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31 SORAIA ANSARA Memória política: construindo um novo referencial teórico na Psicologia Política Political memory: constructing a new theoretical reference in the political psychology Memoria política: construyendo un nuevo referencial teórico en la Psicología Política Soraia Ansara [email protected] Licenciada em Filosofia pela FAI; mestre e doutora em Psicologia Social pela PUC-SP; professora da Estácio/Uniradial (Brasil) e educadora do Centro Cida Romano do Instituto Sedes Sapientae em São Paulo. Ela também é co-fundadora da Associação Brasileira de Psicologia Política (ABPP). endereço: Trav. Gerônimo Espejo, 128 Ap. 23B – São Paulo/SP Agradeço ao CNPq que proporcionou a bolsa de estudo para a pesquisa de doutorado que resultou neste artigo. Ansara, S. (2008). Memó- ria política: construindo um novo referencial teórico na Psicologia Política. Psicologia Política, 8(15), 31-56. Resumo O presente artigo procura circunscrever o estudo da memória coletiva da repressão no Brasil dentro dos marcos de referência da psicologia social trazendo para o campo da psicologia po- lítica, a noção de memória política que desenvolvemos a partir da nossa pesquisa de doutorado, realizada em três capitais bra- sileiras (Belo Horizonte, Curitiba e São Paulo). Com base nos discursos das lideranças comunitárias e sindicais entrevistadas e nos referenciais teóricos de Gamson (1992ab), Sandoval (1994, 2001), Halbwachs (1990) analisamos as interfaces entre memó- ria coletiva e consciência política, procurando compreender as implicações da memória coletiva no comportamento político de pessoas que constituem diferentes gerações e que vivenciaram contextos históricos e políticos distintos. Pudemos perceber que a memória pode estimular a consciência política e proporcionar formas de ação coletiva, da mesma maneira que a existência de uma consciência política pode ser determinante na construção de uma memória política. Palavras-chave Memória Política, Memória Coletiva, Consciência Política, Compor- tamento Político, Ditadura Militar

SORAIA NSARA Memória política: construindo um novo ...pepsic.bvsalud.org/pdf/rpp/v8n15/v8n15a04.pdf · 3Este texto foi originalmente publicado em 1987 no capítulo intitulado “El

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PSICOLOGIA POLÍTICA . VOL. 8. Nº 15 . PP. 31 - 56 . JAN - JUN 2008

Memória política: construindo um novo referencial teórico na Psicologia Política

Political memory: constructing a new theoretical reference in the political psychology

Memoria política: construyendo un nuevo referencialteórico en la Psicología Política

Soraia [email protected]

Licenciada em Filosof ia pela FAI; mestre e doutora em Psicologia Social pela PUC-SP; professora da Estácio/Uniradial (Brasil) e educadora do Centro Cida Romano do Instituto Sedes Sapientae em São Paulo. Ela também é co-fundadora da Associação Brasileira de Psicologia Política (ABPP).

endereço: Trav. Gerônimo Espejo, 128 Ap. 23B – São Paulo/SP

Agradeço ao CNPq que proporcionou a bolsa de estudo para a pesquisa de doutorado que resultou neste artigo.

Ansara, S. (2008). Memó-ria política: construindo um novo referencial teórico na Psicologia Política. Psicologia Política, 8(15), 31-56.

ResumoO presente artigo procura circunscrever o estudo da memória

coletiva da repressão no Brasil dentro dos marcos de referência

da psicologia social trazendo para o campo da psicologia po-

lítica, a noção de memória política que desenvolvemos a partir

da nossa pesquisa de doutorado, realizada em três capitais bra-

sileiras (Belo Horizonte, Curitiba e São Paulo). Com base nos

discursos das lideranças comunitárias e sindicais entrevistadas e

nos referenciais teóricos de Gamson (1992ab), Sandoval (1994,

2001), Halbwachs (1990) analisamos as interfaces entre memó-

ria coletiva e consciência política, procurando compreender as

implicações da memória coletiva no comportamento político de

pessoas que constituem diferentes gerações e que vivenciaram

contextos históricos e políticos distintos. Pudemos perceber que

a memória pode estimular a consciência política e proporcionar

formas de ação coletiva, da mesma maneira que a existência de

uma consciência política pode ser determinante na construção

de uma memória política.

Palavras-chaveMemória Política, Memória Coletiva, Consciência Política, Compor-

tamento Político, Ditadura Militar

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MEMÓRIA POLÍTICA: CONSTRUINDO UM NOVO REFERENCIAL TEÓRICO NA PSICOLOGIA POLÍTICA

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSICOLOGIA POLÍTICA

AbstractThis present work adds to Political Psychology fi eld a new perspective of the political

memory concept aroused from the results of a doctorate research project about the

collective memory regarding the military dictatorship and repression in Brazil. The re-

search was developed in three Brazilian capitals as to know: Belo Horizonte, Sao Paulo

and Curitiba. Based on the theories of authors such as Gamson (1992ab), Sandoval

(1994, 2001) and Halbwachs (1990), the interface between collective memory and political consciousness was analyzed. Under the light of these theories we also tried to understand the infl uence and impact that collective memory has on the political behavior of people who represent different generations and have lived in different historical and political context. In this study it was possible to notice that memory might stimulate the political consciousness allowing collective actions to emerge. In the same sense, political consciousness may be a determinant factor when it comes to political memory as well.

KeywordsPolitical Memory, Collective Memory, Political Conscience, Political Behavior, Mi-

litary Dictatorship

ResumenEl presente artículo tiene el propósito de circunscribir el estudio de la memoria colectiva

de la dictadura militar y represión en Brasil dentro de los marcos de referencia de la

Psicología Social acercar al campo de la Psicología Política la noción de memoria

política que desarrollamos desde nuestra investigación, realizada en tres capitales

brasileñas (Belo Horizonte, Curitiba y São Paulo). Con base en los discursos y en los

referenciales teóricos de Gamson (1992), Sandoval (1994, 2001), Halbwachs (1990)

analizamos las conexiones entre memoria colectiva y conciencia política, con el obje-

tivo de comprender las implicaciones de la memoria colectiva en el comportamiento

político de las personas que forman las diferentes generaciones y que vivieron contextos

históricos y políticos distintos. Hemos percibido que la memoria puede estimular la

conciencia política y proporcionar formas de acción colectiva, de la misma manera

que la existencia de una conciencia política puede ser determinante en la construcción

de una memoria política.

Palabras-clave Memoria Política, Memoria Colectiva, Conciencia Política, Comportamiento Político,

Dictadura Militar

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O presente artigo pretende circunscrever o estudo da memória coletiva da repressão no Brasil dentro dos marcos de referência da psicologia social e, em particular, da psicologia política, procurando desenvolver a noção de memória política articulando duas questões fundamentais: a memória e a política. Entendemos que nosso estudo se insere dentro dos grandes dilemas políticos com os quais se confrontam os povos latino-americanos, confor-me nos aponta Martín-Baró, “(...) el dilema entre dictadura y democracia, entre dependen-cia y autonomía regional y entre alienación e identidad histórica” (Martín-Baró, 1990:100) e procura responder a um dos desafi os da psicologia da libertação: a recuperação da me-mória histórica que é, segundo Blanco (2001), “(...) una de las tareas arduas y más urgentes de la psicología de la liberación” (p. 141) e porque não dizer, da psicologia política1.

Recuperar a memória histórica faz parte de um dos grandes objetivos da psicologia da libertação de Martín-Baró que, fundamentado no realismo crítico, propõe a desideologiza-ção da experiência cotidiana e da própria psicologia por meio do reconhecimento: da reali-dade “trágica” em que vivem nossas sociedades, realidade desumana e de injustiça; de que o confl ito defi ne as sociedades latino-americanas, confl ito político, econômico cultural, ou seja, um confl ito marcadamente histórico; do estado de alienação em que se encontram os indivíduos e as instituições, um estado onde as pessoas não são donas de si mesmas nem de seu destino; e por fi m, da necessidade de uma memória, como ele mesmo afi rma “(...) una clarividente memoria histórica para percibir precisamente todo aquello que ha bloqueado, oprimido, aplastado a nuestro pueblo” (Martín-Baró, 1998:135). Isto signifi ca descobrir seletivamente, por meio da memória coletiva, elementos do passado que foram efi cazes para defender os interesses das classes exploradas e continuam a ser úteis para os objetivos de luta e conscientização2 (Fals Borda, 1985, citado por Martín-Baró e cols., 1998: 301).

Entendido desta maneira, o processo de recuperação da memória história é, em si mes-mo, a construção de uma memória política, que se faz através da conscientização. É um processo dialético em que a memória coletiva funciona como um veículo de conscienti-zação ao mesmo tempo em que “(...) la concientización lleva a las personas a recuperar la memoria histórica, a asumir lo más autentico de su pasado, a depurar lo más genuino de su presente y a proyectar todo ello en un proyecto personal y nacional” (Martín-Baró, 1998:171)3. Em outras palavras, o processo de conscientização proporciona a recuperação da memória histórica que é fundamental para a criação de um novo projeto histórico e de um novo sujeito histórico. Não se pode forjar um projeto histórico novo sem conhecer o passado. É preciso confrontar-se com o passado e lutar contra a mentira institucionalizada

1Em seus últimos escritos Martín-Baró defende que a Psicologia social é uma Psicologia política e faz isso considerando que o poder impregna toda nossa vida, sendo a fonte mais importante do signifi cado da ideologia e a Psicologia social o estudo da ação enquanto ideológica

2Martín-Baró se apropria da idéia de conscientização de Paulo Freire e é, a partir dela, que defende a possibilidade da construção de uma memória história.

3Este texto foi originalmente publicado em 1987 no capítulo intitulado “El latino indolente: carácter ideológico del fatalismo latinoamericano”. Em MONTERO, M. (coord). Psicología Política Latinoamericana. (pp.135-162). Caracas: Panapo.

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e pela transformação das formas de poder que, ao longo de décadas, vêm oprimindo e alienando os povos latino-americanos: “Los pueblos latino americanos necesitan una clara memoria historica, para rastrear los dinamismos de su história, para saber donde buscar las causas de su opresión secular y de su situación presente” (Martín-Baró 1998:99). É preciso reconhecer que nosso passado não pode ser repetido e não podemos nos manter passivos aceitando os acontecimentos como uma fatalidade. Resgatar a memória histórica é dizer não ao fatalismo e mudar os rumos da história.

Nesta perspectiva, Martín-Baró (1998) assume claramente uma posição sócio-histórica que, evidentemente, implica pensar num novo sujeito sócio-histórico que reconhece sua condição de oprimido e que, conhecendo criticamente sua realidade, não poupa esforços para lutar contra essa condição. Pensada desta maneira, a memória coletiva não pode ser entendida apenas como transmissão geracional da experiência ou guarda das tradições nacionais e sim como estratégia de resistência e luta política, especialmente por aqueles que se vêem excluídos dos direitos à cidadania e passam a assumir uma cidadania ativa, confi gurando-se num sujeito que rompe com o fatalismo e assume seu próprio destino.

Ao propor o realismo crítico, no qual se insere a recuperação da memória histórica, Martín-Baró, não só oferece contribuições para a práxis social, como também “revolucio-na” o saber científi co na medida em que, invertendo o referencial epistemológico, propõe a “desalienação” da própria ciência psicológica.

Nesse sentido, um primeiro marco de referência imprescindível para qualquer estudo psi-cossocial é a realidade social que, segundo Blanco, é “(...) siempre tan interactiva, simbólica, relativa e incluso caprichosa. Porque, además de individuos, hay grupos, instituciones y orga-nizaciones, y hay valores, normas, ideología y poder; y también hay culturas y subculturas, y lenguaje y ambiente, etc.” (1988:160). Reconhecer a importância de ter como ponto de par-tida a realidade social é fundamental para os estudos psicossociais, visto que, como o próprio Martín-Baró insistia, não são os conceitos e as teorias que devem defi nir quais problemas devemos estudar; muito pelo contrário, a própria realidade, com os problemas sociais que apresenta é que deve indicar quais teorias e conceitos são necessários para compreendê-la, explicá-la e, inclusive, sugerindo formas de agir em vistas de sua transformação. Seguindo essa tradição mais crítica e, apoiado no realismo crítico de Martin-Baró, Blanco destaca a importância e necessidade da psicologia social fazer uma inversão epistemológica através do “(...) estudio de la realidad, desideologización de los elementos que la legitiman y la justifi -can y compromiso con el cambio social” (Blanco, 2001:134).

Esta postura epistemológica nos permite estudar fenômenos psicossociais consideran-do os aspectos sócio-históricos em seu conjunto, através da articulação entre os aspectos macro-social e micro-social que constituem, a nosso ver, a essência do estudo da memória coletiva da repressão e que é outro marco de referência fundamental deste estudo.

Dito de outra maneira, assumimos uma postura epistemológica que tem como marcos de referência a realidade social e a articulação entre os aspectos macro e micro-sociais.

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A própria noção de memória social e memória coletiva não nos exime das difi culdades metodológicas que normalmente enfrentam os que estudam a memória, uma vez que não existe uma defi nição única e unívoca deste conceito4. Haja vista que quando falamos em memória coletiva imediatamente nos remetemos a perguntas psicossociais como: é um in-divíduo que recorda ou uma coletividade que recorda? É a memória uma atividade mental ou social? Pode existir uma memória grupal?

Partindo da nossa preocupação com a memória coletiva da repressão no Brasil, nosso estudo, que foi resultado de uma pesquisa de campo realizada em três capitais brasilei-ras (Belo Horizonte, Curitiba e São Paulo), discute a natureza psicossocial da memória, tratando de apresentar como as pessoas que não viveram a ditadura militar no Brasil re-cordam e reconstroem esse evento político e em que medida estas lembranças infl uem ou são infl uenciadas pela consciência política. Trata-se de um acontecimento macro social (a ditadura militar no Brasil) que na memória coletiva se traduz em um fato psicossocial, ou seja, a reconstrução de um fato político em sua dimensão micro-social.

Deixando de lado a tradição individualista dos estudos da memória e assumindo uma postura mais crítica, enfatizamos o caráter interativo que existe entre as esferas macro e micro-sociológicas e, fundamentalmente, o caráter compartilhado da memória social: “(...) la memória no es la recuperación de información almacenada sino la creacion de uma afi rmación sobre estados de cosas pasadas, por medio de um marco compartido de comprensión cultural” (Radley, 1992:63).

Os trabalhos de Blanco (1988, 1996) nos ajudam a demarcar a natureza deste estudo como um estudo psicossocial, principalmente pelas aproximações que faz de autores como Vygotski, Mead e Lewin, que, criticando a psicologia dominante, jus-tamente defendem a natureza relacional, interativa e interdependente dos fenômenos psicológicos. Para Blanco (1988):

(…) lo psicosocial es una perspectiva relacional en el sentido lewiniano del término que intenta desentrañar los enigmas del comportamiento a partir de la confl uencia e intersección de diversos niveles y de la interacción de diversas variables; y cuando hablamos de interacción estamos haciendo referencia a la interdependencia, a la mutua relación y a la infl uencia recíproca y no solo ni en primer término a la mera relación. (Blanco, 1988:163)

Tajfel (1984), em sua teoria da identidade social, Gamson (1992a/b) e Sandoval (1994, 2001), através do conceito de consciência política que desenvolvem, reforçam esse marco de referência. Gamson (1992b) sustenta que é necessário compreender a consciência polí-tica a partir da interação entre o nível psicológico – onde o indivíduo opera ativamente na

4Ver Aguilar, P. (1996). Memoria y olvido de la guerra civil española. Alianza Editorial; Vázquez, F. (2001). La Memoria como acción social. Paidós.

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construção de signifi cados e o nível sociocultural – onde o processo sociocultural oferece signifi cados. Sandoval, por sua vez, afi rma que a consciência política consiste em compre-ender “(...) a inter-relação entre as dimensões psicossociais dos signifi cados e informações que permitem aos indivíduos decidir como agir em contextos políticos e situações espe-cífi cas” (Sandoval, 2001:185). O autor elabora um modelo de análise de consciência, que consiste em “(...) sete dimensões, analiticamente distintas que, ao mesmo tempo, formam um conjunto de representações que envolvem diretamente a pessoa na sociedade como um ator político” (p.185). Estas dimensões estão diretamente vinculadas à história social e cultural, às experiências da vida cotidiana, à interação das pessoas com atores políticos e organizações e às infl uências das instituições políticas, agentes e eventos mais amplos. São elas: identidade social, crenças e valores societais, sentimentos antagônicos e identifi -cação de adversários, sentimentos de efi cácia e inefi cácia política, sentimentos de justiça e injustiça, vontade de agir coletivamente.

Desta maneira, ao estudar a memória política, analisando as interfaces com a consci-ência política, o fazemos situando-a neste campo relacional entre o “eu” e a “sociedade” – proposto por estes autores – procurando articular o universo micro com o macro e ten-tando compreender a interação grupal e o processo de formação da consciência política na construção da memória coletiva e seus refl exos no comportamento político.

Cabe ressaltar, que estes autores, ao formularem suas teorias, questionavam a corrente dominante da psicologia5 que se centrava no indivíduo e que, como aponta Tajfel (1984), não se interessavam pela sociedade em geral, fi cando essa preocupação relegada a áreas margi-nais da corrente principal. Fazendo à crítica àqueles que defendiam uma psicologia social neutra, Tajfel enfatiza a importância da interação entre os aspectos individuais e os aspectos sociais: “(...) una psicología social neutral es prácticamente imposible (..). al mismo tiempo, es posible y necesario intentar comprender, en el trabajo propio como psicólogo social, la integración de las interacciones individuales con sus marcos sociales más amplios.” (Tajfel, 1984:24). O autor chama a atenção dos psicólogos sociais para um dos problemas mais im-portantes que a psicologia social enfrentava em sua época e que continua enfrentando ainda hoje, que é, justamente, procurar explicar os processos que constituem o comportamento intergrupal. Segundo Tajfel, este é um problema teórico e aplicado ao mesmo tempo, já que “(…) implica algunos de los aspectos básicos de la conducta del hombre hacia el hombre en tanto que están adaptados a y modifi cados por, y son determinantes del contexto social y de los rasgos relevantes del ambiente social” (Tajfel, 1984:40).

Isso nos permite afi rmar que a realidade social defi ne a realidade psicológica, ou seja, as pessoas são produtos da história, da cultura e da sociedade, sendo que suas opiniões,

5Não nos esqueçamos de que esta polêmica sempre alimentou os debates fi losófi cos e, posteriormente, sociológicos, em princípios do século XX. Por um lado, a tradição durkheimiana, dos que defendiam que as propriedades de uma sociedade explicam a dos indivíduos e, por outro lado, a vertente individualista que defendia que as propriedades dos indivíduos explicam as da sociedade.

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valores, visões, signifi cados e práticas são apreendidos ou adquiridos através dos outros. Nesse sentido, os grupos aos quais as pessoas pertencem têm, portanto, um profundo im-pacto sobre a identidade dos indivíduos, de modo que a identidade individual (pessoal) depende da identidade sócio-cultural dominante.

Todos estes aspectos são fundamentais para o estudo da memória coletiva, pois de-marcam nossa opção teórica, já que não entendemos a memória coletiva como a soma das memórias individuais, mas ao contrário, entendemos que os grupos têm um papel essen-cialmente importante na reconstrução da memória.

Nesta perspectiva, Halbwachs (1990), já apontava a importância que tem a identifi ca-ção para a memória, já que as pessoas têm o hábito de lembrar como membros do grupo e se utilizam, para isso, das mesmas noções comuns a seus membros.

Apropriando-se das idéias de Halbwachs, Ansara (2001), em seu estudo sobre a memó-ria coletiva de uma greve operária, afi rma que:

A identifi cação com o grupo é fundamental para a reconstituição da memória, pois os grupos aos quais as pessoas pertencem, se por tarefa ou por escolha, são extremamente signifi cantes na sua experiência de vida, a ponto da his-tória do grupo social ser tratada, não raras vezes, como a própria história do indivíduo. Quando o indivíduo lembra um fato do passado, sua história se confunde com a história do grupo, há uma identifi cação com o grupo que determina até as formas de comportamento. (Ansara, 2001:38)

Do ponto de vista psicossocial, a identifi cação com o grupo, ou pertença subjetiva, que segundo Tajfel (1978), envolve aspectos cognitivos, avaliativos e emocionais, produz um signifi cado para os membros do grupo que, a nosso ver, favorece a construção da memória coletiva dos eventos macro-sociais, nos quais o “grupo psicológico” esteja envolvido ou, de alguma maneira, tenha vivenciado. Por isso, consideramos que a perspectiva intergrupal de Tajfel continua sendo atual, servindo de referencial para nossos estudos psicossociais, especialmente para o estudo da memória coletiva, visto que:

(...) un individuo en una infi nita variedad de situaciones a lo largo de su vida siente, piensa y se comporta en términos de su identidad social, creado por los diversos grupos de los que es miembro, y en términos de su relación con la identidad social de los demás, en tanto que individuos o en mase (grifo do autor). Resulta igualmente evidente que esta conducta social está determinada en gran medida por las relaciones entre los grupos a los cuales pertenece, así como entre otros grupos, y que la naturaleza de estas relaciones, a su vez, debe en gran parte a las regularidades socialmente compartidas de la conducta in-tergrupal. Éste es, por lo tanto, un fenómeno social que puede ser considerado

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par excellence (grifo do autor) de la interacción entre el individuo y el marco social. El marco social de las relaciones intergrupales contribuyen a hacer a los individuos lo que son; éstos a su vez producen ese marco; ambos se desarrollan y cambian simbióticamente. (Tajfel, 1984: 52)

Desta maneira, como aponta Ansara (2000), o processo inter-grupal, socialmente com-partilhado, contribui para a construção de diferentes e múltiplas memórias, tantas quantas forem as identifi cações sociais e, mais ainda, quanto maior a identifi cação e o sentimento de pertença, e quanto mais positiva for a avaliação do próprio grupo sobre si mesmo, mais implicações incidirão sobre a memória coletiva do evento, de modo que o nível de com-promisso psicológico do indivíduo com o grupo contribui para a construção da memória coletiva de um determinado evento. Dito de outra maneira, quanto mais identifi cado com o grupo, mais consistente será a memória sobre os eventos que o grupo realizou ou viven-ciou em comum (Ansara, 2000).

Assumimos, portanto, a mesma postura psicossocial de Tajfel e Halbwachs que ana-lisam os fenômenos da identidade social e memória coletiva, respectivamente, a partir das relações que os indivíduos estabelecem com seus grupos de pertença e sua cultura, e, nesse sentido, como processos que são confi gurados a partir de signifi cados sociais veiculados pelos símbolos, idéias, ideologias, valores, códigos culturais presentes nos grupos e na sociedade. Neste aspecto, Gamson (1992) corrobora ao afi rmar que o com-portamento consciente se dá por meio das relações sociais que o indivíduo mantém com seu mundo exterior, cuja vida social se apresenta como um processo dinâmico em que cada sujeito é ativo, havendo uma interação entre o mundo cultural e o mundo subjetivo de cada um.

Esta interação faz com que as pessoas construam signifi cados sobre a questão política a partir da relação que elas estabelecem em sua vida cotidiana, de modo que, como aponta Gamson (1992), estas não são passivas e estão constantemente negociando signifi cados com as mensagens da mídia e com outras instituições. Além da mídia, as pessoas contam com o conhecimento de suas próprias experiências e seu conhecimento popular na cons-trução de signifi cados. A consciência política, portanto, surge da interação entre cultura e cognição, entre opiniões individuais sobre o mundo cultural e social e opiniões sobre os sistemas de ideologias, sejam eles instituições, mídia, símbolos, códigos culturais, etc.

Essa consciência, em seu aspecto cultural, é representada por tradições que enfocam o discurso e a ideologia, sendo parte do processo de dominação da elite, que tem a habilida-de de formar a visão de mundo das pessoas, de modo que, qualquer mudança na consci-ência implica uma “trabalhosa luta simbólica”, que envolve signifi cados e interpretações dos fatos (Gamson, 1992a).

Podemos dizer, então, que qualquer mudança na consciência supõe um processo de desideologização e conscientização que, como sugere Martin-Baró (1998),

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(...) no consiste en un simple cambio de opinión sobre la realidad, en un cambio de la subjetividad individual que deje intacta la situación objetiva; la concientización supone un cambio de las personas en el proceso de cambiar su relación con el medio ambiente y sobretodo con los demás. (Martín-Baró, 1998:170)

A nosso ver, a memória coletiva é construída a partir de signif icações e interpre-tações dos fatos, onde instituições sociais como escola, igreja, movimentos sociais, bem como a ideologia veiculada pelos meios de comunicação e mesmo o senso co-mum, atuam como instrumentos de mediação destes signif icados e exercem grande influência no processo de formação da consciência das pessoas (Gamson, 1992a). Isso signif ica que o estudo da memória coletiva exige uma análise psicossocial que compreenda todo esse universo simbólico e ideologizado que constitui a memória da sociedade.

Nesse sentido, ao estudarmos a memória coletiva da repressão no Brasil, assumi-mos uma postura epistemológica dentro da psicologia social e um compromisso teóri-co, claramente proposto por Martín-Baró e muito bem ressaltado por Blanco (2001): “(...) es necesario que la Psicología social contribuya a desideologizar la experiencia cotidiana(...)” (p.145), o que supõe desmascarar a rede de crenças e representações sociais que, ao longo dos séculos, foram dadas como “boas”, mas encobriram falácias teóricas sustentadas em valores que defendem o predomínio natural de uns sobre os outros; significa desmascarar o senso comum que justifica o sistema explorador e opressor; significa transmitir um novo saber sobre a realidade que ajude a modificar as relações que as pessoas têm com seu meio econômico e social (Blanco, 2001). Essa desideologização, que implica também um “(...) proceso de descodificación, nuevo saber sobre la realidad circundante y la recuperación de la memoria histórica” (Blanco, 2001:147) tem sua continuidade na conscientização, que é a própria práxis, a qual procura responder aos problemas sociais, vai contra a mentira social, rompe com a dinâmica que mantém a ordem social, e reverte o conhecimento ao povo possi-bilitando a transformação social (Blanco, 2001).

Portanto, ao realizarmos um trabalho, no campo da Psicologia Política, que procura resgatar a memória coletiva de um período repressivo, muitas vezes ocultado da sociedade brasileira – por meio da manipulação política e ideológica dos meios de comunicação ofi ciais, da escola formal, do futebol, da imposição do medo, do milagre econômico6 e do patriotismo pregado pelo regime militar no Brasil – o fazemos tendo em vista compreender

6No Brasil a normalização, via violenta repressão, tomou a forma do ‘milagre econômico’ dos anos 70, da ‘distensão, lenta, gradual e segura’, da ‘abertura’, da anistia submetida ao veto militar e marcada pela interdição de investigação do passado, de fortes prerrogativas militares institucionais, da mais longa transição, que concorre para o esquecimento ou diluição da memória coletiva, do terror implantado pela ditadura militar (Cardoso, 2001:149-150) [grifos da autora].

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as contradições sociais presentes na memória coletiva, sobretudo por parte dos que estão predispostos a agir contra os mecanismos repressivos, quais sejam lideranças perten-centes às classes populares.

Não se pode separar o estudo da memória coletiva da repressão do seu caráter político e ideológico. Nesse sentido, assumimos uma responsabilidade histórica de trazer à luz a memória política de segmentos das classes populares, procurando des-mascarar a “memória oficial” que foi produzida, como bem aponta Coimbra (2001), pelo poder ditatorial para apagar as marcas da resistência e luta das classes populares numa tentativa de ocultar da sociedade brasileira a história dos “vencidos” como se estes não pertencessem ao cenário político.

Dessa maneira abrimos a possibilidade de pensar uma “memória política” que mostre que não existe uma única memória, mas bem existem “memórias subterrâ-neas” que, fazendo parte das “culturas minoritárias e dominadas” se contrapõem à “memória oficial” (Pollak 1989:4).

Para tanto, realizamos entrevistas individuais semi-estruturadas com lideranças comunitárias e sindicais de três capitais brasileiras (Belo Horizonte, Curitiba e São Paulo), na faixa etária de 25 a 40 anos, tendo como critérios fundamentais o fato de não ter vivenciado a época da repressão no Brasil e de estar atuando nos movimentos sociais, comunidades e em diferentes categorias sindicais.

As lideranças sindicais exercem alguma função na diretoria de seu sindicato e muitas atuam também em movimentos sociais, comunidades eclesiais de base (CEBs), organizações não-governamentais (ONGs), associação de moradores ou em partidos políticos. As lideranças comunitárias atuam na periferia das capitais onde realizamos a pesquisa e participam de associações comunitárias, comunidades eclesiais de base e movimentos sociais. Algumas delas, simultaneamente, atuam em partidos políti-cos. Nossos sujeitos de pesquisa nasceram e/ou vivenciaram o período pós-ditadura, sendo suas memórias construídas sob o impacto do processo de redemocratização, sobretudo porque é nesse período que os movimentos sociais começam a intensificar suas lutas, voltando a se manifestar publicamente e com mais liberdade, depois de vinte e um anos de repressão e ditadura militar.

As categorias de análise que utilizamos emergiram dos discursos de nossos entre-vistados, sendo que nos centramos em alguns aspectos que consideramos relevantes para analisar as interfaces entre a memória coletiva e a consciência política. Não é difícil perceber que os discursos das lideranças sindicais e comunitárias apontam para a existência de uma memória política que vem sendo construída pelos movimen-tos sociais e pelas classes populares que contradiz aquilo que foi transmitido pela memória oficial.

Nesse sentido, essa memória política, como veremos a seguir, rompe com o cará-ter ideológico e alienante da memória oficial, uma vez que se contrapõe claramente

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às versões que foram instituídas e fixadas pela história oficial, através de mecanis-mos de manipulação como a escola e a mídia.

Memória Política: as interfaces entre memória coletiva e consciência política

Ao analisar a memória coletiva da ditadura buscando as interfaces com a consci-ência política, fomos, pouco a pouco, delineando o que ora denominamos memória política. Evidentemente, não é o fato de existir uma memória coletiva da ditadura que garante a existência de uma memória política. Não obstante, são os elementos pre-sentes na construção desse passado da ditadura, com suas ressignificações, crenças e valores, símbolos, idéias e posicionamentos políticos que vão indicando o caráter po-lítico dessa memória. É evidente também que se realizássemos um estudo da memória política da população brasileira em geral, não seria somente o passado da ditadura que faria parte dessa reconstrução, talvez nem o fizesse. Entretanto, o caráter particu-lar da análise desta memória é o fato de encontrarmos uma memória política, a partir do estudo de um período político específico, como é a ditadura militar brasileira.

O fundamental é poder perceber como a memória coletiva se converte numa me-mória política, já que entendemos que toda memória política é coletiva, mas nem toda memória coletiva é política. O que, então, diferencia a memória coletiva da memória política?

Tentaremos fazer essa diferenciação por meio das nossas análises procurando sis-tematizar o conjunto das lembranças mais significativas e os destaques que aparece-ram nos discursos dos entrevistados, tendo em vista analisá-los, considerando as sete dimensões da consciência política apontadas no modelo teórico de Sandoval (1994; 2001). Para isso, estabelecemos dois eixos de análise a fim de compreender os múlti-plos significados presentes nesses discursos que configuram a “memória política da ditadura militar no Brasil”.

No primeiro eixo, estabelecemos a relação entre as histórias contadas por fami-liares, amigos ou militantes que viveram a época da ditadura e as lembranças dos entrevistados (as vividas e não vividas), ou seja, tentando perceber como se dá a reconstrução dos fatos e acontecimentos do período a partir do intercâmbio de expe-riências com os atores que vivenciaram o período.

No segundo eixo, procuramos perceber a relação que existe entre a militância política – considerando a participação política dos entrevistados em sindicatos, comunidades, movimentos sociais e partidos políticos – e o conhecimento que têm da ditadura, o qual se refere às tramas da memória coletiva, expressa através de alguns de seus discursos e de suas próprias lembranças, que inclui o que sabem da ditadura, os destaques do período e as lembranças signif icativas.

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As Tramas da Memória: histórias contadas x lembranças dos ent-revistados

Neste primeiro eixo, relacionamos as histórias contadas pelas pessoas que viveram a ditadura com as lembranças dos entrevistados (vividas ou não vividas por eles) – prin-cipalmente no que se refere aos destaques que eles deram ao período e às lembranças que foram mais signifi cativas para eles.

Cabe aqui uma distinção entre a lembrança vivida pelas testemunhas e as lembran-ças construídas a partir das experiências contadas. O grupo que vive diretamente um fato recorda por meio da seleção de um conjunto de representações sociais que ele organi-za, de maneira idiossincrática, a partir das identifi cações com seus grupos de pertença, seus valores e crenças, seus signifi cados, enquanto que os grupos que não viveram os fatos diretamente recordam a partir das suas identifi cações com aquilo que é contado por outras gerações, ou seja, ressignifi cando aquele passado a partir das suas experiências do presente. A identifi cação com a dor e o sofrimento daqueles que lutaram e se organizaram contra a repressão provocam sentimentos de injustiça, indignação e revolta que podem impulsionar a ação política.

Nesse sentido, a memória coletiva não é nem “reprodução”, nem pura “representa-ção”, mas, como nos aponta Halbwachs (1992), se ancora nas “representações coletivas” presentes nas sociedades e nos grupos para reconstruir o passado com os signifi cados do presente, passando, portanto, por constantes processos de ressignifi cação.

Embora alguns dos entrevistados afi rmassem que não tiveram contato com pessoas que viveram aquela época, a maioria deles teve algum tipo de contato com pessoas mais próxi-mas, como familiares e amigos. Quase todos os entrevistados disseram ter tido algum tipo de contato com sindicalistas ou militantes de partidos ou movimentos sociais que viveram ou atuaram naquela época. Inclusive uma grande parte desses contatos se deu no interior dos movimentos em que eles participam.

Não foram muitos os contatos com não militantes, entretanto, a maioria dos não militantes com os quais tiveram contato foram seus próprios familiares que, segundo eles, eram desinformados sobre o assunto ou ainda negavam os acontecimentos. Alguns apon-tam amigos que viveram a época e contam que foram perseguidos. Eles também tiveram contato com não militantes que sofreram perseguições e com não militantes que se acovar-daram por medo da repressão do período.

E, é hoje eu conheço muita gente próxima de mim, que fugiu muito dos

militares, da perseguição policial dos militares, né, que saía de uma cidade

pra outra, que abandonou a família, que inclusive chegou a ser presa, né.

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Conheço, sim. Hoje eu conheço muitas pessoas. (...) E conheço as pessoas

que também passaram pelo processo e nunca se manifestaram e confessam

que tinham medo. Porque elas sabiam de histórias de amigos, né. Então

assim, eu tenho pessoas das minhas relações que também relata isso, que

na época foi covarde, né, as pessoas se intitulam assim, né. (Eliana – lide-rança sindical)7

Repressão e Resistência nas Lembranças dos Entrevistados

Embora nos discursos das lideranças entrevistadas tenha aparecido a repressão, há que se perceber a ênfase dada à resistência a essa repressão. Haja vista que apontam vários destaques que expressam muito de seus sentimentos com relação aos acontecimentos do passado: tristeza, dor, indignação, sentimentos de justiça e injustiça, vontade de agir e esperança. Descrevemos, a seguir, os elementos que giram ao redor da oposição repressão x resistência.

Um dos primeiros aspectos que chama a nossa atenção é a relação entre repressão e resistência apontada pelas lideranças, que refl ete a forte correlação de forças existente na época da ditadura, as quais de alguma maneira estavam polarizadas na sociedade brasi-leira: de um lado, a organização e fortalecimento dos movimentos sociais que manteve e mantém a esperança na organização popular e, de outro, o cerceamento da liberdade e a violência política que deixaram cicatrizes profundas, conforme percebemos nos seus discursos.

Alguns entrevistados apontaram como destaque, especifi camente, a repressão da épo-ca, indicando os mecanismos utilizados pelo regime militar e as conseqüências deste perí-odo para o país como, por exemplo, a repressão imposta por meio da violência, do abuso de poder, das torturas, das mortes, dos desaparecimentos e dos exílios que foram extrema-mente marcantes na memória dos entrevistados:

Um dos mecanismos mais efi cazes de manutenção da ditadura militar, segundo eles, foi o apoio da mídia aos militares e a manipulação ideológica realizada através da mídia que encobria os acontecimentos à população.

A esse respeito, Coimbra (2001) afi rma que os meios de comunicação de massa são até hoje “um dos responsáveis pelo fortalecimento dessa história ofi cial, sendo o lugar privilegiado de uma determinada memória social” (p.52).

O atraso e o retrocesso que a ditadura provocou ao Brasil são apontados por Emerson que avalia que o estrago no país foi tão grande que é irrecuperável, principalmente em função das conseqüências econômicas que repercutem até hoje e das vidas que foram sacrifi cadas durante o período.

7Todos os nomes das lideranças mencionados são fi ctícios.

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Olha, eu acho que é um pouco isso, esse retrocesso do país, esse andar pra

trás, né, essa, esse cerceamento do modo de pensar, da cultura brasileira que

foi cerceada de se expressar, do momento econômico que o Brasil viveu que

foi dramático pra todos nós. Acho que até hoje nós estamos vivendo isso. Eu

destacaria isso porque esse país ele é tão grande, é tão imenso que é inacei-

tável que um país como o nosso, o Brasil, nesse período, ele andar pra trás.

Ele andou pra trás e isso é uma coisa que eu acho que vai demorar séculos,

séculos pra gente recuperar isso. (Emerson – liderança comunitária)

Contudo, não foi só o sofrimento e a dor, provocados pela repressão, que marcaram esse período. Nas suas memórias, estão presentes as formas de resistência que fl oresceram contrapondo-se à repressão. A ditadura militar, pelo seu endurecimento, acabou sendo um campo fértil para a cultura, principalmente a música, a poesia e a arte. Foram necessárias muita criatividade e artimanhas para superar situações tão repressivas, como bem aponta Eliana: “buscaram outras palavras e buscaram a alegria e o humor pra conseguir passar

tempos tão difíceis”. Nessas “lembranças signifi cativas, também, estão presentes os sen-timentos experimentados pelos entrevistados ao conhecer esse passado. No que tange aos sentimentos que acompanham o processo da lembrança, Halbwachs afi rma que permanece em nossa memória um quadro real dos sentimentos que nos acompanham no momento em que as imagens “ferem o nosso olhar”. Segundo este autor: “Nossos sentimentos e nossos pensamentos mais pessoais buscam sua fonte nos meios e circunstâncias sociais defi nidas” (Halbwachs, 1990: 36).

Além disso, por meio dessas lembranças signifi cativas, os entrevistados constroem uma memória que permite algumas aproximações com a história do período, mas que não se vincula com a “memória ofi cial” construída pelos governos militares, muito pelo contrário, questiona tanto a história que aprenderam na escola superfi cialmente, quanto as artimanhas utilizadas pelo regime para encobrir os fatos.

Ao relacionar as histórias contadas pelas testemunhas com as lembranças dos entrevis-tados, notamos que as lembranças signifi cativas vão além do que contam seus protagonis-tas, visto que se acrescentam, em seus relatos, suas trajetórias individuais e coletivas, suas práticas sociais, os conhecimentos adquiridos através da mídia, de livros e da escola que permitem a atualização do evento passado.

Observamos que a supressão da liberdade de expressão e o cerceamento da liberdade aparecem tanto naquilo que contam as testemunhas, quanto nos destaques dados pelos entrevistados. O mesmo ocorre com a questão da repressão, por meio das perseguições e mortes, da violência e abuso de poder.

Em suas lembranças signifi cativas, os entrevistados se remetem às histórias que lhes foram contadas pelas testemunhas no que diz respeito à repressão da época como: a) o abu-so de poder através da violência, do exílio, das torturas, das prisões; b) o AI-5, as torturas,

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o exílio daqueles que protestavam por meio da música; c) a questão dos desaparecimentos das vítimas da ditadura que até hoje suas famílias não sabem se estão vivas ou não; d) no caso de Perus, todas as lideranças, sem exceção, apontam como lembrança signifi cativa a Vala comum existente no bairro e se recordam, especialmente, daqueles presos políticos que lutaram contra o regime militar e foram mortos e enterrados como indigentes.

Entretanto, ao se remeterem a esses fatos, ou seja, ao conhecerem o passado, os entre-vistados expressam seus sentimentos de justiça e injustiça, sentimentos estes que fi zeram com que houvesse: a força da organização popular; a coragem e a garra das pessoas que

lutaram contra a ditadura. Cabe ressaltar que, na concepção de Sandoval (2001), o sentimento de justiça e injus-

tiça é uma das dimensões da consciência política em que o indivíduo percebe que houve a violação do sentimento de reciprocidade, o que estabelece uma situação de injustiça que produz o descontentamento político levando a manifestações de protestos.

Além do sentimento de justiça e injustiça, dentro deste eixo de análise, merece destaque a dimensão da identidade coletiva. Embora os entrevistados não tivessem uma convivência direta com as pessoas que viveram a repressão, o fato destes contatos terem sido feitos, em sua maioria, através da militância política, levou-os a estabelecer uma forte identifi cação social com essas pessoas que tiveram garra, e com os próprios movimentos sociais respon-sáveis pela força da organização popular. A nosso ver, é essa identifi cação que os leva para além da memória narrada pelas testemunhas, visto que está contido, em seus discursos, o valor que eles atribuem às lutas do passado, com as quais eles se identifi cam. Essa identi-fi cação passa também pelas crenças e valores societais que foram construídas no interior de seus grupos de pertença em que eles mantêm, ou pelo menos tentam manter o espírito de luta daqueles militantes que deram suas vidas por uma causa coletiva.

Assim sendo, nas lembranças dos entrevistados, a repressão sempre aparece com o seu contraponto: a resistência dos movimentos sociais ou o fortalecimento da organização popular.

Eu, é, eu acho que é isso. A organização, né, ao fortalecimento dos movi-

mentos sociais como ponto positivo, né. E a maior atrocidade mesmo, eu

acho que é o cerceamento da liberdade e a tortura, assim. Fazendo dois

paralelos. Eu acho que o fortalecimento dos movimentos sociais é uma coisa

muito legal e, por outro lado, o cerceamento da liberdade e o processo de

violência física, né. Por isso. É o que tem mais forte na memória. (Andréa – liderança sindical)

Surgem, portanto, elementos que não aparecem naquilo que contam, visto que a memória de uma geração que não viveu aquele passado acrescenta os dados das suas vivências mais recentes, como é o caso das “Diretas já”, que já se refere ao processo

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de transição à democracia, a ressignifi cação e interpretações feitas pelos entrevistados a partir do presente. Como exemplo concreto disso, os entrevistados salientam que o conhecimento da ditadura proporcionou o posicionamento político na luta pelos direitos em vista da mudança social e o rechaço à ditadura militar que, segundo eles, signifi cou um retrocesso para o país.

Tanto nos destaques que os entrevistados fi zeram do período quanto nas lembranças que eles consideram mais signifi cativas, são apontadas as experiências de um passado mais próximo como, por exemplo: a) as experiências do movimento estudantil; b) as lembranças das lutas pela libertação, os enfrentamentos e a própria organização do partido8 do qual fazem parte; c) a transição à democracia que foi o período em que começam a ter consci-ência da realidade política; d) o período fi nal da ditadura - o da abertura política - embora nem todos tenham vivenciado esse período como militantes.

A ênfase dada às lembranças do período da abertura política, nos permite afi rmar que suas memórias são também memórias da experiência dos novos movimentos sociais, ou seja, memória daquele sujeito coletivo que emerge nos anos oitenta como o grande ator social das mobilizações e manifestações públicas contra o Estado. Esta afi rmação é impor-tante porque na memória coletiva, os tempos se misturam, não há uma ordem cronológica, visto que essas memórias se deslocam do período da ditadura para o da abertura política e para o momento presente, sendo as lutas políticas dos movimentos sociais o referencial dessas memórias.

Nesse sentido, a memória coletiva transita por estes tempos que incluem períodos dis-tintos e contextos diferentes, refazendo, reconstruindo e repensando o passado com as idéias e imagens de hoje. Lowenthal (1998) nos diria, o passado como tal é incognoscível uma vez que novos signifi cados do presente alteram o conteúdo e o valor do evento pas-sado.

A vivência dos entrevistados, neste estudo, se situa em tempos e espaços distintos, que percorrem, inclusive, diferentes gerações, visto que estes pertencem a diversos grupos e estão mergulhados (para usar as palavras de Halbwachs) em “vários tempos coletivos” e participam, assim, de “vários pensamentos sociais”.

Portanto, ao reconstruir a memória política da ditadura militar no Brasil,

Perpassamos diferentes gerações, nos deslocando do “tempo cronológico”, onde circunscreve-se o evento pesquisado - o contexto da ditadura militar - ao “tempo social ou psicológico”, tempo este múltiplo e diverso caracterizado por diferentes signifi cações que nos permitiram mergulhar em diferentes “pensamentos coletivos”, como diria Halbwachs. (Ansara, 2000:143)

8Os Partidos dos quais eles fazem parte são o PC do B (Partido Comunista do Brasil) e o PT (Partido dos Trabalhadores).

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Nesse percurso, constatamos que as lembranças dos entrevistados têm uma referência comum às histórias contadas que é a luta política. Sendo assim, ambas as lembranças “contadas” ou “vividas” passam pelo prisma da consciência política que as convertem em memória política.

Não obstante, essas memórias se diferenciam da história, uma vez que nossos sujeitos não as fi xam numa época, num tempo e espaço determinados, mas vão atribuindo novos sentidos ao passado que é atualizado pelas experiências e práticas do presente. Assim, a memória política das lideranças sindicais e comunitárias não se vincula àquilo que foi transmitido ofi cialmente, mas demonstra uma ruptura com aquilo que foi difundido pela memória ofi cial na medida em que esses sujeitos reinterpretam esse passado pelo prisma de uma consciência política que recusa a história “não contada” ou “mal contada” e, ao mesmo tempo, reconstroem esse passado com os signifi cados do presente.

Memória Política: o impacto da consciência política

Neste segundo eixo, analisamos de maneira um pouco mais detalhada como essas me-mórias se relacionam com as dimensões da consciência política, desenvolvidas por Sandoval (2001), centrando nossa refl exão nas dimensões como identidade social, crenças e valores

societais, sentimentos antagônicos e identifi cação de adversários, sentimentos de efi cácia e

inefi cácia política e sentimentos de justiça e injustiça que perpassam essas memórias.Os entrevistados deixam bem claro que tomaram conhecimento da ditadura militar,

principalmente por meio da sua participação política, ou seja, da militância política nos sindicatos, nas CEBs, nos movimentos sociais, onde foi se constituindo uma consciência política que os levou a se interessar pela questão da ditadura militar e que, a nosso ver, favoreceu a construção de uma memória política da ditadura militar.

Os discursos dos entrevistados nos permitiram identifi car que há uma mútua infl u-ência entre a consciência política e a construção da memória política da ditadura militar. Observamos que a dimensão “identidade coletiva e identifi cação social” está fortemente presente em suas memórias coletivas. Fabíola, por exemplo, utiliza o próprio termo iden-tidade coletiva para expressar que foi o aspecto identitário, construído pelos movimentos sociais na luta contra a ditadura, o mais signifi cativo na memória coletiva. Ela, inclusive, ressalta que é essa identidade coletiva que marca o período, muito mais do que os fatos ocorridos na época:

O que fi ca pra mim do período militar é uma identidade, um pouco cole-

tiva, que o próprio, os próprios movimentos eles passam é, no sentido da

repressão, é, da luta política que se travou no período. Então, é mais essa

memória coletiva mesmo do que conhecimento de fatos, de pessoas do pe-

ríodo. (Fabíola – liderança comunitária)

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Para ela, a repressão também marcou, mas o que mais se destaca é a força dos militan-tes daquela época:

Ah, a repressão. Eu acho que é o mais forte. É, e a força dos militantes

daquela época. É, eu, eu invejo um pouco aquele engajamento de, de total

desprendimento com a própria vida, né, em função de uma vida coletiva.

Isso acho que, é, aquilo que eu coloquei. A gente hoje é militante, em parte.

A gente tem uma vida que, né, uma vida individual, particular, privada e uma

vida militante. E, aquelas pessoas não. Era a vida inteira é, completamente

doada pra causa. Isso é o que mais me, me inveja, no sentido positivo. Que

fi ca de positivo, daquele período. (Fabíola – liderança comunitária)

Do ponto de vista de uma análise psicopolítica, podemos dizer que Fabíola sente-se identifi cada com os movimentos sociais e valoriza a capacidade deste grupo e o nível de engajamento dos militantes que constituem esses movimentos. Para ela, o sen-timento de coesão social existente nos movimentos que atuaram no passado, a faz sentir inveja e ela não deixa de comparar com as pessoas que participam hoje dos movimentos sociais, julgando que elas não possuem essas características.

Cabe lembrar aqui que estamos destacando a dimensão de Identidade Coletiva proposta por Sandoval (2001), que é entendida como sentimento de solidariedade, desenvolvido pelo indivíduo por meio dos laços interpessoais que geram um sentimento de coesão social e que o faz identifi car-se com diferentes categorias sociais. Nesse processo, o indivíduo desenvolve um sentimento de pertença ao grupo, valorizando esses laços, criando confi ança e credibili-dade na capacidade do grupo e expectativas com relação a manter ou quebrar a solidariedade grupal e ainda atribuindo valor à reação de outras pessoas dentro e fora do grupo. Dessa ma-neira, as pessoas passam a compartilhar interesses comuns, que as levam às reivindicações coletivas, de modo que atribuem valor às metas grupais e à mudança social como benefício pessoal e coletivo, instrumentalizando-se para alcançar a mudança desejada.

Assim como o discurso de Fabíola – que é liderança do movimento de mulheres e se identifi ca com os movimentos sociais – outros discursos apontam que aquilo que os en-trevistados sabem tem uma estreita relação com as experiências que eles desenvolvem em seus grupos de pertença.

As lideranças sindicais expressam claramente sua identifi cação com o sindica-lismo, destacando as experiências de luta do movimento sindical, da classe trabalhadora e reforçando a idéia de que “(...) os discursos são construídos no interior dos grupos com os quais nos identifi camos e a partir dos quais reconstruímos nossa memória” (Ansara, 2000:96).

Outra dimensão que perpassa a memória dos entrevistados é a dimensão de Crenças,

Valores e Expectativas societais do modelo de Sandoval (2001), que retomamos aqui para

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fi car mais clara em nossa análise. Essa dimensão expressa a ideologia política e a visão de mundo que os indivíduos desenvolvem em relação à sociedade e diz respeito também à representação social que os indivíduos constroem sobre a estrutura social, as práticas e fi nalidades das relações sociais. Por isso, são muito interessantes as críticas que os entre-vistados fazem com relação à estrutura social do regime militar.

Então é assim, é, o que eu sei da ditadura é que foi um tempo muito ruim para

o Brasil. Eu acho que esse tempo, eu associo a ditadura com o futebol. Eu

não suporto futebol. Porque eu sei que usaram o futebol pra fazer com que

o povo não olhasse o lado político do país, né. (...) O que eu sei é que teve

muita gente que sofreu e que o povo brasileiro até hoje sofre a conseqüência,

e hoje no meu dia-a-dia do sindicato, quando alguém fala mal do sindicato,

eu sei que ela tá falando ainda porque ela foi ideologicamente programada

pra pensar assim. Programada pra achar que o Estado, né, nas mãos dos

militares é melhor do que hoje, né. E que, então, pra mim é uma história

de muita revolta e se, eu não quero usar dos mesmos artifícios e da mesma

violência que eles usaram, mas me dói muito e, eu tenho vontade, às vezes,

de fazer a vingança da mesma forma, né. (Eliana – liderança sindical)

Notamos que Eliana faz uma leitura crítica do período, manifestando que existiu toda uma ideologia na sociedade que fez com que a população da época acreditasse que a di-tadura era boa para o país. Ao constatar essa ideologia fomentada pelo regime militar, ela afi rma sentir revolta e chega a manifestar um desejo de vingança. Parece que por trás desse sentimento de revolta, existe um profundo sentimento de injustiça com respeito ao que foi esse período para o Brasil.

Cabe ressaltar que, numa análise psicopolítica da memória coletiva, “Crenças, Valo-

res e Expectativas societais” é uma dimensão extremamente importante, visto que toda construção da memória possui um conteúdo ideológico bastante visível. É inevitável que o sujeito narre os fatos e manifeste seus valores, suas crenças, suas opiniões e seu posicio-namento político.

Em se tratando da memória política, esse aspecto parece ainda mais forte, pois ao evo-car o passado, os sujeitos claramente manifestam seus juízos de valor, suas identifi cações sociais, que expressam suas posições políticas ou mesmo a posição política daqueles aos quais se referem como tendo vivenciado o passado.

Desta maneira, a memória tanto pode vincular-se diretamente à espontaneidade da vida cotidiana, permitindo a cristalização de crenças e valores societais que podem levar à alienação e ao comodismo do sujeito, como pode romper com essa estabilidade na medida em que seja capaz de reinterpretar o cotidiano através de valores e crenças que negam esse comodismo. A esse respeito Sandoval afi rma que:

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ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSICOLOGIA POLÍTICA

(...) a rotina quotidiana é aquele aspecto da realidade social que mais se presta à alienação, a qual se manifesta na co-existência silenciosa entre as tarefas envolventes do viver diário e da ordem social maior que o determi-na. Alienação é tipicamente expressa em suposições não-questionadas da inevitabilidade da rotina diária e o ‘natural’ das desigualdades e dominação nas relações de poder na sociedade, tal como se encontram estruturadas. A aceitação espontânea de normas sociais e em última instância da estrutu-ração de classes, desigualdades sociais, e submissão política disfarçada de ‘requisito’ do viver rotineiro, podem ter o efeito de tornar o indivíduo um conformista na medida em que carece da instrumentação intelectual para um raciocínio sistemático e crítico, e das práticas diárias do exercício democrá-tico de direitos e obrigações de cidadania. Essa alienação, evidenciada no fragmento da consciência das pessoas, é melhor ilustrado na difi culdade que tem de conceitualizar a estrutura social, a estratifi cação social e o regime democrático. (Sandoval, 1994:64-65)

A fala de Anderson, descrita abaixo, demonstra bem o que afi rma Sandoval:

Olha um pouco do que a história deixa de contar, um pouco do que a história

conta, mas na verdade muito pouco, né. Na verdade a gente, simplesmente,

tem idéia da, da difi culdade que foi aquele período e uma das coisas que eu

não consigo imaginar, inclusive que eu tenho difi culdade de tentar interpretar

naquele período é como a maioria da população, né, é considerava aquilo

normal. Uma época até meio apática, né, de um sistema repressor que existia

na época, né. A sociedade continuava, é claro que não na normalidade, mas

como se aparentasse, né, tá na normalidade. Então na verdade é eu tenho

até uma certa difi culdade de entender, né, como é que se transcorreu todo

aquele período lá. É quando a gente começa, eu comecei a entender o que

foi aquele período já tava no, no né, começa a ter uma consciência política

já tava no fi nal, numa época de transição, né. E, historicamente é difícil

entender, né, porque a gente consegue saber do período é o que a gente lê,

né, de movimento estudantil, de alguns movimentos pontuais de guerrilha

que houve, mas fora isso, né, parece que a sociedade conseguiu captar isso

e levar a vida na normalidade. (Anderson – liderança sindical)

No momento em que Anderson afi rma ter adquirido consciência política, ele exerce a sua capacidade de conceituar a estrutura social existente na ditadura, manifestando que fi ca difícil para ele entender como que a sociedade brasileira conseguia levar a vida na normalidade, com toda a repressão daquela época. Em outras palavras, fi ca difícil, para

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ele, compreender a alienação das pessoas, fi ca difícil entender como a população aceitava com normalidade a situação que se vivia na ditadura.

A nosso ver, ao reconstruírem a memória política da ditadura militar, esses sujeitos fazem uma ruptura com a rotina cotidiana e deixam claro que sua visão política referente à sociedade é totalmente distinta daquela apregoada pelo regime militar, a qual provocou a alienação da maioria da população. Nesse sentido, as dimensões do modelo de Sandoval facilitam o entendimento do processo de reconstrução da memória política.

Além de manifestar o posicionamento político-ideológico dos entrevistados, os dis-cursos revelam os Interesses antagônicos e a identifi cação de adversários, visto que, para os entrevistados, o regime militar é um claro adversário político que deve ser combatido: “Eu acho assim que na época da ditadura, era um, o teu inimigo tava muito mais claro. Então, você sabia que queria outro tipo de governo. Então assim, contra a repressão, claro, violência e tudo que, que aquilo gerava” (Sara – Liderança comunitária).

Lembramos que essa dimensão consiste nos sentimentos do indivíduo em relação ao modo como os interesses simbólicos e materiais são opostos aos interesses de outros gru-pos e como os interesses antagônicos levam a perceber a existência de adversários coleti-vos na sociedade (Sandoval, 2001). Dentro do modelo proposto por Sandoval, essa dimen-são tem um papel chave na consciência política, uma vez que leva à ação coletiva.

Nesse sentido, as lideranças comunitárias e sindicais confi rmam as afi rmações de Sandoval, pois a identifi cação do regime da ditadura como um grande adversário, segundo eles, levou à organização popular, à criação de partidos, à criação de sindicatos, a sair da clandestinidade. Em suma, levou a um posicionamento político que implicou na luta pela mudança de regime.

Sara, demonstra isso, ao salientar o importante papel das Comunidades Eclesiais de Base que lutaram contra a ditadura. E, reconhecendo que o regime militar provocou danos enormes à socie-dade, destaca as lutas por direitos sociais como, saneamento básico, educação, creches, moradia:

Esses dias mesmo eu tava comentando que, algumas coisas que a gente

fala hoje, falei se fosse na época da ditadura, tava no paredão, né. Tava

no paredão. E assim. Pela minha militância nas Comunidades Eclesiais de

Base, e também estudando um pouco a formação das CEBs a gente percebia

assim que, percebe que as CEBs tiveram um papel muito importante contra a

ditadura, né. Foi ali, é, acho que, um espaço aí que começou a formação de

lideranças, da base mesmo pra começar a lutar pelos seus direitos mínimos,

né, básicos de saneamento, educação, creches para as crianças, moradias,

assim, né. Então é, já era, quer dizer, já era visto como um grupo que tava

contra a ditadura, porque né, começaram ali essas reuniões em casas e depois

começaram a formar as comunidades, mas basicamente foi aí que começou

assim pra, pra, é como se diz, as questões básicas mesmo de sobrevivência,

né. (Sara – liderança comunitária)

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Em resumo, podemos admitir que, ao identifi car os interesses antagônicos e os adver-sários, os indivíduos são mobilizados para as ações coletivas. Isso dá um caráter político à memória impressionante, pois revela que conhecer o passado permite às pessoas identifi -car interesses que lhes são comuns e antagônicos na sociedade e nas lutas dos movimentos sociais e sindicais; permite identifi car adversários políticos ou mesmo projetos políticos que não vão de encontro à democracia e as potencializa para novas ações coletivas no pre-sente. Nesse sentido, a memória política é capaz de motivar, alterar, rever comportamentos políticos na sociedade, ou seja, ela está comprometida com a transformação social.

Quando afi rmamos que toda memória política é coletiva, queremos dizer que essa se constrói a partir dos grupos sociais e do contexto político presente, como defende Halbwa-chs (1990). Entretanto, nem toda memória coletiva é política, visto que ela pode ser apenas expressão ritualística ou festiva de determinados grupos sociais, sem nenhuma pretensão de levar a algum compromisso ou comportamento político na sociedade.

Nesta perspectiva de análise, as dimensões de “crenças e valores societais” e “inte-

resses antagônicos e adversários”, parecem infl uenciar de maneira decisiva a memória política, que se caracteriza pelo confl ito, pela disputa entre diferentes versões antagônicas do passado, como aponta Pollak (1989), manifestando nitidamente a oposição entre inte-resses simbólicos e materiais de diferentes grupos e classes sociais.

É bem por isso que afi rmamos com insistência que a memória política das classes populares se contrapõe claramente às versões que foram instituídas e fi xadas pela história ofi cial, desmascarando o caráter ideológico e alienante da memória ofi cial.

Contudo, ela é passível de institucionalizar-se ou cristalizar-se numa única interpre-tação ou ainda na imposição de outra versão “ofi cial” por meio das comemorações, da escrita e da organização de arquivos.

Passamos a analisar, nos discursos, a dimensão da consciência política “sentimentos de

efi cácia e inefi cácia política”, que se refere aos sentimentos das pessoas em relação à sua capacidade de intervir em uma situação política, o que Sandoval (2001) considera chave para mobilizar e gerar uma ação coletiva tendo em vista a mudança social. Lembremos de que uma das explicações para a compreensão do sentimento de efi cácia ou inefi cácia política, que este autor apresenta, é a que atribui as difi culdades enfrentadas pela sociedade às ações de certos grupos ou indivíduos, ou seja, existem grupos, indivíduos, instituições e governos concretos que são responsáveis pela situação de injustiça. Reconhecer isso faz com que as pessoas e/ou movimentos acreditem que suas ações coletivas são uma possibilidade de mudança social.

O discurso de Armando nos chama a atenção por manifestar tanto sentimento de efi -cácia quanto de inefi cácia política. Ele afi rma que, de um lado, a ditadura provocou uma acomodação por parte daqueles que não estavam engajados politicamente, que são aqueles que acham que “não adianta lutar porque não vai mudar”. Por outro lado, ele destaca a importância da organização popular em favor do fi m da ditadura e os protestos nas ruas que mobilizavam desde o camponês até o estudante:

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Acho que mesmo com toda repressão que se apontava, a organização popular

foi algo assim, né, acho que um momento que o país passou que difi cilmente a

gente, não que a gente não consiga reconstruir, mas talvez não nos moldes, de

tão, era a vontade popular de estar nas ruas, de estar gritando. Então, eu acho

que aquele momento, ele quebrou um ciclo onde as pessoas hoje se questionam,

principalmente as que passam de uma certa idade, são mais antigas, caem naquela

acomodação, não, não adianta nada, não adianta lutar porque não vai mudar, né.

(...) Embora pra mim dou um positivo, que é a questão, da, não sei se chamaria de

comoção social, mas da organização popular. De tá indo pra rua como um todo.

Assim desde camponês até estudantes, principalmente puxados pelos estudantes,

naquele momento tal [das Diretas Já], em relação ao momento posterior a ele,

que houve aquela, aquele momento marcante positivo que foi da organização e

o negativo que foi de ter deixado apagar um pouco aquela chama de luta, chama

da continuidade, né. Embora tem outros pequenos sinais tal, mais acho que isso

que fi cou assim pra história. (Armando – liderança sindical)

O sentimento de efi cácia política é manifestado com veemência por Emerson que reconhece a violência praticada pelo regime, que utilizou todos os artifícios para conter as mobilizações e a luta dos militantes, mas que acabou gerando um sentimento de efi cácia política dos que lutaram contra a ditadura. A atitude dos que lutaram contra o regime da ditadura teve um efeito de mudança social que, até hoje, continua demonstrando a sua efi cácia àqueles que estão na luta política hoje:

Eu acho que a violência. A violência é uma das lembranças assim que a gente

vê nos relatos, via nos documentários. E a violência é uma coisa inaceitável, né,

em qualquer âmbito, mas naquele período a violência era pra deixar, era pra

deixar, era pra fazer história, era pra, era pra dizer assim, eu tô te dando um

recado, se você, vocês aí que querem um país diferente, se vocês quiserem fazer

isso, se vocês quiserem, se vocês quiserem questionar essa maneira de governar,

vocês vão sofrer mais do que essas pessoas aqui estão sofrendo. (...) Isso chega a

arrepiar e deixa a gente emocionado porque você imagina a violência que essas

pessoas sofreram e ao mesmo tempo uma coisa que, uma marca também que eu

acho que era interessante é a coragem dessas pessoas, porque essas pessoas, de

fato, deram uma aula de cidadania pro Brasil, mostraram pro esse país que, de

fato esse país tem que ser diferente, esse país é do povo, esse país é plural e eu

acho que são duas marcas: a violência de um lado e a coragem desses militantes,

dessas pessoas que disseram assim, olha esse país não é assim, esse pais não é,

não tem um dono, esse país é de uma nação e nós queremos um país diferente.

(Emerson – liderança comunitária)

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Esse mesmo relato de Emerson expressa o sentimento de injustiça em dois mo-mentos: quando ele afirma que “a violência é uma coisa inaceitável, né, em qualquer

âmbito” e que “isso chega a arrepiar e deixa a gente emocionado porque você ima-

gina a violência que essas pessoas sofreram”. A violência política quebra qualquer laço de reciprocidade, viola direitos, e a intimidade da pessoa e leva à indignação e ao descontentamento coletivo, gerando protestos populares.

O próprio Sandoval (2001), ao falar dos Sentimentos de justiça e injustiça, indica que quando o sentimento de reciprocidade é violado, se estabelece uma situação de injustiça que provoca o descontentamento político e as subseqüentes manifestações de protestos.

Essa estreita relação entre a construção da memória coletiva das lideranças co-munitárias e sindicais com o comportamento político é uma das características da memória política, visto que entendemos que a memória política passa por um prisma pelo qual necessariamente não passam as memórias coletivas, ou seja, o prisma do comportamento político.

Neste sentido, é possível afirmar que a memória coletiva tem implicações no comportamento político das pessoas entrevistadas que constituem diferentes gera-ções e vivenciaram contextos históricos e políticos distintos do mesmo modo que os comportamentos políticos e posturas políticas dessas gerações também influenciam na construção de uma memória política.

Esse comportamento político está intimamente vinculado ao processo de forma-ção da consciência política, uma vez que a consciência política, como nós a concebe-mos neste estudo, consiste em compreender “(...) a inter-relação entre as dimensões psicossociais dos significados e informações que permitem aos indivíduos decidirem como agir em contextos políticos e situações específicas” (Sandoval, 2001:185).

Isso permite entender - como sugere Sandoval (1994) – que, através da consci-ência política, os sujeitos deixam de ser simples sujeitos e passam a participar da sociedade como atores políticos. Assim sendo, a memória política dos atores polí-ticos, quais sejam lideranças sindicais e comunitárias, cumpre uma função ativa e potencializadora da ação coletiva.

A análise que fizemos desses dois eixos permite-nos afirmar que a memória esti-mula a consciência política e proporciona formas de ação coletiva, da mesma maneira que a consciência política – como mostraram os relatos – pode ser determinante na construção de uma memória política. Nesse sentido, reafirmamos que entre elas exis-te uma via de mão dupla, motivo pelo qual a memória coletiva não está separada da consciência política, ou seja, ela é atravessada pela consciência política.

Podemos dizer, então, que ao reconstruir o passado, por meio da memória polí-tica, perpassamos pelas dimensões da consciência política proposta por Sandoval, visto que este processo nos possibilita perceber antagonismos, motivar sentimentos

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de justiça e injustiça, avaliar a capacidade de intervir na realidade, despertar nossa vontade de agir coletivamente e estabelecer metas de ação que possa suscitar, de fato, uma ação coletiva em vistas da transformação social. Desse modo, no processo de participação política, os sujeitos tomam consciência de seu passado, da sua realidade social e política construindo uma memória política que os potencializa e os mobiliza a participar das lutas políticas.

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• Recebido em 12/01/2008• Aceito em 19/05/2008