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640 SOU MULHER! SOU GREMISTA! REPRESENTAÇÕES DA MULHER NO FUTEBOL E AS CRISTALIZAÇÕES DE GÊNERO ENVOLVIDAS NESTE PROCESSO: UMA ETNOGRAFIA SOBRE TORCEDORAS DO GRÊMIO. MARCELO PIZARRO NORONHA Pós-doutorando em Antropologia Social (UFRGS) [email protected] Resumo Neste artigo discuto a participação da mulher no universo do futebol clubístico brasileiro, tendo como recorte analítico trajetórias de vida de torcedoras do Grêmio. Através das suas narrativas, tentei compreender as diferentes motivações que as levaram a escolher o clube gaúcho como o “do coração”. Em termos teóricos, dialoguei com os estudos de gênero, com o objetivo de problematizar o universo do futebol, um território masculino. A revisão bibliográfica sobre a produção cultural futebolística incluiu, além de obras acadêmicas e literárias, documentários e CDs. Em se tratando de questões metodológicas, vali-me de observações participantes, de entrevistas e de depoimentos de torcedoras tricolores, além de fotografias. As conclusões foram baseadas no meu doutoramento em Ciências Sociais e nos estudos mais recentes (Pós-Doutorado). Palavras-chave: Futebol. Mulher. Gênero. Introdução O futebol pode ser considerado um fato social, pois está relacionado a diferentes dimensões culturais, englobando elementos políticos, econômicos, religiosos e pedagógicos, entre outros. Para pensar a importância deste esporte para o país, é interessante recorrer-se a DaMatta (1989: 73), para quem “o futebol no Brasil é um veículo básico para a socialização e um complexo sistema para a comunicação de valores essenciais em uma sociedade altamente segmentada”. Gastaldo (2002) reforça esta visão, ao considerar o futebol (juntamente com o carnaval e as religiões afro-brasileiras) uma das mais importantes manifestações da cultura brasileira contemporânea. Para ele, o chamado “esporte das multidões” opera como uma espécie de “elemento aglutinador” no que diz respeito às representações culturais que se dão acerca de uma ideia de “povo brasileiro”. Hobsbawn (2000: 132) acredita que “nada ilustra melhor a globalização do que as transformações por que passou o futebol na última década”, numa referência à internacionalização das transmissões esportivas e às inúmeras transferências de jogadores entre vários países. Foer (2005) também considera o futebol como uma metáfora da globalização, assim como Melo e Alvito (2006: 7), os quais acreditam que “(...) o conhecimento do mundo em tempos de globalização passa pelo futebol”. Esses autores, inclusive, organizaram uma criativa obra sobre os diferentes modos como o futebol é retratado no cinema. Existem muitos olhares sobre o futebol (ver NORONHA: 2010). Darei ênfase, no entanto, à participação feminina nesse esporte, a partir de uma etnografia sobre torcedoras do Grêmio, com o intuito de compreender as diferentes motivações que as levaram a escolher

SOU MULHER! SOU GREMISTA! REPRESENTAÇÕES DA … · Apesar dos preconceitos, Jurema aceitou o desafio, levando um clube em situação de falência à primeira divisão do futebol

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SOU MULHER! SOU GREMISTA! REPRESENTAÇÕES DA MULHER NO FUTEBOL E AS CRISTALIZAÇÕES DE GÊNERO ENVOLVIDAS NESTE

PROCESSO: UMA ETNOGRAFIA SOBRE TORCEDORAS DO GRÊMIO.

Marcelo Pizarro NoroNha

Pós-doutorando em Antropologia Social (UFRGS)[email protected]

Resumo

Neste artigo discuto a participação da mulher no universo do futebol clubístico brasileiro, tendo como recorte analítico trajetórias de vida de torcedoras do Grêmio. Através das suas narrativas, tentei compreender as diferentes motivações que as levaram a escolher o clube gaúcho como o “do coração”. Em termos teóricos, dialoguei com os estudos de gênero, com o objetivo de problematizar o universo do futebol, um território masculino. A revisão bibliográfica sobre a produção cultural futebolística incluiu, além de obras acadêmicas e literárias, documentários e CDs. Em se tratando de questões metodológicas, vali-me de observações participantes, de entrevistas e de depoimentos de torcedoras tricolores, além de fotografias. As conclusões foram baseadas no meu doutoramento em Ciências Sociais e nos estudos mais recentes (Pós-Doutorado).

Palavras-chave: Futebol. Mulher. Gênero.

Introdução

O futebol pode ser considerado um fato social, pois está relacionado a diferentes dimensões culturais, englobando elementos políticos, econômicos, religiosos e pedagógicos, entre outros. Para pensar a importância deste esporte para o país, é interessante recorrer-se a DaMatta (1989: 73), para quem “o futebol no Brasil é um veículo básico para a socialização e um complexo sistema para a comunicação de valores essenciais em uma sociedade altamente segmentada”. Gastaldo (2002) reforça esta visão, ao considerar o futebol (juntamente com o carnaval e as religiões afro-brasileiras) uma das mais importantes manifestações da cultura brasileira contemporânea. Para ele, o chamado “esporte das multidões” opera como uma espécie de “elemento aglutinador” no que diz respeito às representações culturais que se dão acerca de uma ideia de “povo brasileiro”. Hobsbawn (2000: 132) acredita que “nada ilustra melhor a globalização do que as transformações por que passou o futebol na última década”, numa referência à internacionalização das transmissões esportivas e às inúmeras transferências de jogadores entre vários países. Foer (2005) também considera o futebol como uma metáfora da globalização, assim como Melo e Alvito (2006: 7), os quais acreditam que “(...) o conhecimento do mundo em tempos de globalização passa pelo futebol”. Esses autores, inclusive, organizaram uma criativa obra sobre os diferentes modos como o futebol é retratado no cinema.

Existem muitos olhares sobre o futebol (ver NORONHA: 2010). Darei ênfase, no entanto, à participação feminina nesse esporte, a partir de uma etnografia sobre torcedoras do Grêmio, com o intuito de compreender as diferentes motivações que as levaram a escolher

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o clube gaúcho como o “do coração”.

1. As brasileiras e o futebol

Apesar do crescimento do futebol feminino no país, ainda é modesta a participação da mulher nesse campo, seja como jogadora ou dirigente. A vontade de ingressar no mundo da bola, no entanto, não é nova. Guterman (2009: 24) chama a atenção para o fato de que já no primeiro campeonato paulista (futebol masculino), realizado em 1902, as arquibancadas do Velódromo, onde eram disputados os torneios, “(...) estavam sempre cheias de cavalheiros, de senhoras e de senhoritas”. Cerca de vinte anos após, o futebol feminino conquistou um pequeno espaço, a partir de realizações de partidas na capital paulista. Gianella Júnior (2006: 24-25), no entanto, problematiza este processo, afirmando que “desde aquela época, porém, os homens não viam com simpatia uma mulher correndo atrás da bola (...)”.

A primeira escola pública de futebol feminino de São Paulo foi inaugurada, de acordo com Bruhns (2000), somente em 1994, na data simbólica de 08 de março, “Dia Internacional da Mulher”. Na década anterior, no Rio de Janeiro, foi criada a Liga Carioca de Futebol Feminino, com a participação de nove clubes. Neste período foi organizado o time feminino do Corinthians. Estas experiências foram fundamentais para que em 1981 o Conselho Nacional de Desportos (CND) oficializasse o futebol feminino no Brasil (http://www.superfutebol.com.br/news3.php?.cod=3909, em 13/10/2009).

Uma questão importante foi tratada por Albuquerque (2007: 78), segundo a qual em 1941 “(...) um decreto do governo Vargas proibia as mulheres de praticarem esportes ‘incompatíveis com as condições da natureza’; entre estes esportes, claro, o futebol”. Somente nos anos 80 é que este decreto foi revogado, possibilitando o surgimento de equipes de futebol feminino no país, sendo que muitas foram logo extintas, devido à falta de público e de patrocínio. A falta de um mercado para o futebol feminino é um fator decisivo para que este esporte não se desenvolva no país, por se tratar de um espetáculo (Helal: 2001).

No mundo do esporte, as mulheres ainda ocupam, em grande medida, um lugar secundário, fato que é bem representado no cinema (Moura: 2005). Vale lembrar que atualmente muitos clubes de futebol profissional do Brasil estão lançando filmes sobre histórias, exibindo-os na forma de DVDs, ou mesmo nas grandes telas. Chama a atenção, nessas obras, o fato de que dirigentes, torcedores e atletas, entre outros atores (numa perspectiva sociológica) são frequentemente filmados aos prantos. De acordo com Daolio (2003: 172), por meio do futebol, “(...) o homem reaprende a chorar – de felicidade ou de tristeza – ‘esquecendo-se’ da educação que delegou este comportamento, preferencialmente, às mulheres”. O futebol, portanto, constitui-se como um significativo espaço para a expressão dos afetos masculinos, contradizendo, de certo modo, o senso comum de que “homem não chora”. O apelo emocional que o futebol provoca é bem retratado por Alves (2006: 7), segundo o qual “não há nenhum outro esporte que provoque tanta paixão, tanta alegria, tanta tristeza (...) o futebol é a bola que se joga no jogo das conversas”. Ele entende que o futebol dá um “sentido” para a vida de milhões de pessoas no país.

Retomando DaMatta (2006: 178-179), “(...) na América do Sul em geral e, no Brasil, em particular, o futebol é considerado um jogo (...) tipicamente masculino”, o que faz com que as mulheres ainda sofram inúmeros preconceitos, sendo a maioria deles vinculados às suas orientações afetivas e sexuais. Goellner (2000) questiona este contexto, perguntando-se (e aos seus leitores) sobre o que é ser feminina no mundo contemporâneo.

A respeito da identificação das mulheres com clubes de futebol, Costa (2006: 3) entende que “para se estabelecerem como torcedoras é preciso ir contra uma série de representações

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que fomentaram a ideia de que as mulheres e o futebol atuam em campos opostos”. Em seus estudos, ela retoma nas suas palavras a folclórica figura da “Maria-chuteira”, tão antiga quanto o próprio futebol.

A emancipação da mulher brasileira no campo esportivo está se dando, segundo Mourão (2000), por meio de um processo de infiltração no mundo masculino. Para a autora, apesar dos esforços e dos avanços femininos, os clubes e as federações ainda seguem no comando dos homens, o que pode ser explicado pelo fato de que no país ainda não existe um movimento claro de mulheres em prol da igualdade de condições para a prática do futebol. Sobre este contexto, Lovisolo (et al, 2006) acredita que o termo “infiltração” não é adequado, pois possui conotação militar e/ou de luta política. Isto não significa, obviamente, que as mulheres não briguem por um espaço no universo do futebol; apenas o fazem de modo individualizado ou a partir de pequenos grupos, o que não caracteriza, na sua visão, um movimento social.

Em meio a tantos processos de dominação masculina no mundo do futebol, as mulheres por vezes reagiram. Entre 1991 e 1993, Marlene Matheus, esposa do lendário ex-presidente do Corinthians Vicente Matheus, assumiu a presidência do Timão, tornando-se a primeira mulher a dirigir um grande clube brasileiro. Apesar do feito, não faltaram insinuações (inclusive por parte da mídia esportiva) de que ela apenas obteve o cargo por influência do marido, que continuaria exercendo o mandato “nos bastidores”. Em dezembro de 2009, a vereadora do Rio de Janeiro e ex-atleta Patrícia Amorim tornou-se a primeira presidente mulher do Flamengo (gestão 2010-2012).

Chamo a atenção para Jurema Bagatini Ramos, tida como a primeira mulher presidente de um clube de futebol no Brasil (do Esporte Clube Encantado, equipe do interior do Rio Grande do Sul, em 1973). Na ocasião, ela sofreu pressões da comunidade local (Encantado), inclusive de um representante da Igreja Católica (um padre), que não aprovou esta experiência, por julgar que as mulheres não tinham um “tino administrativo” (www.clicrbs.com.br, em 04/03/2010). Seu irmão, o ex-goleiro Vilson Bagatini, lembra que na época foram publicadas matérias questionando se não havia mais homens no futebol brasileiro. Ele mencionou uma frase que leu num jornal, falando que a sua irmã era “a única presidente que não entra em vestiário” (www.clicrbs.com.br, em 04/03/2010). Apesar dos preconceitos, Jurema aceitou o desafio, levando um clube em situação de falência à primeira divisão do futebol gaúcho. Estas experiências, apesar de emocionantes, são raras.

2. Futebol: uma questão de gênero

A discussão sobre a participação da mulher no mundo da bola implica um estudo de gênero. De acordo com Prá (2004), o gênero é uma construção social, podendo ser compreendido tanto como uma variável sociocultural, quanto como uma categoria de análise a ser explorada no âmbito acadêmico. Seu estudo impõe, conforme Silveira e Santos (2004), o reconhecimento de estereótipos. As formas como as mulheres vêm sendo representadas (e se representam), portanto, devem ser consideradas. Para essas autoras, as representações sociais muitas vezes estão em sintonia com as ações de determinados grupos e indivíduos, indicando uma espécie de “cristalização” de gênero, isto é, podemos agir, sem perceber, de acordo com aquilo que se espera (culturalmente) de nós.

Percebi esta situação em meu doutoramento em Ciências Sociais (ver NORONHA, 2010), quando pesquisei o trabalho de dois grupos de mulheres vinculados ao Grêmio e ao Internacional: o Núcleo de Mulheres Gremistas e o Espaço da Mulher Colorada, respectivamente. A atuação de ambos os grupos revelou-se ambígua, na medida em

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que as suas integrantes desenvolveram diversas ações assistenciais, a partir de modelos convencionais, que são comumente adotados por outros grupos de mulheres, ligados ou não ao universo do futebol; por outro lado, as mulheres gremistas, em especial, ingressaram no âmbito político institucional, elegendo representantes do grupo no Conselho Deliberativo do clube e participando, de algum modo, do processo eleitoral para a presidência desse.

Atualmente sigo acompanhando o trabalho do grupo gremista, voltando-me ainda mais para o campo político do clube gaúcho, com a intenção de discutir a questão da representatividade feminina neste contexto.

Os estudos de gênero fomentam o debate sobre as relações de poder estabelecidas entre homens e mulheres. Para Zinani (2006: 92), “é inviável pensar a questão de gênero sem considerar que a história das mulheres, até pouco tempo atrás, foi escrita por homens, que detinham o destino delas nas mãos”. A subordinação feminina apontada por Rosaldo (1979) e por Ortner (1979) é problematizada por Butler (2003: 20), a qual acredita que “a noção de um patriarcado universal tem sido amplamente criticada em anos recentes, por seu fracasso em explicar os mecanismos de opressão de gênero nos contextos culturais concretos em que existe”. A autora, no entanto, entende que é difícil superar esta visão histórica, baseada numa espécie de dicotomia entre masculino e feminino.

Bourdieu (2007: 41), por sua vez, ao analisar os processos culturais que levaram o homem à condição de dominador, que é relativizada pelo autor, observa que “(...) as relações sociais de dominação e de exploração que estão instituídas entre os gêneros (...) levam a classificar todas as coisas do mundo e todas as práticas segundo distinções redutíveis à oposição entre o masculino e o feminino”. Ele acredita que o movimento feminista, por se tratar de uma ação política, deve levar em consideração todos os sintomas ou efeitos de dominação que estão inseridos na ordem social.

3. As mulheres no Grêmio

A participação feminina no Grêmio ao longo dos seus mais cem anos de existência é modesta. Uma olhada para a produção cultural (livros, filmes, discos, outros) sobre o clube gaúcho indica que as mulheres geralmente são retratadas por conta de sua beleza (apesar do registro de várias atletas amadoras vinculadas ao clube). É o caso de Maria Bruger, por exemplo, eleita “Rainha tricolor” em 1953, ano em que o Grêmio comemorou o seu cinquentenário (FERLA, 2002). Marta Rocha, eleita Miss Brasil em 1954, também foi citada numa obra sobre o tricolor, por ter visitado o estádio Olímpico, neste período, numa jornada que reuniu uma multidão em torno da casa gremista (COLLE, 2005).

Nos CDs que encontrei sobre o Grêmio, são raras as referências às mulheres, pois estas obras são voltadas, de modo geral, para a reprodução de gols que valeram títulos para o clube, além de depoimentos de craques. Os filmes mais recentes sobre o tricolor gaúcho pouco falam sobre a presença feminina na instituição. Na obra “Inacreditável: a batalha dos Aflitos” (DVD, 2006), a atriz e apresentadora da Rede Globo Fernanda Lima fala que se sente “muito orgulhosa de ser gremista”. Ela é a única mulher a depor neste documentário.

Em outro vídeo sobre o clube gaúcho, “Grêmio: coração e raça” (1997), foram exibidas imagens de torcedoras gremistas mostrando como é a sua preparação para assistirem uma partida do Grêmio. Em meio às sessões de maquiagem, passando na boca um batom azul cintilante, elas cantam e treinam algumas coreografias que serão tornadas públicas no estádio Olímpico. Vê-se aqui, novamente, uma dimensão estética.

Numa visão romântica, o escritor Natal Dornelles (2007, p.46) afirmou que as torcedoras gremistas “(...) são botões de rosas, são margaridas, são violetas, são azaleias, são flores do

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campo”. As mulheres se fazem presentes nas brincadeiras que envolvem a rivalidade entre o Grêmio e o Internacional. Pereira (2007: 21) publicou a seguinte piada:

“o Colorado chega em casa e encontra um Gremista embaixo da cama.Furioso pergunta à mulher:- O que faz este Gremista debaixo da cama?Com os olhos radiantes, ela responde:- Embaixo não sei, mas em cima faz maravilhas!”

Percebe-se nesta e em outras histórias contadas pelo autor uma conotação sexual, sendo a mulher um objeto à mercê dos homens-torcedores, que a usam como um troféu a ser exibido para o adversário. É importante salientar que este autor publicou sua obra em duas versões: numa os tricolores debocham dos colorados; na outra, os colorados riem dos gremistas. O texto é o mesmo, mudando apenas o “lugar” de cada torcedor no enredo.

A participação feminina no Grêmio aumentou nos últimos anos. O clube voltou a oferecer vagas passou a oferecer vagas para meninas que queiram praticar o futebol, através de uma escolinha conveniada à instituição.

Em termos de composição política formal, o Grêmio contabiliza atualmente 150 Conselheiros Titulares (mandato 2007-2013), sendo que apenas três integrantes são mulheres. Existem outros 150 Conselheiros Titulares, que foram eleitos para um mandato diferente (2010-2016). Na soma dos dois quadros, temos somente cinco mulheres, o que representa aproximadamente 1,6% dos 300 Conselheiros Titulares do clube, um número modesto se comparado à quantidade de sócias (em torno de 14% de um quadro social que beira os 70 mil associados). Esse percentual se parece com o de outros grandes clubes de futebol profissional do país. A atuação das mulheres no universo político destas instituições, portanto, é bastante limitada, devido a uma cultura que reserva aos homens os cargos diretivos, não por causa de regimentos escritos, mas, sobretudo, pela tradição.

4. As gremistas

Por conta das pesquisas que desenvolvi nos últimos anos sobre o universo do futebol, entrevistei muitas torcedoras do Grêmio, em especial aquelas vinculadas ao Núcleo de Mulheres Gremistas (ver NORONHA, 2010). Com o objetivo de aprofundar meu olhar sobre o “gremismo” demonstrado pelas torcedoras, voltei a entrevistar algumas delas, agora com o foco sobre a sua relação afetiva com o clube, um conceito pensado com base em Damo (2007), para quem as instituições esportivas devem ser compreendidas a partir do reconhecimento de duas dimensões: político-administrativas e simbólica. Para ele (2002: 12), “torcer por um clube de futebol é participar ativamente da vida social, construindo identidades que extrapolam o indivíduo, a casa e a família. Vivencia-se concretamente o pertencimento na rua, no estádio, em pleno domínio público”. Em relação ao torcedor tricolor (o que inclui mulheres e homens), Ostermann (2000: 84) acredita que

“é fanático pode ser doente, alguns poucos são reflexivos e ponderados, separam o jogo da consideração sobre o adversário, mas todos, em pequenas graduações para mais ou para menos, são gremistões, isto é, antes do Grêmio não há quase nada, incluindo-se aí a família, amizades, casamentos, namoros ou outras seduções da vida”

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É possível afirmar que esta concepção sobre o que é ser um gremista vale para boa parte dos torcedores de outros times. Silva (2005) entende que o processo de adoção de um time como o “do coração” representa um movimento em busca de uma identidade, de um rosto, de um vínculo.

A seguir, algumas considerações de gremistas “roxas” – ou seriam azuis?

Foto 1: Anne Schneider, organista, 66 anos.Arquivo: Marcelo Pizarro Noronha

Entrevistei pela primeira vez esta torcedora, uma das mais importantes organistas do Brasil, filha do também músico Leo Schneider, quando do meu doutoramento. Recentemente procurei Anne em busca de outras informações sobre o Grêmio e, então, renovei algumas perguntas. Segundo a artista, sua identificação com o tricolor teve início em torno dos seus nove anos de idade, levando-a a associar-se em seguida ao clube e a acompanhar as partidas do Grêmio no Olímpico. Anne revelou que possui diversos objetos com a marca do Grêmio, como canetas, cadernos, térmicas, entre outros. Ela conta que, de tão gremista, usou a camisa do time durante um concerto realizado na Alemanha. Para Anne, em respeito à construção do novo estádio do clube (que será inaugurado em dezembro deste ano), as expectativas são “as melhores possíveis, pois uma nova Arena, ultramoderna é um estímulo a todos e aos novos gremistas”.

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Foto 2: Isabel Weschenfelder, dona de casa, 46 anos.Arquivo: Marcelo Pizarro Noronha

Integrante do Núcleo de Mulheres Gremistas, Betty, como é mais conhecida, assumiu um papel importante no meu doutoramento, ao apresentar-me à coordenadora desse grupo. Ela foi decisiva para a aceitação da minha presença como observador das atividades (regulares e extraordinárias) do Núcleo. É possível afirmar que Isabel tornou-se, no contexto da minha pesquisa, uma “mediadora”, no sentido dado por Combessie (2004: 33), para quem (em respeito aos mediadores) “(...) eles pertencem ou pertenceram ao grupo estudado, estão dispostos a facilitar os primeiros contatos, a dar as primeiras informações; às vezes, eles se interessam pela pesquisa, por seu desenvolvimento, por seus progressos, dão opiniões, conselhos, ajuda”. A contribuição dessa torcedora do Grêmio foi interessante, pois minimizou o “estranhamento” inicial estabelecido entre mim e o grupo; afinal, eu era o único homem presente na maioria das reuniões que acompanhei.

Segundo Betty, em sua casa existem vários objetos do Grêmio, como toalhas, camisetas, sapatos, bolsas, chaveiros, bandeiras, enfim, uma diversidade de artigos tricolores. Perguntada sobre um momento marcante em sua vida de torcedora, ela comentou que costumava ir ao estádio Olímpico antes de o clube ser rebaixado para a segunda divisão do futebol profissional do país, mas que “(...) quando estávamos na série B foi o momento mais emocionante ao meu ponto de vista, porque famílias inteiras iam ao jogos (...) ali percebi o quanto o gremista ama seu clube”.

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Foto 3: Rosa Foresti, Servidora Pública do Judiciário Federal, 58 anos (ao microfone, discursando).

Arquivo: Marcelo Pizarro Noronha

Conselheira do Grêmio, Rosa é uma das maiores lideranças do Núcleo de Mulheres Gremistas e uma torcedora apaixonada pelo clube. Ela defende a articulação entre as ações assistenciais e a política, para que as mulheres gremistas possam vir a assumir, em breve, novos papéis no clube e no mundo do futebol. Assim como tantas outras torcedoras, Rosa possui diferentes camisas do Grêmio, bem como outros objetos com a marca tricolor. Durante uma entrevista, ela revelou uma memória:

“meu avô levava minha mãe a assistir jogos do Grêmio na Baixada (em uma época que mulheres pouco frequentavam o futebol); eu comecei a acompanhá-lo ao Estádio Olímpico aos 9 anos. Antes disso, lembro que muitas vezes (pequenina ainda) fui com a bandeirinha do Grêmio (feita pela minha vó) para as ruas festejar vitórias do Grêmio”.

As lembranças de Rosa têm forte apelo emocional, bem como a de tantas outras torcedoras apaixonadas pelo Grêmio com que conversei na minha pesquisa.

Considerações finais

A revisão da produção cultural sobre futebol (iniciada no meu doutoramento em Ciências Sociais) demonstra que neste universo as mulheres seguem sendo tratadas comumente de forma preconceituosa ou idealizada. Figuras folclóricas como a da “Maria-chuteira”, por exemplo, definida por Riboldi (2008: 74) como “a mulher que está sempre rondando o local onde se encontram os atletas, vai aos treinos, com o fim de namorar jogador de futebol”, ou a da “espectadora embevecida”, expressão empregada pela pesquisadora Simone Guedes, num evento acadêmico (comunicação oral, VII Reunião de Antropologia do MERCOSUL, julho de 2007), seguem presentes, às vezes de forma disfarçada, nas matérias produzidas por diferentes mídias esportivas. A análise das publicidades voltadas para as torcedoras (tidas como consumistas vorazes) reforça o olhar estereotipado sobre as mulheres.

Embora seja uma realidade, a participação feminina no mundo da bola, como torcedora, dirigente ou atleta, precisa ser ampliada. A paixão clubística demonstrada pelas

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várias gremistas com as quais conversei ao longo da pesquisa (em andamento) pode ou deve ser politizada, de modo a possibilitar uma maior inserção feminina nas instituições esportivas. É preciso seguir problematizando e “desnaturalizando” as desigualdades entre homens e mulheres, um desafio que ainda está longe de ser superado, sobretudo no universo futebolístico, repleto de estereótipos e de olhares cristalizados. As trajetórias das torcedoras do Grêmio, apresentadas aqui de forma superficial, são o testemunho de um amor clubístico que expressa também a luta das mulheres por mais espaço em nossa sociedade. Com ou sem batom.

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