SOUZA. Pode-Se Teorizar Sobre a Literatura

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Teoria da Literatura I Prof. Julio Frana

PASTA 47

Pode-se teorizar sobre a literatura?Roberto Aczelo Quelha de Souza

Pelo que ficou dito at agora, teorizar sobre algo transform-lo num objeto problemtico, isto , de interesse para um estudo de carter metdico e analtico. Ora, o produto cultural que hoje chamamos literatura (cuja designao variou ao longo da histria, como se ver em prximo captulo), desde que se fez presente na civilizao ocidental, tem sido objeto de teorizao, no sentido amplo em que estamos por ora empregando a palavra. Alis, devemos dizer que a literatura um produto cultural que surge com a prpria civilizao ocidental, pelo fato de que textos literrios figuram entre os indcios mais remotos da existncia histrica dessa civilizao. E esses textos literrios mais antigos, entre os quais avultam os poemas homricos a llada e a Odissia , j trazem em si as primeiras consideraes da literatura como um objeto sobre o qual so necessrios certos esclarecimentos, o que implica no aceit-la como uma evidncia acerca de que nada cabe dizer. Em outros termos, o que problematiza pela primeira vez a literatura a prpria literatura. Vejamos em detalhe como isso se d. Na Ilada e na Odissia, poemas cuja redao ocorreu no sculo Vl a.C., mas cuja circulao oral na Grcia antiga remonta ao sculo X a.C., h passagens em que a ao narrada enseja consideraes sobre a funo e a natureza da poesia, bem como sobre o poder do discurso. Observemos o seguinte exemplo:Depois de terem comido e bebido vontade, Ulisses exclamou: Demdocos, coloco-te acima de todos os homens mortais! Deves ter aprendido com a Musa, filha de Zeus, ou com Apolo, seu filho, pois contas muito bem o destino dos aqueus, tudo, o que eles fizeram e sofreram e as dificuldades que enfrentaram, como se ali tivesses estado, ou ouvido de algum que esteve. Agora, muda de tom e conta o ardil do cavalo de madeira, como Epeios o fez com a ajuda de Atenia, e Ulisses o introduziu dentro da cidadela, por meio de um estratagema, cheio dos homens que tomaram lion. Depois, se contares bem a histria, declararei sem demora a todo mundo que Zeus foi generoso contigo e inspirou teu canto.1

A passagem clara: o heri Ulisses dirige-se ao poeta Demdocos, elogiando-lhe a capacidade de narrar, atravs da poesia, o destino do povo aqueu, capacidade que lhe teria sido legada por divindades, a Musa ou Apolo, filhos de Zeus. Ulisses lhe pede tambm que conte/cante a histria da fabricao do cavalo de madeira (o famoso cavalo de Tria), afirmando que, se ele o fizer apropriadamente, h de declarar a todos que a generosidade de Zeus lhe havia inspirado o canto, isto , sua capacidade de elaborao potica. Analisado, o trecho em apreo encerra uma teoria relativa literatura, propondo uma explicao para sua origem, natureza e funo. Essa teoria assim pode ser descrita: a origem da literatura o ensinamento dos deuses; sua natureza consiste em ser uma narrativa dotada de especial poder de encantamento; sua funo reconstituir com fidelidade as aes dos heris, decorrendo dessa trplice determinao a elevada considerao de que o poeta desfruta na comunidade. claro que a teoria depreensvel desse passo da poesia homrica no engendra uma teoria plena e propriamente dita: ela no articula conceitos, no empreende nenhuma anlise, no prope definies nem discute mtodos; apenas tece consideraes de ordem mtica e potica acerca da literatura e das representaes sociais que ela suscita. Revestem-se desse mesmo carter as primeiras observaes feitas sobre a literatura, encontradas, como j dissemos, no prprio corpo dos mais antigos poemas gregos. Segundo o levantamento de D. A. Russel e M. Winterbottom, constituem exemplos dessa natureza: os versos de abertura da Ilada; outras passagens da Odissia, alm da j citada; o hino com que Hesodo, poeta dos sculos VIII-VII a.C., inicia sua Teogonia; um poema de Tegnis, poeta lrico do sculo VI ou V a.C.; trechos dos poemas de Pndaro, considerado o maior poeta lrico dos sculos VI- V a.C.; a comdia As rs, de Aristfanes, o celebrado comedigrafo dos sculos V-IV a.C.2 Mas no tardaria o momento histrico em que a literatura se tomaria objeto de teorizao em sentido mais prprio. Na obra intitulada Defesa de Helena, cujo texto, ainda que um tanto truncado, preservou-se ao longo dos sculos, Grgias, filsofo sofista e professor de retrica que viveu nos sculos V-IV a.c., dedicou-se discusso do que hoje chamaramos linguagem literria. com Plato (sculos V-IV a.C.) e Aristteles (sculo IV a.c.), porm, que a anlise da literatura assume contornos mais definidos, no s pela extenso dos trabalhos que os dois filsofos dedicaram ao tema, mas tambm pelo grau de sistematizao a que ambos chegaram, especialmente o segundo. Plato se ocupa com a questo nas obras on, A repblica, Fedro e As leis; Aristteles, na Potica, na Poltica e na Retrica.1 HOMERO. Odissia. Traduo e adaptao de Fernando C. de Arajo Gomes. Rio de Janeiro: Ediouro, s. d. p. 126. 2 RUSSEL, D. A. & WINTERBOTTOM, M . ed. Ancient literary criticism; the principal texts in new translations. Oxford: Clarendon. 1972. p. 1-38.

No nos interessa aqui discutir o pensamento de Plato e o de Aristteles relativo literatura, nem tampouco o carter antagnico de suas teses, sempre assinalado e desdobrado pela posteridade. Interessanos, sim, apenas realar que suas contribuies constituem uma espcie de consolidao da pertinncia e da necessidade de problematizar a literatura. De fato, depois deles, a civilizao ocidental no abandonaria mais o conjunto de questes que se podem levantar sobre a produo literria. Faamos agora algumas distines que nos sero teis adiante. Embora as evidncias histricas indicadas imponham resposta afirmativa pergunta-ttulo deste captulo Pode-se teorizar sobre a literatura? , o imenso conjunto de construes tericas disponveis para exame no constitui um acervo uniforme. Ao contrrio, as diferenas so tais e tantas entre as diversas teorias propostas que um estudioso iniciante poder desanimar ante o que lhe parecer um caos de sistemas explicativos contraditrios. Ento, num esforo de pr alguma ordem nessa suprema confuso, ser produtivo fazer certas distines, capazes de distribuir as inmeras teorias propostas em alguns poucos grupos constitudos por construes tericas assemelhadas. Lembrando mais uma vez que estamos empregando provisoriamente o termo teoria num sentido muito amplo como equivalente problematizao da literatura, sua transformao em tema de consideraes cujo grau de sistematizao varivel , podemos admitir dois grupos bsicos de teorias: um de natureza normativa e outro de natureza descritiva. Podemos ainda estabelecer dois outros grupos, segundo se admita ou no a possibilidade de investigao sistemtica da literatura: um constitudo pelas teorias para as quais a literatura efetivamente objeto de estudo sistemtico, e, outro, pelas teorias que se fixam na premissa de que a literatura, no se prestando a estudos, s pode ser objeto de fruio. Detalharemos essas oposies entre grupos de teorias nos prximos itens deste captulo. Normativismo versus descritivismo Comecemos por examinar o seguinte trecho da Potica de Aristteles: Deve pois o poeta ordenar as fbulas e compor as elocues dos personagens, tendo-as vista o mais que for possvel3. fcil perceber que a passagem no encerra propriamente uma anlise ou uma descrio do fato potico, mas fixa uma norma ou preceito que cabe ao escritor levar em conta, visando ao xito da composio: Deve [...] o poeta.... Para contrastar, vejamos outro trecho em que Aristteles se limita a descrever as partes da tragdia, sem nenhum propsito de estabelecer normas ou regras: [...] segundo a extenso e as sees em que pode ser repartida, as partes da tragdia so as seguintes: prlogo, episdio, xodo, coral dividido este em prodo e estsimo4 Os dois exemplos, ambos retirados, como se viu, do mais antigo tratado sistemtico inteiramente dedicado literatura a Potica de Aristteles , ilustram claramente duas atitudes extremas adotadas nesses estudos. Uma se caracteriza pelo normativismo, absolutizando certos valores tidos como mais elevados, o que encerra os problemas da literatura num crculo estreito de verdadeiros dogmas, orientadores tanto da produo dos escritores quanto da avaliao crtica de suas obras. A outra, ao contrrio, opta pelo descritivismo, atitude que favorece uma espcie de especulao aberta, afeioada discusso de hipteses explicativas diversas. Em outros termos: a atitude normativa diz o que a literatura deve ser e como deve ser julgada; a atitude descritiva diz o que ela e que explicaes provveis lhe so apropriadas. No se pense, no entanto, que todas as construes tericas surgidas correspondem puramente ao tipo normativo ou ao tipo descritivo. Na verdade, as teorias nem sempre se reduzem assim, de modo esquemtico, a este ou quele grupo da distino que estamos fazendo, sendo freqente que oscilem entre as extremidades apontadas. Mesmo considerando esse fato, podemos estabelecer o seguinte quadro histrico: 1. Em Plato e Aristteles, isto , na poca clssica grega (sculos V-IV a.C.), mesmo tendo havido sensveis colocaes normativas, parece ter predominado uma especulao mais aberta. 2. Ainda na Antiguidade, depois da poca clssica, o tom normativo se impe, tanto entre os gregos quanto entre os latinos. 3. Na Idade Mdia, o normativismo persiste, tanto pelo continuado prestgio de uma disciplina surgida na Antiguidade a retrica quanto pelo aparecimento da chamada gaia cincia a arte ou tcnica de compor versos segundo a prtica dos poetas ligados ao lirismo de origem provenal, florescente no perodo que se estende do sculo XI ao XIII. 4. Na poca que vai de fins do sculo XV at o sculo XVIII, ocorre uma redescoberta entusistica da Potica de Aristteles, que republicada, traduzida, comentada, alm de influir decisivamente em diversos tratados ento surgidos, os quais acentuam fortemente a nota normativa cuja presena em Aristteles se pode3 ARISTTELES. Potica. Traduo de Eudoro de Sousa. Porto Alegre: Globo, 1966. p.87. 4 Ibidem, p. 81.

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considerar discreta. Essa teorizao clssica ou neoclssica constitui uma verdadeira preceptstica (isto , conjunto de preceitos, normas ou regras referentes elaborao e avaliao crtica da literatura), correspondendo ao perodo de vigncia de atitude normativa mais exacerbada. 5. A partir do sculo XIX, a consolidao do Romantismo faz ruir a preceptstica consagrada pelo Classicismo moderno (de fins do sculo XV ao sculo XVIII). Na sua prtica literria, os escritores romnticos no acatam os princpios estabelecidos pelos tratadistas clssicos, partindo da premissa de que a obra literria criao singular de um indivduo dotado de genialidade, razo por que no seria possvel conform-la a um receiturio. Com isso, a reflexo sobre a literatura se afasta do normativismo, orientandose para atitudes mais especulativas; da o aparecimento das mais diversas teorias, empenhadas em propor explicaes adequadas para os rumos tomados pela produo literria romntica e ps-romntica, crescentemente diversificados e destoantes de padres preestabelecidos. No faremos agora a anlise detalhada dessa expanso de teorias vrias, surgidas do sculo XIX em diante, pois nos prximos captulos pretendemos progressivamente dar conta da questo. Por enquanto, basta fixar o seguinte: como j vimos que conceber uma teoria implica problematizar um campo de observao, a atitude que se reveste desse trao aquela que designamos pelo termo descritivismo, pois o normativismo, inibindo a especulao, a livre proposio de hipteses explicativas, s constitui teoria se admitirmos um emprego amplo e um tanto imprprio dessa expresso. Estudo versus fruio Mesmo levando em conta a divergncia de base entre a atitude normativa e a descritiva, vemos que elas convergem num ponto: ambas admitem que a literatura pode tornar-se objeto de um estudo, no sentido de considerao metdica tendente sistematizao de conceitos ou regras. Mas freqentemente o texto literrio suscita a seu respeito observaes que no constituem propriamente o resultado de uma reflexo ou anlise, de uma ocupao metdica, mas apenas o registro de um sentimento, uma impresso, um julgamento emanado da subjetividade. Muitas vezes, as pessoas terminam de ler um romance e, comentando-o com amigos, resumem a opinio sobre ele atravs de adjetivos muito usuais nessas circunstncias: bonito, bem escrito, emocionante, ou enjoado, montono, ruim... Assim, a literatura, conforme experimentada pelo leitor comum, d margem formulao de julgamentos abertamente subjetivos, podendo ser menos ou mais cotada. Ora, contrariando a slida tradio de que a literatura se presta a tornar-se objeto de um estudo de carter normativo ou descritivo-especulativo , desenvolveu-se uma posio que pretende subtrair o texto literrio a esse circuito intelectualista, para restitu-lo fruio subjetiva e desinteressada de mtodos e conceitos, prxima quela espcie de desarmamento terico prprio do leitor comum. Essa atitude antiterica conhecida pelo nome de impressionismo crtico, tendo encontrado seu momento ureo em fins do sculo XIX e incio do XX, como resposta ao esforo de atingir objetividade cientfica, caracterstico das teorias hegemnicas no sculo XIX. Para os adeptos desse impressionismo, o que se pode fazer com a literatura no teorizar a seu respeito, mas to-somente registrar impresses de leitura, sem preocupao de sistematiz-las ou submet-las a controle conceitual. Como queria Anatole France, Bom critico aquele que conta as aventuras de sua alma no meio das obras-primas5. Para concluir, cabe assinalar que a atitude impressionista, ao investir contra a possibilidade de teorizar sobre a literatura, acaba sendo, sua prpria revelia, uma construo terica, pois consiste numa rede de argumentos relativos ao modo por que se deve tratar de literatura.(SOUZA, Roberto Aczelo Quelha de. Captulo 2 Pode-se teorizar sobre a literatura. Teoria da Literatura. 10 ed. So Paulo: tica, 2007. pp. 10-18.)

5 FRANCE. Anatole. Prface [ premire srie]. In: ___. La vie littraire; premire srie/deuxirne srie. Paris: Calmann-Lvy, 1950. Oeuvres compltes illustres. v. 6. p. 5. Traduo nossa.

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