Solitários Na Multidão o Sentimento de Modernidade

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  • 7/24/2019 Solitrios Na Multido o Sentimento de Modernidade

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    ISSN 1984-3879, SABERES, NatalRN, v. 1, n.8, ago. 2013, 5-16

    SOLITRIOS NA MULTIDO: O SENTIMENTO DE

    MODERNIDADE NA OBRA DE POE E VALRY

    Anna Waleska Nobre Cunha de Menezes1

    RESUMO

    Constitui-se de um dilogo entre os contos de Edgar Allan Poe, intitulado O Homem dasMultides e o de Paul Valry, intitulado Senhor teste e os apontamentos acadmicos deMarshall Berman, Walter Benjamim e Edgar Morin a fim de elucidar o sentimento demodernidade expressos por estes autores. Partindo da premissa de que as obras de artedialogam com teorias acadmicas e auxiliam sobremaneira na sua compreenso, foi que esteestudo teve como motivao inicial compreender o cenrio intelectual da modernidade

    europia, baseado no princpio de que toda transformao do mundo ao redor conduz autotransformao dos sujeitos e na concepo de Walter Benjamim, para o qual amodernidade se traduz em sentimentos de possibilidades infinitas, desafios e novidades, osquais ambiguamente convivem com o terror da desintegrao e da desorientao. Em ambosos contos no h interao social do narrador com a multido, as pessoas no tm voz, nemnomes, so apenas funcionrios e parte do fluxo da cidade. Contudo, enquanto o conto de Poeapresenta uma alternativa que expe a prpria fronteira da racionalidade (visto que asingularidade algo perscrutvel, porm incapturvel), o de Paul Valry travou uma batalhacom as prprias ferramentas da razo para no ser dragado pelo fluxo da multido. Ambas asalternativas literrias surgem como opes acadmicas na explicao de como se constitui osentimento de modernidade.

    Palavras-Chaves:Modernidade. Multido. Solido.

    ABSTRACT

    It consists of a dialogue between the tales of Edgar Allan Poe, titled The Man of CrowdsandPaul Valry, titledLord Testand academic appointments Marshall Berman, Walter Benjaminand Edgar Morin to elucidate the sense of modernity expressed by these authors. Assumingthat the artworks dialogue with academic theories and greatly assist in their understandingwas that this study was to understand the initial motivation intellectual scene of European

    modernity, based on the principle that every transformation of the world around leads to self-transformation the subjects and the design of Walter Benjamin, for which modernity translatesinto feelings of endless possibilities, and new challenges, which ambiguously live with theterror of disintegration and disorientation. In both stories there is the narrator's socialinteraction with the crowd, the people have no voice, no names, and officials are just part ofthe flow of the city. However, while the tale of Poe presents an alternative that exposes thevery frontier of rationality (since uniqueness is something explored, but uncatchable), PaulValry fought a battle with the tools of rationality not to be dragged by the flow from thecrowd. Both literary alternatives appear as academic options in the explanation of how it isthe feeling of modernity.

    Key Words:Modernity. Crowd. Feeling of loneliness.

    1Doutora em Cincias Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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    1 INTRODUO

    Com o objetivo de explorar a sensao de desterritorializao experenciada pelo

    homem da modernidade e as suas formas de racionalizar tal situao, a presente anlise

    buscou um dilogo entre os contos de Edgar Allan Poe e Paul Valry e os apontamentos

    acadmicos de Marshall Berman, Walter Benjamim e Edgar Morin. Esta construo se d sem

    a inteno prvia de defender ou criticar correntes tericas, mas sim, parte da vontade sincera

    de reconstituir o ambiente intelectual dos pensadores modernos e, com isso, dar um passo

    frente na compreenso de suas obras.

    Estudar as formas de expresso advindas dos primeiros produtos e construes

    industriais auxilia a compreender o contexto no qual surgiram as teorias modernas assimcomo ajuda a dimensionar em que aspectos as mesmas compartilham do carter expressivo

    dos produtos materiais que lhe so contemporneos. (BENJAMIN, 2006, p. 502)

    Neste sentido, esta reflexo parte da questo: Como o cenrio intelectual da

    modernidade europia permeou a obra dos modernos? Acredita-se que viver a modernidade

    seja perceber a vida como um processo constante de autotransformao e transformao do

    mundo ao redor e que isto promova na sociedade moderna um desenraizamento tamanho que,

    se no incio traz o vio das descobertas, mas por fim, tambm acarreta certo terror dadesintegrao e da desorientao. (BERMAN, 1986)

    Conviver com este paradoxo e demais contradies sociais passa a ser uma

    necessidade do Homem Moderno. Tal conflito no lhe externo, mas sim uma extenso de

    seu prprio conflito interior. Para lidar com tantos paradoxos, as organizaes burocrticas e

    os empreendimentos baseados na lgica cientfica se voltam para a busca das regularidades

    dos fenmenos sociais, alm de apresentarem um grupo de atitudes que propiciem um maior

    apoio emocional a to desconfortvel experincia. Estes indicativos se condensam no que sepode chamar de moderno desejo de desenvolvimento, uma busca de conforto _ e sentido _

    futuros.

    Esta busca de construo do futuro refora o sentimento da vida escorrendo por entre

    os dedos efaz com que o Homem Moderno vivesse numa constante briga contra o Tempo e

    sua inexorvel passagem, apesar de saber que entrou em uma batalha perdida. Nas palavras de

    Berman (1996) o homem moderno quis ser super-homem em vez de autntico ser humano,

    com isso, paulatinamente, o tempo da natureza e de seus processos vai sendo substitudo pelo

    tempo da mquina e da criao humana.

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    Portanto, ao desenraizar-se dos referenciais naturais, ao viver a possibilidade de

    construir um desenvolvimento futuro, ao assumir a responsabilidade de moldar e segurar o

    tempo pelos cabelos, o Homem Moderno experimentou sentimentos que oscilavam entre o

    poder divino e impotncia total. Deixou de ser parte de um todo social para sentir-se este

    Todo e, certamente, associado aos aglomerados urbanos em ascenso, sentia-se parte annima

    de uma multido, sensao que melhor capta esta dualidade de estar sozinho entre tantas

    pessoas.

    2 PERCEPES ARTSTICAS DA MULTIDO

    Edgar Allan Poe escreveu na dcada de 40 do sculo XIX um dos seus contos

    filosficos mais conhecidos O Homem das multides. No cabe a este estudo realizar uma

    anlise literria da obra, mas tom-la como um ponto de apoio para compreender como um

    homem da modernidade se sentia. Ou seja, saber como a partir da multido, o prprio

    indivduo moderno procura se compreender, deslocando-se e procurando o seu lugar nesta

    sociedade.

    Neste conto o narrador se encontra em um caf de Londres e se pe a observar omovimento de pessoas que se aglomeram nas ruas. Interessado pelas coisas mundanas, ele

    busca, principalmente por meio da na linguagem corporal, reconhecer os tipos que passam em

    uma das principais vias pblicas da cidade. Como diz o narrador (1981, p. 392-393):

    A princpio minhas observaes tomaram um jeito abstrato e generalizador.Olhava os passantes em massa e neles pensava em funo de suas relaesgregrias. Em breve, porm, desci a pormenores e examinei com minudenteinteresse as inmeras variedades de figura, roupa, ar, andar, rosto e

    expresso fisionmica.

    Tais passantes, aparentemente atarefados (mas que a narrativa deixa em aberto se so

    realmente aquilo que aparentam), parecem querer disfarar a solido acentuada pela

    coletividade circulante ao redor. Logo, eles buscam abrir caminho na multido, porm no

    conseguem fugir de uma priso identitria: so perfeitos tipos sociais. So mercadores,

    advogados, escreventes, agiotas, batedores de carteira, jogadores, brios, prostitutas,

    mocinhas humildes e tristes, senhoras enfeitadas, mendigos e mais uma pliade de figuras

    humanas que desfilam pela vitrine do caf trazendo suas ocupaes e posies sociais

    estampadas no rosto.

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    Esta dimenso do social e dos seus cdigos tratada de forma irnica pelo observador,

    vista como uma cena ou um teatro cujos personagens vivenciam apenas o seu carter geral.

    Contudo, o cair da noite e a fraca luz dos lampies fazem com que o narrador sinta a

    necessidade de examinar os rostos com mais proximidade e detalhamento, entrevendo que

    juntamente com seus personagens sociais, cada indivduo possua uma histria de longos

    anos.

    A partir desta abertura para a dimenso singular dos passantes que se torna possvel

    ao narrador identificar um indivduo que no se deixa lere que logo se torna um mistrio a

    ser desvendado. Como descreve o narrador: Senti-me singularmente despertado, empolgado,

    fascinado. Que estranha histria no estar escrita naquele peito! Disse comigo mesmo.

    (POE, 1981, p. 395)Deste momento em diante, segue-se freneticamente uma perseguio ao homem

    misterioso, uma metfora da busca de desvendar o que est por trs da dimenso singular do

    ser humano. Deste modo, enquanto a multido possui certo comportamento padro,

    apresentado como um mar de guarda-chuvasou corpos que transitam sem colidir, o homem

    das ruas no apresenta hbitos padronizados, anda sem destino, d voltas, no aparenta ter

    objetivos alm do fato de se recusar a estar s.

    Por fim, o narrador, cansado de perseguir por toda uma noite o homem, desiste deconhec-lo, dando a impresso que persegue a si mesmo. Com isso, Poe encerra o seu conto

    do modo como inicia, afirmando que h alguns segredos que no conseguem ser ditos, neste

    caso, no haveria como a razo capturar plenamente o singular, ela pode at o perscrutar,

    porm, sempre haver uma dimenso indecifrvel, cabendo apenas o reconhecimento de que

    nada mais se saber sobre isto.

    Meio sculo aps a escrita de OHomem das multides, o autor francs, Paul Valry

    escreveu O Senhor Teste (1896), uma srie de dez fragmentos que ressalta o poder daracionalidade na observao e deduo dos fenmenos. O Senhor teste uma espcie de alter-

    ego a partir do qual Valry persegue a lucidez. Apresenta-se como um homem o qual dialoga

    com o autor e cujas principais caractersticas so: a fascinao monstruosa pelos poderes da

    inteligncia, as negaes de Bem e Mal para a revitalizao mxima do Possvel e do

    Impossvel, a paixo amortecida ao que no saiba transformar-se em imagem, em idia, em

    sensao. (VALRY, 1985, p.9)

    Neste conto tambm h um confronto do narrador com a multido, a qual se d em

    um passeio pblico de Paris. Contudo, a percepo sobre a coletividade ocorre sob outro

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    prisma: representa a luta da razo individual com a irracionalidade coletiva, na qual o senhor

    teste mantm sua superioridade por meio da indiferena e do anonimato que o abriga. Ao

    permanecer desconhecido, a multido o protege de no se perder.

    Diametralmente oposto ao velho annimo de Poe, o Senhor teste tem um nome

    (Edmond Teste) e se apresenta como um homem rigoroso, que no admite contradies e que

    odeia o extraordinrio. Sua ateno e memria lanam-se na necessidade de previso dos

    fenmenos sociais. Seu sistema de racionalidade serve para medir os limites e mecanismos da

    plasticidade humana e suas leis de funcionamento, para tanto, com o seu passo militar e

    subjugador, acompanha o narrador em um passeio pblico, representando ele mesmo a

    impossibilidade caricaturalda associao entre rigor e sensibilidade. (BARBOSA, 2007)

    O passeio se d pela manh, enquanto o narrador fuma, l os jornais e reflete sobre osassuntos os quais o jornal diz (que significa verificar tudo o que ele no diz). Neste trajeto,

    esbarra com o Senhor testee sai junto com ele a olhar o suave e incompreensvel movimento

    da via pblica que acarreta sombras, crculos, fluidas construes... (VALRY, 1985, p. 81)

    Em sua descrio, as ruas se apresentam claras, as sombras meigas e os transeuntes se

    parecem com o narrador. Os mesmos so forados a portar um sorriso de acaso, devido

    exposio decorrente da claridade. Ouve-se tambm uma mistura de rudos: passos de cavalo,

    homens que se animam e tudo o que indica velocidade e funcionamento social. Este passeiotranscorre como um sonho, numa espcie de confuso nmero, trmulo na sua grandeza, que

    rene os desfiles, a opulenta renovao do mundo, a transformao dos indiferentes uns nos

    outros, a pressa geral da multido. (VALRY, 1985, p. 82)

    Neste fluxo de barulho e movimento que a opulenta renovao do mundo promove o

    indivduo desaparece, fato este que faz com que o narrador tenha ficado (juntamente com o

    Senhor teste) calado e imvel, com medo de vir a ser um fragmento da multido. Seu silncio

    e imobilismo demonstram tambm que a coletividade lhe oprime, aparecendo como umimenso outrem que aperta-me por todos os lados. Respira por mim na sua prpria substncia

    impenetrvel. (VALRY, 1985, p. 82)

    Como escapar, ento, da opresso da multido? Pensando, prevendo, conhecendo o

    seu funcionamento. Esta a sada que o que resta para que o indivduo possa resguardar a sua

    singularidade no contato com a multido.

    Neste sentido, Valry, assim como Poe, tambm procura pelo o que dele, pelo que

    a sua singularidade em meio multido, como se pode notar nas passagens; no sei o que

    meu: nem sequer este sorriso e a continuao que ele tem (...) O que me faz nico mistura-se

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    ao corpo vasto e ao passageiro luxo de tudo isto, por aqui.... (VALRY, 1985, p. 82)

    Contudo, sua expresso de menos agonia e mais integrao com a mesma.

    Em Valry os passantes se integram ao cenrio do passeio e sua fluidez, como se

    este correspondesse a um movimento transcendental e incontrolvel da vida, como no trecho:

    Uma fora contnua de comeo e fim consome seres, pedaos de seres, dvidas, frases que

    andam, mulheres, um incessante cavalo de cor que arrasta a vida inteira e mesmo instantes

    destrudos em singular vazio... (1985, p.82)

    Um balano que pode ser feito entre estas duas obras inicialmente avaliar que elas

    ocorrem no cenrio da modernidade. Para ambas algumas questes so postas: a noo de que

    a vida ocorre nas ruas, na dimenso pblica do fenmeno social, a necessidade de

    compreender o fenmeno da massificao dos comportamentos, terem como ponto dereferncia o centro urbano para discutir a diluio ou no do indivduo na modernidade, o

    desejo de no ser um fragmento da multido, a busca de sentido para o movimento social, a

    ntida percepo do teatro e dos papis estereotipados que a vida social decodifica e a busca

    de si mesmo e da singularidade do sujeito histrico, que se constri como um observador dos

    fenmenos sociais.

    Em ambos os contos no h interao social do narrador com a multido, visto que as

    pessoas no tm voz, nem nomes, so apenas funcionrios e parte do fluxo da cidade.Contudo, enquanto Poe apresenta uma alternativa que expe a prpria fronteira da

    racionalidade (visto que a singularidade algo perscrutvel, porm incapturvel), Paul Valry

    busca travar uma batalha com as prprias ferramentas da razo para no ser dragado pelo

    fluxo da multido. Deste modo, o primeiro prope mergulhar, sair na chuva, perseguir o

    incompreensvel at sentir que no d e, com isso, descobrir seus prprios limites, e o

    segundo prope uma sada por meio da contemplao e do distanciamento racional, a fim de

    que a reflexo alce o indivduo para fora da multido.O ambiente onrico e busca existencial permanecem, mas o que mudou nestas

    percepes sobre a experincia da modernidade foi a forma como a razo estava sendo

    percebida: limitada para Poe (que duvida sobre as impresses que os sentidos lhe transmitem),

    uma razo absoluta para Valry. Os indivduos tambm sofrem uma alterao nestes relatos:

    de tipos humanos em Poe rudos, pedaos de seres e frases que andam, para Valry. A

    fragmentao do humano acompanhou o avano da industrializao moderna e se acentuou na

    percepo fim de sculo de Valry.

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    Deste modo, observa-se que proporcionalmente oniscincia da racionalidade ocorreu

    uma fragmentao na percepo das pessoas, recebendo o olhar uma posio de destaque

    como atividade livre, podendo ser aquilo que o ritmo do capital no conseguiria comandar.

    No contexto do incio do sculo XX, ambos trataram do aparecimento das grandes

    cidades como uma experincia social inslita, destacando como a velocidade da vida urbana e

    o imediatismo de suas relaes sociais perturbava os espritos. Com isso, essas obras literrias

    conseguem expressar a conscincia da modernidade, traduzindo-a como um sentimento de

    abismo, de sensaes fragmentrias e descontnuas. Uma forma de mecanizao da existncia

    a qual expressava o prprio processo de industrializao no mbito das subjetividades.

    3 BENJAMIN, BERMAN E MORIN: OS SENTIMENTOS DA MODERNIDADE

    O sentimento de desenraizamento e de angstia provocados pelo labirinto

    despersonificado da cidade e dos seus rostos annimos tematizado por Walter Benjamin na

    obra Passagens. Para o autor, o fetichismo da mercadoria, embalado pelo discurso do

    progresso, produz uma fantasmagoria tal que a realidade se apresenta como alucinao

    permeada de sentimentos como: repetio cclica de um tempo mecnico e esvaziado, pavor,monotonia, apatia, desesperana, sentimento de paralisia advindo da percepo do tempo

    como continuidade e repetio sempre cristalizado no presente.

    NasPassagens, o conto O homem da multido citado em meio anlise do flneur.

    Este ser baudelairiano apresentado alegoricamente como um contraponto multido, sente-se

    um estranho no mundo, como analisa Benjamin (2006, p. 983):

    Ele no se sente em casa nem em sua classe, nem na sua cidade natal e sim

    apenas na multido, A multido o seu elemento. [...] A multido como vuatravs do qual a cidade familiar transparece metamorfoseada. A cidadecomo paisagem e aposento. A loja de departamentos como a ltimapassarela doflneur. L materializam-se suas fantasmagorias.

    O espao social doflneur o limiar da grande cidade e da classe burguesa, elementos

    frente aos quais luta para no ser subjugado, buscando abrigo no anonimato da multido,

    fazendo de sua famlia os estranhos e de sua casa as ruas. Sua luta para no criar identidade

    fixa, mas acaba fracassando, visto que o flanar, atitude moderna que se destacada em alguns

    indivduos privados (bohmien) inicia-se como um pthos rebelde da intelectualidade, mas,

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    aos poucos, encaminha-se para o mercado tornando-se uma necessidade para as massas e para

    a prpria circulao das mercadorias. , portanto, digerida pelo capital.

    O abismo secularizado dos saberes e a priso dos seus significados associados ao seu

    contraponto, que a imposio do novo, levam os indivduos a um estado de desrealizao e

    despersonalizao tal que cada instante se torna uma repetio infernal. Este processo se

    potencializa por meio das novas tecnologias visuais, pela submisso total da cincia e da

    tcnica s foras produtivas, esvaziando os contedos da tradio a qual s consegue chegar

    ao presente como acmulo de objetos expostos venda em um antiqurio. Este processo

    denominado por Olgria Matos (2006, p. 132) por patologia do tempo como sendo uma

    espcie de cido moral que destri o organismo de dentro.

    Assim, a ambigidade prpria das relaes capitalistas cria um mercado de valores

    espirituais promovem sensaes de embriaguez e iluses de poder os quais so

    representados em passagens que so tanto casa quanto rua (...) tambm pela prostituta que

    vendedora e mercadoria numa s pessoa.(Benjamin, 2006, p. 985)

    A mesma experincia da modernidade analisada por Berman (1986) no seguinte

    sentido: enquanto a atomizao e a massificao, resultantes do novo processo de produo,

    avanavam na sociedade, sentimentos de desorientao, insegurana, frustrao e desespero,

    ocorrem inseparveis da sensao de crescimento e euforia, os quais passam a constituir asnovas sensibilidades modernas.

    Estas duas dimenses do fenmeno moderno (psquica e produtiva) no se apresentam

    como uma relao de causa-efeito, mas de concomitncia e reforo mtuo entre si. Do mesmo

    modo, em sua dualidade dialtica no h o momento da sntese ou da ruptura com a

    modernidade: ela representa tudo que novo e o seu tempo linear, expansivo e

    homogeneizante.

    Portanto, Berman indica ao longo de seu livro que o j esperado processo autofgicono qual entrou a modernidade ao eliminar todas as tradies, matou tambm o que nelas havia

    de bom e estruturante da sociedade. Continuamente, como um cncer que ataca as clulas

    boas, a modernidade passa a destruir os seus prprios valores de origem, o que leva sua

    proposta de sociedade beira de um colapso.

    Reapropriar-se das vises clssicas da modernidade , para o autor, a nica forma de

    se compreender esta crise da modernidade, nunca resolv-la, mas administr-la. Em um outro

    ponto, a necessidade de superao das formas de racionalizao engendradas pela civilizao

    defendida por Morin (1997) como sendo um jogo que se joga fora dos esquemas da tradio

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    cartesiana, devendo-se buscar uma nova lgica para se pensar o significado do

    desenvolvimento humano.

    Deste modo, Morin afirma que a crise est instaurada para alm da prpria concepo

    de modernidade, ela se encontra em um logoscivilizatrio totalitrio e unidimensional quanto

    a noo de desenvolvimento.

    Apesar de tais distines, Morin (1997) tambm pontua que particularidades

    ocorreram no perodo de desenvolvimento do capitalismo, as quais potencializaram os

    mecanismos de metstase do ego e de perda dos laos de sociabilidade, fazendo com que o

    mal estar que corri toda a civilizao adquira contornos especficos neste momento das

    sociedades ocidentais.

    Sua anlise destaca as perversas conseqncias de um processo de desenvolvimentoreverso da tcnica, da mercantilizao generalizada, do desenvolvimento econmico e urbano

    e da individualizao das pessoas, a partir dos quais impe critrios padronizados e

    impessoais prejudicam o convvio [...] tendendo a fazer da vida social uma gigantesca

    mquina automtica. (MORIN, 1997, p. 137)

    A tecnizao da produo difunde uma lgica na sociedade que subjuga o homem

    cronometragem da mquina artificial, substituindo o processo comunicacional face a face por

    uma coexistncia annima.A mercantilizao generalizada reduz o tecido de convivialidade social devido o

    potencial des-solidarizante do mercado, o qual em sua lgica de custo-benefcio faz definhar

    as relaes de ajuda mtua e gratuita entre as pessoas, as solidariedades e os valores de bens

    comuns no-monetrios.

    Enormes engrenagens tecno-burocrticas advm do desenvolvimento econmico e sua

    conseqente necessidade de interveno estatal, esmagando as expresses de singularidade

    das pessoas, as quais passam a ser dados da gesto pblica e perdem a dimenso da suaresponsabilidade individual sobre a vida da coletividade. A transformao do indivduo em

    pblico e sua des-personificao um fenmeno reforado pelo processo de desenvolvimento

    urbano no qual a cidade transforma-se em aglomerao, conjunto informe para populaes.

    (MORIN, 1997, p. 138)

    O processo de individualizao se caracteriza por uma atomizao dos sujeitos e

    promove o enfraquecimento de um sentimento de sua responsabilizao perante a

    coletividade. Este processo egocntrico reduz bastante a possibilidade de dilogo do indivduo

    com a sociedade, com sua famlia e consigo prprio, propiciando uma disjuno tamanha

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    entre as pessoas e entre os saberes que estas se vem tomadas por uma enorme e constante

    sensao de abismo e de crise.

    Portanto, a civilizao em seu perodo capitalista viu-se potencializada por um

    conhecimento cruel e ao mesmo tempo autctone o qual se constitui em uma engrenagem

    annima que devora a plena existncia humana.

    4 CONCLUSO

    Os contos ora analisados constituem-se em possibilidades de reflexo sobre sua poca.

    Produzidos no campo aberto da arte, conseguiram promover uma sntese de como, no mbito

    dos sentimentos, o homem massificado da modernidade, impelido pelas transformaes da

    realidade externa, buscava na diluio com a multido uma possibilidade para suasobrevivncia como unidade e singularidade.

    Nestas narrativas o indivduo moderno se sente solitrio, perdido em seus valores

    (dessacralizado), exposto antropofagia da via pblica. Logo, v-se (na obra de Poe)

    obrigado a mergulhar e se diluir na multido e em seus papis sociais sem com isso se ver

    ameaado em sua integridade interior. De modo oposto, na obra de Valry o homem moderno

    se apresenta distante e silencioso, caracterizado por um profundo individualismo, que

    despreza ou teme o contato com o outro.O conflito como busca existencial um fenmeno que transcende a experincia da

    modernidade, porm adquire particularidades neste perodo, visto que uma nova ordem passa

    a relacionar o valor das pessoas com o seu preo de mercado, percebendo-as como um

    produto, para os quais as ruas-vitrines expem o fluxo das trocas materiais e imateriais

    capturadas pela ordem capitalista.

    Tendo por base as idias de Berman (1986), o qual parte da noo baudelairiana do

    heri moderno,percebe-se que em ambos os casos os choques com os passantes habilitamos modernos a descobrirem o que eles realmente so.Isto porque de dento deste fluxo de

    profanao da vida social que os autores falam, unidos pela crena na experincia como sendo

    a essncia da vida moderna.

    Deste modo, o ato de conhecer passa pela imperiosa necessidade de vivenciar, ver e

    sentir os movimentos singulares da Histria. Neste ponto, a perda do halo, como processo de

    dessacralizao da vida moderna, apresenta-se como um paradoxo, na medida em que, cada

    segundo da vida social se torna ao mesmo tempo humano-vulgar e histrico-transcendental.

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    ISSN 1984-3879, SABERES, NatalRN, v. 1, n.8, ago. 2013, 5-16

    Tal paradoxo desloca a busca de sentido para a vida dos valores divinos para os fenmenos

    cotidianos da via pblica, para o campo das necessidades mais comezinhas.

    Esta alma pblica do homem moderno aprecia o desfile de espcies sociais sem

    valores morais ou julgamentos adiantados. Apenas os vem como pessoas que vendem o seu

    ser no mercado, constata a fugacidade de viver sempre as experincias fluidas do presente e se

    pergunta sobre a singularidade de um mundo massificado. Para tanto, no ensaio o pintor da

    vida moderna Baudelaire aponta a necessidade (assim como fez Balzac) de se aproximar das

    pessoas comuns, da atmosfera da multido e de sua existncia fluida, lodo segundo ele o

    artista moderno deveria sentar praa no corao da multido, em meio ao fluxo e refluxo do

    movimento, em meio ao fugidio e ao infinito (apud BERMAN, 1985, p. 141)

    Assim, verificou-se como a multido se tornou uma fonte inspiradora para estesautores Modernos, visto que nela se condensam os papis sociais agindo como um catalisador

    que acelera os conflitos sociais e expe suas contradies, causando fissuras no tecido social

    que permitem ao indivduo respirar. Enfim, o homem da modernidade necessita casar-se e

    violar a multido, a fim de sorver seu manancial de energia universal, vista como um

    caleidoscpio dotado de conscincia (BAUDELAIRE apud BERMAN, 1985, p. 141),

    Neste cenrio, a modernidade se vincula com a experincia de maneira tal, pode-se

    dizer que transcende o processo econmico e a viso cultural, tornando-se uma forma deexperincia histrica que media cultura e economia. Esta experincia vem acompanhada do

    desejo de desenvolvimento, que cresce com o homem que perdeu o conforto da eternidade

    divina e que tenta se perpetuar na histria.

    Este desejo de desenvolvimento libera foras criativas e poderes destrutivos, os quais,

    com a perda da culpa e do impedimento moral, devoram o prprio homem moderno. Este

    vislumbra como nica sada expanso dos limites de sua experincia individual de vida.

    REFERNCIAS

    BARBOSA, Joo Alexandre. A Comdia Intelectual de Paul Valry. So Paulo:Iluminuras, 2007.

    BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: UFMG, 2006.

    BERMAN, Marshall. Tudo o que slido desmancha no ar: a aventura da modernidade.So Paulo: Companhia das Letras, 1986.

    MATOS, Olgria Chain Feres. Aufklrung na metrpole: Paris e a Via Lctea. In:BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: UFMG, 2006, p. 1123-1140.

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    MORIN, Edgar. Uma poltica de civilizao. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

    POE, Edgar Allan. O Homem das multides. In: ______. Fico Completa, Poesia &

    Ensaios. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1981.

    VALRY, Paul. O Senhor Teste. Lisboa: Relgio Dgua Editores, 1985.