺ (Ocupação de Terra 06, Icho Cruz, Córdoba, 2012). 

 5. Conclusões 

 Com  frequência  as  situações de desigualdade  e  exclusão nas 

sociedades  contemporâneas  são  abordadas  a partir de uma dinâmica 

                                                            10 O crescimento dos assentamentos informais recentemente é significativo. Atualmente, existem  238  na  província,  registrando‐se  entre  2001‐2010  forte  crescimento  da população (62%), nos  já existentes, ao  invés de surgimento de novos assentamentos. De  todos  os  assentamentos,  119  estão  localizados  na  cidade  de  Córdoba (Levantamento de assentamentos  informais na província de Córdoba, Um Teto para meu País‐Argentina, em setembro de 2011). 

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que focaliza de modo permanente o indivíduo ʺvulnerávelʺ ou ʺpobreʺ (Bravo, 2001; Indec, 2000; Macadar e Mendive, 1997). Falar de pobreza soa,  inclusive,  reiterativo,  dada  a  numerosa  produção  bibliográfica sobre  o  tema. No  entanto,  de  nosso  ponto  de  vista,  acreditamos  ao menos ser necessário nos diferenciarmos destes conceitos. 

Pobreza habitualmente é um termo que agrupa um conjunto de estratégias de medição e agregação de categorias que colocam o foco na “carência” do  indivíduo; efetua uma  leitura estática das condições de vida da população; constrói o pobre como um conjunto homogêneo de população marginalizada e excluída da sociedade. No entanto, as vozes daqueles  pobres  dão  conta  de  uma  dinâmica  diferente:  em  primeiro lugar exige que falemos, em todo caso, de pobrezas – no plural –, uma vez  que  estas  se  encontram  ancoradas  em  múltiplas  e  diversas experiências  cotidianas;  e,  por  outro  lado,  é  necessário  entendê‐las como  posições  determinadas  pela  posse  de  capitais  dentro  de  uma estrutura específica de relações, quer dizer, dentro da sociedade e não excluídos desta. 

Por sua vez, o conceito de ʺvulnerabilidadeʺ em políticas sociais é  problemático  já  que  ora  habilita  dinâmicas  individualizantes,  ora totalizantes, dos  sujeitos  beneficiários  / destinatários. Por  um  lado,  o ʺbeneficiárioʺ  é  objeto  de  um  tratamento  diferente  do  restante  da população, dado que seu atributo principal é a carência de todo tipo de recursos ou capital. Assim, o acesso à cobertura da política pública não aparece  como  um  direito,  mas  como  uma  compensação  por  danos (sociais). 

Simultaneamente,  cada  situação  de  vulnerabilidade  é  inscrita em  uma  lógica  mais  global  do  tratamento,  que  visa  a  permanente normalização  da  desigualdade  social  que  a  provocou.  Assim, configurações do espaço social que assumem um caráter dominante são permanentemente  legitimadas  por  um  discurso  compensatório proveniente da estatalidade, e, neste sentido, é possível pensar o caráter (des)igualitário  que  assume  a  política  pública  frente  às  tensões  do presente. 

No  entanto,  a  presença  do  conceito  de  ʺvulnerabilidadeʺ  nos discursos públicos  foi um ponto a problematizar nossa  indagação. Os riscos  que  supõe  essa  perspectiva  estão  em  sua  própria  definição. 

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Assume o vulnerável como aquele  indivíduo potencialmente em risco por algo que é uma ameaça para  si mesmo, um estado de  ʺincerteza, impotência  e  insegurançaʺ  (Brusso,  2001).  Sob  esse  pressuposto desaparece a construção do beneficiário como um cidadão portador de direitos,  como  saúde,  educação,  etc.,  e,  portanto  uma  categoria  de caráter universal, para passar a ser um sujeito em potencial ameaça de exclusão de  ʺassistênciaʺ educativa, de saúde, etc., e, deste modo, um indivíduo em risco, um indivíduo vulnerável. 

Neste  sentido,  todos nos vemos expostos a  riscos  (Beck, 1998), de modo que se  torna necessário  ir  identificando os mecanismos para atender cada problemática e situação. Neste marco,  ʺvulnerávelʺ é um conceito  que  penetrou  tanto  nos  escritórios  de  organizações internacionais  em Washington  e  Nova  York  como  nas  barricadas  e assentamentos  protagonizados  pelos  setores  populares.  No  entanto, como era de se esperar, o olhar foi dirigido para eixos diferentes. 

Espaços como o G7 e em menor medida o G20 vêm substituir os mandamentos do Consenso de Washington. O fórum dos 20 países se converteu  em  um  palco  de  reivindicações  dos  países  menos desenvolvidos, e no espaço de reafirmação de medidas financeiras para apoiar  modelos  que  de  modo  permanente  estão  mostrando  a inviabilidade de, parafraseando Touraine (1998), uma ʺvida juntosʺ. 

Por  outro  lado,  a  partir  de  baixo,  os  setores  populares organizados  têm  instaurado  novamente  o  debate  das  demandas  de inclusão  e  radicalizado  as  práticas  de  impugnação  social. Ambos  os conceitos se encontram em constante disputa, constituem um modo de (não)  nomear  os  conflitos  sociais  e  de  in/excluí‐los.  Aparece  dessa maneira  uma  tensão  chave,  permanentemente  insolúvel,  entre  a conformação dos espaços públicos e a definição do sentido da política, ou a sua capacidade de definir os rumos de uma sociedade. 

No breve percurso que tentamos refazer sobre o caso argentino, e  a  província  de  Córdoba  em  particular,  observado  a  partir  da perspectiva dos setores populares, nos aporta uma série de elementos para  pensar  e  problematizar  as  consequências  que  provocam  as políticas públicas,  independentemente do objetivo que perseguem. Os relatos  dos  entrevistados,  que  recuperam  mais  de  20  anos  de experiência  do  campo  popular,  nos  advertem  sobre  a  tensão  que 

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permanentemente  se  apresenta  quando  os  espaços de decisão  e  ação pública  se  vêem  questionados  a  partir  da  própria  base  social.  Sem dúvida,  os  recursos  que  os  setores  organizados  conseguem  obter  da estatalidade  constituem  um  dos  pilares  para  fortalecer  sua  estrutura interna,  sua  capacidade  de  mobilização  e  negociação  com  os funcionários públicos. No entanto, esta forma alternativa de gestão dos problemas, que implica na intermediação entre indivíduos e Estados a partir da organização dos setores afetados, representa um risco para a estatalidade, uma ameaça ao controle que se busca exercer sobre essas populações. 

Percebe‐se nos textos das políticas estatais, ainda, que as pessoas em questão não careçam de Estado, mas ao contrário, que elas o tenham de sobra, encontram‐se inscritas em uma nova técnica gerencial, ou uma nova  “tecnologia  social”.  A  presença  estatal,  entretanto,  não  é exatamente  garantidora  de  direitos:  em  todos  esses  documentos, políticas  e  programas,  ao  mesmo  tempo  em  que  se  oferecem oportunidades, produz‐se histórias de vida  típicas de  tudo o que  falta para que um sujeito esteja apto a desfrutar do convívio de cidadãos.  

Quando a organização popular constitui uma clara ameaça para a legitimidade dos projetos políticos dominantes, os mecanismos estatais se  esforçam  por  provocar  a  fratura,  ruptura  e desmobilização dessas experiências coletivas. E o fazem por múltiplas táticas na arena pública, seja  cooptando  seus  dirigentes,  envolvendo  essas  organizações  em práticas  cada  vez mais  burocratizadas,  ou  intervindo diretamente  no território, perseguindo a  fratura da base de apoio. Mas quando  esses mecanismos não são suficientes, o espaço público se  torna um campo de batalha, onde a repressão opera como a única resposta do Estado às demandas sociais. 

O  cenário  que  se  apresenta,  então,  é  de  uma  dupla aprendizagem,  onde  o Estado  toma  as  lutas  e  a  organização popular como  doutrinas,  e  aquelas  fazem  de  sua  prática  e  da  relação  com  o Estado uma caixa de ferramentas e um estado de coisas que estabelece permanentemente novos pontos de partida e  instâncias de demandas sustentadas  com  estratégias  mais  radicais,  mais  móveis,  e  formas organizativas que permitem, com relativo êxito, escapar à desativação, criando um  cenário mais participativo, mais politizado,  e  com  atores 

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fortemente  empoderados.  Daí  que  sustentamos  que  para  pensar  em uma democracia sólida, e reclamar por  instituições que sejam capazes de organizá‐la, devemos garantir os espaços de liberdade para aquelas pessoas que estão lutando por uma sociedade mais justa.    Bibliografia   ASPIAZU,  D.  y  BASUALDO  E.  ”Transformaciones  estructurales  de  la economía Argentina. Una aproximación a partir del panel de grandes empresas 1991‐2005”.  Buenos  Aires:  Programa  Naciones  Unidas  para  el  Desarrollo‐PNUD.  2012.  Disponible  en  http://www.undp.org.ar/docs/Libros_y_ Publicaciones/FLACSO.pdf AVALLE, G, y BRANDÁN ZEHNDER, M.G. “Entre la asistencia, la promoción y  la  inclusión.  Dilemas  de  las  políticas  de  empleo  post‐convertibilidad  en Argentina”.  En  III  Jornadas  de  Estudios  Políticos.  Universidad  Nacional General  Sarmiento.  Los  Polvorines.  ISBN  978‐987‐26398‐0‐8.  17  al  19  de noviembre, 2010.  AVALLE, G., DE LA VEGA, C. y FERRERO, M.M. “Ciudadanía,  técnicas de gubernamentalidad y degradación de derechos: lo planes laborales pos 2001 en Argentina”.  En  Foro  Internacional  ʺTerritorialidades  Locales  –  Regionales  y Métodos Posibles de Resolución de Conflictosʺ. Córdoba, Argentina. 29 al 31 de octubre, 2009. AVALLE,  G.,  y  IBAÑEZ MESTRES,  G.  “Gestionar,  concertar  o  decretar  la provisión de viviendas en Córdoba. Análisis de los actores en el gobierno de lo habitacional”. En Núñez, A. y Ciuffolini, M.A. Política y territorialidad en tres ciudades argentinas. Buenos Aires: Ediciones El Colectivo. Pgs. 61‐84, 2011. BECK, U. Sociedad De Riesgo. Barcelona: Paidós Básica, 1998.  BUSSO, G.  “Vulnerabilidad  social:  nociones  e  implicancias  de  políticas  para latinoamérica a  inicios del siglo XXI”. ONU‐CEPAL. Santiago de Chile, 2001. http://www.redadultosmayores.com.ar/buscador/files/ORGIN011.pdf.  BRAVO, J. “Estimaciones de Ingreso y Pobreza para áreas geográficas menores: Avances recientes en América Latina y el Caribe”. Notas de Población, año 71, Nº 71. Santiago de Chile: CEPAL. Pgs. 139‐148, 2001. CIUFFOLINI, M.A. “Luchas urbanas por la tierra”. En “Anuario IX del Centro de  Investigaciones  Jurídicas  y  Sociales”.  Facultad  de  Derecho  y  Ciencias Sociales. Universidad Nacional de Córdoba. Pgs.: 443‐459, 2007. 

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Territórios e populações marginais em tempo de desenvolvimento: modos de gestão do conflito social no Brasil contemporâneo 

             Gabriel de Santis Feltran1 

    1. Introdução    O  Brasil  contemporâneo  está  em  franca  transformação,  em grande medida pelo cenário de desenvolvimento econômico da última década,  desigualmente  distribuído  pelos  tecidos  social  e  urbano.  A conflitividade  social  expressa  por  esse  cenário  também  é  nova.  No centro da  cidade de  São Paulo,  a Polícia Militar  (PM)  ocupa  a  região conhecida  como  “cracolândia”  em  meio  a  uma  grande  operação  de ʺrequalificação urbanaʺ. Enquanto  isso, a Prefeitura Municipal constrói albergues de “atendimento” aos usuários de crack, cada um para mais de  mil  pessoas.  Discute‐se  publicamente  a  pertinência  da  internação compulsória dos ʺnoiasʺ. Grandes incorporadoras investem em mão de obra  de  presidiários  paulistas  –  cuja  população  foi  quadruplicada  na última década – em  troca de remissão de penas. Há 200 mil presos no estado, e cinquenta novos presídios em construção. No Rio de Janeiro, o Exército  Brasileiro  ocupa  territórios  de  favela  na  zona  sul,  a  mais abastada,  expulsando  traficantes  de  drogas  para  as  periferias.  O caminho aberto pelas Unidades de Polícia Pacificadora” (UPPs) também serve  aos mercados  imobiliário  e  do  terceiro  setor. Uma  sequência  de incêndios  criminosos  em  favelas  de  São  Paulo  possibilita  que  as políticas de remoção, estancadas desde os anos 1980, retomem fôlego e liberem  terrenos  de  interesse  comercial.  O  conflito  alastra  violência. Mais  de  80  policiais  militares  foram  assassinados  pelo  Primeiro Comando da Capital (PCC), a principal facção criminosa do estado, e a vingança das forças da ordem produz uma nova escalada das taxas de 

                                                            1Professor  do  Departamento  de  Sociologia  da  Universidade  Federal  de  São  Carlos (UFSCar);  Pesquisador  do  Centro  de  Estudos  da  Metrópole  (CEM)  e  do  Centro Brasileiro  de Análise  e  Planejamento  (CEBRAP).  Pesquisa  apoiada  pela  FAPESP  e CNPq. 

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homicídios nas periferias, depois de uma década de queda significativa. As taxas de desenvolvimento da economia acompanham essa elevação.   Esse  cenário  paradoxal,  de  desenvolvimento  associado  a  alta conflitividade social, pode ser captado especificamente nos territórios e grupos sociais considerados ʺmarginaisʺ no Brasil contemporâneo. Este ensaio  reflete  sobre  algumas  relações  entre  a  gestão  contemporânea desses territórios e populações, bem como os modos como tem podido ser  convertido  ‐  tanto  no  plano  semântico,  quanto  de mercado  ‐  em “desenvolvimento”. Acompanhando etnografias  recentes  junto a esses grupos, sobretudo no estado de São Paulo, proponho algumas sínteses analíticas que apontam para a fusão recente entre os problemas “social” e de “segurança pública” no debate público brasileiro, bem como para algumas  questões  teóricas  e  políticas  pouco  intuitivas,  a  princípio. A hipótese  é  que  esse  modo  de  administrar  o  conflito  urbano  nas principais metrópoles brasileiras, que promovem franca  transformação territorial,  social  e  econômica  conecta‐se  diretamente  à  validação pública do Brasil com o país em franco desenvolvimento.   Os  argumentos  expressos  aqui,  ainda  bastante  preliminares, partem de uma  investigação  coletiva, em andamento desde agosto de 20102, que etnografa  três grupos urbanos específicos:  i) adolescentes e jovens  inscritos  em  atividades  criminais,  moradores  de  bairros  das periferias urbanas; ii) moradores de rua; iii) prostitutas3. O que articula analiticamente esses  sujeitos e  territórios distintos, a princípio, é  tanto sua  condição  marginalizada  frente  a  dinâmicas  sociais  consideradas                                                             2 Trata‐se do projeto de pesquisa “As margens da cidade: grupos urbanos  ‘marginais’, política  e  violência  em  três  territórios  do  estado  de  São  Paulo”,  desenvolvido  no NaMargem  –  Núcleo  de  Pesquisas  urbanas,  além  de mim  por Mariana Martinez (PPGAS/UFSCar), Filipe Horta (IESP/UERJ), Daniel Melo (PPGAS/UFSCar), Henrique Takahashi, Luciano Oliveira, Evelyn Postigo e Luiz Fernando Pereira (PPGS/UFSCar), Liniker  Batista  (PPGAS/Unicamp),  Domila  Pazzini,  Deborah  Fromm,  Leilane Matsushita, Marcos Vinícius  Silva  (Ciências  Sociais/UFSCar). Agradeço  a  cada  um deles  pela  parceria  nesses  últimos  anos.  O  texto  conta  com  trechos  em  primeira pessoa do singular, quando apresento argumentos de minha responsabilidade, e em primeira pessoa do plural, quando me refiro a dinâmicas de pesquisa coletiva. 

3  Os  territórios  estudados  concentram‐se  sobretudo  nas  cidades  de  São  Paulo (Sapopemba, Heliópolis, Centro – “Cracolândia”), São Carlos e Cruzes (nome fictício), no estado de São Paulo. Uma das pesquisadoras desenvolve ainda, inicialmente, seu trabalho na Cidade de Deus, Rio de Janeiro.  

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legítimas,  quanto  o  fato  de  estarem,  quase  sempre,  convivendo proximamente  com  políticas  e  programas  estatais  (de  atendimento  e repressão,  muitas  vezes  simultâneos).  Esses  sujeitos  impuseram  à equipe de pesquisa,  logo de  cara,  o paradoxo de  serem  considerados “excluídos”  da  vida  social  ao  mesmo  tempo  que  apresentavam vinculações empíricas com  formas de “atendimento” estatais das mais diversas. Além disso, e ao contrário do que supõe o senso comum, trata‐se muitas vezes de sujeitos vinculados a distintos arranjos familiares, de mercados  de  trabalho  e  geração  de  renda,  bem  como  a  distintas religiosidades  e  modos  de  habitar  a  cidade,  ou  seja,  a  diferentes instâncias da vida social considerada legítima. A escolha desta condição marginal  como  lente  a  partir  da  qual  se  analisa  o  cenário  brasileiro contemporâneo  não  é  casual.  Trata‐se  de  uma  escolha  de  pesquisa desenvolvida  ao  longo  dos  últimos  anos  de  investigação  coletiva, amadurecendo  conexões  entre  pesquisa  etnográfica  e  leitura  teórica inspirada, sobretudo, nas etnografias do estado e de suas margens.    O mundo  urbano  brasileiro,  visto  aqui  sob  o  prisma  de  São Paulo e, com menor intensidade, Rio de Janeiro, tem mudado muito nas últimas  quatro  décadas.  As  periferias  da  cidade  apresentam deslocamentos  nada  triviais  nas  bases  da  sua  dinâmica  social.  A migração  “nortista”,  central  à  expansão  das  manchas  urbanas  do sudeste  brasileiro,  declinou muito  a  partir  dos  anos  1990;  ao mesmo tempo,  os  mercados  de  trabalho  populares  se  reconfiguraram inteiramente, na esteira da chamada “reestruturação produtiva”, tardia no  Brasil  se  comparada  aos  países  do  norte  (Kowarick  & Marques, 2011).  Consolidou‐se  ainda  a  inscrição  das mulheres  no mercado  de trabalho  popular,  agora  constitutivamente  marcado  pelas  fronteiras entre  formal‐informal  e  legal‐ilegal  (Telles  &  Cabanes,  2006;  Telles, 2011).  Imersa  nessas  transformações,  a  família  popular  tendeu  à nucleação,  em  arranjos  muito  heterogêneos.  A  taxa  de  natalidade brasileira de 1,8 filhos/mulher é, hoje, menor do que a taxa de reposição demográfica. No plano religioso, e especialmente entre os mais pobres, foi  enorme  o  trânsito  do  catolicismo  ao  pentecostalismo  (Almeida, 2009). Além disso, o acesso à infra‐estrutura urbana e bens de consumo cresceu  enormemente  desde  os  anos  1970  e,  embora  ainda  muito deficiente, possibilitou que as novas gerações da cidade vivam, hoje, em 

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mundo radicalmente distinto daquele de seus pais (Marques & Torres, 2005; Feltran,  2011). Nesses  anos,  além do mais,  a  “violência urbana” tornou‐se  assunto  de  qualquer  cidadão  brasileiro  (Caldeira,  2000; Machado da Silva, 2004; Misse, 2006), e à elevação brutal das  taxas de homicídio  nos  anos  1990  (Manso,  2003,  2012),  seguiu‐se  na  década seguinte  uma  queda muito  expressiva  em  São  Paulo,  sobretudo  nas margens da cidade (Marques, 2010; Feltran, 2010a, 2010b, 2011; Hirata, 2010; Manso, 2011), fato que não ocorreu em outros estados. Em suma, as palavras‐chave do debate  sobre as periferias de São Paulo, ou  seja, trabalho, migração,  religião,  família,  políticas  sociais  e  violência,  estão  hoje muito longe de dizer o que diziam há quarenta anos.   Nesse cenário, o projeto dos “trabalhadores”4 que colonizaram as periferias da cidade, fundindo o desejo operário de ascensão social à aposta política na expansão da cidadania (Dagnino, 1994; 2002), sofreu deslocamentos nada  triviais,  em  todas as  suas dimensões  fundadoras. Analisando o percurso de tensões desse projeto nas últimas décadas, e as  dinâmicas  recentes  de  relação  dos  governos  com  “populações” marginalizadas  (Foucault,  2000),  argumento  que  o  estatuto  do  conflito social e político ensejado pelas periferias urbanas foi deslocado (Feltran, 2012). Se nos anos 1980 esse conflito pôde  ser pautado numa perspectiva de integração  das  camadas  “trabalhadoras”,  pela  aposta  na  contrapartida social  do  assalariamento,  agora  trata‐se  sobretudo  de  gerenciar  as fronteiras  entre  periferias  e  direito  –  de  modo  compartilhado  entre Estado,  polícias  e  “mundo  do  crime”  –  pela  ênfase  sistemática  nas representações da violência urbana.   As  investigações de  campo empreendidas entre esses grupos, ainda  muito  preliminares,  sugerem  a  sustentação  desse  argumento. Todas de orientação etnográfica,  tiveram como ponto de partida duas constatações  importantes,  provenientes  de  pesquisas  anteriores  e  do diálogo  com  a  bibliografia  mais  recente  sobre  o  tema:  a  primeira eminentemente  teórico‐epistemológica;  a  segunda  mais  propriamente analítica.  Neste  ensaio,  dividido  em  duas  seções,  trato  de  cada  uma delas.  Ao  final,  apresento  sínteses  das  questões  analíticas,  teóricas  e                                                             4 Utilizo  aspas para demarcar  as  categorias de uso  corrente nas periferias da  cidade, como “trabalhador”, “mundo do crime”, “bandido” etc. Os nomes próprios citados são fictícios. 

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políticas que me parecem  estar  inscritas na  gestão  contemporânea das “populações  marginais”  no  Brasil  urbano,  em  tempos  de “desenvolvimento econômico”.  2. Os sujeitos marginais e o mundo social: digressão teórico‐metodológica    Usualmente, tanto nos relatórios dos serviços sociais que atendem a esses usuários da assistência, quanto nas ações das forças policiais que os reprimem, e mesmo na produção bibliográfica mais tradicional acerca dos grupos  estudados  aqui,  a  dinâmica  social  que  os  caracteriza  tem  sido descrita  na  chave  da  ausência.  Ou  seja,  nessas  perspectivas  um  menor infrator, uma prostituta ou um morador de  rua, quase  invariavelmente, são pensados  como  pessoas  vivendo  nos  interstícios  sociais,  a  quem  falta  o fundamental para uma vida social considerada saudável, digna, cidadã: o trabalho  regular,  a  “família  estruturada”,  as  condições  de  habitação,  o respeito  à  lei,  a  civilidade,  a  moral,  o  autocuidado,  a  autoestima. Evidentemente, ainda nessa chave, aquilo que caracterizaria esses grupos, estendendo‐se e contaminando também os territórios que habitam, seria o oposto dessas virtudes:  a vadiagem,  o  alcoolismo,  o vício,  as  atividades ilegais,  ilícitas  e/ou  imorais,  a  promiscuidade,  a  degradação  pessoal, familiar  e,  no  limite,  quase  como  conseqüência  natural,  a  criminalidade violenta.  A  partir  desse  diagnóstico,  a  vida  desses  sujeitos  tem  sido majoritariamente  pensada  a  partir  do  problema  (pobreza,  desordem, incivilidade,  imoralidade, violência, marginalidade, criminalidade) com o qual são identificados, e a produção de conhecimento a respeito deles parte da seguinte pergunta: como resolver/administrar esse problema?5  

                                                            5 Se o problema  são  os  outros, e não a  relação, as  técnicas de  tratamento devem estar focadas nos sujeitos aos quais se atribui o problema, e não à relação que o(s) constitui. Desde  as  primeiras  décadas  da modernidade  se  constrói  a  noção  da  cidade  como laboratório e clínica do humano, noção formalizada cabalmente nos primeiros escritos da Escola de Chicago (Park, 1979). Caberia, portanto, aos homens de bem, aos cidadãos, aos  incluídos,  encarregar‐se  de  cuidar  dessa  fronteira  de  dignidade  e  legitimidade social, agindo para transformar os viciados e desviantes; seria preciso oferecer‐lhes as oportunidades da vida digna, ou  reprimir neles os  impulsos deletérios. Da punição exemplar  à  filantropia, do  suplício  à disciplina,  e daí  à  gestão das  populações,  na genealogia  foucaultiana,  os  mesmos  remédios  vem  sendo  testados  por  séculos, década a década, ano a ano. 

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  Eis a primeira  constatação:  esses  sujeitos  são  concebidos pelo problema  social  que  representam,  e  portanto  pela  ausência  frente  à normatividade  dominante  (partilhada  muitas  vezes  pelos  próprios sujeitos em questão, em determinadas situações) que  lhes é  inerente. É preciso esclarecer, logo de cara, que não se trata aqui de dizer que esse problema  não  existe,  acusando  o  déficit  de  “realidade”  ou  o etnocentrismo de quem  assim o  formula. Se há um  século  rompemos com o positivismo na etnografia,  trata‐se aqui, apenas, de dizer que é preciso estudá‐lo considerando sua existência em perspectiva, e não sob quaisquer  perspectivas.  Assumo  aqui,  inclusive,  que  o  problema  se confirma  como  tal  nas  falas  dos  próprios  sujeitos  em  questão,  mas apenas  quando  eles  se  dirigem  aos  assistentes  sociais,  psicólogos, advogados,  escrivães,  pastores  ou missionários  que  os  acompanham pela vida; o problema não se confirma, entretanto, em inúmeras outras situações de  locução. São essas, pela carência delas na bibliografia, que cabe a nossa pesquisa explicitar.   A  exclusão  social  de  um  trecheiro6  é  inconteste,  partindo  do ponto de vista do religioso que lhe presta ajuda filantrópica; mas não é, quando  vista desde  a  conversa  entre  ele  e  os pares de  uma  banca de moradores de rua, que se reúnem para passar o dia, arrumar dinheiro, comida e bebida,  trocar dicas  sobre os  lugares  em que estiveram e as pessoas que devem ou não ser respeitadas em cada um deles, os modos mais  fáceis de  escapar da polícia  e  conseguir  abrigo da prefeitura, os códigos  para  falar  com  os  assistentes  sociais  e  as  críticas  ao  sistema (equivalente semântico de sociedade). Nessa segunda perspectiva, já não há ausência de sociabilidade, códigos ou laço social, como demonstra a bibliografia a respeito (Rui, 2012; Martinez, 2010). Ocorre que a primeira figuração,  a  da  co‐presença  de  seres  excluídos7,  portanto  alheios  ao pertencimento social, é dominante e se constitui como o ponto nodal de elaboração dos critérios pelos quais todos esses sujeitos marginalizados – seu passado, sua presença, seus destinos, seus territórios – passam a ser 

                                                            6 Sobre trecheiros e pardais, classificações internas ao mundo daqueles conhecidos como andarilhos, mendigos e vagabundos, no estado de São Paulo, ver Martinez (2010). 

7 Há uma série de críticas produzidas à noção de exclusão social, desde a clássica crítica de Martins  (1997). Nossa  abordagem  soma‐se  a  elas,  embora não  se  confunda  com nenhuma delas, inteiramente. 

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compreendidos  publicamente.  A  repercussão  dessa  figuração  nas políticas  públicas  é  evidente  –  os  programas  sociais,  questionários, relatórios  e  fichas  de  atendimento  partem  dessas  premissas  para confirmá‐las, progressivamente, nos seus “atendimentos”.    Se  há  consequências  políticas  expressas  a  partir  daqui, concentro‐me inicialmente naquelas mais propriamente analíticas. Entre elas,  parece‐me  relevante  afirmar  que  o  diagrama  de  compreensão dominante  produz  uma  fronteira  normativa  que  circunscreve  o pertencimento  social.  Apostando  numa  análise  reflexiva,  pode‐se perceber  sem dificuldade que essa  forma de nomeação,  tal  seja, a que sugere  a  existência  de  “excluídos”,  ao  fazê‐lo  reforça  os  critérios normativos  de  pertencimento  ao  social,  definindo‐os.  Desenha‐se  nesta operação, portanto, os limites cognitivos que circunscrevem as margens daquele  domínio  passível  de  ser  chamado  de  sociedade,  bem  como  a plausibilidade daquilo que pode ser considerado social.    O  ganho  da  abordagem  reflexiva  que  se  propõe  a  tornar explícita  essa  figuração,  nos  parece,  está  centrado  no  fato  de  que  o problema  em  questão,  quando  tratamos  dos  grupos  considerados marginais, deixa de  ser o  excluído,  e volta‐se  ao diagrama de  relações que os nomeiam como  tais. Nessa medida, desnaturaliza‐se  também o lugar  tradicionalmente  ocupado  pelo  pesquisador8.  Consequência primeira  desta  constatação,  e  dos  desdobramentos  analíticos  dela  – estudar  os  grupos  marginalizados  é  também  estudar  as  fronteiras normativas  que  circunscrevem  o  social  e,  portanto,  conhecer  os  seus princípios  normativos  fundadores. Estudar  as  franjas  sociais  é,  então, também estudar o centro.  

No  tratamento  mais  corrente  da  questão,  portanto,  há  uma partilha  a  ser  considerada  para  se  pensar  a  sociedade:  o  social,  nessa perspectiva,  é  sempre  considerado  circunscrito  por  valoração  e normatividade,  e  há  invariavelmente  sua  contraface:  fenômenos, territórios  e  seres dele apartados, por o  constituírem  em negativo. De 

                                                            8 Ressalta‐se, nesse ponto, a contribuição decisiva de pesquisadores, no grupo, oriundos dos  contextos  estudados.  É  bastante  recente,  na  bibliografia,  a  presença  de pesquisadores desses contextos que compartilham códigos, sociabilidade e territórios com seus sujeitos de pesquisa e com as universidades; Dias (2012) apresenta reflexão metodológica fundadora a respeito. 

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um lado há um terreno reservado àquilo que é propriamente social – os critérios de  legalidade,  legitimidade, moralidade  correntes  o definem; de  outro,  há  territórios  e  populações  que  não  compartilham  desses critérios, e mesmo os ameaçam, e portanto deve permanecer excluídos. A sociedade  tem  sempre  um  lado  de  fora,  portanto,  e  a  fronteira  que define seus limites é  inteiramente pautada pela relação mútua entre os lados que ela divide.    A  proposta  das  investigações  deste  projeto  de  pesquisa,  que ora desenvolvemos, pensa as margens, interstícios, periferias ou franjas do  social numa outra direção,  afeita  a outra  tradição de  investigação. No tratamento proposto aqui, não há lado de fora na vida social, portanto não há excluídos da sociedade9. Há dependentes de crack, prostitutas, ladrões, e moradores de rua fazendo parte da vida social e urbana e, por vezes, pautando, pela sua presença, a definição mesmo dos critérios das ações dos  grupos  considerados  centrais. Estudar  os marginais  a partir das  relações  que  estabelecem  com  as  fronteiras  –  semânticas, classificatórias e mesmo físicas – que os definem como excluídos é, nessa perspectiva  específica,  acessar  os  critérios  de  formulação  da normatividade  social  dominante,  não  raras  vezes  legitimadas  por determinações  estatais. O  conjunto  de  relações  que  compõe  o  social, nessa  medida,  abarca  não  apenas  todos  esses  sujeitos,  mas  seus territórios,  formas  de  ação,  rotinas,  cotidianos,  instituições.  A “sociedade”  ganha,  ao  mesmo  tempo,  mais  amplitude  descritiva  e menos caráter normativo.    A definição bipolar que opõe os homens de bem aos vagabundos, os trabalhadores aos bandidos, as moças de família às prostitutas, inteligível por onde quer que se ande, perde força como categoria analítica. Essas polaridades  usuais  de  compreensão  da  vida  social  e  urbana  passam, então,  não mais  a  funcionar  como  categorias  pelas  quais  se  poderia compreender o que se passa; elas passam a ser vistas como uma espécie de representação (coletiva, e não precisamos da transcendência do social durkheimiano  para  considerá‐la  assim)  que  é,  justamente,  aquilo  que nos caberia estudar. Essas polaridades semânticas, portanto, deixam de 

                                                            9 A inspiração é, sobretudo, de Das & Poole, 2002; Das, 1999, 2006, 2012. Latour (2000), por outros caminhos, chega a conclusões semelhantes. 

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ser chaves a partir das quais se poderia pensar o problema dos grupos marginalizados,  e passam  a  ser pensadas  como parte  fundamental  do próprio objeto que se pretende compreender10. A prostituta, o morador de rua  ou  o  jovem  infrator  deixam  de  ser,  assim,  sujeitos  dados  ou problemas sociais concretos, circunscritos aos  interstícios ou alheios ao social,  que  nosso  saber deve  contribuir para  sanar. Eles passam  a  ser, antes de mais nada, enunciados naturalizados, porque dominantes, que nos cabe  estudar  em  detalhe,  e  na  linha  do  tempo,  para  compreender  as forças  que  os  constroem  como  dotados  de  sentido,  e  os  rituais cotidianos que os atualizam.    É  essa  construção,  e  essa  atualidade,  que  demarcam  as consequências analíticas – e políticas – que fazem com que o morador de rua, o jovem infrator e a prostituta ocupem, nos contextos pesquisados, o lugar que ocupam. São elas que  fazem  com que  se pense  saber quem eles são, e o que pensam, sem nunca  ter  travado contato com eles – a percepção que nos  faz entender quem eles são se dá pelo que se sabe que eles não são e não pensam. Estudá‐los o mais rigorosamente possível, assim,  tem por  finalidade produzir  inteligibilidade  sobre perspectivas múltiplas e conflitantes que, em sua tensão constitutiva, estabelecem os parâmetros do conjunto da normatividade social. Estudar as noções de moralidade,  legitimidade, valores e concepções de mundo, códigos de pertencimento e  conduta, entre outras, está, portanto, no  centro dessa tentativa. Trata‐se aqui, portanto, de multiplicar as formas de enxergar esses grupos, buscando estabelecer etnograficamente as perspectivas a partir  das  quais  a  complexidade  das  suas  relações  sociais  possa  ser captada. Busca‐se estabelecer  lugares de pesquisa a partir dos quais as inúmeras formas de codificação interna, formulação de regras e valores morais, constituição de alianças e  inimigos,  linguagem e  reflexividade desses sujeitos possam se tornar mais presentes na análise.  

As formas de nomeação, classificação, hierarquização e significação, enunciadas e postas em marcha nos territórios, situações e grupos estudados, são tomadas, nessa medida, como parte fundamental do material de campo 

                                                            10 Aproprio‐me aqui da reflexão original de Machado da Silva (2004) sobre a categoria “violência urbana”, estendendo‐a a outros problemas. 

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que analisamos, cujos diagramas de sentido nos cabe compreender11. Assim, pretende‐se  realizar,  sobretudo,  um  retorno  à  tradição  fundadora  da pesquisa social, no sentido simmeliano, que propõe uma ruptura – a começar pela  inversão da questão central que  lhe é  imanente – com o conjunto de pressupostos normativos de  senso  comum que  informava,  e que  informa ainda  hoje,  boa  parte  das  estruturas  dominantes  de  compreensão  dos sujeitos marginalizados. Em  termos práticos, ao  invés de nos perguntarmos pelo que falta para que o problema representado nas figuras de adolescentes inscritos no crime, dependentes de crack ou prostitutas seja sanado, ou como administrá‐lo  de  modo  mais  eficiente,  eficaz,  efetivo,  preocupamo‐nos inicialmente apenas em descrever as relações que caracterizam as dinâmicas íntimas,  sociais  e  públicas  desses  sujeitos,  em  sua  vida  cotidiana,  seus espaços de atendimento, suas formas de lidar com a cidade, etc. Em seguida, procuramos comparar os efeitos de conhecimento acerca das dinâmicas sociais que se abrem, nessa perspectiva, aos que são gerados por outras formas de analisar. Constatamos, então, que esses efeitos são muito diferentes, que a partir deles  as  análises  chegam  a  lugares distintos. O  choque  entre  essas perspectivas  de  saber  é,  então,  inteiramente  rentável  analiticamente. Levando‐o a sério,  trata‐se de um choque de saberes  inteiramente afeito à constituição da política, no sentido de Jacques Rancière12.   O método de trabalho etnográfico nos tem parecido adequado a esse  investimento por possibilitar  convivência,  a mais próxima possível, 

                                                            11 A sociologia pragmatista de Boltanski & Thevenot  (1991); Thevenot  (2006)  tem sido ponto de ancoragem constante dessa reflexão. 

12 O que  se passa, com efeito, quando as  forças da ordem  são enviadas para  reprimir uma manifestação política? O que se passa é uma contestação das propriedades e do uso  de  um  lugar:  uma  contestação  daquilo  que  é  uma  rua. Do  ponto  de  vista  da polícia, uma rua é um espaço de circulação. A manifestação, por sua vez, a transforma em espaço público, em espaço onde se tratam os assuntos da comunidade. Do ponto de vista dos que enviam as forças da ordem, o espaço onde se tratam os assuntos da comunidade  situa‐se  alhures: nos prédios públicos previstos para  esse uso,  com  as pessoas destinadas a essa função. Assim, o dissenso, antes de ser a oposição entre um governo e pessoas que o  contestam, é um  conflito  sobre a própria  configuração do sensível. Os manifestantes põem na rua um espetáculo e um assunto que não têm aí seu  lugar. E, aos  curiosos que vêem esse espetáculo, a polícia diz: “vamos  circular, não há nada para ver”. (...) Antes de ser um conflito de classes ou partidos, a política é um conflito sobre a configuração do mundo sensível na qual podem aparecer atores e objetos desses conflitos. (Rancière 1996, p.373). 

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entre  pesquisadores  e  sujeitos  pesquisados,  incluído  aí  o  esforço  de reflexão  sobre  essa  convivência  (bastante  significativo  para  pensar  a alteridade  como  fronteira). Mais uma vez,  cabe dizer que  essa proposta não  é  nada  inovadora,  embora  distinta  do  que  vem  sendo  feito majoritariamente  nas  Ciências  Sociais  brasileiras  (e  também  em muitos contextos  internacionais), nas últimas décadas. Estamos procurando fazer apenas  o  que  os  clássicos  da  Sociologia  –  e  da  Antropologia  –  já recomendaram, e foi posto em prática de pesquisa, com algumas distinções relevantes,  por  trabalhos  fundadores  como  os  de  Simmel  (2006  [1903]), Anderson  (2010  [1923]) ou Whyte  (2005  [1943]). Basicamente,  trata‐se de buscar suspender – o tanto quanto possível, e o mais radicalmente possível nas  situações  de  pesquisa  –  os  juízos  morais  acerca  dos  sujeitos pesquisados, para descrever os modos como essas pessoas interagem entre si,  nas  diferentes  situações  que  vivem,  nos  diferentes  momentos  e territórios em que convivem. Da mesma forma, atentar para como se dão, desde  essa  perspectiva,  suas  relações  efetivas  com  instâncias  sociais  e políticas legitimadas como a família, o mercado de trabalho, as igrejas, as políticas  sociais,  a  esfera  jurídica,  o  “mundo  do  crime”  e  o  Estado. Descrever,  ainda,  as  trajetórias  pessoais,  de  grupos  e  de  associações inscritas  nessas  dinâmicas  marginais,  tomando  como  parâmetros  o  que acontece, o que se diz, o que se faz, e não o que julgávamos que deveriam fazer,  falar,  pensar.  Não  se  trata,  portanto,  de  desconsiderar  que  esses sujeitos se apresentam como um problema social, para muitos, mas de não reificar  a  existência  desse  problema  como  se  fosse  objetivamente encontrado em todas as situações ou perspectivas em questão. Até porque nossos dados de pesquisa têm mostrado, justamente, que não é assim que as  coisas  se  passam,  se  trabalharmos  com  rigor  a  partir  dos  princípios teórico‐metodológicos fundamentais das Ciências Sociais.  3. Pensar a mudança nos setores populares: as margens como lacuna na bibliografia 

       Um  segundo  ponto  de  partida  desta  pesquisa,  igualmente derivado de investigações anteriores e da leitura da bibliografia recente, é  aquele  que  percebe  as  dinâmicas  sociais  e  políticas  dos  setores populares  a  partir  da  mudança,  da  transformação,  registrada 

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empiricamente  pelos  mais  variados  métodos  –  das  pesquisas  por questionário  ao  georreferenciamento,  das  buscas  por  trajetórias individuais  às  que  procuram  captar  transformações  estruturais  no Estado  ou  na  economia.  Parte‐se  aqui  do  pressuposto  de  que  os parâmetros  da  vida  social  nas  margens  urbanas  vêm  se  alterando enormemente  nas  últimas  décadas,  de modo  conectado  a mudanças ocorridas  também  em  outras  esferas  sociais,  econômicas  e de Estado, inclusive as mais  legítimas. A  transformação nas margens nos parece, portanto,  conectada  às  transformações  do  trabalho,  família,  religião, projetos de mobilidade social, formas de associativismo, relações com a institucionalidade estatal, as políticas públicas e os movimentos sociais. Motivo, portanto, para pensá‐las relacionalmente e, assim, contribuir para a transformação também das formas de analisá‐las.  

Dando  passos  atrás  com  relação  às  propostas  dedutivas  de teorias  de  grande  envergadura,  a  proposta  é  produzir  pesquisas situadas e análises de médio alcance, renovando pela base as formas de compreensão  do  social  –  e  aqui  falamos,  portanto,  tanto  de pressuposições  teóricas, quanto de  estratégias de método  e  formas de analisar. Mais uma vez, não há nenhuma intenção em reinventar a roda, ou  trabalhar  apenas  com  o  cenário  contemporâneo,  tão  diferente  dos anteriores.  Ao  contrário,  trata‐se  de  recorrer  aos  fundamentos  das disciplinas  das  Ciências  Sociais,  entre  elas  as  categorias  de  tempo, espaço e mudança social: uma das perspectivas mais relevantes para os pesquisadores  envolvidos nesse projeto  tem  sido,  justamente,  a busca pela  historicidade  e  pelas  múltiplas  causalidades  das  mudanças  em curso,  que  derivam  das  formações  sociais  e  políticas  que  lhes precederam13.  

                                                            13 As  transformações  nas periferias urbanas  têm  sido pensadas  ao  longo das últimas quatro  décadas,  tempo  restrito  para  historiadores,  embora  apenas  inicialmente traçado  para  a  compreensão  do  perfil  recente  desses  territórios  (Feltran,  2011a; Batista, 2011). Em alguns casos, a temporalidade das pesquisas é maior: as políticas de encarceramento  recentes,  em  São  Paulo,  geraram  uma  investigação  sobre  uma rebelião  de  1952,  da  qual  se  desdobram  inúmeras  linhas  de  análise  do  presente (Horta,  2011,  2012);  a  curiosidade  acerca da  atual  conformação dos dispositivos de justiça do PCC gerou pauta para uma  investigação sobre duas décadas de  trajetória de  um  grupo  de  rap  (Takahashi,  2011)  e,  em  seguida,  para  a  formulação  de  um subprojeto de pesquisa  acerca da  expressividade do  conflito  social das periferias  e 

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  A partir dessa tentativa, parece‐me fundamental considerar um deslocamento, especialmente para pensar os sujeitos em questão nesse projeto:  trata‐se de pensar os modos de  formulação  pública da  questão social  e  os  descompassos  frente  às  formas  como  ela  é  vivida  entre aqueles  figurados  como  seus protagonistas. Se há  algumas décadas,  e em  diversas  perspectivas,  tratava‐se  de  procurar  as  formas  de integração do  trabalhador  à  vida moderna  e urbana,  fazendo proteção social e defesa de direitos (Durham, 1973; Kowarick, 1979; Santos, 1979; Sader,  1988;  Dagnino,  1994,  2002;  Telles  e  Paoli,  2000;  Telles,  2001), atualmente  os  sujeitos‐chave  do  problema  são  aqueles  considerados marginais,  e  a  perspectiva  de  integrá‐los  é  cada  vez  mais  frágil. Diferentes pesquisas vêm mostrando que os bandidos, favelados, drogados e  traficantes, pontos de gravitação do problema  social  contemporâneo, devem ser, sobretudo, contidos (seja em prisões e clínicas de internação, ou mesmo  fora  delas  (Thomaz,  2008; Agier,  2008;  Telles &  Cabanes, 2006; Misse, 2010; Villela, 2010; Telles, 2011; Hirata, 2011; Feltran, 2011;).    A questão social passa a ser compreendida publicamente, então, como  problema  de  segurança  e  ordem  públicas,  que  tem  sujeitos  e territórios bem demarcados14. Tanto do centro da cidade, habitado por dependentes de  crack, moradores de  rua,  travestis e prostitutas, quanto das periferias  e  favelas mais  distantes,  representadas  como  territórios  da violência e do tráfico de drogas, emergiria o ponto de gravitação da “nova questão  social”,  que  se  pretende  tratar  com  ampliação  da  repressão, controle,  contenção  e  gerenciamento15.  As  tentativas  de  ocupação  de favelas  e  cracolândias,  no  Rio  de  Janeiro  ou  em  São  Paulo,  são exploradas ad  infinitum em  todas as mídias, e se  tornam problemas ou trunfos  fundamentais  de  governos  de  diferentes  esferas.  O  debate 

                                                                                                                                                favelas notável na sua produção musical, em  todo o século 20  (NaMargem, 2011); a atualidade  do  problema  do  crack  tem  sido  pensada  a  partir  de  seus  antecedentes relacionais  –  transformações no  tráfico de drogas, nas dinâmicas  sociais  e políticas urbanas,  nas  políticas  de  atendimento,  etc.  (os  trabalhos  de  Martinez,  Oliveira, Barbosa, Pereira e Pazzini, nos anexos, seguem nessa direção). 

14 A respeito da distinção entre uma ameaça à segurança individual e uma ameaça à ordem pública, em contexto diferente, ver Villela (2011).  

15 Expressão dessa  centralidade é a  filmografia brasileira nos anos 2000, praticamente monotemática:  trata‐se  de  apresentar,  sob  diferentes  perspectivas,  a  questão  das favelas e de grupos marginalizados como problema simultaneamente social e policial. 

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público  sobre  a  questão  social  se  confunde,  progressivamente,  com aquele voltado às questões da criminalidade violenta, tráfico e abuso de drogas, e preconiza‐se mais repressão.   4. Desenvolvimento    A repressão, entretanto, não é a única face pública da mudança dos  setores  populares,  no  Brasil  contemporâneo. Muito mais  pública tem  sido  a  constatação,  justamente  entre  eles,  de  crescimento  das capacidades  de  consumo  em  ritmo  acelerado,  ou  seja,  na  figuração dominante  a  constatação  dos  efeitos  positivos  do  “desenvolvimento econômico” e da “consolidação  institucional” do país. A ampliação no acesso  à  escolarização,  saúde  e  outros  direitos  sociais,  a  queda substantiva do desemprego, além da  expansão agressiva do poder de compra, nos últimos anos, são discutidas diariamente pelos gestores do mercado  e  do  Estado.  A  propalada  emergência  de  uma  nova  classe média16 dá novo alento ao projeto de trabalhadores que, conforme notava agudamente Durham  (1973), para o  caso  central dos operários do  seu período  de  pesquisa,  tinham  como  centro  de  seu  projeto  de  vida  a mobilidade social. Atualmente, a retomada deste projeto pelas elites da periferia urbana é quase uma redenção, já que haviam passado por duas décadas de  frustração  importante desse projeto. Dos últimos quarenta anos, vivemos na  segunda metade dos  anos  2000 o período de maior expectativa de ascensão social entre os trabalhadores pobres urbanos. A década atual se inicia em plena marcha dessa esperança (a de um Brasil sem pobreza, conforme o slogan oficial).   Favelas  e  cracolândias de um  lado,  novos  integrantes da  classe média, de outro. Contrafaces, muitas vezes, das mesmas territorialidades urbanas:  as  periferias  e  o  centro  da  cidade;  sujeitos  presentes  –  os trabalhadores, os nóias, os presos, as prostitutas, as mães de família, os bem‐sucedidos  –  muitas  vezes,  no  seio  das  mesmas  famílias  populares. Nenhuma  dessas  duas  configurações  contemporâneas  está  bem estudada na tradição de pesquisa sobre as periferias urbanas e as classes populares  brasileiras.  Há  uma  lacuna  relevante  na  bibliografia 

                                                            16 Crítica a essa abordagem aparece nos dados apresentados por Pochman, 2012. 

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específica  a  respeito,  talvez  ocasionada  pela  ênfase  das  Ciências Humanas  latinoamericanas  no  estudo  do  operariado  e  das  classes populares  erigidas  em  torno do  ideal do  trabalho  –  e não do  lumpen, sequer  dos  pequeno‐burgueses,  que  hoje  aparecem  sobretudo  como derivações significativas e  tendenciais, nas representações dominantes, das periferias trabalhadoras.    Nossas  pesquisas  sobre  esses  sujeitos  marginalizados, portanto, se dedicam também a contribuir para o estudo de territórios e sujeitos  sociais  populares,  extremamente  heterogêneos,  cuja conflitividade não se canaliza para a representação política oficial e que, talvez por isso, não tenha sido majoritariamente legitimada como objeto válido da bibliografia específica sobre os setores populares urbanos no país. A própria  tematização desses sujeitos  já é expressão da mudança social, captada em pesquisa de campo nos últimos anos. Nota‐se, além do  mais,  que  a  presença  estatal  nos  territórios  estudados  auxilia  a construção  de  bipolaridades  (que  mascaram  e  reconfiguram,  a  todo tempo, a pluralidade empírica desses lugares). Nesse processo, como na fotografia,  o  esfumaçamento  de  tons  de  cinza  dispersos  em  dado suporte  é  substituído  pela  classificação  dicotômica  de  seus  limites extremos:  o preto  e  o  branco. E  a partir daí  –  o  caso de  São Paulo  é exemplar  a  esse  respeito  –  expandem‐se  ao  mesmo  tempo  políticas extremas: a ampliação agressiva do  encarceramento  (de 40 mil presos em 1996 para 190 mil em 2012, com mais 50 presídios em construção) é simultânea  à  ampliação  do  acesso  a  direitos  e  serviços  sociais fundamentais,  aumento  da  escolarização  média  e  emprego, modernização  da  infra‐estrutura  urbana  etc.  Praças  de  guerra  em remoções urbanas, reintegrações de posse e cracolândias convivem com discursos  amenos  da  responsabilidade  social  empresarial.  Essas polaridades,  em  vista  geral,  são  apresentadas  como  lógica  única  nas situações em que se mostram. Essa clivagem, e a disposição da análise situacional, é portanto importante na própria formulação do problema a analisar  que,  muitas  vezes,  é  pouquíssimo  claro  nas  dinâmicas empíricas observadas. 

Exemplo  desse  esfumaçamento  é  a  constatação  de  que atualmente,  entre  os  grupos  urbanos  mais  marginalizados,  há  tudo, menos ausência de Estado. Nem mesmo dos serviços públicos, algo que 

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os movimentos sociais das periferias puderam alardear com certa razão nos  anos  1980.  Aumentou‐se  muito  a  presença  estatal  entre  essas populações, e nos territórios em que elas habitam. Tanto – e sobretudo – para levar até ali a ordem que estaria ausente, procurando, sempre sem muito sucesso, reprimir e ocupar os  insterstícios urbanos em ofensivas civilizatórias,  como  nas  UPPs  cariocas  ou  na  Nova  Luz  paulistana, quanto  para  possibilitar  que  pudessem  ser  resgatados  do  crime  e  da vagabundagem  aqueles  indivíduos  que,  mesmo  desfrutando  da convivência  de  bandidos,  drogados  e  pervertidos,  desejassem  se  tornar cidadãos. Logo após a entrada da polícia, ocupam favelas e cracolândias uma  miríade  de  ONGs  e  programas  sociais  (a  UPP  tem  um  braço policial e um assistencial, como todas as intervenções nas ruas e favelas paulistas). Depois dessa ocupação, a valorização  imobiliária produz as “remoções brancas” para que a gentrificação se  instale definitivamente. Por  isso, paralelas às  retomadas das políticas de mercado  imobiliário, inclusive populares (Shimbo, 2012), estão as desocupações de favelas e as retomadas das reintegrações de posse de prédios ocupados.   De  um  lado,  portanto,  as  mudanças  da  questão  social contemporânea  promovem  associações  gestionárias  como  ONGs, prestadores  de  serviços  sociais  e  cursos  de  aprendizado  profissional, das mais diversas qualidades; de outro  lado, aposta‐se  todas as  fichas na  repressão em massa dos desviantes. Ao mesmo  tempo. Para a  elite das periferias, e os desgarrados das famílias mais pobres que puderam fazer  alguma  ascensão  social  e,  por  isso,  cumprem  com  os  critérios objetivos e disciplinares da mobilidade, há  cursos de alta qualificação no  SENAI,  no  SENAC,  entre  outros.  Há  algum  trabalho,  há  cursos noturnos, há  inclusive universidades pagas. Nas margens das  favelas, há  formação preventiva promovida por entidades assistenciais e pelos Centros  de  Referência  de  Assistência  Social  (CRAS)  para manicures, cabeleireiros, fazedores de bijuterias, entre outros, permanecerem onde estão  –  e  não  caírem  na  vida  fácil.  Via  de  regra,  nenhuma  dessas atividades chega aos que estão inscritos nos mercados ilegais e ilícitos e, se chegam, não duram. Os circuitos de  inscrição desses outros sujeitos não  passam  necessariamente  por  elas.  Expandem‐se  lado  a  lado, portanto, ações sociais muito heterogêneas – algumas poucas voltadas a “garantia  de  direitos”,  para  os  que moralmente  os mereçam;  outras 

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tantas voltadas para “evitar que os meninos fiquem na rua, na droga, no crime”. Para  os que não  atendem os  critérios  formais, mas  sobretudo aos critérios morais desejados, há outras políticas hoje muitíssimo bem estruturadas  –  Fundação  Casa  para  os  que  têm  menos  de  18  anos, sistema  carcerário para  os  que  têm mais. Ambas  em  franca  expansão pelo  estado.  Clínicas  de  reabilitação,  internação,  contenção  de transtornados mentais e dependentes químicos terminam de compor o cenário. Quem  já passou algum  tempo por  favelas da cidade sabe que não  se  tratam  de  dispositivos  residuais;  quem  já  passou  tempo  entre essas instituições totais sabe que elas já não atuam pela integração social, no plano normativo anunciado acima, mas  são  elementos  estratégicos constitutivos  de  uma  nova  ordem  social,  nos  termos  descritos  nesta pesquisa.  A  lógica  da  ocupação  de  territórios  e  controle  de  grupos marginalizados,  quando  não  de  sua  internação  –  seja  por criminalização, por dispositivos de saúde mental ou “guerra às drogas” –  é  então  complementada  pela  conversão  desses  processos  em acumulação  de  valor.  São  os modos  relacionais  de  construção  dessa nova ordem, articulada entre gestão de miseráveis e desenvolvimento econômico,  que  parece  ser  possível  vislumbrar  –  embora  ainda estejamos  dando  passos  muito  iniciais  nessa  direção  –  a  partir  da investigação em curso.     Bibliografia  BOLSTANSKI, Luc; THEVENOT, Laurent. De  la  justification:  les économies de la grandeur. Paris: Gallimard, 1991. AGIER,  M. Gérer  les  indésirables.  Des  camps  de  réfugiés  au  gouvernement humanitaire, Paris, Flammarion, novembre 2008. ALMEIDA,  Ronaldo.  A  Igreja  Universal  e  seus  Demônios:  um  estudo etnográfico. São Paulo: Terceiro Nome/FAPESP, 2009.  DAGNINO,  Evelina.  Sociedade  Civil,  Espaços  Públicos  e  a  Construção Democrática no Brasil: Limites e Possibilidades In: DAGNINO, Evelina. (org.) Sociedade Civil e Espaços Públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 

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Por uma sociologia das narrativas sobre o meio ambiente1  

Rodrigo Constante Martins2  1. Introdução    A  produção  de  verdades/diagnósticos  sobre  a  moderna  crise sócio  ambiental  é  atualmente  um  campo  amplo  que  concentra  não apenas  investigadores  e  peritos  da  ciência,  mas  também  engloba militantes ambientalistas, agentes econômicos, burocracias de governo, stakeholders,  dentre  outros. A  pluralidade  de  interesses  envolvidos  na tessitura  de  hipóteses  e  explicações  sobre  causas  e  efeitos  do aquecimento  global,  da  perda  de  biodiversidade,  da  poluição  e  da escassez  de  água  indica  a  pertinência  de  esforços  sociológicos  de problematização das forças sociais que disputam o reconhecimento pelo retrato legítimo da questão ambiental. Isto é, as narrativas dos desafios ambientais  contemporâneos  podem  ser  apreendidas  como  objeto  de investigação  sociológica  através  das  relações  entre  as  categorias  de classificação dos fenômenos naturais e as posições das classes e grupos sociais que simultaneamente atuam e são afetados por tal classificação.   Neste  texto,  a  questão  ambiental  será  abordada  através  das narrativas  hegemônicas  dos  problemas  relativos  aos  usos  e  acessos  à água no  século XXI. Como  é  sabido,  a  temática dos  recursos hídricos adquiriu grande abrangência  social  e política no decorrer das últimas três décadas. Encontros multilaterais  envolvendo  técnicos  e  chefes de governo  tornaram‐se recorrentes,  tendo no mais das vezes o propósito de estabelecer inovações normativas para a regulação do uso e acesso à água  em  escalas  nacional  e  internacional.  Em  termos  simbólicos, ressaltam‐se as novas estratégias de classificação do recurso, associado aos signos de riqueza econômica estratégica, como ouro azul ou petróleo do século XXI. 

                                                            1  Este  texto  reúne  resultados  de  estudos  desenvolvidos  pelo  autor  com  apoio  da Fundação de Amparo  à Pesquisa do Estado de  São Paulo  (Fapesp)  e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico (CNPq). 

2  Professor  do  Departamento  de  Sociologia  e  do  Programa  de  Pós‐graduação  em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). 

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  Esta  ressignificação  do  recurso,  alçado  à  categoria  de  capital natural, também repercute na construção de novas estruturas de gestão ambiental,  voltadas  fundamentalmente  para  o  ideal  econômico  da alocação  eficiente  dos  fatores  de  produção.  Neste  sentido,  a disseminação internacional dos chamados instrumentos econômicos de gestão  ambiental  vem  sendo  apontada  como  solução  eficaz  para  o ajustamento do consumo social da água. Do ponto de vista prático, tais instrumentos  teriam  o  mérito  maior  de  fazer  refletir,  através  de mecanismos  de  mercado,  os  níveis  de  escassez  relativa  do  recurso, induzindo os agentes econômicos a adotarem condutas racionais de uso do capital natural.   Neste artigo buscaremos desenvolver uma  interpretação  crítica sobre o aparato conceitual e os valores sociais envolvidos na narrativa que  sustenta  os  instrumentos  econômicos  de  gestão  das  águas.  Para tanto, o  capítulo divide‐se  em quatro partes. Na primeira parte, mais descritiva, serão apresentadas algumas experiências nacionais de gestão econômica  dos  recursos  hídricos,  chegando  até  os  contornos institucionais  do  caso  brasileiro.  Na  segunda  parte  do  texto  serão discutidos  os  pressupostos  teóricos  que,  legitimados  pela  crença científica,  amparam  as  narrativas  elaboradas  pelos  especialistas  da chamada  “economia  da  água”. Na  terceira  e  quarta  partes  do  artigo serão discutidos alguns elementos críticos envolvidos nestas narrativas sobre  “oferta”,  “escassez”  e  “gestão”  do  recurso,  que  atualmente influenciam  sobremaneira  o  debate  internacional  sobre  a  governança ambiental. Por fim, nas considerações finais, será feita uma síntese das principais implicações das discussões empreendidas ao longo do texto.   Do  ponto  de  vista  conceitual,  as  narrativas  ambientais  serão abordadas  neste  capítulo  não  como  simples  resultado  discursivo  de visões de mundo estabelecidas, mas sim como vontade de verdade, nos termos de Foucault (2005). Isto é, as narrativas serão interpretadas como força, poder singular que atua nos processos de construção de verdades que  visam  organizar  e  orientar  as  práticas  sociais.  São,  portanto, práticas discursivas que operacionalizam a realidade,  transcendendo o domínio  exclusivo  da  representação  e  se  apresentando  como  aparato que também produz o real – um efetivo dispositivo de poder.  

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2. A gestão econômica da água: experiências nacionais  Problemas  relacionados  à  escassez  de  água  potável  em  nível 

mundial  têm  suscitado  preocupações,  tanto  por  parte  de  Estados Nacionais quanto por agências e organizações multilaterais, acerca dos modos  de  regulação  e  otimização  do  uso  dos  recursos  hídricos. Gradativamente,  em  vários  países  –  sobretudo  nos  pertencentes  à OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) – o controle institucional direto sobre o acesso e uso dos recursos hídricos vem  sendo  feito  a  partir  da  adoção  dos  chamados  instrumentos econômicos, que  teriam como  função  induzir os agentes econômicos a comportarem‐se  de  acordo  com  padrões  socialmente  desejados.  No concernente  à  experiência  internacional  de  gestão  das  águas,  os instrumentos econômicos mais utilizados para a garantia de usos mais eficientes do recurso têm sido os orientados para a criação de mercados de  água  e para  formas de  cobrança pelo uso dos  recursos hídricos –  a valoração da água. 

A instituição de mercados de direitos de água tem sido realizada com base na crença do marginalismo neoclássica de que, dentro de um sistema  de  livre mercado,  a  escassez  relativa  de  um  bem  determina automaticamente  a  elevação  de  seu  preço,  estimulando  assim  seus consumidores  a  otimizarem  o  seu  uso.  Nos  estados  do  oeste  dos Estados  Unidos  (Arizona,  Califórnia,  Colorado,  Nevada  e  Novo México),  o  direito  de  propriedade  da  água  possui  as  mesmas características  dos  direitos  de  propriedade  sobre  a  terra,  podendo inclusive  ser  vendido,  cedido  ou  alugado  temporariamente.  A administração  do  mercado  de  direitos  de  água  é  feita  pelo  Estado, através de  tribunais especiais de água  (Water Courts), encarregados de reconhecer  os  direitos  sobre  o  recurso  e  resolver  eventuais  conflitos (Cowan, 1998). 

Na América Latina, o Chile é o país com experiência mais longa de implementação de estratégias econômicas de gestão da água. Desde 1981, a legislação chilena garante a negociabilidade dos diretos de água (definidos  como  certo  volume  de  água  por  unidade  de  tempo), permitindo o intercâmbio entre o que a lei define como setores agrícolas e  não‐agrícolas  (Lee;  Juravlev,  1998).  Contudo,  se  comparado  com  o 

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caso norte‐americano, o mercado de água chileno ainda é considerado incipiente, e possui um pequeno volume de transações. 

A cobrança pelo uso dos recursos hídricos, por sua vez, constitui‐se atualmente  no  principal  instrumento  de  gestão  de  águas  em  nível internacional.  Em  síntese,  tal  instrumento  parte  da  atribuição  de  um valor  monetário  aos  recursos  hídricos,  que  se  reflete  na  forma  de impostos,  taxas ou simplesmente preços a serem cobrados sobre o uso e/ou  contaminação  da  água.  Tal  instrumento  tornaria  possível responsabilizar  os  agentes  (usuários/poluidores)  pelas  externalidades negativas  que  suas  atividades  comportam,  permitindo  uma aproximação  entre  custos privados  e  custos  sociais,  ao mesmo  tempo em que pode gerar receitas para amenizar os impactos negativos sobre os  aspectos  quantitativos  e  qualitativos  dos  recursos  hídricos  (Dinar, 2000). 

A adoção da cobrança pelo uso dos recursos hídricos tem como uma de suas orientações básicas o Princípio do Poluidor Pagador, adotado pelas  legislações ambientais dos países  filiados à OCDE. Tal princípio pressupõe que o agente econômico poluidor responderia à demanda de sustentabilidade ambiental menos por considerar que  tal  temática seja legítima  e  mais  porque  o  não  atendimento  à  mesma  reverbaria negativamente em sua posição no mercado, através da elevação de seus custos individuais3.  

O  sistema  francês  de  gestão  dos  recursos  hídricos  é  um  dos principais exemplos internacionais do emprego do Princípio do Poluidor Pagador. Calçado  em  legislação da década de  60,  tal modelo define  a bacia  hidrográfica  como  unidade  administrativa  de  gestão  das  águas nacionais, além de  também garantir a cobrança pelo uso da água para os agentes públicos e privados que contribuam para a deterioração da qualidade do recurso. A taxa cobrada dos agentes poluidores franceses – a redevance – é determinada através do volume de poluição lançado ou 

                                                            3 Neste mesmo sentido, o Banco Mundial (1998: 80) pressupõe que “as tarifas de água e incentivos  fiscais  podem  incentivar  as  firmas  a  adotarem  tecnologias  para  economizar  e conservar  a  água,  incluindo  sistemas  de  reciclagem.  Tais  tecnologias  e  alternativas  de gerenciamento  tornarão  fácil  a  conservação  da  água  e  a  reutilização”.  No  caso  da agricultura, o banco acredita que “da mesma  forma, as tarifas podem servir de  incentivos aos agricultores para alternarem seu trabalho agrícola para culturas que utilizem pouca água.” 

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na degradação gerada sobre os corpos d’água. Sua aplicação seria uma forma de  induzir o poluidor a  realizar análises de  custo‐eficácia entre poluir  –  pagando  taxas  –  ou  não  poluir,  adotando  mecanismos  ou tecnologias que reduzam sua carga poluidora (Barraqué, 1991). 

Na Alemanha,  embora  a gestão das  águas  seja  assegurada  aos estados  (Länder), a  legislação geral  sobre a  cobrança pelo uso da água tem  caráter  nacional,  cabendo  a  cada  estado  complementá‐la  e/ou reforçá‐la. Datada de 1976 (e efetivamente aplicada a partir de 1981), a valoração  da  água  na Alemanha  tem  como  principal  alvo  os  agentes poluidores,  através  da  cobrança  pelo  lançamento  de  efluentes. Mais recente,  a  cobrança  pela  captação  de  água  se  baseia  em  legislações estaduais  complementares,  não  abrangendo  a  totalidade  do  país. Na prática,  a  cobrança  alemã  atinge  quase  exclusivamente  os  industriais (com  lançamentos diretos em corpos d’água) e os usuários domésticos (através das estações de tratamento de esgotos). 

Na América Latina,  o México  iniciou  sua  política de  cobrança pelo  uso  da  água  em  1991. Na  ocasião,  os  principais  alvos  eram  as municipalidades  e  as  indústrias  que  em  seus  lançamentos  sobre  os corpos d’água  rompiam  limites de emissão pré‐estabelecidos. A partir de  1995  o  critério  de  cobrança  foi  alterado,  passando  a  basear‐se  na carga  efetiva  de  poluentes  lançados  pelos  agentes  individuais  – aproximando‐se assim da  lógica de mercado própria dos princípios de valoração ambiental.    No Brasil, o modelo francês tem sido a principal referência para a  construção  dos  arcabouços  institucionais  nacional  e  estaduais  de gestão dos recursos hídricos. A Constituição Federal de 1988 reiterou o domínio público da água, reconhecendo, porém, o valor econômico do recurso  e  a  cobrança  por  seu  uso.  Em  1997,  a  Política  Nacional  de Recursos  Hídricos  definiu  que  a  valoração  seria  o  instrumento privilegiado  de  ação  política  de  controle  ambiental.  Dado  o  caráter descentralizado do novo sistema de gestão das águas no país, nos rios de  domínio  federal,  cumpriria  aos  Comitês  de  Bacia  Hidrográfica  a implementação  da  cobrança. No  caso  dos  rios  de  domínio  estadual, seria dos estados a responsabilidade pela regulamentação do sistema de cobrança. 

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  Desde 2003, em nível  federal, a cobrança pelo uso dos recursos hídricos  é  praticada  pelo Comitê  do  rio  Paraíba  do  Sul,  que  envolve municípios dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro Minas Gerais. Em nível  estadual, o Ceará  implementou a  cobrança no  final de 1998. No estado  de  São  Paulo,  a  cobrança  pelo  uso  da  água  foi  aprovada  em forma  de  lei  em  2005  e  encontra‐se  em  fase  de  implementação  pelos Comitês de Bacia Hidrográfica. A Política de Recursos Hídricos deste estado, desde  1991,  reconhecia  a  água não  só  como um  bem público, mas também como um bem dotado de valor econômico, “cuja utilização deve ser cobrada, observados os aspectos de quantidade, qualidade e as peculiaridades das bacias hidrográficas” (São Paulo, 1991).  

De maneira geral, no Brasil,  o princípio da mercantilização da água,  sobretudo  através  das  estratégias  de  valoração,  vem  sendo amplamente  defendido  por  movimentos  ambientalistas  e  pelos integrantes  dos  Comitês  de  Bacia  Hidrográfica.  As  justificativas comumente manifestadas  em  favor  do  princípio  estão,  por  parte  dos movimentos ambientalistas,  relacionadas à perspectiva de penalização dos agentes poluidores, e, por parte das instituições gestoras, voltadas à arrecadação  de  recursos  financeiros  para  as  atividades  de gerenciamento. 

Considerando  este  contexto  de  expansão  das  estratégias  de mercantilização  da  água,  nos  parece  que,  em  termos  de  reflexão sociológica, são necessários novos esforços de  interpretação crítica dos principais termos envolvidos na noção de valoração ambiental. Ou seja, se por um  lado  as necessidades de  recursos  financeiros para  a gestão ambiental  e  de  enquadramento  jurídico  dos  agentes  poluidores  são inquestionáveis, por outro, é preciso atentar para a não‐naturalização de noções  lógico‐dedutivas  que  pouco  contribuem  para  a  construção  de políticas  públicas  condizentes  com  a  complexidade  das  disputas socioambientais. 

Do ponto de vista da análise sociológica, são vários os caminhos de interpretação crítica que podem ser desenvolvidos sobre a narrativa da  mercantilização  dos  recursos  naturais.  Dentre  tais  caminhos, buscaremos aqui percorrer os contornos essenciais de duas alternativas interpretativas,  quais  sejam:  a  das  dimensões  extra‐econômicas  do comportamento econômico dos agentes sociais; e a da crítica ao padrão 

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capitalista de uso e acesso aos processos ecossistêmicos. Antes, porém, convêm algumas notas sobre os princípios  teóricos que sustentam esta narrativa da gestão econômica dos recursos naturais.   3. Mercado e meio ambiente: as hipóteses do utilitarismo neoclássico 

 A  microeconomia  ambiental  neoclássica  tem  fornecido  um 

importante suporte conceitual para a adoção em escala internacional de instrumentos  econômicos para  a gestão dos  recursos naturais  (Jacobs, 1994;  Martins,  2004).  No  nível  das  políticas  públicas,  este  suporte conceitual  fornece  os  fundamentos  para  a  hipótese  do  Princípio  do Poluidor Pagador. De acordo com tal princípio, o agente social poluidor deve  arcar  com  as  despesas  para manter  o meio  ambiente  dentro  de parâmetros  aceitáveis  de  qualidade,  sustentando,  por  conseguinte,  a hipótese de que,  ao  ser penalizado pela  cobrança no uso deletério da água,  o  poluidor  seria  induzido  a  adotar  práticas menos  onerosas  ao meio ambiente (OCDE, 1992). 

Na  construção  epistemológica do  referido  princípio  –  que,  em consonância  com  o  utilitarismo  neoclássico,  segue  uma  lógica estritamente hipotético‐dedutiva, onde os conceitos aplicadas na análise derivam  abstratamente  uns  dos  outros4  –,  supõe‐se  que  o  agente econômico  isoladamente  induziria  o  progresso  técnico,  respondendo rapidamente  à  demanda  de  sustentabilidade  ambiental.  Contudo,  tal resposta  justificar‐se‐ia  menos  pela  legitimidade  dos  valores  da sustentabilidade ambiental ante o cálculo econômico do agente do que pela ameaça de custos adicionais que o não atendimento à demanda de sustentabilidade  lhe  acarretaria. No  caso  da  aplicação  do  Princípio  do Poluidor Pagador à gestão das águas, espera‐se que a  insistência de um agente no uso insustentável do recurso eleve seus custos de produção – custos estes que, repassados ao preço final de seus produtos, diminuirá sua competitividade. Assim, seria esta uma forma de internalização do problema  ambiental  pelos  agentes  econômicos  tida  pela OCDE  como                                                             4  Neste  sentido,  a  própria  Economia  Ambiental,  com  as  noções  de  equilíbrio  e externalidade,  surge  como  derivação  do  neoclassicismo  no  campo  da  ciência econômica. A propósito deste caráter lógico‐dedutivo do utilitarismo neoclássico, ver Wolff e Resnick (1988).  

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legítima  e  urgente  de  ser  instaurada  nos  países  que  atravessam situações limite.   Nestes  termos, a criação de mercados de água e a valoração do recurso  surgem  como  processos  de  significação  por  excelência  da questão ambiental em nível social. Por intermédio da instauração destas novas  institucionalidades,  as  situações  de  degradação  e  escassez relativa dos recursos hídricos seriam naturalmente incluídas no cálculo racional‐econômico dos agentes consumidores, que, por sua vez, seriam incitados a definirem formas de uso mais sustentáveis de tais recursos.  

Esta  dedução  acerca  das  práticas  individuais  ampara‐se  na suposição neoclássica de que a alocação eficiente de qualquer bem ou serviço dá‐se mediante a livre manifestação da escala de preferência dos agentes‐consumidores.  Isto  significa  que  seria  possível  medir  a sensibilidade  dos  consumidores  diante  das  variações  na  oferta  de mercadorias  a  partir,  única  e  exclusivamente,  de  sua  disposição  a adquiri‐las/comprá‐las, ou seja, a partir de sua utilidade circunstancial. 

No  caso  dos  bens  ambientais,  a  situação  de  uso  e  acesso  não regulados pelos mecanismos de mercado afetaria de maneira decisiva a função  de  utilidade  do  agente‐consumidor.  Pearce  (1985),  um  dos principais  expoentes  da  Economia  Ambiental,  destaca  que  o  caráter não‐rival  dos  bens  ambientais  faz  com  que  seu  consumo  por  um indivíduo  não  implique,  necessariamente,  o  não‐consumo  de  outrem, impedindo, assim, que os consumidores manifestem  suas preferências pelo referido bem por intermédio de lances de mercado. Diante de tais circunstâncias, os  resultados – sejam eles positivos ou negativos – dos usos  feitos pelos  agentes  econômicos dos  bens  e  serviços de domínio público  constituiriam‐se  em  externalidades  da  atividade  econômica. Fundamental  no  arcabouço  teórico  da  Economia  Ambiental,  as externalidades são definidas por este paradigma como sendo os efeitos gerados pela atividade de um agente econômico sobre outrem, afetando sua  função  de  utilidade  e,  por  conseguinte,  o  próprio  equilíbrio  do mercado (Baumol; Oates, 1988). A alteração desta situação de equilíbrio afastaria o mercado do optimum de Pareto, causando então distorções na distribuição  dos  recursos  e  das  rendas  entre  produtores  e consumidores. No  caso  dos  bens  e  serviços  ambientais,  ao  provocar algum tipo de prejuízo que se transformasse em custos excedentes para 

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outro,  o  agente  em  questão  estaria  produzindo  uma  externalidade negativa, afastando então o mercado do seu ponto optimum de alocação dos recursos. 

Desta feita, em uma situação de poluição (que não seria apenas ambiental, mas também econômica), a solução para o restabelecimento do  equilíbrio  de  mercado  seria  a  internalização,  por  parte  do  homo oeconomicus, das externalidades por ele provocadas. Contudo, conforme afirmam Baumol e Oates (1988), a ausência de direitos de propriedade sobre muitos dos recursos naturais faz com que não haja pressão social para que o agente gerador da externalidade arque com os custos sociais de sua ação. Para os autores, na medida em que os bens ambientais não podem  se  constituir  em propriedades privadas,  sendo  então de uso  e domínio públicos,  a  racionalidade própria das  transações de mercado não  pode  sobre  estes  imperar.  Por  conta  disso,  Stevenson  (1991)  nos mostra que, historicamente, tem sido atribuída aos governos nacionais – na  condição de gestores dos bens públicos – a  função privilegiada de equacionar os impasses políticos e econômicos criados pela degradação ambiental.   Entretanto,  vários  outros  autores  têm  argumentado  que  esta intervenção governamental tem dado margem ao surgimento de outras disfunções na relação entre economia e natureza. Definidas por Gowdy e O’Hara  (1995)  como  falhas  de  intervenção,  ou,  conforme  o  próprio Stevenson,  falhas  de  governo,  tais  disfunções  estariam  vinculadas  à própria  forma de estruturação do moderno Estado‐nação. Segundo os autores, o aparato burocrático  característico da  estrutura deste Estado dificulta a regulação do uso dos recursos naturais na medida em que os interesses  políticos  envolvidos  no  âmbito  da  gestão  pública transformam  a  questão  ambiental  em  instrumento  de  barganha  entre facções  da  burocracia  estatal.  Também  ressaltando  a  existência  das falhas  de  governo,  Turner,  Pearce  e  Baterman  (1993)  apontam  as possíveis  manobras  na  legislação  ambiental  em  favor  de  interesses setoriais, revelando a incapacidade do Estado de fazer refletir os níveis de escassez ambiental junto aos agentes econômicos. De acordo com os autores, a regulação estatal poderia mascarar o nível de esgotamento do capital  natural,  uma  vez  que  não  remete  ao  homo  oeconomicus  a responsabilidade de adquirir  informações  sobre o estoque de  recursos 

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naturais para,  a partir delas,  realizar  suas próprias  análises de  custo‐eficácia.    Diante desses impasses atribuídos à atuação do Estado na gestão ambiental, a análise neoclássica conclui que não há como enfrentar os problemas relativos à escassez e à degradação ambiental – retomando o bem estar de todos os agentes econômicos –, senão através da criação de condições para que os próprios instrumentos de mercado possam atuar nas  relações  entre  economia  e  natureza.  Para  tanto,  ao  invés  de regulamentar,  caberia  ao  Estado  a  tarefa  de  criar  condições  para  o “livre”  funcionamento  dos  mercados  ambientais,  que,  por  sua  vez, agiriam  em  prol  da  minimização  dos  impactos  econômicos  da degradação ambiental.  4. O mercado como prática social 

 Em  face  da  consolidação  dos  principais  termos  da  Economia 

Ambiental para a narrativa da moderna crise ambiental, vários estudos têm sido realizados, no curso das duas últimas décadas, com o objetivo de  estimar  valores  monetários  para  bens  e  serviços  ambientais.  A elaboração de indicadores quantitativos ponderados através de critérios de escassez, tais como os níveis de vulnerabilidade e insubstitubilidade dos  recursos naturais, e a  tentativa de mensuração da disponibilidade da sociedade em pagar pela preservação ambiental – passando inclusive pela construção de mercados hipotéticos para os serviços ambientais – têm  sido  apresentadas  por  autores  da  Economia  Ambiental  como  a solução  viável  e  eficaz  de  gerenciamento  dos  recursos  naturais  em escala mundial (Pearce e Turner, 1991; Pearce, 1993; Tisdell, 1997). 

De  outra  parte,  vários  esforços  interpretativos,  partindo  de diferentes matrizes teóricas das Ciências Sociais, têm enfatizado tanto a falta  de  sustentação  teórica  da  concepção  de  mercados  ambientais quanto  sua  inadequação  como  princípio  norteador  de  políticas  de gestão  dos  recursos  naturais.  No  geral,  as  críticas  à  Economia Ambiental  apontam  para  o  reducionismo  do  comportamento econômico dos agentes sociais no uso dos recursos naturais (Leff, 1995; Benton,  1994),  a  apreensão  a‐histórica  da  relação  sociedade‐natureza (Martins,  2004;  Altvater,  1995)  e  a  própria  concepção  de  sistema 

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econômico  deste  approach,  que  reduziria  a  atividade  econômica  a  um sistema  fechado  e  isolado,  desconsiderando  que  a  produção  é, fundamentalmente,  troca  e/ou  transformação  de  energia  (Allier  e Schlüpmann, 1993; Daly, 1991).   Contudo,  a  despeito  das  críticas,  os  princípios  da  economia política da água  sustentados pelo neoclassicismo marginalista  seguem ocupando  lugar  de  destaque  no  debate  internacional  sobre  regulação ambiental. Outrossim,  estes  princípios  são  recorrentemente  utilizados para  a  nominação  dos  principais  temas  da  moderna  crise socioambiental.  Esta  atividade  de  nominação,  que  se  origina  na designação  dos  ativos  ambientais  e  se  estende  até  a  proposição  dos mercados futuros de commodities ambientais, também explicita o fabrico de  relações  complexas de poder,  que  não  se  encerram  nos  limites de autonomia  dos  distintos  campos  de  relações  (burocrático,  acadêmico, econômico).  A  rigor,  a  temática  ambiental  perpassa  estes  campos; contudo,  fundamenta‐se  sobre  a  retórica  dominante  do  campo econômico.   O  entendimento da gênese do moderno discurso ambientalista requer, sem embargo, a compreensão das formas pelas quais a retórica econômica  conduziu  os  termos  da  temática  ambiental  na  agenda política desde meados do século XX. Do ponto de vista analítico, propor tal  compreensão  não  implica  em  tomar  a  dimensão  econômica  dos processos sociais como elemento determinante de  interpretação. Neste caso, o olhar sobre a retórica econômica resulta da própria historização do discurso ambientalista, posto que  sua  formulação  foi  resultante do apontamento de certos  limites  físicos para a sustentação do padrão de crescimento econômico verificado nas economias centrais no curso das duas primeiras décadas do pós‐guerra.   Um  dos  produtos  sociais  mais  expressivos  da  presença  da retórica econômica na gênese do moderno debate ambiental é a noção de  racionalidade  no  interior  do  discurso  ambientalista.  A  expressão “racionalização do uso dos recursos naturais” atribui às práticas sociais um  conjunto  de  suposições  que  comumente  apresentam‐se  de  forma bastante  fragmentada na vida cotidiana. A noção de cálculo  implicada nos  discursos  de  uso  racional  da  água,  da  energia  e  dos  recursos florestais,  dentre  outros,  requer  uma  consciência  fundamentada  no 

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cálculo  e  na  previsibilidade.  Esta  consciência  temporal  e  seu  ethos correlato aparecem como fundamento da conduta econômica racional e capaz  de  assegurar  êxito  ao  planejamento  do  que  nos  últimos  anos convencionou‐se chamar de contabilidade ambiental.   Entretanto, a suposição da condução universalizada das práticas sociais na direção desta modalidade de  racionalização despreza o  fato de que a racionalidade da ação  tem seu  limite na conduta socialmente estruturada do agente. Logo,  toda prática social está circunscrita a um quadro específico de experiências passadas que funcionam como matriz de  percepções,  decisiva  para  a  formulação  de  estratégias  de  conduta social. Ou, como nos sugere Bourdieu, a prática revela a fundamentação da  illusio  como ordem de  ação,  rotina; no  caso do utilitarismo,  revela que  “o  conjunto  de  disposições  do  agente  econômico  que  fundam  a ilusão  da  universalidade  a‐histórica  das  categoriais  e  conceitos utilizados são o produto de uma longa história coletiva, e que deve ser adquirida no curso da história individual” (Bourdieu, 2003: 83) 

É notório que a crença de que os agentes econômicos, induzidos por “sinais” de mercado, deverão incorporar a dimensão ambiental sob um padrão de racionalidade econômica, pressupõe a existência de um padrão  unívoco  de  racionalidade.  Entretanto,  se  consideramos  que  a relação da sociedade com o meio ambiente é mediatizada também por processos  políticos  e  culturais,  torna‐se  evidente  que  qualquer estereótipo  de  conduta  racional  constitui‐se  numa  idealização  com estreito  alcance  analítico.  Weber  (1999),  em  sua  clássica  análise  da dimensão  reflexiva  da  ação  social,  já  enfatizava  a  necessidade  de  se compreender  o  seu  sentido  subjetivamente  visado,  ou  seja,  os  elos significativos  que  fundamentam  a  ação  do  agente.  Para  o  autor,  a dimensão do  termo racional vincula‐se estritamente aos processos que sustentam a ação social. Sem a compreensão dos seus elos significativos – ou, na  terminologia weberiana, de  seu  sentido – a ação  torna‐se, do ponto  de  vista  analítico,  um  comportamento  reativo,  sem  conteúdo eminentemente social. 

Portanto,  a  racionalidade  de  uma  ação  ou  processo  social  não deve  ser  compreendida  senão  a  partir  dos  seus  elos  significativos, compostos  tanto  de  motivações  materiais  quanto  simbólicas.  É justamente  tal  iniciativa  que  permitiria  à  teoria  social,  tal  como 

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enfatizam apropriadamente Elias e Scotson (2000), a recusa da herança iluminista  no  que  tange  à  crença  consoladora da  supremacia de uma razão abstrata, descarnada e totalizante. Os dados sociais, por serem sui generes, não são racionais ou  irracionais em sentido absoluto, mas base sobre  a  qual  indivíduos  e/ou  grupos  sociais  se  autoreconhecem  e constroem  suas  identidades  (seja através do  conhecimento  científico  e de ideologias políticas, ou mesmo da construção depreciativa do outro). 

Neste  contexto,  ao  contrário do que  supõem os neoclássicos,  a significação cultural, dentre outras, pode ser o fator determinante sobre o  resultado  social  de  uma  dada  ação,  sobrepondo‐se  inclusive  a aspectos econômicos que poderiam dar‐lhe sentido distinto. Este seria o caso, por  exemplo, de uma  interpretação um pouco mais  acurada do que  o  neoclassicismo  chama  de  falhas  de  mercado.  Na  economia moderna, as  falhas  relacionadas  com a alocação dos  recursos naturais constituem‐se,  a  rigor,  em  vantagens  competitivas  disputadas  por diferentes  grupos  (ou  capitais)  econômicos.  A  apropriação  e  uso  de condições  ecológicas  favoráveis  ao processo de valorização  capitalista têm sido, historicamente, alternativas para ganhos de produtividade e competitividade dos  capitais  individuais. Da mesma  forma,  o  uso de vantagens institucionais e políticas da esfera não‐mercantil – chamadas pelos neoclássicos de “falhas” de governo – também constituem‐se, sob o prisma da prática destes agentes, em vantagens competitivas5.  

Ademais,  convém  ainda  destacar  que  o  alcance  dos instrumentos  econômicos  na  gestão  dos  recursos  naturais,  ao  serem concebidos sob a estratégia marginalista de universalização das práticas sociais,  evidencia  de  antemão  seus  limites  em  face  das  distintas modalidades de disputas  sociais pertinentes aos  jogos de  cada  campo de  forças  sociais.  Isto  é,  se  considerarmos  os  recursos  naturais  como elementos de disputas que são indissociáveis do espaço social, é mister supor que os  jogos de oposições e de distinções sociais de cada campo revelarão  estratégias diversas de distribuição dos  recursos materiais  e 

                                                            5  Para  apontamentos  sobre  a  construção  política  destas  vantagens  competitivas  no contexto  da  economia  norte‐americana  (berço  dos  ideais  do  “livre‐mercado”),  ver estudo  de  Fligstein  (2001)  a  propósito  da  emergência  do  valor  acionário  como concepção do moderno controle das empresas, e do crescimento do Vale do Silício, força motriz da indústria informática naquele país. 

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simbólicos em  face dos princípios de diferenciação do próprio campo. Neste  sentido,  os  pressupostos  nos  quais  a  aplicação  de  tais instrumentos  se  baseiam  –  quais  sejam,  os  da  alocação  econômica eficiente  e  da  promoção  do  uso  racional  do  recurso  –  deverão  servir sobremaneira aos mecanismos de diferenciação social de cada campo de forças.  Por  esta  razão,  não  há  como  estabelecer  nenhum  elo,  seja  de ordem prática ou mesmo teórica, entre o pseudo equilíbrio das relações de  troca e o equilíbrio ecológico  requerido para a  sustentabilidade do uso dos recursos naturais. 

Nestes  termos,  convém  ainda  resgatar  a definição de  Fligstein (1996)  para  a  constituição  do  mercado  econômico  como  fenômeno eminentemente  sociopolítico.  Tal  como  destaca  o  autor,  a  criação  de mercados  implica  em  soluções  sociais  para  problemas  de  direito  de propriedades,  estruturas  de  governança,  concepções  de  controle  e regras  de  troca.  A  definição  do  perfil  não  resulta  de  processos automáticos de  interação social. Esta definição é sobretudo política. As soluções  para  a  constituição  de  cada  mercado  são  decisivas  para  a permanência ou exclusão dos agentes. Portanto, a racionalidade destes agentes  no  âmbito  do mercado  reserva‐se  às  disputas  políticas  pelo ordenamento das relações e pela conquista de vantagens competitivas. E, no  campo destas disputas políticas,  os  capitais  econômico,  social  e cultural combinam‐se de formas peculiares à posição de cada agente no espaço social. 

Mesmo  a  noção  de  equilíbrio,  recorrente  na  literatura  da Economia Ambiental  em  referência  à  obra  de  Pareto,  revela  traços  de inconsistência que ultrapassam as dificuldades de identificação do plano das  relações concretas e chega á  sua  formulação conceitual. Como bem observa Passeron (2004), a originalidade de Pareto em relação aos demais marginalistas  neoclássicos  relaciona‐se  com  sua  ressalva  de  que  o equilíbrio econômico de mercado não fornece um modelo que possa ser transposto  para  suposições  acerca  do  equilíbrio  social.  O  equilíbrio econômico  suposto  pelo  autor  estria  intimamente  atrelado  a  condutas lógico‐ideais dos agentes econômicos. Em sua análise econômica, o autor procura demonstrar que o livre mercado seria o espaço por excelência de realização  de  tais  condutas.  Já  em  sua  obra  sociológica,  Pareto  avança sobre  o  que denomina de  ações não‐lógico‐experimentais,  relacionadas 

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ao  que  chama  de  resíduos  e  derivações.  Tal  como  insiste  o  autor,  é preciso  estar  atento  ao  fato  de  que  estas  ações  não‐lógicas  não  seriam ilógicas:  na  história  social,  equilíbrios,  conflitos  e  crises  se  explicariam através  dos  resíduos  (expressão  dos  sentimentos  inscritos  na  natureza humana  e  nos  processos  de  socialização)  e  das  derivações,  formas  as quais  indivíduos  e grupos  lançam mão para a  justificação de  condutas não‐racionais  (no  sentido  da  correspondência  da  relação meios‐fins  na consciência do agente e no contexto empírico). Sua sociologia, ao estudar as  condutas não‐lógicas, não visava  construir paralelos  com  a  idéia de utilidade  empregada  na  economia.  E  menos  ainda  indicar  alguma convergência  entre  as duas noções. Em Pareto,  as  ações  lógicas  e não‐lógico‐experimentais comporiam, tal como sugere Aron (2002), o esforço de construção de uma sociologia totalizante, evidentemente correndo os riscos que tais esforços comumente implicam.   A propósito da  obra paretiana,  o  que  os  autores da Economia Ambiental  desprezam  é  justamente  um  de  seus  pressupostos fundamentais,  qual  seja,  o  da  inexistência  de  sociedades  compostas exclusivamente de  condutas  lógico‐exprimentais  ou de  condutas  não‐lógicas. Tratar‐se‐iam de modalidades extremas, quase no  sentido dos tipos puros weberianos. Como salienta em seu Tratado de Sociologia:  

“Embora  isso  desagrade  aos  humanistas  e  aos  positivistas,  uma sociedade  determinada  exclusivamente  pela  razão  não  existe  e  não pode  existir;  e  isto,  não  por  que  os  prejulgamentos  dos  homens  os empeçam de seguir os ensinamentos da ”razão”, mas por que os dados do problema que se quer resolver pelo raciocínio  lógico‐experimental lhes  faltam.  Aqui  aparece  de  novo  a  indeterminação  da  noção  de utilidade (...). As noções que os diferentes indivíduos têm a respeito do que  é  bom  para  eles mesmos  ou  para  os  outros  são  essencialmente heterogêneas,  e não há meio de  reduzi‐las  a uma unidade.”  (Pareto, 2003, § 2143)  A  leitura  sobre  estes  limites  empíricos  das  condutas  lógico‐

experimentais é o que vem permitindo, por exemplo, a retomada crítica da obra paretiana. Este é o  caso dos esforços de Burns e Roszkowska (2009), que problematizam o princípio abstrato do optimum de Pareto no contexto  de  situações  de  conflitos  e  questionamentos  sobre  os 

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resultados de processos  institucionalizados de negociação  envolvendo diferentes agentes sociais. Ressaltando os  limites do enfoque paretiano para  os  estudos  sobre  conflito,  os  autores  apontam  como  os procedimentos  de  negociação  (tais  como  o  voto  e  a  jurisdiciação  das relações),  e não propriamente  seus  resultados,  adquirem  legitimidade nas  sociedades  modernas  (promovendo  uma  espécie  de  alquimia institucional).  Nestes  termos,  o  ponto  optimum  de  equilíbrio  para  a alocação  de  recursos  se  relativiza  na  avaliação  dos  resultados  das negociações  institucionalizadas.  Como  bem  observam  os  autores,  a aceitação  geral  dos  procedimentos  é  que  se  torna  fundamental  na resolução  do  conflito,  e  não  seu  resultado  como  função  de  utilidade. Com  efeito,  talvez  não  seja  por  outra  razão  que  a  crítica  social  aos instrumentos  econômicos  de  gestão  de  águas  encontra‐se  em  grande medida centrada na condenação dos procedimentos de mercado como reguladores viáveis das modalidades de uso e acesso a este recurso6. 

 5. Crítica da economia política da água 

 Criticar  esta  modalidade  de  economia  política  da  água  não 

significa  simplesmente  retificar  distorções  de  detalhes  da  abordagem neoclássica ou preencher eventuais lacunas. Neste esforço de análise, a crítica  da  economia  política  da  água  sugere  o  apontamento  de  uma nova  narrativa,  capaz  de  superar  os  impasses  inerentes  às interpretações  centradas  no  modelo  formalista  de  equilíbrio  de mercado. Na direção inaugurada por Marx, em sua crítica da economia política clássica, o que este texto coloca em discussão é o próprio objeto da  economia  ambiental,  a  saber,  a  alocação  eficiente  dos  recursos naturais baseada em categorias econômicas de gestão.  

Sobre  a  constituição  das  categorias  econômicas,  é  importante ressaltar  que  a  sociedade  cria  formas  diversas  de  trocas,  que  se relacionam  e  se  retroalimentam. Retomamos,  portanto,  a  assertiva  de Mauss  (2003)  de  que  os  mercados  são  constituídos  de  práticas                                                             6  São muitos  os  críticos  que no  âmbito do debate público  (principalmente no  campo jornalístico) ressaltam o caráter excludente da gestão estritamente econômica da água. Para uma síntese dos principais argumentos envolvidos em  tal crítica no cenário da opinião pública nas duas últimas décadas do século XX, ver Laimé (2003).  

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econômicas  que  são,  simultaneamente,  políticas  e  culturais.  Como  é sabido, em seu clássico Ensaio sobre a Dádiva, o autor  interpreta a troca como um fato social total, cujas regras manifestam‐se simultaneamente na  moral,  na  religião,  no  direito,  na  economia,  na  política,  na organização das  relações de parentesco e na estética da  sociedade em questão. Neste sentido, os  indivíduos não podem ser concebidos como estátuas econômicas, posto que também são agentes políticos, culturais e  pessoas  morais.  É  justamente  por  esta  razão  que,  ao  se  supor  a conduta  racional  do  agente  econômico  diante  dos  mecanismos  de valoração  da  água,  está‐se  absolutizando  a  dimensão  econômica  da conduta social e refletindo‐se sobre um agente abstrato, fracionado em sua integridade social. 

Este  superdimensionamento  do  cálculo  econômico  na  conduta individual em ambientes de mercado, tal como sugere Sahlins, (2003), é uma expressão da própria cultura permeada pela hegemonia da razão utilitária.  Tal  razão,  fundamento  da  visão moderna  de  racionalidade econômica,  é,  do  ponto  de  vista  cultural,  a  maneira  pela  qual  as sociedades ocidentais vêm se experimentando desde o  início do século XX. Equivocadamente, este modo de experimentação social segue sendo reificado  como único  fundamento para a explicação das propriedades das  relações  sociais,  desconsiderando  que  mesmo  a  utilidade  é composta  por  dimensões  simbólicas  que  escapam  ao  universo  dos fluxos de oferta e demanda dos mercados.   Senão,  como  interpretar  as práticas  culturais de grupos  sociais distintos  em  relação  às  águas  tomando  como  referência  as  noções de utilidade e conduta racional sustentadas pela economia ambiental? Ou, como interpretar a resistência à precificação da água por aqueles que a concebem  como  recurso  sagrado,  sem  possibilidade  de  representação no universo das mercadorias? Neste caso, tratar‐se‐ia simplesmente de uma  conduta  residual,  nos  termos  paretianos? Ou  ainda,  no  sentido antropológico, como compreender as tradicionais Festas dos Pescadores e  as  práticas  religiosas  sobre  as  águas,  tão  presentes  em  cidades ribeirinhas  brasileiras,  a  partir  das  posições  sociais  de  ofertante  e  de consumidor do utilitarismo neoclássico? Qual  será a  resposta  racional dos que cotidianamente mantém com as águas práticas simbólicas que estão para além dos ajustamentos de mercado? 

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  Como  sugere  Espeland  (1998),  a  suposição  de  uma  conduta racional universal é problemática  justamente em  razão das dimensões de  identidade e cultura que amparam as práticas e a construção social da realidade. Nestes termos, a leitura dos grupos de interesse e de suas estratégias  baseada  diretamente  em  suas  respectivas  posições  de mercado despreza,  segundo  a  autora,  a  complexidade que  envolve  as construções de diferentes visões técnicas sobre a natureza, de diferentes disputas políticas envolvidas na regulação do acesso ao meio ambiente e do multiculturalismo envolvido na  construção da moderna  temática ambiental7. 

Podemos afirmar que a noção de  racionalidade econômica não apenas  possui  um  alcance  relativo,  mas  também  contribui  para  a construção de ausências no âmbito dos saberes regionais sobre as águas. Intimamente articulada à  razão  indolente analisada por Santos  (2002), as categorias de conhecimento disseminadas pela economia política da água,  ao marcarem  os horizontes de  alcance para  aplicação de  certos saberes técnicos, também contribuem para a produção da monucultura do  saber e das ausências que  lhe  são decorrentes. Talvez  seja um dos caminhos  possíveis  para  a  interpretação  das  formas  de  exclusão  de grupos  sociais  das  possibilidades  de  participação  em  estruturas descentralizadas  de  gestão  das  águas8.  Ao  realizar‐se  como  saber legítimo,  esta  razão  técnico‐instrumental  não  promove  apenas  a 

                                                            7  Espeland  (1998)  exemplifica  esta  complexidade  através  do  caso  dos  conflitos envolvidos na  construção de uma barragem no oeste dos Estados Unidos. Destaca, em  particular,  os  diferentes  universos  simbólicos  presentes  no  processo  de desocupação  territorial  para  tal  construção,  que  envolvia  os  Yavapi,  comunidade indígena do Arizona que, por  considerar a  terra  como parte de  sua herança étnica, não a concebe como alvo de atos de compra ou venda; os engenheiros planejadores da  obra,  que  por  quarenta  anos  argumentaram  sobre  seu  mérito  técnico;  e  os burocratas de estado envolvidos na elaboração de modelos de consenso para mitigar a tensão social em torno da construção da barragem. 

8 A despeito do caráter de parlamento das águas, os Comitês de Bacias Hidrográficas no Brasil  revelam circunstâncias crescentes de exclusão de grupos  sociais. No contexto específico da construção social da governança das águas no estado de São Paulo, este processo  vem  sendo  interpretado  por Martins  (2006;  2007)  através  da  posição  dos agentes  nos  aparatos de  governança, da  construção dos discursos, dos  critérios de autoridade para as falas/posições no debate descentralizado e das hierarquias sociais resultantes destes atos de distinção. 

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marginalização  de  outras  epistemologias  do  saber  ambiental.  A acumulação seletiva dos sucessos em termos de nominação estritamente econômica  dos  recursos  ambientais  pode  também  levar  ao  processo descrito  por  Santos, Menezes  e  Nunes  (2004)  como  epistemicídio  dos saberes  concorrentes,  liquidando  por  conseguinte  os  grupos  sociais cujas práticas se assentavam em tais conhecimentos. 

Se do ponto de vista cultural, a noção estrita da racionalidade do homu  oeconomicus  reafirma  o  modo  utilitário  de  experimentação  do cotidiano  social, do ponto de vista da  construção do  conhecimento,  a mesma  dissocia  a  ação  social  dos  demais  processos  que  lhe  compõe. Como  também nos esclarece Santos  (2002), esta  fragmentação da ação social propiciou o reducionismo das concepções modernas de regulação e  emancipação.  Isto  porque  a  emancipação  moderna  tornou‐se estritamente  associada  à  racionalidade  cognitivo‐instrumental  da ciência,  voltada  à  produção  totalitária  do  saber  e  promissora  da dominação plena da sociedade sobre os recursos naturais. A regulação, por  sua  vez,  foi  associada,  com  larga  contribuição  do  utilitarismo neoclássico,  à  livre  atuação  das  forças  de  mercado.  Deste  modo,  o pragmatismo do paradigma da racionalidade econômica, reduzindo em nível  analítico  as  várias  dimensões  envolvidas  nos  processos  de desenvolvimento  social,  de  produção  de  saberes  e  de  regulação institucional  de  práticas  sociais,  foi  alçado  à  condição  de  parâmetro supradimensional para a problematização de quaisquer temas relativos à sociedade,  política,  economia,  ciência  e  cultura  em  tempos  de modernidade.   Com efeito, as relações sociais não são balizadas somente pelas disputas econômicas por benefícios. Como bem acentua Mauss  (2003), em  sociedade,  não  são  apenas  as  mercadorias  que  circulam,  mas também as pessoas, os nomes, palavras, os  títulos  (prestígio),  etc. Por esta  razão,  cálculos  de  custo‐eficácia  não  refletem  os  distintos instrumentos  sociais  empregados  nas  práticas  cotidianas  de  classes  e grupos.  Outras  regras  e  recursos  sociais  interferem  nas  ações individuais. A experiência dos grupos sociais, por exemplo, através da construção  de  saberes  e  valores  sobre  o  ambiente  e  sobre  a  própria sociedade,  é  um  instrumento  de  percepção  social  decisivo  para  os eventuais redimensionamentos da relação sociedade‐natureza. 

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Desta feita, além da compreensão histórica dos processos de uso e apropriação dos  recursos ecossistêmicos,  também  faz‐se necessária a análise  da  transformação  social  da  natureza  através  de  um  dado território,  com  formação  histórica  específica  e  relações  próprias  de dominação. Neste âmbito, a produção social de valores excedentes nos espaços sociais ganha nova dimensão, porquanto abre caminho para a problematização da  relação  sociedade‐natureza a partir da disputa entre grupos e classes sociais pela hegemonia nas formas de uso, regulação e apropriação da natureza local. Isto é, o resgate das dinâmicas regionais e das especificidades políticas de cada sociedade permite que, do ponto de vista  analítico,  os processos  ecológicos  circunscritos  aos  ambientes de produção de valor adquiram um conteúdo histórico que ultrapasse a simples  condição de  base  biofísica dos processos de  acumulação. Por outro  lado, o que a concepção da  relação  sociedade‐natureza presente no  instrumental conceitual da economia ambiental deixa de esclarecer são  justamente  as  contradições  locais  das  formas  capitalistas  de sociabilidade. Deste modo, mantém obscuros os processos que revelam mais elementos da crise da sociedade produtora de valores excedentes.  

Não é por outra razão que Leff (1995) destaca que a tentativa de pensar a articulação entre sociedade e natureza exclusivamente em função das  categorias  de  investimentos  de  capital  e  utilidade  marginal  dos fatores  de  produção  impossibilita  a  compreensão  dos  processos ecológicos  como  integrantes  da  história  social. Na medida  em  que  as condições ecológicas do processo produtivo surgem como externalidades do sistema econômico, as contribuições dos processos ecossistêmicos e da própria  produtividade  ecológica  à  geração  de  riqueza  passam  a  ser negligenciadas,  juntamente  com  as  diferenças  entre  a  produção  de valores  de  uso  e  valores  exedentes.  Isto  impediria  uma  análise  da transformação ecossistêmica derivada da apropriação social dos recursos naturais como objeto e meio de trabalho para a produção de mercadorias, o  que,  por  sua  vez,  repercutiria  negativamente  na  construção  de alternativas  políticas  para  os  grandes  temas  da  moderna  crise  sócio‐ambiental – como é o caso da questão hídrica. 

Portanto,  no  âmbito  histórico‐estrutural,  é  importante  o estabelecimento  de  conhecimentos  complexos  para  a  promoção  de políticas para o uso e acesso sustentáveis das águas em níveis nacional e 

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regional. No caso da água, considerando as especificidades regionais de disponibilidade e qualidade do recurso, torna‐se de grande relevância o esforço de integrar as disputas locais às relações dinâmicas da dialética do  particular‐universal.  Este  esforço,  ao  dispor‐se  a  interpretar  a complexidade das esferas de sociabilidade historicamente  inscritas nos modos de interação da sociedade com a natureza, permite a construção de cenários mais condizentes com o cotidiano dos grupos e classes que possuem  interesses concretamente situados diante das potencialidades ecológicas e sociais.   6. Considerações finais 

 A expectativa sobre o aprofundamento da crise de acesso à água 

em  várias  partes  do  mundo  vem  estimulando  não  apenas  disputas materiais, mas sobretudo lutas simbólicas em torno dos diagnósticos da crise  e das possibilidades de  sua mitigação. Neste  capítulo, buscou‐se sistematizar  alguns  elementos  críticos  que  permitem  compreender  o cenário de criação de uma narrativa social hegemônica sobre o recurso água, focada essencialmente em sua significação econômica. 

Face às discussões empreendidas, nos parece adequado sugerir a problematização da conveniência social dos mecanismos de mercado na gestão  de  águas  com  base  em  dois  critérios  não  excludentes  de apreciação de políticas públicas, quais sejam, os de extensão e densidade. Conforme  se  espera  ter  evidenciado  no  curso  do  texto,  a  extensão pretendida  pelos  princípios  conceituais  dos  instrumentos  econômicos de  gestão dos  recursos  naturais  é  bastante  ampla,  posto  que,  em  um contexto  lógico‐dedutivo,  dissemina  as  hipóteses  do  utilitarismo econômico  para  todas  as  esferas  da  vida  em  sociedade.  Entretanto, justamente  por  aprisionarem  os  referenciais  da  experiência  social  aos mecanismos de conduta econômica, as estratégias de mercantilização da água  apresentam  baixa  densidade  informacional,  uma  vez  que  não fornecem  suportes  em  seus  princípios  de  gestão  para  as  dimensões extra‐econômicas da relação sociedade‐natureza. 

Como  procurou‐se  ressaltar  através  dos  marcos  críticos  aqui abordados, há sempre uma intencionalidade simbólica corporificada no código de  recursos  socialmente desejáveis.  Isto  significa dizer que um 

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recurso  natural  não  pode  ser  reduzido  à  sua  dimensão  econômica mesmo  para  os  que  o  observam  como  tal;  ele  também  é  recurso simbólico que corporifica signos culturais, ocupando assim posição no conjunto hierárquico das trocas simbólicas. Evidentemente, em razão de sua  posição  neste  conjunto  hierárquico,  suas  dimensões  políticas  e econômicas  assumem  significado  particular  para  sociedades  e  grupos sociais distintos. 

Por  fim,  mesmo  na  análise  histórico‐estrutural  das  condutas econômicas  nos  mercados  capitalistas,  o  formalismo  da  análise utilitarista  impede  a  problematização  do  mercado  como  instituição política, palco de disputas que  se estruturam em outros contextos  (ou campos) de sociabilidade. Ou seja, no curso da análise socioambiental, este  formalismo  impede a  constatação de que os grupos e  classes não apenas  criam bases materiais distintas para  seus modos de vida, mas também  interpretam  de  formas  diversas  a  construção  dos modos  de vida,  das  identidades  culturais  e  da  experiência  social  sobre  as potencialidades  ecológicas.  Para  o  contexto  das  sociedades  latino‐americanas,  que  encontram‐se  em  vias  de  consolidação  de  novos princípios para a gestão das águas, a leitura crítica deste formalismo a‐histórico nos parece decisiva para  a  construção do olhar plural que o tema requer.    Bibliografia  ALIER,  J.M.; SCHLUPMANN, A. La  ecología y  la  economia. México: Fondo de Cultura Económica, 1993. ALTVATER, E. O preço da riqueza. São Paulo: Ed. UNESP, 1995. ARON, R. As etapas do pensamento sociológico. 6ªed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. BANCO MUNDIAL. Gerenciamento  de  recursos  hídricos. Brasília:  Secretaria de Recursos Hídricos, 1998. BARRAQUÉ, B. Les politiques de  l’eau en Europe. Paris: Éditions  la Découverte, 1991. BAUMOL, A.; OATES, W. The theory of environmental policy. 2ª ed. Cambridge University Press, 1988. 

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