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\ 8 (<UM /) l.f\J " f ()f2./r e c. \4) .rv.. 4- (vi A i2:'\ \ N S I ri' S 42..f.~ eU ~~ f\.A : LT C. I 'A ~T , ?~c. ~~~ Goh\PrV~ " ·f \\ ~ t...:~~.c.: <€. ~<;J <:: ~. , 9:J v.::.ru::loo1.J \( vKIGINAL PASTA 6YD --- FLS. 06 ..,... . T'IN ormr 1 A herança intelectual da Sociologia· Florestan Fernandes A Sociologia não se limita ao estudo das condições <!e~!i.~tên.sjp,social dos seres h~~an-º!h,IQ.QJl:yia,.~~~c~l!stitui!!-_p()!,Ǫ9,r,nai!\fascinante ou importante seüõT;jeto'e aque~ue alimentou a rópria preocupação de aplicar o ponto de vis- ta científico à o1>serva o e à e. cação, os fenômenos sociais. Ora, ao se falar do homem, como objeto de indagações específicas do pensamento, é impossível fixar, com exatidão, onde tais indagações se iniciam e quais são osseus limites; Pode-se, no máximo, dizer que essas indagações começam a adquirir consistência científica no mundo moderno, graças à extensão dos princípios e do método da ciência à in- vestigação das condições de existência social dos seres humanos. Sob outros aspec- tos, já se disseque () .!t.()!!I~~ ~~.l!!pr~f~i9.pIjl!clp~LQbjt<t9A~,.c~xi9~tdª_d,~h~!!11!-~a. Atrás do mito da Religião ou da Filosofia sempre se acha um agente humano, que se-I>reücupa;lüiKIamentãTepffin---aríaiiiente, com questões-iêfatlvãs à origem, L, vida e ao destino de seus semelhantes. . --p~~-i~~~:~ria'~ã~-;iffii)rof1CUõ-separar a Socioíogia das c~ndicões histórico- sociais de existência, nas quais ela se tornou intelectualmente possível e necessâria.> A SociologIa nao se afirma primeirocomo explicação científica e, somente depois, como forma cultural de concepção do mundo. Foi o inverso o' que se deu na rea- lidade. Ela nasce e se desenvolve como um dos florescimentos intelectuais mais complicados das situações de existência nas modernas sociedades industriais e de classes. E seu progresso, lento mas contínuo, no sentido do saber científico- positivo, também se faz sob a pressão das exigências dessas situações de existência, que impuseram tanto ao' pensamento prático, quanto ao pensamento teórico; tarefas demasiado complexas para as formas prê-científicas de conheciment~ Daí a posição peculiar da Sociologia na formação intelectual dcmundo moderno. Os pioneiros e fundadores dessa disciplina se caracterizam menos pelo exercício de atividades intelectuais socialmente diferenciadas,. que pela partici- pação mais ou menos ativa das grandes correntes de opinião dominantes na época, . seja no terreno da reflexão ou da propagação de idéias, seja no terreno da ação. As ambições intelectuais de autores como Saint-Simon, Comte, Proudhon e Le Play, ou de Howard, Malthus e Owen, ou de von Stein, Marx e Riehl iam além do co-. nhecimento positivo da realidade social. Conservadores, reformistas ou revolu- cionários, aspiravam fazer do conhecimento sociológico um instrumento da ação. ---- ~--.....,..~--- .> (*) Florestan Fernandes, Ensaios de sociologia geral e aplicada (cap. 8: "A herança intelectual da Sociologia"), Livraria Pioneira Editora, São Paulo; 1960, pp. 273-89. Reproduzido com autorização de Enio Matheus Guazzelli &Cia.Ltda. . ~.5fs."~=~j~' •••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• -•.• --.-._ ••••••••••••••••••••••••••••••••• 1••••••••••••••••••.•.•.•.•.•.•.•.•.•.•.•.• .• _

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A herança intelectual da Sociologia·Florestan Fernandes

A Sociologia não se limita ao estudo das condições <!e~!i.~tên.sjp,social dosseres h~~an-º!h,IQ.QJl:yia,.~~~c~l!stitui!!-_p()!,Ǫ9,r,nai!\fascinante ou importante dêseüõT;jeto'e aque~ue alimentou a rópria preocupação de aplicar o ponto de vis-ta científico à o1>serva o e à e. cação, os fenômenos sociais. Ora, ao se falar dohomem, como objeto de indagações específicas do pensamento, é impossível fixar,com exatidão, onde tais indagações se iniciam e quais são osseus limites; Pode-se,no máximo, dizer que essas indagações começam a adquirir consistência científicano mundo moderno, graças à extensão dos princípios e do método da ciência à in-vestigação das condições de existência social dos seres humanos. Sob outros aspec-tos, já se disseque ().!t.()!!I~~~~.l!!pr~f~i9.pIjl!clp~LQbjt<t9A~,.c~xi9~tdª_d,~h~!!11!-~a.Atrás do mito da Religião ou da Filosofia sempre se acha um agente humano, quese-I>reücupa;lüiKIamentãTepffin---aríaiiiente, com questões-iêfatlvãs à origem, L,vida e ao destino de seus semelhantes. .--p~~-i~~~:~ria'~ã~-;iffii)rof1CUõ-separar a Socioíogia das c~ndicões histórico-sociais de existência, nas quais ela se tornou intelectualmente possível e necessâria.>A SociologIa nao se afirma primeirocomo explicação científica e, somente depois,como forma cultural de concepção do mundo. Foi o inverso o' que se deu na rea-lidade. Ela nasce e se desenvolve como um dos florescimentos intelectuais maiscomplicados das situações de existência nas modernas sociedades industriais e declasses. E seu progresso, lento mas contínuo, no sentido do saber científico-positivo, também se faz sob a pressão das exigências dessas situações de existência,que impuseram tanto ao' pensamento prático, quanto ao pensamento teórico;tarefas demasiado complexas para as formas prê-científicas de conheciment~

Daí a posição peculiar da Sociologia na formação intelectual dcmundomoderno. Os pioneiros e fundadores dessa disciplina se caracterizam menos peloexercício de atividades intelectuais socialmente diferenciadas,. que pela partici-pação mais ou menos ativa das grandes correntes de opinião dominantes na época,

. seja no terreno da reflexão ou da propagação de idéias, seja no terreno da ação. Asambições intelectuais de autores como Saint-Simon, Comte, Proudhon e Le Play,ou de Howard, Malthus e Owen, ou de von Stein, Marx e Riehl iam além do co-.nhecimento positivo da realidade social. Conservadores, reformistas ou revolu-cionários, aspiravam fazer do conhecimento sociológico um instrumento da ação.

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(*) Florestan Fernandes, Ensaios de sociologia geral e aplicada (cap. 8: "A herança intelectual daSociologia"), Livraria Pioneira Editora, São Paulo; 1960, pp. 273-89. Reproduzido com autorização deEnio Matheus Guazzelli &Cia.Ltda. .

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12 - A Sociologia como ciência

E o que pretendiam modificar não era a natureza humana em geral, mas a própriasociedade em que viviam.

Existe, portanto, fundamento razoável para a interpretação segundo a qual aSociologia constitui um produto cultural das fermentaçÕ(:s intelectuais provocadas

~p~l~s revol~ç~~i. i~d~striais e.P~lít~co-soclã1S:qüeã~ãi~r~m-'o mundo' ocidentalmoderno. De fato, a Sociologia não se impôs em virtude de necessidades lógicas,pressentidas ou formuladas a partir da evolução interna do sistema das ciências. Aúnica disciplina científica que poderia ter concorrido, diretamente, para a criaçãoda Sociologia, é a Biologia ..Entretanto, ainda hoje a Biologia opera com organis-

. mos abstraídos do meio real de existência. Apesar de ter posto em evidência' opapel da' competição e do conflito na formação de comunidades e na "luta pelavida" continua a ignorar as i~~~ão social nadiferenciação e na evolução das espécies.

Isso quer dizer que o desenvolvimento do sistema das ciências se tem proces-sado sob o influxo de duas ordens de fatores. Uma, de natureza especificamente<fi<lsitivo-racionl!Dligada com as exigências da própria marcha das investigaçõescientíficgs, ,Q!ltra, de natureza ultracientífica, constituída pelo conjunto defiéces-

}ia~aêi-prátic~ (eco~ômicas,. cu!turais e s?Ciais), que podem ou PI7~isa~ ser'satiSfeitas, de modo direto ou indireto, mediante a descoberta ou a utilização deconhecimentos científicos. Algumas disciplinas, como a Química, emergiramgraças à concorrência de fatores das duas ordens. Outras, como a Sociologia, nas-ceram da conjugação. dos efeitos das crises sociais com os da revolução da men-talidade, produzida pelo advento do pensamento científico. Semelhante vincu-lação da Sociologia com as situações de existência indica duas coisas. Primeiro,que os pioneiros da Sociologia possuíam ampla compreensão da natupeza e daspossibilidades do conhecimento científico. Segundo, que deviam ser recrutadosantes entre os apologistas, que entre os militantes da ciência ~ o que, sob muitosaspectos, foi vantajoso, devido à plasticidade exigida, inicialmerite, pelas inves-tigflÇges,sociológicas, em particular no livre aproveitamento de recursos intelec-tuais (,leproç~(~ência extracientífica.

: v. ,.si~:emte. rin~s;,;!deais da investigação científica, a referida vinculação daSocioh>gia com I!oSllit, ... s.de existência social pode ser apreciada tanto de modopo~itiyo,quanto negativo~,Assimié certo que ela contribuiu para ajustar rapi-damente. ().qt()d~~o:"da. análise. cientiíiea à natureza dos fenômenos sociais hu-manos, que ~hday,oreceu,a.ad,oçiio.depadrões de comunicação científica relati-vamenteexotêricos.e que ,a:ela, se associa uma nova compreensão do objeto e dasfunções da ciência aplicadacContudovnessa vinculação, ta1'llbém se encontram asraizes' dos"prin.Cipa1sobstãculosao 'desêrivolvimen~o :êesterior, da Sociologia. Deum Húlo,~i)()tqil:eri~hl.·Sé.j~~p:fr:94â~!I~Qtif~çaç~Q!~4t~~:h.ojc;,~q(l"~!lt~"da Socio-logia com ,li J:HO~Qf.~ii"4a '~Q~~s~ãQ,Soci,al"; ,7"'":' ,(),q~e: a~é;lbax~,[p,Q~,)r,e,4.u;~H.a,.àsptopóÍ!ões .de ,urna:FiIQ~f!li~,Poll~'cÇl.. I?~.optI;?! por.q4e p()4~a;goPt9\l~r ao ~~'pobl'eclmepto decampode Jnv~sbgaçãoda ~OFIQ.()gla.,Cfsp.~~lJ.flAel.l:t~i.q1;\~p4Q'aslipefvalprIi~wão .d••:c~ainí1# ~·S:o~i010gia.Histórica" '~t;;pml:.ç~Sa.~lk~W:~Qw1;>i;nação éoni.'·:iç.~u..it,o.~:p'rát$so~~~J.ll~r<"çfiilÍdps,~.,. ";', '';::,;~ >, i};;:",; .n.lé;;"; ,'.' , -:

,,TlJ..iscOlielusÕesdenlons~ram .que a herança .intelectual'da- Socidlõgia'atefi'diá;escassamente, aos prê-requisitos de uma verdadeira ciência. Isso não significa,porém,que s~,d,9~ap,r0c.~~e~,~u,~ll c9~Pr!J,a.Ç,~9,~I!;::~Pfi?l?ID~Al!<>;,~~~u.J~)$:.JX",como o faz <:1~org~s,;qpr,y,1Ícli~()qt~ll1()t ~eqa teptaI:cpqtPlie~,ndt;r..(}~u;e~p'iri~Qeos seus resultados, tomando-se.como ponto de referência.arslgréfieação 'deles/para

J'~

A herança intelectual da Sociologia - 13

o desenvolvimento da Sociologia na época. A esse respeito, seria conveniente con-siderar: 1?) as relações da emergência da Sociologia com os efeitos intelectuais dosprocessos de secularizacão dos modos de. conceber e de explicar o mundo; 2?) asrepercussões das tendências de racionalização e dos movimentos sOciais na deli-mitação do horizonte intelectual dos pio.neiros ou dos fundadores da Sociologia:3?) a natureza dos motivos e dasambições intelectuais, inerentes às primeiras ten-tativas de aproveitãrõs principioSOõconhecimento científico na explicação davida humana em sociedade.

A explicação sociológica exige, como requisito essencial, um estado de es-pírito que permita entender a vida em sociedade como estando submetida a umaordem, produzida pelo próprio concurso das condições, fatores e produtos da vidasocial. Por isso,tal estado de espírito não sôê anterior ao aparecimento da So-ciologia, COIDO representa uma etapa necessária à sua elaboração. No mundomoderno, pelo que se sabe, ele se constituiu graças à desagregação da sociedadefeudal e à evolução do sistema capitalista de produção, com sua economia de mer-cado e a correspondente expansão das atividades urbanas. ~ que estes dois proces-sos histórico-sociais se desenrolaram de modo, a ampliar, continuamente, as es-feras da existência nas quais o ajustamento dinâmico.às situações sociais exigia o:recurso crescente a atitudes secularizadas, de -apreciação dos móveis das ações'humanas, do significado dos valores e dá eficiência-das instituições. '

No plano puramente intelectual, a secularização dos modos de conceber e deexplicar o mundo está relacionada com transformações radicais da mentalidademédia. O efeito mais notável e característico dessas transformações consiste noalargamento do âmbito da percepção social além dos limites do que era sancio-nado pela tradição, pela Religião ou pela Metafisica. '':fodo sujeito percebe o mun-do exterior e as eróprias tendências egotistas através de categorias de pensamentoerdadas da sociedade em_.9!!~_YÍY~'Quando a herança cultural é constifuiaa,predominantemente...por categorias de pensamento modeladas pelo influxo diretoe profundo das tradições, de noções religiosas! ou de explicações metafísicas deorigem sacerdotal, a percepção social acaba sendo condicionada de forma estáticae recorrente, o que restringe as potencialidades críticas e inconformístas dos agen-teshumanos em face de suas situações de e~tência.tQualquer análise da conduta,da sociedade ou do destino. h\l,manQ,ejb.aua com o caráter "absoluto", "intan-~vel;; ~ ,;'ságradô;"'d,as"normas, dos valores ~das:insii'tüiç'õessocíiiIS;'reconhecidosculturalmente, Nem mesmo uma disposição objetiva.ou neutra de reconhecimentodas situações de existência se torna facilmente. acessível, Nas condições de in-quietação e de instabilidade, ligadas à desagregação dasociedade medieval e à for-mação do mundo 'moderno, as Inconsistências daquelas.categorias absolutas e es-táticas do pensamento.se.fízeramsentír ~9.!DIIlP.id~z. Contudo, como se estava emuma era de. revolução social (e não apenas de transição de um período a outro deuma mesma civilização), elas não foram simplesmente impugnadas e rejeitadas: asmimas, de saber '<leque elas derivavam ..e que pareciani.,vici~r ..•_,Q!! ~i.Y,~~sasmaneirasti sob diferênfe~mriclamentos,o,u.sci da razão, éque foram condenadas, e substi-tuídas; Seja no. plano prâtico, seja no plano teórico, impunham-se tarefas quepressupunham novos padrões de apreciação axíolôgica, mais ou menos livres dos.influxos da tradi ão ou conce ões providencialistas. Portanto, o que se poderiadesignar com ns'A cia realista s condições de existência emerge e progride

l através de exigências de novas situações de vida, mais complexas e instáveis. Daí oI enriquecimento dos conteúdos e o alargamento dos níveis da percepção social do,I;:, sujeito, exposto a um cosmos moral em que a .capacidade de julgar, de decidir e de .. .!

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14 - A Sociologia como ciência

agir passa a depender, de modo crescente, do grau de consciência por ele alcan-çado sobre os móveis das ações dos outros ou os efeitos das possíveis alterações daestrutura e funcionamento das instituições. ,

A essa transformação básica do horizonte intelectual médio é preciso acres-<, centar outras duas conseqüências, a ela relacionadas. De um lado, as~º~.if!S~~<?~s

l\ que se produziram na natureza e nos alvos do conhecimento do senso comum; deoutro~ãs'mõvaçÕes'que's(nnaÍlllestãiâmfio seio do ensamento rãCIõnãfsiste-mático. s mo l' oes por que passou o conhecimento do senso comum têm sidosiibeStiÍnadas, em particular devido às inclinações intelectualistas dos autores queestudam a história do pensamento no mundo moderno. Mas, elas possuem umasignificação excepcional, pois foi por meio delas que se projetaram na vida práticaas diversasn ões que fizeram da atividade humana in<lividual ou coletiva, o

ropno cerne de todo progresso econÔmico, político ou cultural ..Na verdade, foi oconhecimento do senso comum que se expôs e teve de enfrentar as exigências maisprofundas e imediatas das novas situações de existência social. Por isso ele acabouservindo como verdadeiro foco de formação e de cristalização das categorias depensamento, historicamente adequadas àquelas situações. Tome-se como exemploa história da Economia: noções que serviram, primordialmente, para definir o sig-nificado de ações, de obrigações ou de relações econômicas, na linguagem coti-diana foram ordenadas com base na experiência de atividades econômicas con-cretas e ':~eneralizadas" ,tudo dentro do âmbito do conhecimento do senso co-mum. Mais tarde, as explicações assim descobertas constituíram o ponto de par-tida de uma disciplina científica. Pode-se objetar que existe ampla diferençaentreas explicações abstratas dos economistas e a "teoria" do comércio de um mercadoringlês do século XVI ou XVII. O paralelo é bastante sugestivo, não obstante, paraindicar o sentido objetivo e os intuitos de precisão, inerentes ao conh~imento desenso comum no mundo moderno. "

As repercussões da secularização dos modos de perceber e de explicar o mun-do no pensamento raciorial sistemático são, entretanto, melhor conhecidas. Mas,mesmo aqui se verifica que o processo de' transformação foi mais rápido nas esferasdo pensamento racional vinculadas de modo imediato às situações práticas deexis~~ncia, como se P?s: ~omprov~r pelo confronto_do desenyolvimento ?o DireitoPOSIÍlvOcom o da FJI\lfofta, a partir da desagregaçao da sociedade medieval, Issonão impede que se reconheça que coube ao pensamento racional sístemâtico sejaordenar e dar expressão lógica às elaborações rrealmente significativas do co-nhecimento do senso comum, seja estender os critérios de explicação secular domundo' a objetos e a temas que não caem dentro dos limites da reflexão prática.Graças a estas duas funções, a Filosofia moderna ofereceu os meios intelectuaisatravés dos quais se esboçaram as primeiras tentativas de explicação realista sis-temática das condições e efeitos da vida humana em sociedade. A essas tentativasnão estiveram alheios, mesmo, nem certa objetividade no tratamento empírico dasmanifestações da vida social; nem um mínimo de espírito relativista, que p~rlJ1itiuentender univocamente os fenômenos de mudança sócio-cultural, condicionadospelo espaço ou pelo tempo, e que oferecia um fundamento lógico às especulaçõesvoltadas para a reconstrução social.

JEm suma, aos efeitos do processo de secularização da cultura na modificação

da mentalidade média, do conhecimento do senso comum e do pensamento ra-cional sistemático devem-se a formação do ponto de vista sociológico, a noção de

t, I que a vida humana em sociedade está sujeita a uma ordem social, e as primeiras\ tentativas de explicação realista dos fenômenos de convivência humana. A cons-

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A: herança intelectual da Sociologia -' 1S

tituição da-Sociologia, entretanto, altera sua relação com os produtos intelectuais ecom as tendências desse processo. Parece óbvio que as influênciasintelectuaisdes ...critas concorreram. paraproduzírefeítos similares porql.le asquestõesque se pas-saram' açº19cai~'ã,ii:i:spéito.ctas,form~ enªmre~~,ºª oJ@msoCiat,s,e:tornaramdemasiado variadas e cºmple"as,aporito.deexigirem,o.re.curso ..contiD.!!oà inves-~_io sistemãticâ~~t~mação de uma diseiplina intelectualespeçíjica., Tome=seAugusto,.cOl11te..c()I!l()re!er~iic.!~~::s.ii~j!íºªg~çõ(iscoriéspondiam a questões que

.n~opoderjams.edºrmyJadas,e respondjda$,DO.~hijo_<tO.:cOnhecimento do ,sensocomum ou da Filosofia pré-científica, O que...ê.a.ordem ..social? Como ela.se cons-..iil~it:Ç.º!!!9::~ªª~~m-'iD.1eDirǺmºj~la.setr.ansLQIma?..,pm~Ulras-palavr.as, ...com.o.aP.ªJeçJ!I}~l!toda Sociologia nãosô ,~,ampliao.,sistemª.JIª~,çi~máªs, ..eomo.se.des-c.obre1IL.meiós~iÍÍteieciWUs.:.PIeMm..lmte,j!,~q1.1aMs....~.!!~~s~~ª!!ºe~,·ºe_.º.!l~sen\'ol.rigle.IltC?C!i~d()rº!1.;çç!1,str.yJiy'º,dQSJnQd.Qs..seçularizados.de,per.ceber.ed,e.explic.at:.o....mundo. .: .- As repercussões das tendências de racionalização e dos movimentos sociais nadelitn.!!ªçãodo'hQri:W,iii~uitclectüâJ. dos pioneiros e dos fundadores da SociologiaSét~~rªm:s..e'.iltir~nCdois planos distintos. No plano teórico, elas levaram à convic-çãº.,IDujto .I1-!lterloràcoJlfi~açãôae tal estadode espíríto pelosresuItados das ín-v:éstig.açõess~iºl~~i~~,· d~,que as remtlll.ric:lªºe! de ~JÇistê~,.de.S1lceSS~º, ..'J!:1epemntem.entender.e explJcara ordem d,9.s..fenomenos nas. manifestações da VIdasoci~,nãQPQ.ssl.l~!l.1,JlmJl,,º'ªtu~:za!ig~Qª_~-,m..~ªniCa. É certo que tal ordem foidescrita como algo que exclui tanto os influxos da providência, quanto o arbítriode indivíduos ou de grupos de indivíduos. Mas, isso não impedia que se.procurasseconhecer _º,~,..P.!~l!sso~...s~~i!is,.c.olll:-()ccintuito.de colocar aoalcance.daatividadehumana meios eficazes de interven ••ão nas condições de existência social, Estava-se.nagrãnde erado'PêiiSàmeiíto'TnventiVõJ;'-dQ 'h1imanita:rlsm91Cortserv;yiores,IWJ:l'aiscu.socialístas.uodos se interessavam pelas descobertas das ciências e porsuas aplicaçõesnas inº~sJriªs .•.nos ~ry!çosl?úbll.ÇQ~~ª!lS relações hu~ª,º~;J).ªtaconstrução de.e.I~1Joraçõe~.interpretativas que perseguiamdoís fins: 1?) o de des-cte.vii..a-oroem::-sOclar:c..Gmõ=Um.:sts~jJ.Qiªº9.:.aeºii@.!!iZ!!Ǫ-() .~stnltural e. fun-cional própria, cuja alteração interna se processaria através da operação 'de me-canismos inerentes à organização do sistema; 2?) o de descobrir as condições den-tro das quais a atividade human-ª_po~ria tirar determinados proveitos da plas-ticidade relativa da ordem social, mediante o aproveitamento dos conhecimentosfornecidos pela ~náijse 99S referidos mecanismos.de mudança do sistema social.)'

.~ ,.anc41rátlco, os ideais de racionalização concorreram-para alimentar-aaspiras.ª.!L.deJnvenfaF-téenicas-de-m..anipula:ção __ou"..de·...control!Ldassltuãções-dé-existência social, modeladas segundo os padrões' do conhedmento-' positivo-TIlCiõnal. .Em incentivos dessa espécie repousam, desde o início, as preocupaçõessociológicas sobre as possibilidades e' as funções do planejamento no mundomoderno. As impulsões coletivasímanentes aos movimentos sociais eram, por suaYez, demasiado poderosas para serem subestimadas no pensamento sociológico.Por isso, as acomodações intelectuais se.revelam antes na inclinação a aumentarou a diminuir o intervalo ideal nas relações da teoria com a prática, que na ne-gação de sua existência e importância, Os que pretendiam aproveitar os co-nhecimentos sociológicos em manipulações conservadoras ou reformistas, a exem-plo de Malthus ou de Comte, respectivamente, julgavam indispensável a escolhade intervalos mais ou menos consideráveis. Os que aspiravam colocar aquelesconhecimentos a serviço da revolução social, ao contrário, tendiam a recomendarum intervalo mínimo, a exemplo de Proudhon ou de Marx, com amplasperspec-

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16 - A Sociologia como ciência

tivas para o mútuo aprofundamento da teoria e da prática. Do ponto de vista for-mal, o resultado seria o mesmo: o nascimento de uma concepção de ciênciaaplicada e dá significação construtiva da prática para a teoria que não encontravasímile nem fundamento nas ciências naturais.

- Quanto-ã natureza dos motivos'edas ambições intelectuais, inerentes àsprimeiras' tentativas de-explicar a vida humana em sociedade de·forma objetiva:eles -eram antes filosóficos, que científicos. Para definir ascóísas <;.omm·aiOrprecisão: eles provinhaJll de uma filosofia plena.!!!-enteJmbiiídádas descobertas,da.s·categõriás··depi!fisafi1~ntoe·d(fválOi" diiCí~ncia.,:O qu..e secostuma chamar deciêndassociâls, 'com refefêiidã "ãõs"EriciClópédistas: ou de Sociologia, em face de

,,ª, . es como Cómte, Stuàrt Milr ou Spéncer, é~.:prºpp~ente falando, . umaCJ::!1 sofia da A ão HunÜiria'::- -éómpreendendó--ieflexões que'seàplicam a carac-

teres ou atributos universais da natureza humana e mdaga ões em que essana-tureza ê' eXPlica .aatraves de' elementos variáveis 'das condicões e ex1Sêncíasocial. O que'1mporta,em conjunto, são o encadeamento e a díreção-que tais~I1exões e indagações acabaram tomando. ..... .: . ._-

O encadeamento se revela na fràgmentação da Filosofia da Ação Humana,desdobrada em três níveis diferentes de consideração da realidade; 'Ela'se apresen-ta como uma Filosofia da História, quando procura associar o presente ao passado

. e descobrir as "leis" do desenvolvimento do espírito humano. Ela se torna umaFilosofia-Social, quando pretende evidenciar as funçºc::s~'civilizadoras': da yiºª:emsociedade, estabelecendo as primeiras vinculações dinâmicas, de sentido universal,<ta natureza humana com as situações de convivência social; e quando se volta paraa quêstão so~ial ,de cuja análise retira. o caráter de Filosofia das condições atuaisde. existência humana e do seu devir, Ela assume as proporções de uma FilosofiaPolítica, quando liga/por meio da análise e da crítica dos, sistemas políticosmode~nos, os res~ltad~s do.s tipos. de~.:r.eflexã~e de. inda~ações filosôficas; a quepoderiam conduzir-a Filosofia da História e a Filosofia Social. ,

Vê-se, portanto, que a Filosofia da Ação Humana era coroadapor uma 'fi-losofia Política, em cuja base estavam uma Filosofia da-História e uma FilosofiaSocial, Em virtude mesmo de semelhantes vinculações, o pensamento filosóficomoderno se encaminhou da reflexão abstrata para a indagação empírica e para a .anâlise-indutiva. A acumulaçãódedados e sua manipulação intelectual se im-punham tanto nas elab~gões' da Filosofia da História e da Filosofia Social, quan-to nas contribuições d~losofia Política. O exemplo de Comte, único pensadorem que as três disciplinas filosóficas sefundem, construtivamente, demonstra quea filosofia Política; além de aproveitar os resultados das outras duas, precisavaresolver problemas empíricos específicos, nascidos do exame das origens sociais ouda significação. ideológica e pragmática dos sistemas políticos coexistentes em lutapelo poder. Tais tendências para a análise empirica e indutiva sublinham quãoprofundas foram as transformações de direção, sofridas pelo pensamento filosóficomoderno, sob o impacto dos ideais de conhecimento científico.

Portanto, os móveis e as ambições intelectuais, que deram sentido e orien-taram as investigações pioneiras 'no' campo da Sociologia, possuíam natureza fi-losófica,ainda que esta fosse corrigida e ampliada pelas influências do pensamen-to científico. A rigor, durante a primeira metade do século XIX não existe uniaSociologia. propriamente científica, mas uma Filosofia daAção Humana. Mesmoem época mais recente.i as tentativas de Spencer, de Schãffle, de Lilienfeld, deGumplowicz, de Greef ou de Worms, de construir a Sociologia como um sistema

. logicamentecompleto de conhecimentos; sob a inspiração ou não do Organicismo,

L••••••...•.~--~---------

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A herança intelectual da Sociologia ~ 17

só contribuíram para perpetuar as concepções prê-científicas de trabalho, her-dadas. da Filosofia da Ação Humana. Isso não implica, porém, em que se condene.e rejeite, por "filosófica", a Sociologia do século XIX. A constituição da Socio-logia, como discipliná científica, seria inconcebível se aqueles motivos e ambiçõesintelectuais, de natureza filosófica, não tivessem inspirado e dirigido as modernasindagações sobre a natureza humana e suas relações com as condições de existên-cia social.(1) .

Em dois pontos essa verificação é incontestável. Primeiro, naquilo que se tem.descrito como sendo a revolução copernicana, que proporcionou o advento dasciências sociais: a. transição do "ponto de vista normativo" para o "ponto de vistap,?sitivo", na interpret~çao dos fenomeno~ soc!ais. E certo que essa transição fOIcondiCionada e impulsionada pela secularização dos modos de conceber e de ex-plicar o mundo nas sociedades modernas. No que concerne à explicação da na-tureza humana e de suas relações com as situações sociais de existência, contudo,ela se processou, intelectualmente, pela transformação da antiga Metafísica emFilosofia da Ação Humana. E foi no seio desta que surgl\Le.sedesenvolv.eu a ten-dência a considerar as situações sociais de ,existência através de instâncias em-píricas, pelo recurso à'ãnâli~~indutivãecom~!ll ~érJ.º-~~(orçQ.paraconte.rm,flqên-cias.perceptíveis_9-ºL~n..tLm.e.ntQS. de idéias preconcebidas ou de valorizaçõeset-noéêntncasõasatividades cognitivas. '

Segundo, a natureza humana só poderia ser conhecida e interpretada so-ciologicamente como parte de um sistema decretações com senti~pois o compor-tamento dos seres humanos, individual ou coletivamente, é reguado por normas,valores e instituições sociais. Em conseqüência, a observação, a descrição e a inter-pretação da vida social humana exigiam categorias de pensamento especÍais, quenao 1;'~ª.!.a..11!.~~!..~Ll'l.9~onhecimento Usico do mundo exterior; voltado paraumsistema de relações destituídas de sentidº2Çs>Jnte...apr.eendeu..o.prQb.lemacom.genialidade,ao reconhecer' qüecabiá ã 'SocfólQgia lidar com conceitos nos quais oslimites' de aõslraçãõ do geráf seriam conaiCióiiittlospela extremacomplexidade dosfenômenos sociais. Isso eqiiivàii1l'à""'aammr~":eriiiermos"diferentes, o princípiosegundo o qual os conceitos e a-explicação científica das atividades sociais hu-manas sãodelimitados; formalmente;' peIo universo 'émpírlco de sentido a que sereferem (Dilthéy). Portanto, é evidente que, sem os recursos conceptuais legadospela Filosofia da Ação Humana, a Sociologia estaria privada de categorias de pen-samento plenamente adequadas ã realidade social.

Esses dois pontos esclarecem uma questão fundamental: a Filosofia da AçãoHumana não serviu, apenas, de veículo à Introdução do espírito cienfíficó tlº~~.~~_tudo' da vida social humana. Ela própria representa uma fase construtiva.dodesenvolvimento da Sociologia. Suas limitaçõese inconsistências acabaram, com otempo, por entravar o progresso científico das irívestigações sociológicas, por causada importância que se chegou a atribuir a problemas sem significação teóricaprecisa ou da negligência do valor da pesquisa;:empírica sistemática. Entretanto,

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)(1) Adiante, por causa das implicações dessa análise, a'Filosofía da Ação Humana será designada

com a expressão Sociologia "Filosófica". A escolha desse termo permite caracterizar melhor a signi-\: ficação da Filosofia da Ação Humana do ponto de vista dll1,Sociologia (ela também tem importância

. /' para a Economia, para a Política, para a Etnologia e para a psicologia). Doutro lado, existem correntesi;;e contribuições da "Sociologia do século XIX" cuja natureza hão pode ser determinada através de vin-

I;culações com a Filosofia. Isso indica a necessidade de introduzir qualificações, que separem uma das\ outras as tendências do pensamento sociológico naquele século. .

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18 - A Sociologia como ciência

seriam pressentidas tão depressa as limitações dessaespécie, se ascontribuíções"filosóficas" dos pioneiros e fundadores da Sociologia não tivessem concorridopara a formação de ideais de trabalho verdadeiros e consistentes? A alteraçãoinevitável do clima de produção intelectual e das preocupações centrais dos inves-tigadores não deve prejudicar o reconhecimento desse fato essencial.

Feito esse rápido balanço, conviria indagar em que consistiam os resultados aque chegara a referida Sociologia "Filosófica". Na caracterização. do objeto daSociologia: a) formalmente, ela continua a ter grande atualidade; b) materialmen-te, ela se tornou obsoleta. Isso é fácil de entender-se. É que a caracterização formaldo objeto da Sociologia era, no fundo, um problema lógico. Sua única implicaçãoessencial dizia respeito à determinação do elemento inconfundível e invariável doponto de vista sociológico. Um problema dessa espécie podia ser resolvido inde-pendentemente do acúmulo de conhecimentos empíriccdndutivos e de fato o foi -pela evidência de que as manifestações da vida social possuem uma ordem própria,cuja estabilidade, diferenciação e integração se produzem através de processossociais. A caracterização material do objeto da Sociologia encontrava, Qorém,sérias dificuldades. De um lado, por causa da escassez de conheciment()s socio-lógicos positivos sobre um número suficientemente variado e extenso de situaçõespossíveis.de existência social. De outro, em virtude da tendência a confinar osproblemas sy:bstantivos da análise sociológica às sociedades européias mode~asou a fazer deras o fulcro do pensamento sociológico. Em tais circunstâncias, não éde estranhar o recurso a analogias, que permitiam dividir o campo da Sociologiade acordo com paradigmas tomados a outras ciências.

A terminologia representa uma esfera do pensamento científico cujo progres-so é lento. Aí o progresso acompanha e. reflete o grau de rigor atingid~ na for-mulação dos problemas a serem investigados e na verificação dos resultados das'pesquisas. Por isso, se foi apreciável onúmero e a qualidade de conceitos legadospela Sociologia "Filosófica", muitos dos quais se conservam até hoje com a mesmasignificação, dela não resultaram influxos construtívosr'a) seja no sentido daprecisão terminológica; b) seja no da escolha de critérios, para 'a seleção e a or-denação sistemática de~ceitos sociológicos de interesse heurístico. Além disso,os poucos princípios qu~ntribuíam para a unificação dos conceitos sociológicoscorrespondiam a necessidades lógicas do pensamento filosófico. Isso só.contribuíapara divorciar a critica dos conceitos.do caráter instrumental que eles possuem epara aumentar as confusões nascidas do caos terminológico.

Na elaboração dos recursos de natureza científica, destinados à observação,descrição e interpretação da realidade, as soluções conseguidas também se ins-creviam antes na órbita do pensamento filosófico, que na do conhecimento cien-tífico.G\ convicção de que o princípio da "uniformidade do mundo exterior" seaplica, aos fenômenos sociais humanos e de que estes estão submetidos, portanto, auma ordem social, deu margem a rápido progresso na assimilação dos caracteresformais' e gerais do conhecimento científico pela Sociologia":\Essa circunstânciateve enorme importância prática para a criação e a difusão11'e o.uJr.ª~,cQmdcçõesnela fundadas, segundo as .quais o pontode'-Vi~taliociológico seria togícamentenecessário .e cientifiçªmen.!tiegiti~as.-nã,o __PQdiaSi.ls,Ç,itªr--,jJ.oiSLineSmã;~-UIDestado de espírito que "ãsSegurasse condições propícias ao desenvolvimento igl;!al-

-mente-rfl.p-idQd~pesquisa ernpificifsistemãtica, ârea na 'qüat 'se 'fõijam"e'rêfiii'amos recursos da investigação científica .. ,' ',-:~:,.:, ..,-' " ,. "'''.. , ---'

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em "conseqüência; no esboço mais completo de uma teoria da investigaçãosociológica, que ê o de Comte, são parcas e, às vezes, até negativas.(2) ascon-tribuições referentes às técnicas e aos métodos de pesquisa, sem que suceda algomelhor com as sugestões concernentes às técnicas e aos métodos de interpretação,recomendados para as tarefas de construção e de comprovação das inferências in-dutivas. Neste particular, .é admissivel que a formação da inferência indutiva pormeio da "análise racional" (segundo a expressão de Cournot) , chegara a alcançarrelativa consistência e acentuou o desenvolvimento da Sociologia como ciência 'nomotética' O mesmo não se pode dizer, entretanto, da tendência à comb1l!,ªçãô

e lOSãnclas empíricas discretas ou incompatíveis na construção de inferêncías"indutivas", do hábito a dispensaras evidências empíricas das generalizaçiklS_f;;g9abuso da indução por analogia.c Aquí se acham os piores traços da Sociologia"Filcsôfica" do século XIX e as principais fontes de deformação da mentalidade,científica, que operavam dentro dela.

'No plano da teoria,' é preciso distinguir duas ordens de alvos naquela So-ciologia "Filosófica": i?) os que se definiam formalmente, como conseqüência danatureza da Sociologia como ciência nomôtêtica; 2?) os que se colocavam na inves-tigação de situações histôrico-sociais de existência humana. Muito se tem escrito arespeito das inc~istências do primeiro tipo de alvos. Resumindo-se os argumen-tos, constata-se\!l as explicações sociológicas insistiam, com parcialidade, na.in-fluência dinâmica de determinados fatores, escolhidos pelo. sujeito-investigadorcomo "fatores determinantes" ou como "fatoresdominantes" (como nas diversasmodalidades de "determinísmo" geogrâfico.rêconômico, racial, etc., que tiveramimportância na Sociologia)@a análise da diferenciação social se fazia sob mo-.delos inadequados, conduzindo à representação da "evolução social" como umpro<;ess.,!li~ear, con~~uo e invariável;@as pretensões '~ constituir a S~~~logiacomo clencla!l0moteilca levaram ao exagero a preocupaçao pela descoberta.e for-mulação de leiSsociológicas gerais, destituídas de qualquer significaçãoempírico-indutiva. Essas criticas omitem o essencial, que é a ausência.de uma compreensãopositiva e consistente do papel da teoria na investigação científica. O segundo tipode alvos é mais afim com as modernas preocupações de pesquisa empirica siste-mática. Como eles se misturam, com freqüência, às preocupações referidas nositens a) e b), acabaram sendo negligenciados pela maioria dos especialistas.Todavia, eles exerceram uma influência construtiva. De um lado, porque orien-taram a anâlise :>?cJ2J9~i~apara pequengs massas de dados homogêneos (como nosestudos hístôrícô-socíolôgícos de Proudhon, de von Stein, de Marx, e mesmo emtrechos de tentativas mais ambiciosas de análise comparativa, como as empreen-didas por Malthus, por Comte ou por Spencer). De outro, porque demonstraram,desde logo, que havia uma contradição entre os modelos de explicação tomadosdas Ciências naturais e as possibilidades da generalização nas investigaçõesso-ciológicas. Dai a convicção, ue toma' alento e cresce continuamente durante o .

) ~~culo X 'd CIO o ia . ~om sistema~..9.escQntínuos, sendo a validade LI das "leis sociológicas'~ 1!!ª,!iY~~~0 de~2!1~!!! ~s tiP.~sSociais i~!~~~igados.' \'

O verdadeiro circulo vicioso que se estabeleceu nas relações mútuas da teoriacom a 'pesquisa, na Sociologia, lança suas raízes mais profundas nessas duasorientações teóricas do pensamento sociológico no século XIX. Uma delas afastava

(2) Atente-se, por exemplo, para as conseqüências da condenação da Introspecção, que inspirou,durante muito tempo, as resistências contra o uso de documentos pessoaís'na Sociologia,

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20 - A Sociologia como ciência

a reflexão teórica da pesquisa empirica sistemática. A outra'; confinava a pesquisaemp!r~ca\ sistemática a a}vos teóricos. em que n.ãose evi~en,d~va, com toda' aprecisao e clareza, o carater nomotêtíco da explicaçãosociológica, Bem ponde-radas as coisas, entretanto, verifica-se: que semelhante circulo vicioso não é umproduto específico da Sociologia "Filosófica" do século XIX. Ele parece ser, acimade tudo, a expressão das contingências da 'investigação científica em uma disci-plina que se vê compeli da a criar instrumentos de trabalho adequados ao objetomais complicado e dificil, a que a ciência jamais se propusera: a natureza e as for-mas da existência humana em sociedade. '

Por fim, em um ponto liSociologia "Filosófica" parece ser Inconfundivelmen-te rica: na esfera dasreflexões práticas. Aqui, onde não revelam empobrecimentocrescente, os desenvolvimentos posteriores da Sociologia mantêm íntima conti-nuidade com as tendências sociológicas do século XIX. A que se devem taisprogressos? Pelo que se sabe, muito mais aos influxos construtivos do pensamentofilosófico e da consciênciaracional dos objetivos dos movimentos sociais, que aosresultados diretos da investigação sociológica dos problemas sociais. O fato de nãose ter descoberto, na época, uma solução satisfatória para a sistematização dostemas da Sociologia Aplicada demonstra que essa interpretação é verdadeira. Omáximo que se conseguiu, em tal direção, aparece na idéia (atualmente inacei-tável), de que existem fenômenos sociais patológicos, .objeto-de estudo da "pa-tologia social", considerada como disciplina sociológica. Portanto, inclusive na es-fera em que se mostrou mais fecunda e criadora, a Sociologia "Filosófica" não dis-pôs de recursos metodológicos e teóricos que facilitassem a superação das dificul-dades essenciais, com que se defrontou. .

Com base nos resultados da presente digressão, êIegítimo concluir que aSOCiologia recebeu uma herança intelectual comparável a uma faca de do~ gumes.De um lado, ela era bastante rica e plástica para encaminhar e 'permitir a soluçãode muitas questões fundamentais, ligadas com a caracterização do ponto de vistasociológico, com a definição do. objeto da Sociologia, com a seleção e o aprovei-tamento de categorias de pensamento adequadas à natureza dos fenômenos sociaishumanos, com a exploração de critérios de análise aplicáveis à descrição e à inter-pretação dos processo~iais, com os alvos práticos inerentes aos conhecimentossociológicos ou decorré1Res das funções da ciência no mundo moderno. Mas, deoutro, ela se revelou pobre e obstrutiva. Escaparam-lhe os objetivos que dão.sen-tido específico à investigação científica e; com eles, a significação e a importânciada pesquisa empírica sistemática, tanto para O desenvolvimento do aparato con-ceptual e metodolôgico da SOCiologia, quanto para o progresso da teoria e das in-dagações de interesse prático. Foi neste plano que os.hábitos e as ambições intelec-tuais, procedentes do pensamento filosófico ou do conhecimento do senso comum,se mostraram mais ou menos inconciliáveis com.as tarefas impostas pela pesquisacientífica. 'Em conseqüência, a: evolução posterior da Sociologia, em direção àsnormas e aos fins da investigação científicavteve que.se processar, em' grande par-te, contra .a herança intelectual por ela recebida. .

1III vKIG'N~L

PASTA 67006

FlS.

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Capítulo I

OS PRINCíPIOS CONSTITUTlVOS DO CONHECIMENTOSOCIOLOGICO: INTEGRAÇAO E CONTRADIÇAO

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