Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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    Sonetos e Outros Poemas, de Bocage

    Fonte:BOCAGE, Manuel Maria Barbosa Du.Soneto e outros poemas . [So Paulo] : FTD, 1994. (GrandesLeituras).

    Texto proveniente de:A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de So PauloPermitido o uso apenas para fins educacionais.

    Texto-base digitalizado por:Antonio Luiz Lopes Guarulhos/SP

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    SONETOS E OUTROS POEMASBocage

    I - SONETOS

    Incultas produes da mocidade

    Exponho a vossos olhos, leitores ;Vede-as com mgoa, vede-as com piedade;Que elas buscam piedade, e no louvores;

    Ponderai da Fortuna a variedade Nos meus suspiros, lgrimas e amores ; Notai dos males seus a imensidade,A curta durao dos seus favores ;

    E se entre versos mil de sentimentoEncontrardes alguns, cuja aparnciaIndique festival contentamento,

    Crede, mortais, que foram com violnciaEscritos pela mo do Fingimento,Cantados pela voz da Dependncia.

    Chorosos versos meus desentoados,Sem arte, sem beleza, e sem brandura,Urdidos pela mo da Desventura,Pela baa Tristeza envenenados :

    Vede a luz, no busqueis, desesperados, No mudo esquecimento a sepultura ;Se os ditosos vos lerem sem ternura,Ler-vos-o com ternura os desgraados :

    No vos inspire, versos, cobardia

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    Da stira mordaz o furor louco,Da maldizente voz a tirania :

    Desculpa tendes, se valeis to pouco ;Que no pode cantar com melodiaUm peito, de gemer cansado e rouco .

    De suspirar em vo j fatigado ,Dando trgua a meus males eu dormia ;Eis que junto de mim sonhei que viaDa Morte o gesto lvido, e mirrado :

    Curva fouce no punho descarnadoSustentava a cruel, e me dizia :"eu venho terminar tua agonia ;morre, no peneis mais, oh desgraado ! "

    quis ferir- me , e de Amor foi atalhada,

    que armado de cruentos passadoresaparte, e lhe diz com voz irada :

    "Emprega noutro objeto os teus rigores ;que esta vida infeliz est guardada para vtima s de meus furores. "

    J sobre o coche de bano estreladoDeu meio giro a noite escura e feia ;Que profundo silncio me rodeia Neste deserto bosque, luz vedado !

    Jaz entre as folhas Zfiro abafado ,O Tejo adormeceu na lisa areia ; Nem o mavioso rouxinol gorgeia, Nem pia o mocho, s trevas costumado :

    S eu velo, s eu, pedindo sorteQue o fio, com que est minh'alma presa vil matria lnguida, me corte :

    Consola-me este horror, esta tristeza ;Porque a meus olhos se afigura a morte No silncio total da Natureza.

    Mavorte, porque em prfida ciladaO cruel moo algeto o ferira, No faz caso da me, que chora e brada,Quer punir o traidor, que lhe fugira :

    Na sinistra o pavs, na dextra a espada, Nos gneos olhos fuzilante a ira,Pule negra carroa ensangentada,Que Belona infernal cas Frias tira :

    Assim parte, assim voa ; eis que v posto No colo de Marlia o deus alado, No colo aonde tem mimoso encosto:

    J Marte arroja as armas, e aplacadoDiz, inclinando o formidvel rosto :

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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    "Valha-te, Amor, esse lugar sagrado ! ".

    Marlia, nos teus olhos buliososOs Amores gentis seu facho acendem ;A teus lbios voando os ares fendem

    Ternssimos desejos sequiosos:Teus cabelos subtis e luminososMil vistas cegam, mil vontades prendem :E em arte de Minerva se no rendemTeus alvos curtos dedos melindrosos :

    Resiste em teus costumes a candura,Mora a firmeza no teu peito amante,A razo com teus risos se mistura:

    s dos cus o composto mais brilhante;Deram-se as mos Virtude e Formosura

    Para criar tua alma e teu semblante.

    Oh, tranas, de que Amor prises me tece,Oh, mos de neve, que regeis meu fado !Oh tesouro ! oh mistrio ! oh par sagrado ,Onde o menino algero adormece !

    Oh ledos olhos, cuja luz pareceTnue raio de sol ! oh gesto amado,De rosas e aucenas semeado,Por quem morrera esta alma, se pudesse !

    Oh ! lbios, cujo riso a paz me tira,E por cujos dulcssimos favoresTalvez o prprio Jpiter suspira !

    Oh perfeies ! oh dons encantadores !De quem sis ?...Sois de Vnus ? - mentiraSois de Marlia, sois de meus amores.

    J se afastou de ns o Inverno agresteEnvolto nos seus hmidos vapores ;A frtil Primavera , a me das floresO prado ameno de boninas veste :Varrendo os ares o subtil nordesteOs torna azuis : as aves de mil coresAdejam entre Zfiros, e Amores,E torna o fresco Tejo a cor celeste ;

    Vem, Marlia, vem lograr comigoDestes alegres campos a beleza,Destas copadas rvores o abrigo :

    Deixa louvar da corte a v grandeza:Quanto me agrada mais estar contigo Notando as perfeies da Natureza !

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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    Grato silncio, trmulo arvoredo,Sombra propcia aos crimes, e aos amores,Hoje serei feliz ! - longe, temores,Longe, fantasmas, iluses do medo.

    Sabei, amigos Zfiros, que cedo,

    Entre os braos de Nise, entre estas flores,Furtivas glrias, tcitos favores,Hei-de enfim possuir : porm segredo !

    Nas asas frouxos ais, brandos queixumes No leveis, no faais isto patente,Que nem quero que o saiba o pai dos numes :

    Cale-se o caso a Jove omnipresente,Porque se ele o souber, ter cimes,Vibrar contra mim seu raio ardente.

    Temo que a minha ausncia e desventuraVo na tua alma, docemente acesa ,Apoucando os excessos da firmeza.Rebatendo os assaltos da ternura :

    Temo que a tua singular canduraLeve o tempo fugaz, nas asas presaQue quase sempre o vcio da beleza,Gnio imutvel, condio perjura:

    Temo ; e se o fado meu, fado inimigoConfirmar mpiamente este receio ,

    Espectro perseguidor, que anda comigo,Com rosto, alguma vez de mgoa cheio ,Recorda-te de mim, dize contigo :'era fiel, amava-me e deixei-o "

    Enquanto o sbio arreiga o pensamento Nos fenonemos teus, oh NaturezaOu solta rduo problema, ou sobre a mesaVolve o subtil geomtrico instrumento :

    Enquanto, alando a mais o entendimento,Estuda os vastos cus, e com certezaReconhece dos astros a grandeza,A distncia, o lugar, e o movimento :

    Enquanto o sbio, enfim, mais sabiamente,Se remonta nas asas do sentido corte do Senhor omnipresente:

    Eu louco, cego, eu msero, eu perdidoDe ti s trago cheia, Jonia, a mente :Do mais, e de mim mesmo ando esquecido ..

    Por esta solido, que no consente Nem do sol, nem da Lua a claridade,Ralado o peito j pela saudadeDou mil gemidos a Marlia ausente :

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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    De seus crimes a mancha inda recenteLava Amor, e triunfa da verdade,A beleza, apesar da falsidade,Me ocupa o corao, me ocupa a mente:

    Lembram-me aqueles olhos tentadores,Aquelas mos, aquele riso, aquelaBoca suave, que respira amores...

    Ah, trazei - me iluses, a ingrata, a bela !Pintai-me vs, oh sonhos, entre floresSuspirando outra vez nos braos dela !

    Marlia, se em teus olhos atentara,Do estelfero slio reluzente,Ao vil mundo outra vez o omnipotente,

    O fulminante Jpiter baixara,Se o deus, que assanha as Frias, te avistara,As mos de neve, o colo transparente,Suspirando por ti, do caos ardente,Sugeriu luz do dia, e te roubara :

    Se a ver-te de mais perto o Sol descera, No ureo carro veloz dando-te assentoAt da esquiva Dafne se esquecera :

    E se a fora igualasse o pensamento,Oh alma da minh'alma, eu te of'recera

    Com ela a Terra, o Mar, e o Firmamento .

    O corvo grasnador e o mocho feioO sapo berrador e a r molesta,So meus nicos scios na floresta,Onde carpindo estou, de angstia cheio :

    Perdi todo o prazer, todo o recreio,,Ah, malfadado amor, paixo funesta !Urselina perdi, nada me resta,Madre terra ! Agasalha-me em teu seio ;

    Da vbora mordaz permite, oh Sorte,Que nos matos asprrimos que pisoAs plantas me envenene o tnue corte !

    Ah ! Que das graas ? Que do paraso ?A minh'alma onde est ? quem logra... oh Morte,Quem logra de Urselina o doce riso ?

    ...........................................................................................................................................................................................

    .

    nsias terrveis, ntimos tormentos, Negras imagens, hrridas lembranas,Amargosas, mortais desconfianas,Deixai-me sossegar alguns momentos:

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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    Sofrei que logre os vos contentamentosQue sonham minhas doidas esperanas ;A posse de alvo rosto, e loiras tranas,Onde presos esto meus pensamentos:

    Deixai-me confiar na formosura,

    Cruis ! Deixai-me crer num doce engano,Blasonar de fantstica ventura.

    Que mais mal me quereis, que maior danoDo que vagar nas trevas da loucura,Aborrecendo a luz do desengano ?

    Olha , Marlia, as flautas dos pastores,Que bom que soam, como esto cadentes !Olha o Tejo a sorrir-te ! Olha no sentesOs Zfiros brincar por entre as flores ?

    V como ali, beijando-se os AmoresIncitam nossos sculos ardentes !Ei-las de planta em planta as inocentes,As vagas borboletas de mil cores !

    Naquele arbusto o rouxinol suspira,Ora nas folhas a abelhinha pra,Ora nos ares sussurando gira :

    Que alegre campo ! que manh to clara !Mas ah! Tudo o que vs, se eu te no vira,Mais tristeza que a morte me causara.

    Fiei-me nos sorrisos de venturaEm mimos femininos ,como fui louco !Vi raiar o prazer, porm to poucoMomentneo relmpago no dura:

    No meio agora desta selva escura,Dentro deste penedo hmido e ouo,Pareo, at no tom lgubre, e roucoTriste sombra a carpir na sepultura :Que estncia para mim to prpria esta !Causais-me um doce, e fnebre transporte,ridos matos, lbrega floresta !

    Ah! No me roubou tudo a negra sorte :Inda tenho este abrigo , inda me restaO pranto, a queixa, a solido e a morte.

    H pouco a me das Graas, dos Amores,Gerada pela espuma cristalina,Baixou da etrea regio divina Nas asas dos Favnios voadores :

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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    "Oh das margens do Tejo habitadores !hoje torna a luzir ( disse Ericina )o ledo instante em que nasceu Marina,nclito fruto de nclitos maiores :

    Do Cu, do Mar, da Terra, os soberanosImprimindo-lhe encantos a milhares,Criaram nela a glria dos humanos:

    Eia, cantai-lhe os dotes singulares,Louvai seus olhos, aplaudi seus anos,Queimai-lhe aromas, erigi-lhe altares "

    Os suaves eflvios, que respiraA flor de Vnus, a melhor das flores,

    Exalas de teus lbios tentadores,Oh doce, oh bela, oh desejada Elmira ;

    A que nasceu das ondas, se te vira,A seu pesar cantara os teus louvores;Ditoso quem por ti morre de amores !Ditoso quem por ti , meu bem, suspira !

    E mil vezes ditoso o que mereceUm teu furtivo olhar, um teu sorriso,Por quem da me formosa Amor se esquece !

    O sacrlego ateu, sem lei, sem siso,

    Contemple-te uma vez, que ento conheceQue fora haver um Deus, e um paraso.

    Meu frgil corao ,para que adorasPara que adoras, se no tens ventura ?Se uns olhos, de quem ardes na luz pura,Folgando esto das lgrimas que choras ?

    Os dias vs fugir, voar as horasSem achar neles visos de ternura ;E inda a louca esp'rana te figuraO prmio dos martrios, que devoras !

    Desfaz as trevas de um funesto engano,Que no hs de vencer a inimizadeDe um gnio contra ti sempre tirano :

    A justa, a sacrossanta divindade No fora, no violenta o peito humano,E queres constranger-lhe a liberdade ?

    Os garos olhos, em que o Amor brincava,Os rubros lbios, em que o Amor se ria,As longas tranas, de que o Amor pendia,As lindas faces, onde Amor brilhava :

    As melindrosas mos, que Amor beijava,Os nveos braos, onde Amor dormia,

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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    Foram dados, Armndia, terra fria,Pelo fatal poder que a tudo agrava;

    Seguiu-te Amor ao tcito jazigo,Entre as irms cobertas de amargura;E eu que fao ( ai de mim ! ) como no sigo !

    Que h no mundo que ver, se a formosura,Se Amor, se as Graas, se o prazer contigoJazem no eterno horror da sepultura ?

    Urselina gentil, benigna e pura,Eis nas asas subtis de um ai cansadoA ti meu corao voa alagadoEm torrentes de sangue, e de ternura ;

    Pe-lhe os olhos, meu bem, v com branduraSeu miservel, doloroso estado,

    Que nas garras da morte j cravadoA f, que te jurava, inda te jura :

    Pe-lhe os olhos, meu bem, suavemente,Pe-lhe os mimosos dedos na ferida,Palpa de Amor a vtima inocente :

    E por milagre deles, oh querida,Vers cerrar-se o golpe, e de repenteEm ondas de prazer tornar-lhe a vida .

    Em veneno letfero nadando

    No roto peito o corao me arqueja;E ante meus olhos hrrido negrejaDe morais aflies espesso bando ;

    Por ti, Marlia, ardendo, e delirandoEntre as garras asprrimas da Inveja,Amaldioo Amor, que ri, e adejaPelos ares,cs Zfiros brincando;

    Recreia-se o traidor com meus clamores -E meu cioso pranto... oh Jove, oh numeQue vibras os coriscos vingadores !

    Abafa as ondas do tartreo lume,Que para os que provocam teus furoresTens inferno pior, tens o cime.

    Oh retrato da morte, oh Noite amigaPor cuja escurido suspiro h tanto !Calada testemunha de meu pranto,De meus desgostos secretria antiga !

    Pois manda Amor, que a ti smente os diga,D-lhes pio agasalho no teu manto ;Ouve-os,como costumas,ouve, enquantoDorme a cruel, que a delirar me obriga :

    E vs, oh cortesos da escuridade,

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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    Fantasmas vagos, mochos piadores,Inimigos como eu, da claridade !

    Em bandos acudi aos meus clamores;Quero a vossa medonha sociedade,Quero fartar meu corao de horrores.

    Vinde, Prazeres, que por entre as flores, Nos jardins de Citera andais brincando,E vs, despidas, Graas, que danandoTrinais alegres sons encantadores :

    Deusa dos gostos, deusa dos amores,Ah ! dos filhinhos teus ajunta o bando,E vem nas asas de Favnio brandoDar fora, dar beleza a meus louvores.

    Da linda Anarda minha voz aspiraA cantar o natal ; tu, por clemncia,O teu fiel cantor, deidade, inspira ;

    Do trcio vate empresta-me a cadncia,E faze que merea a minha liraOs cndidos sorrisos da inocncia .

    Canta ao som dos grilhes o prisioneiro,Ao som da tempestade o nauta ousado,Um, porque espera o fim do cativeiro,Outro, antevendo o porto desejado ;

    Exposta a vida ao tigre mosqueadoGira sertes o sfrego mineiro,Da esperana dos lucros encantado,Que anima o peito vil, e interesseiro:

    Por entre armadas hostes destemidoRompe o sequaz do horrfico Mavorte,Co triunfo, ca glria no sentido:

    S eu ( tirano Amor ! tirana Sorte ! )S eu por Nise ingrata aborrecidoPara ter fim meu pranto espero a morte.

    Triste quem ama, cego quem se fiaDa feminina voz na v promessa !Aspira a v-la estvel ! mais depressaO facho apagar, que espalha o dia :

    Alada exalao, que na sombriaTcita noite os ares atravessa,Foi comigo a paixo volvel dessaQue o peito me afagava, e me feria :

    Do desengano o blsamo lhe aplico,E a teus laos, Amor, sem medo exponhoDos benficos cus o dom mais rico :

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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    Vejo mil Circes plcido, risonho ;E se f me prometerem, ouo e ficoComo quem despertou de areo sonho .

    Importuna Razo, no me persigas ;

    Cesse a rspida voz que em vo murmura ;Se a lei do Amor , se a fra da ternura Nem domas, nem contrastas, nem mitigas :

    Se acusas os mortais, e os no abrigas,Se (conhecendo o mal) no ds a cura,Deixa-me apreciar minha loucura,Importuna Razo, no me persigas,

    teu fim, seu projecto encher de pejoEsta alma, frgil vtima daquelaQue, injusta e vria, noutros laos vejo :

    Queres que fuga de Marlia bela,Que a maldiga, a desdenhe ; e o meu desejo carpir, delirar, morrer por ela.

    Oh trevas, que enlutais a Natureza,Longos ciprestes desta selva anosa,Mochos de voz sinistra, e lamentosa,Que dissolveis dos fados a incerteza :

    Manes, surgidos da morada acesaOnde de horror sem fim Pluto se goza, No aterreis esta alma dolorosa,

    Que mais triste que vs minha tristeza ;Perdi o galardo da f mais pura,Esperanas frustrei do amor mais terno,A posse de celeste formosura :

    Volvei pois, sombras vs, ao fogo eterno :E lamentando a minha desventura,Movereis a piedade o mesmo inferno.

    J o Inverno, espremendo as cs nervosas,Geme, de horrendas nuvens carregado ;Luz o areo fuzil, e o mar inchadoInveste ao Plo em serras escumosas ;

    Oh benignas manhs ! tardes saudosas,Em que folga o pastor, medrando o gado,Em que brincam no ervoso e frtil prado Ninfas e Amores, Zfiros e Rosas !

    Voltai, retrocedei, formosos dias ;Ou antes vem, vem tu, doce belezaQue noutros campos mil prazeres crias ;

    E ao ver-te sentir minh'alma acesaOs perfumes, o encanto, as alegriasDa estao, que remoa a Natureza.

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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    Mimosa, linda Anarda, atende , atendes doces mgoas do rendido Elmano;Cum meigo riso, cum suave enganoConsola o triste amor, que no te ofende :

    De teus cabelos ondeados pendeMeu corao, fiel para seu dano ;Ca luz dos olhos teus Cupido ufanoSustenta o puro fogo, em que me acende ;

    Causa gentil das lgrimas que choro,A tudo te antepe minha ternura,E quanto adoro o cu, teu rosto adoro :

    O golpe, que me deste, anima e cura ...Mas ai ! que em vo suspiro, em vo te imploro : No pertence a piedade formosura.

    Oh deusa, que proteges dos amantesO destro furto, o crime deleitoso ,Abafa com teu manto pavorosoOs importunos astros vigilantes;

    Quero adoar meus lbios anelantes No seio da Ritlia melindroso ;Estorva que os maus olhos do invejosoTurbem de amor os sfregos instantes ;

    Ttis formosa , tal encanto inspireAo namorado sol teu nveo rosto,

    Que nunca de teus braos se retire !Tarde ao menos o carro Noite oposto,At que eu desfalea, at que expire, Nas ternas nsias, no inefvel gosto.

    O ledo passarinho, que gorjeiaD'alma exprimindo a cndida ternura,O rio transparente , que murmura,E por entre pedrinhas serpenteia :

    O Sol, que o cu difano passeia ,A Lua, que lhe deve a formosura,O sorriso da aurora alegre e pura,A rosa, que entre os zfiros ondeia ;

    A serena, amorosa Primavera,O doce autor das glorias que consigo,A deusa das paixes, e de Ctera :

    Quanto digo, meu bem, quanto no digo,Tudo em tua presena degenera, Nada se pode comparar contigo.

    De cima dessas pedras escabrosasQue pouco a pouco as ondas tm minado,

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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    Da lua co reflexo prateadoDistingo de Marlia as mos formosas :

    Ah ! que lindas que so, que melindrosas !Sinto-me louco, sinto-me encantado ;Ah! Quando elas vos colhem l no prado,

    Nem vs, lrios, brilhais, nem vs, oh rosas !Deuses ! cus, tudo o mais que tendes feitoVendo to belas mos, me d desgosto ; Nada, onde elas esto, nada perfeito .

    Oh quem pudera uni-las ao meu rosto !Quem pudera aperta-las no meu peito !Dar-lhe mil beijos, e expirar de gosto !

    Debalde um vu ocioso, oh Nise, encobreIntactas perfeies ao meu desejo ;

    Tudo o que escondes, tudo o que no vejoA mente audaz e algea descobre :

    Por mais e mais que as sentinelas dobreA sisuda Modstia, o cauto Pejo,Teus braos logro, teus encantos beijo,Por milagre da idia afoita, e nobre ;

    Inda que prmio teu rigor me negue,Do pensamento a indmita porfiaAo mais doce prazer me deixa entregue :

    Que pode contra Amor a tirania,

    Se as delcias , que a vista no consegue,Consegue a temerria fantasia ?

    Das faixas infantis despido apenasSentia o sacro fogo arder na mente ;Meu retro corao inda inocente,Iam ganhando as plcidas Camenas ;

    Faces gentis, anglicas, serenas,De olhos suaves o volver fulgente,Da idia me extraam de repenteMil simples, maviosas cantinelas

    O tempo me soprou fervor divino,E as Musas me fizeram desgraado,Desgraado me fez o Deus Menino ;

    O Amor quis esquivar-se, e ao dom sagrado :Mas vendo no meu gnio o meu destino,Que havia de fazer ? Cedi ao fado.

    Minh'alma se reparte em pensamentosTodos escuros, todos pavorosos;Pondero quo terrveis, quo penososSo, existncia minha, os teus momentos :

    Dos males que sofri, cruis, violentos,A Amor, e aos Fados contra mim teimosos,

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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    Outro inda mais tristes, mais custososDeduzo com fatais pressentimentos.

    Rasgo o vu do futuro, e l diviso Novos danos urdindo Amor e aos Fados,Para roubar-me a vida aps do siso.

    Ah! Vem, Marlia, vem com teus agrados,Com teu sereno olhar, teu brando risoFurtar-me a fantasia a mil cuidados.

    O Cu no te dotou de formosura,De atractivo exterior, e a NaturezaTeu peito inficionou ca vil torpezaDe ingrata condio, falaz e impura ;

    Influiu-me os extremos da ternuraA Constancia, o fervor, e a singeleza,

    Esses dons mais gentis que a gentileza,Dons, que o tempo fugaz no desfigura ;

    Apesar da traio , do fingimentoQue te inflama, e desluz, se envela e praEm ti, alma infiel, meu pensamento;

    Nas paixes a razo nos desampara,Se a razo presidisse ao sentimento,Tu morrers por mim, eu no te amara .

    s margens do Regaa cristalino

    Nos olhos de Tirseia ardi contente;Brandos olhos gentis, dos quais pendenteEstava o meu prazer, e o meu destino ;

    O tenro Deus,o cndido MeninoPagava meu fervor puro, inocente ;Mas cedo me impeliu a sorte inclementePara vs, tristes margens , que abomino ;

    Aqui desde que aponta a luz febeiaDe lugar em lugar deliro, e corro ,Com suspeitas nutrindo a turva idia .

    No posso contra Amor achar socorro ;Perdi todo o meu bem, perdi TirseiaEla vive sem mim, sem ela eu morro.

    Que idia horrenda te possui, Elmano ?Que ardente frenesi teu peito inflama ?A razo te alumie, apaga a chama,Reprime a raiva do cime insano:

    Esperanas consome, ou vive ufano,Ah! Foge , ou cinge da vitria a rama :Ama-te a bela Armia, ou te no ama ?Seus ais so da ternura, ou so do engano ?

    Se te ama, no consternem teus queixumesOs olhos de que ests enfeitiado,

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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    Do puro cu de Amor benignos lumes:

    Se outro n'alma de Armia anda gravado,Que fruto hs de colher dos vos cimes ?Ser odioso, alm de desgraado.

    s guas e s areias deste rios flores, e aos Favrios deste prado,Meus danos conto, minhas mgoas fio,Dou queixas contra Ismene, Amor e o Fado :

    A paz do corao posta em desvio,O gosto em desenganos sufocado,Lgrimas com lembranas desafio,E pela tarda morte s vezes brado ;

    To maviosos sos meus ais mesquinhos,Tanto pode a paixo que em mim suspira,

    Que se esquecem das mes os cordeirinhos:O vento no se mexe, nem respira ;Deixam de namorar-se os passarinhos,Para me ouvir chorar ao som da lira.

    O cu, de opacas sombras abafado,Tornando mais medonha a noite feia ;Mugindo sobre as rochas, que salteia,O mar, em crespos montes levantado :

    Desfeito em furaces o vento irado,

    Pelos ares zunindo a solta areia,O pssaro noturno, que vozeia No agoureiro cipreste alm pousado ;

    Formam quadro terrvel, mas aceito,Mas grato aos olhos meus, grato ferezaDo cime, e saudade, a que ando, afeito :

    Quer no horror igualar-me a Natureza ;Porm cansa-se em vo, que no meu peitoH mais escuridade, h mais tristeza.

    Nos torpes laos de beleza impuraJazem meu corao , meu pensamento ;Esforada ao servil abatimentoContra os sentidos a razo murmura:

    Eu, que outrora incensava a formosura,Das que enfeita o pudor gentil, e isento,A j corrupta idia hoje apascento Nos falsos mimos de venal ternura:

    Se a vejo repartir prazer, e agradoquele, a este, ca fatal certezaFermenta o vil desejo envenenado ;

    Cus ! quem me reduziu a tal baixeza ?Quem to cego me ps ? ..ah! foi meu fado,Que tanto no podia a Natureza.

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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    Perdi tudo ( ai de mim ! ) perdi Marfida,Marfida, a glria minha,a minha amada ;Tenra flor, a esperana malogradaDo mimoso matiz caiu despida :

    Pede meu corao mortal ferida,S aos ditosos a existncia agrada ;Vida entre angstias equivale ao nada, No risonho prazer consiste a vida.

    Eia, amante infeliz, teu fim procura !Fantstico terror no te reporte, Nos tmulos no reina a formosura.

    Diga triste letreiro a minha sorte ;Da-me piedosa sombra sepulturaTeixas, ciprestes, rvores da morte.

    L onde o Fado impenetrvel mora,Voa o menino Amor entre os Amores:Loureja a trana,que matizam flores,Cintila o facho, que a Razo devora :

    Entra, sada o nume, ao nume imploraQue de Marlia os olhos tentadoresVejam sempre ante as Graas, e os LouvoresDe seus anos gentis surgir a aurora :

    Fronte rugosa vezes trs sacode

    O deus, cujo poder tudo atropela,E s splicas de Amor destarte acode :

    "Escape s minhas leis Marlia bela,seja, seja imortal ; durar no pode,o mundo sem amor, amor sem ela ".

    Quantas vezes , Amor, me tens ferido ?Quantas vezes, Razo, me tens curado ?Quo fcil de um estado a outro estadoO mortal sem querer conduzido !

    Tal, que em grau venerando, alto e luzido,Como que at reagia a mo do fado,Onde o sol, bem de todos, lhe vedadoDepois com ferros vis se v cingido:

    Para que o nosso orgulho as asas corte,Que variedade inclui esta medida,Este intervalo de existncia morte !

    Travam-se gosto, e dor ; sossego, e lida ; da lei da Natureza , lei da sorteQue seja o mal e o bem matriz da vida.

    o h tu, consolador dos malfadados,

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

    16/63

    Oh tu, benigno dom da mo divina,Das mgoas saborosa medicina,Tranquilo esquecimento dos cuidados:

    Aos olhos meus, de prantear cansados,Cansados de velar, teu voo inclina;

    E vs, sonhos de amor, trazei-me Alcina,Dai-me a doce viso de seus agrados:

    Filha das trevas, frouxa sonolncia,Dos gostos entre o frvido transporteQuanto me foi suave a tua ausncia!

    Ah! findou para mim to leda sorte;Agora s feliz minha existncia No mudo estado, que arremeda a morte.

    T u, maligno drago, cruel harpia,

    monstro dos monstros, fria dos infernos,que em vil murmurao, ralhos eternosEstragas sem descanso a noite, e o dia:

    Tu, que nas horas em que o mocho pia,Caluniaste meus suspiros ternos,Sacode a carga de noventa invernos Nas descarnadas mos da morte fria:

    Cai de chofre no bratro profundo,Cai nas entranhas da voraz fornalha,Deixa em sossego o miservel mundo:

    E entre a maldita, rproba canalha,L bem longe de ns, l bem no fundo,Arde, murmura, amaldioa, e ralha.

    Usurpando um minuto a meu lamentoAmigo sono os olhos me ocupava,E enquanto o dbil corpo descansava,Velava amor, velava o pensamento:

    Eis que em deserto e lgubre aposento,Que semimorta luz mais afeava,Cri, Gertrria (ai de mim!) que te avistavaJ sem cor, j sem voz, j sem alento:

    Sbito acordo em lgrimas banhado,E, das trevas palpando o vu medonhoEm vo busco teu corpo delicado:

    Mas inda em nsias trmulo suponhoQue me vaticinou meu negro fadoDos males o pior no horrvel sonho.

    A lva Gertrria minha, a quem saudosoMando trmulos ais enternecidos;gertrria, que encantaste os meus sentidosCum meigo riso, cum olhar piedoso:

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

    17/63

    mor, o injusto Amor, nume doloso,insensvel penedo a meus gemidos,Me exala sobre os tmidos ouvidosEstas vozes cruis em tom raivoso:

    "Tu, que j desfrutaste os meus favores,tu, que na face de Gertrria bela Nctar bebeste, mitigaste ardores,

    No tornars, no tornars a v-la:lamenta, desgraado, os teus amores,Acusa, desgraado, a tua estrela."

    Usurpando um minuto a meu lamentoAmigo sono os olhos me ocupava,E enquanto o dbil corpo descansava,Velava amor, velava o pensamento:

    Eis que em deserto e lgubre aposento,Que semimorta luz mais afeava,Cri, Gertrria (ai de mim!) que te avistavaJ sem cor, j sem voz, j sem alento:

    Sbito acordo em lgrimas banhado,E, das trevas palpando o vu medonho,

    Em vo busco teu corpo delicado:Mas inda em nsias trmulo suponhoQue me vaticinou meu negro fadoDos males o pior no horrvel sonho.

    Alva Gertrtia minha, a quem saudosoMando trmulos ais enternecidos;Gertrria, que encantaste os meus sentidosCum meigo riso, cum olhar piedoso:

    Amor, o injusto Amor, nume doloso,1nsensvel penedo a meus gemidos,Me exala sobre os tmidos ouvidosEstas vozes cruis em tom raivoso:

    "Tu, que j desfrutaste os meus favores,Tu, que na face de Gertrria bela Nctar bebeste, mitigaste ardores,

    No tornars, no tornars a v-Ia:Lamenta, desgraado, os teus amores,Acusa, desgraado, a tua estrela."

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

    18/63

    Eu me ausento de ti, meu ptrio Sado,Mansa corrente deleitosa, amena,Em cuja praia o nome de FilenaMil vezes tenho escrito, e mil beijado:

    Nunca mais me vers entre o meu gado

    Soprando a namorada e branda avena,A cujo som descias mais serena,Mais vagarosa para o mar salgado:

    Devo enfim manejar por lei da sorteCajados no, mortferos alfanges Nos campos do colrico Mavorte;

    E talvez entre impvidas falangesTestemunhas farei da minha morteRemotas margens, que humedece o Ganges.

    Cames, grande Cames, quo semelhanteAcho teu fado ao meu, quando os cotejo!Igual causa nos fez perdendo o TejoArrostar co sacrlego gigante:

    Como tu, junto ao Ganges sussurranteDa penria cruel no horror me vejo;Como tu, gostos vos, que em vo desejo,Tambm carpindo estou, saudoso amante:

    Ludbrio, como tu, da sorte duraMeu fim demando ao Cu, pela certeza

    De que s terei paz na sepultura:Modelo meu tu s... Mas, oh tristeza!...Se te imito nos transes da ventura, No te imito nos dons da Natureza.

    A deja, corao, vai ter aos lares,Ditosos lares, que Gertrria pisa;

    Olha, se inda te guarda a f mais lisa,V, se inda tem pesar dos teus pesares:

    No fulgor dos seus olhos singularesCrestando as asas, tua dor suaviza,Amor de l te chama, te divisa,Interpostos em vo to longos mares:

    Dize-lhe, que do tempo o leve giro No faz abalo em ti, no faz mudana,Que ainda lhe s fiel neste retiro:

    Sim, pinta-lhe imortal minha lembrana;D-lhe teus ais, e pede-lhe um suspiro,Que alente, corao, tua esperana.

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

    19/63

    J por brbaros climas entranhado,J por mares inspitos vagante,Vtima triste da fortuna errante,dos mais desprezveis desprezado:

    Da figueira esperana abandonado,Lassas as foras, plido o semblante,Sinto rasgar meu peito a cada instanteA mgoa de morrer expatriado:

    Mas ah! Que bem maior, se contra a sorteL do sepulcro no sagrado hospcioRefgio me promete a amiga Morte!

    Vem pois, oh nume aos mseros propcio,Vem livrar-me da mo pesada e forte,Que de rastos me leva ao precipcio!

    Melizeu, o menor entre os nascidos,De face cadavrica e nojosa,Tsico em verso, apoquentado em prosa,Hrrido aos olhos, hrrido aos ouvidos:

    Soltando dissonantes alaridosDa boca transversal erma, e gulosa,Insulta a quem de Febo os mimos goza,Estafa-se em preceitos no cumpridos:

    Ao vate Elmano plagirio chama,Sendo o mais desprezvel plagirio,Que o que pilha desluz, corrompe, infama:

    Profanador do Anio santurio,Lobisomem do Pindo, orneia, ou brama,At findar no Inferno o teu fadrio!

    Quem se v maltratado, e combatidoPelas cruis angstias da indignciaQuem sofre de inimigos a violncia,Quem geme de tiranos oprimido:

    Quem no pode ultrajado, e perseguidoAchar nos Cus, ou nos mortais clemncia,Quem chora finalmente a dura ausnciaDe um bem, que para sempre est perdido:

    Folgar de viver, quando no passa Nem um momento em paz, quando a amarguraO corao lhe arranca e despedaa?

    Ah! S deve agradar-lhe a sepulturaQue a vida para os tristes desgraa,A morte para os tristes ventura.

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

    20/63

    Meu nome pouco a pouco aos Cus levanto; Bocage

    A ceso no almo ardor, que a mente inflama.Vivo de Amor, de Amor suspiro e canto; Na face agora o riso, agora o pranto,De rvore tua, oh Febo, eu cinjo a rama:

    Prezo a doce moral, na voz da famaMeu nome,pouco a pouco aos cus levantoMas turba vil, que abato, anseio e espanto,Urde em meu dano abominvel trama;

    Ru me delata de hrrida maldade, Projecta aniquilar-me o bando rude,Envolto na leteia escuridade:

    Que falsa ideia, oh zoilos, vos ilude?Furtais-me a paz? Furtais-me a liberdade?Fica-me a glria, fica-me a virtude.

    B em hajas, oh Morfeu! fantasiaQue cena divinal me deste agora! Nise , qual sai da noite a grata aurora,

    Surgiu-me dentre as sombras da agonia.Mais belo inda a saudade me fingiaO gesto encantador, que os cus namora;Cuido que inda me afaga, que inda choraPranto, que morta flor viver faria.

    Graas oh nume, de meus ais magoado!Alta merc meu corao te deve,Por.este acinte, que fizeste ao fado:

    S tua divindade a tal se atreve;Mas ah! Que eras prazer de um desgraadoSempre mostraste, oh sonho, em ser to breve.

    Em srdida masmorra aferrolhado,De cadeias asprrimas cingido,Por ferozes contrrios perseguido,Por lnguas impostoras criminado:

    Os membros quase nus, o aspecto honradoPor vil boca, e vil mo roto, e cuspido,Sem ver um s mortal compadecidoDe seu funesto, rigoroso estado:

    O penetrante, o brbaro instrumentoDe atroz, violenta, inevitvel morte

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

    21/63

    Olhando j na mo do algoz cruento:

    Inda assim no maldiz a inqua sorte,Inda assim tem prazer, sossego, alento,O sbio verdadeiro, o justo, o forte.

    Tu, que em torpes desejos atoladoVergonhosos prostbulos frequentas:Tu, que os olhos famintos alimentas No cofre, de tesouros atulhado:

    Tu, que do ouro e da prpura adornadoQuase de igual a Jpiter ostentas, bebendo as frases vis, e peonhentasDo bando adulador, que tens ao lado:

    momentos, que desonrais a humanidade,Desprezando a pobreza atribulada,E transgredindo a lei da caridade:

    O Desengano ouvi, que assim vos brada:"Tremei da pavorosa eternidade,Tremei filhos do p, filhos do nada!"

    Q h Rei dos reis, oh rbitro do mundo,Cuja mo sacrossanta os maus fulmina,E a cuja voz terrfica, e divinaLcifer treme no seu caos profundo!

    Lava-me as ndoas do pecado imundo,Que as almas cega, as almas contamina:O rosto para mim piedoso inclina,Do eterno imprio Teu, do Cu rotundo:

    Estende o brao, a lgrimas propcio,Solta-me os ferros, em que choro e gemo Na extremidade j do precipcio:

    De mim prprio me livra, oh Deus supremo!Porque o meu corao propenso ao vcio, Senhor, o contrrio que mais temo.

    Nos campos o vilo sem sustos passa,inquieto na corte o nobre mora;O que ser infeliz aquele ignora,Este encontra nas pompas a desgraa:

    Aquele canta e ri; no se embaraa

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

    22/63

    Com essas coisas vs que o mundo adora:Este( oh cega ambio!) mil vezes chora,Porque no acha bem que o satisfaa:

    Aquele dorme em paz no cho deitado,Este no ebrneo leito precioso

    Nutre, exaspera velador cuidado:Triste, sai do palcio majestoso; .Se hs-de ser corteso, mas desgraado,Antes ser campons, e venturoso!

    Mais vale que delire o pensamento - Bocage

    Neste horrvel sepulcro da existnciaO triste corao de dor se parte;

    A mesquinha razo se v sem arte,Com que dome a frentica impacincia:

    Aqui pela opresso, pela violnciaQue em todos os sentidos se reparte,Transitrio poder quer imitar-te,Eterna, vingadora omnipotncia!

    Aqui onde o que o peito abrange, e sente, Na mais ampla expresso acha estreiteza, Negra idia do abismo assombra a mente.

    Difere acaso da infernal tristeza

    No ver terra, nem cu, nem mar, nem gente,Ser vivo, e no gozar da Natureza?

    M inh'alma quer lutar com meu tormento;Contenda intil! por ele o Fado:Antes de oprimir-me est cansadoEterna fora lhe refaz o alento:

    Mais vale que delire o pensamentoTe agora coa Razo debalde armado; menos triste, menos duro estadoA Desesperao, que o Sofrimento:A Desesperao solua e chora,A Desesperao mil ais desata,Parte do mal nas queixas se evapora:

    O Sofrimento azeda o que recata;Prende suspiros, lgrimas devora,tiraniza, consome, e s vezes mata.

    Aqui, onde arquejando estou curvado lei, pesada lei, que me agrilhoa,De lgubres ideias se povoaMeu triste pensamento horrorizado:

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

    23/63

    Aqui no brama o Noto anuviado,O Zfiro macio aqui no voa, Nem zune insecto algero, nem soaAve de canto alegre, ou agourado;

    Expeliu-me de si a humanidade,Tu, astro benfeitor da redondeza, No despendes comigo a claridade:

    S me cercam fantasmas da tristeza:Que silncio! Que horror! Que escuridade!Parece muda, ou morta a Natureza.

    Com ampla mo, benfica largueza,mil vezes me hs dourado a vida escura;aos fados meus, de horrvel catadura,

    mil vezes tens despido a atroz dureza:Blasone embora a tmida nobrezaDos timbres, que lhe engole a sepultura;Esse esplendor dos grandes ventura;Teu esplendor, Freire, natureza:

    Ante a luz, que do cu mil raios lana,dignidade sem mrito desdouro,mrito estreme a eternidade alcana:

    teu gnio benfeitor supre um tesouro;e eu, que obtive das Musas farta herana,

    pago - te em verso o que te devo em ouro.

    J com tnue claro, j quase escuraA nocturna Diana o cu volteia,sobre o Tejo azul, que mal prateia,Vai duplicando a trmula figura:

    Aura subtil nas rvores murmura, No lago adormecido a r vozeia,Mocho importuno agouros mil semeia,Dentre as umbrosas moitas da espessura:

    Letrgico vapor Morfeu derrama,Com que insinua um doce desalento No livre corao de quem no ama:

    Triste de mim! Se repousar intentoOs olhos me abre Amor, Amor me inflama,E Anlia me persegue o pensamento.

    Vs,que de meus extremos sois a histria, por negro zoilo em vo roubados,

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

    24/63

    nascidos da Ternura, e restauradosco pronto auxlio de fiel memria:

    Da Inveja conseguindo alta vitriaIde, meus versos, em Amor fiados,Que dele s dependem vossos fados,

    Que dele s demando a minha glria: No vos importe o pblico juzo;Da voz, que pelo mundo se derrama,Os vivas caprichosos no preciso.

    Voai aos olhos, cuja luz me inflama;Tereis de Anarda aprovador sorriso,Um sorriso de Anarda mais que a Fama.

    S e doce no recente, ameno Estio

    Ver toucar-se a manh de etreas flores,E, lambendo as areias, e os verdoresMole e queixoso deslizar-se o rio:

    Se doce no inocente desafioOuvirem-se os volteis amadores,Seus versos modulando, e seus ardoresDentre os aromas de pomar sombrio

    Se doce mares, cus ver aniladosPela quadra gentil, de Amor querida,Que esperta os coraes, floreia os prados:

    Mais doce ver-te de meus ais vencida,Dar-me em teus brandos olhos desmaiadosMorte, morte de amor, melhor que a vida.

    No abismo tragador da Humanidade(dela, dela no s, de quanto existe)coa mesma rapidez, Elmano, ah! vistesumir-se a florescente, e a murcha idade!

    Olha em muros, que veste a escuridade,Olha a cor de teu fado, a cor mais triste:Talvez (agora!... agora!...) ele te aliste No volume, em que l a eternidade!

    Oh tochas funerais! Claro medonho!Da morte oh mudas, solitrias cenas!Em vs arrepiado os olhos ponho!...

    Ah, porque tremes, louco? Ah! Porque penas?sonhas num ermo, e surgirs do sonhoem climas de ouro, em regies amenas.

    Meu ser evaporei na lida insanaDo tropel de paixes, que me arrastava;Ah! Cego eu cria, ah! msero eu sonhava

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

    25/63

    Em mim quase imortal a essncia humana:

    De que inmeros sis a mente ufanaExistncia falaz me no dourava!Mas eis sucumbe Natureza escravaAo mal, que a vida em sua orgia dana.

    Prazeres, scios meus, e meus tiranos!Esta alma, que sedenta em si no coube,

    No abismo vos sumiu dos desenganos:

    Deus, oh Deus!... Quando a morte luz me roubeGanhe um momento o que perderam anos,Saiba morrer o que viver no soube.

    J Bocage no sou!... cova escuraMeu estro vai parar desfeito em vento...

    Eu aos Cus ultrajei! O meu tormentoLeve me torne sempre a terra dura:

    Conheo agora j quo v figuraEm prosa e verso fez meu louco intento;Musa!... Tivera algum merecimentoSe um raio da razo seguisse pura!

    Eu me arrependo; a lngua quase friaBrade em alto prego mocidade,Que atrs do som fantstico corria:

    Outro Aretino fui... A santidade

    Manchei!... Oh! Se me creste, gente impia,Rasga meus versos, cr na eternidade!

    Mimo das graas te florece o canto,De ternas sensaes inda orvalhoso;D'alma, que em nctar inundei saudoso,Foge a dor, foge o mal, foge o quebranto:

    So melodia os ais, delcia o pranto,Que excita o verso teu, gentil, mimoso;Por ele jura Amor ser mais piedoso,E sente a Natureza um novo encanto;Estro do corao! Teus sons, teus lumes,Dos montes de perene amenidadeTentem no longo adejo os flreos cumes:

    Versos, no vos merece a frrea idade;Gozai no Olimpo, oh msica dos numes,Vosso ouvinte imortal, a Eternidade!

    Cara de ru, com fumos de juiz,Figura de presepe, ou de entremez,Mal haja quem te sofre, e quem te fez,

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

    26/63

    J que mordeste as dcimas que fiz:

    Hei-de pr-te na testa um T com giz,Por mais e mais pinotes, que tu ds;E depois com dois murros, ou com trs,Acabrunhar-te os queixos, e o nariz:

    Quem da cachola v te inflama o gs,E a abocanhares slabas te induz, dos brutos e alarves capataz?

    Nem sabes o A B C, pobre lapuz;E pasmo de que, sendo um Satans,Com tinta faas o sinal da Cruz!

    Magro, de olhos azuis, caro moreno,Bem servido de ps, meo na altura,Triste de facha, o mesmo de figura, Nariz alto no meio, e no pequeno:

    Incapaz de assistir num s terreno,Mais propenso ao furor do que ternura;Bebendo em nveas mos por taa escuraDe zelos infernais letal veneno:

    Devoto incensador de mil deidades(Digo, de moas mil) num s momento

    E smente no altar amando os frades:Eis Bocage, em quem luz algum talento;Saram dele mesmo estas verdades Num dia em que se achou mais pachorrento.

    II - ODES

    Assaz temos cantado, assaz carpido lira, doce lira,Os bens e os males do comum tirano,Que nas almas derramador, e o riso, o nctar, e o veneno.Longe a brilhante ideiaDe olhos fagueiros, de aneladas tranas,De anglicos sorrisos,De momentneos amorosos furtos;Longe a amarga lembranaDe vis perjrios, de cruis enganos,De traies estudadas;Longe as memrias da infiel Marlia.Feitios perigosos,Verdugos da alterosa Liberdade;

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

    27/63

    Tu, dom da formosura,fatal aos coraes, suave aos olhos;Tu, que em meus pensamentos No arbtrio meu desptico imperavas,Tirano, impe teu jugo,teu frreo jugo na cerviz daqueles

    Que a sisuda ExperinciaPor entre pavorosos precipciosInda ao templo remoto No guiou do profcuo Desengano.Vencida a longa estrada,Onde o Erro elevou montes e montesPara estorvar ao homemSagaz instinto, que Verdade o guia,Vejo, sado os lares,lares augustos do terrvel nume,Atento voz do aflito

    Que ingnuas preces lhe dirige s aras,

    Surdo a rogos falazesDo cego escravo, que idolatra os ferros,Liberdade implorando...Que solido, que plcida tristeza,Que profundo silncioReina em torno do alcar venerando!Oh sacro domiclioDa Verdade imortal!... Qu! Tu num ermo!Os teus trios desertos,Sem culto, sem ministro os teus altares,Enquanto v grandezaServil caterva prostitui incensos,E a curvada Lisonja

    Os crimes doura, os vcios abrilhanta!Ah! Eu te vingo, oh deusa!Eu entro o franco prtico espaosoE s aras... Mas que sinto!Que gelo, que tremor, que sobressaltoMe prende a voz, e a planta,Me abate as foras, me arrepia as carnes!Corao, que te assombra?Que temes, corao? Perder Marlia?Marilia acaso tua? No maculou traidora os puros votos,Os ternos juramentos? No viste a desleal sem dor, sem pejo,Cevar-se nos teus males,Cos lindos olhos de Fileno absortos?Que importa que em seus lbios,Seu ledo rosto, seu virgneo seio,Os Amores, e as GraasPressintam mil imagens deleitosas,Onde os sentidos pascem,Que importa, se a traio surgiu do AvernoA corromper-lhe o peito?Que vale sem virtude a formosura?Cede ao tempo, desgraa;Do espirito a beleza sempre nova.Corao, triunfemos,Triunfemos da prfida Marlia,E se a razo no basta,Vena a vaidade o que a razo no vence.Envergonha-te ao menos

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

    28/63

    De seres s feliz quando o permiteO teu rival soberbo,Que enjoando os afagos importunosDa perjura, que adoras,s vezes com desprezo em cio os deixa,E se a ti se dirigem,

    No vm do corao, vm do costume.Eia, msero escravo,Sacode o jugo, despedaa os ferros,A vaidade te anime:Quase tudo o que raro, estranho, ilustre,Da vaidade procede,Mvel primeiro das aces pasmosas.Tente-se a grande empresa,Forcem.se os fados... Ai de mim! Palpitas?E em frequentes arrancosComo que exprimes o pavor da morte!Corao, no desmaies,Alenta~te, infeliz... Porm que escuto!

    Que rudo! que assombro!Que resplendor me cerca, e me deslumbra!Torvos drages, batendoAsas de negra cor com duro estrondo

    Se encontram, se atropelam,E quais nocturnas aves, que amedrontaO claro matutino,Espavoridos pelos ares fogemAo fulgor cintilanteDe rubro facho, que na dextra empunhaVenervel matrona,Librada sobre os Zfiros plumosos!

    Ah! Quem s? Vens do Olimpo,Portentosa viso? Vens socorrer-me?Ou s areo frutoDa enferma, delirante fantasiaQue entre iluses vagueia?... No; j me iluminaste a mente cega,Reconheo-te, deusa,s a prole dos Cus, s a Virtude,Que no benigno seioAcolhes os meus ais, os meus remorsos,Indulgente demoraQue tive em demandar teu santo asilo.Esses monstros, voandoAnte o celeste resplendor, que espraias,So pungentes saudades,Feias traies, frenticos cimes,Que invisveis t agoraAs clidas entranhas me ralavam.Graas, divindade,Que do sbio varo mantns o esforoQuando a volvel sorte,Inimiga do mrito, o sepulta Nas solitrias sombrasDe profunda masmorra aferrolhadaOnde por mos infamesDe asprrimas correntes o carrega:

    Munido da inocnciaContigo ri o heri no cadafalso;

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

    29/63

    Contigo alegre observa

    Do carrancudo algoz na mo terrvelO amolado cuteloExecutor da brbara sentena;E contigo, deidade,

    alta benfeitora, encaro as portasDo formidvel templo.Teu sagrado fervor de veia em veiaMe agita, me transporta,Eu te sigo, eu te sigo... Oh cus! Oh deuses!J sou meu, j sou livre.dolo falso, que de altar profanoDavas leis minh'alma,Recebias meus votos, meus incensos,Tributos da fraqueza;Aleivosa Mania, horror e afrontaT do tropel de ingratas,De astutas, de infiis, que o mundo infamam,

    O escravo de teus olhos,A vtima infeliz de teus enganosJ tem rotos os ferros,Solta a vontade, o corao tranqiloComo o Sol, quando vibra Na cristalina esfera os raios de ouro,Gasta, desfaz, consomeVapores, que exalou do seio a Terra;Tambm, falaz Marilia,As luzes, que a verdade em mim dardeja,Absorvem, desvanecemA funesta iluso, que na minh'almaTe assemelhava aos deuses.

    Ingrata, consumiram-se os incensos,Retractaram-se os votos,Foram-se as oblaes, e os sacrifcios,Caiu o altar, e o nmen!

    De porto mal seguro a turvo pegoSai mesquinho baixei com raras velas,Vai crespas ondas pvido talhando discrio dos ventos:

    Nauta inexperto lhe dirige o leme,Chusma bisonha lhe maneia o pano;De um lado fervem Sirtes, de outro lado Navfragos penedos:

    Sussurrante chuveiro os ares cerna,Luz sulfreo claro de quando em quando,D'iminente pnocela os negros vultosFeno estrago ameaam:

    J bravos escarcus, que se amontoam,Por cima do convs soberbos saltam:Prossegue na derrota o dbil pinho,Das vagas quase absorto.

    Depois de longamente haver corridoA estrada desigual com cus adversos,

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

    30/63

    Em lugar de colh-lo, o pano aumenta,Desafia o naufrgio:

    Imaginria terra se lhe antolha,De mil, e mil venturas semeada:Anelas por surgir no porto amigo,

    Cobiosa Esperana:Para cevar o horror mais campo havendo,A torva tempestade ento mais zune,Em raios, em tufes todo o ar converte,Todo o plago em serras:

    O msero baixel desmanteladoAos duros encontres do mar, do vento,Sobe s estrelas, aos abismos desceEntre o pavor, e a morte:

    Sbito acode prvido piloto,

    Que oprimido at'li jazera em ferros Num vil crcere escuro, onde rebeldesO tinham sopeado:

    Estende a mo forosa, aferra o leme,O lenho desafronta, o rumo escolhe,Com saber eficaz, com alta indstriaVai sustendo a tormenta.

    J volumosas nuvens se adelgaam,O vento se amacia, o mar se aplana:Do benigno Santelmo o tnue lumeReluz no areo tope.

    Reina um pouco a suave, azul bonana;Mas eis se tolda o cu de novas sombras;Mais negra, mais feroz, mais horrorosaRessurge a tempestade.

    O sbio director, que todo ufanoDa recente vitria inda folgava,A repetido assalto ope debaldeArte, vigor, constncia.

    Tremendo aos furaces impetuososL descoroa enfim, l desalenta;Coa mquina infeliz, que j no rege,Misrrimo soobra:

    Oh ente racional! Oh ente frgil!Escravo das paixes, que te arrebatam!Olhos sisudos neste quadro emprega:Eis o quadro da vida.

    M usa, no gemas; ergue, desgraadao rosto macilento;Da vista a frouxa luz, quase apagada Nas lgrimas que vertes; Musa, alento!Move a trmula planta,Pisa os receios, e a Manilha canta.

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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    Canta da ilustre dama a gentileza,A prole esclarecida,Os dons da sorte, os dons da natureza,As prendas com que a vs enriquecida;E depois de a louvaresTorna os teus choros, torna os teus pesares.

    Ah! Que j sinto, milagroso objecto,Quanto pode o teu rosto!Da malfadada Musa o torvo aspectoJ cora, j se vai do meu desgostoSumindo a nvoa densa,Que desfaz, como o Sol, tua presena.

    Inclina pois, magnnima senhora,Os dementes ouvidosA voz, que no profere aduladoraAltos encmios de razo despidos;A verdade celeste

    Com seu cndido manto os orna, e veste.A ti, dignos de ti, Marlia, voam;A ti, bela herona,Cujas mil graas mil virtudes c'roam;A ti, que enches de glria a frtil China,Enquanto a que te adoraMsera ptria, tua ausncia chora.

    As deidades, criando-te, exauniramO seu cofre divino;A teus encantos para sempre uniramEm ureo lao o mais feliz destino;

    E eis os dons com que brilhasReproduzidos nas mimosas filhas.

    Esses tenros, lindssimos pedaosDa tua alma preciosa,O ledo par gentil, que nos teus braosDas doces, maternais carcias goza,Teus dias felicita,E nas amveis perfeies te imita:

    Com meiga voz, com eficaz exemplo,Com saudveis doutrinasAo que habita a Virtude eterno temploO caminho estelfero lhe ensinas;A mim, mor tal profano,A mim to rduo, para ti to plano.

    J do etreo vestbulo te acena Almo esquadro radioso:J na celeste regio serenaGnios sem mancha em hino harmonioso Te nomeiam... L bradaDe ilesas virgens multido sagrada.

    No ouves, 6 Marlia, as vozes delas? Repara como of'recemDo teu pudico amor s prendas belas A glria sem limites, que merecem... No me engano, em vs chove O fragrante licor, que liba Jove.Vs sois... Porm no mais, oh Musa inerte! Basta, cesse o teu canto;As vozes de prazer em ais converte, Nadem teus olhos outra vez em pranto; Que as almas compassivasAtendem mais s lgrimas que aos vivas.

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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    Com suspiros, 6 triste, implora, implora De Marlia a piedade;Ela justa, ela sente, ela deplora Os erros da infeliz humanidade;Contra o fado inimigo Na sua compaixo procura abrigo.

    Roga, roga-lhe enfim, que te destrua As nsias, os temores;

    Que ptria, ao prprio lar te restitua:Ah j te diz que sim: - no mais clamores; Musa, Musa descansa,Cantemos o triunfo, oh Esperana!

    Olha como a tirana, a m Desgraa As cobras arrepela,E as sanguinosas vestes despedaa!...Zombemos, corao, zombemos dela:Monstro, j no me espantas,L cai, l treme de Marlia s plantas.

    III - CANES

    Agora, que ningum vos interrompe,Lgrimas tristes, inundai-me o rosto,Mais do que nunca; assim o quer meu fado:Enquanto o gume de mortal desgostoMe no retalha os amargosos dias,Debaixo destas rvores sombriasGrite meu corao desesperado,Meu corao cativo,Que s tem nos seus ais seu lenitivo.

    Alterosas, frutferas palmeiras,

    Vs, que na glria equivaleis aos louros,Vs, que sois dos heris mais cobiadas

    Que ureos diademas, que reais tesouros,Escutai meus tormentos, meus queixumes,Meus venenosos, infernais cimes;Ouvi mil penas, por Amor forjadas,Mil suspiros, mais tristesQue todos esses, que at'qui me ouvistes.

    Aqueles campos, aprazveis campos,Que alm verdejam, de meu mal souberamA desgraada, mas suave origem:Ali de uns olhos os meus ais nasceram;Ali de um meigo, encantador sorriso,Que arremeda o sereno paraso,Brotaram mil infernos, que me afligem,Que as entranhas me abrasam,Que meus olhos de lgrimas arrasam:

    Ali de uns lbios, onde as Graas brincam,Ouvi suspiros, granjeei favores,Ali me disse Anarda o que eu no digo;Ali, volvendo os ninhos dos Amores,Cravou nest'alma, para sempre acesa,As perigosas frechas da beleza;Ali do prprio mal me fez amigo,Ali banhou meu rostoParte do corao, desfeita em gosto.

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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    Novas campinas testemunhas foramDe nova glria, de maior ventura,Tal, que julguei, logrando-a, que sonhava:Entre as doces prises da formosura,Entre os cndidos braos deleitosos,

    Meus crestados desejos amorosos No alvo rosto, que o pejo afogueava, No nctar... ah! que eu morro,Se em vs, furtivos xtases, discorro!

    Amor! Amor! Teus jbilos excedemDa loira abelha os engenhosos favos,Mais gratos so que as flores teus sorrisos:Gostei todos os bens, que aos teus escravosFazem t leve a rgida cadeia,To doce a chama, que no peito ondeia:Mas oh! Cruis teus dons, cruis teus risos,Princpio do tormento,

    Que j me tem delido o sofrimento.Miservel de mim! Qual o piloto,Que lera nos azuis, filtrados aresIndcios de uma slida bonana,E eis que v de repente inchar os mares,Vestir-se o cu de nuvens, donde choveO fogo vingador, que vibra Jove;Tal eu, quando supus mais segurana No meu contentamento,O vi fugir nas asas de um momento.

    Anarda, Anarda prfida, teus olhos,

    Onde Amor traz escrita a minha sorte,Teus mimos por mim s no so gozados!Oh desesperao, pior que a morte!Oh danados espritos funestos,De hrridos vultos, de terrveis gestos,Moderai vossa queixa, e vossos brados,Que as penas do profundoTambm, tambm se encontram c no mundo!

    Ver outro disputar-me o caro objecto,Em cujas lindas mos pus alma, e vida, No me arranca suspiros: o tormento,Que no peito me faz mortal ferida,O maior dos tormentos, perjura, ver, que de outrem sofres a ternura:E ver, que ds calor, que ds alentoA seus mimos, e amoresCum riso, precursor de mil favores.

    Tu no foges de mim, tu no te esquivasDestes olhos, que em ti cativos andam;Delcias, onde pasma o pensamento,Doces instantes meu cime abrandam:Mas ah! No s minha esta ventura,Meu vaidoso rival a tem segura.Que indigna variedade! Em um momentoTeus olhos inconstantesAcarinham sem pejo a dois amantes.

    Honra, Virtude, Agravo, e Desengano

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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    Me gritam n'alma, que sacuda os laos,Que tanto sofrimento j vileza;Ouo-os, protesto desdenhar teus braos,Protesto, ingrata, converter meus cultosEm mil desprezos, irrises, e insultos:Mas ah! Protestos vos, baldada empresa!

    Sou a amar-te obrigado; No loucura o meu amor, fado.

    Cano, vai suspirar de Anarda aos lares;Mas se no lhe firmaresO instvel corao, deixa a perjura,E iremos sossegar na sepultura.

    I nda no bastam, minha voz cansada,Tantos ais, que tens dado;

    necessrio renovar queixumes,Queixumes, de que o fero Amor se agrada,De que zombando est meu duro fado:Gritemos, pois, frenticos cimes,Gritemos outra vez; que dos aflitosSo triste refrigrio os ais, e os gritos.

    Carrancuda Agonia, azeda, azedaInda mais, se possvel,O venenoso fel, que em mim derramas;Doces enganos da minh'alma arreda,Deixa-lhe a dor intensa, a dor terrvelDos gneos zelos, das tartreas chamas,

    Deixa-lhe as nsias, a peonha, as iras,E a desesperao, que tu respiras.

    Farte-se Anarda, o varivel peito,Cujas graas me encantam,Cujas traies no corao me ferem,E por quem gemo, em lgrimas desfeito:Que j mil bens dulcssimos no cantamOs ternos lbios meus, antes proferemLamentos contra Amor, contra a Ventura,Conhea a desleal, saiba a perjura.

    Sim, traidora, que o jbilo em torrentesViste alagar meu rosto,Quando em teus braos possu mil glrias,Hoje morro de angstias, e o consentes,Podendome, cruel, matar de gosto?Oh xtase! Oh delcias transitrias!Oh vo prazer dos crdulos amantes,Mais fugaz que os algeros instantes!

    Cansaste, Anarda: a slida firmezaVezes mil protestada,Votos de eterna f, que me fizeste,Manter no pde feminil fraqueza,A quem somente a novidade agrada:J lugar na tu'alma a outro deste,E o mais ardente amor, o amor mais puro No satisfaz teu corao perjuro.

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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    Se me fugisses, se de todo as chamas,Que por mim te abrasavam,A nova inclinao te amortecera,Desculpara esse ardor, em que te inflamas;Porm quanto, infiel, quanto me agravamOs sorrisos de amor, com que assevera

    Teu gesto encantador, teu meigo rosto,Que inda propende a saciar meu gosto!

    Presumes, que se paga uma alma nobre,Um corao briosoDe um srdido prazer, torpe, e corruptoQual esse, que me ofertas, se descobre?Assim s pode o vil ser venturoso,Essa fortuna por baldo reputo:Em amor antes s ser desgraado,Que de outrem na ventura acompanhado.

    Vai, fementida, que a paixo perfeita

    Os seus dons no reparte;Vai gemer noutro peito, e noutros braos:Prfidos mimos desse infame aceita,Enquanto juro aos Cus de abominar-te,Enquanto arranco meus indignos laos,Enquanto... ah! Que falei! Meu bem, detm-te,Abafa a minha voz, dize que mente!

    Eu deixar-te (ai de mim!) primeiro a TerraMostre as fundas entranhasPor larga boca horrvel, que me trague:Primeiro o mar, e o Cu me faam guerra,Despenhem-se primeiro estas montanhas,

    E a meu corpo infeliz seu peso esmague:Primeiro se confunda a Natureza,Que eu cesse de adorar tua beleza.

    Vejam meus olhos esses teus pasmadosDe um rival no semblante;Oua-te os ais, que com seus ais misturas,E os agrados, que opes aos seus agrados:A tudo est sujeito um cego amante,Que no pode quebrar prises to duras;A tudo estou submisso, estou disposto,Quero tudo sofrer, porque teu gosto.

    Ter por crime, supor vilezaTo cruel tolernciaQuem no sente o poder da formosura;Porm minh'alma, nos teus olhos presa,Inda chega a temer, que esta constnciaProva no seja de exemplar ternura:E saibam, se com isto um crime fao,Que o crime adoro, que a vileza abrao.

    Sobre as asas dos ventosCano chorosa, e rouca,Vai narrar pelo mundo os meus tormentos:De almas esticas a dureza louca Rir dos teus lamentos;Mas nos servos de Amor ters abrigo:Quando te ouvirem, choraro contigo.

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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    EPICDIO

    A OLINTA

    Co/ei di gioia trasmutossi, e rise,E in atto di morir /ieto, e vzvaceDir parea: s'apre ii cie/o, io vado in pace'.Tasso, Jerusa/. Libert., canto XII

    ( 'COLEI DI GIOIA TRASMLJTOSSI ... lO VADO fN PACE. Ela de gudio transmutou-se, e riu,! E no semblantede morte ledo e vivaz! Parecia dizer: abre-se o cu, vou-me em paz. )

    O linta jaz na terra,Contigo, Noite, para sempre mora,

    E Amor grita, Amor chora,Chora o fagueiro Amor, que lhe brincava Nos melindrosos braos,Movendo aos coraes sangunea guerra;Ei-lo j delirante; a ebrnea aljava,Arco, venda, farpes eis em pedaosSobre o frio, o medonhoLugar sagrado, aondeCom ar inda risonhoO seu, e o nosso bem se nos esconde; Na terra oculto jaz mais um tesouroPor decreto da Sorte:Daquela tenra vida o fio de ouro

    Quo cedo rebentou nas mos da Morte!...Ah Morte inexorvel, que te nutresEm runas, em ais, em sangue, em pranto!Mais negra que os Infernos, mais famintaQue os famintos abutres! tu, da humanidade horror, e espanto,Levaste - lhe o melhor, levaste Olinta;Olinta, em cujas faces delicadasCoraes atraam

    As rosas sobre neve desfolhadas,Que de virgneo pejo se acendiamAo brando assalto da menor fineza;Olinta, em cujos olhos, que encantavam,Ufana se revia a Natureza!Olhos! Flama celeste, a que voavamAorados, ternssimos desejos,E onde, quais borboletas, se crestavam,Dando suspiros, dando-vos mil beijos,Olhos! Olhos! Oh dor! E estais fechados!Estais de opacas nvoas eclipsados!Olhos suaves, olhos milagrosos,Com vossos deleitososE froixos movimentosDveis flores aos prados,Alento aos coraes desesperados,Enfreveis os ventos,Removeis das rochas a dureza,Transgredeis as leis da Natureza,E no podeis sair desse letargo!...

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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    Oh doidas iluses! Oh desvarios!Oh desengano amargo!Olhos tristes, sem luz, olhos j frios,A Morte no se rende Formosura: No, jamais torna a si, jamais despertaQuem dorme, como vs, na sepultura.

    A desesperao, que nunca acerta No que faz, no que diz, porque no pensa, Nest'alma, de aflio, de amor perdida,Loucuras proferiu. No h quem venaO monstro, que executa a lei da Sorte:E um contrato a vida,Que fez o justo Cu co mundo ingrato,E tu deste contrato

    s fatal condio, terrvel morte,Que restituis a matria ao nada.O rei, que os povos como filhos ama,E que de benfeitor, de pio a fama

    Preza mais do que a prpura sagrada,Castigando com lstima o delito,Reinando em coraes, qual novo Tiro;Aqueles, que entre bando lisonjeiro,Servil, e dependente,Se presumem do raio omnipotenteLivres, seguros, coa Fortuna ao lado,E de mais pura massaQue o frgil barro do varo primeiro:Aqueles, que com ar divinizado,Insensveis aos gritos da Desgraa,Envolvidos em lcido brocado,E tendo a mansido por um desdouro,

    Para vs olham, mseros, e pobres(Ricos talvez de espritos mais nobres)Qual para o mundo o Sol do carro de ouro,Todos ho-de sulcar (oh Morte! Oh Fado!)Esse horrendo OceanoDa nunca fatigada eternidade:L vero, que no mundo a voz do EnganoTraz o filho da terra alucinado,Que no mundo no h felicidade;Todos, todos ho-de ir, por lei superna, Inviolvel, eterna,Dormir nas trevas como Olinta dorme...Mas ah! Filha cruel de rebo enorme,Mudo espectro horroroso,Verdugo universal! No te enganasteAo menos, quando a fouce preparasteContra o peito mimoso,Cujos tesouros, que o purpreo pejo sombra do vu cndido zelavaDo espiador, solcito desejo,

    Meu pensamento audaz apenas via,E inda eu v-los assim no merecia! Nem sequer desviaste a mo ferinaUma vez, parecendo-te divina,E exempta das penses da NaturezaAquela rara, e cndida beleza;O mgico volver dos olhos puros,Que viam seus escravos quantos viam;

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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    Os olhos, ante quem se derretiamOs penedos, os mrmores mais duros;A longa trana, a face transparente,To meiga para ns, como inocente;A rubra, intacta boca, as mos nevadas,A flor da gentileza, a flor dos anos,

    As patticas vozes, j truncadas,Que no feriram s peitos humanos,Que essas montanhas estalar fizeram,Ao menos no puderam,Hrrido monstro, monstro famulento,Teu golpe demorar por um momento!Monstro, monstro voraz, se nos tragasteTodo o bem, todo o gosto

    Naquele singular, benigno rosto,Para que nos deixasteC nesta solido? Mortais, choremos,A ver se fora de chorar morremos:Por Olinta querida

    Em lgrimas de amor se esgote a vida!Fervam suspiros, fervam pelos ares,E criem nossos olhos novos mares.De um bem, que spera lei de ns desterra,A falta, a perda qual de vs no sente?Mundo, suspiros, lgrimas, oh gente!Olinta foi-se, Olinta jaz na terra.Gritemos.., sempre em vo, tristeza, e luto Nos volva em noite o dia,Gritemos.., sempre em vo... Porm que escuto!Cus! Estrelas! Que sbita harmonia,Que nunca ouvido tom, que etreo cantoMe faz balbuciar no meu lamento,

    Me faz a meu pesar conter o pranto!Desencrespou-se o mar!... Nem bole o vento!...Soava aquele arroio.., ei-lo calado,E como que se ri de gosto o prado!

    Oh pasmo! Oh maravilha!Este canto... este som... no terreno...Vem do Cu, vem do Cu, que to sereno,Olhos meus, nunca vistes; Nctar consolador minh'alma rega...Porm que nova luz nos ares brilha!Que resplendor me cega! vista dele o Sol despe a beleza,Como vista do dia a tocha acesa!Que isto, corao! Lgrimas tristes,Recuastes, fugistes!Que doura! Que encanto!Este som faz que em xtase me sinta!... verdade, verdade: os anjos ouo...Mas digno um mortal de ouvir-lhe o canto?Humanos, escutais? Oh cus! Olinta!Olinta! iluso do pensamento... No, no ... que portento!Humanos, ateno: - "Na corte imensaDo rei, que vibra os raios vingadores...Prostrada.., aos ps divinos...Olinta... goza j... da recompensa...Das palmas... da virtude.., os seus louvores...Sobre... as asas... dos hinos...

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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    Como... soam no Cu.., na Terra soem...Consolai-vos... humanos,.,Mais suspiros... no voem;Vosso nscio queixume... a Deus insulta,Longe... de olhos profanos...Que no merecem... ve-la, aqui... se encerra...

    Aqui... das virgens.., entre o coro exulta..,Consolai -vos.., humanos,.,Olinta... est.,, no Cu.., no jaz na terra."Ah! Que o verso adorvel emudece,E a luz celestial desaparece!Deus! Oh Deus! Ser sonho?Ser sonho, mortais, o que escutamos? No, no , que inda o prado est risonho,Que o lmpido regato inda no anda, Nem Zfiro bafeja os arvoredos, Nem bate o mar nos ngremes penedos.Ah! Bendito o Senhor, que nos abrandaEsta saudade, que mortal julgamos.

    Prazer, oh mundo, cnticos, oh gente!Olinta est nos Cus, e l piedosaDesde os ureos degraus do trono eternoDo nume omnipotente Nos chama para o bem, de que ela goza.L faz estremecer o horrendo Inferno,L prende, orando, o brao justiosoDaquele, mais que os sculos anoso,Que, farto de sofrer nossos delitosQuase, quase infinitos,Me faz crer a Razo, que j queriaMostrar-nos, mortais, quanto podia,Lanando-nos s testas criminosas

    Irresistvel, pavoroso estrago:A brbara invaso, que oprimiu Roma,

    Hrrida fria, que arrasou Cartago,Ou chuva ardente, que inundou Sodoma.Cenas terrveis, cenas lutuosas,Olinta quem de ns vos afugenta,Olinta a mo sustm, que nos sustenta...Ah! Gratido, saudade! A nossa amadaSeja, seja cantada;Versos em vez de lgrimas lhe demos,Do cedro vivedouroCom seu nome adorado o tronco honremos;De beijos, e de rosasCubra-se o cofre, cubra-se o tesouroDaquelas sacras cinzas preciosas;E depois que do peito amortecidoA nossa frgil vida transitriaVoar nas asas do final gemido,Vereis quo terna Olinta nos recebeL nessas fontes de inefvel glria,Onde mais quer beber quanto mais bebe.Longe da nossa ideia, oh bens mundanos!Sim, desde agora vos armamos guerra.Orai a Olinta, no choreis, humanos:Olinta est no Cu, no jaz na terra.

    Outros PoemasELEGIAS

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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    TRGICA MORTE DA RAINHADE FRANA, MARIA ANTONIETA

    Guilhotinada aos 16 de Outubro de 1793

    Sculo horrendo aos sculos vindouros,Que ias intilmente acumulandoDas artes, das cincias dos tesouros:

    Sculo enorme, sculo nefando,Em que das fauces do espantoso AvernoDrages sobre drages vm rebentando:

    Marcado foste pela mo do Eterno

    Para estragar nos coraes corruptosO dom da humanidade, amvel, terno.

    Que fatais produes, que azedos frutosDs aos campos da Glia abominados, Nunca de sangue, ou lgrimas enxutos!

    Que horrores, pelas Frias propagados,Mais e mais esses ares enevoamDa glria longo tempo iluminados!

    Crimes soltos do Inferno a Terra atroam,E em torno aos cadafalsos lutuosos

    Da sedenta vingana os gritos soam.Turba feroz de monstros pavorososO ferro de mpias leis, bramindo, encravaEm mil, que a seu sabor faz criminosos.

    A brilhante nao, que blasonavaD'exemplo das naes, o trono abate,E de um senado atroz se torna escrava.

    Por mais que o sangue em ondas se desate Nada, nada lhe acorda o sentimento,Que as insanas paixes prende, ou rebate;Vai grassando o furor sanguinolento,Lavra de peito em peito, e de alma em alma,Qual rubra labareda exposta ao vento:

    No cede, no repousa, no se acalma,E a funesta, insolente liberdadeErgue no punho audaz sangunea palma.

    Brbaro tempo! Abominosa idade,s outras eras pelos Fados presaPara labu, e horror da humanidade!

    Flagelos da virtude, e da grandeza,Rus do infame e sacrlego atentadoDe que treme a Razo, e a Natureza!

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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    No bastava esse crime?... Inda o danadoEsprito, que em vs est fervendo,A novos parricdios corre, ousado?...

    JUSTOS CUS ! QUE ESPETCULO TREMENDO ! magens de terror; que horrvel cena

    Que imagens de terror ; que horrvel cenaVou na assombrada ideia revolvendo!

    Que vtima gentil, muda, e serenaBrilha entre espesso, detestvel bando, Nas sombras da calnia, que a condena!

    Orna a paz da inocncia o gesto brando,E os olhos, cujas graas encantaram,Se volvem para o Cu de quando em quando:

    As mos, aquelas mos, que semearamDdivas, prmios, e na mole infncia

    Com os ceptros aurferos brincaram.Ludbrio do furor, e da arrognciaSofrem prises servis, que apenas senteO assombro da beleza, e da constncia.

    Oh justia dos Cus! Oh mundo! Oh gente!Vinde, acudi, correi, salvai da morteA malfadada vtima inocente!...

    Mas ai! No h piedade, que reporteA raiva dos terrveis assassinos;Soou da tirania o duro corte.

    J cerrados estais, olhos divinos;J voando cumpriste, alma formosa,A frrea lei de asprrimos destinos.

    Do Rei dos reis na corte luminosaRevs o pio heri, por ns chorado,Que da excelsa virtude os lauros goza.

    Na mente vos observo: ei-lo a teu ladoImplorando ao Senhor, que os maus flagela,Perdo para o seu povo alucinado.

    Despido o vu corpreo, alma bela, No seio de imortal felicidade,S sentes no voar mais cedo a ela.

    Enquanto aos monstros de hrrida maldadeMurmura a seu pesar no peito irosoA voz da vingadora Eternidade.

    Desfruta suma glria, par ditoso,Logra em perptua paz jbilo imenso,Que o mundo consternado, e respeitoso,

    Te apronta as aras, te dispe o incenso.

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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    IDLIOS

    FILENA, OU A SAUDADE

    (Pastoril)

    Que terna, que saudosa cantilenaAo som da lira Melibeu soltava,O pastor Melibeu, que por Filena,Pela branca Filena em vo chorava!Inda me fere o peito aguda pena,Quando recordo os ais, que o triste dava,O pranto que vertia, amargo, e justo sombra, que ali faz aquele arbusto.

    Tu, maviosa a choros, e a clamores,

    Tu, Vnus (Vnus s na formosura)Luz de meus olhos, nicos amoresDesta alma, e seu prazer, sua ventura;Que reclinada, amarrotando as flores,Descansas em meu peito a face pura,Ouve-me os ais, e as queixas de outro amante.Que ao teu no ardente extremo semelhante.

    "Cus! (assim comeou, e eu escondidoEntre as copadas rvores o ouvia)Por vs em duras mgoas convertidoVejo enfim todo o bem, que possua: cndida Filena estar unido

    Julgastes que um pastor no merecia:A mais doce priso de Amor partistes.Ajuda, triste lira, os versos tristes.

    Mal haja a lei dos fados inclemente!O seu poder, o seu rigor praguejo:Morte! Geral verdugo! Ests contente?J saciaste o sfrego desejo?...Mas Filena inda viva, inda me senteSuspirar nos seus braos: inda a beijo!...Ah meus olhos, morreu: sem alma a vistes.Ajuda, triste lira, os versos tristes.

    Em ti, cara Filena, a sepulturaTem de Amor, tem das Graas o tesouro;Ali te arranca a morte acerba, e duraDa mimosa cabea as tranas de ouro:Eis terra, eis cinza, eis nada a formosura...Ah! Que no pude perceber o agouroCom que esta perda, oh fados, me advertistes!Ajuda, triste lira, os versos tristes.

    Um dia, h tempos, Lnia, a feiticeira,Me disse: 'Grande mal te est guardado!' No mo quis declarar, e ave agoureiraDe noite me piou sobre o telhado:Cuidei que perderia a sementeira,O rebanho, o rafeiro... ah desgraado!Perdeste mais, e a tanto inda resistes!Ajuda, triste lira, os versos tristes.

  • 8/14/2019 Sonetos - Manuel Maria de Barbosa Du Bocage

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    A tua meiga voz, o teu carinhoMaior falta me faz, minha Filena,Que l no bosque ao rouxinol szinhoDa presa amiga a doce cantilena:O teu branco, amoroso cordeirinho,

    Mal que se viu sem ti, morreu de pena:Balar saudoso, montes, vs o ouvistes.Ajuda, triste lira, os versos tristes.

    O meu rebanho definhou de sorte,Depois que te perdi, que anda caindo;Seca estes campos o hlito da MorteDesde que ela sumiu teu gesto lindo:Rogo-lhe vezes mil, que me transporteL onde, como estrela, ests luzindo,L onde alegre para sempre existes.Ajuda, triste lira, os versos tristes.

    A roseira tambm, que tu plantaste,Teu prazer, e prazer da Natureza,Murchou-se logo assim que te murchaste,Oh flor na durao, flor na beleza!A pequenina rola, que apanhaste, No comeu mais, finou-se de fraqueza:Porque blasfmia, deuses, me punistes?Ajuda, triste lira, os versos tristes.

    J pelas selvas, ao raiar da aurora,Caando, as tenras aves no persigo;Tudo me anseia, me enfastia agora, Nem sofro os que por d vm ter comigo:

    Figura-me a saudade a toda a horaTernas delcias, que logrei contigo.Ah! Quo depressa, gostos meus, fugistes!Ajuda, triste lira, os versos tristes.

    Como as formigas pelo cho, no Estio,Ou como as folhas pelo cho, de Inverno, No aflito corao, que em ais te envio,Jazem penas cruis, quais as do Inferno:Ora me sinto arder, outr'hora esfrio,Desfaz-me em nsias um veneno interno:Talvez meus ps, oh vboras, feristes!Ajuda, triste lira, os versos tristes.

    Nos troncos, e nos mrmores gravemosMemrias de Filena idolatrada,To digna de suspiros, e de extremos,De tantos coraes to cobiada:Amor! Amor! Seu nome eternizemos...Ai, que me falta a voz! Socorro, amada;Conforta-me dos Cus, aonde assistes! No mais, triste lira, versos tristes."

    QUEIXUMES DO PASTOR ELMANOCONTRA A FALSIDADE DA PASTORA

    URSELINA

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    Metido tenho a mo na conscincia.E no falo seno verdades puras.Que me ensinou a viva experincia.Cames, Soneto LXXXVII

    Seu manto desdobrava a noite escura,E a r no charco, o lobo na espessuraVociferando, os ares atroavam;Do trabalho diurno j cessavamOs rudes, vigorosos camponeses:O vaqueiro, cantando atrs das teses,Aps as cabras o pastor cantando,Iam para as malhadas caminhando;Tudo jazia em paz, menos o triste,O desgraado Elmano, a quem feriste, pernicioso Amor, cruel deidade,Flagelo da infeliz humanidade:Tudo enfim descansava, excepto Elmano,

    Que a mo do Fado, universal tirano,Sentia sobre si descarregada;Que, longe da paterna choa amada,Dependente vivia em lar, estranhoSendo os desgostos seus o seu rebanho.Honrados maiorais o ser lhe deramL junto ao Sado ameno, e lhe fizeramDas artes cortess prezar o estudo:As Musas o encantaram mais que tudo,Ateando-lhe n'alma o fogo santo,Que estpidos mortais desdenham tanto.Inflamado com ele, ao som da liraQuebrava dos tufes a fora, a ira,

    E o venerando Tejo sossegado,A cuja fresca praia o trouxe o Fado,Mil vezes, para ouvir-lhe as ternas mgoas,A limosa cabea ergueu das guas.Cego, convulso, plido, e sem tinoEntrava na cabana de FrancinoO desditoso Elmano. Entre os pastoresGeral estimao, gerais louvoresFrancino com justia desfrutava:Alto saber o esprito lhe ornava, Na vasta capital fora criado,E por expertos mestres cultivado.Doce n de amizade os dois unia,Concorrendo a razo, e a simpatiaPara to bela, e plcida aliana. Notando, pois, a fnebre mudana,Que no aspecto do amigo aparecia,Assim Francino a causa lhe inquiria:

    FRANCINO

    Que tens, Elmano? Que fatal desgostoBanha de tristes lgrimas teu rosto?Tu, que ainda h brevssimos instantes,Te aclamavas feliz entre os amantes,Logrando mil carinhos, mil favoresDe Urselina gentil, dos teus amores,Vens to choroso, to aflito agora!Ah! Conta-me a paixo que te devora,

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    Das nsias tuas o motivo explica:Comunicado o mal, mais brando fica.

    ELMANO

    Ai de mim! Venho louco, estou perdido.Oh peito ingrato! Corao fingido!

    Oh desumana, oh brbara pastora!Fementida mulher enganadora!...E tiveste valor para a mais feiaTraio, que pode conceber a ideia? possvel! certo! Oh cus! Socorro!...Eu pasmo, eu desespero, eu ardo, eu morro.

    FRANCINO

    Amigo, torna em ti, recobra alento,Declara-me o teu ntimo tormento.Do cego frenesi, que te domina,Quem causa, pastor? Urselina?

    ELMANO

    Quem, seno ela (oh cus!) me obrigariaA to pasmoso extremo? A Sorte impiaCom todo o seu poder nunca tem feitoDesmaiar a constncia de meu peito;Quem me abate Amor, no o Destino.

    Eu te conto o meu mal, eu vou, Francino,Retratar-te a mais negra, a mais horrvelDe todas as traies. No possvel Nos ermos encontrar da Lbia ardenteMonstro, seja leo, seja serpente,Que possa comparar-se fera humana,

    Que com tanto rigor me desengana.Quantas vezes notaste, honrado amigo,Finezas, que a traidora obrou comigo!Quantas vezes daqui presenciasteSeus gestos, seus afagos, e julgaste,Que o mais ardente amor, a f mais puraPagavam minha cndida ternura!Ouve, e conhecers (ai de mim triste!)Que foi sonho, iluso tudo o que viste.J sabes, que no dia em que ligadoA Mrcio Jnio foi pelo sagrado,Indissolvel n, cantei louvoresA to ditosos, to fiis amores,E o nmero aumentei dos convidados;J sabes as meiguices, e os agrados,Com que a minha infiel me fez ditoso;Ali traando um baile harmonioso,Por parceiro me quis; ali sentadaJunto a mim, vezes mil a refalsadaProtestou, que em sua alma eu s vivia,Que eu era dos seus olhos a alegria,Dando-me a bela mo furtivamente,Que, ardendo de paixo, beijei contente.

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    Pediu-me a desleal, que ali tornasse,Que to doce prazer lhe no roubasse:Guiado por Amor, fui inda agoraSeu desejo cumprir, que antes no fora,Porque no sentiria este martrio,Este ardor, esta raiva, este delrio.

    Jnio, que estava porta da cabana,Me veio receber.., ah! Quanto enganaUma aparencia alegre, e carinhosa!Entrei, pus logo os olhos n'aleivosa,Que, em vez de me tratar com meigo agrado,Tinha nas faces o desdm pintado.

    Pasmado da mudana repentina,Lhe disse: "Amado bem, cara Urselina,Tu comigo to spera? Eu ignoroEm que pude agravar quem tanto adoro."Isto dizendo, avizinhei-me a ela,Que estava ao p da rstica janela,

    E da terna pergunta no fez caso, Nem o rosto voltou, e olhando acasoA prxima cabana de Nigela,Vi encostado Inlio porta delaOlhar para Urselina, adeus dizer-lhe,E sem pejo a cruel corresponder-lheCum doce riso, um gesto namorado,De amantes expresses acompanhado.Fervendo no peito o amor, e a ira,Logo, logo em pedaos fiz a lira,E em mil imprecaes, em mil queixumesO furor exalei dos meus cimes,Ameaando a infiel, que eu me vingava

    No odioso rival, que me afrontava,Se uma satisfao, que Inlio visse,Logo o meu pundonor no ressarcisse.Prometeu-me que sim, mas de repenteA meus olhos se esconde, e vai contenteO lerdo, o baixo amante encher de glria,Que no cabia em si pela vitria,Que a pior das traies lhe tinha dado.Fiquei louco, fiquei desesperado,Contemplando este assombro nunca visto Nem na imaginao. No pra nistoDaquela ingrata a prfida baixeza:De novas frias cruelmente acesa,Procura Anio, inerte pegureiro,Que o riso da gente no terreiroQuando sai a bailar, e a cada passo

    Se esquece da harmonia, e do compasso,Sendo falto de prendas, e de sisoComo o louco Maglio, o rude Anfriso.Urselina lhe diz, que me incitasse,A que a choa de Jnio abandonasse,Persuadindo-me, enfim, que no deviaPresenciar a afronta, que sofria.Acreditei o indigno conselheiroE sa da cabana, onde primeiroTinha logrado os mimos da perjura,Que assim desenganou minha ternura.Ah gnio desleal, falaz perverso!Ai! No me alucinava o meu cime,

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    Era mais do que justo o meu queixume,Quando (triste de mim!) quando julgavaQue Inlio, inda que simples, te agradava!Acusei-te mil vezes de fingida,De que a ele querias ver-te unidaEm laos de Himeneu; mas tu negaste

    Sempre o que hoje sem pejo declaraste.Traidora! Eu no dizia, eu no jurava,Que o meu sossego ao teu sacrificava!Ah! Porque me no deste o desengano,Que eu te pedia, corao tirano?Se Inlio, porque tem campos, e gados, Numerosos casais, amplos montados,Atrai esse teu gnio interesseiro'E eu, posto que leal, que verdadeiro,De clara gerao, de sangue honrado,Caducos, frgeis bens no devo ao fado,E por isso no posso no teu peitoProduzir da ternura o doce efeito;

    Que razo te obrigou a acarinhar-me,E de um fingido amor capacitar-me?Corao em perfdias atolado,Impia, se o no tivesse inda criadoA vingadora mo de Jove eterno,Devia para ti criar o Inferno!

    FRANCINO

    Consola-te, pastor; essa perjura No deve motivar tua amargura;Castiga-lhe a traio, e o fingimento

    Lanando-a num profundo esquecimento.Que mais satisfao, que mais vinganaQueres da vil, da sbita mudana,Que ver exposta a prfida pastoraAo ludbrio geral? Uma traidora,Uma fera, uma ingrata, inda que bela, No merece a paixo, que tens por ela.Pondera, que no foste injuriadoDe seu duro desprezo inesperado;Que o feminil capricho extravagante No te deslustra o mrito brilhante. Nenhum, nenhum pastor n'aldeia ignora,Que essa, que te deixou, foi at'goraCarinhosa contigo, e fez patenteSua correspondncia a toda a gente:Demonstraes em pblico te davaDe amorosa paixo, mas no te amava:Baixo costume, natural fraqueza que a fez parecer de amor acesa;Aquela alma no arde, no se inflama,A todos corresponde, a ningum ama.Bem se viu com Berslio, e com LaurnioSeu inconstante, seu volvel gnio:T no mais desprezvel dos pastores- capaz de empregar seus vis amores: Nunca soube escolher, tudo lhe agrada,E inda que astutamente infatuadaFaa crer aos amantes o contrrio, sabido seu carcter vrio.

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    Isto em teu corao gravado fique,E no queiras, pastor, maior despique:Se at'gora calei quanto te digo,Foi por no te afligir, prezado amigo.Pouco importa perder quem nada vale.Contente-te, que toda a aldeia fale

    Contra a sua imprudente aleivosia;Que, se pensasse bem no que fazia,Jamais o falso monstro, que te deixa,Fechara a tudo os olhos como fecha.Deveria lembrar-se a fementidaDe que a sua afeio foi conhecida,De que inda em tuas mos tens os penhoresDe seus furtivos, tcitos favores,Para no te obrigar com tal injriaA que dos zelos a violenta friaDespedaasse um vu misterioso,Um vu to necessrio como honroso.Mas vers se mais hora menos hora

    No punida a infiel pastora:Douradas esperanas lisonjeiras Nutrem-lhe ideias vs, e interesseiras;Mas Inlio como ela ambicioso,E s deseja um himeneu lucroso,Que lhe farte a cobia, os bens lhe aumente:Ele prprio mo disse, ele no mente,Que a sua natural simplicidade No pode mascarar a s verdade.Eia, pois, cesse o pranto, enxuga o rosto,Adora a Providncia em teu desgosto; No delires, pastor, no desesperes,Que s feliz em saber quem so mulheres.

    ELMANO

    Sim, meu amado, meu leal Francino,Eu dou mil graas ao poder divinoPor me livrar do engano em que vivia:Eu lutarei coa terna simpatia,Que me fez adorar uma inconstante,Aos falsos crocodilos semelhante.Embora logre Inlio os seus agradosFingidos, mentirosos, estudados.O srdido interesse quem a inspira:Se da fortuna o meu rival sentiraA triste, perniciosa variedade;Se a violncia de horrvel tempestadeLhe derribasse as frteis oliveiras,Se o fogo lhe engolisse as sementeiras,Se a cheia lhe afogasse os ndios gados,Verias os desdns, e em desagradosMudar-se logo o amor, que finge a astuta,Que de negra cobia a voz escuta:Tu a verias outra vez comigoAs chamas assoprar do afecto antigo,Mendigando razes para aplacar-me,Para me convencer, para enganar-me.Mas ah paixo! Teu mpeto reprime,E busque-se vingana igual ao crime.Ritlia bela, encanto dos pastores,

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    Merece meus suspiros, meus amores:Com ela fui mil vezes desatento, Negando-lhe o devido acatamento

    Por cumprir o preceito rigorosoDe Urselina infiel, que no enganoso,

    No detestvel peito encerra, e nutreDa venenosa inveja o feio abutre,Porque a meiga Ritlia mais do que elaBranda, risonha, delicada, e bela,Quanto mais agradvel, mais formosaQue as outras flores a puncea rosa.Ritlia desde agora o lindo objectoSer do meu fiel, constante afecto:Arrebatado em xtases de gosto,Louvores de seus olhos, de seu rostoFarei voar nas asas da ternura,E assim me vingarei duma perjura.Ela, por timbre meu, o escute, o saiba,

    E o corao no peito lhe no caibaDe inveja, de furor: eu, entretanto,Troque em plcido riso o triste pranto,E a fria indif'rena, com que intentoRecompensar-lhe o torpe fingimento,At to alto grau nesta alma cresaQue eu veja a desleal, e a no conhea.

    CANTATA

    MORTE DE INS DE CASTROAs filhas do Mondego a morte escuraLongo tempo, chorando, memoraram.Cames, Lusadas

    Longe do caro esposo Ins formosa Na margem do MondegoAs amorosas faces aljofravaDe mavioso pranto.Os melindrosos, cndidos penhoresDo tlamo furtivoOs filhinhos gentis, imagens dela, No regao da me serenos gozamO sono da inocncia.Coro subtil de algeros FavniosQue os ares embrandece,Ora enlevado afagaCom as plumas azuis o par mimoso,Ora solto, inquietoEm leda travessura, em doce brinco,Pela amante saudosa,Pelos tenros meninos se reparte,E com tnue murmrio vai prender-seDas ureas tranas nos anis brilhantes.Primavera lou, quadra maciaDa ternura, e das flores,Que bela Natureza o seio esmaltas,Que no prazer de Amor ao mundo apuras

    Prazer da existncia,

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    Tu de Ins lacrimosaAs mgoas no distrais com teus encantos.Debalde o rouxinol, cantor de amores, Nos versos naturais os sons varia;O lmpido Mondego em vo serpeia

    Cum benigno sussurro, entre boninasDe lustroso matiz, alvo perfume;Em vo se doura o Sol de luz mais viva,Os cus de mais pureza em vo se adornamPor divertir-te, oh Castro!Objectos de alegria Amor enjoamSe Amor desgraado.A meiga voz dos Zfiros, do rio, No te convida o sono:S de j fatigada Na luta de amargosos pensamentosCerras, msera, os olhos;

    Mas no h para ti, para os amantesSono plcido, e mudo: No dorme a fantasia, Amor no dorme:Ou gratas iluses, ou negros sonhosAssomando na ideia espertam, rompemO silncio da morte.Ah! Que fausta viso de Ins se apossa!Que cena, que espectculo assombrosoA paixo lhe afigura aos olhos d'alma!Em marmreo salo de altas colunas,A slio majestoso, e rutilanteJunto ao rgio amador se cr subida:Graas de neve a prpura lhe envolve,

    Pende augusto dossel do tecto de ouro;Rico diadema de radioso esmalteLhe cobre as tranas, mais formosas que ele; Nos luzentes degraus do trono excelsoPomposos cortesos o orgulho acurvam;A lisonja sagaz lhe adoa os lbios,O monstro da poltica se aterra,E se Ins perseguia, Ins adora.Ela escuta os extremos,Os vivas populares; v o amante

    Nos olhos estudar-lhe as leis que dita;O prazer a transporta, amor a encanta:Prmios, ddivas mil ao justo, ao sbioMagnnima confere,Rainha esquece o que sofreu vassala:De sublimes aces orna a grandeza,Felicita os mortais, do ceptro digna,Impera em coraes... Mas, cus!... Que estrondoO sonho encantador lhe desvanece!Ins sobressaltadaDesperta e de repente aos olhos turvosDa vistosa iluso lhe foge o quadro.Ministros do Furor, trs vis algozes,De budos punhais a dextra armada,Contra a bela infeliz bramindo avanam.Ela grita, ela treme, ela descora,Os frutos da ternura ao seio aperta,Invocando a piedade, os Cus, o amante;

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    Mas de mrmore aos ais, de bronze ao pranto, suave atraco da formosura,Vs, brutos assassinos,

    No peito lhe enterrais os mpios ferros.Cai nas sombras da morteA vtima de Amor lavada em sangue:

    As rosas, os jasmins da face amenaPara sempre desbotam;Dos olhos se lhe some o doce lume,E no fatal momentoBalbucia arquejando: - "Esposo! Esposo'Os tristes inocentes triste me se abraam,E soltam de agonia intil choro.Ao suspiro exalado,Final suspiro da formosa extinta,Os Amores acodem.

    Mostra a prole de Ins, e tua, Vnus,Igual consternao, e igual beleza:Uns dos outros os c