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O GUERRILHEIRO DAS MONTANHAS Beyond ransom Sophie Weston A consciência de Roberta foi voltando aos poucos, fazendo-a compreender sua terrível situação: havia sido sequestrada naquele pequeno país da América Central! De repente, ouviu vozes a logo depois a porta se abriu. Ao reconhecer seu raptor, Roberta começou a tremer. Tratava-se do homem misterioso com quem havia dançado numa festa ali, em Oaxacam. Agora podia conhecer sua verdadeira identidade: aquele era Rafael Madariaga, o líder dos revolucionários que queriam derrubar o governo militar de seu país!

Sophie weston o guerrilheiro das montanhas

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O GUERRILHEIRO DAS MONTANHASBeyond ransomSophie Weston

A consciência de Roberta foi voltando aos poucos, fazendo-a compreender sua terrível situação: havia sido sequestrada naquele pequeno país da América Central! De repente, ouviu vozes a logo depois a porta se abriu. Ao reconhecer seu raptor, Roberta começou a tremer. Tratava-se do homem misterioso com quem havia dançado numa festa ali, em Oaxacam. Agora podia conhecer sua verdadeira identidade: aquele era Rafael Madariaga, o líder dos revolucionários que queriam derrubar o governo militar de seu país!

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Copyright: Sophie WestonTítulo original: Beyond Ransom

Publicado originalmente em 1986 pela Mills & Boon Ltd., Londres, Inglaterra

Tradução: Fernando Simão Vugman

Copyright para a língua portuguesa: 1987EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.

Av. Brigadeiro Faria Lima, 2000 — 3.º andarCEP 01452 — São Paulo — SP — Brasil

Esta obra foi composta na Artestilo Ltda.e impressa na Artes Gráficas Guaru S/A.

Foto da capa: Keystone

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CAPÍTULO I

Incomodada, Roberta Lennox observou que o volume da música tinha aumentado ainda mais depois de encerrado o espetáculo de dança na boate. Com discrição, consultou o relógio. Nem meia-noite ainda!

Percebendo sua inquietação, Larry Davidson se aproximou.

— Quer ir embora? — perguntou em voz baixa.

Por um instante Roberta sentiu-se tentada a aceitar a sugestão. Havia tido um dia terrível. Passara a manhã toda negociando, usando cada gota de sua apreciável capacidade de argumentação para chegar ao fim do dia com a sensação de que se esgotara em vão. Estava cansada, com uma dor de cabeça começando a incomodá-la e sentindo a alegria artificial da mais cara boate da cidade exercer um efeito depressivo sobre seu estado de espírito.

Mas isso fazia parte do seu trabalho, e, até o presidente de Oaxacan[1] se definir claramente sobre o contrato com a Technica Associates, não sairia dali. Esboçou um sorriso a Larry.

— Não, eu agüento — disse. — Não deixa de ser uma experiência interessante.

Ele deu de ombros.

— Se você diz...

Larry tinha um ar entediado. Ao contrário de Roberta, possuía vasta experiência na América Central, e por isso fora designado para ser seu assistente naquela missão. Falava com fluência o castelhano, embora mesmo Roberta pudesse detectar um leve sotaque de Milwaukee. E ele é quem havia descoberto que aquele era o lugar onde representantes do

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Ministério das Finanças esperavam ser levados para resolver negócios com estrangeiros.

“Eu devia estar grata a ele”, Roberta pensou, acomodando-se na cadeira forrada de veludo. “Pelo menos nossos convidados parecem estar se divertindo.”

[1] Nota do editor: Oaxacan é um país fictício. Todos os personagens são imaginários.

Lançavam-se com volúpia sobre as comidas finas e consumiam sem parar o uísque importado, fartamente distribuído por belas garotas com sorrisos bem treinados e roupas provocantes. No começo, os representantes do ministério tinham ficado constrangidos com a presença de Roberta. Mas, diante de sua postura imperturbável e sob o efeito dos primeiros copos de bebida, já se mostravam mais relaxados. Agora conversavam animadamente com as garotas como se a anfitriã fosse, afinal, um homem, como haviam imaginado a princípio.

Larry também julgara que Roberta criaria problemas num programa como aquele, tipicamente masculino, e não havia escondido sua opinião. Ela, no entanto, não vacilara. Além de autorizar uma quantia substancial para despesas de entretenimento, fizera questão de ser ela mesma a anfitriã. O assistente ainda tinha argumentado, dizendo que iria se aborrecer, e agora Roberta admitia que o rapaz estava com a razão.

No entanto, não era a presença das garçonetes em seus trajes diminutos que a constrangia. Chegava até a nutrir um certo sentimento de camaradagem por elas. A qualquer momento, teria também de aceitar o convite de algum dos seus “alegres” convidados para dançar.

Foi quando se dirigia para a pista de dança com o porta-voz do ministério que teve a nítida sensação de estar sendo observada. Olhou para trás num movimento involuntário.

E então localizou o homem. Estava de pé junto da cortina de veludo que encobria a entrada. Vestia um elegante smoking, como a maioria dos homens do salão, e acabava de dar um finíssimo casaco para a

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recepcionista guardar. Tinha interrompido a seqüência de movimentos para tirar as luvas, para estudá-la com olhos mais atentos.

Espantada, Roberta estacou. Percebeu que ele a examinava de alto a baixo, parecendo revelar um certo desprezo, mas também algum outro sentimento... O que seria? Sim, seu olhar comparava-se ao de um velho professor universitário que tivera, ao observar um inseto ao microscópio; ao mesmo tempo que sentia fascínio tinha repugnância. Isso. Aquele homem a olhava admirado, embora a contragosto.

Esquecida dos que a cercavam, ela fitou o desconhecido. Ele era alto, uns dez centímetros mais alto do que seus outros três acompanhantes; possuía o corpo musculoso e atlético, e seu rosto era sem dúvida seu ponto mais marcante. Na meia-luz da boate, Roberta não podia distinguir os detalhes, mas estava claro o bastante para que pudesse notar sua tez morena, o nariz fino e reto, o queixo quadrado e decidido e a boca firme. Os olhos, embora não lhe fosse possível distinguir a cor, eram argutos como os de um falcão.

O acompanhante de Roberta percebeu sua reação e seguiu- lhe a direção do olhar.

— Ah, Don Rafael está aqui — ele comentou num tom estranho. — Você o conhece, Señorita?

— Não — ela disse devagar, imaginando se dizia a verdade.

Não conseguia lembrar-se dele, mas ele a olhava com tal intensidade que talvez já se conhecessem. Mas aquele não era o tipo de homem que se conhece e se esquece depois.

— Señor Rafael Madariaga é advogado... um advogado muito rico e bem-sucedido. Presta muitos serviços para empresas internacionais. Tem certeza de que não o conhece?

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Ela balançou a cabeça.

— Nem mesmo ouvi falar em seu nome.

— Não? — o outro perguntou, entre surpreso e aliviado. — Ah, bem, existem outros advogados, afinal, e Don Rafael possui... — ele hesitou — interesses mais audaciosos hoje em dia. Pelo menos é o que dizem.

Ela deixou que seu acompanhante a conduzisse para o centro da pista de dança e não pôde mais ver o homem que de forma tão estranha e intensa havia despertado sua atenção. Por mais absurdo que fosse, lamentou perder o estranho de vista...

Devia ser resultado da música tão alta, disse a si mesma. Ou da semi-obscuridade do ambiente. As duas coisas combinadas exerciam um efeito desorientador. Era a única justificativa para a sua exagerada perturbação.

Enquanto isso, o porta-voz se esforçava ao máximo para manter uma conversa educada.

— Esta é sua primeira visita a Alto Rio, Señorita?

— Sim.

— Espero que durante sua estada aqui tenha tido a chance de conhecer um pouco do meu país.

— Muito pouco, receio. Larry e eu realmente não tivemos tempo para fazer turismo.

— De fato, o turismo é muito restrito em Oaxacan. Para nós, essa ainda é uma atividade pouco explorada. E há o problema da altitude; como a região é montanhosa, muitos dos estrangeiros que vêm nos visitar passam muito mal nos primeiros dias.

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— Foi o que ouvi falar. Me considero uma pessoa de sorte; tenho me sentido muito bem.

O homem se mostrou surpreso.

— Ah, aqui em Rio Alto a altitude é baixa, Señorita. Mal chega aos três mil metros. É no interior que atinge até seis mil metros. Claro que essas regiões são as mais interessantes, onde se encontram ruínas e artesanato da era pré-colonial. — Fez um muxoxo. — Pena que turistas sintam-se mal e não possam desfrutar muito desses passeios.

— Realmente — Roberta foi respondendo sem prestar muita atenção quando, após um rodopio, voltou a ver o estranho que lhe havia causado tão profunda impressão. Ele continuava junto da entrada, a fitá-la.

O garçom havia se afastado, seguido dos três acompanhantes de Don Rafael, de modo que ele estava agora sozinho, avaliando-a com ar especulativo. Ela não gostou de sua expressão e levantou o queixo, desafiadora.

Os olhos de ambos se encontraram outra vez, e por um breve instante ele pareceu despertar de um devaneio, reagindo com embaraço. Mas logo se recobrou, e enquanto ela se virava ao som da música estridente, ele seguiu seus companheiros, sem nunca perdê-la de vista.

Roberta sentiu um calafrio. Engoliu em seco, surpresa com a própria reação diante de alguém que via pela primeira vez. E então, como que para exibir coragem, sorriu em resposta ao meio-sorriso que ele guardava nos lábios. Era um desafio; procurava assim forçá-lo a disfarçar, fingindo que não a estivera observando aquele tempo todo.

Mas se ela esperava desconcertá-lo com sua atitude franca, desapontou-se. Por um instante Don Rafael ergueu as finas sobrancelhas, em espanto, mas em seguida reassumiu uma expressão de autoconfiança.

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Sem perder a pose, curvou-se de modo discreto e elegante, à guisa de cumprimento.

Ela corou, e ele sorriu com malícia, sugerindo uma perturbadora intimidade. Em seguida virou-se para ir se juntar a seus amigos.

O porta-voz do ministério não havia deixado de perceber a discreta troca de olhares, embora não notasse o profundo efeito causado em sua anfitriã.

— Parece que Don Rafael a conhece, Señorita — comentou sem jeito. — Ou, pelo menos, espera conhecer.

Roberta recuperou o autocontrole com esforço.

— Bobagem! Deve ter me confundido com alguma outra pessoa. Está tão pouco iluminado aqui que isso não deve ser difícil de acontecer. — Ela retomou decidida o assunto do artesanato e das ruínas pré-coloniais de Oaxacan.

À mesa, Larry discutia futebol americano com outro convidado, o qual não se esforçava para disfarçar seu tédio. Por cima do ombro de Larry, lançava olhares melosos para uma garota vestida no que parecia ser um maiô de lamê e que vendia cigarros e balas. Larry, que não fumava, não tinha reparado nem na moça nem na falta de atenção de seu interlocutor.

Roberta estava se sentando, de volta à mesa, quando ouviu o porta-voz dizer no seu castelhano carregado, típico daquela região:

— Madariaga está aqui. Procurando por alguém, eu diria.

O outro funcionário do ministério se mostrou alarmado.

— Quem? Não nós?

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Roberta baixou os olhos para ocultar seu interesse. Tinha achado uma boa tática não revelar aos seus clientes em potencial o seu domínio do castelhano e incumbira Larry da maior parte das conversas nessa língua. Isso deixava-os mais à vontade para falarem entre si, seguros de que ela não compreenderia mais do que algumas palavras soltas.

Larry logo notou a conversa meio sussurrada entre os dois.

— Você viu algum conhecido? — perguntou ao homem a seu lado.

— Oh, em Alto Rio é impossível não se encontrar algum conhecido — o porta-voz apressou-se a responder, em socorro ao colega. — Não é como em Nova York, onde todos parecem estranhos. Aqui se vê pessoas conhecidas em cada esquina. Ali, por exemplo... — e começou a apontar celebridades, numa evidente tentativa de mostrar despreocupação.

Roberta e seu assistente ouviram com atenção, e ela ia gravando na mente os vários nomes que ia ouvindo. Afinal, se aquela missão comercial fracassasse, nada indicava que no futuro não se pudesse voltar a Oaxacan com novos projetos para outros clientes. Seria útil conhecer pessoas de quem deveria se aproximar.

Mesmo assim, ela teve a nítida impressão de que seus convidados falavam ao acaso, como se procurassem desviá-los do assunto que havia originado a conversa. O nome de Madariaga não foi mais mencionado.

Mas o misterioso personagem ainda estava na boate, junto a uma mesa não muito distante. Como Roberta pôde verificar, atrás da mesa se erguia uma graciosa palmeira, próxima do palco erguido para a orquestra. O homem se fazia acompanhar de dois outros e de uma mulher de estonteante beleza, mas que exibia uma expressão do mais puro tédio. A loira usava um vestido justo, de seda reluzente, e tanto ela quanto o vestido pareciam ter vindo direto de Paris.

Apenas um dos homens estava falando, e falava sem parar,

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gesticulando com exagero como que para enfatizar suas idéias. Madariaga permanecia impassível. Roberta observou-lhe o perfil e a expressão arrogante e considerou que, se estivesse no lugar do tagarela, já teria se intimidado com o silêncio. O terceiro homem fumava nervosamente, acendendo um cigarro após o outro. De vez em quando fazia algum comentário curto, no que não era ouvido por ninguém. Seu olhar vagava de Madariaga ao homem que não cessava de falar.

As luzes escureceram ainda mais. O disc jockey desligou a aparelhagem e abandonou sua cabina sob fracos aplausos. A pequena banda retomou seu lugar no palco e começou a tocar um samba, surpreendentemente bem.

— Ah! — os funcionários do ministério se endireitaram em suas cadeiras, em franca expectativa. O mais jovem sussurrou entre os dentes:

— É por isso que Madariaga está aqui!

— Florita! — o outro disse, incrédulo. — Você pode estar certo, mas...

Um foco de luz verde foi lançado no pequeno palco, enquanto um cenário era montado atrás. Na escuridão, um murmúrio de expectativa percorreu as mesas.

— O que está acontecendo? — Roberta quis saber.

Foi o funcionário mais velho quem respondeu:

— Florita vai dançar. Ela é muito famosa. Às vezes dança aqui, quando está no país. Vive viajando pelo mundo — deu de ombros. — É muito temperamental, por isso nunca anunciam o seu espetáculo com antecedência, para o caso de ela resolver não aparecer — seu tom se tornou cínico. — É um raro privilégio vê-la dançar. Se o Señor Madariaga

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não estivesse aqui, duvido muito que teríamos essa honra.

Mas uma pausa da banda o fez calar-se, pois logo a platéia explodiu em aplausos, com a entrada em cena da famosa bailarina.

A primeira impressão de Roberta foi de que Florita era muito bonita, com um corpo esbelto e bem esculpido, a pele morena de sol e os cabelos castanhos com brilhos dourados sob a luz dos refletores. A segunda impressão foi que, apesar de dançar com movimentos graciosos e perfeitos, parecia preocupada com algo.

Larry inclinou-se para a frente:

— Ela não é fantástica? — perguntou, deixando transparecer um entusiasmo quase pueril que contrastava com a imagem de um maduro homem de negócios.

— Bonita — Roberta concordou, enquanto a bailarina se curvava em agradecimento e se preparava para um novo número. Cada vez mais intrigada, ela reparou que Florita lançava um olhar ansioso para a mesa de Don Rafael. Mas talvez fosse só uma impressão. De qualquer modo, pressentia algo estranho no ar envolvendo aquele homem. Algo que, de modo inexplicável, achava ameaçar a ela e a Larry.

Florita abandonou o palco e pôs-se a executar um número passeando entre as mesas. Roberta tratou de concentrar-se no espetáculo, procurando tranqüilizar-se com o pensamento de que na manhã seguinte estaria num avião, de volta a Nova York, provavelmente tendo falhado nas negociações com o presidente de Oaxacan, em nome da Technica Associates.

Aparentemente dançando ao acaso, Florita acabou se aproximando da mesa de Madariaga, seguida pelo facho de luz. Ele também foi atingido pelo foco luminoso e mostrou-se aborrecido. De repente a dançarina começou a rodear a vendedora de cigarros e, com um

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movimento inesperado, alcançou um charuto, fazendo a garota rir, no que foi seguida pela platéia. Com graça e sensualidade, desembrulhou o charuto e passou pelo nariz de alguns homens sentados por perto, que fingiram aspirar fundo, apreciando o aroma. Em seguida, com as unhas, cortou uma das pontas, acompanhada pelo som agora discreto da melodia que os músicos executavam. Nesse momento um braço foi estendido com um isqueiro aceso. Florita acendeu o charuto com longas e luxuriantes baforadas. Avançou para o cavalheiro que lhe oferecera o isqueiro; agora o refletor o iluminava em cheio: Don Rafael Madariaga. Os dois se encararam. Roberta teve a sensação de que uma mensagem muda havia sido trocada entre ambos, mas não deu continuidade ao pensamento, pois a dança prosseguiu, com a bailarina oferecendo o charuto a ele, que tragou fundo e soltou uma baforada contra seu rosto.

Florita, porém, não pareceu nem um pouco ofendida. Ao contrário, fez uma reverência indicando submissão e afastou-se de costas, com passos curtos e ágeis. Roberta podia jurar que a moça zombava dele, mas não saberia dizer por quê.

A música se elevou mais uma vez, e Florita executou mais alguns movimentos perto do palco. Então, de repente, Roberta percebeu que ela vinha na direção de sua mesa. Por quê, se perguntava, ela sentia crescer dentro do peito aquela sensação de desastre iminente? Acostumada a seguir seus instintos, seu impulso foi de levantar-se e sair dali no mesmo instante. Mas isso não seria possível naquele momento. Olhou em volta, e os três homens que a acompanhavam pareciam completamente absortos. Assim, tratou de relaxar e sorrir.

Florita se aproximou e, sempre dançando, fez com que Larry se levantasse. A seguir, saltou para a cadeira que ele ocupava e, com outro belo salto, para cima da mesa. Por alguns minutos executou uma série de passos rápidos e leves entre copos e garrafas, sem tocá-los. Então parou, fitando Larry sem sorrir. Era, naquela pose, uma fonte de sensualidade.

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Com um gesto bem vagaroso, foi erguendo a saia, revelando milímetro a milímetro sua bem torneada perna. Quando já descobria metade da coxa, ouviu-se um estampido de revólver de brinquedo, e então as luzes se apagaram.

Um riso de surpresa percorreu a platéia, seguido de aplausos. Roberta, porém, prendeu o fôlego, temendo de modo infantil que Larry tivesse desaparecido na escuridão.

Mas, quando as luzes voltaram, ele continuava ali, sorrindo como um garoto, enquanto Florita, já no chão e sem o foco de luz, parecia muito menor do que segundos antes. Ela se curvou em agradecimento aos aplausos, mas logo sentou-se numa cadeira junto da de Larry, enquanto a orquestra começava a tocar música para dançar.

— Espero que não se importe — disse para Larry, desculpando-se num tom agradável e bem nova-iorquino. — Era um número novo e eu precisava testá-lo com alguém que não tentasse me agarrar.

Roberta ficou curiosa:

— É a primeira vez que faz esse número?

A outra assentiu.

— Sim, toda a “dança espanhola” é novidade — respondeu com ironia.

— Você não gosta? — Larry perguntou.

— O quê? Criar suspense e desaparecer no escuro, com um tiro de pólvora seca? Grande coisa. Sou uma dançarina, não uma maldita ilusionista. — Levantou-se e avaliou-o com o olhar. — Fique por aí que eu voltarei para mostrar que tipo de dançarina eu sou... quando tenho um parceiro.

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Sem mais palavras, deu meia-volta e avançou entre as mesas, alheia aos cumprimentos vindos de todos os lados. Os dois funcionários do ministério mal disfarçavam a inveja.

— Ora, esse é um convite que não se pode recusar — o mais jovem disse cobiçoso. — Nunca soube que ela tenha dançado com um freguês antes.

— Talvez ela tenha discutido com Madariaga e essa seja sua maneira de puni-lo — o mais velho ponderou com cinismo.

Mas, sentado em sua mesa, Madariaga ainda fumava seu charuto com ar impassível. Tinha olhado para eles uma única vez, quando Florita se afastou, tornando a ficar absorto nos próprios pensamentos desde então. Sua atitude, ao menos, tranqüilizava Roberta quanto à possibilidade de ter seu assistente devorado por um latino ciumento enfurecido. Procurando se acalmar, tratou de prestar atenção no que acontecia em sua própria mesa.

E foi quando se achava entretida pela conversa de seus acompanhantes que uma voz macia quase fez seu coração saltar pela boca.

— Señorita.

Ela se virou e percebeu Don Rafael em pessoa, muito tranqüilo e elegante, oferecendo-lhe a mão de modo imperativo.

— Gostaria de dançar? — Olhou para Larry. — Com a sua permissão, é claro, Señor?

Antes que ela pudesse externar a recusa ditada por todos os seus instintos, Larry apressava-se em consentir sorrindo. Ela se levantou furiosa. Não era uma feminista, mas a presunção dos modos de Don

Rafael e a “permissão” dada tão facilmente por seu assistente fizeram

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seu sangue ferver. Por um breve segundo ela o encarou disposta a dizer que não dançava e que não a amolasse.

Mas então lembrou-se: estava ali a trabalho, e aqueles eram os seus clientes, que pertenciam a uma sociedade com seus próprios hábitos e regras. Ela, como uma estrangeira, deveria ser capaz de responder com civilidade. Assim, aceitou a mão estendida de Madariaga e levantou-se, deixando para o dia seguinte, em Miami, para explicar a Larry que tipo de assistência esperava dele em Alto Rio.

A música era romântica e suave, e Madariaga revelou-se um bom dançarino, conduzindo-a com elegância e sem tentar forcar um contato mais íntimo entre seus corpos. Mesmo assim, a impressão que provocava em Roberta era intensa; ao mesmo tempo uma estranha atração... e um medo quase incontrolável.

Para disfarçar as contraditórias emoções que a dominavam, ela disse com frieza:

— É hábito seu convidar mulheres desconhecidas para dançar, senor Madariaga?

— Apenas quando me intrigam — respondeu imperturbável.

Ela percebeu que ele zombava, que pensava seduzi-la com seu jeito insinuante, da mesma maneira que Florita tinha feito com Larry. Mordeu os lábios de raiva.

— Eu a ofendi? — ele perguntou numa voz suave e rouca.

Roberta, reagindo de forma irracional, estremeceu. Ele notou.

Apertou-a de leve e depois relaxou:

— Eu a ofendi? — insistiu com certa apreensão.

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— Ainda não — ela respondeu, erguendo a cabeça para encará-lo.

Ele arqueou as sobrancelhas, surpreso.

— Ainda não? Então espera que eu o faça?

Ela sorriu.

— Acho muito provável — disse com falsa doçura. Com satisfação viu que afinal o havia desconcertado.

— Mas por quê? Porque eu a convidei para dançar?

— Porque você perguntou ao meu acompanhante se podia dançar comigo — ela o corrigiu.

Madariaga deu de ombros.

— Pode não acreditar, mas no meu país seria um insulto ao seu acompanhante se eu tivesse agido de outra forma. É uma questão de cortesia, apenas — animou-se. — Mas é claro que cortesia deve ser considerada inaceitável num país de mulheres feministas como o seu, não é, Señorita? E essa é toda a razão para sentir-se ofendida por mim?

— Não — ela retrucou com calma. — Não gosto de homens que sopram a fumaça de seus charutos no rosto das mulheres.

Seguiu-se uma pausa. Então ele falou devagar:

— Acha que eu fui rude com Florita?

— Senor Madariaga, não é da minha conta como se comporta com outras pessoas. Exceto — acrescentou — quando é uma indicação de como pode se portar comigo.

Ele a inquiriu com seus olhos de um castanho tão escuro que mal se viam as pupilas.

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— Não gostaria que eu a tratasse como tratei, Florita? — zombou.

Roberta enrubesceu de raiva.

— Para ser frança, senor Madariaga, eu preferiria que não me tratasse de jeito nenhum — disse com rispidez.

Ele deu uma risada suave.

— Mas isso é pedir o impossível, Señorita, já que é tão bonita que nenhum homem poderia resistir.

Diante de tal ousadia e poder de sedução, ela riu com certo descontrole. Então ele a apertou junto a si, dessa vez não relaxando a pressão.

— Por que você ri? — disse em tom de reprovação, mas ainda conservando uma nota divertida. — Acredita que eu seja o tipo de homem que pode ver a beleza e se manter indiferente?

— Não — ela retrucou com jovialidade. — Acho que é o tipo de homem que não resiste à oportunidade de induzir as pessoas a se fazerem de bobas.

— Señorita, está sendo injusta — ele murmurou. — Acredita que tentei lisonjeá-la?

— Acredito que está tentando me pôr nas nuvens — Roberta disse com bom humor.

Ele suspirou.

— Então, é porque a Señorita de fato não sabe a beleza que possui. — E com isso levou-lhe a mão até os lábios, aplicando-lhe meia dúzia de pequenos beijos, sem deixar de fitá-la.

Foi a vez dela suspirar com infinita paciência.

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— Señor Madariaga, eu me conheço muito bem. Conheço cada milímetro.

— Eu não acredito. — Balançou a cabeça. — Fala de modo tão afiado em milímetros e em ser feita de boba... está tudo errado. Que posso dizer quando se imagina uma mulher de sonhos ... — enquanto falava, sua mão corria as costas de Roberta numa carícia sensual — e de repente despertamos com ela nos braços?

Ela se afastou um pouco e olhou direto em seus olhos.

— Não sei se estou habituada a cumprimentos tão lisonjeiros. Depois de dois minutos começo a achar difícil suportar.

Dançaram por algum tempo em silêncio. Então ele tornou a falar:

— Eu desejaria que não fosse tão inteligente, Señorita. Permita-me dizer que é um tanto desanimador mergulhar em um par de profundos e misteriosos olhos azuis para apenas descobrir que estou sendo avaliado.

Ela conteve um sorriso.

— Sinto muito — disse educada. — Creio que somos apenas incompatíveis. — Afastou-se ainda mais dele e lançou um olhar para sua mesa. — Portanto, quem sabe se nos juntássemos ao meu acompanhante?

Don Rafael Madariaga franziu o cenho, intrigado, mas logo recuperava o ar divertido, dizendo numa voz rouca e baixa:

— Não pode, com apenas uma dança, dizer se somos incompatíveis ou não, minha pequena. E eu, que imagino possuir grande experiência nesses assuntos, acredito que vamos acabar descobrindo uma grande afinidade.

Roberta não respondeu de imediato. Estava perturbada, tinha de admitir. Algo lhe dizia que aquele homem sedutor estava jogando algum obscuro jogo com ela. Ainda não tinha perdido o controle de si mesma,

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mas sentia uma sutil atração a ameaçar sua capacidade de resistir.

Ele prosseguiu:

— Você parece tão distante e, ainda assim, tão desejável; a inalcançável dama no pedestal.

Ela o encarou, confusa.

— Penso que você mal percebe o seu poder — ele disse.

Roberta engoliu em seco, lutando para romper o encanto que ele exercia.

— Señor Madariaga, por acaso está me dando uma cantada? — perguntou direta.

Ele se mostrou tão surpreso que quase parou de dançar. Mas logo se recompôs:

— Não, Señorita — disse com calma e bom humor, sem se mostrar nem um pouco ofendido. — Quero crer que se eu desejasse fazer amor com você — enfatizou as palavras como se a corrigisse — você saberia muito bem. Isso apesar do meu mau inglês.

Seu inglês era perfeito, ela pensou, como ele próprio devia saber. Roberta recusou-se a se submeter.

— Também acho — retrucou com um brilho frio no olhar.

Ele sorriu.

— Você saberá. Eu prometo — disse com suavidade. E parecia estar mesmo falando sério.

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CAPÍTULO II

Ele a estava conduzindo de volta à mesa quando as luzes se apagaram e a boate mergulhou na escuridão. De algum ponto ouviu-se o grito de uma mulher, e Roberta sentiu-o apertar-lhe o braço.

— Não se preocupe — soou a voz grave e calma. — É só uma queda de energia elétrica; acontece muito aqui em Alto Rio. De modo geral são programadas, para que as pessoas estejam preparadas, mas às vezes — havia uma nota bem-humorada em sua voz — as máquinas tomam suas próprias decisões. Por isso a gerência prepara uma série de alternativas para a iluminação... e aí vêm eles.

Roberta viu os garçons se apressando de um lado para outro com bandejas repletas de velas acesas. Os fregueses aceitavam uma vela em cada mesa com a tranqüilidade de quem já fazia daquele ritual um hábito.

— Muito eficiente — ela comentou, retomando seus passos. A seu lado, Madariaga deu uma risada abafada, fazendo-a virar-se com uma expressão inquiridora.

— Eficiência — ele murmurou. — Que tristemente típico! Você não acha a luz trêmula das velas romântico, acha eficiente.

Sentindo-se outra vez criticada, suspirou.

— Você é romântico, Señor?

— Não, eu não me descreveria como um romântico — respondeu. — Embora, comparado a você, eu provavelmente seja.

— Estou certa que sim — ela concordou, sentando-se e despedindo-o com um sorriso educado. — Obrigada pela dança.

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— O prazer, Señorita, foi meu — assegurou com gravidade. — E espero ter outra oportunidade, mais tarde, quando a luz tiver voltado. — Acenou para todos com elegância e retornou à sua própria mesa.

Inclinando-se para servir a Roberta mais vinho, Larry cochichou:

— Não sei quem é esse sujeito, mas os rapazes aqui não o apreciam.

Roberta sorriu, bebericando o vinho e evitando olhar para seu assistente. Este, por sua vez, fingiu olhar ao acaso para o salão em penumbra, mas continuou falando num murmúrio:

— Começaram a falar em contar ao ministro, talvez esta noite mesmo. Acho que Madariaga os amedronta. E com certeza não acreditaram que ele estava dançando com você apenas porque se sentiu atraído.

Ela absorveu aquela informação. Também não havia se iludido, mas era interessante constatar que outras pessoas se mostravam tão alarmadas quanto ela própria. Então, o que era ele, além de um advogado? Quem sabe não pertencia a uma daquelas confrarias internacionais com ação dirigida a vários países do mundo? Talvez a julgasse portadora de alguma informação valiosa.

Roberta comprimiu os lábios com preocupação. Sim, é claro que possuía informações importantes, mas não pretendia revelar nada. Não se a Technica Associates pretendesse fechar negócios na América Central outra vez. E, acima de tudo, não se ela pretendesse conservar sua reputação e também seu emprego, que era a única coisa significativa que lhe havia restado desde que Hugh Hamilton a havia deixado para se casar com outra. Então, tomou uma decisão:

— Olhe, eu estou cansada — disse a seus convidados com seu sorriso mais charmoso. — Acho que a altitude me afetou, afinal. Não ficariam aborrecidos se tivessem de passar o resto sem mim, não é? —

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perguntou com uma ponta de ironia.

Os representantes do ministério sorriram; educadamente lamentosos, mas sem dúvida, aliviados. A presença dela ali os inibia, impedindo que se divertissem à vontade à custa da “grande empresa norte-americana”. Agora, seus semblantes indicavam que estavam livres para aproveitar de verdade.

— Eu pago a conta do que foi consumido até agora — ela disse a Larry. — Você cuida do resto. Eu usarei o carro, se não houver problemas para você.

O presidente de Oaxacan, antes de compreender que a Technica Associates não ia facilitar-lhe a abertura de uma conta secreta num banco suíço, tinha posto uma limusine com chofer à disposição da Señorita

Roberta Lennox e seu assistente.

— Tudo bem, eu pego um táxi. — E acrescentou com seu sorriso infantil! — Ainda bem que já fiz as malas. Pelo que vejo esses rapazes estão dispostos a varar a noite. Eu não ficaria surpreso se amanhã tiver tempo apenas para pegar minhas coisas e seguir para o avião.

Ela sorriu.

— Vou guardar um lugar para você. Você vai merecer.

Levantou-se com despedidas gerais, pedindo para que não abandonassem seus lugares, enquanto uma garçonete surgia com mais uma bandeja carregada de bebidas. A caminho da saída, parou junto ao caixa para pagar a conta da mesa, o que causou uma reação de estranheza no funcionário, embora este conservasse a discrição que a sofisticação da casa exigia. Roberta entregou-lhe um cartão de crédito com ar cansado.

— Vou pegar o meu casaco — disse. — Poderia mandar chamar o

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meu carro, por favor? O nome é Lennox.

Pouco depois, com tudo resolvido, ela saiu para encontrar o motorista numa banca de flores, junto à porta de saída, rodando seu quepe entre os dedos, parecendo meio nervoso. Assim que a viu, apressou-se em abrir-lhe a porta de trás da limusine.

O interior do luxuoso automóvel cheirava a charuto, colônia masculina cara... e alguma coisa de odor adocicado, enjoativo. Roberta fez uma careta, mas conformou-se, já que até o hotel seria uma curta viagem de não mais de dez minutos.

Enquanto ela ainda pensava nos odores do carro, o motorista fazia a maior confusão para partir. Por duas vezes tinha dado a partida e deixado o motor morrer. Talvez estivesse um pouco bêbado, já que na ida havia se revelado um excelente chofer. Por fim partiram, mas com um solavanco que quase a atirou contra o banco da frente. Tudo estava escuro; a queda de energia parecia ter afetado toda a iluminação pública, de modo que não havia movimento nas ruas mergulhadas na escuridão.

Mal haviam avançado cem metros, a limusine começou a ziguezaguear como se estivesse desgovernada. De repente o carro foi para a esquerda e bateu em algo que Roberta julgou ser um outro veículo, até parar atravessado na pista, num ângulo perigoso. Com o baque, ela se viu lançada para o chão do carro.

Recuperando-se do choque, ela procurava se levantar, mas foi impedida. Entre vozes vindas não sabia de onde, sentiu que lhe cobriam a cabeça com um pano negro. O cheiro adocicado ficou mais forte; por fim compreendeu, era clorofórmio que lhe aplicavam à boca e ao nariz. Ainda debateu-se, horrorizada, mas lentamente mergulhou no abismo da inconsciência.

Quando voltou a si já era dia. A primeira coisa que viu foi um facho

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de luz passando por uma fresta. Seria uma cortina? Não, estava com os olhos vendados. Alguém a havia drogado, vendado seus olhos, e agora ela não tinha a menor noção de onde se encontrava.

Permaneceu deitada sem se mover, tentando achar algum sentido em toda aquela confusão.

Não havia sensação de movimento, portanto não estava num carro. Ou, se estava, não se movia. Também não distinguiu nenhum ruído de motor. De longe, teve a impressão de ouvir vozes. Prendeu o fôlego e não escutou o barulho de nenhuma outra respiração. Estava sozinha ali.

Passados alguns instantes, tentou se mover. Seus pulsos tinham sido amarrados, não muito apertado. Os tornozelos estavam soltos. Onde quer que estivesse deitada, era uma superfície dura. Moveu-se de novo e algo caiu. Ao barulho, as vozes se calaram.

Uma porta se abriu; ouviu o rangido atrás de sua cabeça. Uma voz de menina disse em castelhano:

— Ela acordou. O que fazer?

Seguiu-se uma resposta que Roberta não pôde captar. Então sentiu mãos sobre si, desajeitadas, mas não rudes, e então foi erguida. Sentiu a cabeça girar com extremo desconforto. Disse no seu castelhano perfeito:

— Sinto muito, mas eu vou vomitar.

A menina soltou uma exclamação e tratou de retirar o capuz que a cobria. Bem a tempo uma tigela foi posta na sua frente.

Quando terminou, reclinou-se para trás. O corpo todo tremia, e um suor frio cobria-lhe a testa e as costas. A menina, que não era tão criança quanto sua voz infantil fazia supor, olhou-a com ar de dúvida.

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— Você está bem?

Com um pálido sorriso, Roberta respondeu com voz fraca:

— Eu não sei.

— Você tem alguma doença, quero dizer, sofre do coração, ou coisa parecida?

Ela negou com a cabeça.

— Graças a Deus! Pelo menos os imbecis não trouxeram uma inválida — a garota disse com irritação.

Sentindo o corpo frio, Roberta tentou se recompor.

— Onde... onde estou?

No mesmo instante o rosto da outra se endureceu. Não houve resposta.

— Eu não estou ainda em Alto Rio, estou? — ela insistiu, sentindo voltar algumas das lembranças da noite anterior.

— Vou lhe dizer. Se for necessário que fique sabendo.

— Oh... — Roberta digeriu aquela resposta devagar. Sentia-se horrível, mas sua capacidade de raciocínio principiava a voltar. — Isto é um seqüestro?

A pergunta inquietou a garota, o que a Roberta pareceu incompreensível, já que a haviam dopado e encapuzado. Quem sabe não teriam se excedido em suas instruções? Resolveu fazer um teste:

— Os meus braços estão doendo. Você não podia me desamarrar?

A jovem ficou em dúvida. Então assentiu e se inclinou com uma faca

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de lâmina curta. Cortou as cordas com facilidade. Roberta torceu para que seu sobressalto tivesse passado despercebido para a outra, pois sabia que demonstrar medo não seria uma boa política para a situação.

— Obrigada — disse, flexionando os ombros.

— Por nada — a garota hesitou. — Teremos de esperar um pouco. Talvez não muito. Aceita um café?

Temendo a possibilidade de o café conter alguma droga, optou por correr o risco e aceitar. Precisava de qualquer coisa que aliviasse aquele gosto ruim da boca.

— Sim, obrigada.

— Então vou buscar. Fique aqui, por favor. — Avaliou-a por alguns segundos. — Acho que não preciso lhe dizer que não deve tentar fugir, não é, Señorita? Não queremos machucá-la, mas somos gente séria.

Compreendendo a gravidade do aviso, Roberta engoliu em seco e assentiu com um aceno de cabeça. A jovem se foi.

O tempo foi se passando sem que a outra voltasse. Roberta, sentindo-se esquecida, estudou seu cativeiro. Era um quarto comprido e estreito. Duas janelas protegidas por venezianas. A um canto podia-se ver uma escrivaninha de madeira maciça, junto da qual, pregado na parede, havia um grande mapa cheio de alfinetes de cabeça colorida. Parecia uma sala de táticas de guerra.

Era isso mesmo o que devia ser: tinha ouvido falar da atividade guerrilheira naquele país, mas o serviço de informações da Technica afirmara que se tratava apenas de pequenos grupos confinados às montanhas. Ela e Larry não seriam incomodados.

Ela mal conteve uma risada sarcástica. Não seriam incomodados! Massageou os pulsos doloridos. Sentia-se mal e não tinha a menor idéia

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de onde estava. Quando voltasse para casa diria a Tony para despedir o departamento de informações inteiro, prometeu.

De repente, interrompendo suas divagações, o barulho de várias vozes alteradas falando ao mesmo tempo vieram do lado de fora. Então ouviu-se um estrondo alto, como se alguém tivesse atirado longe um móvel com um chute. As vozes sossegaram. Palavras começaram a ser compreensíveis.

— ...nenhum bom senso! — disse uma voz que estalou como um chicote. Instintivamente ela se encolheu. Teve pena de quem quer que estivesse levando aquela bronca. Ao mesmo tempo, rezava para não ter que encarar aquele que era obviamente um homem enfurecido.

— Você não recebeu ordens de capturar uma mulher! — a primeira voz fulminou.

Uma voz feminina se interpôs, como se procurasse acalmar os ânimos. Parecia ser a jovem que tinha ido buscar o café:

— Nós recebemos ordens de capturar esse tal de Lennox, e foi o que fizemos.

— Não fizeram nada disso. Agiram cedo demais. Lennox ainda estava no clube quando vocês pularam no carro dessa mulher... e fizeram um grande escândalo. O Exército foi avisado em menos de meia hora. Vocês sabiam disso? Pensaram nisso quando decidiram bancar os super-heróis?

— Foi azar... — a garota começou mas foi interrompida.

— Foi mais do que azar, foi uma grande estupidez! E um desastre.

— A culpa foi de Gregório — disse a voz do rapaz. — Ele estava com tanto medo que nem podia dirigir em linha reta.

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— Nesse caso devia ter se livrado dele e dirigido você mesmo.

— Mas eles já o conheciam — o rapaz objetou.

— Pessoas assim não prestam atenção em quem é o chofer. Não teriam se importado com quem os estava conduzindo. Você é um tolo, Pepe — o que parecia o chefe disse, mas já sem a fúria inicial. — É melhor eu vê-la quando ela acordar.

A resposta foi uma risada seca.

— Ela enjoou? Deviam ter pensado nisso quando resolveram entupi-la de clorofórmio!

— Parece que ela está se recobrando — disse aquele que devia ser Pepe. — Pediu café.

— Ótimo. Então vá buscar. E traga um pouco para mim também.

Roberta ouviu passos se aproximando. Procurou endireitar-se sobre o duro colchão onde tinha ficado deitada. Esforçou-se para reprimir o tremor que lhe dominava o corpo; era importante não deixar transparecer medo.

Mas, quando a porta foi aberta, tal foi sua surpresa que por um momento esqueceu o medo. Ali, na soleira, surgiu ninguém menos do que Don Rafael Madariaga.

Não havia surpresa no rosto dele. Sua expressão era dura, mas era óbvio que já sabia quem encontraria ali muito antes de abrir a porta. Roberta começou a sentir indignação.

— Bom-dia, Señor — cumprimentou-o.

Parecendo ainda mais irritado, ele fechou a porta atrás de si e avançou para ela.

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— O que foi que essas crianças cretinas fizeram a você?

— O que você lhes ordenou, imagino — respondeu com frieza, olhando bem em seus olhos.

— Eu não os mandei transformá-la num fantasma — disse, áspero.

Ela se permitiu um sorriso irônico.

— Ou me drogar? Ou me seqüestrar?

— Seqüestrar, sim. Embora não você — ele devolveu no mesmo tom frio. — Você, devo dizer, é uma complicação a mais. E o clorofórmio foi refinamento deles. Deus sabe onde o conseguiram. Não sabem como usá-lo. O jipe está fedendo, e a limusine presidencial deve estar também, imagino — concluiu com desgosto.

— Que desajeitados, eles, não?

— Mais que isso — disse mais calmo. Sentou-se na quina da escrivaninha e ficou balançando uma perna, com a bota indo e vindo. Foi então que ela reparou o quanto ele estava diferente naquela manhã. Mas, de qualquer maneira, de smoking ou vestido com roupas rústicas, era impossível negar seu enorme charme. — Eles deveriam ter capturado o seu companheiro, o líder da missão, Roberto Lennox.

Seguiu-se uma breve pausa. Então ela falou com cuidado:

— Parece que você deu instruções conflitantes. Creio que não pode culpá-los.

Ele a examinou intrigado.

— O que quer dizer com isso?

— Estou dizendo que deveria ter mandado capturar meu assistente ou Lennox. Eu sou a líder da missão, Roberta Lennox.

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Por um quase imperceptível segundo ele reagiu com choque, cerrando os punhos com força. Mas logo se recompunha.

— Eu não acredito que enviariam uma mulher para negociar com o presidente Valetta.

— Garanto-lhe que enviaram! — ela retrucou ofendida. — E ele estava recebendo tratamento de primeira classe com isso. Sou a diretora da Technica Associates desde a sua fundação. Costumava atuar apenas em território africano. Foi só porque eu acabei de ser transferida para a América Latina que vim pessoalmente. Era uma espécie de viagem de familiarização. Em condições normais, Larry teria assumido as negociações sozinho. Eu viria apenas para o acerto final.

Madariaga levou um tempo para assimilar aquelas novas e más notícias.

— Nós estávamos querendo um diretor, sem dúvida. Por isso escolhemos a Technica em vez de qualquer outra companhia estrangeira. Mas... uma mulher? — ele fechou os olhos.

— Sabia que alguns dos mais brilhantes cérebros deste país trabalham colhendo informações para mim?

Ela teria achado cômico seu desespero se as circunstâncias fossem outras. Mas naquela situação Roberta Lennox achou melhor não rir. Além do mais, começou a tremer de modo convulsivo, tanto pelo efeito da droga quanto pela tensão emocional. Queria disfarçar, mas era difícil, já que seus dentes não paravam de bater.

— Talvez devesse ter especificado, dizendo que uma mulher não servia — disse numa derradeira tentativa de se controlar.

Ele a considerou por um longo momento.

— Talvez eu devesse, mas agora é tarde demais. O seu assistente

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já deixou o país, sem sombra de dúvida. E você está aqui. Terei de alterar os meus planos.

Sob aquele olhar frio e calculista, ela se sentia cada vez pior. Precisava falar rápido.

— A Technica Associates não vai pagar resgate. É parte de sua política. Trabalhamos por todo o mundo, inclusive em países com problemas políticos, e não podemos arcar com a possibilidade de ficar pagando resgates um em cima do outro.

Madariaga não se perturbou.

— Nem mesmo por um diretor?

Ela sorriu com desânimo.

— Especialmente por um diretor que contribui para a adoção dessa política de não pagar.

— Mas e sua família? Não fariam pressão?

Roberta não respondeu de imediato. De modo geral, não possuir uma família não a incomodava. Pelo contrário, com seu espírito independente e temperamento de jogador, ser sozinha significava liberdade para tomar decisões e correr o risco que bem entendesse. Mas, naquele momento, sentiu uma solidão terrível. E, quando falou, desejou que a desolação não aparecesse na voz:

— Não há família.

— Não? — ele recebeu a informação sem nenhum traço de emoção. — Bem, por uma questão de honestidade devo lhe dizer que não pensei em pedir um resgate por você, Señorita. — E, percebendo o medo em seus olhos azuis, acrescentou: — E em nada violento, também. Não é preciso ter receio.

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O tremor aumentava, incontrolável. Roberta comprimiu as mãos, desesperada, mas conseguiu falar com calma:

— Bem, você deve admitir que ser capturada por um grupo guerrilheiro não é a melhor maneira de se passar as férias — disse, procurando demonstrar bom humor.

Por um breve instante os olhos escuros de Madariaga refletiram a admiração por aquela mulher corajosa; em seguida, seu rosto recuperou um ar inexpressivo.

— O que sabe da história do meu país, Señorita? — perguntou de repente, com um leve tom de zombaria. Mas ela levou a questão a sério:

— Oito milhões de habitantes, dois centros de alta densidade populacional, mas a maioria das pessoas é camponesa, vivendo no meio rural e subsistindo da agricultura. Interior montanhoso e bacia hidrográfica rica, sujeita a enchentes. Solo fértil, mas chuvas irregulares e terreno escarpado tornaram a agricultura precária. — Ela pôde ver a surpresa em seu rosto, o que a deixou satisfeita, apesar do medo. — Eu sou agrônoma, disse com naturalidade.

— Entre outras coisas, parece.

— Uma agrônoma que queria vender um projeto de irrigação — ela prosseguiu, pensativa. — Um bom projeto que seu presidente recusou.

— Não se preocupe, ele talvez ainda o aceite. Ou alguém o fará. Meu Deus, é preciso que algo seja feito pelo interior. Tem sido negligenciado por muito tempo.

Como pensasse da mesma maneira sobre o assunto, Roberta não disse nada. Não compreendia aquele homem. Parecia muito frio, muito desapaixonado para ser um guerrilheiro da liberdade, como diziam os noticiários na televisão. E, no entanto, o modo como havia sido

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seqüestrada e era mantida cativa sugeria que se adaptava àquela definição.

— Bem, você está bem informada quanto à geografia, devo admitir — ele retomou o assunto. — Mas é de história que eu estava falando.

— Governo militar nos últimos quatro anos — ela apressou- se em dizer. — É tudo o que eu sei.

— Sim — Madariaga confirmou com rispidez. — Imagino que isso deva ser tudo que a maior parte do mundo saiba. — Fez uma pausa, seus lábios se retraíram numa expressão amarga. — Não é tão simples assim... — Ergueu-se da escrivaninha e deu alguns passos a esmo, nervoso. — Oaxacan, por muitos anos, era uma nação apenas no nome. Na verdade, depois da independência, continuou a ser apenas um aglomerado de grandes latifúndios, com a maior parte da população vivendo em situação de miséria.

Ela sentiu interesse.

— Era uma colônia espanhola, não?

— Sim. E sua história tem sido marcada pela sucessão de golpes de Estado e de governos autoritários, culminando com a ditadura militar, quando o último presidente eleito resolveu implantar a reforma agrária. — Respirou fundo e prosseguiu. — Bem, com a deposição de Gonzalez Arcade surgiram vários grupos terroristas, de esquerda e de direita. Vivemos um momento de revolução.

— Revolução? — ela perguntou chocada.

— Sim — respondeu com um sorriso cansado. — E acredito que estamos perto do dia em que todos terão direito a um teto e comida. O que atrapalha é a interferência das grandes nações, que enviam mais armas do que alimentos. A violência se generalizou por aqui; tivemos vinte

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anos de guerra civil.

— Eu não fazia idéia! — ela reagiu, confusa.

Ele deu de ombros.

— Somos um povo muito atrasado, moça. Com alto índice de analfabetismo e tradições culturais muito antigas. É difícil organizar uma população despolitizada. Há uma geração inteira no meu país que não conheceu um tempo de paz, Señorita Lennox.

— Mas o governo militar mantém uma certa estabilidade, não? — ela argumentou.

— Sua observação mostra o quanto ignora sobre Oaxacan, minha cara — seus lábios esboçaram um sorriso de desdém. — Os militares não estão interessados num desenvolvimento social. Há uma repressão feroz, e a guerra civil prossegue. Nosso povo luta entre si.

— E você está engajado nessa luta...

— Naturalmente.

Ela olhou ao redor e perguntou;

— E você comanda um desses grupos de guerrilha, é isso?

CAPÍTULO III

Depois que Madariaga se foi, acabaram lhe trazendo o café. Estava

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quente, bem forte e açucarado. Roberta segurou a caneca com ambas as mãos, procurando aquecê-las. Não costumava adoçar o café, e no começo achou-o intragável.

A jovem que o trouxera observou-a intrigada.

— Você ainda se sente... mal?

Ela balançou a cabeça.

— Não. Mas estou com muito frio.

A outra fungou.

— Você não está vestida para as montanhas — replicou em voz neutra.

Roberta evitou um comentário sarcástico sobre não ter planejado visitar as montanhas. Fez um gesto de assentimento disse;

— Eu estava com um casaco ontem à noite. Sumiu?

A garota foi até a ponta do colchão onde estava e pegou algo que mais parecia um trapo amarrotado. Era o casaco.

— Isso não vai esquentar — disse, estendendo a peça de tecido fino. — É leve demais — prosseguiu pensativa. — Mas é bonito. A minha irmã gostaria...

Roberta bebericou o café. Achou que, se conseguisse fazê-la continuar falando, talvez obtivesse alguma informação útil. Deu um sorriso simpático.

— Que idade tem sua irmã?

— Minha irmã não é uma criança — a garota respondeu com ironia. — É que ela gosta de coisas bonitas, Señorita. Ela é a dançarina Florita;

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acho que a viu ontem à noite.

Ela considerou aquilo por um momento. As duas eram tão diferentes! Mas é claro que nem sempre duas irmãs se parecem ponderou.

— E sua irmã partilha dos seus pontos de vista? Do seu modo de vida?

A outra sorriu.

— Não vai encontrá-la nas vilas das montanhas, quebrando as unhas num tear, se é o que quer dizer, Señorita. Por outro lado, ela e Rafael trabalham muito juntos. Foram eles que planejaram a operação de ontem.

Roberta lembrou de ter tido a sensação de que os dois trocavam alguma mensagem durante a dança. Com um calafrio, prometeu-se nunca mais duvidar de seus instintos.

A jovem guerrilheira prosseguiu, orgulhosa;

— Florita é muito famosa. Rafael está sempre dizendo que não saberia o que fazer sem ela.

— Estou certa que sim — ela retrucou com frieza, cobrindo as costas com o delicado casaco.

— Você está com frio — a garota constatou condoída. — Quando a gente chegar a... quando a gente chegar, vou arranjar uma roupa quente para você.

— Obrigada — Roberta agradeceu, procurando ocultar seu desânimo. Então iriam levá-la a outro lugar; com certeza para mais longe da capital, pensou. — Hã... e vai demorar muito?

A outra lançou-lhe um olhar desconfiado.

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— Quem sabe? — disse evasiva. — E seria melhor a Señorita não ficar fazendo perguntas. Rafael não está de bom humor, não é bom irritá-lo.

— Tudo o que eu fiz para irritá-lo foi não ser um homem — ela replicou com um muxoxo. — Acho que não podem me culpar por isso, não é?

A garota se mostrou surpresa.

— Oh, mas você o fez ficar muito bravo. Não sei o que lhe disse, mas ele ficou furioso. — Um certo respeito transpareceu na sua voz. — Não é fácil fazer Rafael perder a calma. Normalmente ele é muito controlado e sensato. — Então abriu um sorriso que a fez parecer uma menininha: — Às vezes é muito chato.

— Faz tempo que o conhece?

— Toda a minha vida. Ele é como um irmão; talvez venha a ser mesmo um irmão, um dia. É o que a minha mãe sempre quis. Mas quando Florita começou a dançar, mamãe disse que ela já não servia para ser a mulher de um homem público e que Rafael nunca se casaria com ela. — Parou de repente, compreendendo que estava transmitindo informações pessoais à “inimiga”. — Mas isso tudo não deve interessar a você, não é? Preciso ir preparar as coisas para a viagem.

Vendo-se mais uma vez sozinha, Roberta se pôs de pé, sentindo os músculos doloridos. A cabeça parecia leve, como se estivesse se recobrando de uma longa enfermidade. Curiosa, foi espiar pelas frestas da janela.

Pelo que parecia, achava-se numa cabana à beira de uma estrada não pavimentada. Havia dois carros e um caminhão de médio porte estacionados junto da cabana. Mas não via sinal de vida. Além da estrada se erguia uma vegetação baixa e espessa que impedia a visão da

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paisagem. O céu estava azul sem nuvens.

Por alguns minutos Roberta perdeu-se em divagações, imaginando se Larry teria pegado o avião sozinho, acreditando que ela iria no seguinte. Perguntou-se o que Tony acharia da situação. Normalmente ele ficava muito irritado com qualquer imprevisto que interrompesse o curso suave do sucesso da Technica. Segundo a opinião de Tony, pessoas que se deixavam seqüestrar provavelmente não haviam tomado o devido cuidado por isso não mereciam que se pagasse resgate, ainda que alguém pudesse fazê-lo.

Ela suspirou. Não achava que tinha sido descuidada.

A porta se abriu com barulho e entrou um rapaz que ela ainda não vira. Pareceu fitá-la com antipatia, mas, quando falou foi educado:

— Deve vir comigo, Señorita Lennox. Agora, por favor.

O medo voltou. Aquele rapaz era muito jovem, dava a sensação de que poderia agir com violência caso sentisse que estava perdendo o controle da situação. Ela respondeu com muito cuidado.

— Está bem. Mas será que eu poderia... hã... me lavar?

Seguiu-se um instante em que ele pareceu não compreender. Então ficou muito ruborizado.

— É claro — disse prestativo. — Marta vai mostrar onde. Não demore, por favor.

Mais tarde, sentada no jipe que seguia por um caminho de terra batida, Roberta considerava a situação. Todos ali, exceto Madariaga, pareciam nervosos. Pepe, que ia ao volante, e a jovem irmã de Florita, Marta. Ao chegar a uma encruzilhada, Pepe passou para o caminhão e desapareceu pelo caminho mais largo. Marta o substituiu no volante, e prestava extrema atenção à estradinha íngreme e acidentada. Por todo o percurso não se viu vivalma. Cada vez mais o terreno ia ficando pedregoso, e o ar rarefeito. Roberta foi ficando enjoada de novo. Começou a empalidecer e a suar frio.

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— É a altitude — alguém disse com naturalidade, mas num tom amigável.

E isso foi a última coisa que ouviu antes de desmaiar.

Dessa vez ela foi retomando a consciência devagar, ouvindo um murmúrio de vozes e sentindo um gostoso calor subir pelo corpo.

— Ah, pobrezinha — disse uma voz desconhecida, com uma pronúncia carregada.

Roberta abriu os olhos devagar. Uma mulher se inclinava sobre ela, agasalhando-a com um cobertor. Deu-lhe tapinhas encorajadores no ombro.

— Vai se sentir melhor, já, já, pobre criança.

Roberta acreditou. Tornou a fechar os olhos para abri-los em seguida. Tentou se apoiar sobre um cotovelo, mas a mulher a impediu.

— Não, não! Deite-se. Você precisa recuperar as forças. Precisa de tempo para se alimentar. Aqui é muito alto — disse a mulher com preocupação.

Ela ainda levou alguns segundos para compreender, mas, quando viu ternura no rosto da outra, fez o que não fazia havia muitos anos; começou a chorar.

Na mesma hora a mulher sentou-se na beira do velho sofá e tomou-a nos braços, consolando-a como a uma criança.

— Vamos, vamos, já passou. Agora você está segura. — dirigiu-se a alguém mais atrás, que não se podia distinguir no escuro. — Pobre menina, está gelada! Don Rafael deveria ter vergonha. Afinal, ele não é um moleque bobo como Pepe. Oh, o que Doña Eleonora não diria! Pobre menina, pobre menina, pronto, pronto!

Roberta, que não se lembrava de um dia ter sido chamada de “pobre

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menina”, continuou chorando e se deixando consolar amparada nos braços daquela senhora grande e forte. Por fim, o pranto cessou e ela se endireitou, passando a mão pelo cabelo para afastá-lo do rosto.

— Está se sentindo melhor agora, não é? — a inesperada protetora perguntou com um sorriso maternal.

Roberta fez que sim.

— Bom, bom. Marta foi pegar umas roupas para você ficar mais confortável. E eu, Angelina, vou preparar algo quente para você beber. É uma coisa que eu dou aos meus netinhos para curar enjôo da altitude. — Ela se pôs de pé. — Mas não faça nenhum movimento brusco, por enquanto. — Abriu um largo sorriso, que revelou a falta de alguns dentes.

Roberta viu Angelina desaparecer, seguida por uma mulher mais moça, talvez uma filha, ou mesmo uma neta. Deitou-se com a cabeça apoiada sobre as mãos. Tudo ali lhe era tão estranho; toda aquela conversa de família e parentes. Ela não era capaz de se lembrar da mãe, e não chegara a conhecer o pai. Se tinha avós vivos, não sabia quem eram nem onde encontrá-los.

Aos poucos foi deixando surgir as lembranças de infância. Seu tio Geoffrey nunca a quis, e não fazia segredo disso. Quando o funcionário da instituição de menores disse que ela não ficaria num orfanato enquanto tivesse parentes vivos, Geoffrey não gostou nem um pouco. Ela ainda podia se lembrar com clareza de ouvi-lo dizer que, se ele e a esposa quisessem ter filhos, teriam os próprios, e não uma pestinha horrível como aquela. Toda a cena numa cozinha fria, diante de um funcionário irredutível, onde ninguém parecia se importar com ela.

Ela fungou e recolheu um resto de choro. Não que aquilo ainda doesse. Nunca havia doído tanto quanto a traição de Hugh Hamilton. Além disso, nunca tinha gostado do tio Geoffrey. Aprendera a se manter

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quieta e longe do caminho, transformando-se numa criança muda e reservada, escondendo o espírito rebelde que herdara da mãe.

E fora com sua grande força de vontade que, contra o desinteresse do tio, tinha conseguido entrar para a universidade. Sustentara-se com uma série de pequenos empregos que lhe rendiam o bastante para o aluguel e para os livros de que precisava. Nessa época era uma garota franzina, magra e cheia de olheiras.

No escuro Roberta sorriu da imagem de si mesma nos tempos de faculdade; determinada, orgulhosa e quase sempre embrulhada em montes de malha por não ter dinheiro para comprar um bom casaco contra o frio. Como tinha sido pobre! A maioria dos seus colegas de Manhattan não acreditaria nas privações que sofrera em Glasgow. Mas se sentia feliz, livre pela primeira vez do intratável tio Geoffrey e completamente absorvida pelos estudos. Hugh havia achado graça de sua devoção aos estudos.

O sorriso nos lábios dela se apagou. A traição de Hugh a havia ferido muito. Mesmo agora, cerca de dez anos depois, aquela era uma recordação capaz de fazer seu coração doer. Lembrou-se de uma tarde de amor na qual, em sua ingenuidade, julgou estar apaixonada. Depois, chegou Caroline, surpreendendo-os e partindo em seguida, com ar ofendido.

— Não se preocupe — Hugh havia dito com voz macia. — Ela sabe que isso não significa nada. Não precisa ficar tão assustada, minha gatinha.

Mas é claro que ela havia ficado assustada. E magoada. Tudo bem para Caroline, que desde que concordara em se casar com seu tutor já devia esperar por aquele tipo de cena. Ambos vinham do mesmo nível social, e o que importava era que estavam comprometidos. Mas ela, Roberta, não estava preparada para ser tratada como um bom programa para o que teria sido uma tarde aborrecida. Voltando a pensar nisso, tanto tempo depois, não era difícil compreender. Hugh tinha sido gentil, persuadindo-a a abandonar os livros de vez em quando, para que passassem

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juntos horas agradáveis fazendo amor. Na época, nem lhe passara pela cabeça que ele não estivesse tão apaixonado por ela quanto ela por ele. E só depois do episódio com Caroline foi que ficou sabendo que os dois estavam noivos, com data marcada para o casamento. Hugh se mostrara surpreso por ela desconhecer o fato. Afinal constava em todas as colunas sociais, e era incompreensível para alguém como Hugh Hamilton, que Roberta não tomasse conhecimento dessa parte dos jornais.

No final, mesmo Hugh sendo delicado e compreensivo, a mágoa era grande demais para ser esquecida. Prosseguiu os estudos com maior dedicação ainda. Continuava vendo Hugh, já que ele era seu supervisor. E, quando se formou, ainda teve de suportar vê-lo um pouco ofendido por ela não aceitar as ofertas de emprego que ele lhe havia arranjado.

— Vou para os Estados Unidos — Roberta lhe havia dito com simplicidade.

— Estados Unidos? — Hugh mal podia acreditar. — Você tem uma colocação?

— Não vou a trabalho, vou viajar, conhecer. Descobrir o que está acontecendo além deste meu cantinho no globo.

— Sem nenhuma segurança? — ele perguntou com ar de desaprovação, mal se dando conta de que quando a havia decepcionado ela havia desistido de buscar qualquer segurança.

— Não. Só pela aventura — Roberta dissera, zombando.

E desde então sua vida tinha sido mesmo uma grande aventura, Roberta pensou, ajeitando melhor a cabeça apoiada nas mãos entrelaçadas. Gostava do seu trabalho. Gostava de ajudar as pessoas a desenvolver seus negócios, de resolver problemas, de viajar pelo mundo e viver em todo tipo de lugar. Possuía um luxuoso apartamento em Manhattan, mas não ficava lá mais do que três meses por ano. Ocupava o restante do tempo contatando representantes de outros países, conhecendo culturas diferentes e muitas vezes exóticas. Adorava o trabalho de campo. E pensou que quando se sentisse melhor não perderia a chance de dar um passeio pela vila onde estava para conhece-la.

Então, enquanto lhe ocorriam essas idéias, percebeu que devia ter adormecido. A casinha ainda estava escura, mas pela porta não se via mais nenhuma réstia de luz. Ouviu sons de pessoas se movendo do lado de fora. Junto do braço, sentiu uma caneca de barro com um líquido morno. Imaginou que devia estar fervendo. Tomando ânimo, sentou-se na beira do sofá e sorveu a bebida amarga. Depois se levantou e foi até a porta. O que viu foi muito extraordinário.

Estava escuro. Havia luzes em todas as casinhas que acompanhavam a única rua da vila, sinuosa e não pavimentada. Mulheres velhas sentavam-se em pequenos

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grupos diante das portas abertas, enquanto velhos, crianças, moças, gatos, cachorros e galinhas vagavam entre as duas fileiras de casas. Um burburinho de conversa pairava no ar.

Roberta permaneceu um bom tempo com o ombro apoiado no batente da porta, e, como atrás de si não havia luz, os outros demoraram a perceber sua presença.

— Señorita Lennox? — era Marta, muito séria, quem falava. — Eu trouxe algumas roupas. São de Florita; sou muito pequena, acho, para as minhas servirem para você. A blusa é minha — acrescentou. — Espero que sirvam.

— Obrigada — Roberta agradeceu com sinceridade. — Eu estava me perguntando o que esperam que eu faça.

Na semi-escuridão, Marta lhe sorriu.

— Por favor, fique à vontade para fazer o que quiser. Esta é uma vila comum. Você é bem-vinda.

— Mas... — ela hesitou — onde querem que eu fique?

A outra riu.

— Não temos nenhum lugar para mantê-la presa, aqui. Esta casa é para você usar enquanto precisar.

— Mas não é a casa de Angelina? Eu não gostaria de obriga-la a...

Marta balançou a cabeça.

— É muita consideração sua, mas não. Angelina mora naquela casa grande ali, no fim da vila. Depois que se trocar, pode ir falar com ela.

— Mas, então... quem eu desalojei? — Roberta insistiu.

— Ninguém. Esta casa foi herdada por uma pessoa que não mora aqui. Angelina só cuida para que esteja sempre arrumada e limpa. — De modo um tanto inesperado, tocou de leve no braço de sua “prisioneira”. — Pode ficar à vontade. Você não desalojou ninguém.

E, assim, Roberta ficou. Era uma casa de um só cômodo, como pode verificar na manhã seguinte. Tinha uma grande cama de casal de madeira

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maciça em um canto, uma mesa sob a única janela, várias cadeiras e uma arca alta, também de madeira. As paredes e o chão de pedra eram cobertos por belas tapeçarias de cores naturais. A roupa de cama era de algodão, um pouco amarelecida pelo tempo, coberta por uma colcha bordada a mão. Tudo era simples e meticulosamente bem cuidado.

A única coisa que faltava eram utensílios de cozinha.

Mas Roberta logo descobriu que não precisava cozinhar. Toda noite ela jantava com Marta, Angelina e mais meia dúzia de pessoas, e o jantar era a principal refeição do dia. Falavam com prazer sobre artesanato e métodos de plantio. Só se recusavam a discutir política.

Falavam com simpatia do homem a quem chamavam de Don Rafael. Não tardou para que Roberta percebesse que para Angelina e para a maioria dos aldeões a razão de sua presença ali era muito simples: Don

Rafael havia se apaixonado por ela à primeira vista. E de nada adiantou ela protestar, pois suas objeções foram recebidas com sorrisos cúmplices e indulgentes.

Logo na manhã seguinte ouviu-se o barulho do motor de um veículo subindo em direção à vila. Pouco depois, o pequeno Tônio abandonava suas cabras pastando sozinhas para avisar que Don Rafael estava a caminho. Angelina apressou-se em chamar Roberta:

— Venha depressa! Venha depressa! Ele vai querer vê-la — apressou-a, empurrando-a para fora da cabana.

E a primeira coisa que ele fez ao chegar foi perguntar a Marta:

— Onde ela está?

Mas, antes que a moça pudesse dizer qualquer coisa, Angelina surgiu, trazendo uma relutante Roberta.

— Aqui está ela, Don Rafael. Nós cuidamos bem dela para você.

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Ele se aproximou e segurou-a pelos ombros, fitando-a com firmeza. Roberta, de cabeça baixa, pôde ouvir o suspiro de alívio e satisfação de Angelina. Ergueu os olhos e Don Rafael abriu um sorriso.

— Estou vendo que sim, Angelina — ele disse, demonstrando aprovação. — Ela parece outra. — Puxou-a para si e beijou-a na testa, como uma bênção. E então, não apenas a boa senhora mas a vila inteira suspirou sonhadora. Roberta teve vontade de chutá-lo.

— Viu o presidente? — Marta interrompeu.

— Vi — ele respondeu impassível. Tomou Roberta pelo braço e se afastou do carro, cumprimentando um e outro enquanto caminhava, ora com um sorriso, ora com um aperto de mão. Marta vinha atrás:

— E daí?

— Ele está considerando o assunto.

A moça ficou desapontada.

— Você não lhe deu um prazo?

— Dei.

— Quanto?

— Curto o bastante para mantê-lo preocupado, mas não tão curto para que ele entre em pânico — ele disse com frieza. — Valetta vai passar umas semanas ruins.

— Semanas! — Roberta gemeu. — Mas... e quanto a mim?

Don Rafael olhou-a com calma.

— Isso é uma coisa sobre a qual teremos de conversar. Mas não em público nem agora, que estou cansado da viagem.

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Ela puxou o braço num gesto brusco.

— Desculpe-me — disse com ironia.

— Sua ansiedade é compreensível — ele replicou com indulgência. — Como eu disse, vamos conversar. Depois.

Roberta conteve o impulso de esbofeteá-lo. De nada adiantaria, e sua situação poderia acabar ficando muito pior. Precisava pensar logo numa alternativa de fuga ou salvação. Antes mesmo da conversa prometida, quando seu destino seria selado. Decidida, afastou-se um passo.

— Vou deixá-lo para rever seus amigos — disse. — Tenho umas coisas para fazer...

— Se está indo para casa, vou com você — ele interrompeu. — Preciso me livrar destas roupas.

Ela o encarou.

— Eu vou para a minha casa!

Don Rafael sorriu.

— Você ainda não é uma proprietária no meu país. Deve estar se referindo à casa de que se apropriou.

— Eu não me apropriei — ela rebateu irritada. — Foi emprestada para mim. Me disseram que o dono não se importaria... — interrompeu-se diante da terrível possibilidade que lhe ocorreu. Percebeu que ele sorria, divertido.

— Isso mesmo — ele concordou tranqüilo. — E agora o dono chegou. Por isso receio que, no futuro imediato, tenha de dividi-la comigo.

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CAPÍTULO IV

Roberta sentou-se numa das cadeiras de madeira e ficou olhando-o com expressão neutra. Não dissera uma palavra desde que ele a havia conduzido para dentro. Depois do brilho do dia lá fora, o interior da casinha de um cômodo parecia mergulhado na escuridão. Mesmo depois de os olhos se terem acostumado, era difícil distinguir os traços do seu captor.

De repente, ele a surpreendeu num tom divertido:

— Você entrou em choque com a perspectiva de dividir a casa comigo?

Ela sentia a garganta seca e muito pouca disposição para conversar. De mau humor, respondeu:

— Sim.

Ele riu, tirando o casaco e jogando-o na beira da cama. Os olhos de Roberta seguiram a peça de roupa, e o medo a assaltou.

— Pensei que fosse mais liberada — brincou.

Vendo-o desabotoar a camisa, ela ficou tensa. Aquilo era ridículo! Ele era um homem sofisticado, tentou convencer-se. Em nenhum momento havia dado algum sinal de ser do tipo que violenta moças indefesas, portanto não havia motivo para sentir-se tão ameaçada. Usando toda sua fibra, ela falou com a maior frieza possível:

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— Não vejo o que ser liberada tem a ver com não querer repartir a casa com o meu carcereiro. O que, afinal, você é.

Aquelas palavras o enfureceram. Mesmo no cômodo escuro era possível perceber sua irritação.

— Eu não sou carcereiro — ele disse entre dentes, tirando a camisa e atirando-a para junto do casaco.

— Não? — ela replicou sem se perturbar.

Don Rafael encarou-a franzindo as sobrancelhas.

— Você se sente como uma prisioneira? Marta a trancou em alguma cela? As pessoas a deixaram passar fome, a ignoraram?

— Não — Roberta admitiu. — Todos têm sido muito bons comigo.

— Ah! — ele pareceu divertido de novo. — Acha então que eu devia ter sido mais gentil. — Deu alguns passos até ela. — É isso mesmo o que quer de mim, Señorita Lennox? Gentileza?

— Não.

— Também achei que não.

Roberta esforçou-se para sustentar aquele olhar, com o qual ele parecia dominá-la sem nem mesmo tocá-la. Mas ela era uma mulher independente, responsável. Não poderia se olhar no espelho mais tarde se permitisse que aquele homem a humilhasse com uma insinuação tão torpe. Assim, filando-o com sua expressão mais doce, disse:

— O que eu realmente espero de você, Don Rafael... — sorriu com enorme delicadeza — é a minha liberdade.

Ela o havia atingido. O rosto dele assumiu uma expressão tensa, e seus olhos brilhavam muito.

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— Imaginei que diria algo assim. — Passou a mão pelo rosto de Roberta, como quem avalia uma mercadoria em exposição.

— Eu acho que está precisando de algo mais além da liberdade, — disse, afastando-se. — Pena que eu não possa agora atendê-la, minha cara.

Ela mal acreditava que estivesse sendo tão insultada. Ele queria dizer que a possuiria, se ela ficasse disponível, mas que não a respeitava nem estimava. Revelava-se, assim, um inimigo frio e desprezível. Roberta sentiu-se só e abandonada, mas recusava-se a deixar que ele percebesse seus sentimentos.

— Isso significa que você vai embora? — perguntou com cinismo.

— Não, eu não pretendia dizer isso — Don Rafael respondeu com uma careta. — Vou ficar aqui. E você, minha pequena prisioneira, também. Mas eu não vim para passar férias... ou pela oportunidade de dedicar minha atenção a você. Vou estar muito ocupado.

Ela se perguntou o que um advogado teria para se ocupar numa vila como aquela e concluiu que preferia não saber.

— Nesse caso, é claro que eu devo deixar a sua cama — disse, num tom educado. — Não vou incomodá-lo, se vai estar trabalhando.

— E acredita que vai me incomodar menos se se mudar? — ele perguntou com desprezo., Como ela não respondesse, continuou: — A menos que vá acampar nas cavernas, não há nenhum outro lugar. E as noites nas montanhas são muito frias. Se quer que eu seja gentil, Señorita, então deve permitir que eu não a deixe morrer congelada à noite.

Ela respondeu com toda a calma;

— Não sei como agradecer tanta consideração, Don Rafael. O que você sugere?

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— Eu não sugiro nada. — De repente, tornou-se ameaçador. — Valetta está preocupado, mas no momento não está concordando com nada. Portanto, como objeto de barganha, vai permanecer aqui escondida. Vai continuar fazendo o que tem feito nestes últimos dias, além de conservar esta casa limpa e arejada. Vai lavar as minhas roupas, cozinhar minha comida e fazer qualquer serviço que eu pedir. Isso está claro?

Por um momento Roberta ficou paralisada. Então conseguiu responder:

— Perfeitamente. Mas está me parecendo muito parcial. O que eu recebo em troca? — quis saber com admirável ousadia.

— Você ganha um protetor — ele disse num tom que lhe causou arrepios.

— Um protetor? Para me proteger do quê?

— De mordida de cobra — ele disse em tom ofensivo. — E de deslizamentos de terra. E do interesse dos jovens locais. E, é claro, de congelamentos.

— Eu não vou dormir com você — afirmou ela com determinação.

— Obrigado — ele disse, abrindo o móvel. — Aqui estão as minhas camisas limpas. Depois que tiver lavado esta — e apontou para a que tinha acabado de tirar —, ponha de volta aqui. Creio que não vai encontrar dificuldade em diferenciar as minhas camisas de usar no campo das de usar na cidade.

Minutos depois, Don Rafael Madariaga saía, deixando-a sozinha e num terrível estado de nervos. A muito custo, e só após obrigar-se a sentar e a fazer exercícios respiratórios por alguns minutos, ela conseguiu se acalmar o bastante para raciocinar com clareza.

Vencido o pânico, tentou esquematizar a questão: em primeiro

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lugar, estava claro que não pretendiam feri-la. Mesmo porque, de nada valeria ela morta. Em segundo lugar, os moradores da vila haviam se convencido de que seu precioso Don Rafael se apaixonara por ela; portanto, num caso de briga entre ambos, provavelmente ninguém iria querer se envolver, pois acreditariam tratar-se de uma discussão de namorados. Concluindo, não a feririam, mas também não a protegeriam.

“Então, o que ele pretende fazer comigo, sabendo que não tenho para onde ir?”, ela se perguntou. E aí estava uma pergunta que não sabia como responder. Ele agia de modo tão imprevisível, ora parecendo querer trucidá-la, ora parecendo até mesmo... desejá-la. E, por mais estranho que fosse, era essa última possibilidade que mais a perturbava.

Inquieta, ela se levantou e foi até a janela. A rua estava vazia. Então tentou imaginar quanto tempo suportaria aquela situação de incerteza antes de explodir numa crise de histeria. Quanto tempo seus nervos suportariam a pressão? Não podia se dar ao luxo de esperar para descobrir. Só havia uma alternativa: fugir antes que ele voltasse. Sem demora.

Mas, ao tentar seguir pela rua, Roberta descobriu que a vila não estava tão deserta quanto lhe havia parecido. Notou que era observada por muitos rostos desconhecidos, não hostis, mas suspeitosos. Resolveu abandonar o plano de escapar pela estrada principal e começou a subir. Sabia que as montanhas eram riscadas por trilhas de lhamas e cabras. Uma dessas trilhas teria de levá-la para longe dali.

Assim, caminhando como se estivesse apenas dando um passeio, ela conseguiu se afastar sem levantar suspeitas.

Após duas horas de caminhada por um terreno íngreme, escorregadio e pedregoso, Roberta começou a se perguntar se aquela sua tentativa de fuga não seria a idéia mais estúpida que já tinha tido. Seus pés doíam, e os mocassins emprestados por Marta começavam a dar

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sinais de rompimento. Várias vezes ela tropeçou e caiu.

No fim, foi quase com alívio que ouviu seu nome sendo chamado. Não tinha mais energia para correr, mesmo que houvesse algum lugar para onde ir. Exausta e abatida, afastou o cabelo embaraçado do rosto. Não ficou surpresa ao ver Rafael. A elegância e serenidade que ele apresentava depois de empreender aquela caminhada chegava a ser um insulto, em comparação ao estado em que ela se encontrava.

Sem alternativa, parou e ficou esperando que ele se aproximasse, tentando acalmar a respiração ofegante. O ar daquelas montanhas parecia nunca bastar.

— Sabe — ele disse quando chegou perto —, é realmente uma mulher decidida. Eu a congratulo, Señorita Lennox.

— Obrigada — ela disse simplesmente, procurando conservar o pouco fôlego que ainda lhe restava.

Ele sorriu.

— Não muito previdente, é claro, mas, mesmo assim, decidida. E corajosa. — Com a mesma segurança de quem caminha por uma calçada, ele terminou de subir o trecho que os separava, no qual ela mal conseguira dar um passo sem tropeçar. — Contra a minha vontade, estou descobrindo em você motivos de admiração.

Seu tom era irônico, e ela sabia que ele estava querendo dizer justamente o contrário.

— Não ria de mim! — fulminou numa voz sufocada.

— Não seja ridícula! Não vê que poderia se matar num terreno inseguro como este? Nem sequer está usando um equipamento ou roupas adequadas! — E apontou para os mocassins arrebentados que ela calçava. — O que pretendia fazer quando anoitecesse? E para quê? Para chegar

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até o topo? Acredita que conquistaria a liberdade passando por cima das montanhas, como a heroína de algum melodrama?

Roberta mordeu o lábio. Era isso mesmo o que havia imaginado.

— Você devia esperar que eu fizesse alguma coisa — ela retrucou.

— Talvez eu tenha esperado — ele admitiu, sorrindo para si mesmo. — Mas não isso.

— O quê, então? — Apesar do cansaço extremo e de sentir-se tonta, Roberta acreditava que, descobrindo o que ele imaginava que ela faria, estaria mais bem preparada para o futuro.

Ele deu de ombros.

— Algo mais sutil e feminino, eu acho. — Antes que ela pudesse responder, segurou-a por um braço e puxou-a para si, de volta à trilha de terra batida. Nesse momento, sentindo-se segura, ela foi dominada por um cansaço mortal. Seus joelhos bambearam, e o corpo afrouxou. — Você está exausta!

Supondo que ele estivesse aborrecido com sua fraqueza, com enorme esforço endireitou-se sobre os próprios pés e desvencilhou-se dele.

— Uma boa caminhada nunca faz mal a ninguém — desafiou. — Ao contrário de terroristas.

Por um momento achou que o imperturbável Don Rafael Madariaga hesitava. Mas, como sempre, ele logo se recompôs.

— Creio que sabe que não somos terroristas — disse. — Ou não se atreveria a dizer isso a mim.

Ela se aprumou e olhou bem nos olhos dele.

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— Não gosta da verdade, Don Rafael? — arriscou, transformando o medo em zombaria.

Houve um silêncio, então ele falou:

— Quando souber a verdade, talvez eu debata o assunto com você. Mas você é uma ignorante, uma estrangeira que nada sabe do meu país e de mim.

— Sei que me seqüestrou — ela replicou com simplicidade.

O olhar com que a fulminou quase a pôs em pânico. Roberta precisou de toda sua fibra para não deixar transparecer o pavor que teve naquele momento. De repente ele rompeu o pesado silêncio num tom brutal.

— Então não se esqueça disso. — E puxou-a para si. — Nós vamos voltar para a vila. Agora. Se resistir, eu a carregarei. Se tentar fugir, eu a amarrarei — declarou sem emoção. — Será esperta se não me criar problemas.

A descida de volta foi silenciosa. Várias vezes ela tropeçou, e ele teve de ajudá-la. Mas escorava-a com mãos frias e impessoais. Quando paravam para que ela tomasse fôlego, ele se restringia a fitá-la sem interesse.

Na vila, embora já fosse noite, Angelina correu para recebê-los, como se tivesse ficado esperando. Estava ansiosa, mas Don Rafael respondia com monossílabos, e, quando a velha senhora tentou amparar Roberta, a fez recuar com o olhar, segurando sua prisioneira com tanta força que arrancou-lhe um gemido de dor.

— Vejo-a mais tarde, Angelina. A Señorita precisa descansar de sua pequena aventura, por isso não vai jantar com vocês esta noite — anunciou, antes de conduzir Roberta para casa, fingindo grande solicitude.

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Lá dentro, a claridade produzida por um lampião a querosene criava um clima de aconchego. Lágrimas inesperadas brotaram nos olhos de Roberta, que virou a cabeça para que ele não as visse.

Don Rafael, porém, não tinha sua atenção voltada para ela; ocupava-se em trancar a porta e a janela, criando uma tensão insuportável no ar. Para rompê-la, ela precisava dizer alguma coisa.

— Vai me bater por ter fugido? Não quer que ninguém na vila veja?

Ele virou-se para encará-la.

— Bem que você merecia. Como pôde ser tão irresponsável? Não viu que podia ter quebrado uma perna com essa brincadeira? Ou mesmo o pescoço!

— Qual é o problema? Tem medo de perder o poder de barganha se tiver apenas um corpo para oferecer? — ela zombou.

— Nem um pouco — retrucou com calma.

— Então o que pretende fazer comigo?

— Bem, mantê-la viva. Por bem ou por mal.

— Eu quis dizer... agora.

— Ah, agora... — Ficou pensativo. — Eu disse à Angelina que você ia descansar. Talvez seja a melhor idéia. — Aproximou-se dela.

Recusando-se a ceder, ela levantou o queixo e desafiou-o com o olhar.

— Se encostar a mão em mim eu vou gritar tão alto que vão ouvir no outro vale!

Mas, para decepção de Roberta, ele pareceu apenas divertido.

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— Isso vai aumentar a minha reputação enormemente.

— Reputação de violento? — ela disparou sarcástica.

Mais uma vez ele a frustrou, rindo alto.

— Você está mesmo determinada a me enfurecer, não é?

Não havia nada que ela desejasse mais, mas de modo algum iria admitir. Disse:

— Eu só quero deixar clara a situação.

— Mas a situação está clara. Você é minha... hóspede — ele replicou sorrindo. — Seu bem-estar é minha responsabilidade. Você pode não gostar, mas também não pode mudar isso.

— Meu bem-estar? — ela repeliu com desdém.

— Sua segurança física, conforto e, espero, prazer — explicou com falsa inocência.

Sem saber o que dizer, Roberta deixou-se cair na cama. Ele a estudou com interesse.

— Está cansada? Talvez tenha se cansado mais com o esforço da caminhada do que pensou, não?

— Eu não estou nem um pouco cansada...

— Ótimo — ele interrompeu, alcançando-a em dois passos. Segurando-a pelos ombros, fez com que se levantasse e pôs-se a estudá-la com cuidado. — Por que está com tanto medo? Deve ter percebido que se não a assassinei até agora é porque isso não está nos meus planos.

Vencendo o nó que se formava na garganta, ela deu um jeito de responder:

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— Eu não estou com medo.

Ele tomou-lhe uma das mãos e levou-a até o próprio peito, onde ambos podiam senti-la tremer.

— Não? — Ergueu as sobrancelhas desconfiado. Roberta baixou os olhos, e ele segurou-a pelo queixo, obrigando-a a encará-lo. — Então por que está tremendo? Acha mesmo que eu a machucaria?

Ela engoliu em seco.

— Eu não sei.

— Ajudaria se eu lhe dissesse que possuir mulheres indefesas nunca foi meu passatempo favorito?

Roberta, para sua própria surpresa, descobriu que a afirmação não ajudava em nada. Não temia ser possuída por ele. Era algo mais complicado do que aquilo. Interpretando mal seu silêncio, ele prosseguiu:

— Admito que me deixou muito bravo. Até encontrar você eu sempre me considerei um homem de paz — disse pensativo. — Mas nestes últimos dias eu cheguei umas duas vezes tão perto de bater numa mulher como nunca havia imaginado ser possível para mim,

Pela primeira vez desde sua captura, sentindo-o tão perto, Roberta foi dominada por uma estranha sensação. Tinha vontade de que ele não a soltasse, embora soubesse que devia resistir a uma aproximação.

— Pretende me dizer que está me ameaçando por minha culpa? — perguntou incrédula. E, para sua total surpresa, viu-o corar, soltando-lhe a mão e virando-se, de forma que só podia ver seu perfil decidido.

— Você me causa as piores emoções — ele admitiu. — Não sei se é culpa sua ou minha.

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O medo foi passando, e em seu lugar foi vindo apenas uma espécie de torpor.

— Então você não sabe? — ela perguntou.

Ele deu de ombros.

— Bem, sim, creio que sei. Nós dois não somos mais crianças, e acho que ambos sabemos.

Como não o entendesse, Roberta calou.

— E o tempo só pode piorar tudo.

— Não entendi.

— Não? — tornou a olhá-la. — Pois acredite-me, não podia ser pior. O país está prestes a explodir. Para ser sincero, nem sei se já não explodiu. As estações de rádio não estão transmitindo nada há vinte e quatro horas. Só a emissora do exército, mas só põe música no ar.

— Está dizendo que vai haver uma revolução?

— Isso é quase certo, — Passou a mão pelo cabelo num gesto distraído. — E muito breve, se não está acontecendo agora, enquanto falamos.

Ela estremeceu.

— Que terrível!

— Não tão terrível para nós, que estamos em guerra civil há tantos anos. .Agora, ao menos, talvez tenhamos uma chance de estabelecer um governo decente para este pobre país.

Apesar de tudo, ela não o achou com jeito de um revolucionário apaixonado pela causa. De fato, parecia muito preocupado.

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— De que modo você vai estar envolvido? Vai... — ela hesitou — lutar?

Ele a encarou com dureza.

— Lutar? O que você entende por lutar? Luta com os seus competidores, não é? Oferecendo melhores acordos e quantias fora do contrato, não é?

Ela se lembrou do presidente Valetta pedindo que uma soma extra fosse depositada em seu nome numa conta secreta na Suíça. Deu risada, balançando a cabeça.

— Não me diga que acredita em tudo o que lê nos jornais.

— Não? — olhou-a com curiosidade. — Está me dizendo que não usa suborno nos seus acordos, quando necessário, Señorita Lennox? Quer dizer, por exemplo, que se eu estivesse em condições de fazer valer esse seu maldito projeto você não tentaria me persuadir a fazê-lo?

Ela olhou-o nos olhos.

— Bem, sim, é claro. É um bom projeto, e seu país precisa dele. A Technica não é a única empresa que pensa assim. Mas eu não lançaria mão de nenhum fundo extra imaginário para poder fechar um contrato.

— Devo entender, então, que usaria de outros meios? — ele perguntou, grosseiro. — Bem, isso não deixa de ser muito inteligente.

Sentindo a boca seca, ela esforçou-se para dizer:

— Eu não sei do que está falando.

— Oh, eu acho que sabe, minha querida. É uma mulher muito inteligente.

Ela balançou a cabeça.

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— Nesse caso, deixe-me ser bem claro: como ficou evidente desde o começo, eu quero você. Isso lhe dá uma arma, certo? Mas Deus a ajude se tentar usá-la!

Roberta empalideceu, mas conseguiu falar com bastante calma.

— Você fala como se eu fosse uma combatente dessa sua revolução. Mas acontece que não sou.

— Não — ele concordou, voltando a falar num tom mais suave. — Não. Você está segura aqui, e é onde vai ficar.

— Aqui? — Seus olhos voltaram-se para a cama.

Rafael deu um suspiro de impaciência.

— Em segurança, eu disse. Não vou tocá-la. Estarei muito ocupado para isso; você pode ser muito útil cuidando dos afazeres domésticos, mas asseguro-lhe que serão as únicas coisas que lhe pedirei. — Atirou a jaqueta de brim sobre o ombro e foi até a porta. Então parou e se virou. — A menos, é claro, que você decida que prefere de outro modo.

Depois disso, saiu.

CAPÍTULO V

Roberta não tornou a vê-lo naquela noite, embora tivesse lutado para se manter desperta até literalmente não conseguir mais conservar os olhos abertos. No final, acabou se enfiando debaixo das cobertas sem

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nem mesmo terminar de se despir.

Quando despertou na manhã seguinte, ainda estava escuro, mas era possível ouvir claros sinais de atividade do lado de fora. Apoiou-se num cotovelo para consultar o relógio, mas ele tinha parado. Reparou então nas venezianas fechadas; por isso estava mergulhada na escuridão.

De Rafael nenhum sinal. Durante o sono ela havia desarrumado os lençóis, mas só um travesseiro revelava ter sido usado, o que provava que ele não tinha dormido ali.

Olhando em volta, viu, pendurada no encosto de uma cadeira, a jaqueta com que ele tinha saído à noite. E no assento da mesma cadeira identificou uma pequena pilha formada pelas roupas que ele havia usado no dia anterior. Portanto, em algum momento ele tinha estado ali, pelo menos para trocar de roupa.

Olhou para os próprios trajes com desgosto. Também precisava se vestir, mas só de pensar em pôr a mesma roupa usada no dia anterior sentiu um mal-estar.

Aborrecida, olhou para a arca onde Rafael guardava as camisas. Talvez encontrasse uma blusa limpa, esquecida por alguma outra visitante da cabana. Ou, na pior das hipóteses, pegaria uma das camisas dele. Levantou-se e, mal havia dado dois passos, percebeu o quanto se sentia fraca. Mal podia andar.

Deixando escapar um gemido, tornou a se sentar. Os músculos da coxa pareciam em chamas. Pelo jeito, sua estúpida tentativa de fuga ainda ia lhe causar muito mais transtornos. Compreendeu a sorte que tivera em ser alcançada por Rafael. Analisando os fatos com frieza, foi obrigada a reconhecer que lhe devia um agradecimento.

Mancando, chegou até o baú, onde encontrou livros, mapas e um aparelho que à primeira vista deu a impressão de ser um toca-fitas, mas

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que ela logo descobriu tratar-se de um rádio de comunicação. Sentiu um aperto no coração. Toda aquela situação era muito séria, com uma revolução em andamento. Muita gente morreria. E, nesse quadro, ela era mesmo irrelevante para Rafael Madariaga. Até mesmo um estorvo. Portanto, o mais prudente era manter-se fora de seu caminho e esperar que em breve pudesse voltar a seu país.

Com ar distraído, escolheu uma camisa ao acaso, desdobrando-a no ar. Vestiu-a sem pressa.

— Perfeito — soou uma voz às suas costas.

Tomando cuidado com os músculos doloridos, ela se virou para dar com Rafael parado na soleira da porta.

— Perfeito? — repetiu sem entender.

Ele deu um largo sorriso.

— A minha camisa nunca me pareceu tão bonita. Imagino que esteja sofrendo um bocado com a perda do seu guarda- roupa. O que aconteceu com aquela roupa belíssima que estava usando na boate em Alto Rio?

— Não tenho a menor idéia. Marta me arranjou este jeans. — Indicou as roupas usadas em cima da cama. — Portanto acho que deve estar com ela. — Fez uma careta. — Sob as circunstâncias, creio que levei a melhor.

Ele riu.

— Provavelmente você está certa. Mesmo assim vou ver se consigo o seu vestido de volta.

— Não precisa se incomodar. Não era dos meus favoritos, e já não deve estar mais em condições de ser concertado.

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— Está rasgado? Como?

Roberta se espantou com aquela reação.

— Dentro daquele jipe, só poderia ter se rasgado e ficado com manchas de óleo. Suponho que esteja pronto para ajudar na limpeza.

— Na limpeza?

Ela sorriu.

Roberta encarou-o em silêncio, tentando refazer-se do choque.

— Não me olhe desse jeito — Rafael retrucou entre zangado e indulgente. — Acha que sou tão desumano que não devo ter uma mãe? Bem, às vezes ela mesma pensa assim — concluiu pensativo.

Ficaram calados por um longo momento antes de Roberta perguntar:

— A sua mãe sabe a meu respeito?

— Eu não ficaria surpreso. Está sempre muito bem informada. Mas, se deseja saber se eu lhe falei sobre você, a resposta é não.

Roberta mais uma vez percebeu uma nota de embaraço sob aquele tom de indiferença. Ele prosseguiu:

— Se soubesse, faria questão de oferecer-lhe a casa. Mais uma vez acharia que eu decepcionei a família e assumiria a tarefa de reparar as conseqüências dos meus atos. E, meu Deus, era justamente isso o que eu pretendia evitar, trazendo-a para cá. Cerrou os olhos por um momento e suspirou. — E agora vai ser uma loucura mantê-la em segurança. Mas talvez eu mereça isso. Por minha causa está envolvida numa situação da qual não tem culpa alguma.

Ela o observou em silêncio, percebendo que um mundo de emoções o

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atormentava. Para seu próprio espanto, ainda persistia o impulso de confortá-lo.

— Talvez seja assim mesmo, mas o que importa é que estou aqui, agora. Precisa me dizer o que fazer. — Sorriu ao ver a expressão de incredulidade com que a olhava. — Para garantir a minha segurança e a sua paz de espírito — explicou. — Essas duas coisas parecem estar interligadas, não?

— Estão mesmo — Rafael concordou, avaliando pela primeira vez uma perspectiva que não parecia satisfazê-lo muito.

Ela insistiu:

— Bem?

— O seu próprio bom senso será seu melhor guia — respondeu, esforçando-se para recuperar o senso prático. — Fique fora de vista o máximo que puder. Se precisar sair, deixe Angelina acompanhá-la.

— E não falar com estranhos? — ela acrescentou numa tentativa de gracejar e aliviar a tensão.

— Exato! — Rafael foi até ela e a olhou nos olhos. — Não fique tão assustada. Farei o máximo para protegê-la.

Roberta estremeceu.

— Confie em mim — ele pediu quase num murmúrio.

E ela descobriu que confiava, a despeito de todo o seu bom senso.

— Seguirei seus conselhos.

— Já é alguma coisa. Bem, é tarde e eu preciso ir — anunciou de repente. Mas, contrariando suas palavras, ele hesitou em se mover. Agia como se esperasse um beijo de despedida. Então virou-se para sair. —

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Estarei de volta à noite. Tome cuidado.

Perturbada, Roberta lutou para não se entregar ao desespero. Sentia-se confusa e com medo. Decidiu então que uma boa maneira de esvaziar a cabeça era ocupar as mãos. Pegou as roupas sujas e saiu à procura de Angelina.

Pouco depois a mulher já lhe havia mostrado o riacho onde costumava fazer a lavagem e explicado como pôr as peças limpas para secar sobre os arbustos em volta.

Mais tarde, foi com uma satisfação havia muito não sentida que ela encontrou tudo limpo e seco. Com a roupa nos braços, perfumada e bem dobrada, seguiu de volta para casa para passá-las. Estava atravessando um milharal quando avistou Marta. A garota olhava com tristeza para dois homens trabalhando no roçado.

— Quando é a época do plantio aqui? — Roberta quis saber, avaliando as plantas. Pela altura dos pés de milho, não deviam estar maduros, mas já começavam a secar.

Marta suspirou.

— Deviam estar prontos para a colheita, mas... — fez um gesto de desânimo — estão desse jeito.

Roberta se abaixou e esfarelou um punhado de terra entre os dedos. Era dura e seca. Sem seu material de trabalho não tinha meios de identificar as propriedades minerais daquele solo, mas não parecia ser pobre.

— Vocês sempre plantaram milho?

— Desde que me lembro. A nossa comida é quase toda à base de farinha de milho.

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— E plantam o bastante para alimentar a vila?

— Costumava ser suficiente... — a moça disse com desânimo. — Agora não. Mesmo depois que muitos se mudaram daqui.

Roberta continuou a observar o solo, no entanto seu pensamento mudou de rumo.

— Você quer dizer... gente como Don Rafael? — perguntou casualmente.

A outra achou graça.

— Oh, Don Rafael nunca morou aqui.

— Não? — ela se ergueu, soprando a terra da mão. — Mas estou ocupando a casa dele, não é?

— Mas é claro. A família dele possui a maior parte das terras por aqui, inclusive boa parte das casas.

Roberta franziu o cenho, intrigada. Um guerrilheiro de uma família de latifundiários? A moça, achando que a surpresa dela se devia apenas à casa que ocupava no momento, se pôs a explicar.

— Quem morava na casa era uma mulher que foi sua enfermeira por muitos anos. Quando ela morreu, ele decidiu transformá-la em quartel-general secreto. Isso foi há muitos anos. Agora muita gente sabe da existência dessa base. Talvez gente demais.

— Gente demais? — ela levantou a cabeça; algo no tom da outra a incomodou. — Quer dizer, alguém que poderia traí-lo? Que ele está em perigo?

— Estes são tempos perigosos para nós — Marta respondeu com gravidade.

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Por um tempo ninguém falou.

— Eu não represento um perigo para você, Marta — ela afirmou de repente.

A outra deu de ombros, sem responder.

— Não mesmo, Marta. Eu nem sequer saberia como ameaçá-los. Não sei nada dos seus problemas políticos.

A jovem olhou-a com uma expressão não despida de ironia.

— Não é preciso saber muito para se tornar um perigo para os outros.

Roberta sacudiu a cabeça, sem entender.

— Mas como?

— Eu não sei... não posso dizer. Mas não gosto do estado de emergência na capital; toda essa gente procurando Don Rafael, quando ele devia estar na cidade e longe de nós. Está acontecendo tudo depressa demais, cedo demais. O governo está alerta.

— E é culpa minha? — Sua expressão se alterou. — Como pode dizer isso? Não é justo!

— Pode não ser justo. Mas tudo começou a acontecer desde que você veio para cá. — Pôs as mãos na cintura e encarou-a de frente. — A verdade é que desde que Don Rafael descobriu que você era uma mulher, e não um homem, começou a ignorar os planos, correr riscos e a agir por impulso. — Suspirou inconformada. — Enfraqueceu a segurança... Alguns dos nossos aliados estão achando que ele não é mais digno de confiança.

— E isso é minha culpa? — ela gemeu descrente.

— Pode com toda honestidade dizer que não? — a outra retrucou

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sarcástica. — Acredita que Don Rafael teria vindo para as montanhas com um mês de antecedência para se certificar de que o seu assistente, Larry Davidson, não estava sofrendo nas nossas mãos?

— Você me odeia? — Roberta quis saber, muito pálida.

— Eu? Não! — a garota disse sinceramente surpresa. — Acredito que Don Rafael sabe o que faz e não se deixaria levar por um rostinho bonito. Mas preciso reconhecer que ele não está tão seguro quanto deveria... se você não tivesse vindo.

— E o que é que eu posso fazer? — ela perguntou em voz baixa, após um momento.

A outra fixou o olhar no chão.

— A gente estava falando da colheita. Concentre-se nisso.

— Com todo o prazer. Mas como isso irá ajudar?

Marta olhou-a de frente.

— Dará a idéia de que Don Rafael a mantém aqui para dar assistência aos pequenos agricultores, e não para manter sua cama aquecida.

Roberta estudou-a com cuidado. Não havia malícia em sua atitude nem sinal de ressentimento. Aparentemente, sua única preocupação era a credibilidade de Rafael diante dos outros revolucionários.

— Compreendo — disse devagar. — Os outros líderes...

— Sim — a moça interrompeu. — Mas não só eles. A família de Don

Rafael também.

— Sua família? — Roberta arregalou os olhos.

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— Você não sabe de nada mesmo! — disse com impaciência, curvando-se para levantar a pilha de roupa que Roberta havia depositado sobre uma pedra. — Os Madariaga são muito ricos, poderosos... e infelizes. Doña Eleonora e Don Felipe estão separados há muito tempo. E os filhos, ou seja, o irmão e as irmãs de Don Rafael, são pessoas difíceis e perturbadas. Doña Eleonora quer que Don Rafael se case, constitua família e monte um lar onde tudo possa ser colocado nos trilhos outra vez.

— E onde eu entro nisso?

— Talvez em lugar algum — Marta retrucou, estendendo-lhe a pilha de roupas. — Ele sabe que precisa casar. Prometeu à mãe. Quando essa situação de emergência terminar, não importa o que aconteça ao governo, terá de cumprir a promessa.

— E daí?

— Bem, ele nunca foi um santo, se é que me entende. Mas parece que garantiu à mãe que... regularizaria sua vida.

Não sem exibir um certo ar divertido, Roberta não se furtou a comentar:

— Você parece saber um bocado sobre essa família, Señorita.

A jovem sorriu com naturalidade.

— E por que não? Minha irmã é quem deveria “regularizar” a vida dele. Não que eles tivessem gostado da idéia, na época. Mas se agora concentrarem os esforços para você substituir Florita no final, não sei quem vai ficar mais furiosa: Doña Eleonora ou minha irmã.

Roberta não soube o que responder diante de tal franqueza. Após um breve silêncio, a outra moça prosseguiu:

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— Então, como pode ver, é melhor se preocupar com os problemas da plantação do que no nosso galante líder.

— Sim, é claro... mas ele me instruiu, digo, me aconselhou a não me expor muito. Por causa dos estranhos da vila.

— É verdade. Estou inclinada a concordar com isso — Marta assentiu com seriedade. — Mas se você ficar nos campos mais altos, ninguém de fora vai vê-la. Eles não irão se afastar tanto da vila.

— Muito bem, então — ela concordou com decisão. — Não quer me mostrar a fonte principal de abastecimento?

— Com todo o prazer — a outra respondeu abrindo um simpático sorriso, como se fossem colegas de profissão.

Seguiram juntas até a vila, com Roberta mais calada, ouvindo explicações e comentários sobre os aldeões e a região. Separaram-se na casa de Rafael.

Tão logo se viu sozinha, Roberta entrou e fechou a porta. Estava muito perturbada por tudo o que a jovem camponesa lhe havia contado.

No interior pouco iluminado da cabana ela se pôs a ajeitar as roupas limpas. Sentia-se tensa, e não duvidou de que se tratasse de tensão sexual. Em outras circunstâncias, em Manhattan, ou mesmo em Rio Alto, com mais gente por perto, nada disso ocorreria. Agora, vivendo tão próximo a Rafael, era quase inevitável que começassem a sentir uma profunda atração mútua. E as informações sobre o comprometimento dele com Florita só faziam piorar as coisas.

Enquanto arrumava as roupas no baú, suas mãos tremiam.

Precisava se manter ocupada e longe dele. Como isso seria possível naquela minúscula casa ela não sabia. Mas sabia que sua própria sanidade dependia disso.

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No final das contas, não foi algo tão difícil assim. Naquela noite, bem como nas seguintes, Rafael voltou tarde, e às vezes partia antes do raiar do sol. Ela só o via quando estava sonolenta; com o tempo começou a ter a sensação de que ele não passava de uma figura imaginária.

E nesses momentos em que se achava apenas semidesperta, tinha a sensação de estar com um Rafael carinhoso, apaixonado, o homem que gostaria que ele fosse.

Às vezes ficava em dúvida: ele realmente a havia segurado em seus braços na calada da noite? Poderia ter sido mesmo verdade que ele havia voltado da porta para um beijo de despedida antes de sair para a fria manhã?

“Não”, Roberta dizia a si mesma. Era tudo imaginação, fantasias nascidas de seus próprios desejos.

A partir daí, passou a procurar o motivo que a levava a desejar o homem que a seqüestrara e a mantinha presa. Sem encontrá-lo, seguiu os conselhos de Marta, dedicando-se a estudar as condições do solo e o terreno da região. Acompanhou tantos cursos de água, seguia tantas trilhas que, ao final de cada dia, achava-se exausta. Mas não a ponto de se esquecer de Rafael. “Por onde ele andará durante o dia?”, perguntava-se.

E a firme convicção de Angelina sobre a paixão de Don Rafael por sua “convidada” não a ajudava muito a esquecê-lo.

— Don Rafael sempre gostou... — e lá vinha todo um discurso sobre o que ele apreciava ou não, como uma aula para ajudar Roberta no futuro. Ela, por sua vez, fazia tentativas hesitantes para desiludir a boa velha, explicando que, depois que o presidente aceitasse o acordo proposto por Rafael, ela jamais voltaria para a vila, até porque as exigências de seu trabalho sempre a obrigaram a viajar pelo mundo.

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— Angelina, me escute! — Roberta exclamou um dia. — Quando eu partir, nunca mais vou ver Don Rafael outra vez.

— Quem pode prever o futuro? — foi a resposta evasiva da outra.

— Eu posso — ela insistiu. — Olhe, tem sido muito gentil comigo, todos vocês, e eu sou muito grata. De verdade. Mas isso não significa que vou me transformar no brinquedo permanente de Don Rafael.

A outra se mostrou chocada.

— É claro que não! Uma moça tão boa como você. — Afagou os belos cabelos de Roberta com ternura. — Ele pode agir muito mal quando está nervoso, mas não faria isso.

— Eu acho que ele não simpatiza nem um pouco comigo — ela disse num momento de fraqueza.

— Ora, não se deixe impressionar. Ele sempre foi terrível quando seus planos são alterados. Desde pequeno é assim.

— Oh, então é isso? Pois eu tomarei todo o cuidado para não atrapalhar os planos dele daqui para frente — ela gemeu desesperada.

— Excelente — disse uma voz tranqüila que vinha da porta por trás das duas.

Roberta virou-se tão assustada e tão rápido que esbarrou nas mãos de Angelina e a fez derrubar uma colher de pau. Na confusão, abaixou-se para recolhê-la, ciente de que estava ruborizada. Rezou para que Rafael não reparasse. Mas, pelo sorriso, compreendeu que suas rezas haviam sido em vão.

— Desculpe se a assustei — ele disse com naturalidade. E, dirigindo-se a Angelina: — Perdoe-me, mas preciso falar com a Señorita

Lennox.

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— Mas é claro — a senhora disse.

— Está ocupada? — ele perguntou a Roberta.

— Não. Mas estava de saída para o milharal lá de cima — ela respondeu, tomando cuidado para ocultar o máximo possível o inesperado prazer de revê-lo.

— Nesse caso eu a acompanharei.

Ela assentiu e saiu em direção à porta, sentindo o olhar romântico de Angelina às suas costas. Enrubesceu de novo.

— Parece que eu a perturbei. Está vermelha!

Reunindo todo seu autocontrole, ela conseguiu falar com certa naturalidade.

— É o calor do fogo. Agora entendo por que as pessoas aqui quase não cozinham durante o dia.

— Oh, então é assim? — ele perguntou com divertida ironia. Mas logo disse, sério: — Vejo que tem feito um grande esforço para ser como um de nós, Señorita Lennox.

Ah, então ela era Señorita Lennox outra vez? Isso soou como mal sinal. Nos últimos dias ele a tratara pelo primeiro nome algumas vezes e tinha dispensado por completo o tratamento formal.

— O que eu não sei é se esses esforços são por causa de sua extrema generosidade, ou se porque é muito calculista — ele concluiu o raciocínio.

— Acho que não há nada que eu possa dizer sobre o assunto, não é?

Ele a encarou, intrigado.

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— Não importa o quanto eu diga que gosto das pessoas daqui, você continuará em dúvida se estou sendo sincera ou fazendo um discurso bem calculado.

Ele suspirou.

— Você é muito inteligente. E isso não ajuda...

— Não ajuda?

— Não ajuda a formar uma opinião a seu respeito.

Roberta sentiu-se magoada.

— É... acho que não.

Caminharam alguns minutos calados. Ela preferiu atribuir as rápidas batidas do seu coração à altitude, e não à presença dele.

Rafael foi quem rompeu o silêncio.

— Por exemplo, todos esses passeios ao longo dos riachos. Não sei o que pensar.

Ela o olhou confusa.

— Acha que eu envenenaria a água, ou coisa parecida? — perguntou sarcástica.

— Não. — Fez uma pausa. — Não. Mas poderia estar fazendo... outras coisas.

— Oh, é mesmo? O quê? Fogueiras para pedir socorro aos aviões? Escrevendo socorro em letras de um quilômetro para chamar a atenção? — ela falava com irritação, contendo as lágrimas que ameaçavam brotar.

— Não. Você não é fantasiosa a esse ponto. Aliás, você é uma

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mulher muito calma — ele respondeu com clara admiração. — Nada de lágrimas, crises histéricas, desde o começo, mesmo sendo inteligente o bastante para saber que podia estar em perigo. Não... eu já a conheço, Roberta Lennox. É esperta, fria e muito corajosa... — Então acrescentou: — É por isso que eu não confio em você.

Perturbada com aquela declaração, ela virou o rosto para o outro lado. Estavam tão próximos que por pouco não se tocavam. Uma insuportável tensão percorria seu corpo.

— Por um lado — ele retomou, depois de alguns instantes — você pode estar usando seus óbvios talentos para ajudar as pessoas daqui. Não é a primeira pessoa que percebe que existe um problema de drenagem na região, mas é a primeira com conhecimentos que se interessa em estudar a questão. Por outro lado...

— Sim? — ela pediu, ansiosa.

— Bem, você anda livre e sem vigilância nesses seus passeios. Podia estar fazendo um mapa do terreno. Preparando-se... para uma fuga mais bem preparada.

Ela respirou fundo.

— E é isso que pensa?

Ele franziu a testa.

— Eu não sei. — Deu um meio-sorriso. — Sei que você tem competência para isso. — Estacou de repente. Ambos se encararam. — Qual é a verdadeira Roberta? — ele perguntou por fim.

Ela fez um muxoxo.

— Já disse que você é o único que pode determinar isso.

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Rafael suspirou com impaciência e passou a mão nervosamente pelo cabelo.

— Eu sei, eu sei. E só eu posso decidir o que fazer a respeito.

— Fazer?

— Sim. Essas suas caminhadas têm de acabar. Não há muitas pessoas nos campos para vigiá-la.

Roberta mal conteve o desapontamento.

— Isso significa que vou ter de parar de estudar o sistema de drenagem dos campos?

— Não. Mas terá de estar sempre acompanhada de alguém.

— Não confia mesmo em mim, não é? — ela perguntou ofendida.

— Não desconfio por completo.

— Não? Então por que manter-me sob vigilância o dia todo? — Uma idéia lhe ocorreu: — É por isso que está aqui? Cumprindo seu dever?

Seus olhares se cruzaram. Ela, furiosa. Ele, intrigado.

— Como assim? — Rafael perguntou afinal.

— Bem, não o tenho visto de dia ultimamente, tenho? Não até você vir me dar essas instruções sobre andar escoltada por um vigia! — ela disse com raiva. — E será um guarda armado, é claro.

O rosto dele transformou-se numa máscara impenetrável.

— Provavelmente...

Roberta deu uma risada cheia de ódio.

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— Ah, como eu te odeio!

— Estou a par disso — a voz fria e seca não ocultava uma nota de emoção. Ela sentiu uma pena súbita.

— Sinto muito, eu não queria... eu estava fora de mim — gesticulou num apelo de compreensão. — Mas tente ver as coisas do meu ponto de vista.

Ele deu uma risada áspera e continuou;

— Eu tenho de ver sob o ponto de vista de todo o mundo. E o que vejo não me agrada.

Roberta desviou o olhar, sem entender bem, mas sentindo-se de algum modo criticada.

— Eu preciso fazer alguma coisa — disse com certo desespero. — Pode entender isso, não? Eu enlouqueceria se tivesse de passar o dia de braços cruzados! Ainda mais quando não sei o que está se passando. Eu nem sei onde você está — ela concluiu, meio sem querer.

— E isso é importante para você? — ele perguntou surpreso.

— Não contribui para que me sinta mais segura — ela explicou após um curto silêncio.

— Ah, sua segurança... é claro. — Parou para pensar. — Há uma possibilidade. Eu já havia pensado nisso, mas me pareceu muito arriscado, sob vários aspectos. Talvez eu estivesse errado.

— Mas do que está falando?

— Das minhas viagens — ele explicou com calma. — De agora em diante não vou mais abandoná-la desta forma tão vergonhosa. — E, ao ver que ela ainda não compreendia, acrescentou: — Sim. Você virá comigo.

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CAPÍTULO VI

Rafael cumpriu sua ameaça. Foi como Roberta interpretou a decisão dele. No dia seguinte, chamou-a para acordar.

— Que foi? — Por alguns segundos ela se julgou de volta aos tempos de faculdade. — Hugh?

— Não.

Aquela curta resposta a despertou. Abriu os olhos e deu com ele já todo vestido, inclusive com botas e um lenço escuro ao redor do pescoço. Ainda sonolenta, Roberta sorriu e comentou:

— Você parece um cowboy.

— Eu? Ou esse Hugh? — observava-a com uma expressão de tédio. Ela esforçou-se para organizar as idéias.

— Desculpe-me. Você... você me assustou. Eu ainda estava meio dormindo. O que... o que é que você quer?

— Eis uma grande pergunta! — ele pareceu divertido. — Por hora, quero que se levante e se vista para que possamos partir.

— Oh... — Engoliu em seco. — Sim, é claro. — Mas não se moveu. E não faria enquanto ele estivesse ali, medindo-a daquele jeito. — Aonde... aonde é que nós vamos?

— Se eu lhe dissesse, não lhe acrescentaria muito. E provavelmente é melhor que não saiba. Assim não terá de guardar nenhum segredo.

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— Você não confia em mim — ela disse magoada.

— Não confio em ninguém — ele corrigiu. — Ainda menos em mulheres que ficam na cama piscando maliciosamente para mim. Então, vai se levantar ou eu vou ter de vesti-la?

Mesmo corando, Roberta manteve a pose:

— Vou me levantar assim que você me der a devida privacidade.

Rafael arregalou os olhos.

— Que inesperado! — exclamou. E, dando de ombros, disse: — Mas farei como pede. Esteja lá fora em dez minutos, ou eu virei ajudá-la a se arrumar.

Nunca Roberta se vestiu tão depressa. Não duvidava nem um pouco de que Rafael cumpriria suas ameaças.

Lá fora, ele a aguardava com dois belos cavalos. O fim da rua ainda mergulhava na penumbra.

— Isso é tudo o que vai vestir? — ele perguntou. — Vai congelar desse jeito.

Ela fez um gesto de impotência.

— É tudo o que possuo, e foi Marta quem me emprestou.

Rafael resmungou com impaciência e voltou para a casinha.

Pouco depois voltava com algo que a princípio ela julgou ser um cobertor.

— Tome este poncho. Não é tão bonito quanto os mexicanos, mas vai mantê-la protegida.

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Tão logo o vestiu, já se sentiu deliciosamente aquecida.

— Obrigada.

Ele a observou por alguns segundos.

— Espero que saiba montar — disse, por fim, virando-se para um dos cavalos.

— Senão, vou passar por um mau pedaço — ela concordou com frieza.

— Ah!, vai passar por um mau pedaço de qualquer maneira! Vamos seguir por trilhas nas montanhas. Não é como cavalgar nos gramados planos de escolas de montaria.

Partiram. Ela fazia o possível para se manter firme sobre a sela. Ele seguia num ritmo cadenciado. Os cascos dos animais faziam um ruído monótono que combinava com o clima da vila ainda não desperta para o novo dia.

— O que sabe sobre escolas de montaria? — Roberta perguntou. — Foi assim que aprendeu a cavalgar?

— Não me lembro de ter aprendido a montar. Tenho um cavalo desde que me pus de pé sozinho. O meu pai adorava cavalos e, de qualquer maneira, é a única forma de se chegar a vários lugares neste país.

Ela não disse nada. Ficou pensativa, e só mais adiante se aventurou a fazer outra pergunta.

— Você era muito ligado ao pai? — quis saber num tom casual. Mesmo assim ele a encarou por alguns instantes antes de responder.

— Éramos amigos. No entanto, a minha família não estimula a

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intimidade.

Roberta não fez comentário. Pouco depois ele prosseguiu.

— Fui estudar fora. Minha mãe mandou todos os filhos para o exterior. Pretendia que isso nos tornasse independentes — declarou num tom neutro.

— E tornou?

Ele deu de ombros.

— Eu não creio que independência seja algo que se possa ensinar. Algumas pessoas simplesmente são... frias o bastante. Como minha mãe — acrescentou pensativo. — E acho que talvez você.

— E você?

— Eu? — ele se espantou.

— Você não adquiriu a independência que sua mãe queria? — fez uma pausa propositada antes de acrescentar: — E a frieza?

Ele deu uma risadinha.

— Está me desafiando?

— O quê? — ela não compreendeu a pergunta.

— Talvez não de propósito. Mas vou lembrá-la, algum dia, no futuro.

Roberta continuou sem compreender, mas achou-o mais relaxado, e isso a tranqüilizou.

— Creio que me diverti com meu estranho aprendizado; sempre gostei de viajar. Com meu irmão e irmãs foi diferente, Para eles foi um erro — Rafael disse depois de um tempo. — Hoje minha mãe reconhece

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isso. Está tentando consertar o erro, mas agora é um tanto tarde.

Ela assentiu.

— Marta me contou.

Percorreram mais um trecho sem pronunciarem nenhuma palavra, cada um imerso nos próprios pensamentos.

— Contou, é? — ele disse, quebrando o silêncio. Parecia não se importar que comentassem a seu respeito. Talvez já estivesse acostumado. — A família dela trabalhou para nós durante muitos anos. Seu pai era um administrador de terras e, nos últimos anos, o melhor amigo de meu pai.

— É por isso que ela está aqui nas montanhas com você? — Roberta se interessou, subitamente, pensando que Marta, mais séria e dedicada do que sua bela irmã, seria melhor esposa para ele, no conceito de Doña

Eleonora.

Ele ficou tenso.

— Sim — disse com gravidade. — Carrego essa responsabilidade também, além das outras.

Ela se distraiu admirando a paisagem, e voltou a atenção a Rafael quando ele retomou:

— Se houver derramamento de sangue, vou ter um peso muito grande para carregar.

Roberta ia responder, mas de repente a trilha se tornou íngreme e estreita. Seguiram conservando uma distância segura entre si. A partir desse ponto não era mais possível conversar.

Assim prosseguiram, vislumbrando vales que se descortinavam

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milhares de metros abaixo, até avistarem uma pequena cidade. Rafael diminuiu a marcha para que ela pudesse alcançá-lo.

— Não creio que alguém vá lhe fazer perguntas — ele disse. — Como está comigo, seria uma descortesia. Mas se por acaso alguém perguntar, diga o menos possível. Finja que seu castelhano é limitado.

Ela ficou curiosa.

— Por acaso me fariam algum mal se soubessem quem eu sou e de onde vim?

O rosto dele se tornou sombrio.

— Eu não sei. Se me tivesse perguntado isso há três anos, ou mesmo três meses, eu teria achado graça da idéia de essas pessoas ferirem até mesmo uma mosca. Agora, já não tenho certeza de mais nada.

— Não seria melhor me contar em que pé estão as coisas?

— Como ele permanecesse calado, acrescentou com um pouco de raiva; — Para sua segurança, não para a minha!

Rafael não se dignou a responder. Limitou-se a dar um suspiro. Pela primeira vez Roberta notou o quanto ele parecia cansado, à beira da exaustão. Mas quando atingissem a cidadezinha à frente, ela imaginou, se fossem cercados pelas pessoas por quem ele era responsável, então Don

Rafael mais uma vez reassumiria sua pose de homem público, confiante, seguro e responsável. Um sentimento de admiração e respeito por ele começou a nascer.

Num tom mais gentil, ela insistiu para que ele falasse da situação.

— Às vezes ajuda repartir os problemas, sabe?

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Ele riu.

— Estou tentando por todos os meios não dividir nada com você! Não percebe que isso só a poria em maior perigo?

— Prefiro correr o risco.

— Você não sabe o que está dizendo. Não imagina quais são os riscos...

— Não — ela o interrompeu. — Eu não sei. E é isso o que me assusta.

Ele fez os cavalos pararem e olhou-a nos olhos. Então deu um longo suspiro, como se aliviasse um grande peso dos ombros.

— Muito bem. Você tem o direito de escolher, eu acho.

— Obrigada — ela retribuiu sem ironia.

— Bem, talvez venha me dizer depois que preferiria não ter sabido. Minha mãe, que gosta de ter o controle de tudo, não gosta que lhe contem coisas desagradáveis. E isso é muito mais do que desagradável. É muito perigoso.

— A ignorância também é — ela replicou. — E eu apreciaria se parasse de me comparar à sua mãe, a quem não conheço.

— Ainda vai conhecer — disse com um fraco sorriso. — Mas talvez esteja certa.

— Eu estou — Roberta declarou categórica. — Portanto, diga quem está lutando contra quem. De que lado nós estamos?

Ele se mostrou um tanto surpreso.

— Você não está do lado de ninguém. Está aqui por acidente.

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— Ah, sim, claro...

— Isso é importante — Rafael insistiu. — Você não tem nada a ver comigo, a não ser por uma circunstância de guerra.

Aquilo a magoou profundamente. Controlando-se, manteve uma postura firme.

— O general, presidente Valetta, está governando o país já há quatro anos — ele se pôs a explicar. — No ano passado me chamou a atenção o fato de ele estar montando uma enorme conta pessoal na Suíça, além de uma caríssima mansão. Voltei para Oaxacan e fiz discretas pesquisas. Descobri que toda a população está contra ele.

— Então por que não o derrubam? — Roberta quis saber com uma dose de ingenuidade.

— Porque a Força Aérea o apóia. Porque seu poder não tem sustentação popular, mas militar.

— Mas se ele está transferindo uma fortuna para outro país é porque desconfia que será deposto — ela arriscou.

— Sim, mas por algum rival militar. O que nós queremos é a convocação de eleições gerais após a sua queda.

— E você está negociando a saída dele?

— Sim. Na verdade, este não é o maior problema agora: O general Valetta deve ir... — seu rosto ficou sombrio.

Roberta não se conteve e insistiu:

— Sim?

— O problema são os meus aliados, mais do que o inimigo. Como eu já lhe disse uma vez, são inúmeras facções ideológicas. Cada uma quer o

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seu quinhão de poder. Isso sem falar das que querem todo o poder. Se de um modo ou de outro esses grupos não forem unificados por um acordo aceitável para todos, ou ao menos para a maioria, estaremos correndo o risco de cair novamente nas mãos de um governo militar. — Ele suspirou e fez uma pausa, antes de prosseguir num tom mais ameno.

— Apesar de eu ter me envolvido no processo há apenas alguns meses, sou o único que está tentando esse acordo unitário.

— Eu entendo — ela disse, e estremeceu sob o sol já alto.

Rafael fulminou-a com o olhar.

— Entende? Entende mesmo? Percebe o quanto a minha posição é precária? — De repente inclinou-se e tomou-lhe o queixo entre os dedos ásperos. — Entende que eu não posso garantir a sua segurança? — perguntou furioso.

Ela respondeu com um sorriso confiante.

— Você deixou bem claro. Tomarei muito cuidado, prometo. — Com carinho desprendeu-lhe os dedos, — O que estamos fazendo aqui? Tentando conquistar mais um dos seus difíceis aliados?

— Isso mesmo. — E com um movimento de calcanhar pôs seu cavalo em movimento.

— Você é muito corajoso — Roberta disse, seguindo-o.

— Não — ele retrucou. — Eu sou é imprudente e atrevido. Mas alguém precisa tentar. E só eu pareço disposto.

Cavalgaram mais um trecho em silêncio. Pensativa ela afinal comentou:

— Eu não tenho ajudado muito, não é?

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— Por Deus, não! — ele respondeu com franqueza. — Tem sido mil vezes mais difícil desde que você...

— Vou procurar aborrecê-lo o menos possível — ela se adiantou. — Isso é uma promessa.

Desde logo tratando de cumprir o prometido, Roberta acompanhou-o aquele dia no mais completo silêncio. Quando interrogada pelos outros, apenas sorria e pronunciava algumas palavras num precário castelhano, o suficiente para deixar claro que não dominava a língua. Rafael, por sua vez, soube insinuar que ela estava ali apenas por ser sua amante.

Mesmo sabendo que era tudo fingimento, ela não pôde conter uma certa satisfação por passar por sua namorada.

Na volta ele quase não lhe dirigiu a palavra, embora tivesse agradecido a discrição com que ela havia se comportado. Quando chegaram à vila, Roberta estava exausta. Seguiu para a casinha que partilhavam sem o mínimo constrangimento.

Lá dentro, na casa arrumada provavelmente por Angelina, ela não escondia o cansaço.

— Você está dormindo em pé, Roberta! E por minha culpa. Acho que devo ajudá-la, não é?

Ela balançou a cabeça, sem entender.

— Levante-se — ele disse, fazendo-a erguer-se da cama. Com naturalidade ele a despiu, deixando-a apenas com a roupa íntima. Incapaz de reagir, Roberta fechou os olhos, dominada por uma sensualidade incontrolável.

— Você é perigosa — ele comentou tenso, percebendo-lhe a reação.

Ao ser recolocada na cama, sob as cobertas, ela esboçou um sinal

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de protesto. Não queria ficar sozinha.

— Ah, não — Rafael ordenou. — Fique aí. Eu preciso trabalhar. De qualquer maneira, não sou Hugh, quem quer que ele seja. E quando eu levá-la para a cama com outras intenções, não será por você sentir falta de outro homem — disse e desapareceu, fechando a porta atrás de si.

Os dias que se seguiram não foram muito diferentes. Às vezes cavalgavam quatro a seis horas antes de chegar ao destino traçado. Pelos contatos que Rafael fazia, ela pôde constatar a verdade de suas palavras. Se por um lado ele era tratado com confiança por quase todos, por outro ficava clara a animosidade entre as diversas facções.

Um dia, no caminho de volta, ela lhe perguntou sobre um guerrilheiro em particular, de quem todos pareciam guardar temor.

— Por que está tocando no nome dele agora?

— Porque é o que todo mundo faz — ela retrucou exasperada. — Como se fosse o próprio demônio ou coisa assim.

— Ele é um sanguinário — Rafael o definiu sem piedade. — Se eu tivesse escolha, o manteria a distância. Mas os líderes dos grupos do norte o temem e não nos darão apoio se não tiverem certeza de que ele participará da aliança.

— Vai encontrá-lo?

— Preciso tentar. — Sorriu. — Já estive no território de Augusto algumas vezes, mas ele sempre tinha acabado de sair. Bem, pelo menos o pessoal dele não me recebeu a tiros, como é seu costume.

— Não faça graça com isso! — ela pediu, nervosa.

Ele se mostrou surpreso.

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— Muito bem, se isso a assusta tanto... Mas, convenhamos, há um lado cômico nisso tudo.

— Não. Não vejo nada cômico nisso tudo.

E a graça ficou ainda menor quando chegaram à vila; um estranho cavalo malhado estava amarrado diante da casa de Angelina.

— Ora, ora! — Rafael deu um assobio. — Parece que Maomé veio até a montanha, afinal.

— Como assim? — Roberta ficou apreensiva.

Ele desceu do cavalo, afastou os negros cabelos da testa e fitou-a com um de seus raros sorrisos abertos.

— Estou dizendo, minha querida Roberta, que você está prestes a conhecer o terrível demônio de Oaxacan.

Dentro da casa de Angelina, ele estacou, sem parar de sorrir. Em volta da mesa, três homens se levantaram.

— Senhores — ele disse, dirigindo-se aos visitantes. — Boa tarde, Miguel. Não esperava vê-lo longe dos seus pacientes hoje. Senhor Borsa, que prazer tornar a vê-lo depois de... quando foi mesmo? Dois dias? — e sua voz seguiu tranqüila. — Meu velho amigo Augusto. Estava esperando por mim?

Augusto era bem moreno e não tão alto quanto Roberta o havia imaginado. No entanto, seu rosto tinha uma expressão tão cruel que a fez estremecer,

— Eu estava — Augusto confirmou. — Estou querendo encontrá-lo há dias, enquanto você ficava passeando com suas roupas importadas pelo meu país.

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Roberta sabia que Rafael estava furioso, contudo ele foi amável ao retrucar.

— Eu também queria vê-lo, meu caro Augusto.

— Sim? — o outro interrogou cético.

— Naturalmente, já que estamos do mesmo lado.

— Eu estou do meu próprio lado — o homem reagiu com uma risada grosseira. — Não preciso de você Madariaga.

— Então por que está aqui? — Com toda a calma, tomou a mão de Roberta e levou-a aos lábios, dando-lhe repetidos beijos distraídos. Ela estremeceu mas se manteve quieta.

— Ouvi dizer que Valetta está querendo conversar — o guerrilheiro foi direto ao assunto. — Isso é verdade?

— É.

— A Força Aérea concorda?

— Duvido que saibam — Rafael retrucou com simplicidade.

O outro explodiu numa gargalhada.

— Se descobrirem vão nos expulsar das montanhas a pontapés!

— Não vão descobrir. E duvido que nos achem aqui nas montanhas.

— Quem é ela? — Augusto indicou Roberta.

Rafael sorriu e passou um braço em torno da cintura dela.

— Você nunca descuidou disso — o guerrilheiro observou com malícia. — Mas por que uma estrangeira? Por que agora? Quem é ela?

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O jovem e decidido Miguel Olivados resolveu intervir.

— Por acaso nós perguntamos sobre as suas mulheres?

O outro deu de ombros, sem se intimidar.

— Acho que está querendo nos trair, Don Rafael — provocou.

— Eu não jogo esse jogo com especialistas — replicou, fazendo o outro fechar o semblante com o insulto. — O que é que você quer, Augusto? Duvido muito que tenha vindo só para especular sobre a minha vida privada.

— Se vai se encontrar com Valetta, tenho o direito de estar junto.

— É possível.

Roberta o observou. Parecia pouco convencido, embora não muito antes lhe tivesse explicado a importância vital da participação daquele guerrilheiro. Mas logo compreendeu que tudo não passava de uma jogada tática.

— Eu vou estar lá, Madariaga — Augusto disparou. — Ou não haverá encontro.

— Vamos pensar nisso. — Rafael olhou para Miguel. — Há outros a serem consultados além de mim, você compreende.

Augusto olhou-o com desprezo.

— Oh, é claro, Rafael Madariaga, o divino democrata. Por acaso fez um referendo antes de levar essa moça para a cama? — provocou. — Bem, recolha seus votos, se quiser. Mas aviso que vou estar lá.

— Estou certo que sim — ele disse com indulgência. — E será muito bem-vindo.

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De repente Augusto se levantou, aproximando-se de Rafael.

— É um homem fraco, Madariaga. Com todos os seus diplomas franceses, aqui você não vale nada. — E fingiu esmagar algo entre os dedos.

Os homens começaram a se servir de bebida, e o clima amenizou um pouco.

— Talvez esteja certo, Augusto — Rafael concedeu. — Não estou acostumado a montar sessenta quilômetros por dia.

— Será que o tirei cedo da cama? — o outro retrucou com um olhar que fez o sangue de Roberta gelar nas veias. Mas Rafael estava impassível.

— Cedo demais — respondeu secamente. Virou-se e falou, antes de sair; — Eu mandarei a resposta de todos através de Borsa. Enquanto isso, vou continuar negociando com Valetta. — Fez uma pausa significativa. — E saberei se tentar nos trair, Augusto. Todos nós saberemos! — concluiu num tom ameaçador. Saiu sem se dignar a dizer adeus, conduzindo Roberta para fora.

A noite estava fria.

— Sinto muito — ele disse, segurando-a com cuidado. — Eu a preveni que isso poderia acontecer. Tive de insinuar que você era minha amante para não pôr em risco a negociação.

— Foi o que pensei. Já estou quase me acostumando a isso.

— Você é uma grande mulher, Roberta. Acho que não preciso alertá-la para representar bem a nossa pequena... farsa.

— Já deu para perceber que é a melhor maneira de garantir a minha segurança — ela concordou serena. — Confie em mim. Se

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perguntada, direi que estou perdidamente apaixonada.

Rafael deu um meio-sorriso.

— Lamento desiludi-la. Mas duvido muito que eles estejam se importando com o que você sente ou não. É bem melhor afirmar que eu estou perdidamente apaixonado.

Seguiram em silêncio até a casa.

Lá dentro, depois de fechar a porta, Roberta ouviu-o xingar em voz baixa.

— O que foi? — quis saber.

— Olhe. Um bom empurrão e essa tranca se desprende.

— É... estou vendo — ela concordou, vendo o único prego que ainda restava. — Mas isso tem importância? Quero dizer, ninguém rouba coisas por aqui...

Ele a olhou com impaciência.

— Importa se queremos ter privacidade, se quero proteger você.

— Acha que alguém pode tentar entrar? — ela perguntou, sentindo um súbito calafrio.

— Augusto pode se sentir tentado a investigar um pouco mais sobre nós dois. Ele não engoliu nossa história com muita convicção. Droga! Não importa, não há muito que ele possa fazer esta noite. — Soltou a tranca e virou-se para ela. — Agora, vá para a cama!

— Você... quero dizer... você pretende ficar aqui?

— Esta noite? É claro.

— Entendo. — Roberta desviou o olhar, furiosa consigo mesma por estar tão embaraçada. — Bem... então eu vou me deitar. — disse, procurando parecer tranquila.

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— Faça isso. Ainda preciso trabalhar, mas tentarei não incomodá-la. — E se virou, com a mente já em outros assuntos — Boa noite!

Despiu-se o mais depressa possível, ocultando-se por trás da arca. O cuidado porém foi desnecessário. Rafael, absorto nos papéis sobre a mesa, nem sequer notou quando ela deslizou para baixo das cobertas.

Deitada de lado, com a cabeça sobre o travesseiro, Roberta ficou observando o bonito perfil de Rafael até que suas pálpebras não suportassem mais permanecer abertas. Adormeceu sonhando com um Rafael Madariaga terno e carinhoso como ele jamais havia se revelado.

Ele, por sua vez, esqueceu-se do trabalho e parou para vê-la dormindo. Não resistiu: levantou-se e foi até a cama para admirá-la mais de perto. Só então, com a expressão tranquila e serena, voltou para estudar seus mapas sobre a mesa.

Ela tinha o sono perturbado por sonhos estranhos, agitados. No meio da escuridão do pesadelo, ouvia a voz de Rafael chamando-a.

— Psiu! Pelo amor de Deus, sossegue, querida.

Roberta finalmente despertou. A cabana estava mergulhada na escuridão. Rafael, deitado na cama, se apoiava sobre o cotovelo com o rosto voltado para a janela. Ouvia em silêncio.

— O que foi? — ela sussurrou preocupada.

— Não estou certo, mas acho que há alguém aí fora. Que estúpido eu fui; não devia ter trabalhado até tão tarde com a luz acesa depois de afirmar que mal podia esperar para fazer amor com você — bufou irritado consigo mesmo. — Mas nunca imaginei que Augusto fosse tentar alguma coisa ainda esta noite.

— Acha que ele está lá fora? Mesmo que seja ele, está escuro, e não pode nos ver.

— Mas pode ouvir.

Foi então que Roberta teve uma ideia.

— Pois acho que ele devia nos ouvir — disse baixinho. — Nós poderíamos simular uma briga.

— Você está louca? Uma briga levantaria as suspeitas que justamente estou tentando evitar. A não ser que... fingíssemos estar fazendo amor — ele propôs meio sério, meio brincando, e Roberta estremeceu.

— E... e como fingiremos isso? Gemendo, sussurrando... Isto é...

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Antes que pudesse terminar, viu-se envolta num beijo sôfrego. Quando seus lábios se apartaram, ele disse, ofegante:

— Minha imaginação já está me levando à loucura, Roberta. Você não precisa me dizer como seria fazer amor com você, mulher. — Tomou-lhe os lábios para um novo beijo, e Roberta, entre surpresa e excitada, foi cedendo ao contato ardente. Abraçou-o e não foram mais necessárias as palavras. A preocupação de estarem sendo espionados desvaneceu ante o apelo irresistível do desejo.

As mãos se procuraram, despindo-se, acariciando-se... Rafael não suportava mais manter a postura fria e distante junto daquela mulher de pele macia, pele que seus lábios se deliciavam em sentir o sabor. Roberta era doce e fogosa e correspondia às carícias dele com intensidade, deixando-se completamente à mercê dos instintos. Rafael queria unir-se a ela, e esse desejo se tornava cada vez mais premente.

Roberta beijou-lhe o peito e procurou novamente os lábios de Rafael, enquanto moldava seu corpo ao dele, pedindo e provocado, guiada apenas pela vontade de partilhar aquela intimidade com Rafael. Não se sentia ali com seu captor; estava ao lado do homem que aprendera a desejar com desespero.

O prazer crescente foi dominando-os até que satisfizessem plenamente seus corpos. Exaustos, adormeceram nos braços um do outro.

CAPÍTULO VII

Quando amanheceu, Rafael não estava mais lá. Não havia nem sequer um bilhete informando onde ele estaria ou quando iria voltar.

Roberta zanzou a esmo pela pequena casa em busca de algo, de um sinal qualquer que confirmasse que naquela noite eles haviam feito amor, que se importavam um com o outro. Por fim, desistiu. Resolveu arrumar o único cômodo, e não demorou para concluir que Rafael, em sua breve visita, não havia desarrumado muita coisa... a não ser a vida dela.

Mas não! Uma noite de entrega não tornava ninguém escravo fiel do outro. A

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própria ausência dele agora provava a fugacidade daqueles momentos. Ela fez um muxoxo. Não ia pensar no assunto. Tinha muita prática em controlar as emoções. Aprendera a perdoar seus tios pela fria indiferença com que a tinham criado. Mesmo Hugh ela havia perdoado, e com certa surpresa descobriu que nem sequer se lembrava direito de seu rosto.

Agora usaria as mesmas técnicas. Ignoraria Rafael, afastando-o de sua mente. Trabalharia até não poder pensar em mais nada. E não se daria ao luxo de se desmanchar em lágrimas enquanto não estivesse longe dali e em segurança no seu próprio país, em sua própria casa.

Assim resolvida, saiu para o sol da manhã, à procura de ocupação. Decidiu ir até um campo mais ao norte, que ainda não tinha visitado. Tirou do bolso da calça um bloquinho de anotação que vinha usando fazia algum tempo e escreveu a data e a hora aproximada do início de sua expedição. Feito isso, seguiu adiante.

Levou hora e meia para fazer um percurso que qualquer montanhês acostumado com a altitude não levaria mais do que quarenta ou cinqüenta minutos. No caminho cruzou com várias pessoas conhecidas, mas não viu ninguém trabalhando nos campos mais afastados. Pôs-se a tomar medidas rudimentares e a desenhar um mapa topográfico daquele trecho.

Estava completamente absorvida pelo trabalho quando ouviu uma voz masculina não muito distante. Por um momento retesou-se, mas, ao verificar que não era Rafael, quem se aproximava, relaxou.

Miguel Olivados vinha a passos firmes mas sem pressa. Sua expressão amigável terminou de tranqüilizá-la.

— Angelina me contou que estava aqui — ele disse sorrindo. — Disse que você ia fazer a colheita aumentar. O que está fazendo? É uma feiticeira?

Divertida, Roberta deu uma risada.

— Antes fosse! Observações levam muito mais tempo do que encantamentos.

— Ah, entendo... você é uma profissional. — Analisou-a com o olhar.

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— Faz tempo que trabalha com isso?

Roberta ficou satisfeita ao ver que o homem aceitava com naturalidade o fato de ela ser agrônoma, o que não acontecia com as demais pessoas que conhecera ali.

— Desde que deixei a universidade — explicou, sentando-se numa pedra. — Mais tempo, até, se levarmos em consideração o meu estágio.

— É mesmo? — Sentou-se junto dela, pensativo por alguns segundos. — E o que acha da terra aqui?

— Bem, minhas observações são muito empíricas. Sem o meu equipamento não há muito que eu possa dizer da qualidade do solo. Mas, baseando-me em observações da geografia, eu diria que não existia nenhum problema de drenagem antes de construírem aquele sistema de canais ao leste, que dá para ver daqui.

Miguel se mostrou interessado.

— Acha mesmo? Foi considerado um grande progresso, na época.

— Veja bem, sem meu equipamento não posso afirmar nada. Preciso de mais tempo, mais ferramentas. E — acrescentou melancólica — mais liberdade.

Ao contrário do que ela podia esperar, ele se mostrou divertido.

— É, eu ouvi falar que Rafael não gosta de perdê-la de vista.

Apesar da decepção de despertar sozinha na cama, ela julgou prudente seguir os conselhos de Rafael e não desmentir que eram amantes. Por isso, por precaução, mudou de assunto, e acabaram descendo de volta para a vila numa animada conversa sobre assuntos corriqueiros e seguros.

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Lá, ela avistou Rafael cercado de outras pessoas, ora ouvindo com atenção, ora distribuindo ordens e instruções. Acreditando-se uma intrusa, Roberta tratou de manter a devida distância.

Ao anoitecer, após o jantar na casa de Angelina, ela se retirou e foi direto para a cama. Pouco depois Rafael chegava.

— Então quer dizer que não conseguiu dormir antes de eu chegar? — ele comentou com malícia.

Ela se sentou na cama indignada.

— Eu só deixei a casa de Angelina há uns cinco minutos. Não posso adormecer assim que encosto a cabeça no travesseiro!

— Se bem que estou certo de que tentou — ele replicou.

— O que você quer dizer com isso?

Ele fez um gesto de pouco caso.

— Você passou o dia pulando de um lado para o outro, me evitando como se eu tivesse uma doença contagiosa. Mostrou que é muito eficiente em ficar fora do caminho. — Terminou de entrar e fechou a porta atrás de si com força. — Aliás, fiquei com a impressão de que tem um bocado de prática em se esquivar.

Ela enfrentou seu olhar.

— Prática no quê?

— Em manter um amante indesejável a uma distância segura.

Roberta não pôde enfrentar o olhar dele por mais tempo.

Rafael estava furioso, embora ela não soubesse por que motivo. Baixou os olhos.

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— Não sei o que está insinuando.

— Não mesmo? — ele deu uma gargalhada seca e avançou, prendendo-lhe o queixo entre os dedos e forçando-a a encará-lo.

— Não mesmo, é? Bem, deixe-me explicar. Acho-a uma mulher muito bonita e desejável. Mas acontece que você também tem uma divertida carreira, está sempre viajando pelo mundo, e um amante seria um transtorno. Por isso, eventualmente dormir com um homem que a atraia, tudo bem. Desde que depois ele não exija mais do que um cumprimento amigável na rua.

Ela empalideceu. Então era por isso que ele estava tão furioso, porque ela não tinha demonstrado afeto em público naquele dia. Foi acometida de uma mágoa profunda.

Aterrorizada ante a possibilidade de Rafael descobrir os sentimentos que nutria por ele, Roberta optou pela ofensiva:

— Você não tem direito sobre mim!

— Foi o que deixou claro hoje — ele rebateu com desprezo.

— Você não me tratou como uma amiga. Como ousa esperar um cumprimento amigável na rua?

Ele apertou os ombros dela, ainda mais zangado.

— Ontem à noite eu fui seu amante — disse entre dentes.

Ela sacudiu a cabeça, jogando o cabelo para trás.

— Não, não foi. É preciso mais do que uma noite para tornar duas pessoas amantes.

Já era tarde demais quando ela percebeu a armadilha que preparara para si mesma.

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— Nisso você tem razão...

— Oh, Deus, não!

Até certo ponto ele forçou a situação, mas não foi por muito tempo. Usando de todo seu poder de sedução, Rafael foi aos poucos ganhando terreno, provocando-a, excitando-a, induzindo-a a se entregar. Mais uma vez fizeram amor. Roberta, por pior que se sentisse em sua vulnerabilidade, sabia que era capaz de resistir a ele, mas não aos próprios desejos.

A partir desse dia o relacionamento entre eles mudou. Todas as noites, quando Rafael voltava de suas viagens, entregavam-se à paixão, passando horas se amando. Nesses momentos, Roberta deixava de lado suas contradições e ressentimentos.

As manhãs é que eram terríveis. Quando despertava sozinha e depois partia sempre escoltada para examinar as colheitas, chegava a odiá-lo e a desprezar a si mesma.

Acostumada a despertar sempre sozinha, certa manhã teve uma surpresa. Ele a chamou, acordando-a.

— Hoje você terá de me acompanhar — ele informou. — Nós vamos à sede do território de Augusto. — Vendo que ela o fitava completamente confusa, acrescentou com impaciência:

— Não precisa me olhar desse jeito. Miguel também irá. Assim você pode contar com alguém para conversar.

Roberta apressou-se em se arrumar. Minutos depois partiam numa cansativa jornada de três horas por um caminho íngreme e difícil.

Ao final da terceira hora a trilha foi se alargando e ficando mais regular; estavam entrando numa pequena cidade. Miguel estreitou os olhos.

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— Tem gente demais aqui. Será que Augusto nos traiu?

— Augusto está do outro lado da montanha, onde pensa que estou numa reunião secreta com o presidente Valetta — Rafael disse satisfeito.

— Oh... — Miguel ergueu-se nos estribos, estudando a rua que se abria à frente. — Mesmo assim, ainda tem gente demais por aqui.

— E por que não? Hoje é dia do casamento de Conchita Lebecque.

O outro soltou uma exclamação e voltou a sentar-se na sela, olhando Rafael com respeito.

— Você planejou isso — comentou com visível admiração.

— Vamos apenas dizer que achei que era hora de Roberta assistir a uma de nossas festas típicas.

— Naturalmente — Miguel retrucou seco. — E é claro que o velho Lebecque ficou feliz em convidá-lo, sendo vocês dois advogados.

— Isso mesmo.

Roberta não tardou a compreender que sua primeira impressão, a de que estava mais uma vez chegando a uma simples vila, estava equivocada. Seguindo pela rua, chegaram a uma grande praça, muito bonita e arborizada. E embora as ruas ainda fossem de terra e cascalho, podiam-se ver carros, além de cavalos e jumentos. Passavam despercebidos pelas pessoas.

— Onde estamos indo? A casa da noiva? — Miguel quis saber.

Rafael balançou a cabeça.

— Não. Vamos até a hospedaria. Lebecque me prometeu que sua esposa nos arranjaria roupas apropriadas para as festividades. Não

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devemos destoar dos convidados.

— Está tentando passar despercebido? — o outro deu uma gargalhada. — Você, que tem o rosto mais conhecido do país, tirando um ou dois militares!

— Não exagere — Rafael o censurou, aborrecido.

— Não estou exagerando. E você sabe disso. Não devia ficar se exibindo para fotógrafos de jornais acompanhado de estrelas internacionais — Miguel insistiu.

— Está sendo ridículo!

Mas seu companheiro não se impressionou com aquela explosão de raiva. Continuou rindo e provocando-o, chamando-o de sensível e melindroso.

Roberta julgou ser boa política não se envolver. Tão logo chegaram à pequena hospedaria, pediu para ir ao quarto que lhe havia sido reservado. Lá, encontrou sobre a cama uma linda saia negra com bordados em linha dourada e prateada, uma blusa de mangas compridas e um casaco negro. Estava contemplando as peças quando ouviu uma voz às suas costas.

— Isso é para você vestir.

Ela se voltou para dar com um Rafael usando calças pretas, camisa de mangas compridas toda bordada, de barba feita e cabelos arrumados. Estava tão bonito que ela não soube o que dizer.

— Essa é a roupa típica para os convidados — ele explicou com ar divertido.

Roberta se espantou. Já não acreditava mais ser possível que ele a tratasse com bom humor. Há tantos dias vinha se portando com frieza e

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modos contidos! Antes que pudesse evitar, lágrimas brotaram em seus olhos.

— Não há por que chorar — ele disse, adiantando-se e secando uma lágrima com a mão.

Ela ergueu os olhos úmidos.

— Mas eu estou aqui sob um falso pretexto.

— Você é minha dama, e tem todo o direito de estar aqui.

— Não se eles soubessem a verdade a meu respeito.

Ele a encarou com olhos brilhantes.

— Acho que eles sabem a verdade melhor do que você — disse enigmático. — Agora vista-se. Prometo que vai se divertir.

Para sua surpresa, a promessa dele se cumpriu. Rafael não a deixou sozinha um minuto, e o casamento revelou-se uma cerimônia bonita e tocante, com uma festa a céu aberto depois. Com tanto movimento, Roberta esqueceu-se de seus problemas.

Depois de dançar várias vezes, com ele e com Miguel, e de ter bebido alguns coquetéis de frutas tropicais, ela criou coragem para perguntar a Rafael o motivo de sua frieza nos últimos dias, que contrastava com o entusiasmo de agora.

— Oh, eu gosto de casamentos. E quis que você visse como são divertidos, também.

Lembrando-se das palavras de Marta, de que ele deveria se casar quando a campanha estivesse encerrada, não resistiu em arriscar um comentário.

— Ouvi dizer que vai se casar logo, logo — disse casualmente.

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— Isso depende da mulher — ele respondeu com um sorriso forçado.

— E não é sempre assim?

— Nem sempre, eu diria. Não foi por causa das possíveis noivas que me apareceram que eu nunca me casei.

— Não? Então é solteiro por convicção?

Ele riu.

— Talvez...

— Então, por que mudou de idéia?

— Por causa de uma mulher que apareceu. O que mais?

— Claro. O que mais? — E já era difícil para ela sustentar o sorriso.

— Um olhar e eu estava perdido. — Sorriu afetuoso. — A gente vive ouvindo falar de amor à primeira vista, sem acreditar que possa acontecer. E então... eis que somos pegos de surpresa.

Roberta sentiu um nó na garganta.

— Meus parabéns — conseguiu dizer.

Ele se aproximou, terno e amigável. Ela não o queria assim. Não quando estava lhe dizendo o quanto amava outra mulher. Num gesto involuntário, repudiou-o. Só percebeu o que tinha feito quando viu morrer o sorriso nos lábios dele.

— Não acredita no amor? — ele perguntou entre desinteressado e divertido.

Roberta fez uma careta.

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— Nunca esteve apaixonada, Roberta? — ele insistiu com suavidade.

Como ele ousava perguntar uma coisa dessas? Será que era totalmente cego?

— Defina o que entende por isso — disse com esforço.

Por um instante ele pareceu se zangar, mas então riu.

— Você não é muito romântica, é? Um homem poderia se arrebentar tentando persuadi-la a amá-lo.

Ela engoliu em seco.

— Isso depende do que você entende por “amor”.

— Oh! — ele pensou um pouco. — Por exemplo, querer ver a pessoa amada feliz, talvez. Querer fazê-la feliz. Querer o seu bem antes do próprio bem-estar, porque se o ser amado sofre, então sofremos mais ainda com isso. — Fez uma pausa. — Isso faz sentido para você?

— Sim — ela respondeu trêmula.

Seguiu-se uma longa pausa. Então ele perguntou devagar:

— Foi isso o que sentiu por esse tal... Hugh?

Ela deu um pulo.

— Quê?

— Foi esse o nome que você pronunciou um dia, quando eu te acordei. Hugh. Ele é seu amante?

— Eu não tenho amante.

— E esse Hugh?

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— Isso foi há dez anos, quando eu era uma jovem sonhadora que acreditava em todas essas coisas que você disse há pouco. Ele não acreditava tanto assim.

Por algum tempo ele a estudou, calado.

— Ele a magoou muito?

— Sim — ela admitiu. — Mas já passou. De qualquer modo, foi um aprendizado útil.

— Aprendizado para o quê? Quem o substituiu depois?

Roberta queria lhe dizer que aquilo tudo não era de sua conta. Mas não conseguia mudar o rumo da conversa.

— Ninguém — respondeu lacônica.

— O quê? — ele disse quase num sussurro, parecendo chocado.

— Não houve ninguém depois de Hugh.

— Em dez anos não teve nenhum homem perto de você?

— Não vejo nada demais. Sempre fui uma solitária. Nunca houve nenhuma pessoa antes de Hugh de quem eu me sentisse próxima. Nem na minha família nem no meu círculo de relações. Quando descobri que Hugh não passara de uma ilusão, concluí que não era feita para a... intimidade. — Deu um suspiro. — Algumas pessoas não são, eu acho. Eu tenho amigos, bons amigos; mas não sou a pessoa mais importante do mundo para ninguém, e é assim que quero. Pode entender isso?

— Sim, acho que posso — ele disse compreensivo. — Houve uma época em que eu mesmo me sentia assim. Minha família me pressionava demais... Mas eu sei o que é ser solto no mundo, responsável apenas por si é por mais ninguém.

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Ela suspirou.

— É...

— Só que isso não me fazia feliz — ele prosseguiu. Olhou-a com curiosidade. — Você é feliz?

Roberta estava tensa e tentou se acalmar. Afinal, por que se sentia tão ansiosa?

— Bem, obviamente não no momento. Acho que ninguém adora ser seqüestrado — arriscou uma brincadeira, que, no entanto, pareceu magoá-lo profundamente. Então acrescentou:

— Em geral, acho que sou razoavelmente feliz — concluiu, enquanto ele recuperava sua expressão divertida, mexendo distraído num copo em cima da mesa.

A conversa foi interrompida com a chegada da noiva para os cumprimentos. A todos ela agradecia exultante, mas, quando chegou a vez de Rafael, a moça baixou os olhos tímida e corada. Seu pai se mostrou muito grato.

— Don Rafael, estamos honrados, muito honrados. Permita- me apresentar-lhe meu genro.

Os homens se cumprimentaram, e vários flashes explodiram registrando o momento.

— Sinto muito, meu amigo — Rafael desculpou-se. — Parece que eu trouxe os jornais comigo.

O senhor Lebecque fez um gesto amplo.

— Não importa. Quando ouviram falar que estaria aqui para o casamento da minha Conchita, vieram correndo — sorriu satisfeito. —

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Pelo menos terei fotógrafos profissionais por aqui sem precisar pagar!

Rafael riu.

— Que grande consolo!

O pai da noiva estava radiante.

— Pensa que estou brincando? É uma sorte ter apenas uma filha. Sabe quanto está custando um casamento? — e riu com prazer. — Se bem que andam dizendo que vai descobrir esse custo daqui a não muito tempo!

Rafael se manteve calmo.

— Sim, tenho muitas irmãs ainda solteiras — disse bem-humorado. — Mas me fez lembrar que ainda não apresentei uma pessoa. Roberta, este é Paul Lebecque, um estrangeiro como você por muitos anos, se bem que a partir de agora creio que já possa ser considerado um nativo. Paul, minha companheira Roberta Lennox, de Nova York.

— Um grande privilégio — o velho advogado disse com formalidades, acrescentando num tom mais descontraído: — Vejo que não mentiram quando disseram que seus olhos eram da cor do céu da manhã.

Ela se sentiu pouco à vontade, tanto por não estar acostumada a receber elogios tão floreados quanto por não ter idéia de quem havia falado a seu respeito àquele estranho. Talvez o comentário tivesse partido de Miguel.

— Obrigada — disse um tanto constrangida.

— É muito bem-vinda, Señorita. Espero que seja feliz entre nós — Paul Lebecque lhe disse com uma discreta reverência.

Antes que ela pudesse responder, todo o grupo se deslocou para

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outra mesa. Depois de ficar alguns instantes vendo-os se afastarem, voltou-se para Rafael.

— Ele falou como se eu fosse ficar em Oaxacan para sempre. Você me disse a verdade? — perguntou ansiosa. — Há alguma coisa que eu não sei?

— Sim — ele respondeu. — E sim para a segunda pergunta também.

— Como assim? — perguntou nervosa.

— Pense no assunto — aconselhou.

Ela estremeceu.

— Eu não sei que destino pretende me dar.

— Não — ele concordou pensativo. — Mas esta noite vai ser bem mais formal do que você está habituada a ver em nosso país.

— Esta noite? Mais festas de casamento?

— Não, muito mais enfadonho. Haverá o ritual que acontece todos os anos e que consiste no encontro dos homens de negócios do campo e da cidade com um convidado especial. Esta noite será com o ministro das Finanças.

— E você?

— E nós — corrigiu-a.

— E Augusto?

Rafael se espantou e então riu.

— Não. Augusto domina o crime organizado desta cidade. Ele toma sua parte, mexe seus pauzinhos nos bastidores, mas não é convidado para

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se reunir com o ministro das Finanças. Nem gostaria de ser. Ele me vê como um rival, e há semanas mandou tirar o meu nome da lista de convidados. Acontece que alguns comerciantes resolveram tentar uma jogada nas costas de Augusto, e, quando ele descobrir, será tarde demais. Pelo menos é o que eu espero.

Seguiu-se uma pausa em que ela ficou pensativa. Então disse;

— As coisas estão se aproximando de um desfecho, não é?

Ele não respondeu.

— Você já tem o seu encontro secreto com o presidente arranjado, não? E então vai tomar conta do país com seus aliados.

— Não. — ele negou, balançando a cabeça. — Não. É preciso realizar eleições gerais. O governo de transição não deverá durar mais do que seis semanas.

Roberta se calou por um momento, juntando aquelas informações.

— Esta será uma noite muito importante, não é? — disse por fim.

— Sim, e de várias maneiras. E você será importante também. Deve compreender que está aqui como minha... companheira oficial. Posso confiar em você para que não me decepcione?

Ela ficou imaginando por um momento se suportaria passar uma noite bancando sua amante. Poderia fazê-lo? Agüentaria a dor? Bem, ele esperava por uma resposta, e só uma era possível.

— Me esforçarei ao máximo para não embaraçá-lo. Prometo não começar a cantar em voz alta depois da segunda taça de champanha.

Ele riu e pôs a mão sobre a dela.

— Obrigado... embora seja uma pena. Acho que vou ter de esperar

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por uma outra oportunidade para ouvi-la cantar. Mas esse momento chegará, prometo. E com champanha.

Aquela noite trouxe novas surpresas para Roberta. Mais tarde foram levadas outras roupas de gala para ela e para Rafael.

Enquanto se olhava no espelho do seu quarto, na hospedaria, admirando o incrível vestido de seda negra, com detalhes, em verde-esmeralda, Rafael entrou sem fazer ruído. Observou-a sem pressa. Então, satisfeito, causou-lhe um sobressalto quando falou:

— Sim — disse pensativo. — Brincos. Eu devia ter pensado nisso.

Ela se virou, assustada. Viu que ele abria uma pequena caixa recoberta de veludo azul e com fecho dourado. Dali ele retirou um cintilante colar de diamantes, com o detalhe principal imitando uma rosa, cravejada de rubis.

— As jóias da família — murmurou enquanto colocava o colar no pescoço de Roberta. — Bem, ao menos umas delas — ele se corrigiu.

Ela teve o impulso de recusar, com medo de tanta responsabilidade.

— Não, não tire. Estarão contando com isso — ele disse.

Só mais tarde, quando o acompanhou à mesa principal e rodeada de fotógrafos e atenções foi que compreendeu o quanto aquela ocasião era importante.

Rafael foi tratado como a grande personalidade da noite. Seu discurso, embora curto, foi o mais concorrido. Foi perseguido pelos repórteres, e todos os homens disputavam a chance de trocar algumas opiniões com ele. Roberta, por sua vez, foi tratada como uma rainha; as mulheres lhe demonstravam muita simpatia. Os homens a olhavam com deferência. E Rafael dava a impressão de não poder ficar um minuto sem tê-la a seu lado. Ao mesmo tempo que isso a agradava, deixava-a também

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bastante ansiosa. O que significaria aquela representação toda? O que significava para Rafael, afinal? Confusa, sentiu a necessidade de pensar, refletir sobre seu estranho relacionamento com ele. Assim, quando chegaram ao saguão da hospedaria, pediu:

— Por favor, Rafael, deixe-me ficar sozinha esta noite. Eu... preciso pensar.

— Pensar? — ele repetiu divertido, mas logo reassumiu um ar grave. — Tem certeza de que é isso o que quer?

Ela assentiu com um gesto. Então ele tomou-lhe a face entre as mãos e beijou-lhe a testa com ternura. Depois, sem dizer mais nada, virou-se e foi para o outro quarto.

Na manhã seguinte ela foi mandada de volta para a vila em companhia de Miguel. Rafael só retornou duas noites depois, e veio taciturno e preocupado, a ponto de se tornar áspero às vezes. Com o passar dos dias instalou-se a mesma rotina de antes, rompendo o encantamento de uma noite de sonhos.

Por fim, numa manhã, em vez de levantar-se mais cedo e desaparecer para só retornar à noite, Rafael tratou de despertá-la.

— Eu vou ensinar as mulheres da vila a usar um revólver — disse a Roberta, ainda sonolenta. — Vista-se para que possamos ir.

Sem nem um pouco da inibição de outros tempos, ela saiu de debaixo das cobertas, revelando seu corpo nu.

— Revólver? — ela repetiu assustada.

— Talvez venha a ser preciso. Você dormiu demais. Esteja lá fora em dez minutos. Ou, então... — acrescentou com malícia — virei te buscar esteja ou não vestida. — E saiu antes que ela pudesse dizer qualquer coisa.

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Lá fora, ela ainda bocejava sob o sol. Rafael e Marta se preparavam para começar as explicações sobre o manejo de um revólver. Ao vê-la, Marta acenou com simpatia. Ele não se dignou a cumprimentá-la.

Depois das instruções teóricas, as mulheres da vila foram, uma a uma, experimentando atirar contra um alvo fixo. Roberta observou com certa indiferença a seqüência de tentativas mais ou menos bem-sucedidas. Então, num dado momento, Rafael foi em sua direção.

— É a sua vez — disse. — Me dê a sua mão.

Após uma breve hesitação, ela obedeceu. A arma pesou entre seus dedos. A sensação era desagradável, e causou-lhe mal-estar. Com uma expressão involuntária de desgosto, protestou.

— Não posso! — Tentou devolver a arma.

— Pelo amor de Deus — ele replicou com impaciência. — Não seja tão sensível.

— Não posso.

— Não seja estúpida! A nação inteira está mobilizada. Você tem de estar preparada para defender os outros e a si mesma.

Mas Roberta não se sentia em condições de ser razoável. Imagens de pessoas feridas lhe vieram à mente. Num terror que ia aumentando, viu o próprio Rafael levando um tiro, a bala rasgando sua carne, o sangue jorrando... Quase histérica, jogou o revólver no chão.

— Sua cretina! Não vê que isso pode, disparar? Nem verificou se estava carregada!

Aí começou uma discussão em que ele, cada vez mais irritado, a mandava pegar a arma de volta. Roberta recusava-se, obstinada. Sentia-se mal.

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— Não vou pegar! — gritou. — Não vou atirar em ninguém! Isso me répugna! — Encarou-o, já dominada pelo terror. — Você me répugna!

O que se seguiu foi um zumbido estranho dentro da cabeça, o mal-estar aumentou, tudo começou a rodar e Roberta mergulhou na escuridão.

Foi voltando à consciência aos poucos. Estava numa cama, não na que dormia todas as noites, com Angelina e Rafael a seu lado.

— Você está bem? — ele perguntou numa voz que parecia vir de longe. — Você se sente... doente?

Ela passou a mão pela cabeça, ainda zonza.

— Eu me sinto... estranha — disse com dificuldade.

Ele aguardou um momento e anunciou:

— Quanto ao revólver, esqueça. Não é importante.

Roberta o encarou incrédula. Se não era importante, por que criara tanto caso? Só para subjugá-la? Magoada, vendo que ele se inclinava para tocá-la, encolheu-se.

— Deve ficar aqui com Angelina — ele determinou. — Até se sentir recuperada.

Ela não fez nenhuma objeção. A tontura não havia passado de todo, e só o que lhe ocorria era que a altitude a havia pegado de surpresa mais uma vez.

— Quer alguma coisa? — Rafael perguntou.

“Minha liberdade”, ela pensou, sabendo, porém, que aquele já não era mais seu único anseio. Desejava outras coisas, agora. Mas precisava de um pouco de descanso. Suspirou.

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— Só quero ficar um pouco sozinha.

CAPÍTULO VIII

Roberta dormiu quase todo o resto da manhã. Uma ou duas vezes abriu os olhos, mas só acordou mesmo com a voz de Angelina oferecendo-lhe uma caneca fumegante.

— Vai se sentir melhor com uma bebida quente — a mulher disse.

— O que é? — começou a beber sem esperar pela resposta. — É bom — exclamou depois dos primeiros goles. — É este o remédio tradicional para problemas de altitude?

— É sim. — Angelina sorriu. — É usado para vários fins. É um fortificante.

— É mesmo! Já estou me sentindo bem melhor.

— Acha que pode ficar de pé?

— Ah, claro! — E levantou-se da cama para provar o que dizia. — Pronta para reiniciar minhas observações nos campos de cultivo.

A outra reagiu com espanto.

— Você ainda não está em condições de sair andando pelos campos — objetou num tom de lição decorada. E para confirmar essa impressão, concluiu: — Don Rafael disse isso.

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Roberta franziu a testa.

— E Don Rafael é algum entendido em mal-estar causado por altitude?

Por um instante a outra hesitou. Então deu de ombros.

— Nessa situação, não acha que ele tem o direito de aconselhá-la?

— O direito de ficar mandando em mim, você quer dizer — Roberta replicou descontente. Todos ali eram assim; a palavra de Rafael era como uma lei divina, não importava se ele estava sendo absurdo ou não. Não havia nenhuma esperança de poder desobedecê-lo. — Mas de que adianta? Não há nada que eu possa fazer...

Angelina se condoeu.

— Acredite-me, é melhor ficar aqui conosco. Dizem que Augusto está rondando por aqui, apesar de ele ter anunciado que iria para o sul. Ele não confia em Don Rafael, eu acho.

— Está bem, você me convenceu — Roberta admitiu, lembrando-se da terrível figura de Augusto. — Mas o que é que vou fazer para passar o tempo, então?

— Oh, vamos até a casa da minha cunhada — a outra sugeriu satisfeita. — Lá eu e ela vamos ensiná-la a tecer.

Não muito depois as duas chegavam a uma outra casa ali perto. A acolhida foi calorosa, e não tardou para que Roberta ficasse totalmente absorvida pela tarefa de fiar a lã e tecê-la. Trabalharam no interior da casinha nas horas mais quentes, e, quando refrescou um pouco, decidiram continuar ao ar livre. Ao anoitecer, recolheram o material e encerraram o trabalho.

Mais tarde, na hora do jantar, Roberta se surpreendeu ao verificar

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que Rafael não estava sentado à mesa hospitaleira de Angelina. Quis perguntar o motivo de sua ausência, mas era óbvio que todos ali tinham plena certeza de que ela sabia muito mais do que eles sobre tudo que se referia ao seu maravilhoso Don Rafael.

Mas ele surgiu antes que a refeição terminasse, requisitando sem palavras o seu lugar ao lado dela.

Com todos à mesa falando alto e ao mesmo tempo, Roberta não resistiu à curiosidade e resolveu perguntar em inglês:

— Em que pé estão as lutas? Acabaram?

Ele fitou o prato de comida e respondeu em voz baixa, embora mais ninguém ali soubesse inglês.

— Logo vai acabar. De um jeito ou de outro.

— Quando?

Ele a olhou de soslaio, insatisfeito.

— Está tão ansiosa assim para ir embora?

— Naturalmente — ela respondeu, embora em seu íntimo soubesse que temia o momento de deixá-lo.

— É... suponho que sim. Bem, quanto ao tempo que falta, creio que, se tivermos sorte, esta semana tudo se resolve. Já estamos negociando. O problema é que, do lado dos militares, a Força Aérea ainda resiste. E do nosso, os guerrilheiros de Augusto e alguns grupos de direita. A sede pelo poder acabará levando alguém a tentar um golpe de surpresa. — Deu um meio-sorriso. — Isso sem mencionar o descuido de Pepe. A Força Aérea identificou o caminhão com o radiotransmissor. Só espero que Pepe tenha juízo suficiente para se manter longe da estrada e parar de transmitir. Seria muito perigoso se ele fosse a uma vila onde a Força

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Aérea pudesse localizá-lo.

— Por quê?

— Bem, aqueles aviões não servem apenas para enfeitar os aeroportos militares, sabia? Eles carregam armas e bombas. Poderiam arrasar a vila se descobrissem o caminhão ali. E pode estar certa de que o fariam sem hesitar.

— Entendo — ela disse, percebendo o perigo da situação.

— Imaginei que entenderia. Especialmente depois de sua reação ante armas de fogo.

Ela assumiu uma atitude fria.

— Bem, me desculpe por aquilo.

— Está desculpada. — Encarou-a com um ar enigmático. — Está esperando que eu também me desculpe?

— Acho que eu mereço um pedido de desculpa.

— Por que é que você está sempre me enfrentando? — ele disparou, após uma pausa. — Por que é que tem sempre de me desafiar, Roberta?

No meio da balbúrdia, um silêncio mortal se estabeleceu entre os dois.

— Você sabe por quê — ela respondeu afinal.

— Sei mesmo? Às vezes fico em dúvida.

— Ninguém gosta de ser seqüestrado. E encarcerado. E tiranizado. E... e manipulado — concluiu apressada.

Rafael riu com gosto.

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— Mas que falta de romantismo!

Eles resolveram parar de falar em inglês e trataram de terminar de comer, trocando um ou outro comentário com as outras pessoas.

Mal haviam entrado na própria casa, Rafael foi cercando-a.

— Ninguém gosta de ser o quê? — ele murmurou.

E pela primeira vez, em vários dias, ela tentou escapar.

— Deixe-me em paz — disse, procurando fugir do cerco.

— Nem em um milhão de anos! — retrucou rindo e aplicando-lhe seguidos beijos. — Não, até você me convencer de que... não se importa nem um pouco... comigo — e foi beijando-a cada vez com maior ardor.

Ela desistiu. De que adiantava? Podia tentar enfrentá-lo, mas seu próprio corpo já parecia empenhado em não magoá-la, demonstrando uma preocupação que Roberta nunca notara antes.

Os dias se passaram e ela ainda se sentia fraca. Crises de tonturas às vezes a atacavam. Mesmo contando com a permissão de Rafael, não se sentia com forças para perambular pelos campos afastados da vila. Muitas vezes ele a interrogava sobre seu estado de saúde, e ela sempre respondia afirmando estar melhor.

Rafael andava muito ocupado. Muitas vezes desaparecia durante horas. Chegou a passar duas noites fora, voltando só ao amanhecer, com uma expressão cansada e a barba por fazer.

Mas nunca contava o que estava se passando.

A vila também começou a ficar mais movimentada, com gente chegando e partindo a qualquer hora do dia ou da noite. Roberta achou por bem dedicar-se às suas lições de tecelagem e manter-se longe de

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toda a agitação.

E foi num dia de sol claro, quando tecia ao ar livre, que Miguel Olivados surgiu, brincando:

— Você está ficando cada vez mais prendada.

Ela ergueu os olhos, rindo.

— Você sabia que em Nova York tem gente que pagaria uma fortuna para aprender o que eu estou aprendendo de graça?

— Posso imaginar. E você, é boa aluna?

— Dizem que tenho um talento natural — declarou orgulhosa. — Quando eu voltar, vou poder matar os meus amigos de inveja com minhas próprias tapeçarias.

— Vai causar sensação! — Miguel concordou sorrindo.

— Pode apostar. E, pelo menos, terei algo a apresentar como resultado de uma viagem tão longa.

Ele olhou-a intrigado.

— E isso é tudo? Apenas tecelagem?

— Bem, suponho que o meu castelhano tenha melhorado.

Miguel hesitou, parecendo procurar a melhor maneira de abordar um assunto.

— E quanto a Rafael? — perguntou afinal.

Ela levou um tempo sem dizer nada, procurando não enrubescer. Limpou a garganta e disse num tom de pouco caso.

— Oh, o mesmo tirano arrogante, igualzinho ao pessoal que me

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seqüestrou.

— Bem, não acho justo culpá-lo por circunstâncias que não foram de sua responsabilidade.

Ela deu uma risada seca.

— E você acha que as circunstâncias em que me encontro não são da responsabilidade dele?

Miguel ficou embaraçado.

— Posto assim é diferente. Mas, antes, ele estava numa posição muito difícil. E fez de tudo para que se sentisse segura.

— Pois nisso ele foi bem-sucedido. Eu me sinto segura. E vou continuar me sentindo segura quando voltar para casa e nunca mais pensar nisso tudo.

Houve um longo silêncio. Então ele disse:

— Tem sido tão infeliz conosco? Nós a maltratamos? Negligenciamos?

— Todos têm sido muito bons comigo.

— Então o que... — não soube continuar. Quase num sussurro, perguntou: — Foi Rafael quem a magoou?

Ela não respondeu.

— Ouça — ele disse depois de pensar um pouco. — Se é Florita que a preocupa, então não há razão para mágoas. Rafael só a tem encontrado por causa da revolução. — Esperou para ver o efeito de suas palavras e prosseguiu: — Verdade! Ela desistiu de se casar quando optou pela carreira de dançarina. Não representa uma ameaça a você.

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— Se ela vai ou não se casar não me diz respeito. E eu não quero mais ouvir falar nisso.

— Sim, é claro. Desculpe-me.

Ainda conversaram mais um pouco sobre assuntos neutros e casuais. Depois Miguel se despediu.

Mais tarde, em casa, Rafael perguntou:

— Andou falando com Miguel?

— Sim, ele parou para dizer um olá hoje, durante minha aula de tecelagem.

— E sobre o que conversaram?

Ela quase engasgou com o chá. Por nada no mundo admitiria que o assunto tinha sido sobre ele mesmo. Tentou uma evasiva:

— Sobre nada.

— Nada? — ele se espantou. — Ficaram falando durante vinte minutos e não conversaram sobre nada?

Roberta mais uma vez se sentiu vigiada. Não conteve a indignação:

— Mas que excelente sistema de espionagem você tem! — cumprimentou-o. — Foram mesmo vinte minutos? Eu não marquei — debochou.

Ele praguejou.

— Sabe que há momentos em que sinto vontade de bater em você?

— É mesmo? Pois acho que a vontade é constante.

Depois dessa discussão, ele partiu por três dias.

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Dessa vez ficou claro que os moradores da vila sabiam do seu paradeiro e que tinham instruções precisas de não contar a ela. Um dia Roberta resolveu informar-se com Miguel. Ele deu uma resposta evasiva, e ela não tentou outra vez.

Mas na quarta noite, quando já pensava em se deitar, Roberta ouviu um estrondo às suas costas. Assustada, virou-se para a porta que fora aberta com violência. Ali estava Rafael, com uma expressão terrível no rosto.

Seu primeiro pensamento foi de que ele estaria ferido. Estava lívido, com os olhos vermelhos e ejetados. Por puro instinto, correu para abraçá-lo. Sentiu que tremia inteiro.

— Abrace-me — ele pediu numa voz estranha, como se não percebesse que estavam já enlaçados. Ficaram assim por algum tempo.

Depois, Roberta foi fechar a porta e o levou até a cama, onde o fez sentar-se. Após esperar que ele se acalmasse um pouco, tornou a falar:

— Conte-me. O que aconteceu?

— Os meninos — Rafael balbuciou.

— Quem? Pepe e seus companheiros?

Ele assentiu, com um ar ausente. Parecia ainda mergulhado em algum terror gravado em sua mente. Com jeito, Roberta conseguiu fazê-lo começar a contar o que havia se passado.

— Eles tinham estado bebendo. E vinham se encontrando com Augusto; disso eu não sabia. Fomos ao encontro... eu te contei? Oh, não, é claro. Bem, estávamos negociando com o antigo governo. Devia ser segredo. — Deu uma risada nervosa. — Pepe levou o caminhão com o transmissor que a Força Aérea vinha seguindo fazia uma semana. Um letreiro luminoso não teria chamado mais a atenção.

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Nesse ponto ela começou a sentir a gravidade da situação.

— Eles... atiraram?

Rafael sacudiu a cabeça.

— Não. Estavam voando muito alto e talvez não estivessem carregando bombas. Ou estaríamos todos mortos. E aqueles meninos estúpidos riam! Pareciam crianças!

Roberta acalmou-o, antes de deixar que prosseguisse.

— Então Pepe sacou uma granada de mão, e passou a ameaçar o presidente Valetta e a dizer que morreria feliz pelo seu país. Gritava exigindo rendição incondicional — foi falando num tom desesperado. — A guarda de segurança queria atirar, mas com aquela granada não havia muito que pudessem fazer.

Ela estava pálida, ouvindo.

— E o que foi que você fez? — perguntou, certa de que fora ele quem havia resolvido a situação.

— Me atirei sobre Pepe — ele disse com ódio.

— Você o matou?

— Na hora pensei que houvesse. Mas consegui pegar a granada. Corri como um louco e joguei no rio antes que explodisse. É claro que os militares acompanharam toda a cena. Mas não podiam interferir. Depois, fugimos. Corremos como alucinados, se quer saber.

— E Pepe?

— Não, ele não correu. Na minha opinião estava com um ombro quebrado — ele disse sem emoção. — Não faço idéia de onde esteja agora.

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— Você está bem, e ninguém mais saiu ferido — consolou-o.

— Como está tudo bem? Não se chegou a nenhum acordo. Não confiam mais em mim. E não posso culpá-los. — Fez um gesto de impaciência. — Tudo perdido por causa de um assassino e de uns garotos irresponsáveis! A luta vai reiniciar, e sem dúvida a Força Aérea vai começar a bombardear vilas e cidades tentando atingir grupos revolucionários!

Roberta tirou-lhe as botas e as roupas sujas.

— Deite-se — murmurou com doçura. — Vai ver que ainda poderá ajeitar-se tudo. Você precisa dormir. Relaxe, eu não vou incomodá-lo. — Já se afastava quando ouviu-o dizer:

— Roberta. Roberta, eu... preciso de você.

Ela voltou e segurou-lhe a mão. Devagar ele a foi puxando para si. Parecia indefeso e desamparado.

— Deixe-me fazer amor com você esta noite, Roberta, por favor.

E aquelas foram as últimas palavras que trocaram antes de se entregarem um ao outro.

CAPÍTULO IX

Quando amanheceu, Rafael ainda dormia um sono profundo. Roberta desprendeu-se de seus braços com cuidado. O quarto cheirava a querosene da lâmpada que se havia extinguido no meio da madrugada. Ela

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abandonou a cama, vendo-o espreguiçar-se sem acordar.

Depois de se vestir, abriu uma fresta na janela para renovar o ar do cômodo. O sol brilhava lá fora, mas a vila parecia deserta. Por um longo momento olhou para Rafael e deixou-se levar por doces recordações. Ele tinha aparecido aterrorizado, e ela o havia acalmado com seu amor. Não importava o que ele sentisse, Roberta jamais se arrependeria por aquela noite.

Então, voltando ao momento presente, pensou em preparar um bom café. O fogão a lenha ainda conservava algumas brasas; seria fácil reacender o fogo. Mas o jarro de água tinha sido entornado, para seu desânimo.

Após considerar a situação por alguns segundos, ela decidiu sair para pegar mais água. Estava mesmo disposta a ter um café pronto para quando ele acordasse. Saiu em silêncio, fechando a porta atrás de si.

O melhor lugar para pegar água era num córrego cristalino que corria mais abaixo. Num determinado ponto ele se alargava e formava uma pequena lagoa. Não costumava haver veículos motorizados por lá, apenas algumas mulas e um ou outro bode. Mas naquela manhã, ao se aproximar, Roberta avistou um caminhão estacionado. Pior, junto ao caminhão estava ninguém menos do que o temível Augusto. Ele se afastava do veículo a passos apressados, abandonando a vila.

De repente, ela pisou num graveto, produzindo um estalido. Augusto se virou de imediato e avançou na direção dela.

— Ora, ora, se não é a nossa hóspede — ele disse numa voz macia. Avaliou-a com malícia. — Don Rafael tem uma sorte danada. Ou teve até agora.

Roberta imaginou que se demonstrasse bastante falta de interesse acabaria descobrindo o que Augusto pretendia dizer com aquilo. Pelo

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menos, era essa a psicologia aplicada no mundo dos negócios. E funcionou.

— Ele vai ter uma surpresa — o bandido se vangloriou. — Quando voltar, vai encontrar sua vila favorita destruída!

Ela tratou de pôr a cabeça para funcionar. O que ele estaria querendo dizer? O caminhão! Aquele só podia ser o caminhão de Pepe. Rafael tinha dito que nem um sinal luminoso seria tão eficiente em atrair a Força Aérea. Era preciso pensar rápido.

Por sorte. Augusto supunha estar falando de um assunto incompreensível para Roberta. Se desconfiasse que ela sabia o que se passava, sem dúvida a mataria. Assim, com sua voz mais infantil e ingênua, disse:

— Eu não entendo.

— Não mesmo? Sim, suponho que não. Mulheres só entendem de uma coisa.

Estavam frente a frente. Num movimento brusco, ele a agarrou e pressionou os lábios contra os dela. Roberta permaneceu inerte, sem reação, até que ele próprio a afastou.

— Caramba! Você deve ter água nas veias! — disparou insatisfeito.

Ela então julgou que Augusto a soltaria e trataria de fugir. Mas se enganou.

— Se é boa o bastante para alguém tão fino como Don Rafael — disse, estreitando os olhos —, então deve ser boa também para o pobre Augusto.

Roberta sentiu o impacto daquele corpo pesado e repugnante. Lábios pegajosos assaltavam sua pele, e tudo parecia transformar-se num pesadelo... quando, subitamente, sentiu-o se afastar.

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Augusto rolou para o lado e logo travava uma luta feroz com um homem: Rafael.

Mas antes que Roberta pudesse pensar no que fazer, um barulho ameaçador se fez ouvir. Eram aviões. Augusto havia subestimado a Força Aérea, ou então não teria ficado ali, perdendo tempo. Era preciso fazer algo. E rápido!

Sem parar para pensar, ela correu para o caminhão. Nunca havia dirigido um veículo de tão grande porte, muito menos num terreno irregular como aquele. Mas não podia se dar ao luxo de se preocupar com detalhes. Usando de uma perícia que desconhecia ter, atingiu a estrada principal. Quando os aviões se tornaram visíveis no céu, já havia se afastado bastante da vila.

O que se seguiu foi uma fantástica aventura. As aeronaves eram de pequeno porte e armadas apenas com metralhadoras. Enquanto Roberta acelerava loucamente pela sinuosa e esburacada estrada de terra, eles avançavam disparando, em vôos rasantes.

Ela já havia ultrapassado o limite do pavor. Penhascos e grandes depressões marginavam o caminho. De repente uma rajada de balas acertou a cabina, estilhaçando o pára-brisa. Com um solavanco do carro, a porta do lado do motorista escancarou-se. Vendo que o caminhão se desgovernava, Roberta agiu guiada pelo instinto de sobrevivência. Esperou até o último segundo e, quando o veículo estava prestes a despencar num profundo barranco, saltou para o chão pedregoso. Com o impacto, sentiu uma dor insuportável. Depois, não viu mais nada.

Havia uma confusão de vozes à sua volta. Emergindo das profundezas, Roberta considerou que nunca havia desmaiado com tanta freqüência como nas últimas semanas. Pensou ter dito isso em voz alta, mas sentiu a garganta travada e seca. Alguém lhe falou em inglês.

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— Que foi que disse, querida? Está me ouvindo?

Mas Roberta só conseguiu abrir os olhos e tornar a cerrá-los, mergulhando de volta para as profundezas da inconsciência.

Algum tempo depois, rompeu outra vez a superfície da consciência. Abriu os olhos. Viu as sombras listradas da veneziana contra uma parede clara. Sobre si, percebeu uma mulher toda de branco, inclinada com uma expressão curiosa. Não a conhecia.

— Onde estou? — perguntou, achando graça de si mesma por ser tão pouco original. — Que lugar é este? Estou em Alto Rio? — Preocupava-a ter se tornado prisioneira política da Força Aérea de Oaxacan.

A mulher de branco ajeitou algo sobre sua cabeça e falou:

— Bom-dia, srta. Lennox. Como está se sentindo?

— Viva — ela respondeu entre surpresa e satisfeita.

— Bem, senhorita, aqui não é Alto Rio. Estamos em Miami — a outra respondeu. — Estamos na Havering Clinic.

— Miami! — Deu um salto e só então sentiu o tubo de soro preso a seu braço. — Como vim parar aqui?

— Veio de avião há dois dias.

— Mas... mas como? Quem me trouxe?

A enfermeira sorriu.

— Me disseram que a Technica Associates está pagando a conta. E você tem um patrão muito preocupado, ligando de hora em hora!

— Tony — Roberta constatou numa voz fraca. — O que aconteceu?

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— Você não se lembra?

— Não muito — replicou cansada. — Ou não estaria perguntando.

A enfermeira pareceu um pouco embaraçada.

— Acho que é melhor chamar o Dr. Gonzalez. Ele vai querer saber que está consciente.

Sozinha, ela afundou na cama macia e fresca. Lembrou-se de Rafael e teve vontade de chorar. Nem sabia se ele estava vivo ou morto.

A porta se abriu.

— Srta. Lennox? Ouvi dizer que voltou para nós.

Ela abriu bem os olhos. Deu com um homem baixo, todo de branco e com um estetoscópio pendurado no pescoço. Ele sentou-se na beira da cama e tomou-lhe o pulso com ar distraído.

— O que aconteceu? — ela quis saber após um momento. — Houve a revolução?

— Hei, você acabou de voltar a si! Não posso começar a discutir política internacional com você — ele brincou. — Não seria ético.

Ela suspirou conformada.

— Bem, pode ao menos me dizer o que aconteceu comigo?

— Oh, claro, isso eu posso. — Satisfeito com o ritmo do pulso, pousou-lhe o braço na cama e se acomodou melhor. — Você caiu de um caminhão e rolou por uma ribanceira. Foi um tombo e tanto. Partiu algumas costelas e fez um belo ferimento na cabeça, que por sinal sangrou um bocado. Mas agora mal se nota a cicatriz. Vai se sentir fraca por várias semanas, ainda, mas a recuperação deve ser total.

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Roberta estudou-o por um momento.

— Então por que estou aqui?

— Observação. E também porque estava inconsciente.

— Por causa da pancada na cabeça? Ou por causa dos sedativos?

— Tivemos de aplicar-lhe alguns — ele admitiu.

Ela esperou por um momento. Então não se conteve:

— Vamos, o que mais? Sei que não foi só isso. Diga logo as más notícias.

O médico examinou as próprias mãos, absorto.

— Para ser honesto, srta. Lennox, não sei se vai achar que são boas ou más notícias. Mas vai ter de ficar sabendo cedo ou tarde, eu acho. — Lançou-lhe um rápido olhar. — Receio que tenha perdido a criança.

— A criança? — repetiu muito pálida.

O dr. Gonzalez estudou-a por alguns segundos, demonstrando um certo alívio, e perguntou:

— Você não sabia que estava grávida?

— Nunca me ocorreu — ela respondeu aturdida. — Eu não pensei... havia tanta coisa errada... pensei que fosse só tensão e a altitude. — Mordeu o lábio. — Que estúpida eu fui.

— Não, acho só que passou por um mau pedaço. Os sujeitos que a trouxeram para cá me contaram alguma coisa.

Roberta foi tomada de um vivo interesse.

— Que sujeitos? Quem eram?

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— Oh, apenas gente do consulado. Havia poucos, pois a maioria embarcou tão logo a luta começou.

— Oh, entendo. É claro.

— Ouça — ele retomou com voz firme. — Fisicamente você deverá ter uma recuperação completa. Sem problemas. Mas talvez venha a sentir outras dificuldades. Se achar que precisa, não hesite em pedir para falar com o nosso psicanalista. Você passou por uma experiência traumática e não há nada do que se envergonhar. Se precisar de ajuda, peça, está bem?

Ela fechou os olhos e respirou fundo.

— Doutor, acho que a melhor ajuda que posso ter agora é ficar um tempo sozinha sem ninguém me perturbando. Preciso pensar... preciso muito pensar...

— Claro. — Ele se levantou com cuidado. — Vou dizer para a minha equipe não incomodá-la. Até a hora da próxima injeção, certo? Durante esse tempo terá privacidade total — assegurou.

— Se quiser alguma coisa, aperte esta campainha aqui. — Lançou-lhe um olhar confortador e se afastou. — Ah, srta. Lennox...

— Sim?

— Boa sorte enquanto pensa. — E se retirou.

Sem se mover, Roberta deixou que as idéias fluíssem ao acaso. Sentiu um leve desconforto causado pelas costelas quebradas. Então pensou no bebê perdido, em Rafael, tudo perdido...

Lágrimas encheram seus olhos. Horas se passaram assim. Quando a enfermeira reapareceu, compadeceu-se de sua expressão triste.

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— Deseja alguma coisa, srta. Lennox?

— Não, obrigada. — Forçou um sorriso. Mas não era verdade. Desejava seu bebê. Desejava Rafael. Desejava aquelas noites de entrega apaixonada que nunca mais voltariam.

Não mencionou nada disso à enfermeira nem aos médicos. Nem mesmo a Tony Gallasay, seu velho amigo e colega de trabalho.

E foi Tony quem a acompanhou de volta a Nova York. Entrou no quarto do hospital com um enorme e colorido buquê de flores e um largo sorriso.

— Olá querida. Este é um grande dia! — Abraçou-a emocionado. — A Technica já pode respirar aliviada.

Ela retribuiu o abraço feliz.

— Sentiram a minha falta?

— Espere só para ver a pilha de papéis sobre a sua mesa; vai ver o quanto sentimos a sua falta! — Pegou a pequena sacola com os pertences dela. — Isto é tudo?

— Toda a minha bagagem ficou em Alto Rio — ela assentiu. — Até mesmo o meu passaporte desapareceu.

— Ótimo — ele retrucou passando o braço em torno de seus ombros. — Assim vou ter tempo de chorar no seu ombro todos os meus problemas. Isto é, antes que você pegue um avião para uma ilha exótica qualquer.

— Problemas, é? Não me diga que está apaixonado de novo!

Ele se mostrou ofendido.

— Por que de novo? Eu tenho mantido um amor fiel pela mesma

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mulher nos últimos dois meses.

— Então já é outra mulher desde a última vez em que eu o vi — ela declarou com segurança.

Com Tony falando sem parar, saíram do hospital e entraram num luxuoso automóvel, com o banco do motorista isolado do espaço para os passageiros. Era de um dos clientes da Technica e devia ter sido tomado emprestado para a ocasião.

Quando já haviam se acomodado no interior do veículo, ele disse, sério:

— Querida, eu soube do bebê. Os médicos me disseram... devem ter me tomado por seu marido ou coisa assim. Sinto muito. — Julgando que ela tivesse sido possuída à força, começou um discurso procurando confortá-la,

— Tudo bem, Tony, tudo bem — ela disse com a voz embargada, — Mas não quero mais falar nisso. Por favor,

— Certo. Chega disso. Mas prometa-me que vai me procurar se sentir necessidade. Falar muitas vezes ajuda.

— Eu prometo.

Nas semanas que se seguiram, duas coisas ocupavam a vida de Roberta: uma carga horária de trabalho absurda e a expectativa de receber uma carta ou um telefonema de Rafael.

A revolução havia chegado ao fim, segundo informavam os jornais. Após quase nenhum derramamento de sangue, eleições gerais haviam sido convocadas, e um presidente socialista subira ao poder. Seu nome era Quintano, descendente de uma tradicional família de Oaxacan,

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reconhecido internacionalmente pela astúcia política, capaz de conter as divisões internas e pressões externas. O povo apoiava com entusiasmo sua iniciativa de iniciar a reforma agrária a partir das próprias terras.

Porém, por mais que esmiuçasse todas as matérias sobre o assunto, lendo e relendo cada linha, Roberta não encontrava nenhuma menção ao nome de Rafael. Por fim, o medo de que ele tivesse sido morto começou a crescer em seu peito. Segundo a imprensa, o derramamento de sangue fora pequeno, mas quem podia garantir que ele não tinha sido uma das poucas vítimas?

Um dia, quando já não podia mais suportar a angústia daquela incerteza, telefonou para Larry, que ainda conduzia as negociações com o novo governo de Oaxacan. Mas de nada adiantou. Ele nunca mais se encontrara com Rafael nem ouvira a menção ao seu nome. Acreditava que se um proeminente advogado local tivesse morrido, os jornais não deixariam de noticiar. Em sua opinião, o mais provável era que, passada a confusão, ele havia retornado aos seus negócios. E, sendo ele um advogado internacional, deveria estar viajando por alguma outra parte do mundo.

Roberta concordou e agradeceu. Depois disso, só lhe restou continuar verificando a caixa do correio diariamente, numa ansiosa espera. Nenhuma carta chegou.

CAPÍTULO X

Sem avaliar a importância de sua iniciativa no sentido de abreviar o

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drama de Roberta, numa certa noite Larry ligou para ela. Afundada numa pilha de papéis, tentando resolver alguns cálculos que não queriam dar certo, demorou para atender.

— Roberta? — ele perguntou. — Eu a peguei no meio do banho?

— Não, nada disso — ela retrucou, lançando um olhar para a infinidade de documentos sobre a mesa. — O que posso fazer por você, Larry?

— Bem, é um tanto esquisito — ele disse, fazendo rodeios. — E Tony também não gostou.

— Oh? — ela ficou intrigada.

— É o projeto de Oaxacan. Haverá uma cerimônia de assinatura do contrato no Goldcrest Hotel; grande festa com tevê, imprensa e tudo o mais. O presidente estará lá.

— E qual o problema? — ela perguntou, num tom bem mais frio.

— Bem, tenho recebido pedidos formais para que você esteja presente.

Ela gelou.

— Por quê? — disse, assim que recuperou a voz.

— Quem é que pode dizer? Já faz anos que desisti de tentar compreender os caprichos dos clientes. Quando eles querem, eles querem. — Depois, procurando ser mais objetivo, ponderou: — Talvez estejam querendo fazer um reparo. Por causa do seu seqüestro, eu acho.

— Compreendo — ela disse devagar. Nesse caso, não era um truque de Rafael. Chegou a tal conclusão com alívio, mas não sem experimentar uma ponta de frustração.

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— Tony disse que você já tinha suportado tudo daqueles idiotas e pediu para eu nem mencionar o assunto a você. Mas é que estou com a sensação de que para eles a sua ida é muito importante...

— Talvez queiram fazer um pedido público de desculpas — ela aventou a hipótese.

— Então, concorda?

Roberta hesitou por um momento.

— Está bem — disse afinal. — Me diga quando é que vai ser esse grandioso encontro.

Ele disse a data e aguardou que ela consultasse a agenda. Havia um compromisso em Washington para a mesma data, mas nada que não pudesse ser mudado.

— Vou tentar, Larry. — Então limpou a garganta. — Há alguma possibilidade de eu ver a lista de convidados?

— É claro — ele assegurou, satisfeito, apesar de a concordância ainda não ser definitiva. — Vou mandar uma cópia para a sua secretária amanhã de manhã. Obrigado, garota. É um privilégio trabalhar com você!

Na manhã seguinte, Roberta compreendeu a razão da gratidão de Larry. O presidente, ministros da área econômica, o presidente do Banco Central, o secretário de Estado da Mineração, todos os figurões de Oaxacan estavam entre os convidados. Não era de admirar que ele a tivesse procurado desafiando as ordens de Tony!

Repassando com cuidado a lista de nome, não encontrou o de Rafael. Mas deu com um M. Olivados, do Ministério do Planejamento. Só podia ser Miguel. Será que queria revê-lo? E se ele tentasse falar de Rafael?

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Tomando uma decisão, discou para Larry.

— Eu irei, Larry — disse num tom profissional. — Mas tenho também um compromisso em Washington, por isso vou ter de partir cedo. Se você lhes explicar, estou certa de que não vão se ofender.

Quando chegou o dia, um telefonema internacional impediu-a de chegar na hora. Chegou a tempo de ouvir o último discurso, do representante do Ministério da Mineração. Depois disso, a cerimônia se transformou numa festa mais informal.

Roberta não conseguia encontrar Larry em lugar algum. Num dado momento, viu-se abordada por uma jornalista conhecida por estar sempre à procura de um toque pessoal, mesmo em cerimônias estritamente de negócios.

— Não conserva nenhum ressentimento?

— Ressentimento? — Roberta repetiu sorrindo. Tomou um gole do seu coquetel. — Por que deveria? Eles acabaram de assinar um contrato de um milhão de dólares com a companhia onde trabalho.

— Em relação ao seqüestro.

Ela deu de ombros.

— Ossos do ofício. Imagino que corredores de Fórmula 1 não guardam ressentimentos de seus carros. E mesmo assim sofrem acidentes.

— Então, não foi maltratada?

— Tive boa comida, ar fresco e muito exercício. Isso sem mencionar o tempo que pude me afastar de minha escrivaninha. Conheço gente que pagaria uma fortuna por umas férias assim.

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— E não teve medo? Nem um pouco?

— Não sou estúpida, moça. — Olhou em volta para ver se avistava alguém que pudesse livrá-la daquele assédio. — Tenho medo de muitas coisas, até mesmo do metrô de Nova York.

— É claro, é inglesa, não?

— Escocesa — corrigiu sem entender muito bem que importância tinha sua nacionalidade. — Mas já vivo há muitos anos nos Estados Unidos, portanto já me aclimatei. E ainda tenho medo do metrô de Nova York.

— E não tem medo dos seus seqüestradores? — a outra insistiu. — Houve rumores, eu me recordo. A senhorita partilha de seus ideais? Ou, quem sabe, estivesse com um deles?

Roberta fulminou-a com o olhar.

— Eu sou agrônoma — disse com frieza. — Meu único envolvimento romântico é com canais de irrigação — arrematou, fazendo a jornalista corar, sem graça. — Desculpe-me, há uma pessoa com quem preciso falar. — Mentiu e se afastou.

Rodou pelo salão, furiosa, até que deu com Miguel Olivados. Mas era um Miguel bem mudado, vestido com elegância e portando-se com segurança. Não pareceu muito feliz em vê-la.

— Então você veio — cumprimentou-a com frieza. — Pensei que não viesse.

— Insistiram para que eu viesse — ela retrucou com indiferença.

— Foi o que imaginei.

— Como vai, Miguel? — tentou quebrar o gelo. — E os outros?

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Ele a encarou com antipatia.

— E você se importa?

— Mas é claro que eu me importo!

— E mesmo assim tratou de fugir na primeira oportunidade?

Ela o encarou, confusa.

— Como assim?

— Quando Augusto levou o caminhão, você deu a partida e escapou sem nem uma palavra para Rafael, que estava lutando pela própria vida. — Ao vê-la empalidecer, prosseguiu num tom mais brando. — Não pode negar isso, Roberta. Eu vi com meus próprios olhos.

— Rafael foi... ferido? — ela quis saber quase num gemido.

Miguel se espantou.

— Por Augusto? Não.

— Eu não sabia — ela murmurou mais para si mesma. — Tudo o que eu podia pensar era que Augusto o havia traído, que eu precisava tirar o caminhão da vila antes que a Força Aérea...

— Isso é verdade? — ele a interrompeu atônito.

Roberta não respondeu, mas sua aparência arrasada respondia por si. Miguel perguntou, indulgente:

— Não sabia que Augusto estava armado de uma faca?

— Não! — ela disse quase num apelo.

— Calma, calma, eu já disse, ele não se feriu — apressou-se em tranqüilizá-la. Então quis saber: — E suponho que não tenha falado com

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ele depois disso, certo?

— Com Rafael? — ela negou com um gesto.

— E, é claro, ele não forçaria um contato com você depois que você fugiu... — Ela já ia protestar, mas ele se corrigiu. — Depois que ele pensou que você fugiu. E ainda pensa. Mas isso joga uma nova luz sobre tudo — concluiu pensativo.

— É mesmo? — Roberta indagou sem entender e sentindo-se muito infeliz.

— Sim, eu... — mas foram interrompidos.

— Ah, srta. Lennox, está aqui. — Era Tony, todo formal, mas com um largo sorriso no rosto. — Senhor presidente, permita-me apresentá-lo à srta. Lennox, nossa diretora agrônoma. Srta. Lennox, presidente Quintano.

A surpresa não poderia ter sido mais chocante. O presidente Quintano não era ninguém menos que Rafael Madariaga.

— Señorita Lennox — disse após beijar-lhe a mão formalmente. — Que prazer revê-la...

Ela precisava sair dali. Tinha de sair dali. Mas como?

Tratou de sorrir:

— Senhor presidente — murmurou e recolheu a mão.

Miguel tratou de se intrometer.

— Eu ainda não havia compreendido o quanto devemos à srta. Lennox — declarou com entusiasmo deliberado.

Rafael respondeu com um sorriso gélido.

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“Meu Deus, preciso ir embora”, ela pensou. “Tenho de sair antes que eu me atire nos braços dele!”

— Estou muito impressionado pela presença da Señorita Lennox aqui, hoje — ele disse a Miguel. — Deve ser desagradável ter de recordar tempos tão infelizes.

Aquilo a irritou.

— Não, não é — ela disse num tom educado. — Mas agora pertence ao passado, e lá deve permanecer.

— Mas que desprendimento! — Rafael comentou, ácido.

Roberta se recompôs, consultou o relógio e dirigiu-se a Tony:

— Infelizmente tenho de partir; meu avião sai em meia hora.

— A srta. Lennox vai a Washington — Tony explicou. — Ela adiou um compromisso para poder estar aqui.

— Estou ainda mais impressionado — Rafael disse.

— Ótimo, então o objetivo foi atingido — ela retrucou abrindo um amplo sorriso. — Mas agora...

— Não há necessidade de nos deixar, srta. Lennox. Eu mesmo tenho de ir a Washington depois da recepção. Poderá ir comigo no avião presidencial — Rafael sugeriu. — Assim poderá escapar da confusão dos vôos comerciais e teremos tempo de falar sobre os velhos tempos.

— É muita gentileza, mas...

— Por que não vai, Roberta? — Tony se intrometeu com inexplicável entusiasmo. — Não tem nenhum compromisso importante até amanhã e chegará em tempo para jantar com Steve.

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— Steve? — Rafael se mostrou curioso.

— O presidente de uma firma que nos presta vários serviços — Tony esclareceu. — Ele sempre oferece um jantar quando um de nós vai até lá.

— Percebo — e tornou a sorrir para ela. — Então está combinado, srta. Lennox. Esteja pronta em quarenta minutos, por favor. — Com um curto aceno, desapareceu, seguido por Tony.

— Nossa! — Miguel exclamou. — Ele está de péssimo humor! — E antes que Roberta pudesse lhe perguntar qualquer coisa, tratou de se esquivar: — É melhor eu me certificar de que sejam feitos os arranjos para o seu embarque. Caso contrário, o avião presidencial é bem capaz de partir e deixá-la esperando na pista. — Com uma rápida despedida, sumiu no meio da multidão de convidados.

Sozinha e aturdida, ela chegou a considerar a possibilidade de escapar e seguir num vôo comercial, como havia programado desde o início. Mas aquilo seria uma ofensa indesculpável a um chefe de Estado estrangeiro. Não havia como levar aquela idéia adiante.

Um carro arranjado por Larry levou-a ao aeroporto, depois que lhe explicaram que o presidente Quintano seguiria em outro carro. O que não lhe disseram foi que não haveria mais ninguém no avião, além de Rafael e ela.

O interior do aparelho era todo decorado com o emblema de Qaxacan. Sentada na poltrona forrada de veludo azul, ao lado de Rafael, ela aguardou em silêncio que lhes servissem vinho. Quando se viram a sós, ela pareceu compreender a situação.

— Nós estamos... quer dizer, você está...

— Nós estamos sozinhos — Rafael confirmou. — Além da tripulação,

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é claro, que não aparecerá sem ser chamada. — Num tom formal, disse: — Creio que ainda vamos levar algum tempo para decolar. Beba um pouco de vinho.

— Não, obrigada.

— Como preferir, — E bebericou de seu copo. — Não gosta de vinho?

— Não bebo quando estou viajando — ela respondeu com sinceridade.

— Mas que modelo de virtude você é.

Sentindo que a conversa ameaçava tomar um rumo perigoso e desagradável, ela decidiu mudar de assunto.

— Você tem esse avião só para si?

— Você parece desaprovar essa mordomia. — ele zombou.

— Pensei que um país pobre não pudesse esbanjar dinheiro assim.

Ele não se irritou. Ao contrário, seu rosto mantinha uma expressão divertida.

— Você está coberta de razão. Este aparelho pertence a uma empresa particular. Eles nos cederam e o decoraram para esta viagem. Dos Estados Unidos eu vou para a Europa.

— Ah, sim? — ela se interessou. E, além do mais, aquele era um assunto seguro. — Isso faz parte de sua política de reatamento diplomático?

Rafael se pôs a explicar vários aspectos da política de seu governo nas relações internacionais. Enquanto falava, compenetrado, Roberta pôde estudar seu perfil. Achou-o mais magro e pálido, os olhos com uma

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expressão cansada. Durante a decolagem ele se manteve calado.

Talvez pela vibração dos motores, ou ainda pela tensão de estar tão junto dele sob aquele silêncio pesado, Roberta começou a ser atacada por um leve mal-estar. Com um breve sorriso à guisa de licença, levantou-se e foi ao lavatório. Depois de se refrescar com um pouco de água no rosto, voltou sentindo-se melhor.

— Passou o enjôo?

Roberta espantou-se por ele ter notado. Podia jurar que havia disfarçado muito bem seu mal-estar.

— Era óbvio — ele respondeu como se lesse seus pensamentos. — Você passou mal por causa do aborto? — perguntou quase com indiferença.

Ela gelou, incapaz de articular uma palavra.

— E agora você vai me perguntar como eu soube — ele observou. — É óbvio, mais uma vez. Quando nos deixou, estava grávida. Agora não está mais. E, pelo que soube, você passou uns dez dias numa clínica especializada na Flórida.

— Você é muito bem informado — ela conseguiu dizer num fio de voz.

— Naturalmente — ele replicou com aparente frieza. — Afinal, era o meu filho.

Os olhos de Roberta se encheram de lágrimas.

— Sim — disse emocionada. — Era.

— Por acaso não lhe ocorreu que eu gostaria de ser consultado? Ou mesmo que pudesse estar preocupado?

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— Eu... não — a voz recusava-se a sair. — Você... você nunca tentou entrar em contato comigo. Não achei que se importasse.

— Não me importar com o meu filho? — perguntou já com algum sinal de descontrole.

Ela se endireitou na poltrona.

— Eu não imaginei que você soubesse da criança.

— Minha boa menina, vivendo como vivíamos e com os sintomas que você estava tendo... e mesmo assim você preferiu não me contar. Como é que eu poderia não saber?

Ela mais uma vez sentiu-se uma grande tola por não ter pensado nisso.

Um silêncio pesado se instalou entre eles.

— Miguel me disse que eu lhe devo um pedido de desculpas. — Ele mudou de assunto, fazendo esforço para conservar um tom natural.

— Estou certa de que não me deve nada.

— Por interpretar mal seus últimos atos na vila — ele continuou, ignorando seu comentário. — Miguel me disse que não estava tentando fugir, mas salvar a vila do bombardeio.

— Sim — Roberta confirmou, sem encará-lo.

— Foi muita coragem da sua parte.

— Nem tanto. Se eu não tivesse tirado o caminhão dali, eu teria explodido junto com todo mundo. Augusto não deixou margem de dúvida quanto a isso. — Fez uma pausa. — Do jeito que fiz, talvez escapasse com vida. Como escapei.

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Então Rafael deu mostras de estar perdendo seu autocontrole.

— Será que não percebe que quase morreu? Não vê que sua sobrevivência se deveu a um milagre? — exclamou com incontida emoção.

— Eu... eu não sei. Tudo parece tão distante para mim...

— É mesmo? — ele se virou na poltrona e segurou-lhe as mãos. — Pois não parece distante para mim! É um pesadelo que não me abandona... você ferida, eu sem poder fazer nada... e o mundo todo em chamas... — concluiu arrasado.

Roberta não conseguia falar. Contendo as lágrimas, fitou-o, incentivando-o a prosseguir.

— Diga-me só uma coisa — ele retomou, respirando fundo. — Será que um dia você vai poder me perdoar?

Por longos segundos seus olhares se encontraram numa troca de mensagens sem palavras. Ela não sabia o que dizer.

— Ouça, eu sei... eu sabia que não estava sendo justo com você — ele prosseguiu de repente. — Apenas tomei o que queria. Não tenho justificativa para isso. Mas tudo parecia tão precário — foi dizendo de forma desordenada. — Eu temia que tudo acabasse de repente. Que nós nunca mais tivéssemos outra chance... será que pode entender isso?

Ela assentiu.

— Meu Deus, eu nunca quis magoá-la — inclinou-se para mais perto dela. — Você me acredita?

— Mas eu... você parecia tão zangado.

Ele soltou um gemido.

— Mas não com você.

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— Então com o quê?

— Com toda a estúpida situação; o perigo a que eu mesmo a havia exposto.

Roberta examinou bem a expressão de dor no rosto daquele homem com quem tivera um relacionamento tão profundo; o mais significativo de toda a sua vida. E então compreendeu que precisava descobrir algo. Mesmo correndo o risco de se sentir humilhada mais uma vez, precisava saber.

Respirando fundo, reuniu toda sua coragem e perguntou:

— Você, algum dia... me amou?

Rafael apertou-lhe as mãos.

— O que é que está dizendo? — e a voz quase lhe faltou. — Mas será possível que o mais óbvio não era perceptível? — gemeu em desespero. — Qualquer pastor das montanhas sabia que Don Rafael Madariaga tinha perdido a cabeça pela linda estrangeira com olhos da cor do céu!

A revelação tornou inútil seu esforço para conter o choro. As lágrimas rolaram por suas faces vermelhas.

— Minha pequena, não chore! Sabe, fiquei horrorizado ao tomar conhecimento de que haviam capturado você por engano.

— E naquele dia ficou bravo comigo! — ela o lembrou.

— Não, não, você não me entendeu. Eu estava furioso, sim, mas por descobrir que a incompetência dos meus próprios comandados a haviam colocado numa situação de perigo. Eu tinha de ser educado com você, quando estava furioso comigo mesmo!

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— Mas, afinal, o que pretendiam com o meu seqüestro?

— A idéia era complicar as relações com os Estados Unidos e assim forçar Valetta a sair de cena mais rápido. Só que deve ter percebido que não entrou nas negociações, Roberta.

— Eu... eu achava que você me odiava — ela murmurou.

— Odiá-la! Mas era justo o contrário. O que me fazia muitas vezes quase perder o controle era saber que você me desprezava. — Baixou os olhos com tristeza. — Eu sei que forcei a situação. Mas eu temia que não houvesse tempo para merecer seu amor. Você parecia tão distante, tão inatingível... se não fosse pelo modo como se entregava a mim à noite, eu teria desistido muito antes.

Roberta mais uma vez não sabia o que dizer. Tudo aquilo soava tão irreal! Ele se levantou de repente, dando passos nervosos enquanto falava.

— E, quando ficou grávida, esperei que me contasse. Mas você falava com todo mundo, menos comigo. Quando lhe perguntei sobre sua conversa com Miguel, você apenas começou a me insultar...

— Miguel? Mas por que eu diria alguma coisa a Miguel? — ela interrompeu, confusa.

— Porque ele é médico.

— Oh, eu me esqueci...

— Foi então que me vi forçado a aceitar o fato de que me desprezava. Desprezava a ponto de não querer me confessar que esperava um filho meu.

Então ele ficou parado diante dela. Com ar grave, disse:

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— Roberta, você me perguntou se um dia cheguei a amá-la. Não sei como pôde fazer uma pergunta dessas. Eu a amei desde o primeiro encontro. Eu nunca vou deixar de amá-la.

Roberta não resistiu mais. Aceitando seus braços abertos, saltou da poltrona e abraçou-o entre lágrimas. Não havia palavras que expressassem melhor o que sentia.

— Eu... eu não sabia que estava grávida. Juro — revelou ansiosa. — Quando eu soube... na clínica... oh, eu lamentei tanto... eu desejei muito ter um filho seu...

Rafael a afagava com ternura. Então, alisando seus longos cabelos, perguntou.

— Quer se casar comigo?

— Se eu quero? Amor, pensei que isso fosse um sonho impossível.

Beijaram-se longamente. Quando seus lábios se afastaram, ele sorriu e brincou:

— O estado-maior vai adorar essa novidade.

— O estado-maior? — ela repetiu, intrigada.

— Desde que você foi embora, o meu humor anda tão ruim que a vida de todos que me cercam tem sido um verdadeiro inferno. — Ele riu. — Só o fato de eu tê-los mandado seguir a Washington num vôo comercial já deve lhe dar uma idéia aproximada de...

— Oh.

Num impulso irresistível, beijaram-se mais uma vez.

— Por favor, fique comigo esta noite — ele murmurou contra os lábios dela. — Nos casaremos logo. Em Washington, Londres, Alto Rio,

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não importa. Mas não me deixe. Não enquanto eu não tiver certeza de que isso é real.

Roberta suspirou.

— Eu não sei... — fingiu indecisão. — Nem mesmo conheço seu verdadeiro nome! Tony disse que você era o presidente Quintano.

— Bem — ele começou, como se aquilo fosse um assunto muito sério —, o meu avô materno foi presidente de Oaxacan. E, como deve saber, sobrenomes espanhóis trazem o do pai e da mãe. Meus assessores acharam que seria uma boa idéia, em nome da tradição, que eu usasse o sobrenome do meu avô. Satisfeita?

— Aliviada — corrigiu. — Quando a estar satisfeita...

Mais tarde, na suíte presidencial...

— Promete nunca mais desconfiar de mim? — Rafael murmurou enquanto a acariciava; os dois sobre a enorme cama de casal.

— Prometo — ela disse baixinho.

— Eu sei que nunca fui claro com você, amor, e acho que devíamos conversar a sério sobre certas coisas.

— Humm... ? — Roberta murmurou em resposta, começando a despi-lo.

— A sua carreira, por exemplo. Sei que não vai querer abandonar o seu trabalho... — Ela lhe tirou a camisa. — E talvez a gente deva esperar para ter filhos depois que vencer o meu mandato presidencial...

Sem se importar com o que ele dizia, Roberta prosseguiu nas carícias.

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— Roberta, estou tentando não ser um marido machista, e você nem está prestando atenção!

— Humm...? Hã...?

— Amor, estou tentando lhe dizer...

Ela parou um instante.

— Querido, vou continuar na minha carreira... teremos filhos sim, mas... agora fique quietinho. Agora só quero que seja meu.

Então ele riu. E pela primeira vez, desde que fora eleito presidente, Don Rafael Madariaga se rendeu...

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