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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MEIOS E PROCESSOS AUDIOVISUAIS DEPARTAMENTO DE CINEMA, RÁDIO E TELEVISÃO ROGÉRIO TEIXEIRA CATHALÁ CARVALHO SONHO DENTRO DE UM SONHO ESTUDO DE ESTRUTURAS NARRATIVAS ONÍRICAS PARA O DESENVOLVIMENTO DO ROTEIRO DE UM VIDEOGAME SÃO PAULO 2014 ROGÉRIO TEIXEIRA CATHALÁ CARVALHO

SONHO DENTRO DE UM SONHO ESTUDO DE ESTRUTURAS NARRATIVAS ONÍRICAS PARA O DESENVOLVIMENTO DO ROTEIRO DE UM VIDEOGAME

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ABSTRACTThe Master Thesis’s objective is to study narrative structures in cinema and games that is constructed with oneiric elements. The films and games studied are representation or emulation/simulation of the character’s dreams, memories or hallucinations. The research will serve as basis to write a screenplay and a Game Design Document to a electronic game based on the concept of Lucid Dreaming. Lucid Dream is when one adquire conscious thought and lucidity in their dream state.RESUMOEstudo de estruturas narrativas no cinema e nos games construídas a partir do elemento onírico. As obras analisadas são elaboradas como emulação/ simulação de sonhos, memórias ou alucinações dos personagens. A análise servirá para o desenvolvimento do roteiro de um jogo eletrônico baseado no conceito de sonho lúcido, fenômeno em que o sujeito adquire consciência da realidade onírica.

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    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM MEIOS E PROCESSOS AUDIOVISUAIS

    DEPARTAMENTO DE CINEMA, RDIO E TELEVISO

    !!!

    !!

    ROGRIO TEIXEIRA CATHAL CARVALHO

    !!!

    SONHO DENTRO DE UM SONHO ESTUDO DE ESTRUTURAS NARRATIVAS ONRICAS PARA O

    DESENVOLVIMENTO DO ROTEIRO DE UM VIDEOGAME !!

    !!!!

    SO PAULO 2014

    ROGRIO TEIXEIRA CATHAL CARVALHO

  • !!!!

    SONHO DENTRO DE UM SONHO ESTUDO DE ESTRUTURAS NARRATIVAS ONRICAS PARA O

    DESENVOLVIMENTO DO ROTEIRO DE UM VIDEOGAME

    !!

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Meios e Processos Audiovisuais (PPGMPA), na linha de pesquisa B: Poticas e Tcnicas, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Comunicao e Ar-tes.

    Orientador: Prof. Dr. Almir Rosa

    !!!!!

    SO PAULO 2014

    ROGRIO TEIXEIRA CATHAL CARVALHO

    !1

  • SONHO DENTRO DE UM SONHO:

    ESTUDO DE ESTRUTURAS NARRATIVAS ONRICAS PARA O DESENVOLVI-

    MENTO DO ROTEIRO DE UM VIDEOGAME

    !!Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Meios e Processos Audiovisuais (PPGMPA), na linha de pesquisa B: Poticas e Tcnicas, e submetida avaliao em banca examinadora, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Comunicao e Artes. !!!

    So Paulo, ___/___/2014 !!!Banca Examinadora

    !!______________________________________________________

    Prof. Dr. Almir Rosa (ECA-USP) Orientador

    !!!______________________________________________________

    Prof.(a) Dr(a). ................................... (...............) Examinador(a) Interno(a)

    !!!______________________________________________________

    Prof.(a) Dr(a). ................................... (...............) Examinador(a) Interno(a)

    !!

    2

  • RESUMO

    !!Estudo de estruturas narrativas no cinema e nos games construdas a partir do elemento onri-co. As obras analisadas so elaboradas como emulao/simulao de sonhos, memrias ou alucinaes dos personagens. A anlise servir para o desenvolvimento do roteiro de um jogo eletrnico baseado no conceito de sonho lcido, fenmeno em que o sujeito adquire conscin-cia da realidade onrica. !!Palavras-chave: Narrativa. Cinema. Videogame. Sonho Lcido. Jogabilidade.

    !!!!

    3

  • !ABSTRACT

    !!The Master Thesiss objective is to study narrative structures in cinema and games that is constructed with oneiric elements. The films and games studied are representation or emulati-on/simulation of the characters dreams, memories or hallucinations. The research will serve as basis to write a screenplay and a Game Design Document to a electronic game based on the concept of Lucid Dreaming. Lucid Dream is when one adquire conscious thought and lucidity in their dream state. !!Keywords: Narrative. Cinema. Video game. Lucid Dream. Gameplay.

    !!!

    !!!

    !!!!!!4

  • !!!!!!!!!!

    Dedicado memria do Prof. Dr. Eduardo Peuela Canizal !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

    5

  • LISTA DE FIGURAS

    !!

    Frame do curta Acredite se Quiser 15

    Homem com a cabea de ave 21

    Letra Ah tibetana utilizada nas meditaes 39

    Mscara onrica REM Dreamer 41

    Aplicativo Aurora 41

    Frames de Um co andaluz 55

    Ilustrao da tcnica da rotoscopia 61

    Frame do filme Waking Life 62

    Frame do filme Waking Life 65

    Frame do filme Waking Life 66

    Frame do filme Waking Life 67

    Frame do filme Waking Life 69

    Frame do filme Waking Life 70

    Frame do filme Waking Life 71

    Frame do filme Waking Life 71

    Flowers, game da Thatgamecompany 73

    Frames do filme Waking Life 74

    Planta baixa para level design world of level design e Concept art para level design world of level design

    96

    Construo de level design no motor grfico UDK World of Level Design

    102

    Level design j com texturas e tratamento de luz - World of Level design

    104

    Echolocation 105

    Achievement 107

    R-A-E-D Interations 110

    Aplicao de sound designer 113

    Tela do game Castelvnia: Lord of Shadows 114

    6

  • !!!

    !!

    Little Nemo, de Windsor McCkay 113

    Pgina de uma histria do Little Nemo, publicada em 03/12/1905

    114

    Telas do Little Nemo: The Dream Master 116

    Ilustrao simplificada da jornada do Heri de Joseph Campbell

    118

    Tela inicial do game American Mcgees Alice 119

    Alice no instituto psiquitrico frame da cutscene de American Mcgees Alice

    120

    Alice internada, concept art do jogo American Mc-gees Alice

    121

    The Cheshire Cat concept art de Alice Madness Re-turns

    121

    Alice em Londres Alice Madness Returns 122

    Alice no Pas das Maravilhas em Alice Madness Re-turns

    122

    Vale de lgrimas em Mcgees Alice 124

    Print screen Alice Madness Returns 125

    Concept art de Alice Madness Returns 126

    Concept art de Alice Madness Returns 127

    Concept art de Back to Bed 131

    Ilustrao de Escher 131

    Concept art de Back to Bed 132

    Screnshot de Back to Bed 132

    Screnshots de Monument Valley 133

    7

  • SUMRIO !!INTRODUO ............................................................................ 10

    I CONSIDERAES PRELIMINARES ACERCA DA PES-QUISA

    !11

    II QUADRO TERICO DE REFERNCIA .................................. 14

    1 A MATERIALIDADE DO ONRICO .................................... 21

    1.1 SONHOS E O SAGRADO ....................................................... 21

    1.2 SONHOS E CINCIA .............................................................. 25

    1.3 SONHOS LCIDOS, SONHOS CRIATIVOS 29

    1.4 SONHOS LCIDOS NA CULTURA ORIENTAL YOGA DO SL .............................................................................................

    !35

    1.5 TCNICAS PARA SL .............................................................. 36

    1.6 DISPOSITIVOS PARA SL ...................................................... 40

    2 CINEMA E SONHOS LCIDOS ............................................. 42

    2.1 CINEMA COMO SONHO ....................................................... 42

    2.2 JEAN-LUC GODARD, O CINEMA CLSSICO, E O DES-PERTAR DA VANGUARDA ....

    !49

    2.3 O ONRICO CINEMA DE LUS DE BUUEL ...................... 55

    2.4 ANLISE DE WAKING LIFE .................................................. 60

    2.5 A JORNADA DO HERI E ARQUTIPOS EM CLUBE DA LUTA .............................................................................................

    !78

    3 GAMES COMO SONHOS LCIDOS .................................... 86

    4 NARRATIVA NOS GAMES .................................................... 91

    4.1 CONSIDERAES: PAPEL DO ROTEIRISTA NOS GA-MES ............................................................................................

    !91

    4.2 NARRATIVA EMBUTIDA E NARRATIVA EMERGENTE 91

    4.3 WORKFLOW DO GAME NO MOTOR GRFICO (GAME ENGINE)

    94

    4.4 CUTSCENES OU CINEMTICAS (CINEMATICS) ............... 97

    8

  • ! !!!!!!!!!!!!!!!!

    4.5 DESENHO DE SOM EM JOGOS NARRATIVOS EM COMPARAES ENTRE SOM NO CINEMA E NOS GAMES ..........

    !99

    4.5.1 Interatividade e elementos sonoros expressivos ................ 99

    4.5.2 Programao dos sons: Engines . 106

    5 ANLISE DOS GAMES ........................................................... 112

    5.1 LITTE NEMO: THE DREAM MASTER ................................... 112

    5.2 AMERICAN MCGEES ALICE: PESADELO NOS GAMES 119

    5.3 INDIE GAMES: A NARRATIVA E JOGABILIDADE ONRICA EM JOGOS INDEPENDENTES ..................................

    !130

    6 GDD (Game Design Document) LUCIDREAM 135

    7 CONSIDERAES FINAIS .................................................... 149

    8 REFERNCIAS ......................................................................... 153

    9

  • INTRODUO

    !!

    A presente dissertao se baseia na anlise de filmes e games, os quais apresentam

    narrativas que se passam parcial ou completamente em mais de um nvel de realidade: a obje-

    tiva, externa e a realidade interior sendo representado por sonhos ou outros fenmenos.

    Nessas narrativas, os personagens passam por algum tipo de alterao de conscincia

    em que a lgica cartesiana j no mais a que opera. A nova lgica a do inconsciente e dos

    sonhos so narrativas com elementos onricos complexos que se cruzam: um sonho dentro

    de um sonho.

    O objetivo desta pesquisa , atravs da anlise de procedimentos narrativos, dramti-

    cos e ludolgicos, obter repertrio para escrever o roteiro de um game em 3D cuja estrutura

    leva em conta o nexo entre sonho e realidade e os limites de separao, muitas vezes tnue,

    entre as duas dimenses.

    A narrativa audiovisual no pode se descolar da prtica. Todo roteiro audiovisual

    uma instncia provisria que guia o realizador ao produto final, contendo instrues e proce-

    dimentos de realizao. Importa tanto o escrito quanto o processo de produo e finalizao.

    Por isso, alm do estudo referencial, a estratgia consistiu em estudar a realizao dos games

    em comparao com o cinema, minha rea de estudo original, tanto no que diz respeito tc-

    nica quanto no que se relaciona teoria.

    A presente dissertao tem como inteno aprofundar a reflexo sobre as construes

    onricas nas peas audiovisuais em termos de procedimentos de linguagem: construo de

    personagem, ambientao, uso da cmera, bem como dos sons e da msica, jogabilidade, en-

    gajamento etc. O objetivo utilizar esses elementos como base para o desenvolvimento do

    roteiro do videogame LUCID DREAM.

    O tema escolhido para ambientar a narrativa e utilizar como ponto de partida para a

    criao das regras do game o fenmeno do sonho lcido ou sonho consciente, em que o

    sonhador tem conscincia de que est em meio a um sonho e, a partir desse momento, pode

    escolher tomar parte das situaes narrativas que se apresentam sua frente: interagir com

    personagens, voar, propor questes e um sem nmero de atividades.

    Embora o fenmeno do sonho lcido tenha sido observado, no ocidente, desde a alta

    10

  • Idade Mdia e no oriente ser parte integrante da cultura budista tibetana, somente a partir os 1

    anos 70 do sculo XX se iniciaram pesquisas cientficas que comprovam sua ocorrncia (LA-

    BERGE, 1990).

    Mais adiante, o fenmeno ser explicado mais detalhadamente, bem como suas im-

    plicaes tericas no presente trabalho.

    !!I CONSIDERAES PRELIMINARES ACERCA DA PESQUISA

    !!

    O elemento onrico sempre esteve presente na histria do cinema, desde os filmes de

    D. W. Griffith e Charles Chaplin, passando pelas vanguardas europeias com nomes como Luis

    Buuel, Ingmar Bergman e Federico Fellini; representantes do cinema clssico, como Hitch-

    cock, Frank Capra; assim como os contemporneos David Lynch, David Fincher e Michel

    Gondry, para citar alguns nomes.

    Esse artifcio de representao do mundo onrico serve aproximao do mundo

    subjetivo dos personagens, um cinema que no se limita em expor a realidade cotidiana; an-

    tes, busca a transcendncia e a expresso do estranho ou do maravilhoso . 2

    Desde as ltimas dcadas do sculo XX at o final da presente dcada, possvel ve-

    rificar um movimento de filmes de gnero, em sua maioria norte-americanos, que se passam

    parcial ou inteiramente em realidades subjetivas, a saber, no inconsciente dos personagens.

    Essas realidades subjetivas podem ser os sonhos, como em Waking Life (Waking Life,

    Richard Linklater, 2001), A Origem (The Inception, Christopher Nolan, 2010), A Cincia do

    Sonho (The Science of Sleep, Michel Gondry, 2006); a memria, como em Brilho Eterno de

    uma Mente Sem Lembranas (Eternal Sunshine of the Spotless Min, Michel Gondry, 2004),

    Quero ser John Malcovich (Being John Malkovich, Spike Jonze, 2001); ou alucinaes cau-

    11

    ! Stephen LaBerge cita uma carta escrita por Santo Agostinho de Hipona em que ele narra o sonho de um mdico 1de Cartago chamado Gendio: a primeira descrio de um sonho lcido na histria do Ocidente est conservada numa carta escrita em 415 d.C. por Santo Agostinho (LABERGE, 1990, p.13).

    ! Gneros da literatura do sobrenatural teorizados por Tzvetan Todorov em Introduction la littrature fantasti2 -que (1970). Segundo o autor, o estranho seria o sobrenatural passvel de explicao, enquanto o maravilhoso incluiria as obras cujos fenmenos no tm qualquer explicao racional. Cf. MASCARENHAS, Isabel Branco. Maravilhoso. Inspirao Literria. Disponvel em: . Acesso em: mar.2010.

  • sadas por algum quadro de enfermidade mental, como em Ilha do Medo (Shutter Iland, Mar-

    tin Scorsese, 2010), Clube da Luta (Fight Club, David Fincher, 1999) Alucinaes do Passa-

    do (Jacobs Ladder Adrian Lyne, 1990) e Spider (Spider, David Cronenberg, 2002).

    As fronteiras da linguagem foram expandidas. Convivemos com o hipercinema em 3

    nosso cotidiano, e uma das representaes desse fenmeno a linguagem dos videogames , 4

    linguagem audiovisual em parte herdeira do cinema.

    O universo dos games muito amplo e no se resume somente a jogos narrativos. H

    uma mirade de gneros e s alguns deles contam histrias. A centralidade da narrativa nos

    games alvo de uma querela entre os tericos partidrios da narratividade e os partidrios da

    ludologia, que veem no jogo e na interatividade a verdadeira particularidade da linguagem em

    relao s outras artes.

    Nesse sentido, os games so to herdeiros do cinema quanto do xadrez, do futebol, do

    pega-pega, das montanhas russas ou dos parques temticos.

    Vale ressaltar que os games aqui estudados, bem como o roteiro a ser produzido

    como parte deste trabalho, sero narrativos e, como tal, obedecem a regras e procedimentos

    que tambm foram utilizados pelo cinema, no obstante serem anteriores prpria linguagem

    cinematogrfica. No entanto, evidente a influncia do cinema, principalmente em jogos nar-

    rativos recentes, razo pela qual sero estudados os pontos de aproximao e de diferenciao

    entre as linguagens.

    O filme chave para a pesquisa que ora se apresenta Waking Life (2001), animao

    escrita e dirigida por Richard Linklater, que utiliza a tcnica da rotoscopia e tem como tema 5

    principal o sonho e a possibilidade de adquirir o estado de conscincia/lucidez no s nos 6

    sonhos como na vida desperta.

    12

    ! Termo conceitualizado pelos tericos Gilles Lipovetsky e Jean Serroy A tela Global: mdias culturais e cinema 3na era hipermoderna Sulina, 2009. Seria a 4 fase da histria do cinema iniciado nos anos 1980 em diante. Ca-racteriza-se pela sintetizao da hipertecnologia e a sofisticao dos equipamentos que transfiguram o cenrio audiovisual. Fonte: Artigo Imagens Tcnicas GUIMARES, Claudia Revista Eletrnica Temtica- Agosto de 2010: http://www.unibrasil.com.br/arquivos/asscom/artigo_claudia_cinema.pdf

    ! Usaremos na dissertao as palavras games, videogames e jogos eletrnicos indistintamente como sinnimos.4

    ! Rotoscopia uma tcnica de animao onde usa-se como referncia a filmagem de um modelo vivo, aproveita-5se ento cada frame filmado para desenhar o movimento do que se deseja animar.

    ! O fenmeno do sonho lcido amplamente observado : uma experincia da qual temos uma recordao muito 6clara ("lcida") e ntida, normalmente aparentando termos tido controle e capacidade direta sobre nossas aes e, algumas vezes, o prprio desenrolar do contedo do sonho.

  • Baseando-me na estratgia narrativa de Waking Life e no aprofundamento terico e

    prtico sobre o tema do sonho lcido, escrevi um argumento de longa-metragem chamado

    Dirio de Sonhos, posteriormente rebatizado como Talita, nome do personagem principal.

    Tive a oportunidade de fazer uma oficina de roteiro de videogames na Espanha no

    ano de 2009, durante a qual adaptei o contedo do longa-metragem para um Project Sheet 7

    com o nome de LUCIDREAM.

    A adaptao do argumento cinematogrfico para a um game me suscitou uma srie

    de questes sobre as diferenas e proximidades da escrita para games em comparao com a

    escrita para o cinema. Quando voltei So Paulo, propus Escola de Comunicao e Artes da

    USP uma pesquisa, no mbito do mestrado, no Programa de Ps-Graduao em Meios e Pro-

    cessos Audiovisuais.

    Paralelamente ao mestrado, estudei design de games, por alguns meses, na Escola

    Saga, com nfase em arte, no com o intuito de ser um game designer, mas de entender quais

    so os processos na construo de um game em 3D.

    Alm disso, participei como membro e frequentei por volta de um ano as reunies da

    CS_GAMES, um grupo de pesquisa da TIDD-PUC, com vistas fundamentao terica sobre

    a linguagem em questo.

    A relao entre o fenmeno dos sonhos lcidos e a linguagem do videogame direta.

    O sonho lcido seria uma espcie de game natural. No sonho lcido, o sonhador controla sua

    projeo onrica, assim como o jogador controla o seu avatar na realidade virtual. 8

    Minha relao com o tema dos sonhos lcidos remonta a primeira vez que tive not-

    cia do fenmeno, exatamente em uma sesso de cinema, em 2001, quando assisti ao filme

    Waking Life (2001), antes mesmo de iniciar a graduao.

    J no primeiro exerccio importante na graduao, o tema foi sonhos lcidos. Escrevi

    o roteiro de um curta de 5 minutos, intitulado Acredite se quiser (FIGURA 1), em que o per-

    sonagem est preso em um sonho e no sabe. Um dos personagens questiona o estado em que

    o outro personagem se encontra, se sonhando ou acordado. Em sua camisa, l-se a frase Ver

    para crer.

    13

    ! Expresso do mercado de Games para a proposta inicial de desenvolvimento de um game.7

    ! Avatar o boneco de Deus na Terra. Do snscrito Avatara, que significa Descida, no sentido "do cu para a 8terra", esse nome se refere manifestao de uma deidade em nosso mundo. O termo tambm se refere a perso-nagens de jogos ou personalidade virtual na internet.

  • Os primeiros dilogos do curta eram:

    !Natanael: Claro que eu estou acordado, do que voc est falando? Guto: Voc est acordados no sonho! Natanael: Cala a boca... Guto: Voc est sonhando Natanael. (BRANDT; CATHAL, 2003) !

    ! Figura 1: Frame do curta Acredite se Quiser. Direo: Vitor Brandt; roteiro: Rogrio Cathal. !

    De alguma forma, aquele filme rudimentar leva os princpios estruturais da narrativa

    que pretendo desenvolver para o game LUCIDREAM: a ambiguidade e as linhas difusas entre o

    real e o onrico.

    !!

    II QUADRO TERICO DE REFERNCIA

    !Para o desenvolvimento da pesquisa, lancei mo das seguintes estratgias metodol-

    gicas:

    ! Anlise flmica;

    Anlise de jogos;

    14

  • Leitura de bibliografia relacionada linguagem e a gneros cinematogrficos;

    Leitura de bibliografia referente ao universo multimdia em geral e dos jogos ele-

    trnicos em especfico, com perspectiva terica e prtica;

    Leitura de bibliografia referente teoria dos sonhos, sonho lcido, psicanlise e

    neurocincia;

    Estudo de movimentos estticos de vanguarda do cinema que utilizavam o onrico

    como preceito em especial o surrealismo.

    !Como base terica, procurei pensar em uma srie de dicotomias, como cinema-so-

    nhos e games-sonhos lcidos, com base em teorias clssicas de cinema e na aproximao com

    correntes tericas dos games.

    Uma dessas dicotomias se refere ao estudo da narrativa clssica que utiliza uma 9

    linguagem didtica e transparente , em contraposio a procedimentos de vanguarda, que 10

    prescindem de explicaes para a criao e o desenvolvimento de imagens e estruturas onri-

    cas em que no h uma preocupao com a transparncia da linguagem, portanto filmes opa-

    cos . 11

    Em filmes como esses, os temas influem no s na dramaturgia como na construo

    da imagem em todos os aspectos da cinematografia: fotografia, montagem, uso do enquadra-

    mento e trilha sonora, ajudando a construir uma sensao de estranhamento atravs de algum

    nvel de distoro.

    Nesse sentido, alm dos exemplos j citados anteriormente, vale mencionar a trilogia

    Matrix (The Matrix, Andy e Larry Wachowski, 1999) , um filme cabal para entender essa 12

    busca por um despertar/lucidez, mas que j foi amplamente estudado, no entrando no corpus

    15

    ! No discurso do XXIV Congresso Brasileiro de Comunicao-2001 Arlindo Machado indica que conceito de 9cinema `clssico...comeou a se mostrar problemtica quando as atenes se voltaram para um nmero imenso de filmes comerciais e hollywoodianos que no referendavam o modelo (os musicais principalmente). Portanto um conceito a ser utilizado sem generalizaes.

    ! XAVIER, Ismail. O discurso cinematogrfico: opacidade e transparncia. Trasnparente se refere a linguagem 10clssica que no quer se fazer notar para no interromper o espetculo.

    ! Ibdem. Opacidade se refere a filmes que intencionalmente exibem o dispositivo e quebram a fruio do espe11 -tculo.

    ! Ainda que no integra o corpus de anlise deste trabalho, h inmeras anlises sobre esse filme, algumas das 12quais tratam exatamente dessa temtica, a exemplo de

  • da anlise presente.

    Em filmes com essa temtica, os personagens se encontram presos na prpria subje-

    tividade, seja numa alucinao, num sonho, na Matrix (realidade virtual), no Maya (iluso)

    dos budistas, numa espcie de confinamento em um labirinto de espelhos.

    Ainda nessa perspectiva, so analisados os procedimentos estticos e narrativos de

    alguns filmes do cineasta espanhol Luis Buuel, filmes surrealistas ou de inspirao/efeito

    surrealista. Tal anlise se encontra no captulo em que procuro observar a ruptura do cineasta

    com o cinema clssico e a convivncia de dois universos paralelos na mesma cena uma

    aplicao concreta, na linguagem audiovisual, desse sentimento de estranheza, muito de acor-

    do com os preceitos do movimento surrealista.

    Um dos movimentos de vanguarda da primeira metade do sculo XX, o surrealismo

    propunha aos artistas a livre expresso de ideias, dando vazo aos impulsos da vida interior

    sem refre-los com nenhum tipo de restrio. Sugeria a expresso do subconsciente, dos so-

    nhos e das fantasias, pregando a livre associao de ideias.

    No cinema, a linguagem clssica no daria conta nem poltica nem artisticamente das

    expresses propostas pelo surrealismo, medida que as bases do cinema convencional so as

    relaes de causa e efeito e a simplificao dos personagens e do mundo que os cerca. Ne-

    nhuma questo proposta num filme clssico deve sair sem uma soluo, por exemplo. Em l-

    tima anlise, h um contraponto entre o clssico e a viso surrealista, como se pode verificar

    no 1 Manifesto Surrealista, escrito por Andr Breton, em 1924: A mania incurvel que con-

    siste em reduzir o desconhecido ao conhecido, ao classificvel, s serve de entorpecer os c-

    rebros (BRETON, 2001, p.22).

    O desafio que suscita essa dicotomia entre o clssico e a vanguarda o desenvolvi-

    mento, no game, de uma narrativa multilinear, que no seja totalmente didtica e no sirva

    para entorpecer crebros.

    Nessa direo, recorro ao dramaturgo sueco August Strindberg, que apresenta um

    resumo do que considera como imperativo no seu processo de criao e que vai ao encontro

    das minhas intenes no desenvolvimento deste projeto:

    !(...) formas desarticuladas, mas aparentemente lgicas de um sonho. Qual-quer coisa pode acontecer, tudo possvel e provvel. O tempo e o espao no existem... a imaginao tece novos padres: uma mistura de memrias, experincias, fantasias, absurdos, improvisaes. Os personagens dividem-

    16

  • se, dobram-se multiplicam-se, evaporam-se e condensam-se, so difusos e concentrados. Mas uma s conscincia domina a todos. (STRINDBERG, apud BENTLEY, 1991, p.128 !

    Para ilustrar a problematizao do cinema enquanto linguagem de sonhos e os limites

    dessa comparao entre cinema o sonho este visto como quase pejorativo, sinnimo de arti-

    ficialismo e iluso , no captulo das anlises flmicas tambm darei conta do aspecto da lin-

    guagem na obra de Jean-Luc Godard.

    O estudo das peas audiovisuais ter como modelo a anlise flmica e a investigao

    de smbolos, como a realizada por Eduardo Peuela Canizal (2010) em seu El osculo encanto

    de los textos visuales livro em que analisa com instrumentos da psicanlise e do surrealismo o

    filme Morangos Silvestres (1957) de Ingmar Bergman, como representao audiovisual do

    inconsciente do cineasta.

    Peuela, brilhante acadmico deste departamento, infelizmente veio falecer em 2014.

    Tive a oportunidade de participar de sua ltima turma ministrada na ps-graduao e posteri-

    ormente o convidei para participar da banca de qualificao dessa dissertao. Sua perspiccia

    e raciocnio nada bvio me influenciou diretamente em muitas das minhas escolhas.

    No mesmo esprito, analisarei estruturas mticas, arquetpicas e de inconsciente cole-

    tivo das histrias, com base nos conceitos de Carl Gustav Jung, Sigmund Freud o recorte e

    ampliao feitas por Joseph Campbell, e a aplicao dessas ideias por Christopher Vogler.

    Tal procedimento ser complementado pela leitura de um referencial terico relacio-

    nado a hipertexto, cybercultura, Interactive storytelling, imerso e identificao do espectador

    com o espao e o avatar, alm de multilinearidade e interatividade esta ltima definida por

    Arlindo Machado como (...) possibilidade de resposta autnoma, criativa e no prevista pela

    audincia (apud WILLIAMS, 1990, p.139).

    Outro aspecto a se levar em considerao em relao interatividade do objeto de

    pesquisa o estudo da experincia do usurio que j no o espectador passivo do cinema e

    das mdias mais antigas.

    Nesse contexto, a experincia com alguns jogos eletrnicos essencial para com-

    preender uma srie de elementos que a linguagem puramente cinematogrfica no d conta

    em suas fronteiras. preciso ter em conta, na experincia do jogar, o uso do espao, os links

    que levaram a outras fases, a resoluo de enigmas e misses e a progresso dramtica adqui-

    rida pela experincia dos avatares.

    17

  • Esses jogos pertencem ao gnero de suspense e mistrio e tm em comum a impre-

    ciso da identidade do personagem, alm de mobilizar eventos que se passam na memria ou

    nos sonhos. O ttulo principal analisado nesse sentido o jogo Mcgees Alice e Alice Madness

    Returns no captulo 5.

    A literatura relacionada ao mundo dos videogames bastante vasta e abrange tanto

    manuais de escrita quanto pesquisas tericas. Vrios dos materiais tericos com que me depa-

    rei sobre o mundo dos games debatem a tenso que h entre narrativa e interatividade. Muitos

    autores acham que a qualidade da narrativa o segredo do sucesso dos jogos; outros, como o

    designer de games Juul, pensam o contrrio: Os prejuzos demonstram que o consumidor

    no quer uma experincia cinemtica, mas uma experincia de jogabilidade de

    qualidade (JUUL, 1998) . 13

    Minha inteno no desenvolvimento do jogo estruturar um universo ficcional coe-

    rente. O valor da experincia deve estar tambm na jornada, no s no impacto final. Essa

    ideia sintetizada nas palavras de Arlindo Machado: Mais do que chegar a um fim ou ganhar

    o jogo, o prazer destes trabalhos est na investigao infinita das suas possibilidades de des-

    dobramento (MACHADO, 1997, p.149-150).

    A ideia proporcionar um equilbrio para no abrir mo da qualidade da experincia

    de fruio do usurio.

    Apesar de no ter a inteno de construir a narrativa com rigor cientfico, importan-

    te ter algumas noes tericas sobre sonho e sonho lcido. Para isso, lano mo de uma bibli-

    ografia especifica sobre o tema e questes adjacentes, no campo da psicanlise, da neurocin-

    cia etc., fundamentado na ideia de que a sustentao da experincia em um jogo se d pelo

    estabelecimento de regras que viro do aprofundamento terico em relao ao tema de sonhos

    lcidos.

    Alm disso, acredito ser de extrema importncia acompanhar o debate atual sobre o

    tema. Nesse sentido, me filiei a duas comunidades dedicadas ao estudo dos sonhos lcidos, 14

    as quais compartilham experincias na internet, pela descrio de sonhos classificados pelo

    nvel de lucidez vivenciada. Essas experincias se constituram em fontes ricas para o desen-

    18

    ! Cf. JUUL, Jesper. A Clash between Game and Narrative. Digital Arts and Culture conference, Bergen, 13Norway, November 1998. Disponvel em: . Acesso em:

    ! www.dreamviews.com e http://www.dreamershell.net/14

  • volvimento do contedo do jogo.

    Conforme j salientado, parte da bibliografia especializada no assunto composta de

    manuais que orientam como atingir o estado e galgar nveis de lucidez e habilidades distintas

    durante o sonho. A maior parte dos estudos pode ser encontrada no site da instituio califor-

    niana Lucidity Institut . 15

    O meu objetivo filtrar todas as referncias tericas das bibliografias e estticas dos

    filmes, artes multimdia e demais artes, com a finalidade de refletir sobre o uso das imagens e

    estruturas dos sonhos na construo de narrativas onricas audiovisuais e virtuais.

    !

    19! http://www.lucidity.com15

  • !1 A MATERIALIDADE DO ONRICO

    !!

    Qu es la vida? Un frenes. / Qu es la vida? Una ilusin, /una sombra, una ficcin, / y el mayor bien es pequeo: / que toda la vida es sueo, / y los su-eos, sueos son. !

    Pedro Calderon de la Barca, La Vida es Sueo !Sonhos so pensamentos que ocorrem durante o sono. !Luciano R. P. Jr.; Cesar Timolaria, Medicina e Biologia do Sono, 2008, p.227 !!

    1.1 SONHOS E O SAGRADO !!Passamos um tero de nossas vidas dormindo e parte desses anos de sono que vive-

    mos preenchida por sonhos. No de estranhar que o tema dos sonhos tenha um papel de

    destaque em diversas atividades humanas desde a Pr-Histria. H indcios que desenhos ru-

    pestres nas cavernas de Lascaux se relacionam a contedos onricos: !Uma pintura datada de aproximadamente 17.000 anos atrs, pode ser a pri-meira referncia humana sobre sono e sonho. Esse registro foi encontrado em Lascaux uma caverna no sudoeste da Frana (...) Numa das pinturas en-contra-se uma cena onrica de um homem de cro-magnon com cabea de pssaro (ROLIM apud BROWN, 2003, p.15)

    ! Figura 2: Homem com a cabea de ave (Lascaux, 15000-13000 a.C.) !

    20

  • No difcil imaginar que, no escuro das cavernas iluminadas apenas por fogueiras,

    os homens primitivos representassem em seus desenhos no s o dia a dia, as rotinas de caa e

    a relao com outros homens e animais, mas tambm o que seus olhos viam quando guarda-

    dos atrs das retinas em noites de sono profundo, a exemplo da imagem zoomrfica encontra-

    da em Lascaux.

    H diferentes posicionamentos sobre a cosmoviso dessa humanidade inicial. O an-

    troplogo Edward B. Taylor opinava: Toda a vida dos primitivos no era nada alm de um

    longo sonho (...) o selvagem ou brbaro nunca aprendeu a fazer a rgida distino entre ima-

    ginao e realidade, a reforar o que um dos principais resultados da educao

    cientfica (TAYLOR apud DELANEY, 2001, p.76).

    Influenciado pela teoria da evoluo de Charles Darwin e imbudo sempre de uma

    perspectiva eurocntrica, Taylor supe uma linha evolutiva que vai do politesmo ao mono-

    tesmo, a primeira atrasada e a ltima avanada. Ele interpreta a religio primitiva como um

    erro intelectual que provinha dos sonhos. Para Taylor, os povos primitivos confundem reali-

    dade subjetiva e objetiva (LONG, 1999, p.89).

    Taylor cunhou o termo animismo para se referir crena em seres espirituais que

    perpassavam todo mundo fsico: de animais a plantas, dos rios e rochas aos astros. Hoje esse

    termo no mais aceito pela antropologia, dada a complexidade de culturas e diferentes vi-

    ses de mundo e prticas religiosas, no que diz respeito s culturas primevas (GAARDER,

    2000, p.62).

    O estudioso de religies comparadas Mircea Eliade considera que culturas primitivas

    so mais perceptivas em relao ao mundo das formas naturais e essa abertura lhes permite

    experimentar o mundo como uma realidade sagrada, tudo revela uma dimenso do sagrado

    (LONG, 1999).

    Eliade utilizou o termo hierofania, em que o sagrado no pode ser reduzido ao ra-

    cional, irracional ou psicolgico. O sagrado inclui toda forma de percepo, uma experin-

    cia total. A integrao de muitos aspectos aparentemente dspares e muitas vezes opostos em

    uma unidade representada por meio do smbolo religioso que, por sua vez, provm de um

    mito:

    !Um mito a integrao de smbolos religiosos em uma forma narrativa. Mi-tos no s fornecem uma viso abrangente do mundo, mas elas tambm for-

    21

  • nece as ferramentas para decifrar o mundo. Mitos embora possam ter uma contrapartida no ritual padres. (LONG, 1999, p.89)

    possvel especular que a narrativa onrica, em que os mitos esto fundados, a nar-

    rativa original, antes da organizao aristotlica que hoje a regra. De alguma forma, estudar

    seus padres reencontrar uma forma essencial de organizar o mundo. Em alguma medida,

    o resgate do sentido do sagrado:

    !Para aqueles que tm uma experincia religiosa, a natureza como um todo susceptvel de se revelar como sacralidade csmica. Cosmos como um todo pode se tornar uma hierofania. O homem das sociedades arcaicas tende a viver tanto quanto possvel o sagrado ou na privacidade dos objetos consa-grados. A sociedade moderna habita um mundo dessacralizado (ELIADE, 2000, p.20) !

    O cotidiano era cercado de magia, todas as coisas tinham anima (alma, esprito,

    conscincia) e no havia muita diferena entre o que se via na vida e o que se via nos sonhos.

    Nessa cosmoviso, os sonhos eram muito importantes; os xams, muitas vezes com o uso ri-

    tual de substncias divinatrias, iam ao mundo dos sonhos para trazer respostas s questes,

    trazer cura e equilbrio s comunidades:

    !Nas sociedades primitivas, as pessoas acreditam que nos sonhos entra-se em outro mundo, o do poder e dos espritos. Esse mundo pode parecer to real quanto o mundo real, ou ainda mais, e certamente considerado um mundo mais poderoso. Os ancios das tribos, os matriarcas, patriarcas, sacerdotes e curandeiros so convidados a interpretar os sonhos. Acredita-se que os cu-randeiros so especialmente habilidosos com os sonhos porque podem entrar no mundo dos sonhos atravs de estados de transe, ou de seus prprios so-nhos, e recuperar almas perdidas, lutar contra espritos malficos, entrar em contato com ancestrais e descobrir significados no interesse do sonhador. (DELANEY, 2001, p.77). !

    Nesse sentido as noes de real e irreal esto relacionadas relao que a huma-

    nidade estabeleceu com o fenmeno do sonho:

    !O que Tedlock percebeu, ao contrrio de muitos dos seus predecessores, que as pessoas nas sociedades primitivas, assim como em outras culturas, freqentemente consideram o mundo visto no sonho to ou mais real do que o visto no estado desperto. Ao mesmo tempo elas fazem uma distino clara entre as realidades do sonho e as do estado desperto. Em qualquer sociedade, o que considerado real e irreal determinado pelas crenas religiosas e cientficas dessa sociedade. (DELANEY, 2001, p.78) !

    22

  • Em algum momento da histria, a integrao entre a realidade onrica e a desperta se

    fragmenta.

    Observando essa mesma situao, o filsofo alemo Friedrich Nietzsche, em Huma-

    no demasiado Humano, em contraposio a ideia do sonho e realidade objetiva como integra-

    das afirma que:

    (...) na poca inicial da cultura, o homem acreditava que estava descobrindo um segundo mundo real no sonho, e a partir da comeou a origem de toda a metafsica. Sem sonhos, os humanos nunca teriam motivo para inventar essa diviso do mundo. A separao da alma e do corpo segue a mesma linha de interpretao de sonhos; assim como a idia do corpo separado da alma, de onde surgiram todas as crenas em fantasmas e provavelmente em deuses tambm (...). (NIETZSCHE, 2005, p.35) !

    Nietzsche acredita que da percepo entre o estado do sonho e o estado desperto pro-

    vm toda a metafsica, o que, para ele, diga-se de passagem, como antiplatnico, no era ne-

    nhuma vantagem.

    A dualidade sonho-realidade entendidas como instncias opostas, como preconiza

    Plato, contrapondo mundo das formas e o mundo das ideias no uma viso que o filsofo

    alemo endossa. Em sua crtica ao platonismo, Nietzsche se relaciona mais com o pensamento

    hierofntico descrito por Mircea Eliade e, em especial, com a viso das religies orientais,

    mais especificamente o budismo, do qual falaremos com mais detalhes ainda neste captulo

    vale ressaltar que alguns dos seus conceitos perpassaro toda a dissertao.

    No entanto, h uma corrente de pensamento que acredita que a diferenciao entre os

    dois estados foi benfica. Existiria uma correlao entre a evoluo do pensamento humano e

    essa conscincia da diferena entre estados, como aponta o antroplogo Irving Hallowell: os

    seres humanos no poderiam ter evoludo sem fazer algum tipo de distino entre as experi-

    ncias do sonho e as do mundo fsico desperto (HALLOWELL apud DELANEY, 2001, p.

    79).

    Essa viso est mais de acordo com a viso cientfica ocidental que se iniciou na

    Grcia Antiga e que ser abordada no tpico a seguir.

    !!!23

  • 1.2 SONHOS E CINCIA

    !!

    Durante muitos sculos o sonho pertencia categoria do sobrenatural e a ele era rela-

    cionada toda sorte de pressgios e influncias espirituais. Porm, desde a Antiguidade, h ten-

    tativas de relacionar os sonhos no somente esfera do espiritual mas tambm ao campo dos

    fenmenos naturais.

    Aristteles acreditava que a sonolncia provinha da evaporao dos alimentos no or-

    ganismo (ROLIM, 2012). Mesmo sendo uma ideia estranha, ainda assim era uma explicao

    de ordem natural. Aristteles tambm foi o primeiro a observar e a relacionar os movimentos

    dos olhos e dos msculos da face acontecimentos internos do sonho, tanto de seres humanos

    como de animais (ROLIM, 2012).

    Aristteles acreditava que o movimento do sangue fazia surgir imagens nos sonhos e

    era descrente de que as imagens onricas eram independentes da realidade objetiva:

    !Portanto, segundo Aristteles, na melhor das hipteses os sonhos poderiam refletir o mundo real, inclusive o estado do corpo fsico, mas eram apenas imagens visuais que a maioria dos sonhadores confunde com a realidade. Aristteles considerado precursor do pensamento emprico, que mais tarde foi articulado por Francis Bacon (1561-1626). Este trouxe para o primeiro plano do pensamento ocidental a crena em que as evidncias sistemticas e empricas eram o nico segredo para obter um conhecimento confivel sobre o que ou no realidade. (DELANEY, 2001, p.90) !

    Assim, a trajetria dos sonhos foi da viso completamente mgica ao extremo racio-

    nalismo. Mas, quela altura, como os sonhos no podiam ser isolados, quantificados e estuda-

    dos, foram relegados ao obscurantismo. Boa parte da experincia humana contida nos sonhos,

    no mundo ocidental, saiu dos holofotes da cincia.

    A cincia s voltaria a considerar o sonho como importante com Sigmund Freud. A

    Interpretao dos Sonhos pode ser considerado como a pedra angular da psicanlise e a im-

    portncia dos sonhos para essa cincia fundamental Freud utiliza o conceito de inconsci-

    ente, em que os sonhos tm um papel preponderante.

    Nos sonhos, para Freud, h o contedo manifesto e o contedo latente o contedos

    manifesto so as imagens que os sonhos suscitam e as tessituras narrativas que se apresentam,

    o que o sonhador consegue lembrar e descrever. J o contedo latente seria o que est por trs

    24

  • dessas imagens, a interpretao do sonho em si.

    Freud compara o contedo manifesto com um hierglifo a ser decifrado:

    !O contedo manifesto dado como um hierglifo; no uma paisagem pict-rica mas uma escritura hieroglfica, para cuja soluo temos que traduzir cada um de seus signos linguagem das idias latentes. Erraramos de pron-to se quisssemos trat-la apenas como imagens pictricas e no como ca-racteres da escrita hieroglfica. (FREUD, [1900], 2007, p.516) !

    O hierglifo, assim como o ideograma japons, construdo com a justaposio

    (condensao) de imagens que resulta em outro significado. Isso se relaciona diretamente com

    o funcionamento da linguagem cinematogrfica atravs da montagem descrita pelo cineasta

    russo Sergei Eisenstein.

    A relao do sonho com a linguagem cinematogrfica ser estudada em um captulo

    parte, mas recorro aqui a Eisenstein, como forma de ilustrar esse princpio de interpretao

    para relacionar o contedo manifesto (hieroglfico/ideogramtico). Em A Forma do Filme,

    Eisenstein salienta: Por exemplo a imagem da gua e a imagem para o olho (em japons)

    significa chorar; a figura de uma orelha perto do desenho de uma porta = ouvir.

    Evidentemente a gramtica do sonho muito mais complexa. Para Freud, o sonho

    est totalmente relacionado infncia, algum desejo infantil no consciente e reprimido. O

    sonho s se formaria quando algum evento do presente se relaciona com o passado (ALT-

    MAN, 1971).

    O aforismo mais popular de Freud sobre os sonhos : Sonhos so realizaes de de-

    sejos. E esse desejo se encontra na maioria das vezes reprimido normalmente so desejos

    que no seramos capazes de expressar em um ambiente social.

    Freud batizou o mecanismo de represso do inconsciente, ou contedo latente, de

    superego (super eu), o que se sobrepe ao ego, de forma muitas vezes representada por figu-

    ras autoritrias, como o patriarca ou a matriarca. Por outro lado existe o id, elemento selva-

    gem do ego, centro do princpio do desejo, que quer express-lo sem limites e sem censura.

    O sonho o territrio do id, onde ele se manifesta, onde o superego baixa a

    guarda, dando entrada a contedos dos quais o sonhador conscientemente no se d conta ou

    no admitiria. Os sonhos permitiriam que a mente inconscientemente agisse sob a forma de

    imagens e pensamentos e desejos inaceitveis. Por essa razo, tal teoria sobre sonhos foca

    25

  • principalmente em smbolos que remetem a desejos sexuais. Por exemplo, qualquer objeto

    cilndrico em um sonho representaria o pnis, enquanto uma caverna ou um objeto fechado

    com uma abertura representaria a vagina. Portanto, sonhar com um trem entrando em um t-

    nel representaria uma relao sexual, entre outras imagens que podem ser mais ou menos b-

    vias do que essa.

    O sonho um fenmeno regressivo retorna-se a estgios primitivos da infncia,

    diminui-se o controle e a censura, o contato com o mundo exterior e, por consequncia, o ego,

    impulsos antissociais e desagregadores so temporariamente abandonados. Esses seriam os

    sonhos que vem de baixo do inconsciente (ALTMAN, 1971).

    H os sonhos que vem de cima estes seriam aqueles que se relacionam com os

    contedos dirios superficiais.

    O sonho est estruturado como um sistema de mensagem crptica:

    - Presente

    CONTEDO LATENTE - Passado

    - Pr-consciente

    - Inconsciente

    !Esses estados do contedo latente do sonhador, que vo do presente ao inconsciente

    em ordem de profundidade, corroboram a observao dos sonhos pela cincia. O primeiro so-

    nho, fruto de um sono mais superficial, trata de questes do dia a dia, reminiscncias do dia

    ou tambm podem se referir a um passado consciente (ROLIM, 2012).

    O sono funciona atravs de ciclos, indo do estado semidesperto, ou sono leve, ao

    sono profundo, mais reparador; em seguida volta ao estado mais leve e, a seguir, ao profundo,

    e assim por diante, com geralmente seis ciclos por noite . 16

    O sono geralmente dura de 70 a 110 minutos por ciclo e dividido em 5 estgios:

    !Estgio 1 (Sonolncia) Revezamos entre o estado desperto por cerca de 5 a 10 minutos e podemos ser despertos facilmente. Os olhos se movem vaga-rosamente e atividade muscular diminui. !Estgio 2 (Sono leve) Os olhos param de se movimentar e as ondas cere-

    26

    ! Advanced Lucid Dreaming. The Power of Supplements. How to Induce High Level Lucid Dreams. & Out 16of Body Experiences. Written By Thomas Yuscha, Lulu Interprises, 2006. (Traduo minha).

  • brais (flutuaes da atividades eltricas medidas por eletrodos) tornam-se mais lentas, com ocasionais movimentos bruscos de ondas rpidas. A frequncia cardaca e a temperatura corporal diminuem. !Estgios 3 e 4 (Sono profundo) Ondas cerebrais mais lentas chamadas on-das delta comeam a aparecer, com intervalo de ondas rpidas () muito difcil despertar algum durante os estgios 3 e 4, o chamado sono profundo. No h movimento dos olhos ou atividade muscular. Pessoas acordadas nes-se estgio () sentem-se desorientadas por muitos minutos antes de desper-tar. !SONO REM (ou MOR - Movimentos Oculares Rpidos) Durante o sono REM, a respirao acelerada e irregular, os olhos se movem rapidamente para vrias direes () as pessoas tendem a ter sonhos mais vvidos nesse estgio. (YUSCHA, 2006, p.24) !

    A prpria constituio das fases do sono lembra uma narrativa vertical que vai do

    superficial ao profundo e isso ser levado em conta na escrita dos nveis/fases do jogo LUCI-

    DREAM.

    De acordo com o Freud, o contedo latente do sonho se manifesta atravs de alguns

    artifcios os quais me sero muito teis na escrita do roteiro, na concepo de personagens,

    cenrios e imagens:

    ! Condensao: fuso de duas ou mais ideias ou imagens mentais, como exemplo as

    figuras mticas: centauro, minotauro, sereia, esfinge e a multitude de criaturas que

    povoam a mitologia. Combinao de pessoas e coisas etc. comparvel aos neo-

    logismos, tambm muito comum em sonhos.

    Deslocamento: rpida transferncia de uma ideia ou imagem para outra, meton-

    mia uma parte pelo todo, uma relao de aproximao que pode ser distanciada,

    deslocada do sentido latente.

    Simbolismo: para a psicanlise (at ento nesse momento de formao) a quase

    totalidade dos smbolos se relacionava com funes sexuais ou fisiolgicas. Carl

    Gustav Jung ampliou a ideia dos smbolos, relacionando-os ao repertrio religio-

    so, filosfico e alqumico adquiridos no decorrer da histria pela humanidade,

    como um depsito de smbolos pelo qual podemos ter acesso o que ele chamou de

    inconsciente coletivo.

    Esses contedos e estratgias narrativas dos sonhos est presente tanto em sonhos

    convencionais como em sonhos lcidos, assunto do tpico a seguir.

    27

  • 1.3 SONHOS LCIDOS, SONHOS CRIATIVOS

    !!

    Para iniciar a discusso sobre os sonhos lcidos, recorro a uma definio bastante

    simples, em linguagem cientfica, do Doutor em Psicobiologia pela Universidade Federal do

    Rio Grande do Norte (UFRN) Srgio Arthuro Rolim:

    !Sonho lcido (SL) um estado mental no qual o sujeito est consciente de estar sonhando durante o sonho (...) nossos dados de uma amostra de latino-americanos fortalecem a noo de que o SL um fenmeno universal da es-pcie humana (2012, p.11). !

    Essa definio foi retirada do recente trabalho de doutorado Aspectos epidemiolgi-

    cos, cognitivos-comportamentais e neurofisiolgicos dos sonhos lcidos, defendido em

    2012, estudo pioneiro no assunto, no Brasil, tendo como orientador o neurocientista Sidharta

    Ribeiro.

    guisa de contextualizao do potencial inovador do tema dos sonhos lcidos, cito a

    chamada da entrevista dada Revista Trip por Sidharta Ribeiro, do Instituto Internacional de

    Neurocincias de Natal:

    !Assim nasceu o ambicioso Instituto Internacional de Neurocincia de Natal. Orado em 20 milhes de dlares, o dobro do custo da patriotada espacial e intil que levou nosso primeiro astronauta ao espao mas com perspectivas muito superiores. Exemplo: saber como funciona o crebro durante o sonho lcido. Construir interfaces crebro-mquina capazes at de controlar fun-es do corpo pela Internet. Ou, ainda, simplesmente, desvendar a lngua falada por macacos (TRIP, 2006, s.p.) !

    A matria indica uma certa euforia e novidade da pesquisa com sonhos lcidos, colo-

    cada no mesmo patamar de pesquisas cientificas de ponta e encampada por um dos principais

    centros de investigao do Pas.

    Alm de implicaes cientificas, os sonhos lcidos (SL) trazem novas implicaes

    filosficas e estticas. A conscincia em meio ao sonho proporciona uma srie de experincias

    que ainda demandam estudo. O prprio Sidharta estuda a relao do aprendizado com o sono

    e os sonhos, e talvez no to casualmente lance mo do universo dos games. Em uma das

    pesquisas, ele utilizou um game de gnero shooter, Doom, relacionando o uso do jogo aos

    28

  • sonhos e ao aprendizado.

    Para uma abordagem mais ampla do fenmeno do SL, acesso o trabalho de Rolim,

    juntamente com os trabalhos de Stephen Laberge, neurocientista americano, como principais

    bases tericas deste tpico.

    Apesar de ser fcil compreender o conceito de SL, para a maioria das pessoas dif-

    cil conceber, na prtica, como isso se d o que gera a impresso de se tratar de um tema

    quase esotrico. De fato, revisando a bibliografia disponvel sobre o assunto, possvel ob-

    servar que o limite de uma aproximao objetiva e a mistificao quase ocultista sobre os SL

    muito tnue, como se se tratasse de um assunto para iniciados em alguma escola de mistrio.

    Por isso a opo, aqui, por pesquisadores que tm tanto formao cientfica quanto

    interesse pelas implicaes do fenmeno em outros mbitos, abertos s implicaes humanas

    da experincia: registros histricos, prticas religiosas e implicaes filosficas.

    Antes de tudo, sonhos lcidos so sonhos, fenmenos psicobiolgicos naturais intrn-

    secos da espcie humana (ROLIM, 2012).

    O termo Sonho Lcido de autoria do psiquiatra Frederik Willems Van Ee-den (1913), um dos maiores estudiosos do sonho. Lucidez nesse caso, a capacidade de saber se est sonhando durante o sono. Nas prprias palavras Van Eeden: ... nesses sonhos lcidos a integrao das funes psquicas to completa que o sonhador alcana um estado de perfeita conscincia, sen-do capaz de direcionar sua ateno e de realizar diferentes atos de forma li-vre espontnea e voluntria (VAN EEDEN apud ROLIM, 2012, p.3) !

    Os registros histricos que podem ser entendidos como o princpio das investigaes

    acerca do SL no Ocidente remontam Antiguidade Clssica: (...) algumas vezes, durante o

    sonho, algo diz claramente para ns que aquilo no est realmente acontecendo (ARIST-

    TELES apud ROLIM, 2012, p.3).

    A formulao de Aristteles aponta para um aspecto fundamental no conceito de SL:

    o estranhamento (e a consequente dvida sobre se real ou no o que est ocorrendo no mun-

    do onrico). Esse estranhamento o princpio da conscincia e da lucidez no sonho.

    Dentro de um SL no apenas se tem a noo de que se est sonhando como tambm,

    a partir desse conhecimento, se pode interagir, co-criar com o inconsciente o contedo do

    prprio sonho. Essa interao se relaciona intimamente com a experincia de sistemas intera-

    tivos de simulao narrativa dos jogos eletrnicos, discusso que ser desdobrada mais adian-

    29

  • te.

    O primeiro registro efetivo do fenmeno se deu no baixo medievo com o filsofo

    cristo Agostinho de Hipona, o Santo Agostinho. O relato consideravelmente longo, mas

    vale cit-lo, posto que contm elementos que se repetem nas narrativas onricas que sero

    analisadas: A primeira descrio de um sonho lcido na histria do Ocidente est conservada

    numa carta escrita em 415 d.C. por Santo Agostinho (...) Agostinho citou o sonho de Gendio,

    mdico em Cartago (LABERGE, 1990, p.13).

    No sonho Gendio, encontra um personagem descrito como um jovem angelical,

    que o interpela e lhe pede que o siga:

    !Gendio chegou a uma cidade onde ouviu um canto to delicadamente doce que sobrepujava tudo o que j ouvira. Indagando a respeito da msica, dis-seram-lhe que era o hino dos abenoados e dos santos. Nesse momento Gendio acordou, considerando tudo apenas um sonho. !Na noite seguinte sonhou de novo com o jovem, que lhe perguntou se conse-guia reconhec-lo. Quando respondeu: Mas claro que sim!, o jovem per-guntou onde o havia conhecido. A memria de Gendio no conseguiu lhe dar a resposta adequada e ele narrou os acontecimentos do sonho anterior () o jovem indagou se aqueles fatos haviam acontecido durante o sono ou quando estava acordado. ! resposta de Gendio, durante o sono, o jovem continuou () socrtico, declarando: Voc se lembra bem de tudo; verdade que viu essas coisas enquanto estava dormindo, mas preciso lhe dizer que mesmo agora voc est vendo no sono. !() O sonho, agora lcido, continuou, com o jovem perguntando: Onde est o seu corpo agora? Tendo Gendio dado a resposta adequada, na mi-nha cama, o inquisidor do sonho continuou a discusso: Sabe que agora os olhos desse seu corpo esto confinados e fechados, e sabe que com esses olhos no est vendo nada? Gendio respondeu: Sei. Nisso, o professor do sonho chegou concluso do raciocnio, perguntando: Ento que so os olhos com que est me vendo? !() Gendio permaneceu em silncio e o catequista do sonho (exclamou) triunfalmente: Pois quando est dormindo e deitado na cama esses olhos do seu corpo no tm serventia e no esto fazendo nada; no entanto, voc tem olhos com os quais est me olhando, e sente prazer nessa viso; de modo que, depois da sua morte, quando os olhos do seu corpo estiverem comple-tamente inativos, haver em voc uma vida que ainda estar vivendo, e have-r uma faculdade de percepo com a qual voc ainda estar percebendo. Por isso, depois disto tenha cuidado com as dvidas que abriga sobre a vida do homem continuar ou no depois da morte (AGOSTINHO apud LA-BERGE, p.13) !

    O primeiro detalhe que chama ateno nesse SL medieval e que se repete como

    30

  • padro em muitos sonhos lcidos e narrativas onricas a presena de um personagem que

    demonstra ser um sonho a realidade na qual o sonhador se insere. Esse personagem uma es-

    pcie de professor, que indica a Gendio, de forma didtica, e neste caso sofisticamente,

    atravs de perguntas, que ele est sonhando.

    O segundo padro o reconhecimento, por parte do sonhador, de que se trata de um

    sonho, momento em que se d a iluminao ou insight introspeco, no sentido de literal:

    in (dentro) sight (viso). Aqui vale trazer tambm a etimologia da palavra introspeco: do

    latim introspectio, ato de olhar para dentro, de introspecere, formado por intro-, para den-

    tro e specere, olhar . 17

    como se o mdico cartagins Gendio abrisse os olhos ao seu mundo interno pela

    primeira vez despertasse; como na frase j to gasta pela repetio nas redes sociais, atribuda

    a Carl Gustav Jung: Quem olha para fora, sonha. Quem olha para dentro, acorda.

    Para manter o distanciamento de uma concepo espiritualista vazia, da sociedade de

    consumo, possvel ainda contar com a descrio simples e fenomenolgica do budismo em

    relao ao processo de despertar/insight: trata-se do termo vipassana, do snscrito ver as coi-

    sas como elas realmente so. a ao de observar o mundo, a mente e o corpo em estado de

    ateno e de forma consciente, auto-observao, de novo, introspeco . Essa habilidade de 18

    despertar e ser capaz de ser consciente do mundo ao redor o que um sonhador necessita para

    ser lcido/consciente.

    A terceira caracterstica que surge na narrativa de Santo Agostinho a relao do so-

    nho com a morte a ser analisada mais detidamente no captulo sobre o filme Waking Life.

    O que a narrativa de Agostinho de Hipona tem de especfico postura em relao

    morte, a ideia de que existe algo alm do que se pode inferir na realidade objetiva. Se Gen-

    dio est vendo um mundo sua frente, mas sabe que est de olhos fechados, com que olhos

    ele v esse mundo?

    Essa reflexo serve inteno catequtica de Santo Agostinho, como uma prova,

    por analogia, de que existe vida aps a morte o que se constata atravs da voz do jovem

    angelical:

    31

    ! Dicionrio Eletrnico Houaiss da Lngua Portuguesa. Verso 3.0 (CD_ROM). Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.17

    ! DUFFY SM, Kevin. Eastern Meditation Techniques and Christian Spirituality: The Example of Vipassana. Dispo18 -nvel em: . Acesso em : mar.2013.

  • !() depois da sua morte, quando os olhos do seu corpo estiverem comple-tamente inativos, haver em voc uma vida que ainda estar vivendo, e have-r uma faculdade de percepo com a qual voc ainda estar percebendo (LABERGE, 1990, p.14). !

    Em outras palavras, se a conscincia subsiste em mundo inconsciente, independente

    dos sentidos da viso e com a inatividade do corpo, como o estado do sono (uma espcie de

    morte virtual), ela pode continuar existindo alm da vida.

    Um outro registro dos SLs atravs da histria citado por LaBerge, ainda nos dom-

    nios da cultura ocidental. Trata-se de um certo marqus d'Hervey de Saint-Denys, mais tarde

    descrito por Freud como o oponente mais enrgico de quem procura depreciar o funciona-

    mento psquico nos sonhos (FREUD apud LABERGE, 1990, p.17).

    O marqus de Saint-Denys escreveu um livro que seria o primeiro manual de sonhos

    lcidos: !No livro notvel intitulado Sonhos e como gui-los, publicado pela primeira vez em 1867 e traduzido recentemente para o espanhol em forma resumida, o marqus documenta mais de vinte anos de pesquisas de sonhos. Infeliz-mente parece que no fcil conseguir a edio original; Freud menciona que no conseguiu uma cpia apesar de todos os esforos, com a con-sequncia lamentvel que o fundador da psicanlise nunca conseguiu mais que uma familiaridade superficial com as possibilidades de sonhar lucida-mente ou de controlar os sonhos. (LABERGE, 1990, p. 20)

    Com essa informao, pode-se apreender que Freud tendo conhecimento de ao me-

    nos parte do contedo do livro, tinha conhecimento sobre o fenmeno dos sonhos lcidos o

    que corroborado por uma passagem do Interpretao dos sonhos citado por LaBerge:

    !A primeira edio desse livro no fazia nenhuma referncia direta aos so-nhos lcidos. Mas na segunda edio, publicada em 1909, Freud acrescentou uma nota: !h algumas pessoas que ficam muito bem acordadas durante a noite, quando esto adormecidas e sonhando, e que parecem, pois, ter a faculdade de diri-gir conscientemente os prprios sonhos. Se, por exemplo, um sonhador deste tipo estiver insatisfeito com o rumo tomado pelo sonho, poder interromp-lo sem acordar e comear de novo em outra direo, como um dramaturgo popular pode, sob presso, dar sua pea um final mais feliz. (1990, p.17) !

    O que chama ateno principalmente nessa nota do pai da psicanlise a aluso

    figura do dramaturgo, uma conscincia criadora dentro do prprio sonho, ou entre outras

    32

  • palavras, guardando as devidas propores dos limites pr-estabelecidos pela narrativa, um

    interator como nos games, que de alguma forma tem influncia nos acontecimentos da nar-

    rativa interativa atravs da faculdade de suas escolhas.

    Finalmente no sculo XX pode-se ter comprovao cientfica do fenmeno dos so-

    nhos lcidos e foi uma descoberta do prprio LaBerge e sua equipe. Ao se dar conta do bvio

    de que no sonho REM ou MOR (Movimentos Oculares Rpidos) o movimento dos olhos es-

    tavam livres de impedimentos, LaBerge imaginou que essa autonomia de movimento poderia

    provar a existncia do fenmeno.

    Ele relata uma experincia em que o sonhador descrevia movimentos horizontais

    com os olhos por 12 vezes seguidas. Ao despertar o sonhador comunica que sonhava com um

    jogo de ping pong e seus olhos/viso onrica seguia a bola de um lado a outro. !Ocorreu-me que, deslocando os olhos (do sonho) num esquema reconhec-vel, poderia ser capaz de enviar um sinal para o mundo exterior quando esti-vesse tendo um sonho lcido. (...) Experimentei isso no primeiro sonho lci-do que registrei: desloquei o meu olhar de sonho para cima, para baixo, para cima e para baixo, at contar cinco. Tanto quanto soube naquela poca, foi o primeiro sinal transmitido deliberadamente do mundo dos sonhos. (LA-BERGE, 1990. p.32) !

    Como parte de sua pesquisa de doutoramento na Universidade de Standford, LaBer-

    ge tornou-se, como sonhador lcido, a cobaia de seu prprio experimento evidentemente

    com outros pesquisadores, para certificar os sinais preestabelecidos antes de o pesquisador

    entrar em estado REM.

    Depois de muitas tentativas e de engajar muitos outros sonhadores lcidos, LaBerge

    teve sucesso em suas verificaes. Nesse contexto, ele cunhou o termo onironauta, que foi

    utilizado em Waking Life (2001) e que tambm ser utilizado no roteiro do jogo LUCIDREAM:

    !Demos a ns mesmos o nome de onironautas, palavra que cunhei com ra-zes gregas e que significa exploradores do mundo interior dos sonhos. Os resultados daquelas primeiras experincias formaram a parte mais importan-te da minha tese de doutoramento, que se intitulou Lucid exploratory study of consciouness during sleep. (LABERGE, 1990, p.30) !

    LaBerge produziu um artigo e enviou revista Science (1980), obtendo o seguinte

    parecer:

    !33

  • um relatrio excelente e apresenta uma descoberta nova, que valida o ato de sonhar lucidamente em condies de laboratrio. As implicaes de so-nhar lucidamente so interessantes e importantes e dessa descoberta poderia fluir um campo de pesquisa novo e importante. O relatrio est escrito com bastante clareza e conciso e recomendo muito que seja publicado. (Science apud LABERGE, 1990, p.35) !

    Enfim satisfeitos os espritos empiristas ocidentais, o fenmeno dos SLs estava pro-

    vado. Entretanto, a tradio oriental, principalmente do budismo tibetano, desde o sculo VIII

    j desenvolvia tcnicas e davam especial valor ao SL.

    !!1.4 SONHOS LCIDOS NA CULTURA ORIENTAL YOGA DO SL

    !!

    Sobre todas as condies durante o dia, atenha-se ao conceito de que todas as coisas so feitas da substncia dos sonhos e assim voc perceber a ver-dadeira natureza das coisas. 19!

    A ocorrncia dos sonhos lcidos na cultura oriental ainda mais presente e direta

    uma das prticas de yoga do budismo tibetano o chamado Yoga dos Sonhos. Trata-se de um

    conjunto de tcnicas de meditao, cujo intuito induzir a lucidez durante o sonho (ROLIM,

    2012).

    A principal diferena entre as vises ocidental e oriental sobre os sonhos diz respeito

    dualidade e oposio entre os estados desperto-sonhando. No Ocidente, a realidade objeti-

    va/emprica tem o status de verdade, enquanto o sonho seria uma espcie de iluso ou quime-

    ra.

    Para o budismo e para o hindusmo, a iluso o vu de Maya abarca tanto o estado

    desperto quando os sonhos e nos impede de ver a unidade de todas as coisas. Nesse sentido,

    os dois estados se equivalem. Na verdade, toda e qualquer dicotomia fruto dessa viso em-

    baada pela iluso, como em um velho espelho:

    !() tipo de compreenso expressa pelo conhecimento do espelho uma forma de viso mstica muito particular dos indianos. Ela encontrada de maneira muito intensa na doutrina hindu de maya, que o poder criativo e

    34

    ! Cf. The Yoga of the dream State, The Yoga of the Six Doctrines. Disponvel em: . Acesso em: mar.2010.

  • mgico da iluso () Mas a natureza essencial de uma iluso que ela, na verdade, aparenta ser totalmente real; tem de ser convincente ou no poder ser chamada de iluso (FREMANTLE, 2005, p.126) !

    No budismo, seria a sabedoria do espelho, em que as coisas se mostram como elas

    so: apenas reflexos sem julgamento, apego ou averso.

    !Ento, sabendo que ela no real em ltima instncia, podemos tomar parte nela sem que sejamos tomados por ela. Podendo ser plenamente desfrutada como a expresso espontnea de uma realidade maior. Aquela aparncia v-vida da pea da iluso o que percebemos com o conhecimento do espelho. (FREMANTLE, 2005, p.126) !

    No livro Tibetan Yogas of Dream and Sleep (1993), o monge tibetano Tenzin

    Wangyal Rinpoche resume esse posicionamento relacionado aos sonhos:

    !O primeiro passo no prtica dos sonhos muito simples: devemos reconhe-cer o grande potencial que os sonhos ocupam na jornada espiritual. Normal-mente o sonho pensado como sendo irreal, em oposio ao real da vida desperta. Mas no h mais nada mais real que o sonho. Essa afirmao s pode ser entendida quando se considera a vida desperta to irreal quanto quanto um sonho exatamente da mesma forma. Ento pode-se compreender que a yoga dos sonhos se aplica a todas as experincias, tanto aos sonhos do dia quanto aos sonhos da noite. (WANGYAL, 1993, p.35) !

    A perspectiva de Wangyal vai muito alm da teoria, e o livro em questo um manu-

    al de tcnicas para usar os sonhos e os sonhos lcidos como uma prtica espiritual e filosfi-

    ca, com centenas de anos de prtica ligada ao budismo tibetano.

    A prxima subseo procede descrio de algumas dessas tcnicas, as quais sero

    utilizadas como elementos de habilidade dos personagens do jogo LUCIDREAM.

    !!1.5 TCNICAS PARA SL

    A primeira tcnica bsica no yoga dos sonhos e replicada por todos os manuais

    tentar se lembrar dos sonhos. Para isso, usa-se uma espcie de dirio onrico, no qual se anota

    tudo o que possvel recordar: detalhes dos personagens, do ambiente, da narrativa, texturas,

    sons, gostos etc.

    35

  • A tcnica budista consiste em meditar sobre o sonho ao acordar, o que nos manuais

    ocidentais foi substitudo pelo registro do sonho; em qualquer uma das tcnicas, refletir sobre

    o sonho uma forma direta de ter conscincia da diferena dos estados.

    LaBerge aponta a importncia do yoga dos sonhos para a cultura budista tibetana,

    como fator de busca de autoconhecimento:

    !Pelo menos desde o sculo VIII os budistas tibetanos do valor especial ao sonho lcido como meio de chegar descoberta da prpria pessoa. Tarthang Tulku escreveu que pode ser uma grande vantagem perceber que um sonho um sonho enquanto estamos sonhando. Por exemplo, podemos usar o que sentimos nos sonhos para desenvolver uma atitude mais flexvel e tambm para aprender a nos modificar (...) ilumina facetas da mente que antes esta-vam invisveis e clareia o caminho para que possamos explorar dimenses sempre novas da realidade. (LABERGE, 1990, p.40) !

    A segunda tcnica bsica, tambm muito simples, consiste em comparar o sonho

    com o estado desperto, notar o que se sente, o que se v e o que se percebe quando se est

    desperto e quando se est dormindo. o chamado genericamente de reality check checar a

    realidade.

    Trata-se, basicamente, de se questionar enquanto se est desperto: Ser que estou

    sonhando?.

    Esse raciocnio comparativo, pela repetio, leva a dvida ao sonho quando o so-

    nhador faz o reality check dentro do sonho h maiores chances de se dar conta da impreciso

    e do estranhamento do mundo onrico e despertar para a lucidez.

    Carlos Castaeda, o controverso antroplogo que fez muito sucesso com seus livros

    nos anos 1970, sobre experincias com drogas divinatrias, em um dos seus livros populari-

    zou uma tcnica que viria a ser muito citada e utilizada por candidatos a sonhadores lcidos:

    olhar para as palmas das mos onricas enquanto dorme.

    O famoso xam Don Juan, personagem criado ou descrito por Castaeda em Jornada

    para Ixtln, indica para ele um procedimento para tornar-se consciente nos sonhos, como des-

    creve Roberto Carricone, em Castaeda em O Caminho do Nagual:

    !O primeiro passo era olhar para as mos enquanto sonhasse. No muito fcil conseguir isso, mas a tcnica essa. Quando dormir procure focalizar as mos no sonho. No h indicaes precisas para isso. Apenas devemos olhar as mos, que o resto vem por si s. Quem conseguir xito nesta experi-ncia entender o resto, pois algo indescritvel. Depois falou que o prxi-

    36

  • mo segredo era olhar para as coisas, no sonho, e fixar-se nelas. A realidade do olhar passa a manifestarem-se (sic) quando a gente focaliza tudo o que v no sonho. Quando as mos comearem a mudar de forma, deve o sonhador mudar a direo dos olhos e escolher outro objeto de foco. Logo aps deve tentar a olhar as mos. (CARRICONDE, 2013, p.176)

    A seriedade de Castaeda j foi posta prova algumas vezes, assim como a veraci-

    dade de seu ttulo de antroplogo. A posio de Laberge pe esses questionamentos em pers-

    pectiva, o que satisfaz aos interesses desta dissertao:

    !Quando fao uma palestra sobre o tema de sonhar lucidamente h sempre algum que traz baila o tema de Carlos Castaeda, geralmente mencionan-do o famoso incidente citado no livro Journey to Ixtln, em que o persona-gem don Juan ensina o personagem Carlos a ver onde est a prpria mo num sonho, ostensivamente como meio de estabilizar o fato de estar sonhan-do. Como Carlos sempre apresentado como um imbecil cheio de si, aprender a ver onde est a prpria mo em qualquer lugar pode ser conside-rado um progresso. J para a maioria dos outros candidatos a sonhar lucida-mente, lembrar-se de ver onde est a mo poderia ser til como pista de luci-dez; mas, uma vez que se est lcido, h muitas outras coisas interessantes a fazer. (LABERGE, 1990, p.35) !

    As muitas outras coisas interessantes citadas pelo pesquisador virtualmente qual-

    quer coisa que se possa imaginar, dependendo do nvel de controle das tcnicas:

    !() para quem sonha, lucidamente nada impossvel. Inspirado por ter perce-bido isso, voc poderia voar para alturas jamais ousadas. Poderia querer en-frentar algum ou alguma coisa que vinha evitando por medo; poderia querer ter um encontro ertico com o parceiro mais desejvel que se pode imaginar; poderia querer visitar algum muito amado que j morreu e com quem vem desejando conversar; no sonho, poderia procurar se conhecer melhor e aumen-tar a sua sabedoria. As possibilidades so infinitas () (LABERGE, 1990, p.35) !

    A terceira tcnica de concentrao em alguma imagem e objeto. A concentrao,

    um poderoso agente indutor de sonhos lcidos (MUNIZ, 2001).

    Pode-se utilizar qualquer imagem ou objeto, mas os monges tibetanos utilizam a letra

    Ah de seu alfabeto:

    !Geralmente, para praticar com um objeto usamos a letra tibetana Ah como objeto de concentrao () usada para desenvolver o foco. Outros objetos () quase qualquer coisa. No entanto, bom usar algo conectado ao sa-grado se isso te inspirar. (WANGYAL, 1993, p.68) !

    37

  • (A letra tibetana particularmente interessante esteticamente para ser utilizada no

    jogo.)

    !

    ! Figura 3: Letra Ah tibetana utilizada nas meditaes !

    A quarta tcnica bsica a INCUBAO ou INSERO de sonhos. Em ingls incepti-

    on, mesmo nome do thriller estrelado por Leonardo DiCaprio e dirigido por Christopher No-

    lan em 2010. No filme, o personagem Cobb tem o trabalho de insertar ideias no sonho de um

    grande empresrio para que ele decida dividir seu imprio entre seus filhos.

    O conceito de incubao consiste em se concentrar em alguma questo, imagem ou

    qualquer coisa com que se queira sonhar, como a resoluo de uma questo; trata-se de visua-

    lizar uma ideia e se concentrar intensamente antes de ir dormir, se possvel escrever e utilizar

    objetos que lembrem o assunto com que se queira sonhar. Ao atingir a lucidez dentro do so-

    nho, deve-se tentar fazer o que se props na incubao.

    LaBerge descreve que uma amiga nunca pde ir em suas conferncias porque mora-

    va do outro lado do pas e tinha medo de voar em avio. LaBerge a aconselha a utilizar o so-

    nho para enfrentar esse medo. Ela o fez e foi exposta ao medo de forma simulada no sonho.

    Na conferncia seguinte, sua amiga apareceu: tinha vencido o medo de avio (LABERGE,

    1990).

    H uma grande quantidade de tcnicas e artifcios para induzir aos sonhos lcidos. A

    seguir, apresento duas tcnicas, de forma resumida, alm de algumas informaes sobre equi-

    38

  • pamentos e substncias utilizadas para esse fim : 20

    WILD (Wake Induced Lucid Dream): Sonho Lcido induzido acordado. Basica-

    mente, consiste em dizer para si mesmo: Terei um sonho lcido. Com essa tc-

    nica, frequente ter paralisia do sono; se isso acontecer, porque se est no

    caminho certo. O ideal manter-se tranquilo at passar a sensao e poder conti-

    nuar dormindo e aproveitar a experincia do SL.

    CAT (Cycle Adjustment Technique): Tcnica de Ajuste de Ciclo. Desenvolvida

    pelo autor e sonhador lcido ingls Daniel Love, consiste em ajustar os ciclos de

    sono e melhorar a conscincia nos sonhos REM: acordar 90 minutos antes do ho-

    rrio de costume durante uma semana. Isso modificar o relgio interno. Com a

    realizao adequada dessa tcnica, verificou-se ser possvel ter at 4 sonhos lci-

    dos por semana. Na semana seguinte, deve-se revezar o horrio: em um dia acor-

    dar no horrio costumeiro e em outro, 90 minutos antes. O condicionamento ao

    novo horrio de sono possibilita ao sonhador chegar ao sonho lcido.

    !!1.6 DISPOSITIVOS PARA SL

    !!

    Existem alguns equipamentos que prometem aumentar as chances de ter sonhos lci-

    dos.

    ! Mscaras: REM Dreamer um exemplo de mscara onrica. Utiliza basicamente

    uma frequncia luminosa constante que modificada quando o sonhador entra no

    estado REM; essa diferena de frequncia causaria um estalo de lucidez no sonho,

    fazendo possvel o SL.

    !

    39

    ! Essas informaes foram retiradas do site Sonhos Lcidos (www.sonhoslucidos.com), um portal que contm 20um compndio de informaes sobre sonhos lcidos em portugus.

  • ! Figura 4: Mscara onrica REM Dreamer Fonte: http://remdreamer.com !

    Aplicativos: como exemplo de aplicativo, o Aurora acompanhado de uma ban-

    dana que monitora a atividade cerebral do sonhador e reconhece quando este che-

    ga ao estado REM. O Dispositivo emite sinais, como flashes e rudos, para induzir

    conscincia nos sonhos.

    !

    ! PLAY

    Figura 5: Aplicativo Aurora Fonte: http://www.kickstarter.com/projects/iwinks/the-auro-ra-dream-enhancing-headband !

    Outros fatores que podem induzir sonhos lcidos so drogas lcitas, como caf e

    nicotina, e alguns suplementos, como galatamina, melatonina etc ; ilcitas, como LSD, ou 21

    divinatrias, como ayausca e slvia divinorum.

    No inteno deste trabalho discorrer sobre esse assunto; no entanto, essas substn-

    cias poder ser utilizadas como inspirao para itens no jogo LUCIDREAM.

    !!

    40

    ! Advanced Lucid Dreaming The Power of Supplements How to Induce High Level Lucid Dreams & Out of 21Body Experiences de Thomas Yuschak AdvancedLD, Ltd, 2006

  • 2 CINEMA COMO SONHO, GAMES COMO SONHOS LCIDOS

    !!

    O sonho um das metforas mais persistentes tanto no estudo das teorias clssicas como modernas do cinema, portanto um critrio orgnico de avali-ao 22!

    Laura Rascaroli !Feche os olhos e veja. !

    James Joyce !!2.1 CINEMA COMO SONHO !

    O sonho lcido est para os games assim como o sonho convencional para o cinema.

    O cinema j foi comparado inmeras vezes com a experincia do sonhar, uma vez que o po-

    tencial onrico da linguagem cinematogrfica e o contexto experiencial em que o cinema se

    insere se fazem evidentes: o escuro da sala do cinema um artifcio da noite, Nix, e de seus

    filhos, Hipnos, deus do sono, e Morfeus, deus que molda os sonhos.

    A linguagem popular j utiliza uma comparao inversa, descrevendo o sonho como

    uma espcie de filme que passa por nossa cabea enquanto dormimos. A relao entre cinema

    e sonho tambm se d no que se refere aos processos psquicos de projeo e identificao:

    enquanto nos sonhos existe a projeo direta das figuras/personagens onricas com o sonha-

    dor, tornando possvel a fruio da experincia do sonho, no cinema existe a identificao

    com os personagens e situaes construdas deliberadamente para que o espectador se projete

    na realidade flmica.

    O que se convencionou chamar cinema clssico um tipo de cinema pautado por

    uma narrativa clara, na maioria das vezes linear, com comeo meio e fim muito bem defini-

    dos. O desenvolvimento dessa linguagem teve como base uma impresso de realidade para se

    galgar um espetculo contnuo, camuflando os vincos e as arestas do discurso cinematogrfi-

    co, pensando-se numa fruio natural da narrativa.

    41

    ! The dream is one of the most persistent metaphors in both classical and modern film theory, and is hence worthy 22of organic assessment Cf. RASCAROLI, Laura. Like a Dream. A Critical History Of The Oneiric Metaphor in Film Theory. Kinema: a journal for filme and audiovisual media. Disponvel em: . Acesso em: jun. 2013. (Traduo minha).

  • O cinema clssico pretende ser o espetculo do real, porm um real construdo

    com a finalidade de produzir a identificao do pblico, deix-lo confortvel com a impresso

    de dominar e compreender todos os mecanismos desse mundo simples e sem muitas ambigui-

    dades. Para isso, sempre se observam as regras de causa e efeito, de verossimilhana e conti-

    nuidade. D-se uma viso privilegiada dos fatos, o melhor ngulo da situao representada.

    Porm o artificialismo dessa linguagem s no notada pelo hbito e pela exposio

    frequente a filmes convencionais, como se ao sonhar no nos dssemos conta do absurdo que

    se passa nossa frente e s ao acordar, em retrospecto, temos noo da estranheza dos ele-

    mentos do mundo onrico nesse caso, uma relao no lcida ou inconsciente com o

    filme/sonho.

    Um discurso comum sobre a percepo do cinema clssico que ele seria como um

    sonho construdo com intuito de manter o carter ilusrio da linguagem, em detrimento do

    discurso e da narrativa aqui, sonho pensado como iluso, artifcio, quimera, em que o es-

    pectador est imerso como em sesso de hipnose.

    Para entender as nuances do discurso cinematogrfico, possvel recorrer aos con-

    ceitos de transparncia e opacidade, trabalhados pelo crtico Ismail Xavier em O discurso ci-

    nematogrfico: a transparncia e a opacidade (2005). Do ponto de vista da linguagem, a

    transparncia entendida como um artifcio para mascarar que h um discurso e um meca-

    nismo na construo da narrativa cinematogrfica. Quanto opacidade, trata-se do momento

    em que algo se sobrepe narrativa, expondo o dispositivo e deixando claro que o que se

    apresenta aos olhos do espectador um filme e h um autor que articula o discurso e a lingua-

    gem.

    Essa opacidade anloga lucidez nos sonhos quando se sabe que um filme/

    sabe-se que um sonho. Mais adiante, analisarei aspectos de filmes de Jean-Luc Godard e

    Luis Buuel, a fim de para explicitar esse descolamento ou lucidez em relao realidade

    flmica/onrica.

    A transparncia da linguagem clssica deixaria o espectador na posio passiva, sem

    instrumentos para refletir e questionar sobre o espetculo sem arestas e transparente que est

    na sua frente.

    O cinema de vanguarda, em suas variadas formas, seria uma resposta para essa in-

    conscincia na experincia do cinema. Nesse cinema, existe um tenso poltica e tambm on-

    42

  • tolgica que busca um rompimento dos limites, uma ciso da iluso para que os raios de al-

    guma verdade reveladora venham tona. E essa ruptura s pode ser feita medida que o es-

    pectador tenha conscincia/lucidez do sonho/cinema.

    Isso j havia ocorrido com o teatro, na primeira metade do sc. XX, com a chamada

    quebra quarta parede, fenmeno esttico que colocava em suspenso a iluso do teatro bur-

    gus realista, a exemplo do teatro pico de Bertold Brecht.

    No cinema de vanguarda, o espectador pode saber que o se passa sua frente um

    filme, podendo notar todos os elementos que querem manipul-lo, alici-lo para determinada

    persuaso poltica, por exemplo.

    A organicidade da metfora cinema-sonho to clara que hoje at nos parece lugar-

    comum considerar o cinema como uma espcie de linguagem anloga experincia onrica.

    Essa metfora no resultado de uma simples comparao h implicaes filosficas que

    remontam a natureza da prpria realidade, ontologia e ideologia que mais frente ser til

    para pensar as implicaes disso nos games, sempre tendo em conta a particularidade dessa

    linguagem.

    No artigo utilizado aqui como base para essa reflexo, Like a Dream: a critical his-

    tory of the oneiric metaphor in film theory, a pesquisadora de teoria do cinema Laura Rasca-

    roli mapeia a relao metafrica do cinema com os sonhos, traando um paralelo terico com

    a psicanlise, cincia surgida na mesma poca do advento do cinema:

    !Sonhos so produzidos pelo inconsciente do sonhador, enquanto o filme no produto do espectador (...) o sonhador , na verdade, um espectador do seu sonho (...) o ato de assistir a um filme aproximado ao estado onrico em que o sonhador est consciente de que um sonho, reafirmando e relem-brando em sua mente de que apenas um sonho . 23!

    Rascaroli cita Pier Paolo Pasolini e suas consideraes sobre sonho e cinema. O so-

    nho seria uma linguagem pr-morfolgica e pr-gramatical, imagtica; para isso, Pasolini cu-

    nhou o termo im-signo, imagens-signos, para definir a linguagem dos sonhos e da memria.

    O sonho predecessor direto do cinema e, por consequncia, seria uma espcie de

    representao anloga do mundo onrico: Todos os sonhos so sries de im-signos que tm

    todas as caractersticas de uma sequncia cinematogrfica: close-ups, planos gerais,

    43! Cf. RASCAROLI, Laura. Op. Cit.23

  • etc. (PASOLINI apud RASCAROLI ). 24

    A aceitao das convenes da linguagem cinematogrfica hoje escamoteia a noo

    de arbitrariedade e nonsense que essa linguagem leva em si para poder existir, desde o seu

    elemento mais bsico: o plano.

    A interrupo de um plano geral para introduo de plano mdio ou um plano prxi-

    mo, os diversos ngulos, efeitos e truques so manipulaes gritantes da realidade, s compa-

    radas quilo que os sonhos fazem transformam o distante em prximo e vice-versa, alm de

    toda sorte de manipulao que tem como objetivo tanto emular o cotidiano quando o oculto

    irrepresentvel.

    Ainda segundo Rascaroli, Sigmund Freud considerava o sonho como uma dramati-

    zao do pensamento em forma de situaes visuais, enquanto Jung, precisando o conceito de

    situaes visuais, considerava que nos sonhos havia situaes dramticas em progresso,

    que poderiam ou no ter resoluo final.

    O cinema j nasceu criticamente sob o signo de duas concepes: o da representao

    esttica e o da representao psicolgica . Ao mesmo tempo em que era considerado como 25

    uma linguagem que emulava a realidade objetiva, representava tambm uma realidade subje-

    tiva: memrias, pensamentos e sonhos. Nem sempre se trata de representaes literais dessas

    situaes, mas se relacionando com a projeo dos desejos do inconsciente do cineasta ou do

    espectador:

    !O que pode ser dito sobre a convergncia do cinema e da psicanlise? Na sua Teoria do Cinema Francesco Caseei identificou duas principais linhas de estudo sobre cinema: primeiramente a anlise que objetiva descobrir o con-tedo latente de um filme, como um sintoma ou um sonho, utilizado como base para analisar o inconsciente do cineasta; segundo, a investigao psico-analtica de certos aspectos do filme como aparato cinemtico, por exemplo, o mecanismo psicolgico que est em jogo no processo de ver . 26!

    Ao emular uma realidade simblica, como fazem os sonhos, o cinema manipula e

    influencia o espectador/sonhador com seu discurso (latente ou patente), ainda que, em ltima

    44

    ! Id. Op. Cit.24

    ! Reporto-me Ontologia da Imagem Fotogrfica, de Andr Bazin, quando ele coloca em oposio a repre25 -sentao puramente esttica, em que a arte tenta iludir mimetizando a realidade como expresso de seu duplo, e a psicolgica, que representa a realidade espiritual e simblica.

    ! RASCAROLI, Laura. Op. Cit.26

  • anlise, o espectador de um filme tenha uma certa autonomia pode, por exemplo, sair da

    sala, enquanto nos sonhos no existe, a princpio (sem sonhos lcidos), formas de evitar a ex-

    posio aos seus contedos.

    Laura Rascaroli cita tambm Baldry e a famosa teoria do aparato. Para Baldry, os

    espectadores so como prisioneiros na caverna de Plato: eles veem somente sombras, que

    so na verdade projetadas por esttuas, o que o mesmo que dizer que no a realidade, mas

    a reproduo da realidade. Projetando as sombras, o cinema cria a mesma sensao ou efeito

    de mais do que o real que se experiencia em sonhos.

    Baudry tambm acredita que as condies tpicas da situao cinemtica (a passivi-

    dade e a imobilidade do espectador, a falta de prova da realidade e a escurido do auditrio)

    so razes porque o aparato cinematogrfico quase cria uma alucinao. Mais do que isso, ele

    acredita que o funcionamento do aparato cinemtico reproduz com fidelidade o aparato ps-

    quico do sono. Os efeitos visuais e sonoros que corroboram a construo desse mundo atrai a

    ateno irresistivelmente atravs dos sentidos, analogamente simulao da realidade dentro

    de um sonho.

    Em um dos artigos clssicos da teoria crtica do cinema, A ontologia da imagem

    fotogrfica, Andr Bazin pondera que o cinema, enquanto arte, retm a vida e para o tempo,

    sendo o substituto mgico representado pelas das pirmides, como artifcio para vencer a

    morte: Criar um universo a imagem do real dotado de um destino temporal autnomo (BA-

    ZIN, 1991, p.18).

    A arte se modifica com a inveno do primeiro sistema mecnico cientfico: a pers-

    pectiva a cmera escura de Da Vinci, que dava ao artista a possibilidade de expressar a iluso

    de um espao. Os objetos podiam agora se situar como em nossa percepo direta, em trs

    dimenses. A quarta dimenso seria a representao do movimento, a expresso dramtica do

    instante possvel no cinema. Para Bazin, o cinema sugeria a vida; a perspectiva do autor est

    longe de ser cientificista Bazin acredita em uma metafsica no cinema. Ao falar da realida-

    de, Bazin fala da realidade ltima alm das formas, algo na representao do movimento de-

    nota o sagrado, assim como a experincia do sonhar para os xams.

    A verdadeira arte, para Bazin, deveria ter um aspecto espiritual, essencial: O verda-

    deiro realismo exprime a significao e concreta o essencial do mundo () o pseudo-realis-

    mo se contenta coma iluso das formas (BAZIN, 1991, p.19). Portanto, a imagem fotorrea-

    45

  • lista no era condio para essa revelao da essncia que buscava o crtico francs.

    Como prova, considere-se o que ele pensa sobre a arte medieval, que no procurava

    copiar as formas de modo perfeito, e ainda assim seria um exemplo dessa arte realista verda-

    deira: violentamente realista e altamente espiritual ao mesmo tempo (BAZIN, 1991, p.20).

    O cinema teria essa capacidade mgica de capturar a eternidade de um instante, em-

    balsamando o tempo. Cinema a mmia da mutao (BAZIN, 1991, p.21).

    O cinema e a fotografia j sati