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sonetos de fumaça

e temporais

e outros poemas indóceis

andré boniatti

Primeira Edição, (do autor)

06/2011

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PREFÁCIO por Jô do Recanto das Letras

“Aplausos para André! 1”

Certos versos, sobre serem simples, honestos e bem escritos, possuem a profundidade necessária à nossa contemplação.

Doces, doces, doces. Há títulos maviosíssimos. E poemas bem desenvolvidos, de real densidade semântica, eu diria "completos" de palavras --- verdadeiras noites fulgurantes! Neles, a obscuridade encanta. O simbolismo das coisas fascina. A dramática visão do Universo faz-nos tremer e temer.

São joias irretocáveis, em que convivem encanto e desencanto, chão e amplidão, angústia e liberdade; verdadeiras odes ao Amor: inspirados, delicados, joviais, filosóficos, ideais... Em suma: suas imagens se tornam nossas logo que surgem; seus delírios nos arrebatam, que indefesas almas somos. Emerge desses textos tão intensos, passionais, declaratórios uma força tal que, pelo conjunto, nos inunda e arrasa. Ò alma, alma... Porque o triunfo, a vitória do poema é fazer-nos evocar algo, mexer conosco, para o bem ou para o mal, para o terror ou a piedade, a grandeza ou o esquecimento...

1 em: http://www.recantodasletras.com.br/homenagens/2122678

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Deveras, sua inventividade nos surpreende, atrai, angustia, consola, harmoniza, quando atinge momentos mozartianos, mercê do tom de humanidade e indignação. Absolutos em termos de beleza; serenidades guerreiras. Eis por que tantos leem Dante Alighieri, Walt Whitman, Omar Khayyam, Florbela Espanca, Fernando Pessoa, Manuel Maria du Bocage, Antônio de Castro Alves, João da Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, Carlos Drummond: --- Pela surpresa, a angústia, a atração, o consolo, a harmonia, a busca da luz que justifique suas vidas sem lógica. Vale portanto o conselho: continuem relendo e trabalhando cada poema como se fosse o seu único e último; leiam mais, escrevam menos e podem sempre suas múltiplas roseiras

poderosas. E, ultrapassando tais questões, finalmente criarão peças definitivas, que, do título ao verso final, se apresentem bem: com estranhas alegorias, ternos tons de nostalgia, envolvente magia verbal...

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para minha mãe

(o que há de mais doce)

serei sempre este:

o mesmo antigo menino

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índice dos poemas

sonetos de fumaça e temporais

PARA UM POETA SONHADOR ........................................................................ 13

AS CARPIDEIRAS DA AVE-MARIA ................................................................... 14

SONETO DE EU MORRIDO.............................................................................. 15

SONETO DE AMOR TÃO MAIS QUE O OURO .................................................. 16

SONETO CONFUSO À ALESSANDRA ESPÍNOLA POETA ................................... 17

SONETO BÊBADO DE VINHO .......................................................................... 18

SONETO DO AMOR DISTANTE ....................................................................... 19

SONETO DE ANSEIO ....................................................................................... 20

SONETO DE AMOR DA COR DO CÁQUI .......................................................... 21

SONETO D INVERNO ...................................................................................... 22

SONETO DE COMPARAÇÃO OU SONETO TÉCNICO ......................................... 23

SONETO EMACONHADO ................................................................................ 24

SONETO PLATÔNICO...................................................................................... 25

SONETO PARA O MEU AMOR Nº 1 ................................................................ 26

SEGUNDO SONETO EMACONHADO ............................................................... 27

SONETO DE AMOR POSSÍVEL ......................................................................... 28

SONETO ALQUÍMICO ..................................................................................... 29

SONETO SERESTEIRO DE EU SEM QUEM ........................................................ 31

SONETO CONCRETO DE EU PASSADO ............................................................ 32

SONETO DE UM OLHAR ................................................................................. 33

SONETO DA AMIZADE ................................................................................... 34

SONETO PRA TI SER ....................................................................................... 35

TERCEIRO SONETO EMACONHADO................................................................ 36

SONETO DO JUÍZO PARTIDO .......................................................................... 37

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SEGUNDO SONETO DA AMIZADE ................................................................... 38

QUARTO SONETO EMACONHADO ................................................................. 39

SONETO DO SEM-SENTIDO ............................................................................ 40

SONETO DE EXASPERO LOUCO ...................................................................... 41

SONETO DE AMOR DA ESPERA ...................................................................... 42

SONETO PARA O MEU AMOR Nº 2 ................................................................ 43

SONETO ININTERRUPTO ................................................................................ 44

AOS PÉS DOS LENHOS DA CRUZ ..................................................................... 45

SONETO MEIO BLUES..................................................................................... 46

outros poemas

O CORVO ....................................................................................................... 51

CANÇÃO DE AMOR EMBALADA À LUZ DA LUA .............................................. 56

UTOPIA PARA UMA PROSTITUTA .................................................................. 57

CAFÉ .............................................................................................................. 58

ACRÓSTICO .................................................................................................... 59

A CASA ERA SILÊNCIO. ................................................................................... 60

COMPREENDA: .............................................................................................. 61

SE SOUBESSEM REZAR AS FLORES ................................................................. 62

HORA BRANCA .............................................................................................. 67

COMPARAÇÃO .............................................................................................. 70

O NEXO DO TEMPO ....................................................................................... 71

O QUE DIZER-SE A UM CORAÇÃO POR CONQUISTAR? ................................... 72

O VOO MAIS ALTO ......................................................................................... 74

QUE TE FALTA OUVIR .................................................................................... 75

RELATO .......................................................................................................... 77

O IMPERFEITO ............................................................................................... 78

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...nada se apaga! Vem sempre rastejando como a vaga... Vem sempre perguntando: “o que te resta?”... Ah! não ser mais que o vago, o infinito! Ser pedaço de gelo, ser granito, Ser rugido de tigre na floresta! (“Angústia” – Florbela Espanca)

***

O rio corre; e assim viver para o rio vale não só ser corrido pelo tempo: o rio o corre; e pois que com sua água, viver vale suicidar-se, todo o tempo. (“Os Rios de Um Dia” – João Cabral de Melo Neto)

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sonetos de fumaça e temporais

1ª parte

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para um poeta sonhador

do sonho que eu sonhava eu fiz meu tempo, do tempo que eu perdia eu fiz poemas, dos poemas mais medíocres, mi’as penas fiz eu que fossem plumas com o vento. do vento que assoprava eu fiz meu canto, do canto que eu cantava eu fiz a vida, da vida que eu vivera entontecida fiz eu entre os meus erros meu engano. do engano que eu fizera incorrigível fiz lendas entre os mitos mais antigos,

fiz teias das aranhas com minh’alma. minh’alma que era eterna então morria e dela, então, mais nada eu não fazia, e fez-se, sem meu tento, o que eu sonhava.

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as carpideiras da ave-maria este soneto, dedico a inspiração a Alex Ferraz

desperto o coração sem norte enegrecido, no enterro do astro rei, às seis horas do dia, compradas pelo horror da doença e do martírio

farão as carpideiras um’Ave-maria! contanto, elas sem fé, as suas vasilhas secas, sem leite nos seus seios, têm crias sem vida no colo ensandecido, e a implorar gritam lentas em coro as carpideiras um’Ave-maria! também seus homens, bêbados, choram, castrados, quais loucos de um hospício, entre túmulos rasos, o sonho em suas crianças sem credo ou valia... e o que há de nos restar, no fim, em choro algoz, quando irmo-nos sem paz, será também a nós as mesmas carpideiras e est’Ave-maria!

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soneto de eu morrido

aqui jaz... um coração que um dia amava, coração que em ser-se só sozinho errava, e eu menino, com o mundo eu fiz promessas, com o mundo, eu fiz canções, eu fui poeta, coração descorçoado de eu exílio, de eu voado, que avoava co delírio, de eu perdido, de eu sem reza ou providência, eu mendigo, que co mundo era-se ausência, aqui jaz... meu coração desobrigado, descansado, um coração de sonho e fada, que vivera sem destino e deslocado, aqui jaz um coração de alma cansada, coração de fardo estulto e também farda, de eu menino com o mundo e sem mais nada.

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soneto de amor tão mais que o ouro

esse louro que te cobre, mais que o cobre, mais que o dobre içando o bronze dos badalos, tão mais áureo, tão mais caro e tão mais nobre e tão mais forte o louro laço dos teus cachos, dos teus braços, dos teus átrios, teus espinhos, teus caminhos de descida e perdição, mais que a unção dos óleos bentos e o batismo teus asilos de suores e oração... mais que o pão, quando o doura a brasa ardente, que a corrente e que o pingente sacrossantos, mais tamanho de que aos anjos, — mais portanto de que sonha o mel no favo a flor ausente, de que cumpre o sol na cana o doce e o quente e teu somente o louro láureo que te canto.

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soneto confuso à alessandra espínola poeta inspirado na obra de alessandra espínola

lápis tênue, em quando o sonho esfuma a forma na fumaça, que esfumando escreve em sombra, que, escrevendo, nunca escreve, pois que a obra da fumaça é ser do fogo o que se sonha; não em ser do fogo a fúria quando queima, mas que queima em ser da fúria o mudo alento, que, se mudo, só emudece em que tateia quando escuro o que não diz senão silêncio. mas carvão que na memória esfuma fala,

não na língua que se entende, na que cala, que se entende só na língua que escrever; pois, que escrito, nunca escrito fora feito que não fosse o que escrever, quando em se sendo que se escreve feto em fase que nascer.

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soneto bêbado de vinho

este vinho que te oferto embebecido co’as mãos trêmulas em cúpula aliançadas, este vinho ne minh’alma envelhecido, ne minh’alma roubo e esparso em muitas almas...

este vinho que das pipas do meu sangue derramado foi-se em ventos andarilhos, — este vinho que das sombras fosse amante, que das sombras fosse o fosso entre os abismos... este vinho que te oferto quase intacto co’as mãos nuas de entre tumbas como um pacto escavando escuridões pra te encontrar, — este vinho é o sentimento com que amo, a paixão com que os meus dias vão sem mando velejando — velas bobas pelo mar...

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soneto do amor distante

se a distância, com que o tempo mede as horas, com que o vento dança em curvas viajante, se esta espera, se este abismo de entre auroras, de entre o ontem e o que sonha-se adiante, esta treva, se este fosso miserável, se esta falta, se este nunca eternamente, se esta inércia do teu corpo inexorável ne minh’ânsia, se esta insânia inconfidente, se esta fome, se eu matasse esta agonia, se eu fugisse — e dos teus beijos me escondia —, se eu pudera ne tua ausência me esquecer, então cria eu lua e céu sem que o teu rosto, sem que o cheiro de tuas cores, sem que o gosto de teus ares me fizessem padecer...

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soneto de anseio

eu quis segredos quando a lua adormecia, eu quis mobílias de silêncio pra dormir, eu quis o sono quando a noite não havia, eu quis mentiras quando não pude mentir... eu quis a sombra pelo sol que me cozia, eu quis a encíclica dos mortos para crer, eu quis a morte quando a morte não viria, eu quis a mira quando o alvo eu fiz perder... eu quis o norte quando o sul me esquadrinhava, eu quis falar em quando eu não tive palavra, eu quis talvez o que jamais eu poderia... eu quis demais, eu quis por tanto que eu partisse e fosse longe, tal que o tempo me eximisse e eu cessasse, e meu anseio, e minha vida.

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soneto de amor da cor do cáqui

tal qual que o cáqui doce e cálido e vermelho o chocolate de tua pele acobreada... eu fosse a uva do teu vinho, — eu fosse o espelho e eu fazia o teu olhar mi’a própria alma; e eu fazia da tua boca o meu veneno — e me matava em que bebesse-te a nudez; e eu despia qual que o cáqui o teu moreno em ter o fruto avermelhado de tua tez... e eu cumpria o juramento da mãe terra, igual que chuva — te tecendo em minha espera e te buscando desde o caule e desde a flor; e qual que sol fazendo o doce no teu riso, — eu fosse deus e eu te fazia o paraíso e me era o cáqui a cor do pomo tentador.

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soneto d inverno

este frio d vento e d trigo e d blusa e coberta e d palha este frio d graveto e fortalha

e d lenha e d abraço e d vinho este frio este inverno gelado este cerro d porta e janela este frio d cravo e canela e d inércia e d fogo abrasado este frio mas aqle d zinco o d ausência d musgo e d trinco o d aqle d pus q chegou o d aqle não outro o d pedra o jardim d cirrose e moléstia o d o canto q a morte amolou

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soneto de comparação ou soneto técnico

(sem cesura e com um movimento solo complementar)

teu sorriso, como se era o paraíso e eu dormia, como o crime que eu morria tão, tão lindo, como o instante que eu vivia o infinito, como qui-lo, o teu sorriso tão, tão puro, como se era o que procuro mas perdia, como o siso que eu sofria tão, tão duro, como a fenda que fendia-me o futuro, como o rumo — frente o muro — tão, tão frágil, como o fino candelabro, como a prata, tão cortante ou afiado como a faca, como a raiva, como o lírio tão, tão vivo, como alguém nunca pudera, como o figo, como o vértice das eras, como o vinho, como qui-lo, como qui-lo,

o teu sorriso...

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soneto emaconhado

de entre os discos voadores que eu pensava quando olhava que o horizonte era sem fim, borboletas fumaceavam desnorteadas com o cheiro das dez rosas do jasmim... . e nas sete maresias da existência, sete noivas que casavam, sete véus, e a beleza de deus pai, sua ciência, sete noites fez deitar de entre os céus... . e os tesouros que guardavam as princesas, nas cavernas dos dragões ou nas clareiras das florestas de segredo e confissão , era a caixa que sonhava os dez mil sonhos, e dos olhos que de há muito eram tristonhos fez-se a fada, e da magia a imensidão.

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soneto platônico

(ou soneto de contemplação)

te navego cos meus olhos esquecido, desistido, eu te navego moribundo, como se eram-me os teus traços meu sentido e eu por isso me existisse neste mundo. te navego como o rio que eu me perdia, como a ilha que isolasse-me eu escasso, como o espaço que jamais se acabaria, como a rima que escandisse o meu cansaço. te navego, eu fora naves, fora ventos, fora velas nos veleiros nevoentos, fora norte que sem bússola atinasse; mas não fora eu por acaso navegante: te navego como a quem por um instante de entre as formas e as essências navegasse.

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soneto para o meu amor nº 1

porque haja um dia em que eu não tenha mais defeito e seja estreito o laço que unge a mim a nós. e seja eterno o que não dure e não tem jeito, e seja inteiro estarmos juntos, mesmo a sós. porque haja ainda um dia a dia noite a noite e assim nos fosse sermos longes, 'té jamais, — e velejar sem nada ou quando e até sem onde a nós nos fosse, sem com que voltar atrás. mas que também, porque haja ainda o sol no sangue, 'inda haja a fome pr'eu sentir tua luz curvar, — jamais por ti, mas para sempre eu te cuidar; e quando réus nos acusarmos num instante, mas que haja ainda a vida inteira a vir avante e a vir constante, em raios d'água, céus e mar.

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segundo soneto emaconhado

pelos veios dos planetas escondidos por detrás da imensidão do ilimitado, pelas cruzes no silêncio e pelo abismo ao vão da pedra e das visões do inabitado... . pelas plagas de segredo e de promessa quando a dança dos cometas desatou, pelos pastos e paisagens mais espessas que co’a alma tão-somente se sonhou... . pelas sombras das fogueiras contestadas, pelo riso de entre os loucos nas estradas, pelo rumo cos caminhos do sem-fim , e por muito, quando o cosmos delirava de entre orgasmos de energia alucinada, pelos éteres dos álcoois e por mim.

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soneto de amor possível

se eu pudera pelos traços dos teus lábios copiar-te co meu sonho os teus sorrisos me riria junto, embora fossem falsos, que eu sonhara, e por sonhá-los tive-os cridos... não que tive-os, que os sonhara eu tão-somente, entrementes, tive-os voos de os mirar, que eu fizera procurá-los cegamente tendo em mente que no sonho iam ficar... se eu pudera eu tecia em teus poemas céus e estrelas, ventos, mundos por achar, eu fizera lua e céu por ter-te o mar; eu pagara co pecado a tua pena, eu pecara co’a razão que te condena, se eu pudera eu o fizera por te amar.

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soneto alquímico dedico este soneto ao amigo fábio, que coleciona sementes

...das sementes, se colheram primaveras, primas folhas para o outono e para o frio... ...do silêncio, fez-se a flor brotar das pedras, e das pedras, fez-se a laje para o rio... ...fez-se o ninho, dos gravetos e das asas, e das casas, fez-se a porta que se

abrir... ...borboletas, do casulo das lagartas, e das cartas, fez-se o jogo a competir... ...com o sonho,

da semente fez-se o fruto, fez-se bruto, com a terra e com o céu, e com os favos, fez-se a flor cingir-se ao mel... ...e... ...com o tempo, lento vento fez-se o mundo,

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fez-se escuro, desde a treva, desde o mar, tal qual semente... ...às mãos de deus, ao cio do ar...

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soneto seresteiro de eu sem quem

seresteiro, eu fiz cantar a madrugada, madrugando eu sem janela, eu sem a quem, dedilhando o passo lento de mi’a estrada sem caminho, eu sem violões, eu sem ninguém... co’a canção que de meu choro se embebia, — sem valia, eu filho pródigo sem luz —, fui buscar quando era escuro a quem me ouvia, mas de sina a solidão tinha eu de cruz... seresteiro, sem ouvido que escutasse, eu cantei por ter alguém a quem cantasse, a quem pudera em meu silêncio soletrar; mas as horas madrugando me aterraram sepultando-me as canções que se sonharam e o meu canto pois por fim fez se calar.

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soneto concreto de eu passado

fiz sonhar a minha vida que vivê-la tive medo de viver que o mundo fôra fôra o canto que cantara que a certeza que de aos pássaros passado que se avoa fôra então o descaminho que o juízo sem o siso fôra doido caminhar caminhava mais de bebo que andarilho fôra o tento qual a onda que do mar foi-se mais do que de tudo que eu não tinha tive tudo que eu não tive e não sabia fôra antes que eu soubesse que de tempo que o sem tempo mais o fôra o que sem rua que sentado fôra até que o testamento testemunha do concreto que da lua

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soneto de um olhar

teus olhos bobos, meio zonzos com os meus, teus olhos bambos com a estrada e com o breu e com a névoa, os teus olhos, procurando, teus olhos curvos com a noite me arroubando, e com as curvas os teus olhos retilíneos, co desalinho se alinhando embora esguios, e embora certos, errabundos co mistério, teus olhos vôos me avoando meio aéreos... que querem eles, os teus olhos, me buscando??? será que rir em quando o escuro vão trilhando ou querem eles com os meus jungir a vida??? pois que, me explica, em quando cambos me encontraram não foi que os ventos que sem norte se assopraram entrechocaram cos meus olhos tua trilha???

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soneto da amizade

amizade é quando só não se é sozinho, pois que leva a solidão de um pensamento o pensamento de que o teu maior amigo não se mede co’a distância nem co tempo; nem se pode dirimir-se na descrença, nem na fúria depressiva de um doente, que um amigo seja o irmão que lhe compensa a dor do mundo, a dor d’a gente ser a gente. amizade é muito mais que uma existência, é ser-se só em que se nunca faça ausência, é compreender que em se viver ainda há abrigo. e se o peso do teu fardo te aporrinha, a- inda lembra que em viver tiveste em vida a esse alguém que tu chamaste o teu amigo.

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soneto pra ti ser

descer teu corpo com o gosto do morango, cavar teus flancos, teus desejos, teus delírios, cumprir espinhos pelas rosas do teu pranto, fazer-te espanto em meu pecado e ser-te o riso; ser compromisso ou exigência e não pesar-te, ser tua arte, tua parte, o que te falta, ser tua alma, tua raiva, ser-te a carne e então sobrar-te e ser-te a gula, e derrotá-la; te ser a estrada e caminhar-te sem destino, te ser o tino sem motivo, o teu suplício, te ser por isso o paraíso e assim te crê-lo, e ser-te o engenho, e ser-te o vento, a fantasia, te ser a física, a matéria da tua argila, e ser-te ainda o que eu não fosse por te sê-lo...

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terceiro soneto emaconhado

quando a escada das montanhas do sem tino por detrás das equações da luz da lua se esculpia com o vão dos precipícios de entre os uivos do sereno e de entre as chuvas... . quando o fumo das descidas do oceano co’a fumaça da saliva dos dragões procurava de entre as ilhas e os enganos a quietude no silêncio dos canhões... . quando a curva curvilínea se fechava, quando o fecho a fechadura procurava, quando o curso dos tufões fez-se correr , e em que muito, quando o tempo adormecido penetrava as confidências do infinito, quando o espírito das pedras fez-se crer.

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soneto do juízo partido

na noite eu deito, mas por dentro eu não dormia, ensurdecia, em conversar-me a solidão, e se era só, não era só que em mim vivia, e me habitava, não mais eu, mas a impressão, mas a impressão que me habitava de eu, partido, e confundido, de eu perder-me estilhaçado, em que os fantasmas, que o meu corpo dera abrigo, desencarnassem-me os demônios soterrados; e me assombravam as insônias da sandice, em que os meus mortos, desde a minha meninice, se me exumassem de mi’as tumbas ‘maldiçoados e em mãos trouxessem velas negras combalidas em foz de um morto que vivera a morte em vida e que em vivê-la foi da insânia amortalhado.

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segundo soneto da amizade meu carinho para: ana paula silveira de souza, horácio alves de vargas jr. e silvana vaillões

nas padarias do meu mundo desnorteado tomei cafés co’a cafeína da saudade em me alembrar o pão de queijo afornalhado co fino aroma ingênuo e branco da amizade... a coca-cola em derramar-se entre os poemas que espanejavam-se ao efêmero perdidos, e na fumaça de um cigarro um só dilema: outro cigarro, e o tempo voando ia se indo... ter amizade é ter relógio e não ter hora, é ter que o tempo seja eterno em que se evola,

é estar do lado, é ser de junto, é comungar; porque a tristeza da tu’alma fatigada, em que sem lenço ou documento, em que sem nada, a tua tristeza tem no amigo onde deitar.

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quarto soneto emaconhado

em versos, velhas lápides de cera, cerâmicas de vidro e de marfim, zunidos com o céu buscando estrelas, e as teias das aranhas, e o jasmim... . no centro, porcelanas de silêncio — silêncio, então segredo e confissão; — conversas de delírios pensamentos, e ungüentos, e cavernas de algodão... . depois, diante ventos e colinas, cadernos, documentos e campinas, por luas que jamais se imaginou , na sombra entre os gigantes ‘dormecidos, nas terras dos espíritos vencidos, nos livros, como um lenço que abanou.

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soneto do sem-sentido

porque morresse, e como a morte em mim cavasse em sobre o peito, em que enterrasse o coração, se eu era lápide, e em cimento me afogasse, se me era eu musgo, na umidade da canção. ser-me-ia eu fogo, se no fogo eu consumisse, ou fosse a água, se em beber-me eu me perdia, mas era a fome, que a miséria me engolisse, ou se era sonho, mas que em sonhos se esvaía. eu era o vento, que assoprasse sem o norte, e sem eu mesmo, eu me era foice sem o corte, e se era alguém, em não me ser eu me era nada; e em ser-me eu nada, parafuso que sem rosca, eu me avoava, meio tonto em ser-me eu mosca, e me era eu cruz no cemitério abandonada2.

2 como o era originalmente, o final também pode ser lido assim: "e me era eu cruz, no cemitério, sem a vala."

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soneto de exaspero louco me bate às vezes no meu peito um desespero, um'ânsia louca, uma vontade de chorar, me bate forte como um vento de exaspero aqui no peito, como um choro a soluçar... me bate fundo, como aos berros e aos gemidos, como aos latidos sob a lua enfeitiçada, tal qual a escada que eu descesse ao infinito d’agoniantes e infernosas emboscadas... me bate horrenda a descoberta entre os meus erros, minhas mais tolas secreções repudiosas, os meus delírios, vis paixões, cruéis enleios; me bate assim, qual a maçã inescrupulosa, que, pois, mordida me fizesse sem receios mi’a própria vida a minha dor mais vergonhosa.

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soneto de amor da espera

eu te espero como quem não tem saída, como quem em te esperar tão-só sonhasse, e te sonhasse tal que não vivesse a vida, mas vivesse tão-só o sonho que acordasse, que acordasse em meio à noite estrangulado na fissura inexorável de te amar, mas te amar em como amasse um vil pecado em que o castigo a mim me fosse o não pecar. eu te espero qual meu verso espera a rima, mudo e só, como um poeta sem valia, e, como espero, em te esperar trago esperança, e se demora, e se o juízo desatina, a- inda espero, que esperar-te é minha sina, e se espero, espero tal quem não descanse.

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soneto para o meu amor nº 2

da minha dor eu te farei o meu sorriso e dos espinhos que cravarem-se em teus pés eu lhes farei da minha paz o mecanismo e a carregar-te remarei no meu convés e a te guiar, pr'assim jamais perder-te o rumo, do meu escudo eu te farei a ti a espada e derretido o aço e a prata, a ti eu te juro, eu te farei no torno d'água a ti a calma. eu te farei do medo atroz não ter receio, se assim fizer eu do meu sonho a ti recreio e por esteio eu te firmar no mesmo andor. e se não der, mas algo mais 'inda eu farei, a tua cruz no ombro meu carregarei pra em meu calvário eu ir feliz por ter-te o amor.

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soneto ininterrupto

(ou quinto soneto emaconhado)

quando a noite embrutecer-se atrás do rio. quando veste-se na noite o rio de escuro. eu lhe juro, quando o vento é meio frio,

quando o estio viesse brando em meu "remunho". . eu lhe juro, quando o fel ceder da boca. quando rouca a voz inane se amostrar. com aprumo, em quando for de mim a roupa e estiver eu pronto e rijo para a usar. . e eu lhe juro, em quando o céu cair do céu,

quando o tempo não soprar mais nenhum éon, quando os "oms" da natureza se acabarem ; quando a chuva não molhar ou a canção acabando se acabar ou quando as mãos o construto em seu favor delimitarem.

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aos pés dos lenhos da cruz

- poema da sexta-feira da paixão

aos pés dos lenhos da cruz os pés do cristo jesus e as mãos de maria perdidas aos pés estendidas dos lenhos da cruz aos pés dos lenhos da cruz um grito de morte e de luz e a sombra infinita varria aos pés ‘bevecida dos lenhos da cruz dos lenhos da cruz dos cravos do credo o cristo chorava legando a mortalha ao ranço do pus o cristo chagado nas dores de um berro dizia “perdoa aos pés a desonra dos lenhos da cruz”

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soneto meio blues por fim, veio o tempo (aziago ou coral) da flor no cabelo, do véu um’outra vez, do senso insurreto do bem e do mal, do amor, mas maior e perfeito talvez... o tempo (diuturno) da paz e do todo. por fim, veio o tempo, este etéreo e esfuziante, da música insone, a poesia de arroubo no peito encravado, do sol no semblante... o tempo sem tempo, o cantar sem razão, sem culpa ou receio ou espinhos na mão, o tempo, por fim, infindável, pra sempre! um tempo sem cruz, toda cruz fosse foz, chegada e colheita, eis um tempo sem nós! um tempo portento, real pela frente...

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outros poemas

parte2

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O essencial é invisível aos olhos. (Antoine de Saint-Exupéry)

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O Corvo

(Adaptação de “The Raven” de Edgar Allan Poe para o português brasileiro, observando o ritmo e o conteúdo

originais) Certa vez, enquanto exíguo, sobre muito livro antigo De ciência alheia e ida, à meia-noite triste, ao cais De meu olho que se fecha, leve bate alguém que vela, Feito alguém que ao quarto espera, espera à porta e bate em [paz. “É visita”, eu murmurei, “que ao meu quarto bate em paz, É só isso e nada mais.” Ah, tão claro é que me lembro, foi no gélido Dezembro: Cada brasa a se extinguir assombrosa sombra faz. E eu buscando vir o alvor; pois no livro este leitor Não deixava nunca a dor por Lenore que agora jaz, - Por Lenore, que agora a chamam só os angélicos corais -, Aqui dita nunca mais. E aos farfalhos de cortina roxa, incerta, entristecida, Me assustava, me cobria de terrores nunca atrás Revelados, pois, com isso, pra aquietar-me, repeti-o: “É visita, é só um amigo que ao meu quarto bate em paz, É visita, vindo tarde, que ao meu quarto bate em paz -

É só isso e nada mais.” Em minh’alma, nesse instante, cresceu força nã’hesitante E, “senhor”, disse eu, “senhora, a quem bate já vou lá, Pois que quase a vista encerra, sua batida, leve que era,

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Indistinta que viera ao meu quarto, vinda em paz, Mal e mal eu vim a ouvir” – escancaro a porta e a paz Vi e o escuro e nada mais. Hirto, tempo estive haurindo fundo o escuro, refletindo, Temeroso, em sonhos indo de nenhuns mortais, jamais!; O silêncio sem estorvo... a quietude sem um rosto... Mas ouvia amiúdes sopros, e “Lenore!” diziam tais. Eram ecos me voltando, e “Lenore!” diziam tais. Era isso e nada mais. A voltar me pus pro quarto, me queimava a alma, e alto Outro som agora ouvia, então mais forte que os demais. “Certamente”, eu disse alerta, “deve ser algo à janela, Vamos ver que bate nela, esse mistério ler voraz, - Coração meu, Ó, se acalme, pra o mistério ler voraz –, É só o vento e nada mais.” A persiana abri de soco, quando bruto adentra um Corvo

Imponente e esvoaçante, dos passados magistrais. Sem nenhuma cortesia num qualquer instante, acima Do portal do quarto se ia, em seus modos bem tais quais De uma Lady ou Lord pôs-se num de Palas busto, e em paz

Pôs-se ali e nada mais. A ave de ébano distrai-me, então, e à mente um riso traz-me Sua austera e grave pose em expressões assaz formais,

“Mesmo em crista rota é arrosto”, disse audaz, “sim, é um [torvo,

Não covarde e antigo Corvo a vir das trevas infernais: De Plutão, qual é o seu nome, em suas Trevas Infernais?” Disse o Corvo, “Nunca Mais”.

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Tão surpreso, ele dizer-me, o atrapalhado esclarecer-me, Mesmo pouco em seu sentido, suas Letras tão banais; Nenhum homem vivo ainda teve a graça dessa vista, A de um pássaro, esse acima do portal do quarto em paz - Essa besta ou ave posta sobre o busto, afeita em paz - De tal nome, Nunca Mais. Mas, só, o Corvo além não disse, sobre o brando busto ouvi- [lhe Essas únicas palavras, como houvesse tudo em tais. Nem mais mesmo balbuciou, pena alguma ele agitou, ‘Té que os lábios me tocou, “Tanto amigo em vens-e-vais: Também ele vai no alvor, como a espr’ança, em mi incapaz.” Disse a ave, “Nunca Mais”. Me estarrece sua resposta que tão pronta veio posta, “Com certeza”, eu disse certo, “nenhum termo sabe mais, Teve um breve pobre mestre que a Desgraça, que endoidece, Perseguiu à sorte e agreste ‘té sobrar refrão sagaz,

‘Té que o Réquiem da Esperança soasse só um refrão sagaz, Sempre ‘Nunca - Nunca Mais’”. O voador inda distrai-me e mais riso à mente traz-me, D’imediato uma cadeira giro à porta e aos dois demais A deixar-me então caído ao veludo, já exaurido, A me dar razão, sentido, àquela ave d’ancestrais, Que o agourento, grave, horrendo, bronco e seco d’ancestrais

Crocitou com “Nunca Mais”? E sentado dediquei-me à resposta e não falei-lhe, À ave de olhos inflamados me queimando o peito em ais; Isso e mais conjeturava, e a cabeça confortava No veludo da almofada - sob lampião de pios luzais -,

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Mas na cor violácea dele seus cabelos sob luzais Não, não vejo, ah, nunca mais! Serafim, o qual não vejo, co’incensório fez mais denso O ar, no chão atapetado de seu passo ouvi sinais. “Miserável”, fui bradando, “deu-lhe Deus, enviando os

[anjos, O nepente ao memorando de Lenore que em terra jaz, Sinta e tome e esqueça agora essa Lenore que em terra jaz!” Disse o Corvo, “Nunca Mais”. “Ó profeta, ó ser do mal! - profeta inda que infernal! - Se enviado do Demônio ou em ventos tormentais, Só, no entanto ensoberbado, em chão deserto enfeitiçado, Neste lar mal-assombrado - diga, imploro aos seus pedais: Não há bálsamo em Galaad? - diga, imploro aos seus

[pedais!” Disse o Corvo, “Nunca Mais”.

“Ó profeta, ó ser do mal! - profeta inda que infernal! - Pelo Deus, qual adoramos, p’las verdades celestiais, Diga a esta alma que fenece se a donzela, ao longe, ao Éden, Santa os braços vão ter entre, entre angélicos corais: Se Lenore vão ter seus braços entre angélicos corais.” Disse o Corvo, “Nunca Mais”. Grito, “esta última palavra, ave ou besta, nos separa”,

Levantei-me, “vá à tormenta e às suas Trevas Infernais! Negra pena, como pista, alguma deixe, essa mentira!... Deixe estar-me como eu ia! vá do posto em que está em paz! De meu peito tire o bico, que o seu vulto vá-se em paz!” Disse o Corvo, “Nunca Mais”.

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Nunca a voar o Corvo acima senta ainda, senta ainda Nesse pálido de Palas busto sobre a porta em paz; E em seus olhos semelhando um demônio ali sonhando, E no chão se sombreando ao lampião a fluir luzais; E minh’alma dessa sombra ao chão flutuando sob luzais Há de erguer-se - nunca mais!

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canção de amor embalada à luz da lua noite de lua lá no sertão, eu dedilhando o meu coração pr’uma guria enfeitiçada, uma princesa desencantada, a lua a odiara por sua beleza e um trato fizera coa mãe natureza, “dou-lhe uma rosa dos meus jardins, dá-me a princesa, teu doce jasmim” a mãe natureza não quis dizer não, queria a rainha daquele sertão, “dou-lhe esta flor pra teu casto jardim, — pérola etérea do branco marfim,

em lugar da rainha que pousa em tua luz, e a minha princesa aos teus lares conduz” “pois’, disse a lua, ‘preparei carruagem, deixa-lhe nua ao porvir da voragem” e assim conduziu-se a trama sem falha, o corpo despiu-se pra ungir-lhe a mortalha, e eu que aguardava as núpcias brancas vi minha amada assumptar pura e santa, brilhando entre trevas partiu me falando, “na noite me vela e eu vou te guiando” saí no sertão, perdi-me sonhando, e o meu coração eu vou dedilhando.

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utopia para uma prostituta

queria ir-se embora. eu disse: "olá, prostituta amiga, não deixes a cidade, - como verei tua alegria promíscua desfilar pelas ruas? minha cidade é mais pequena sem ti. mas se queres ir-se mesmo, e que seja a tua vontade, vai para a cidade das prostitutas! "lá há muito vinho e muita música, há tambores para exu... "lá tem paz, dizem os boateiros. e tem amor em demasia. "lá o mundo é só de noite. seresteiros, boemia. muito conhaque no frio do mês frio, chuva de agosto que é mês de cachorro louco. "vai ver, prostituta amiga, que há um lugar para nós. não sei se no céu ou no inferno ou nesse meio dos dois... no fim do mundo sempre tem um arco-íris, e o nosso lugar é depois do fim do mundo."

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café hoje a xícara, branca de porcelana, tinha a marca do teu batom, pensei na tua boca, tinha o gosto do café. escovara os dentes e fora, tu, tua boca e teu corpo, também fora tu’alma e a xíc’ra partiu. somente o gosto do café ficou na boca e o meu remédio pra dormir. torrei os grãos de meus sonhos no fogão a lenha de teus seios miúdos, rezei para a morte e dormi. depois a morte veio e o café derramou.

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acróstico

d ia de cão

e nxuga a lágrima de minha lápide

u nções de sangue no cimento o sofrimento

s ombras de minha cruz

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a casa era silêncio. por dentro era silêncio. por fora era uma casca. a casa em que morava quem amei. a casa era vazia. por fora ela dormia. por dentro era mobília. a casa que esquecia de me olhar. a casa que eu passava. telhado, sonho e escada. varanda, céu, toalha.

a casa em que eu morava de algodão. a casa mas no entanto. a casa e pois o espanto. o espanto e pois a rima. a casa em que dormia quem sonhei.

porém contudo a casa. nem sol nem céu nem nada. nem pranto e nem palavra. a casa que sem asas se avoou. a casa que sem asas se avoou.

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compreenda:

teu vizinho é teu irmão. aquele por quem você morre e perdoa. compreenda: tua vida não é mais que passar o dia em branco, ou compreender uma coisa nova, ou amar. alguma coisa na beira da praia ou no banco da praça ou na frente de um filme, tua vida não é mais que a canção que ninguém sabe tocar. não é mais. compreenda: assim como o vizinho, um dia, enfim, o compreenderá.

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se soubessem rezar as flores eu não rezaria uma oração. minha religião é como as flores, não pedem mais que o sol e a chuva, ou que a terra, ou que o ar. que rezariam as flores se pudessem rezar??? se pudessem rezar as flores as flores não seriam flores, seriam qualquer coisa estúpida como aos homens, e teriam religiões estúpidas como aos homens, e eram completamente estúpidas como aos homens; mas a estupidez das flores é bela, porque as flores não são homens, as flores são só flores, são bonitas com seu caule e coloridas com suas cores, e as cores das flores não estudam e não têm nomenclatura, e por isso

são

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mais belas, e sabem que são cores porque as têm, e não o sabem, porque as são; mas os homens são estúpidos, não têm cor e nem têm pétalas, têm enciclopédias, [dicionários e legendas, e decoram orações com a memória, e memorizam coisas tolas, e depois de rezar acreditam que o céu é azul e que deus tenha barba, tenha ouvidos e nariz. se os homens fossem inteligentes não teriam jardins, seriam eles próprios o jardim, e cultivavam muitas coisas, cultivavam flores

e amizade, e morriam surdamente, e não queriam nada mais... mas os homens... são estúpidos. os homens e as mulheres, e as crianças são melhores, mas serão também estúpidas, e por isso

os homens são estúpidos. e também suas crendices.

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todas as crendices são estúpidas. só as das flores que não são. das flores e das pedras. que as pedras são melhores que os homens. as pedras nos jardins fazem canteiros. e os homens fazem guerra. e a guerra é uma doença. a mais cara à estupidez humana. e por isso os homens são estúpidos. se as flores acendessem velas não ser- ia para os mortos, seria para a noite ser mais verde e pra que o verde colorisse

[com a noite, e seria a procissão um longo abraço com as ruas e as luas e as abelhas, e cos vôos colibris. se a razão evidenciasse a

divindade seria divina a matemática, e não deus, e por isso se decoram orações, mas não se oram, como um exercício matemático a um

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problema indis- solúvel, quase sem sabê-lo, à luz dos postes, da manteiga e do cozido. oram as flores que nunca aprenderam rezar... sua oração está aí, a cada dia quietamente, para os olhos e os sentidos. oram as flores porque existem, porque as flores têm poesia, e não palavras, mas os

homens, só palavras, e por isso são estúpidos.

os homens são todos estúpidos. os homens e as mulheres. mas as flores são só flores, e os

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canteiros, — re- ligião.

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hora branca

para a espera que nascemos.

não foi para a realização de nossos sonhos.

nossos sonhos são menores que

esta espera

diariamente de que a

vida

perpetue.

não.

esta espera que nos sonha,

como a mente de um deus mudo

manso

e

lento, —

esta espera de que o mundo se conclua,

de que a culpa se

perdoe,

de que a noite chegue à

luz.

esta espera intervalar:

perante a morte a vida inteira...

esta costura

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de alegria e de tristeza, este cansaço após o riso,

este motivo sem por

quê.

para a espera.

nem para a realidade ou a verdade,

nem para acordar do que

era

sono, — para a

espera,

para a escuta,

para a multa e a contrição, —

para tanto que

nascemos, para a cruz e a solidão.

como a espuma derramamos. como a curva nos voltamos.

[como a flor padeceremos.

mas para a espera que nascemos. para a espera

sem juízo.

para o espaço-compromisso entre

nascer e pois

morrer.

para a espera.

neste instante nada mais nos importa.

a morte é breve.

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contudo, por quanto esperamos:

a morte nunca chegará!

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comparação

pra mim é tão natural que haja diferenças que eu nem avalio as coisas através de diferenças, só por igualdades.

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o nexo do tempo

o nexo do tempo se dilui na minha mão.

não na minha mão, ele dilui, ele derrama.

o nexo do tempo após

a cama.

a cana do sonho

após

o alvor.

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o que dizer-se a um coração por conquistar? dizer-se juras? se calar? às vezes juras pelas juras vão ficar... o que dizer-se a um coração por conquistar? talvez que o tempo, que o segredo do momento, dizer que o céu que coloriu se acabará... quem sabe siglas, poesias, rimas ricas ou monólogos consigo a se guardar... dizer-se espera? dizer não vás? o que dizer-se e por dizer-se o que haverá? talvez silêncios... talvez incensos... talvez aromas, maresias, solidões de sonho e ar...

o véu da fonte?

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talvez que a luz das lamparinas no horizonte, — talvez que [ame ou talvez ...que nunca vá se amar... o que dizer? talvez doer, talvez cantar ou se doar, talvez correr os olhos mudo e quem sabe a etern- idade que esperar... talvez zelar... dizer-se o mundo e o fundo, dizer-se o lógico e o confuso, — dizer-se nada, pois que nada adiantará... o que dizer-se a um coração

por conquistar?

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o voo mais alto

daniel olhou para o companheiro rispidamente e lhe disse: - não vou, eu posso cair. - mas se você não for, não saberá como voar. disse-lhe o outro, preparando o voo de asas abertas, sem hesitar. reclinou assim o corpo e quase que foi, quando daniel o interrompeu: - espere um pouco! eu também vou. e foram-se planos, exatos no céu. e quando a polícia veio recolher-lhes os corpos, os meninos já tinham aprendido a voar.

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que te falta ouvir

que te falta ouvir

no ouvido que não escuta

não era a tristeza mútua

que repartíamos

sós

não o era também

nem nunca pudera sê-lo

aquilo que ao entendê-lo

não discordávamos

nós

não pudera ainda

ser tudo o que te não disse

nem mesmo o que te mentisse

e que dizíamos

crer

nem menos o era es-

tas coisas que te escondia as

conversas que eu nunca tinha

mas que podíamos

ter

não era portanto

outrora o que te faltava ou

agora o que te restava ou

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ainda o que eu não di-

ria

o era somente

aquilo que não se entende

palavra que não depende

da boca dizê-la um

dia

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relato

me parece um dia de gripe o frio e o silêncio, os ouvidos trancados, a luz do crepúsculo sobre o alumínio, neste fim de tarde. me leva a clínicas psiquiátricas, tempos já idos, vividos, dentro de mim. parece que eu vou com eles ao fim da vida. .*** não morrerei hoje, sei disso com toda a certeza que sabe a morte que me levará. mas este fim de tarde, parece que nada existe, silêncio, e por quê?

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o imperfeito busco a imperfeição em cada detalhe, como eu buscasse no erro da vida meu dano e meu valho, em cada detalhe.

escrevi poemas e canções

como o vento que assoprasse, — e eu era vento, cantei meu tempo

com meu rastro abandonado por estradas que eu andara

sem meu tento, sem meu passo. eu fui fracasso, eu fiz poemas,

não teorias. fui poesia

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em cada detalhe. cada mínimo detalhe (imperceptível), todos eles, cada um,

um verso jogado ao sentido da vida. *** — e por isso os faço,

todos imperfeitos, belos como a noite

e como estrelas, cada detalhe: um verso, detalhadamente.

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sonetos de fumaça e temporais

e outros poemas indóceis

andré boniatti

2011

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