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Sonhos de Einstein Um físico do MIT e um poeta autor de best-sellers levam a relatividade para o mundo do realismo fantástico. E os dois são a mesma pessoa por Alexandre Versignassi Pouca gente sabe misturar ciência e literatura como o americano Alan Lightman, 56 anos. Não é à toa: “Desde quando me conheço por gente, construo foguetes e escrevo poesia. Sempre me senti dividido entre dois mundos”, disse certa vez. E olha que ele se deu bem nos dois. Tornou-se físico, foi professor da Universidade de Harvard, Estados Unidos, por 12 anos e hoje está no não menos prestigioso MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts). Aos 43 decidiu virar escritor de ficção, e seu primeiro livro tornou-se um best-seller mundial, traduzido para 30 idiomas. O livro é Sonhos de Einstein, uma coleção de contos de realismo fantástico inspirada em dois ídolos de Lightman: o escritor argentino Julio Cortázar, de onde ele bebe para montar o clima insólito de cada história, e, claro, o cientista alemão que empresta o sobrenome ao título. Albert Einstein, no entanto, é só um coadjuvante ali. Quem reina são as idéias dele. Einstein, afinal, mostrou para o mundo que o tempo é maleável. E Lightman abusa, no melhor sentido da palavra, desse conceito. Por exemplo: uma hora o físico leva o leitor para um mundo onde o tempo é circular: “Cada beijo, cada nascimento, cada palavra são precisamente repetidos. E também o serão todos os momentos em que dois amigos deixam de ser amigos, toda promessa não cumprida. Todas as coisas serão repetidas no futuro”, escreve Lightman. Essa idéia, veja bem, não é ficção pura. Depois de Einstein ter aberto caminho para que o tempo fosse entendido como uma dimensão, como uma coisa que tem forma, como você ou uma cadeira, a física teórica passou a trabalhar com a hipótese de que talvez realmente haja dimensões temporais “fechadas”, circulares mesmo, em que o futuro sempre desemboca em um momento anterior ao presente. Poucas coisas fogem tanto à intuição quanto conceitos desse tipo. E Lightman, como poucos, consegue deixar essas abstrações mais do que paupáveis. E não faltam bizarrices. A maioria, deliciosa: em outro conto, chegamos a um lugar onde o futuro é completamente invisível (e não só parcialmente, que nem aqui). Então é impossível fazer planos. E cada dia é como se fosse o último. “Alguns ficam paralisados, inativos. Passam o dia na cama, acordados, mas com medo de se vestirem. Outros pulam da cama pela manhã, despreocupados (...). Vivem para o momento, e cada momento é pleno.” Em mais outro, estamos numa terra de homens que vivem para sempre. E isso é bom, senhor Lightman? Nem sempre: “Com o tempo, alguns chegam à conclusão de que o melhor jeito de viver é morrer”. É isso aí: em Sonhos de Einstein, o físico e o poeta que existem na cabeça do autor se encontram, tomam várias cervejas e falam coisas que um nunca teve coragem de dizer para o outro. Aproveite.

Sonhos de Einstein

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  • Sonhos de Einstein

    Um fsico do MIT e um poeta autor de best-sellers levam a

    relatividade para o mundo do realismo fantstico. E os dois so

    a mesma pessoa

    por Alexandre Versignassi

    Pouca gente sabe misturar cincia e literatura como o americano Alan Lightman, 56 anos. No

    toa: Desde quando me conheo por gente, construo foguetes e escrevo poesia. Sempre me senti dividido entre dois mundos, disse certa vez. E olha que ele se deu bem nos dois. Tornou-se fsico, foi professor da Universidade de Harvard, Estados Unidos, por 12 anos e hoje est no no menos

    prestigioso MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts). Aos 43 decidiu virar escritor de fico,

    e seu primeiro livro tornou-se um best-seller mundial, traduzido para 30 idiomas.

    O livro Sonhos de Einstein, uma coleo de contos de realismo fantstico inspirada em dois dolos

    de Lightman: o escritor argentino Julio Cortzar, de onde ele bebe para montar o clima inslito de

    cada histria, e, claro, o cientista alemo que empresta o sobrenome ao ttulo. Albert Einstein, no

    entanto, s um coadjuvante ali. Quem reina so as idias dele. Einstein, afinal, mostrou para o

    mundo que o tempo malevel. E Lightman abusa, no melhor sentido da palavra, desse conceito.

    Por exemplo: uma hora o fsico leva o leitor para um mundo onde o tempo circular: Cada beijo, cada nascimento, cada palavra so precisamente repetidos. E tambm o sero todos os momentos em

    que dois amigos deixam de ser amigos, toda promessa no cumprida. Todas as coisas sero repetidas

    no futuro, escreve Lightman. Essa idia, veja bem, no fico pura. Depois de Einstein ter aberto caminho para que o tempo fosse entendido como uma dimenso, como uma coisa que tem forma,

    como voc ou uma cadeira, a fsica terica passou a trabalhar com a hiptese de que talvez realmente

    haja dimenses temporais fechadas, circulares mesmo, em que o futuro sempre desemboca em um momento anterior ao presente. Poucas coisas fogem tanto intuio quanto conceitos desse tipo. E

    Lightman, como poucos, consegue deixar essas abstraes mais do que paupveis.

    E no faltam bizarrices. A maioria, deliciosa: em outro conto, chegamos a um lugar onde o futuro

    completamente invisvel (e no s parcialmente, que nem aqui). Ento impossvel fazer planos. E

    cada dia como se fosse o ltimo. Alguns ficam paralisados, inativos. Passam o dia na cama, acordados, mas com medo de se vestirem. Outros pulam da cama pela manh, despreocupados (...).

    Vivem para o momento, e cada momento pleno.

    Em mais outro, estamos numa terra de homens que vivem para sempre. E isso bom, senhor

    Lightman? Nem sempre: Com o tempo, alguns chegam concluso de que o melhor jeito de viver morrer. isso a: em Sonhos de Einstein, o fsico e o poeta que existem na cabea do autor se encontram, tomam vrias cervejas e falam coisas que um nunca teve coragem de dizer para o outro.

    Aproveite.

  • 11 de maio de 1905

    Caminhando pela Marktgasse, v-se uma imagem assombrosa. As cerejas nas bancas de frutas esto

    alinhadas em fileiras, os chapus nas chapelarias esto empilhados impecavelmente, as flores nas

    sacadas arranjadas em perfeita simetria, no h migalhas no cho da padaria, no h leite derramado

    no piso de pedra da despensa. Nada est fora de lugar.

    Quando um grupo alegre deixa um restaurante, as mesas esto mais limpas do que antes, quando um

    vento sopra suavemente na rua, a rua fica mais limpa, a sujeira e a poeira so levadas para a periferia

    da cidade. Quando a mar explode na costa, a costa se reconstri. Quando as folhas caem das

    rvores, as folhas se alinham como uma revoada de pssaros em formao V. Quando as nuvens adquirem forma de rostos, os rostos permanecem. Quando um cano solta fumaa em uma sala, a

    fuligem concentra-se em um dos cantos, deixando o ar limpo. Sacadas pintadas expostas ao vento e

    chuva ficam mais brilhantes com o passar do tempo. O estrondo do trovo faz um vaso quebrado

    restaurar-se, os cacos de uma pea de loua saltarem de volta para a posio exata onde cabem e se

    encaixam.

    A fragrncia de uma carroa de canela aumenta com o tempo, no se dissipa.

    Esses acontecimentos parecem estranhos?

    Neste mundo a passagem do tempo faz aumentar a ordem. Ordem a lei da natureza, a tendncia

    universal, a direo csmica. Se o tempo uma flecha, esta flecha aponta para a ordem.

    O futuro padro, organizao, unio, intensificao; o passado acaso, confuso, desintegrao,

    dissipao.

    Filsofos argumentam que, sem uma tendncia no sentido da ordem, o tempo no teria significado. O

    futuro no poderia ser diferenciado do passado. Seqncias de eventos seriam apenas inmeras cenas

    aleatrias de milhares de romances. A histria seria indefinida, como a bruma que lentamente se

    acumulou em torno dos cumes das rvores durante a noite.

    Em um mundo como este, as pessoas com casas bagunadas ficam deitadas em suas camas

    esperando que as foras da natureza soprem a poeira de seus parapeitos e arrumem os sapatos em

    seus armrios. As pessoas cujos negcios so desorganizados podem sair e fazer um piquenique

    enquanto suas agendas so ordenadas, suas reunies marcadas, suas contas equilibradas. Batons e

    pincis e cartas podem ser jogados dentro das bolsas com a satisfao de que se ajeitaro

    automaticamente. Jardins nunca precisam ser desbastados, ervas daninhas nunca precisam ser

    arrancadas. Escrivaninhas ficam organizadas ao final do dia. Roupas deixadas no cho noite

    encontram-se penduradas em cadeiras na manh seguinte. Meias perdidas reaparecem.

    Se um viajante chega a uma cidade na primavera, v uma outra imagem assombrosa. Pois na

    primavera as pessoas ficam cansadas de tanta ordem em suas vidas. Na primavera, as pessoas viram

    furiosamente suas casas de pernas para o ar. Varrem sujeira para dentro, destroem cadeiras, quebram

    janelas. Na Aabergergasse, ou qualquer outra avenida residencial, ouve-se, na primavera, os sons de

    vidro quebrado, grito, uivos, risadas. Na primavera, as pessoas se encontram sem combinar,

    queimam suas agendas, jogam fora seus relgios, bebem a noite inteira. Este descontrole histrico

    continua at o vero, quando as pessoas recuperam o juzo e voltam ordem.

  • 14 de maio de 1905

    H um lugar em que o tempo fica parado. Pingos de chuva permanecem inertes no ar. Pndulos de

    relgios estacionam no meio do seu ciclo. Ces empinam seus focinhos em uivos silenciosos.

    Pedestres esto congelados em suas ruas poeirentas, suas pernas erguidas como se amarradas por

    cordas. Os aromas de tmaras, mangas, coentro, cominho esto suspensos no ar.

    medida que um viajante se aproxima deste lugar, vindo de qualquer parte, ele anda cada vez mais

    devagar. As batidas do seu corao ficam cada vez mais espaadas, sua respirao arrefece, sua

    temperatura cai, seus pensamentos diminuem, at que ele atinge o centro morto e pra. Pois este o

    centro do tempo. A partir deste lugar, o tempo se distancia em crculos concntricos inerte no centro, lentamente ganhando velocidade proporo que aumenta o dimetro.

    Quem faria uma peregrinao ao centro do tempo? Pais com seus filhos, e amantes.

    E assim, no lugar onde o tempo fica parado, vem-se pais agarrados a seus filhos, em um abrao

    petrificado que nunca se desfar. A linda filhinha de olhos azuis e cabelos loiros nunca parar de

    sorrir o sorriso que est sorrindo agora, nunca perder este brilho rseo de suas bochechas, nunca

    ficar enrugada nem cansada, nunca se ferir, nunca desaprender o que seus pais lhe ensinaram,

    nunca pensar pensamentos que seus pais desconheam, nunca tomar contato com o mal, nunca dir

    a seus pais que no os ama, nunca deixar seu quarto com vista para o mar, nunca deixar de tocar

    seus pais como est tocando agora.

    E, no lugar onde o tempo fica parado vem-se amantes se beijando nas sombras dos prdios, em um

    abrao petrificado que nunca se desfar. O amado nunca tirar os braos de onde esto agora, nunca

    devolver o bracelete de memrias, nunca viajar para longe da pessoa amada, nunca se sacrificar

    expondo-se a perigos, nunca deixar de mostrar seu amor, nunca sentir cime, nunca se apaixonar

    por outra pessoa, nunca perder a paixo que existe neste instante no tempo.

    importante considerar que estas esttuas so iluminadas apenas por uma brandssima luz vermelha,

    pois a luz fica reduzida a quase nada no centro do tempo, suas vibraes reduzidas a ecos em vastos

    desfiladeiros, sua intensidade diminuda ao brilho tnue dos vaga-lumes.

    Aqueles que no esto exatamente no centro morto de fato se movem, mas no ritmo das geleiras.

    Uma escovadela no cabelo pode levar um ano, um beijo pode levar mil anos. Enquanto um sorriso

    retribudo, estaes passam pelo mundo exterior. Enquanto uma criana abraada, pontes so

    construdas. Enquanto uma pessoa diz adeus, cidades desmoronam e so esquecidas.

    E aqueles que regressam ao mundo exterior... Crianas crescem rapidamente, esquecem o abrao de

    sculos de seus pais, que para elas durou no mais que alguns segundos. Crianas tornam-se adultos,

    vivem separados dos pais, vivem em suas prprias casas, desenvolvem suas prprias maneiras de

    fazer as coisas, sentem dor, envelhecem. Crianas maldizem os pais por tentarem segur-las para

    sempre, maldizem o tempo pelas rugas em suas prprias peles e vozes speras. Essas crianas agora

    envelhecidas tambm querem parar o tempo, mas em outro momento. Querem congelar seus

    prprios filhos no centro do tempo.

    Amantes que regressam descobrem que os amigos partiram muito tempo antes. Afinal, suas vidas se

    passaram. Eles transitam em um mundo que no reconhecem. Amantes que regressam ainda se

    abraam nas sombras dos prdios, mas agora seus abraos parecem vazios e solitrios. Logo

    esquecem as promessas feitas para durar sculos, que para eles duraram apenas segundos. Sentem

  • cime mesmo entre estranhos, falam coisas terrveis entre si, perdem a paixo, distanciam-se,

    envelhecem e se isolam em um mundo que no conhecem.

    Alguns dizem que no se deve chegar perto do centro do tempo. A vida um barco de tristeza, mas

    nobre viver a vida, e sem tempo no h vida. Outros discordam. Prefeririam viver uma eternidade de

    felicidade, mesmo que essa eternidade fosse fixa e petrificada, como uma borboleta instalada em

    uma redoma.

    Nada do que foi ser

    Lightman brinca aqui com a mais implacvel das leis do Universo: a tendncia desordem, ao caos

    (ou entropia, como preferem os iniciados). Essa tendncia a nica coisa que deixa o passado

    diferente do futuro. Sim: imagine um filme cujo nico ator seja uma bolinha que rola da esquerda

    para a direita. Se voc passar esse filme de trs para a frente do futuro para o passado , a direo da bolinha vai se inverter, certo? Mas algum que chegar na sala nesse exato momento no tem como

    dizer se o filme est passando na ordem certa ou de trs para a frente. J se o filme for o de um ovo

    quebrando no tem erro: se voc resolver pass-lo de trs para a frente e algum chegar na sala, esse

    algum vai ver pedaos de casca e gema se juntando para formar um ovo. Vai ver o caos gerar

    ordem, e vai entender na hora que a fita est passando de trs para a frente, do futuro para o passado.

    Ou seja, a seta do tempo aponta para o aumento da desordem, da baguna. No tem outro jeito.

    Buraco negro na praa

    Existe, sim, uma pracinha onde o tempo congela no centro. Bilhes e bilhes delas, alis: so os

    buracos negros. Einstein mostrou que quanto maior for a gravidade mais lentamente o tempo vai

    passar. E nada tem mais gravidade do que um buraco negro. Quanto mais perto voc chegasse de um,

    mais devagar envelheceria. Os abraos que duram sculos de Lightman s no so possveis porque no d para ficar prximo o suficiente da gravidade monstro de um buraco negro. A fora que

    puxa seus ps, por exemplo, seria milhes de vezes maior do que a que atrai sua canela. Voc

    acabaria todo retalhado. Mas uma coisa fato: a alegoria do autor explica precisamente as distores

    do tempo nos arredores de um buraco negro. Ah, e se algum chegasse no centro do buraco negro, ou

    no centro do tempo como diz o autor? Todo tempo do lado de fora da praa se esgotaria. A vida acabaria, j que as pessoas que l chegassem no teriam para onde voltar. O sorriso de quem

    chegasse l dentro seria o ltimo sorriso do Universo.

    Vale a pena ler

    Sonhos de Einsten, Alan Lightman, Companhia das Letras, 2004, R$ 27