Upload
others
View
1
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
Série Pensando o Direito
Nº 15/2009 – versão integral
Observatório do Judiciário Convocação 01/2007
Universidade de Brasília e Universidade Federal do Rio de Janeiro UnB/UFRJ
Coordenação Acadêmica
José Geraldo de Sousa Junior Fábio de Sá e Silva
Cristiano Paixão Adriana Andrade Miranda
Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL)
Esplanada dos Ministérios, Bloco T, Edifício Sede – 4º andar, sala 434 CEP: 70064-900 – Brasília – DF
www.mj.gov.br/sal e-mail: [email protected]
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
1
CARTA DE APRESENTAÇÃO INSTITUCIONAL
A Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL) tem por objetivo institucional a preservação da ordem jurídica, dos direitos políticos e das garantias constitucionais. Anualmente são produzidos mais de 500 pareceres sobre os mais diversos temas jurídicos, que instruem a elaboração de novos textos normativos, a posição do governo no Congresso, bem como a sanção ou veto presidencial.
Em função da abrangência e complexidade dos temas analisados, a SAL formalizou, em maio de 2007, um acordo de colaboração técnico-internacional (BRA/07/004) com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que resultou na estruturação do Projeto Pensando o Direito.
Em princípio os objetivos do Projeto Pensando o Direito eram a qualificação técnico-jurídica do trabalho desenvolvido pela SAL na análise e elaboração de propostas legislativas e a aproximação e o fortalecimento do diálogo da Secretaria com a academia, mediante o estabelecimento de canais perenes de comunicação e colaboração mútua com inúmeras instituições de ensino públicas e privadas para a realização de pesquisas em diversas áreas temáticas.
Todavia, o que inicialmente representou um esforço institucional para qualificar o trabalho da Secretaria, acabou se tornando um instrumento de modificação da visão sobre o papel da academia no processo democrático brasileiro.
Tradicionalmente, a pesquisa jurídica no Brasil dedica-se ao estudo do direito positivo, declinando da análise do processo legislativo. Os artigos, pesquisas e livros publicados na área do direito costumam olhar para a lei como algo pronto, dado, desconsiderando o seu processo de formação. Essa cultura demonstra uma falta de reconhecimento do Parlamento como instância legítima para o debate jurídico e transfere para o momento no qual a norma é analisada pelo Judiciário todo o debate público sobre a formação legislativa.
Desse modo, além de promover a execução de pesquisas nos mais variados temas, o principal papel hoje do Projeto Pensando o Direito é incentivar a academia a olhar para o processo legislativo, considerá-lo um objeto de estudo importante, de modo a produzir conhecimento que possa ser usado para influenciar as decisões do Congresso, democratizando por conseqüência o debate feito no parlamento brasileiro.
Este caderno integra o conjunto de publicações da Série Projeto Pensando o Direito e apresenta a versão na íntegra da pesquisa denominada Observatório do Judiciário, conduzida pela Universidade de Brasília e Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Dessa forma, a SAL cumpre seu dever de compartilhar com a sociedade brasileira os resultados das pesquisas produzidas pelas instituições parceiras do Projeto Pensando o Direito.
Pedro Vieira Abramovay Secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
2
CARTA DE APRESENTAÇÃO DA PESQUISA
O texto a seguir apresentado foi elaborado a partir do relatório final do Projeto
Dossiê Justiça: uma proposta de Observação da relação entre Constituição e
Democracia no Brasil, produzido no âmbito do programa Pensando o Direito, da
Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, em parceria com o
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.
Nos seus objetivos gerais, com a proposta que foi abraçada por grupos de
pesquisadores vinculados às Faculdades de Direito da Universidade de Brasília e da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, todos nomeados nesta publicação, o que se
pretendeu foi subsidiar a elaboração de um programa nacional de democratização do
acesso à justiça e contribuir para a institucionalização de um Observatório da Justiça no
Brasil, no âmbito do Ministério da Justiça.
A resposta oferecida à convocação do Ministério se deu de duas formas. Em
primeiro lugar, identificando dimensões de análise e acompanhamento da Justiça com
base na experiência de Observação da Justiça desenvolvida no âmbito deste projeto. Em
segundo lugar, indicando arranjos para a institucionalização desta experiência e de suas
lições aprendidas, caso o Ministério da Justiça ou outros setores do Poder Público
venham mesmo a transformá-la numa atividade permanente. Em ambos os casos, como
o leitor haverá de observar, o texto busca conduzir a um alargamento do sentido de
Justiça e das formas possíveis de sua observação.
Os seus objetivos específicos, distribuídos nas atribuições dos cinco grupos que
se organizaram para desenvolver os estudos descritos no relatório final, consistiram em
1. Elaborar diretrizes e indicadores para a institucionalização de um Observatório da
Justiça no Brasil - suas relações, estrutura, composição e funcionamento; 2. Mapear
estudos, pesquisas e projetos desenvolvidos por instituições de pesquisa sobre acesso à
justiça e temas correlatos; 3. Estabelecer um diagnóstico da implementação das reformas
- funcional e processual - e suas possibilidades e limites de satisfação de expectativas; 4.
Realizar pesquisas exploratórias sobre as potencialidades do Observatório da Justiça
sobre acesso à justiça e temas correlatos.
Como síntese de seus estudos o consórcio UnB/UFRJ apresentou uma estratégia
para observar a Justiça com a sugestão de institucionalizar um Observatório Permanente
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
3
da Justiça Brasileira (OJB). Este Observatório Permanente da Justiça Brasileira (OJB),
inicialmente ligado à Secretaria de Reforma do Judiciário, buscaria produzir
investigação empírica e crítica sobre os mecanismos de criação e distribuição do direito
socialmente disponíveis, alimentando os Poderes Públicos e a sociedade brasileira com
elementos de informação a partir dos quais podem ser desenvolvidas as estratégias e
pactuações necessárias para a reforma e a modernização do sistema de Justiça. Além
disso, o OJB auxiliaria no monitoramento das reformas já em andamento, permitindo o
controle dos seus eventuais efeitos perversos e a proposição de cenários alternativos de
futuro. Finalmente, as pesquisas do OJB auxiliariam na prospecção e avaliação de
experiências que, embora existentes, podem restar ofuscadas pelo modelo central de
Justiça. A partir desse trabalho verdadeiramente “cartográfico”, o Observatório poderia
manter uma página na web contendo uma espécie de “Biblioteca de Alternativas”, como
subsídio e estímulo para outras iniciativas de transformação.
O texto traz também o parecer inédito elaborado por equipe do CES – Centro de
Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, dirigida pelo Professores Boaventura de
Sousa Santos e Conceição Gomes, em trabalho de consultoria contratada com o objetivo
de avaliar e de certificar a elaboração do projeto. Este trabalho se completou por meio de
Painel realizado em Brasília em junho de 2009, conduzido pelo Professor Boaventura de
Sousa Santos.
Brasília, novembro de 2009
José Geraldo de Sousa Junior
Coordenador Acadêmico
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
4
PROJETO PENSANDO O DIREITO
Universidade de Brasília e Universidade Federal do Rio de Janeiro UnB/UFRJ
Observar a Justiça: Pressupostos para a Criação de
um Observatório da Justiça Brasileira
José Geraldo de Sousa Junior, Fábio de Sá e Silva Cristiano Paixão, Adriana Andrade Miranda
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
5
1. COORDENAÇÃO GERAL
Margarida Lacombe (UFRJ)
Menelick de Carvalho Netto (UnB)
2. COORDENAÇÃO EXECUTIVA
Adriana Andrade Miranda
Soraia da Rosa Mendes
Milena Pinheiro Martins (estagiária)
Fernanda Nathalí Carvalho Soares (estagiária)
Diego Nepomuceno Nardi (estagiário)
Thiago Gabriel dos Santos (estagiário)
3. OBJETIVO GERAL
Subsidiar a elaboração de um programa nacional de democratização do acesso à justiça e
contribuir para a institucionalização de um Observatório da Justiça no Brasil, no âmbito
do Ministério da Justiça.
4. OBJETIVOS ESPECÍFICOS
1. Elaborar diretrizes e indicadores para a institucionalização de um Observatório da
Justiça no Brasil - suas relações, estrutura, composição e funcionamento;
2. Mapear estudos, pesquisas e projetos desenvolvidos por instituições de pesquisa sobre
acesso à justiça e temas correlatos;
3. Estabelecer um diagnóstico da implementação das reformas - funcional e processual -
e suas possibilidades e limites de satisfação de expectativas;
4. Realizar pesquisas exploratórias sobre as potencialidades do Observatório da Justiça
sobre acesso à justiça e temas correlatos.
5. ATIVIDADES DESENVOLVIDAS
• Elaboração de proposta preliminar de Observatório da Justiça Brasileira;
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
6
• Mapeamento preliminar dos estudos, pesquisas e projetos desenvolvidos por
instituições de pesquisa sobre acesso à justiça e temas correlatos;
• Coleta de dados para possibilitar a análise da implementação das reformas -
funcional e processual - e suas possibilidades e limites de satisfação de expectativas;
• Delimitação temática das pesquisas exploratórias sobre acesso à justiça e temas
correlatos;
• Operacionalização dos conceitos, categorias e referenciais teóricos para
realização de pesquisa-piloto sobre acesso à justiça e temas correlatos – coleta de dados
mediante entrevistas, revisão bibliográfica, análise de documentos.
7. SUBGRUPOS DE PESQUISA
Para viabilizar a execução do objetivo específico cinco, o grupo de pesquisa,
responsável pela execução do presente projeto, foi dividido em cinco subgrupos,
sendo que cada subgrupo assumiu um eixo de observação. A seguir apresentamos a
composição e objetivos específicos de cada subgrupo.
Grupo 01
Objetivos específicos: a) contribuir para um alargamento teórico e empírico da noção de
acesso à justiça; b) identificar experiências não-convencionais de criação e distribuição
do direito a partir do protagonismo dos movimentos sociais e c) analisar os sentidos
emergentes dessas experiências, situando-os no macro-processo de consolidação da
nossa democracia
Professor – Coordenador
José Geraldo de Sousa Junior
Coordenadora Executiva
Fabiana Gorenstein
Pesquisadores (as):
Adriana Andrade Miranda
Bistra Stefanova Apostolova
Carolina de Martins Pinheiro
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
7
Carolina Pereira Tokarski
Fabio Costa Morais de Sá e Silva
Flavia Carlet
João Paulo Santos
Luciana Ramos
Mariana Siqueira Carvalho Oliveira
Mariana Veras
Mauricio Azevedo de Araujo
Pedro Teixeira Diamantino
Rosane Freire Lacerda
Sara da Nova Quadros Cortês
Soraia da Rosa Mendes
Raquel Negreiros
Pedro Mahin
Lívia Maier
Saionara Reis
Raissa Roussenq Alves
Talitha Selvati Nobre Mendonça
Gilsely Barbara Barreto Santana
Diego Nepomuceno Nardi
Bruno Borges
Grupo 02
Objetivos específicos: a) tratar as condições para que as demandas por reconhecimento
possam ser encaradas como discursos legítimos de uma possível interpretação de direitos
fundamentais; b) verificar em que sentido as identidades formadas pelos grupos que
reivindicam determinados direitos formam uma demanda específica por reconhecimento
e os motivos pelos quais essa demanda não é contemplada ou visualizada na esfera
judicial; c) tematizar a crescente judicialização das políticas públicas; d) desenhar
estratégias que permitam que essas questões relativas à efetivação de direitos sociais por
meio da formulação de políticas públicas possam ser debatidas institucionalmente, sem
um imediato recurso à tutela judicial; e) sugerir mecanismos de participação que
permitam que o processo de decisão dos juízes seja aberto às interpretações
compartilhadas pela sociedade acerca dos direitos fundamentais.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
8
Professor - coordenador
Alexandre Bernardino Costa
Coordenador executivo
Eduardo Gonçalves Rocha
Pesquisadores(as)
Alexandre Melo Soares
Beatriz Cruz
Daniel augusto Vila-Nova Gomes
Daniel Pitangueiras de Avelino
Denise Gisele de Brito Damasco
Hanna Xavier
Jan Yuri Amorin
Jorge Luiz Ribeiro de Medereiros
Judithi Karine Cavalcanti Santos
Renan Dutra Labrea
Vitor Pinto Chaves
Grupo 03
Objetivos específicos: Exame dos riscos e possibilidades que as práticas institucionais
contêm no que toca a compreensão do acesso à justiça, tomando-se em vista um acesso
que afirme simultaneamente forma e conteúdo constitucionais, compreendendo tal
conteúdo como intrinsecamente plural e emancipatório, tendo-se a constituição como
estabelecedora de uma comunidade de princípios em torno das exigências simultâneas
de liberdade e igualdade. E é precisamente o conteúdo constitucional, isto é, os direitos
fundamentais e as garantias de sua observância na organização jurídico-política,
característicos do direito e da política na modernidade, que tornam direito e política
propensos a sofrerem um uso parasitário. Em toda modernidade nenhuma organização
política pode se dar ao luxo de não se afirmar democrática ou pelo menos preparatória
da democracia. Da mesma forma, o direito moderno sempre afirmará a realização da
igualdade e da liberdade de todos, ainda que para, em sua práxis, negá-las radicalmente.
O uso parasitário, seja do direito como instrumento de dominação, seja da ditadura como
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
9
democracia, é sempre contrafático, isto é, precisa afirmar o contrário do que é feito.
Visto da ótica dos movimentos sociais, da afirmação dos novos direitos, é o acervo
constitucional que intrinsecamente se oferece para ser retrabalhado como garantia de
permanente abertura à crescente complexidade sócia (CF, art. 5, par. segundo). E é no
plano institucional que o uso parasitário ou mesmo pretensões abusivas têm lugar. O
marco teórico adotado sabe que seria irracional a pretensão de que a possibilidade de uso
abusivo do direito e da política pudesse ser eliminada. Portanto trabalha exatamente, no
plano institucional, com a tentativa de controle dos riscos e o fomento das
probabilidades de momentos emancipatórios. a) Analisar experiências paradigmáticas na
práxis processual legislativa que contribuam para a compreensão das normas de
Processo Legislativo como garantias dadas à cidadania e não apenas como rol de
procedimentos cuja aplicabilidade e normatividade permanecem à disposição da vontade
pessoal dos legisladores; b) Identificar veículos institucionais que viabilizem tratamento
interno das demandas vindas dos movimentos sociais na execução de políticas públicas,
com ênfase ao direito constitucional de petição e às consultas públicas, pontuando êxitos
e fracassos na transformação de poder social comunicativo em poder administrativo; c)
Analisar a súmula vinculante e a repercussão geral como requisito de admissão dos
recursos extraordinários, como instrumentos constitucionais postos à disposição do STF
para solução de uma crise de acesso à justiça, entendida esta crise (sob o ponto de vista
do STF) como essencialmente uma “crise numérica”, isto é, de acúmulo de recursos de
natureza extraordinária, atentando para os riscos e possibilidades que tais instrumentos
contêm; d) Analisar decisões do STF no que diz respeito a sua correção normativa, em
face de questões socialmente relevantes, nas quais a aplicação e interpretação dos
princípios constitucionais confrontam-se com aspectos ético-políticos, para verificar se,
ainda que implicitamente, prevalece a especificidade normativa dos direitos em face das
políticas na prática do tribunal, e ainda explorar seu potencial (Dworkin); e) Identificar o
entendimento de acesso à justiça utilizados nas linhas de pesquisa da pós-graduação em
Direito e das práticas acadêmicas de extensão, indagando se elas incorporam uma leitura
plural e democrática do acesso à justiça, aferindo a possibilidade e a necessidade de
adoção de novas práticas jurídicas de formação, direcionadas para a efetivação do acesso
à justiça.
Professor-coordenador
Menelick de Carvalho Netto
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
10
Coordenador executivo
Paulo Henrique Blair
Pesquisadores(as)
Leonardo Barbosa
Silvia Pontes
Guilherme Scotti
Vanessa Schinke
Grupo 04
Objetivo específico: Identificar estratégias de desconstitucionalização de direitos,
desvelando as demandas por reformas no sistema de justiça que se encontram ocultas,
latentes ou suprimidas.
Professor – coordenador
Cristiano Paixão
Coordenador executivo
Leonardo Augusto Andrade Barbosa
Pesquisadores(as)
Aline Lisboa Naves Guimarães
Daniela Diniz
Douglas Alencar Rodrigues
Douglas Rocha Pinheiro
Glaucia Falsarella Foley
Guilherme Cintra Guimarães
José Eduardo Elias Romão
Letícia Leal Lengruber
Marthius Sávio Cavalcante Lobato
Paulo Henrique Blair de Oliveira
Paulo Rená Santarém
Paulo Sávio Peixoto Maia
Renato Bigliazzi
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
11
Ricardo Machado Lourenço Filho
Tahinah Albuquerque Martins
Grupo 05
Objetivo específico: Busca-se, com base na análise dos fundamentos dos votos dos
ministros contidos nas decisões do Supremo Tribunal Federal, em especial nos
denominados casos difíceis, identificar a sua atuação como ator político. Deve se
considerar, em particular, as mudanças institucionais operadas com a nova composição
decorrente das vagas abertas após 2003, coincidindo com a maioria eleitoral expressa nas
eleições presidenciais de 2002 e pela Reforma do Judiciário traduzida normativamente
pela EC 45/04. Desta forma, fortalece-se ainda mais as atribuições constitucionais de
nossa jurisdição constitucional, como é o caso dos institutos da súmula vinculante (Lei n°
11.417) e da repercussão geral (Lei n° 11.418). A partir da análise da prática desse
tribunal, o grupo 05 do Projeto Dossiê Justiça pretende oferecer subsídios de caráter crítico
e propositivo que impulsionem reformas para a democratização e a ampliação do acesso à
justiça, que está longe de ser, por si só, sinônimo de acesso ao judiciário, mas que encontra
neste uma de suas vertentes mais importantes. Destarte, debateremos em nossas análises,
como se procede a relação entre o judiciário e a sociedade brasileira e, em especial, a
relação do Supremo Tribunal Federal com o acesso à justiça e suas diferentes variáveis
que podem ser observadas, contemporaneamente, em uma sociedade partida como a
nossa.8 Assim, não podemos desconhecer, no elenco de objetivos, que, além do contexto
social indicado por nós, há outros parâmetros para compreender e efetivar o acesso à
justiça tais como as teorias do direito e constitucional de nossos dias e as conseqüências de
uma sociedade de risco.
Pesquisadores:
Prof. Alexandre Garrido da Silva
Prof. Fernando Gama Miranda Netto
8 Vide Sujit Choudry – “Constitutionalism in divided societies” in International Journal of Constitucionalism Law vol 5, number 7, páginas 573 a 575. É importante este editorial e o próprio número da citada publicação porque aponta como o constitucionalismo de hoje está enfrentando sociedades fragmentadas como a nossa. Desse modo, serve como reflexão a respeito do papel do acesso à justiça diante desse quadro.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
12
Prof. José Ribas Vieira
Profª. Juliana Neuenschwander Magalhães
Profª. Margarida Maria Lacombe Camargo
Prof. Marcus Firmino Santiago
Prof. Noel Struchiner
Graduandos:
Liana Lyrio
Vinicius Iglesias
Vítor Miguel Naked de Araújo
Secretário do Grupo 5:
Daniel Bartha
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
13
GRUPO 01
Coordenador: Professor José Geraldo de Sousa Júnior
____________________________________________________________
INTRODUÇÃO, OBJETIVOS E JUSTIFICATIVA.
As tarefas distribuídas ao grupo de pesquisa coordenado pelo Professor José
Geraldo de Sousa Jr. envolviam a) contribuir para um alargamento teórico e empírico da
noção de acesso à justiça; b) identificar experiências não-convencionais de criação e
distribuição do direito a partir do protagonismo dos movimentos sociais e c) analisar os
sentidos emergentes dessas experiências, situando-os no macro-processo de
consolidação da nossa democracia. Essas atividades tinham como pano de fundo a
construção de uma proposta de Observatório da Justiça.
Essa proposta se insere num esforço para particularizar o sentido da Justiça e de
suas reformas, a fim de colocá-las em relação mais orgânica com as lutas emancipatórias
que vêm sendo forjadas no país, notadamente com o advento de sua nova ordem
constitucional. Quer isto dizer que “reforma” e “modernização” da Justiça não são
tomadas aqui como expressões de sentidos unívocos, mas, ao contrário, como objetos de
uma permanente disputa. O neoliberalismo também se pretende “reformista” e
“modernizador”, quando reivindica um sistema ágil e previsível (que ajude a difundir os
negócios mercantis), mas também despolitizado (que obstaculize a formulação de
demandas com conteúdo social, motivadas pela consciência da negação de direitos e da
cidadania). Trilhando um outro caminho, o desafio deste projeto é estabelecer uma
tensão entre essa agenda de reforma e modernização e o que poderíamos designar como
uma política de direitos. Em outras palavras, trata-se de assegurar que as mudanças
institucionais potencializem o atendimento de demandas populares.
Em um primeiro olhar poderia se entender que não existem experiências sociais a
serem observadas e levadas em conta na formulação de novas políticas de acesso à
justiça; para as quais bastariam alterações no processo ou melhorias na gestão dos
tribunais e, portanto, intervenções de ordem “técnica”. Entende-se que esse argumento
se aproxima muito do que Boaventura de Sousa Santos designa como a “produção ativa
de ausências”, vale dizer, o privilégio de uma racionalidade (funcional) em relação a
outras.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
14
Todavia, há muitas demandas por direitos para as quais esse modo de pensar é
hostil ou, pelo menos, insuficiente. Examinar as ações organizadas em busca da
satisfação dessas “demandas suprimidas” pode representar, assim, uma estratégia
reveladora de novas direções para a reforma da justiça. Compelindo à adoção de outras
formas organizativas, de outra cultura jurídica e judiciária, de outro perfil para a
formação de bacharéis, de outras formas de conhecer e responder aos conflitos, a ação
dos movimentos sociais se apresenta como um fator de mudança tanto dos mecanismos
(formais) de acesso à justiça, quanto da própria justiça a que se tem acesso.
REFERENCIAL TEÓRICO
Esta proposta de pesquisa vincula-se a uma tradição muito própria do
pensamento jurídico e social da América Latina: trata-se de creditar ao protagonismo
social a capacidade de instituir novos modos de vida e de juridicidade, não apenas do
ponto de vista semântico (como fonte de argumentos que ajudam a criar novas
interpretações para velhas categorias), mas também do ponto de vista pragmático (como
fonte de práticas que inspiram novas formas de operabilidade do fenômeno jurídico).
Nesse sentido, a abordagem não pode se prender apenas às normas de direito positivo e
ao reduzido espaço no qual elas operam e mutuamente se conformam (os Tribunais): é
preciso incorporar uma análise dos conflitos e das alternativas (plurais) de criação e
distribuição do direito que aparecem em decorrência de seu enfrentamento.
Se essa fundamentação parece bastante para sustentar um alargamento da noção
de acesso à justiça como algo mais amplo que o acesso à jurisdição e ao processo, não
menos relevantes serão as suas repercussões metodológicas. A elaboração de um
programa para a democratização do acesso e a própria atividade de “observação” devem
contemplar não só estudo dos Tribunais e de suas atividades, mas também o diálogo: a)
com os atores empenhados na busca por uma “legítima organização social da liberdade”;
e b) com as experiências (nem sempre convencionais) de que eles têm ajudado a forjar
na luta pelo acesso material e simbólico ao sistema de direitos. A seção abaixo esclarece
os mecanismos que serão utilizados para garantir essa atmosfera dialógica da pesquisa,
sem prejuízo do alcance dos seus objetivos científicos.
Há que se ressaltar que essa experiência de pesquisa é fruto da corrente teórica
conhecida por “O Direito Achado na Rua”, que se define por compreender que o direito
é fruto de um processo social dialógico, não se reduzindo ao direito positivo. Nesse
sentido, o diálogo freqüente e constante com os movimentos sociais no pensar e repensar
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
15
o Direito pode ser considerado a sua maior contribuição para o cumprimento dessa
tarefa.
DO CONCEITO DE ACESSO À JUSTIÇA
O ponto mais comum nas abordagens correntes sobre acesso à justiça é figurar a
sua representação num movimento de busca de superação das dificuldades para penetrar
nos canais formais de resolução dos conflitos1.
Sob este ponto comum, as abordagens correntes, tendem por isso, a identificar
neste tema o Judiciário em um papel central, ou ao menos a focalização de instâncias
formais de garantia e de efetivação de direitos individuais e coletivos, como pretensão
objetiva de distribuição de justiça2.
Para Sadek, trata-se de identificar nessa institucionalização, “não uma justiça
abstrata, mas de possuir a palavra final, quer sobre conflitos de natureza
eminentemente política, quer sobre disputas privadas”3. A alusão ao formal é, ao fim e
ao cabo, uma redução ao estatal e, ainda quando aluda a práticas desenvolvidas por
instituições extrajudiciárias e não estatais4, é a sua institucionalidade que preside a
localização das experiências considerada a peculiar organicidade de seus agentes
promotores. Basta ver, em estudo incluído no livro organizado por Sadek5 o que
representa esse modelo de abordagem institucional de acesso à Justiça enquanto
preocupação de relacionar o procedimento à orientação de construir cidadania. Embora
partindo de referências muito bem designadas em Cappelletti6 e em Boaventura de Sousa
Santos7, Sanches Filho logra acentuar a condição de movimento que o deve caracterizar,
para formular horizontes muito mais amplos que abram a possibilidade de releitura da
questão do acesso à Justiça, de modo a concluir, sobretudo com base em Boaventura de
Sousa Santos, “que o Estado contemporâneo não tem o monopólio da produção e
1 SADEK, Maria Tereza (org), Introdução. Experiências de Acesso à Justiça, Acesso à Justiça, Konrad-Adenauer-Stiftung, Pesquisas – nº 23, São Paulo, 2001 2 Idem, p. 7 3 Ibidem, p. 8 4 Ibidem, p. 8 5 SANCHES FILHO, Alvino Oliveira, Experiências institucionais de acesso à Justiça no estado da Bahia, in SADEK, Acesso à Justiça, op. cit 6 CAPPELLETTI, Mauro, Acesso à Justiça, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1988 7 SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução à Sociologia da Administração da Justiça, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, Aguiar, Roberto A. R. de, Introdução Crítica ao Direito do Trabalho, Série O Direito Achado na Rua – vol. 2, Universidade de Brasília, CEAD/NEP, Brasília, 1993
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
16
distribuição do direito” e que, “apesar do direito estatal ser dominante, ele coexiste na
sociedade com outros modos de resolução de litígios” 8.
Assim, mesmo quando o foco da questão é o sistema judiciário formal, as
conclusões dos principais estudos neste campo têm sinalizado para a necessidade de não
perder-se de vista de que “o direito, o sistema jurídico e o sistema judicial encontram-se
num processo acelerado de transformação, que varia em cada sociedade em função do
seu desenvolvimento econômico e social, da cultura jurídica, das transformações
políticas e do conseqüente padrão de litigação decorrente do tipo de utilizadores dos
tribunais judiciais e da relação entre a procura potencial e efectiva da resolução de um
litígio no sistema judicial”9.
Pedroso, Trincão e Dias, que vêem o acesso ao direito e à justiça como um
direito humano consagrado nas principais cartas internacionais dos direitos humanos, 10 logo na abertura das conclusões de seu consistente trabalho de pesquisa, salientam
também que estes processos de transformação apontam, em simultâneo, por diversos
caminhos. Por um lado, avança a ‘juridificação’ e a ‘judicialização’ da vida em
sociedade, com a expansão do direito a outras áreas da sociedade e com a chegada a
tribunal de ‘novos’ litígios oriundos da sociedade ou do mercado. Por outro lado,
desenvolve-se uma tendência para a desjuridificação, para a informalização e para a
desjudicialização da resolução de litígios. “11
Cabe por em relevo alguns pressupostos tanto teóricos quanto políticos que, na
modernidade, contribuíram para facilitar o desenho desse monopólio. Com efeito, na
discussão da questão da mediação popular de conflitos12, uma estratégia de
problematização desse tema aparece ancorada em três pilares, todos decorrentes de
limites das condições de compreensão da realidade no paradigma da modernidade.
Trata-se aqui da modernidade em seu sentido de tempo histórico e de racionalidade. Os
três aspectos colocados em relevo são os seguintes: a modernidade compreendida como
racionalidade científica e positiva que passou a rejeitar outras formas de conhecimento e
de explicação da realidade, tais como as mítico-religiosas e as de natureza metafísica; a
modernidade, representada pela hegemonia da forma política do Estado, cuja expressão 8 SANCHES FILHO, op. cit. Págs.241-271 9 PEDROSO, João, TRINCÃO, Catarina, DIAS, João Paulo, Tribunais em Sociedade. Por caminhos da(s) reforma(s) da Justiça, Coimbra Editora, 2003, p. 415 10 Idem, E a justiça aqui tão perto? As transformações no acesso ao direito e à justiça, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 65, CES, Coimbra, maio de 2003, p. 85 11 Idem, pág.s 415-416 12 SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, Mediação popular de conflitos, Revista do Sindjus, Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no DF, ano XVI, nº 41, Brasília, p. 4
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
17
institucional passou a subordinar as experiências múltiplas de outros modos de
organização política no espaço da sociedade; a modernidade caracterizada pela
supremacia do modo legislativo de realizar o Direito, isolando o jurídico na sua
expressão formal (a codificação), por meio de uma colonização das práticas jurídicas
plurais inscritas nas tradições corporativas e comunitárias.
Todo este processo pode ser resumido em um modelo ideológico que passou a
pensar o mundo pela sua exteriorização jurídica, numa visão normativista, substantivista,
que faz da norma a unidade de análise da realidade, perdendo de vista a possibilidade de
uma leitura processual, institucional do mundo, assentada na experiência, que toma o
conflito como o seu elemento analítico13.
Neste sentido o direito terá não a função de integração social ou de redução de
complexidades, e nem mesmo precipuamente de mediar conflitos no sentido do
apaziguamento, mas pelo contrário, o direito aparece neste contexto como um forte
instrumento de emancipação individual e coletiva, que necessariamente irá acirrar os
conflitos. Por outros termos quer-se dizer que “Os avanços democráticos foram sempre
arrancados ao capital. A luta era por direitos econômicos e sociais, o que significava tirar
dos ricos para dar aos pobres. Mas o capitalismo é totalmente hostil à redistribuição.”.14
Esta é uma das dimensões do acesso à justiça e do direito como possibilidade de
experimentação do conflito e tradução autônoma deste a partir dos cânones culturais dos
mais fracos. O problema se coloca, como alerta Lyra Filho15 quando o esquema se
institucionaliza, a religião se transforma em igreja, a filosofia em ideologia ou sistema
de crenças, o padrão associativo em sociedade in concreto, a opção ética em elenco de
normas, o sentimento de justiça em direito legislado, tudo assentando no mecanismo
básico de interesse e conflitos de interesses, necessidades e possibilidades de satisfazê-
la. As teorias que se transmudam em crenças, apresentam-se numa espécie de oráculo.
Há que se garantir que este acesso ao direito se baseie numa ação legitima garantindo
todo projeto válido de ação; pois, e correspectivamente, é da ação que emergem os
problemas, e dos problemas que nascem as idéias, conscientizando vivências, fundindo-
se assim teoria e prática. Para mapear o contexto do acesso à justiça então é preciso
13 SANTOS, Boaventura de Sousa, op. cit. p. 104-105 14 SANTOS, Boaventura de Sousa. Democracia Convive com fascismo societal. Entrevista no Jornal do Brasil, Entrevista da 2º, em 16 de Julho de 2001. 15 LYRA FILHO, Roberto. A concepção do mundo na Obra de Castro Alves, p. 9.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
18
considerar que o produto autêntico do direito, como quer Sousa Júnior16., que não se
confunde com a lei, passa a ser, quando se traduzir em “transgressões concretas”,
produto sempre de uma “negociação” e de “um juízo político” de sujeitos coletivos de
direito.
O Estado, visto concretamente, se relaciona com os movimentos sociais de duas
formas pelo menos: criando estratégias de criminalização ou aceitando a participação
como parte do cenário democrático, ou seja aceitando as estratégias de politização do
processo social, para constituição garantia e efetivação de direitos, isto é, percebendo-os
como sujeitos coletivos de direito. No primeiro caso – tradicionalmente, os movimentos
sociais têm utilizado o direito para se defender das estratégias de criminalização dos
movimentos sociais, – especialmente os direitos humanos nas suas dimensões de direitos
civis e políticos, protegendo os militantes destes grupos das elites violentas e do próprio
Estado.
No segundo caso o direito surge qualificando as estratégias de politização das
lutas sociais. Percebendo que o direito não é um instrumento de Estado, pois foram
conquistados pelos movimentos há que se resgatar a credibilidade no direito e nas
instituições, ou seja, a dignidade política do direito.
O contexto pós-moderno, embora ultrapassando alguns dos limites de
compreensão da realidade construídos pela modernidade, coloca novos desafios políticos
e epistemológicos na concepção do direito. Os sociólogos descrevem a pós-modernidade
como uma modernidade sem ilusões, em constante processo de mutação, onde os
fenômenos se encontram em estado de liquidez, incapazes de manter a sua forma.
Instituições, empregos, relacionamentos e amor são temporários; costumes, estruturas e
verdades percebidas até então como sólidas, perdem a sua durabilidade. A existência
pessoal, social e profissional acontece nesse ambiente de riscos, incertezas, perda de
raízes e desconfiança nos próprios sentidos e na realidade17. Diante desse tipo de
sociedade, a compreensão da pós-modernidade não necessariamente precisa ser marcada
pela ideologia pós-modernista e, desse modo, compartilhar uma visão de mundo que
leva a desnormatização da sociedade, ao enfraquecimento das regras e vínculos sociais e
à equivalência de todos os modos de vida. Essa tendência intelectual, com freqüência
16 SOUSA JÚNIOR, José Geraldo. Sociologia Jurídica: condições sociais e possibilidades teóricas, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 2002, p.43. 17 Ver BAUMAN, Zigmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001; ver, também, BECK, Ulrich. The risk society: towards a new modernity. London:Sage, 2004.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
19
acompanhada por posturas de “relativismo duro”18 que afirmam a igualdade entre todas
as culturas, abdica do debate sobre o que é uma boa sociedade, alegando a falta de
parâmetros para a discussão ou mais, a ausência mesmo da necessidade de discutir.
A opção acadêmica que guia este estudo pressupõe a tarefa de pensar uma
sociedade qualificada pela justiça que remete ao nível de vida dos seus membros mais
fracos, não encoberto pelas estatísticas sobre a renda média da população. Entramos,
portanto, no debate sobre o acesso ao direito e à justiça sem abandonar a capacidade de
avaliar, assumindo a necessidade da existência de fundamentos éticos da juridicidade.
É a partir de uma configuração crítica desses enviesamentos ideológicos legados
pela modernidade e pela pós-modernidade que se torna possível pensar os processos
sociais e operar soluções para os conflitos que dele emergem. Mediar conflitos, portanto,
requer atuar em uma situação de alteridade sem hierarquias, sejam as que opõem as
práticas do social às prescrições da autoridade localizada no Estado; do Direito
adjudicado por um especialista (o juiz) a partir de uma pauta restrita (o código, a lei), em
relação a sujeitos que não são reconhecidos em suas identidades (ainda não constituídos
plenamente como seres humanos e cidadãos) e que buscam construir a sua cidadania por
meio de um protagonismo que procura o direito no social, em um processo que antecede
e sucede o procedimento legislativo e no qual, o Direito, que não se contêm apenas no
espaço estatal e dos códigos é, efetivamente, achado na rua19.
Pode residir aí a situação percebida pela juíza Gláucia Falsarelli Foley20 quando
se refere ao conjunto de movimentos necessários para impulsionar a universalização do
acesso à Justiça, pleiteando, assim, por uma Justiça sem jurisdição porque efetivamente
operada na comunidade, para a comunidade e, sobretudo, pela comunidade. Ou, como
ela diz em outro lugar, aludindo aos limites de reformas em curso, não perder de vista o
potencial emancipatório. Isso porque, ela completa, “desde já se verifica certa
resistência à proposta de se reconhecer, valorizar e estimular novos instrumentos para
a democratização da própria realização da justiça, restituindo à comunidade e aos seus
18 As expressões “relativismo duro” e “relativismo suave” foram encontradas na entrevista de Peter Burke feita por PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. As muitas faces da história. Nove entrevistas. São Paulo: UNESP, 2000, pg. 185- 231. 19 SILVA, Fábio Costa Morais de Sá e, Ensino Jurídico. A descoberta de novos saberes para a democratização do direito e da sociedade, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 2007, págs. 17-23 20 Acesso universal à Justiça, Correio Braziliense, Brasília, 26/06/2007, pág. 19
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
20
cidadãos o exercício da autonomia política, por meio da gestão dos próprios
conflitos”21
Tudo isso mostra, como o faz Boaventura de Sousa Santos, o quanto o “acesso à
justiça é um fenômeno muito mais complexo do que à primeira vista pode parecer, já
que para além das condicionantes econômicas, sempre mais óbvias, envolve
condicionantes sociais e culturais resultantes de processos de socialização e de
interiorização de valores dominantes muito difíceis de transformar”22. Se, ao limite, a
partir de Boaventura de Sousa Santos, e com ele, pudermos alargar o conceito de acesso
à Justiça, o plano mais amplo que poderíamos lograr concebê-lo, seria, talvez, pensá-lo
como um procedimento de tradução, ou seja, como uma estratégia de mediação capaz
de criar uma inteligibilidade mútua entre experiências possíveis e disponíveis para o
reconhecimento de saberes, de culturas e de práticas sociais que formam as identidades
dos sujeitos que buscam superar os seus conflitos23.
Esta mediação leva, por meio do trabalho de tradução, a criar “condições para
emancipações sociais concretas de grupos sociais concretos num presente cuja injustiça
é legitimada com base num maciço desperdício de experiência”, mas que buscam criar
sentidos e direções para práticas de transformação social e de realização de justiça24.
Fora desse contexto emancipatório o que resta é a configuração do acesso à
justiça como objeto delimitado25, mesmo considerados os dois níveis de acesso:
igualdade constitucional de acesso representado ao sistema judicial para resolver
conflitos e garantia e efetividade dos direitos no plano amplo de todo o sistema
jurídico26. Não por outra razão, Boaventura de Sousa Santos sugere que a estratégia mais
promissora de reforma da justiça está na “procura dos cidadãos que têm consciência de
seus direitos, mas que se sentem impotentes para os reivindicar quando violados.
Intimidam-se ante as autoridades judiciais que os esmagam com a linguagem esotérica,
o racismo e o sexismo mais ou menos explícitos, a presença arrogante, os edifícios
esmagadores, as labirínticas secretarias”. Se essa procura for considerada, diz o
21 Idem, Entrevista: Condições Republicanas para a Democratização e Modernização do Judiciário, Constituição & Democracia, UnB/Sindjus/Faculdade de Direito, Brasília, nº 4, maio de 2006, p. 10 22 Op. Cit. p. 114 23 Para uma Sociologia das Ausências e uma Sociologia das Emergências, in SANTOS, Boaventura de Sousa (org), Conhecimento Prudente para uma Vida Decente. ‘Um discurso sobre as ciências’ revisitado, Cortez Editora, São Paulo. 2004, p.813, 814 e 815 24 SANTOS, Boaventura de Sousa, idem, p. 814 25 SANTOS, Boaventura de Sousa, MARQUES, Maria Manuel Leitão, PEDROSO, João e FERREIRA, Pedro Lopes, Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas. O Caso português. Centro de Estudos Sociais/Centro de Estudos Judiciários, Edições Afrontamento, Porto, 1986, p. 485 26 Idem, p. 485
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
21
sociólogo português, o resultado inevitável será “uma grande transformação do
judiciário” 27.
Considerado o nível mais restrito, o sistema judicial se consolida justamente em
seu fechamento democrático, na medida em que o seu conceito de acesso mina
possibilidades de participação popular na interpretação de direitos; esgota a porosidade
entre ordenamentos jurídicos hegemônicos e contra-hegemônicos; constituídos e
instituídos pela prática dos movimentos sociais.
O nível restrito do acesso à justiça, portanto, se reafirma no sistema judicial. O
nível mais amplo do mesmo conceito se fortalece em espaços de sociabilidades que se
localizam fora ou na fronteira do sistema de justiça. Contudo, ambos os níveis se
referem a uma mesma sociedade, na qual se pretende o exercício constante da
democracia.
Considerando os dois níveis, a pergunta a ser feita é a seguinte: é possível o
exercício democrático com um judiciário conservador, incapaz, portanto, de assimilar
formas participativas de mediação para os conflitos e para o reconhecimento de novos
direitos instituídos permanentemente em uma sociedade plural?28
Esta é sem dúvida a questão candente hoje, em nosso país, quando se coloca em
causa o problema de sua democratização e se identifica no judiciário a recalcitrância que
é social e teórica para a realização de mudanças sociais, conferindo à regulamentação
jurídica das novas instituições o seu máximo potencial de realização das promessas
constitucionais de reinvenção democrática.
No Brasil, notadamente, a partir do importante debate que se instaurou no país na
conjuntura aberta com o processo constituinte de 1985-1988, a reinvenção das
instituições democráticas em geral e do judiciário em particular por causa de seu papel
estratégico para a mediação de conflitos sociais ganhou grande relevância e foi esse o
tema que designou o próprio processo, a ponto de a Constituição que é seu fruto, ser
denominada “Constituição Cidadã”.
Ainda que sejam muitas as críticas a esse processo e persista a recusa para o
reconhecimento da qualificação democrática a ele atribuído, a experiência constituinte
deu conta de demarcar a transição do autoritarismo militar pós-64 para um sistema civil
27 A Justiça em Debate. Folha de São Paulo: Opinião, Tendências/Debates, pág. A3, 17.09.2007 28 SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, Que Judiciário na Democracia?, Revista do Sindjus. Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no DF, ano XI, nº 8, outubro de 2001, págs. 12-15
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
22
de governo, no qual, a possibilidade efetiva de participação popular na experiência de
reconstrução das instituições é, de fato, uma marca.
Basta ver que a própria noção de participação e participação direta, passa a
designar, na concepção constitucional, o modelo de exercício de poder então constituído,
com a criação formal de vários instrumentos de participação popular, com a legitimação
do protagonismo social e suas estratégias de ação.
Hoje, não há quem não reconheça e valorize formas regulamentadas de
participação popular, legalizando, em todos os níveis formais de poder, no legislativo e
no executivo, os processos, os mecanismos e as instituições que realizam o novo modelo
de atuação cidadã, entendida aqui a cidadania em sentido ativo para incluir, tal como
sugere Marilena Chauí, “a possibilidade de colocar no social novos sujeitos autônomos
– auto nomos – que criam, que se dão a si próprios, novos direitos”29.
Curioso na postura resistente do Poder Judiciário é a impermeabilidade a fatores
de democratização que se inscrevem no próprio projeto jurídico-político do estado
liberal em cujos pressupostos têm assento, inclusive, o princípio da participação popular
na administração da justiça, hoje consignado nas constituições de Portugal, Espanha e
Brasil, pós os anos 1970.
Claro que, numa perspectiva de alargamento do acesso democrático à justiça, não
basta institucionalizar os instrumentos decorrentes desse princípio, é preciso também
reorientá-los para estratégias de superação desses mesmos pressupostos. Primeiro, criar
condições, num movimento cognitivo da imaginação epistemológica, para inserir no
modelo existente de administração da justiça, a idéia de participação popular que não
está inscrita em sua estrutura; segundo, agora num movimento de tradução sob impulso
da imaginação democrática de uma demanda de participação popular não estatizada e
policêntrica, num sistema de justiça que pressupõe uma administração unificada e
centralizada; terceiro, fazer operar um protagonismo não subordinado institucional e
profissionalmente, num sistema de justiça que atua com a predominância de escalões
hierárquicos profissionais; quarto, aproximar a participação popular do cerne mesmo da
salvaguarda institucional e profissional do sistema que é a determinação da pena e o
exercício da coerção; quinto, considerar a participação popular como um exercício de
cidadania, para além do âmbito liberal individualizado, para alcançar formas de
29 CHAUI, Marilena, Sociedade, Estado, OAB, in XIII Conferência Nacional da OAB, Conselho Federal da OAB, Anais, Belo Horizonte, 1990, p. 117
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
23
participação coletiva assentes na comunidade real de interesses determinados segundo
critérios intra e trans-subjetivos30
Por esta razão, neste campo, graças ao protagonismo de magistrados e
operadores de direito, com repercussão em vários âmbitos, políticos, sociais,
profissionais e de formação, vem se dando um dos mais fortes embates, verdadeiro
combate de uma guerra ao mesmo tempo de movimento e de posição. Organizados em
novas entidades (“Associação Juízes para a Democracia”, “Ministério Público
Democrático”, “Juízes para um Direito Alternativo”, “Associação dos Advogados das
Lutas Populares”), assumem a expressão de suas tensões presentes nas condições da
cultura jurídica de formação desses operadores (crítica ao formalismo e ao modelo
epistemológico conformista do ensino jurídico) e na exigência de redefinição de sua
função social (operadores do direito para que e para quem).
Em livro do qual se discutem condições éticas para orientar reformas judiciais31,
cuidou-se de enfrentar, exatamente, essa questão, vale dizer, a de que o direito e o
sistema judiciário têm também que se transformar no processo paradigmático que
envolve as instituições sociais e os sistemas de poderes.
Senão, como designar as contraposições entre o direito oficialmente instituído e
formalmente vigente e a normatividade emergente das relações sociais; como distinguir
entre a norma abstrata e fria das regras que regem comportamentos e a normatividade
concreta aplicada pelos juízes; como recepcionar e compreender novas condições
sociais, a emergência de novos sujeitos de direitos, valorizando o pluralismo jurídico
efetivo que permeia essas relações?
Bistra Apostolova situa este problema ao caracterizar a justiça no paradigma
contemporâneo de direito, como um princípio de equilíbrio de interesses sociais
impossíveis de serem reduzidos a uma medida universal e absoluta32.
Tal caracterização remete à hipótese teórica do pluralismo jurídico, base
epistemológica do acesso à justiça assim como formulado neste ensaio e que enseja a
30 SANTOS, Boaventura de Sousa, A Participação Popular na Administração da Justiça no Estado Capitalista, in Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, A Participação Popular na Administração da Justiça, Livros Horizonte, Lisboa, 1982, p. 84; idem, Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências, op. cit. p. 814 31 Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a reforma do judiciário, Pe. José Ernanne Pinheiro, José Geraldo de Sousa Junior, Melillo Dinis e Plínio de Arruda Sampaio (orgs.), Editora Vozes/CNBB, Petrópolis, 2ª edição, 1996. 32 APOSTOLOVA, Bistra Stefanova, O Poder Judiciário Brasileiro na Passagem da Modernidade para a Contemporaneidade, in Ética Justiça e Direito. Reflexões sobre a reforma do judiciário, op. cit. p.137
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
24
possibilidade de outros modos de determinação da norma do direito e da própria
acessilidade à justiça33.
O pluralismo jurídico é, aliás, uma das premissas para pensar reformas que
permitam contemporizar a idéia restrita do primado do direito e a primazia do sistema
judicial como instrumentos ideais de uma concepção despolitizada da transformação
social34. É o pluralismo jurídico que possibilita definições seletivas de competências que
permitam encontrar formas de composição extralegal para determinados tipos de
conflitos e fundamentar reformas, inclusive do sistema judicial e do sistema processual
em condições de incluir, simultaneamente, a face técnico-profissional e a face informal
e comunitária da administração da justiça35, articulando estratégias, como sugere
Boaventura de Sousa Santos, próprias à democracia representativa, plano do constituído,
e próprias à democracia participativa, plano do instituinte 36.
A falta de compreensão dessas condições tem sido fator de incremento à crise no
campo da justiça, a ponto de se configurar a situação dramática a que faz referência
Boaventura de Sousa Santos, segundo o qual, sem abrir-se a esse franco questionamento,
sem confrontar os pressupostos formalistas de sua cultura legalista e sem submeter a
uma revisão os fundamentos políticos e democráticos de seu papel e de sua função
social, “o Judiciário faz da lei uma promessa vazia”.
Esta é uma condição para abrir o sistema de acesso à justiça, como lembra
Carolina de Martins Pinheiro, não apenas por uma via de modernização tecnológica que
foca o Judiciário num recorte funcional de prestador de serviços quantificáveis, segundo
uma lógica maximizadora de esforços produtivos, mas que se fecha à possibilidade de
inclusão de visões de mundo diferenciadas, portanto, imune à riqueza de subjetividades
interpelantes. É dessa carência que se ressentem as constantes reformas, organizacionais
e processuais, em geral oferecidas para a atualização do sistema de Justiça, todas elas
33 SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, El derecho hallado em la calle: tierra, trabajo, justicia y paz, in RANGEL, Jesús Antonio de la Torre (coordinador), Pluralismo Jurídico. Teoria y Experiências, Cenejus – Centro de Estúdios Jurídicos y Sociales “Padre Enrique Gutiérrez”, San Luis Potosí, México, 2007, p.242 34 SANTOS, Boaventura de Sousa, TRINDADE, João Carlos (orgs), Conflito e Transformação Social: uma paisagem das justiças em Moçambique, 2º volume, Edições Afrontamento, Porto, 1993, p. 526 35 Idem, op. cit. págs. 581 e 582 36 SANTOS, Boaventura de Sousa, Democratização do Acesso à Justiça, conferência proferida no MJ, em 06/06/2007, no Seminário promovido pela Secretaria de Reforma do Judiciário, do Ministério da Justiça, para lançar as bases do Observatório da Justiça Brasileira.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
25
ainda subordinadas à lógica de papelização do direito, com evidente perda de sua
dimensão humana37.
Presas a uma visão positivista, que jurisdiciza o mundo, estas reformas não
carregam a percepção das condições de mudança da sociedade, seja em contexto teórico,
seja em contexto social, e não se dão conta da emergência de novas subjetividades, de
novos conflitos e de novos direitos, interpelando continuamente a cultura legalista que
está na base da atuação dos agentes do sistema de justiça e que orienta o posicionamento
funcional dos operadores de Direito38
Essa interpelação está no fundo do grande debate que traz o ensino do Direito
para seu centro, revelando o duplo equívoco a tradição retórica e positivista havia
produzido: a inadequada percepção do objeto de conhecimento e os defeitos
pedagógicos disso decorrentes, como apontou Roberto Lyra Filho39, quando
simultaneamente formula uma concepção que o vê como modelo avançado de legítima
organização social da liberdade.
Desse modo, estudar Direito implica elaborar uma nova cultura para as
Faculdades e cursos jurídicos e, um dos eixos fundamentais dessa reformulação cultural
tem sido, à luz das diretrizes em curso, constituir-se a educação jurídica uma articulação
epistemológica de teoria e prática para suportar um sistema permanente de ampliação do
acesso à justiça40, abrindo-se a temas e problemas críticos da atualidade, dando-se
conta ao mesmo tempo, das possibilidades de aperfeiçoamento de novos institutos
jurídicos para indicar novas alternativas para sua utilização41.
A nova cultura jurídica subjacente ao ensino do direito terá repercussões nas
formas de recrutamento dos juízes redirecionando a seleção com base nas habilidades
essenciais para a democratização profunda do acesso à justiça. Entre essas competências
destacamos a abertura epistemológica para o pluralismo jurídico; o desenvolvimento de
37 PINHEIRO, Carolina de Martins, Escuta Criativa: sobre a Possibilidade de uma Justiça Moderna e Democrática, 1º lugar no 1º Prêmio Novas Idéias para a Justiça. Objetivos e Resultados, Sindjus-DF,Brasília, s/d, p. 68 38 SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, Novas sociabilidades, novos conflitos, novos direitos, in Ética, Justiça e Direito. Reflexões sobre a reforma do judiciário, op. cit. p. 93 39 LYRA FILHO, Roberto, Para um direito sem dogmas, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1980, passim; O Direito que se ensina errado, Editora Obreira, Brasília, 1980, passim; O que é Direito, Editora Brasiliense, Coleção Primeiros Passos, 1ª edição, 1982, passim 40 SOUSA JUNIOR, José Geraldo, COSTA, Alexandre Bernardino, Introdução, in MACHADO, Maria Salete Kern, SOUSA, Nair Heloisa Bicalho de, Ceilândia: mapa da cidadania. Em rede na defesa dos direitos humanos e na formação do novo profissional do direito, Brasília, Faculdade de Direito da UnB, Secretaria de Direitos Humanos/MJ, 1998 41 SOUSA JUNIOR, José Geraldo de, Ensino do Direito e Assessoria Jurídica, in Revista do SAJU. Serviço de Assessoria Jurídica Universitária, Edição Especial nº 5, UFRS, Porto Alegre, 2006, p. 31
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
26
um perfil não apenas técnico, mas também humanista dos agentes jurídicos em
condições de promover a reflexão sobre a condição humana que contextualize o direito
no seu ambiente histórico, cultural, político, existencial e afetivo; aptidão para distinguir,
entre as múltiplas demandas, aquelas que exigem a construção de um ambiente
procedimental adequado para negociação de diferenças e diminuição de desigualdades
sociais.
Realizar a promessa democrática da Constituição eis o desafio que se põe para o
Judiciário e para responder a esse desafio precisa ele mesmo recriar-se na forma e no
agir democrático. Mas o desafio maior que se põe para concretizar a promessa do acesso
democrático à justiça e da efetivação de direitos é pensar as estratégias de alargamento
das vias para esse acesso e isso implica encontrar no direito a mediação realizadora das
experiências de ampliação da juridicidade. Com Boaventura de Sousa Santos podemos
dizer que isso implica dispor de instrumentos de interpretação dos modos expansivos de
iniciativas, de movimentos, de organizações que, resistentes aos processos de exclusão
social, lhes contrapõem alternativas emancipatórias42.
Um procedimento de pesquisa que intente operar a partir dessa visão de
alargamento, pensando o tema do acesso democrático à justiça, não pode descuidar-se da
designação cartográfica das experiências que se fazem emergentes. Sob tal perspectiva,
diz Boaventura de Sousa Santos, “as características das lutas são ampliadas e
desenvolvidas de maneira a tornar visível e credível o potencial implícito ou escondido
por detrás das acções contra-hegemônicas concretas”43. Isso corresponde, completa
Sousa Santos, a atuar “ao mesmo tempo sobre as possibilidades e sobre as capacidades;
a identificar sinais, pistas, ou rastos de possibilidades futuras naquilo que existe”44.
A METODOLOGIA DA PESQUISA DE CAMPO
A fim de realizar a cartografia das possibilidades de emergência de experiências
de acesso à justiça e direitos humanos das quais seja possível extrair elementos para
reflexão e assim dar conta das exigências da pesquisa em questão – cujos eixos
envolvem a identificação de demandas que interpelem a própria noção de acesso à
justiça e as experiências não-convencionais de satisfação das mesmas – foi adotado
roteiro de entrevista, feito com o apoio inestimável e essencial da Profa. Nair Bicalho
42 SANTOS, Boaventura de Sousa, Poderá o direito ser emancipatório? Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 65, CES, Coimbra, maio de 2003, p.35 43 Idem, p. 35 44 Ibidem, p. 35
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
27
(Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo, Técnica de Planejamento e
Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e Professor Adjunto do
Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília) e da pesquisadora Cíntia
Engel, graduanda de Sociologia do 5º semestre, membro da diretoria de pesquisa da
empresa júnior de Consultoria em Ciências Cociais – SOCIUS, pesquisadora financiada
pelo FINEP na linha de envelhecimento de mulheres, práticas institucionais de violência
e abandono.
Os roteiros de entrevista foram construídos de forma coletiva, a partir de
reuniões semanais no Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos – NEP/UnB,
e com aplicações paralelas de “entrevistas-testes” por parte de alguns pesquisadores que
posteriormente apresentavam as suas impressões ao grupo. Os pesquisadores, com o
auxílio da Profa. Nair Bicalho criaram as questões e se preparam para aplicá-las, num
processo contínuo de aperfeiçoamento e aprendizagem. A aplicação das entrevistas teve
como objetivo revelar quais as experiências de acesso à justiça potencializadoras de
aprendizagem e como têm sido conquistadas tanto pela sociedade civil organizada como
pelos movimentos sociais.
O roteiro dividia-se em cinco partes:
I. Perfil do(a) Entrevistado(a)
II. Perfil da Organização, Rede ou Movimento
III. Percepções sobre Direito e Justiça
IV. Percepção sobre o Sistema Judicial
V. Formas Convencionais e Não-Convencionais de Acesso à Justiça
As entrevistas foram realizadas entre setembro e dezembro de 2007, seguindo
três formas: presencial, por telefone e por e-mail. Os pesquisadores ficaram
encarregados de entregar as versões finais dos roteiros à Coordenação do grupo 01 para
numeração e posterior tabulação de dados. Para a tabulação quantitativa, foi utilizado o
sistema SPSS. Após essa fase, o grupo dividiu-se para fazer a análise do discurso das
questões abertas.
A escolha dos movimentos, redes e organizações entrevistados partiu de uma
amostragem delimitada pelos seguintes critérios: proximidade e identidade com a
organização, possibilidade de coleta da informação no tempo adequado, pertinência do
programa da organização ao tema da pesquisa e, por fim, a credibilidade e o
reconhecimento das ações dessas organizações. Os entrevistados foram indicados pelas
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
28
entidades escolhidas, preferencialmente pessoas em cargo de direção e coordenação, que
estavam a mais de dois anos na entidade.
Em nenhum momento o grupo 01 pretendeu esgotar o universo representativo
dos movimentos sociais na sua escolha, pelo contrário, desde o início sabia-se que esse
seria apenas o ponto de partida, a “experiência-piloto” de um mapeamento mais amplo a
ser feito caso a pesquisa prosperasse e chegasse aos resultados esperados.
Além disso, a pesquisa não visou meramente identificar as melhores ou bem-
sucedidas experiências, mas ao contrário, buscou fazer emergir através da escuta dos
movimentos sociais e respeito ao seu protagonismo, visões plurais de acesso à justiça.
Entendendo que o desperdício da experiência deve ser evitado, eventualmente, pode-se
aprender mais com experiências que à primeira vista não foram vitoriosas, mas cujo
potencial pedagógico seja iluminador.
RESULTADOS E CONCLUSÕES DA PESQUISA
Os novos movimentos sociais45 são a mola propulsora para o esperado
alargamento da prática política. Críticos dos excessos de regulação da modernidade,
esses movimentos lutam para além da concessão de direitos – exigem transformações e
inserção institucional imediatas. Carregam como bandeira a idéia de participação e de
solidariedade concretas, na busca de uma nova qualidade de vida pessoal e coletiva,
pautada na ação comunicativa para cultivar cooperação, compartilhamento e
solidariedade, com base na autonomia e no autogoverno, na descentralização e na
democracia participativa, no cooperativismo e na produção do socialmente útil. Têm
como objetivo a ampliação do político, a transformação de práticas dominantes, o
aumento da cidadania e a inserção na política de atores sociais excluídos.
Dessa forma, os novos movimentos sociais acabaram por instaurar, efetivamente,
“práticas políticas novas, em condições de abrir espaços sociais inéditos e de revelar
novos atores na cena política capazes de criar direitos”. Fixaram suas ações na sociedade
política, especialmente nas referentes à implementação de políticas públicas.
45 Falar-se-á de “novos movimentos sociais” para caracterizar aqueles movimentos surgidos entre as décadas de 1960 e 1980, que tinham como fim “a luta pelo reconhecimento de direitos sociais e culturais modernos. (...) não se tratava mais de lutas concentradas nos sindicatos ou nos partidos políticos” (GOHN, 2005, p. 72). “Esses movimentos ajudaram a construir novos significados para a política, localizando-a no cotidiano” (GOHN, 2005, p. 74). Além disso, são identificados como “novos” pela recriação de espaços públicos, pela heterogeneidade de sujeitos, pela diversidade de manifestações etc. “Embora fragmentados, unificavam-se na luta pelos direitos sociais e pela democratização do Estado, exigindo a participação direta nas decisões que lhes afetavam” (SILVA, 2003, p. 30) (grifou-se).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
29
A pesquisa de campo tinha por objetivo verificar se a descrição dos obstáculos
para a efetivação do direito à justiça e acesso à justiça, na forma que os autores que
compõem o marco teórico dessa pesquisa (Sousa Santos, Sousa Júnior e Lyra Filho),
correspondiam às demandas formuladas pelos movimentos sociais. E, além disso,
verificar em que medida as entrevistadas poderiam oferecer experiências capazes de
reconfigurar a discussão sobre justiça e acesso à justiça, resgatando-a da agenda de
regulação e a reconduzindo para a agenda da emancipação, através do estabelecimento
de novas e criativas práticas sociais.
Nesse sentido, foram identificadas organizações, movimentos e redes com
diferentes perfis organizacionais, tempo de existência, públicos, abrangência, além de
outros critérios para verificar os encontros entre teoria e prática e as diferentes formas de
intervir politicamente na realidade para a defesa de direitos.
A partir da coleta dos dados, foram realizadas duas análises. A primeira foi feita
a partir da Seção I do roteiro de entrevista, e fazia a identificação social do entrevistado.
Para fins de melhor visualização, as respostas estão organizadas em forma gráfica em
um anexo a esse texto.
As respostas das perguntas fechadas permitiram o reconhecimento do universo
trabalhado na pesquisa, com cruzamentos de raça, salário, escolaridade, tempo e posição
na organização. A segunda análise permitiu recolher dois tipos de categorias, uma que
identifica as estratégias não convencionais de acesso à justiça e outra que identifica
demandas de democratização e refuncionalização do Sistema Judicial.
Em relação ao universo composto pelas vinte e duas entrevistadas, os
pesquisadores integrantes do grupo 01 retiraram as seguintes informações:
Em relação ao sexo dos entrevistados, 67% são do sexo feminino e 33% do
masculino. Quanto à renda, observa-se alguma diversidade de faixas salariais, mas 39%
dos entrevistados relataram receber mais de 6 até 9 salários mínimos, já 22% recebe até
6 salários mínimos e 39% recebem acima de 9 salários.
O grau de escolaridade da maior parte dos entrevistados é superior completo,
sendo que esses somam 36% e outros 32% têm pós-graduação. Por outro lado, 9% têm
escolaridade até o ensino médio ou fundamental.
Essas informações permitem concluir que o perfil dos entrevistados foi
diversificado. Em sua maioria os entrevistados eram gestores e técnicos de organizações,
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
30
movimentos e redes bem-estruturadas, com alto grau de escolaridade e renda superior a
9 salários mínimos. Por outro lado, as entrevistas também alcançaram representantes de
movimentos sociais de base, com pouca educação formal e renda reduzida. O grupo 01
decidiu trabalhar com esse público variado, não reduzindo seu universo apenas a
organizações de alto perfil, para recolher diferentes perspectivas sob o acesso à justiça.
Além disso, a consolidação dos dados permite verificar o cumprimento dos
critérios de seleção para os entrevistados (exercício de cargo de direção e estar há mais
de dois anos na organização, movimento ou rede). Observa-se, então, que 50% dos
entrevistados estão em cargo de direção e outros 13% estão em função de assessoria.
Isso pode ser explicado em parte porque os pesquisadores aproveitavam viagens de
representantes dos movimentos, organizações ou redes para Brasília para realizar as
entrevistas, sendo que nem sempre os profissionais que viajam são os membros da
direção. Temos como exemplos, as entrevistas feitas no Seminário da ABEDI e a
entrevista feita durante a Marcha das Margaridas.
O tempo na organização, rede ou movimento foi eleito um dos critérios para a
seleção dos entrevistados porque se desejava resgatar elementos da memória
institucional de médio e longo prazo. Assim, 96% dos entrevistados possuem mais de
dois anos de instituição, sendo que 50% responderam ter mais de seis anos de trabalho.
Em relação à segunda análise, a leitura consolidada do conteúdo das entrevistas
permitiu que se verificasse que as organizações, movimentos e redes conhecem e
buscam a Justiça pelos meios tradicionais. No entanto, também permitem elaborar uma
vasta categorização de estratégias não-convencionais de acesso à justiça, com grande
potencial de aprendizagem coletiva para direitos e cidadania. Vê-se, então, nas
experiências dos movimentos sociais uma demanda pela resignificação e alargamento
das noções tradicionais de justiça e acesso à justiça, a partir do protagonismo dos
movimentos sociais no marco do pluralismo jurídico.
Há que se mencionar que essa categorização foi feita por pesquisadores cuja
afinidade teórica se dá no marco do projeto Direito Achado na Rua. Nesse sentido, as
categorias que são abaixo mencionadas não foram criadas pelas organizações
entrevistadas, mas pelo próprio grupo de pesquisa ao fazer a segunda análise do material
coletado. Essa segunda análise, por questões objetivas, não teve como objetivo exaurir o
material coletado. Ao contrário, pretende ser uma amostra preliminar da riqueza de
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
31
experiências produzidas pelos movimentos sociais que por vezes é ativamente
silenciada. O grupo de pesquisadores ligados ao Direito Achado na Rua se sente
motivado a aprofundar a pesquisa, dialogar com outros grupos interessados no tema e no
material coletado e incentivar estudantes de graduação e pós-graduação a continuar a
análise do material coletado.
Entre as estratégias identificadas pelos pesquisadores estão:
1.“Respeito às temporalidades democráticas” – parcela significativa dos entrevistados
mencionou a necessidade de se respeitar o tempo para que os grupos sociais pudessem
avaliar com profundidade suas demandas e tomar decisões. Muitas vezes esse tempo de
maturação entra em choque com a temporalidade típica dos processos judiciais ou
administrativos, que não levam em consideração os processos sociais, mas apenas
resultados. Os entrevistados mencionaram freqüentemente como aprendizado dos seus
anos de experiência que sem respeito ao protagonismo dos grupos e das comunidades
com quem trabalham, aos seus ritos e ao tempo necessário para a produção do
convencimento, sua atuação carece de legitimidade e não produz bons resultados.
2.“Fortalecimento Comunitário”- os entrevistados chamam atenção para que as
demandas dos grupos sociais sejam identificadas como demandas coletivas, e não como
pequenos problemas individuais. Algumas demandas são verdadeiros problemas sociais
contemporâneos que o sistema de justiça pela sua configuração liberal não consegue
captar com toda a complexidade. O fortalecimento das instâncias comunitárias e o seu
reconhecimento como “sujeitos coletivos de direitos” é uma de grande importância para
a garantia plural do acesso à justiça.
3.“Educação em Direitos Humanos”- essa estratégia afirma a importância da educação e
informação sobre direitos para os grupos sociais em situação de vulnerabilidade, como
forma de amplificar suas vozes e demandas. Educar em direitos humanos não se resume
a transmissão dos conteúdos dos tratados internacionais e das normas brasileiras. Para
além disso, é necessário informar sobre direitos com metodologias livres de
discriminação e que não reproduzam velhos estigmas.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
32
4.“Uso dos Meios de Comunicação” – os entrevistados afirmaram usar os meios de
comunicação para dar visibilidade a situações críticas de violação do direito à justiça e
ao acesso à justiça, como também para amplificar experiências bem sucedidas ou boas
práticas. Embora a imprensa seja muito citada como responsável por violar direitos, a
utilização cidadã dos meios de comunicação é descrita como uma boa estratégia para
alcançar a justiça.
5.“Conscientização e Sensibilização”- essas estratégias se referem ao uso da educação
não formal como meio de educar em direitos para situações não percebidas como
violações do direito à justiça e do acesso à justiça. A estratégia foi usada tanto com o
objetivo de sensibilizar operadores do direito, quanto com grupos sociais para tratar de
questões ainda emergentes.
6.“Reconhecimento e acreditamento do protagonismo das experiências de mediação
social realizadas fora das instâncias estatais”- o que chama atenção nessa categoria é a
demanda por reconhecimento das iniciativas de mediação comunitária por justiça e por
acesso à justiça e a recusa de sua cooptação ou absorção de seus modelos e práticas pelo
Estado. As experiências de mediação relatadas possuem forte base comunitária, sendo
esse um diferencial a ser preservado.
Embora a pesquisa não tivesse como objetivo específico fazer uma avaliação da
percepção de movimentos, organizações e redes acerca do Sistema Judiciário foi
possível identificar nas entrevistas demandas por democratização e refuncionalização
das instituições que o compõem, pois muitas vezes foram descritas como um obstáculo
ao acesso à justiça. O Sistema Judiciário foi descrito pelas entidades como:
1.“Resistente a trabalhar com o direito da rua” – as entrevistas dão a perceber uma
recusa de compreender outras formas de regulação social que não a do direito positivo.
Há uma demanda por reconhecimento de mecanismos jurídicos não positivados, mas de
ampla aceitação por grupos sociais. A recusa do pluralismo faz com que práticas sociais
que garantem justiça sejam mantidas invisíveis.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
33
2.“Dotado de baixa sensibilidade para com as demandas da comunidade” – os
entrevistados reconhecem nos operadores do Sistema Judicial pouca disponibilidade
para travar relações horizontais, reconhecendo e respeitando as demandas da
comunidade e suas decisões. Há forte crítica ao não respeito do protagonismo dos
interessados na composição de soluções para suas demandas.
3.“Possuidor de limites culturais para a percepção de sujeitos e demandas inscritas nos
conflitos sociais” – algumas entrevistas identificaram limites culturais dos membros do
Sistema Judiciário que não são capazes de reconhecer algumas situações de conflitos
sociais como demandas por acesso à justiça ou acesso à justiça. Sejam pelo seu conteúdo
ainda não reconhecido como direito ou pela sua configuração coletiva.
4.“Composto por um corpo com formação técnica desvinculada das experiências do
mundo da vida” – as entrevistas mencionam as limitações da formação técnica oferecida
ao profissional do direito, excessivamente livresca, que não o preparam para lidar com
as complexidades do mudo da vida em permanente mutação. São freqüentemente
oferecidas velhas soluções para novos problemas.
5.“Burocrático” – as instituições do Sistema Judicial são percebidas como
excessivamente burocráticas e apegadas aos seus procedimentos. Há dificuldade de se
entender o emaranhado de regras processuais e o linguajar excessivamente técnico usado
pelos profissionais do Direito, o que acaba por limitar e desencorajar grupos a exercer
sua cidadania.
6.“Pouco permeável ao controle social” – as entrevistas afirmam ser o Sistema Judicial
pouco aberto ao monitoramento da sociedade civil. As organizações, movimentos e
redes lamentam a pouca possibilidade de diálogo com os integrantes do Poder Judicial, e
verem atendidas suas demandas de democratização e refuncionalização.
Apesar de tradicionalmente se entender o Sistema Judicial como sendo o único
canal de acesso à justiça, esse é percebido pelas organizações, movimentos e redes como
um eventual obstáculo a ser superado para se alcançar a Justiça. Essa pesquisa
demonstra que por vezes movimentos, redes e organizações adotam estratégias não
convencionais para acessar a justiça que consideram mais capazes de produzir um
resultado social de amplo aprendizado.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
34
ANEXO 0 1- ENTREVISTAS REALIZADAS:
1. Ana Celina Bentes Hamoy, do Cedeca Emaús
2. Lúcia Helena Carvalho Pires; da Rede Nacional de Pessoas (RNP +) que vivem
com HIV Aids
3. Regina Lúcia Pinto Cohen, da Associação Brasiliense de Combate à Aids – Grupo
Arco-Íris
4. Carla Miranda, do NAJUP
5. Domingos – Tucano, da FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio
Negro)
6. Saulo Ferreira Feitosa; do CIMI (Conselho Indigenista Missionário);
7. Roberto Policarpo Fagundes, do Sindjus (Sindicato dos Trabalhadores do Poder
Judiciário e do Ministério Público da União no DF);
8. Adriana de Carvalho Barbosa Ramos, do ISA (Instituto Sócio Ambiental
9. Isabella Pearce de Carvalho Monteiro, do Centro de Assessoria Jurídica
Universitária Popular – Cajuína
10. Fábio Meirelles Hardman de Castro, da Escola da Gente – Comunicação em
Inclusão
11. Karla Adriana Ribeiro de Araújo e Aline Tavares, do CENDHEC (Centro Dom
Helder Câmara de Estudos e Ação Social)
12. Clóvis Ramos Limas, do MOC (Movimento de Organização Comunitária)
13. Vera Cristina Leonelli, do JUSPOPULI- escritório de direitos humanos
14. Sofia Maria Leite Fernandes, do Fórum de Promotoras Legais Populares (Centro
Dandara de Promotoras Legais Populares)
15. Membros do NAJUP, do Núcleo de Assessoria Jurídica Popular – NAJUP/PUCRS
16. Joelma Cesário, da Associação Lésbica Feminista de Brasília Coturno de Vênus
17. Raimunda Fernandes dos Reis, da Associação de Quebradeiras de Coco da Estrada
do Arroz
18. Rosiana Queiroz, do Movimento Nacional de Direitos Humanos – MNDH
19. Marcia Hora Acioli, da CARITAS Brasil
20. Jacques Távora Alfonsin, da Acesso Cidadania e Direitos Humanos
21. Myllena Calasans de Matos, do Cfemea
22. Ney Strozake, da RENAP (Rede Nacional de Advogados Populares)
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
35
ANEXO 2: ROTEIRO DE ENTREVISTA
Formulário n º _____
Nome do (a) entrevistador (a):______________________________________________
Nome do (a) entrevistado (a):_______________________________________________
Data da entrevista: _______________________________________________________
Forma da entrevista: ( ) Presencial ( ) Telefone ( ) E-mail
Duração da entrevista: (a)início: _______h b) término: ______h
I. PERFIL DO (A) ENTREVISTADO (A)
1. Posição na organização, movimento ou rede:
( ) Direção
( ) Assessoria
( ) Função técnica
( ) Outra. Qual?_________________________________________________________
2. Tempo na organização, movimento ou rede:
( ) Até 2 anos
( ) Mais de 2 a 4 anos
( ) Mais de 4 a 6 anos
( ) Mais de 6 a 8 anos
( ) Mais de 8 anos
( ) Sem resposta / Não sabe
3. Escolaridade
( ) Ensino fundamental (1º Grau)
( ) Ensino médio (2º Grau)
( ) Superior incompleto
( ) Superior completo
( ) Pós-graduação
( ) Sem resposta / Não sabe
4. Renda
( ) Até 3 salários mínimos* (R$ 1140,00)
( ) Mais de 3 a 6 salários mínimos (R$ 2280,00)
( ) Mais de 6 a 9 salários mínimos (R$ 3420,00)
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
36
( ) Mais de 9 a 12 salários mínimos (R$ 4560,00)
( ) Mais de 12 a 15 salários mínimos (R$ 5700,00)
( ) Mais de 15 a 18 salários mínimos (R$ 6840,00)
( ) Mais de 18 a 21 salários mínimos (R$ 7980,00)
( ) Mais de 21 a 24 salários mínimos (R$ 9120, 00)
( ) Mais de 24 salários mínimos
( ) Sem resposta / Não sabe
*Valor do salário mínimo em outubro/ 2007: R$380,00
II. PERFIL DA ORGANIZAÇÃO, REDE OU MOVIMENTO
5. Nome:_______________________________________________________________
6.Endereço da sede:_______________________________________________________
7. Telefone:_____________________________________________________________
8. E-mail:_______________________________________________________________
9. Site na Internet:________________________________________________________
10. Data da fundação da organização, movimento ou rede:________________________
11.Objetivos da organização________________________________________________
12. Áreas de atuação
( ) Moradia
( ) Terra
( ) Povos indígenas
( ) Mulheres
( ) Afro-descendentes
( ) Quilombolas
( ) Direitos humanos
( ) Crianças e adolescentes
( ) GLBTTT
( ) Saúde
( ) Advocacia popular e/ ou assessoria jurídica
( ) Assessoria institucional para órgãos governamentais e/ou empresas privadas
( ) Mídia
( ) Pessoas com deficiência
( ) Comunicação comunitária
( ) Ecologia /Ambiente
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
37
( ) Movimentos populares (trabalhadores desempregados; catadores de materiais
reciclados, etc)
( ) Violência
( ) Educação
( ) Trabalho
( ) Outra(s).Qual(is)?_____________________________________________________
13. Abrangência de atuação:
( ) Local
( ) Estadual
( ) Nacional
( ) Internacional
14. Forma de constituição legal:
( ) Com personalidade jurídica
( ) Sem personalidade jurídica
15. Possui estatuto, programa ou carta de princípio?
( ) Sim ( ) Não
16. Qual a forma de organização interna da sua organização?
( ) Direção colegiada
( ) Presidencialismo
( ) Outra. Qual?_______________________________________________________
Existe uma diretoria?
( ) Sim ( ) Não
Se sim:
A diretoria é:
( ) Eleita
( ) Nomeada. Por quem?__________________________________________________
18. Quais são os principais dirigentes ou representantes de sua organização, rede ou
movimento para ter contato?
1._____________________________________________________________________
2._____________________________________________________________________
3._____________________________________________________________________
19. A sua organização, rede ou movimento recebe algum apoio institucional?
( ) Sim ( )Não ( ) Não respondeu/ Não sabe.
Se sim:
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
38
Que tipo?
( ) Governamental
( ) Agências de cooperação internacional
( ) Não-governamental
( ) Outro(s). Qual(is)?____________________________________________________
20. Sua organização rede ou movimento dispõe de algum tipo de assessoria jurídica?
( )Sim ( )Não
Se sim:
Qual o papel dessa assessoria jurídica?
( ) Técnico
( ) Político
( ) Outro.
Qual?_________________________________________________________________
( ) Sem resposta / Não sabe
III. PERCEPÇÕES SOBRE DIREITO E JUSTIÇA
21. O que sua organização, rede ou movimento entende por
direito?_________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_________________________________
22. O que sua organização, rede ou movimento entende por
justiça?_________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_________________________________
23. O que significa alcançar a justiça para sua
entidade?_______________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
__________________________________
24. Que demanda(s) existe(m) na sua organização, rede ou movimento por
direitos?________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
39
_______________________________________________________________________
_________________________________
25. Que demanda(s) existe(m) na sua organização, rede ou movimento por
justiça?_________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_________________________________
26. Quais são os principais obstáculos que impedem a sua organização, rede ou
movimento de alcançar a justiça?____________________________________________
27. Como esses obstáculos podem ser superados por sua organização, rede ou
movimento?_____________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_________________________________
* Esta pergunta não se aplica a organizações, movimentos ou redes de assessorias
jurídicas.
IV. PERCEPÇÃO SOBRE O SISTEMA JUDICIAL
28. Com quais instituições do sistema judicial sua organização, rede ou movimento têm
ou teve contato:
( ) Ministério Público
( ) Polícia
( ) Judiciário ( juízes e tribunais)
( ) Defensoria Pública
( ) Outra(s). Qual(is)?____________________________________________________
( ) Nenhuma das alternativas.
29. Em que circunstâncias esses contatos ocorrem ou ocorreram?
_______________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_________________________________
30. Qual a freqüência desses contatos?
( ) Muito freqüente (pelo menos uma vez por mês)
( ) Freqüente (trimestral ou semestral)
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
40
( ) Pouco freqüente (mais de um semestre)
31. Sua organização, rede ou movimento procurou alguma dessas instituições?
( ) Sim ( )Não
Por que? ______________________________________________________________
32. Sua organização, rede ou movimento foi procurado por alguma dessas instituições?
( )Sim ( ) Não
Por que? _______________________________________________________________
33. Que resultados esses contatos tiveram em relação às demandas de sua organização,
rede ou movimento?:
_______________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_________________________________
34. Qual a opinião da sua organização, rede ou movimento a respeito da atuação dessas
instituições?
( ) Ministério Público____________________________________________________
( ) Polícia_____________________________________________________________
( ) Defensoria Pública____________________________________________________
( )Judiciário____________________________________________________________
( ) Outra(s). Qual(is)?____________________________________________________
35. Como o Judiciário é visto por sua organização, rede ou
movimento?_____________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_________________________________
36. O sr. ou sra. considera o Judiciário aberto às demandas da sua organização, rede ou
movimento? Sim ( ) ( )Não
Por que?________________________________________________________________
37. Qual a utilidade do Judiciário para a sua organização, rede ou
movimento?_____________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_________________________________
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
41
38. Quais as críticas da sua organização, rede ou movimento ao
Judiciário?______________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_________________________________
39. O sr. ou sra. acha que os operadores de direito estão preparados para cumprir a
função de realizar a justiça? ( )Sim ( )Não. Por que?
_______________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_________________________________
5. FORMAS CONVENCIONAIS E NÃO-CONVENCIONAIS DE ACESSO À
JUSTIÇA
40. Que meios são utilizados por sua organização, rede ou movimento para alcançar a
justiça?
_______________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_________________________________
41. Como sua organização, rede ou movimento encaminha as demandas para garantir a
justiça que a sua entidade recebe?
_______________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_________________________________
42. Que experiências para alcançar à justiça, além da assistência judiciária, foram
implementadas por sua organização, rede ou movimento?
( ) Educação formal. Quais?______________________________________________
( )Campanhas. Quais?___________________________________________________
( ) Educação não-formal. Que tipo?_________________________________________
( )Mobilização. Que tipo? _______________________________________________
( ) Outra(s). Qual(is)?___________________________________________________
43. As ações ou experiências para alcançar a justiça resultaram em algum aprendizado
para sua organização, rede ou movimento?
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
42
( )Sim ( ) Não
Explique._______________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_________________________________
44. Como o Sistema Judicial (Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública ou
Polícia) responde diante das experiências de sua organização, rede ou movimento para
alcançar a
justiça?_________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_________________________________
45. Quais instituições do Sistema Judicial respondem de modo mais satisfatório às
demandas de sua organização, rede ou movimento?
( ) Ministério Público. Por que?____________________________________________
( ) Polícia. Por que? _____________________________________________________
( ) Defensoria Pública. Por que?____________________________________________
( ) Judiciário. Por que? ___________________________________________________
( ) Outra(s). Qual(is)?_____________Por que?________________________________
46. Quais instituições do Sistema Judicial respondem de modo menos satisfatório às
demandas de sua organização, rede ou movimento?
( ) Ministério Público. Por que? _____________________________________
( ) Polícia. Por que? _____________________________________________________
( ) Defensoria Pública. Por que?____________________________________________
( ) Judiciário? Por que? ___________________________________________________
( ) Outra(s). Qual(is)?____________________________________________________
Por que?________________________________________________________________
47. Quais as sugestões do(a) sr.(a) para garantir e ampliar o acesso à Justiça no
Brasil?_________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_________________________________
48. Qual a melhor maneira para a solução de conflitos?
( ) Julgamento por um (a) juiz (a)
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
43
( ) Acordo com a parte contrária com ajuda de alguém da sua comunidade
( ) Acordo com a parte contrária com ajuda de um técnico
( ) Acordo com a parte contrária sem ajuda de terceiro
( ) Sem resposta/ não sabe.
49. O que o sr. (a) entende por mediação de conflito? ____________________________
50. O que o sr. (a) entende por arbitragem ?
_______________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
______________________
51. O que o sr. (a) entende por conciliação?
_______________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
______________________
52. Que instituição(ções) a sua organização, rede ou movimento considera mais
confiável(véis) para proteger um direito violado?
( ) Imprensa
( ) Polícia
( ) Judiciário
( ) Legislativo
( ) Executivo
( ) Nenhuma delas
( ) Outra(s).Qual(is)?____________________________________________________
( ) Sem reposta/ Não sabe
53. O sr. ou sra. acha que os debates sobre a Constituição (aborto, reforma política,
reforma agrária, segurança etc.) estão abertos à participação social?
( ) Sim ( ) Não
Por que?________________________________________________________________
54. O sr. ou sra. conhece alguma das formas de atuação, abaixo mencionadas, para a
defesa da Constituição em ações perante a Corte Suprema?
( ) Amicus Curiae
( ) Audiência Pública
( ) Outra (s). Qual (is)? __________________________________________________
55. O sr. ou sra. gostaria de falar mais alguma coisa sobre o assunto desta entrevista?
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
44
_______________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_______________________________
ANEXO 3: PESQUISADORES DO GRUPO 01
Professor – Coordenador
José Geraldo de Sousa Junior
Pesquisadores (as):
Adriana Andrade Miranda
Bistra Stefanova Apostolova
Carolina de Martins Pinheiro
Carolina Pereira Tokarski
Fabio Costa Morais de Sá e Silva
Flavia Carlet
Iuri Mattos de Carvalho
João Paulo Santos
Judith Karine Cavalcanti
Luciana Ramos
Mariana Siqueira Carvalho Oliveira
Mariana Veras
Mauricio Azevedo de Araujo
Pedro Teixeira Diamantino
Rosane Freire Lacerda
Sara da Nova Quadros Cortês
Soraia da Rosa Mendes
Raquel Negreiros
Pedro Mahin
Lívia Maier
Saionara Reis
Raissa Roussenq Alves
Talitha Selvati Nobre Mendonça
Gilsely Barbara Barreto Santana
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
45
Diego Nepomuceno Nardi
Bruno Borges
ANEXO 04 - PERFIL DOS ENTREVISTADOS
*O universo dos entrevistados e de 22 pessoas.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
46
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
47
Questões 40, 42,43 e 47
Q.40 Quais os meios para alcançar a justiça
1
Organização da comunidade para uma atuação coletiva, formação
sobre direitos e instrumentos de exigibilidade
2 Tá repetido.
3
Acho que são os encaminhamentos quando surgem demandas que
são... a gente encaminha. Você não pode nem trabalhar internamente
porque não tem uma assistência jurídica. Nós encaminhamos pra
ONGs que podem prestar esse serviço, a não ser quando é o caso de
violência, que nós mandamos diretamente pra delegacia de mulheres,
ou de acordo com a (...)
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
48
4
Então seria organização social e em último caso a ida ao Judiciário]
A impetração é a última alternativa, mas é sempre a coisa da
educação, a conscientização, a organização. Através disso, parece até
que a gente usa muito isso, Cristovam Buarque já diria “Ah!
Educação resolve tudo!”. Não é que educação não vamos ter
conflitos, mas a partir disso as pessoas vão ter autonomia suficiente
pra resolver seus conflitos sem chegar ao Judiciário, vão ter a
organização suficiente, a autonomia pra resolver esses problemas
sem a necessidade de chegar nisso. Agora, você colocou uma
reflexão pessoal, não é NAJUP. Em função desse seminário aqui foi
que eu tive contato com a mediação, que eu acho que a mediação
talvez seja um excelente meio pra receber o acesso ao Judiciário. Até
reflexão pessoal também, essa organização ela leva a que essas
pessoas façam essa mediação. Boaventura mesmo, tem um livro que
fala sobre Pasárgada, e nesse livro ele conta como é o procedimento
de resolução de conflitos dentro dessa favela. E se você for analisar,
é mediação, mas quem faz essa mediação é o presidente da
associação de bairro, então, por que o povo, se organizando, não
poderia fazer isso? O sistema é o pluralismo, então essas pessoas se
organizando autonomamente, elas podem perceber que elas podem
resolver esses problemas. Tem lá o árbitro, o presidente da
associação, ou sei lá quem que vai ser a referência, e elas mesmas
conseguem resolver esses problemas. Com mediação mas sem
necessidade de um juiz.
5
Em São Gabriel, no momento, é difícil alcançar. Mas o que a gente tá
tentando, pra alcançar a justiça, é através desse movimento que a
gente fez em maio de 2007. A gente conseguiu quase quatro mil
assinaturas pra anexar a esse dossiê, pra pedir justiça, para que as
coisas... (...) Tem vários depoimentos mostrando fatos reais. Então, a
gente tá aqui pra cobrar pro Ministro. Passou já uns 5 meses e não
aconteceu nada até agora.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
49
6
Entendemos que a capacidade de organização, as mobilizações e as
demais formas de lutasdos povos indígenas são o principal meio de
alcançar justiça. Dentre elas destacamos as retomadas de seus
territórios tradicionais, que lhes assegura de fato a conquista e posse
da terra. O judiciário em geral atua como um “dificultador” da
concretização desse direito assegurado pela CF. O Executivo, a quem
cabe a obrigação de fazer a demarcação, na maioria das vezes só o
faz após a efetivação da posse pelos próprios índios.
7
No nosso caso aqui greve. Aí assim, faz mobilizações diversas, mas
greve é uma delas debates, seminários, congressos, palestras, os
meios de comunicação também que faz parte... nós temos nossa
revista.
- Professor José Geraldo de Sousa Junior:”mas o dissídio também é
um meio?”
- O dissídio nós não temos. Nós temos as ações judiciais e
administrativas. As vezes... a partir de uma decisão administrativa a
gente força o Tribunal a ter uma ação administrativa favorável.
Professor José Geraldo de Sousa Junior:”ah sim... poque o Tribunal
age administrativamente através do Tribunal, né?”
- mas age como Tribunal. Eu lembro, por exemplo, nós tivemos em
2000 o Supremos ele decidiu um outro processo, mas o mesmo
conteúdo e menos de dois meses mudar a posição. Professor José
Geraldo de Sousa Junior:”e isso...?” por causa da pressão. A genta
tava num processo de mobilização na justiça eleitoral aí o Supremo
foi tentar resolver, resolveu em parte ela fazia uma _________ de
2000 até 96 e a gente____________. Terminamos o processo o TSE
foi e deferiu, , como ____ queria, contrariando o Supremo, mas que
três votos dos ministros___________ e depois das eleições o
Supremo por 6 a 5 1(um) voto a nosso favor__________, foi
favorável.
_______________________________________________________
______________________.
- Professor José Geraldo de Sousa Junior:”então é um espaço de
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
50
busca de concretização de justiça que dá a função administrativa um
caráter misto de judicial e de político, né?”
8
É ... informação, mobilização, ações judiciais e intervenção política.
É ... por meio da descriminação dos direitos que as pessoas têm, por
meio da conscientização dos seus próprio direitos. A disseminação
das informações que subsidiem a defesa desses direitos. E a
qualificação das informações que possibilitem, inclusive aos
operadores do direito uma melhor compreensão da realidade como
um todo.
9
Bom... a justiça fora do judiciário porque a justiça ... forma ampla...
educação, nós fazemos educação em direitos humanos porque no
momento em que a gente traz a educação em direitos humanos a
gente procura a conscientização, a emancipação ... e a pessoa...
direitos e deveres. A partir disso, surjam demandas... busca o
judiciário para que essas demandas sejam atendidas.....
10
a) formação, mobilização e capacitação (para públicos diversos,
preferencialmente mídia, juventude, educadores e lideranças
empresariais e de projetos sociais);
b) influência em políticas públicas (especialmente juventude);
c) comunicação pela não-discriminação/inclusiva;
11
Articulação com os movimentos, mídia, audiências públicas,
formação e mobilização do público atendido para estarem buscando
conscientiza-los sobre os seus direitos e como assegura-los.
12 NS/NR
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
51
13
Para alcançar a justiça no sentido amplo, ao qual já nos referimos
inicialmente, o meio que nós usamos é a orientação sobre direitos e a
mediação de conflitos. Agora para alcançar a justiça, no sentido do
poder judiciário, o meio que utilizamos é o encaminhamento das
pessoas que precisam de alcançar o poder judiciário, através da
defensoria pública ou do ministério público, a depender do caso.
14
Duas PLPs falaram em um seminário (fato não pouco freqüente);
As integrantes são procuradas individualmente pelas mulheres da
comunidade com problemas (casos);
Palestras em escolas, nas ruas em que moram, no Batalhão de
Polícia.
15
Utilizamos a educação popular, como mecanismo de empoderamento
da comunidade, possibilitando sua emancipação e o protagonismo na
luta pela justiça.
16 Informação.
17 É o sindicato mesmo. O sindicato é que tem todas as forças pra isso
18
Conscientização, organização e mobilização das pessoas mais pobres
e excluídas, ocupando espaço em órgãos públicos para fazer controle
social, denunciando e propondo saídas.
19
Gilsely Bárbara Barreto Santana : Então Márcia, a gente finda essa
parte de forma do sistema judicial e a retoma a nossa... é... Nossa
discussão anterior que antes foi gravada, que sobre as formas
convencionais e não convencionais de acesso a justiça e ae a gente
falava desses... desses meios que vocês utilizam pra, pra alcançar a
justiça.
Márcia Fiolli – Bem... é... Em relação a escansão formal...
Gilsely Bárbara Barreto Santana : Não... os meios usados antes... os
meios que vocês utilizam pra alcançar a justiça...
Márcia Fiolli – Ah ta... Aqui a gente trabalha fundamentalmente com
organização popular, com o fortalecimento das comunidades, com a
formação delas pra perceber que, que elas são, é... portadoras de
direito sujeitos né ______ Nós trabalhamos com a noção de
fortalecimento do protagonismo, de que eles são capaz, tem força e
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
52
da organização né? A organização mostrando que o conjunto de
pessoas e o conjunto de comunidades, tem muito mais poder do que
uma pessoa isolada e... e agente também trabalha com a noção maior
de direitos coletivos, ou seja, a Caritas não ta preocupada com
pessoas isoladamente, mas com a comunidade, um grupo, com
populações. Então a gente trabalha nesse sentido é... para fazer
pressão política, pra incidir sobre as políticas publicas, pra... é... ir
reverter algumas situações de violências e de violação do direito.
Q.42.A Experiêcias: Educação formal
1
Ações coletivas – ação civil pública, mobilizações e denunicas nos
meios de comunicação.
2 NS/NR
3 NS/NR
4 NS/NR
5
Mobilizações, seminários tratando dessa questão do tema “direito
indígena”. Esse Balcões da Cidadania entra aí. A gente trabalhou
com cinco balcões tratando da realidade de São Gabriel.
6 NS/NR
7 NS/NR
8
Eu acho que no âmbito da educação formal o ISA trabalha junto as
comunidades indígenas com processo de formação de professores
bilíngues; na perspectiva de que essa educação contribui para os
povos indígenas compreenderem e entenderem os seus direitos.
9
educação dentro da universidade também. A gente faz congressos
dentro da universidade... direitos humanos também.
10 NS/NR
11 NS/NR
12 NS/NR
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
53
13 NS/NR
14 NS/NR
15 NS/NR
16
Palestraas em universidades sobre diversidade sexual, lesbofobia e
homofobia.
17 NS/NR
18 Especialização em direitos humanos, mestrado, etc
19
Na verdade nós não realizamos educação formal. Educação formal
fica por conta do sistema de educação o que temos é algumas ações
que elas é... elas... tem um contato imediato com as escolas, ou seja, a
RESAB rede de educação semi-árido do brasileiro, ela forma
professores, ela trabalha na educação é... no... no... na metodologia
da educação contextualizada pra que é... a.. as escolas adotem uma
pedagogia que valorizem aquela comunidade dentro daquele bioma
que pratica determinada cultura, então é... isso pra gente tem um...
uma vinculação direta com o direito porque o fortalecimento dessa
noção do sujeito é... é...que pertence a um bioma, pertence a uma
comunidade e ele pode ser valorizado como tal. E outra ação que nós
temos de interessante nesse cartão formal é um... concurso pras
escolas publicas que trabalha o direito de participar na verdade é um
concurso que desafia a educação, a educação publica a formar jovens
adolescentes consciente da sua cidadania e seguros de que eles tem o
direito efetivo de participar politicamente da comunidade. E em
relação a campanhas, nós temos várias campanhas, inúmeras né? E as
campanhas por exemplo... uma grande campanha que nós
desenvolvemos a pouco tempo foi de enfrentamento a violência e
exploração fiscal de criança, de adolescentes onde a gente união
organizações governamentais e não governamentais, poder publico,
conselho tutelar, então, inúmeras é... entidades de sujeitos e muitas
universidades publicas para é... fazer uma grande formação, fazer a
mobilização e... é... e desenvolver ações locais que é... é... é... ações
locais pra inibir o... a violência e a exploração sexual de criança e de
trafico de criança, que também tem esse movimento de levar as
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
54
crianças pra fora do pais.
Q.42.B Experiências: Campanhas
1 Contra a exploração de meninas no Tra. Doméstico.
2 NS/NR
3 NS/NR
4
A gente já participou de uma campanha, junto com a Casa da
Juventude, que foi ajudando (...) com direitos. Aí cada ano ela tem
uma abordagem específica, esse último período agora era contra a
redução da maioridade penal, mas dentro dessa campanha a gente
fazia algumas oficinas, em várias comunidades, em bairros de
periferia, sobre direitos. Direito ao trabalho, foi a primeira que a
gente fez, direito á participação (...). Ah! A campanha também da
Vale (?), que a gente não fez tão bem quanto queria, porque a gente
viajou, mas teve um pouco da discussão.
5 NS/NR
6
Costumamos promover campanhas específicas pela demarcação de
determinadas terras indígenas. Dentre todas, destacamos como a
maior e mais difícil a luta pela demarcação da terra indígenas Raposa
Serra do Sol, em Roraima, onde todos os poderes daquela unidade da
federação atuaram muito articulados contra os interesses indígenas.
Depois de três décadas de luta a terra foi demarcada, mas a
resistência dos poderes locais, em ampla articulação com o
latifúndio ainda permanece.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
55
7 NS/NR
8
Campanhas de opinião pública, especialmente no que diz respeito a
políticas em geral como por exemplo na campanha do código
florestal, da campanha contra a proposta da emenda constitucional
que queria limitar o reconhecimento de terras indígenas. Então o caso
de justiça nessa perspectiva.
9
porque o Cajuína faz parte da RENAJUR que esse ano tá com a
campanha pela não redução da menoridade penal... direito da criança
e do adolescente.
10 É Criminoso Discriminar
11
Trabalho Infantil, Violência Sexual, Estatuto da Cidade, Estatuto da
Criança e do Adolescente e outras em articulação com os
movimentos que fazemos parte.
12 NS/NR
13 NS/NR
14 NS/NR
15 NS/NR
16 Vigília pelo fim da violência contra as mulheres
17 NS/NR
18 NS/NR
19 NS/NR
Q.42.C Experiências: Educação não-formal
1
Estimulando a formação e organização da comunidade para auto
gestão de direitos.
2 NS/NR
3 NS/NR
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
56
4
Educação popular. A educação popular não é uma oposição à
educação formal, a educação popular é uma metodologia, e a formal
é uma educação da escola. Então a gente trabalha com educação
popular com escolas dentro só da nossa universidade, o que não
deixa de ser... mas também com a mesma metodologia de educação
popular na informalidade (...) Ao invés de tratar dos temas que são
tratados através de educação formal dentro da nossa própria
faculdade, de nossos colegas que a gente “tá” querendo convidar pra
participar do projeto, por exemplo, a gente se utiliza do que a
educação formal põe como conteúdo, mas trabalhamos isso através
da educação popular, seria isso. Isso dentro da faculdade.
5 Balcão da Cidadania.
6
Realizamos muitos cursos e seminários de formação para índios e
indigenistas. Os conteúdos são vários: política, história, antropologia,
direito, teologia etc.
7
É... a gente tá tentando fazer... é... a gente consegui agora... tá
escolhendo nacional de qualificação do nosso sucesso e uma das
coisas que eu tentei fazer foi a capacitação dos servidores. No
próximo ano, talvez, trabalhar em uma Universidade cooperativa.
Vamos ver se a agente não faz uma parceria com a UnB.
8
É... a gente trabalha muito com a parte de educação não formal na
formação de agentes sócio ambientai. Então... na perspectiva de
disseminar o conhecimento técnico e político... enfim, de direitos pra
diferentes agentes e parceiros que possam disseminar essa
informação.
9
exato, a educação em direitos humanos que a gente faz na
comunidade.
10 NS/NR
11
Capacitações do público atendido sobre as temáticas que permeiam a
nossa atuação.
12 NS/NR
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
57
13
Sobre educação não formal, nós freqüentemente oferecemos cursos
de direitos humanos e mediação, sempre associados, tratando-se da
medição, associamos a mediação necessariamente aos direitos
humanos. Mas algumas vezes, também fazemos cursos e outros
eventos formativos em direitos humanos que não estão associados à
mediação, porque a nossa organização atua também um pouco com
direitos específicos da criança e do adolescente, somos parceiros do
UNICEF em alguns trabalhos de estímulo à efetivação dos direitos
das crianças e dos adolescentes. Então, fazemos muitos programas,
muitas atividades relacionadas com educação não formal para
direitos da criança e do adolescente.
14 Palestras
15
Popular, não bancária, que trabalha na construção coletiva do
conhecimento.
16
oficinas e reuniões com a comunidade para informar direitos e
deveres que garantem uma boa qualidade de vida social.
17 NS/NR
18 Cursos de educação não formal
19
Educação não formal é nossa atividade cotidiana, acontece o tempo
todo, acontece é... no pais inteiro que é, exatamente pra fortalecer a
comunidade a gente trabalha com diversos temas, políticas publicas,
direito é... é questões ambientais e assim vai, Brasil a fora tem a
CODEPLAN no mundo inteiro... é... o nosso trabalho é... ele é...
muito assim... sem as mobilizações que são, é... as grandes
manifestações de ter organização de... de entidade de _________ de
pessoas, manifestações publicas que tem a função de fazer pressão
política e também a função de é...
Q.42.D Experiências: Mobilização
1
Caminhadas por defesa de direitos, mobilização nos meios de
comunicação, mobilização via internet, posicionamentos públicos
2 NS/NR
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
58
3
Eu acho que nós investimos mais em mobilização. Por exemplo, já
fizemos grupos de ajuda (...) Aids. A gente mobiliza as pessoas pra
irem buscar seus direitos. De alguma forma, o Ministério Público é
acionado, e principalmente o Ministério Público.
4
A gente já mobilizou os estudantes para participarem da parada
LGBT, grito dos excluídos, esse tipo de mobilização pras próprias
organizações que já acontecem.
5 NS/NR
6 Atos públicos, marchas, acampamentos etc.
7 NS/NR
8
É... mobilização mais na linha dessas campanhas, né. Campanhas de
opinião pública, usando muito a mídia pra fazer com que as pessoas
se manifestem junto especialmente ao poder Executivo e Legislativo,
eventualmente até em ações judiciais, se for o caso, né.
9
- mobilização também, principalmente meio ambiente. Como a gente
trabalha com educação... a gente parte dela.
10 NS/NR
11
Articulação com Redes, Fóruns e Movimentos que discute os direitos
humanos e as temáticas específicas dos programas do Cendhec.
12 NS/NR
13
Mobilização também. Nós fazemos mobilização, por exemplo, na
medida em que implantamos e mantemos um escritório de orientação
sobre direitos e mediação no bairro. É preciso que você esteja
freqüentemente mobilizando a comunidade para a utilização desses
serviços, através de campanhas, de rádios comunitárias, de panfletos,
de conversas, de chamadas para discussões, para oficinas.
14
Participam do Dia Internacional da Mulher, doDia da Consciência
Negra, dos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência Contra as
Mulheres.
15 NS/NR
16 1°,2° e 3° Paradas Lésbica
17 NS/NR
18 Cartas, atos simbólicos, atividades em rede e denúncia internacional.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
59
19 NS/NR
Q.43.A Ações ou experiências resultaram em algo. Explique
1
.Há um aprendizado sobre as demandas da comunidade e de respeito
aos tempos da cada uma e principalmente de como a organização social
e o conteúdo cultural são componentes que influenciam direitamente na
possibilidade de alcançar a justiça.
2
A essa altura a gente já percebeu que não dá pra fazer mais, é
marmelada, não funciona mais. Mídia tem repercussão, mas tem que
saber como chegar nessa mídia (...) A gente teve reclamação de grupos,
de um grupo aí que estava na mídia, mas não estava sabendo como falar
na mídia. E essa questão da educação? Tem coisa que a gente já sabe
até de cor e salteado. (...) Teve muita dor de cabeça... Eu não sei te
dizer se foi bom ou não. Às vezes a gente faz um trabalho desse aí, ele
tem um significado.
3
Eu acho que sim, eu acho que a experiência que a gente tá tendo com
prestadores de penas alternativas tem sido uma aprendizagem grande.
Não é fácil, porque é mais uma demanda que chega pra instituição, com
problemas diversos. Porque você tem que acompanhar (...) A gente tem
o compromisso de passar pra ele toda uma sensibilização da causa pra
que ele repense sua (...) pena, o que ele fez. E quando a gente consegue
que as pessoas resolvam seus problemas (...) você vê que a pessoa cria
uma certa confiança maior no Judiciário.
4
Sim, eu acho que é a gente ter descoberto duas coisas: a educação
popular, como fundamental pra execução de qualquer projeto, e a
pesquisa dentro disso que essa história de ensino, pesquisa e extensão
não é conversa, é necessidade. A gente começou a fazer pesquisa
quando a gente sentiu, na extensão, que era impossível fazer extensão
sem pesquisa. Aí a gente entendeu o que é o tripé ensino, pesquisa e
extensão. Quando a gente tinha que fazer um trabalho de extensão e
“boiava” (...) Ah, vamos ter que fazer “pesquisazinha superficial”, não,
vamos fazer pesquisa relacionada ao projeto que a gente desenvolve.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
60
Tudo que a gente faz já é um aprendizado muito grande.
5 Não resultou, não, em aprendizado, porque a gente não vê resultado.
6
Aprendemos com o tempo que, dentro de uma sociedade em
permanente luta de classe, para os setores populares só há
possibilidade de alcançar a justiça através da conscientização/formação,
organização, mobilização e implementação de estratégias de
enfrentamento do poder dominante.
7
Primeiro, há um grau de conscientização política maior na categoria,
principalmente nas greves, além dos debates e tudo, mas nas greves o
resultado político é muito grande. E... a gente tem tido sorte porque em
todas as nossas greves têm algum resultado. Então, isso cada vez mais
se reveste em uma participação muito grande; conscientização da
importância do sindicato; a 8 anos atás tinhas 3000 e poucos filiados
hoje tem quase 10000 filiados. A importância da participação numa
entidade de de organização; espera que seja fundamental, né?
8
Claro. Sim. Constante. Na verdade o trabalho da gente é esse e a gente
aprende com ele o tempo todo. Vou dar um exemplo específico acho
que cada uma dessas iniciativas gerou aprendizado pra a gente
aprimorar as estratégias, pra a gente tentar melhorar na defesa desses
direitos. É uma instituição com mais de 10 (dez) anos, com tantas
coisas que já fez que é até dificil... Talitha Selvati Nobre Mendonça:
“numerar” numerar.
9
- para o Cajuína? Claro! Todo aprendizado do mundo. Hoje
estudantes de direito com uma visão holística. Então, o enriquecimento
pessoal é enorme; o que a gente aprende, as pessoas que a gente
conhece, os contatos que a gente faz importância inigualável.
1
0
Nem sempre os públicos para os quais atuamos na defesa de direitos se
entendem como sujeitos de direitos.
1
1
Que para se alcançar a Justiça é necessário um processo de
sensibilização da sociedade e de construção coletiva sobre a
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
61
importância de se defender os direitos humanos como forma de se fazer
um enfrentamento real dos fatores que vem ocasionando a violência em
nosso país.
1
2 NS/NR
1
3
Claro. Nós estamos aprendendo diariamente com o que fazemos.
Aprendemos com as pessoas que nos procuram, com as demandas, com
os mediadores que são lideranças comunitárias que atuam nos projetos,
aprendemos todos entre nós, com os estagiários, com as visitas, com os
interessados, com os financiadores, com nossos colaboradores, com
todo mundo. O aprendizado é permanente.
1
4 NS/NR
1
5
A construção de uma outra prática de ensino-aprendizagem em que os
conteúdos jurídicos estão fortemente ligados à realidade social, bem
como, a aquisição de uma postura crítica diante da prática judiciária.
1
6
É sempre uma possibilidade de compreender como as engrenagens do
sistema se movimentam e como podemos usar estes movimentos em
favor de quem esta a mercê de soluções.
1
7 NS/NR
1
8 garantir direitos e conquistar direitos só vai com organização e luta.
1
9 NS/NR
Q.47 Quais as sugestões para garantir e ampliar o acesso à Justiça
1
Implantar um grande programa de informação da comunidade sobre
seus direitos, aparelhar o sistema de justiça para estar próximo da
comunidade e implementar o sistema de justiça gratuita mais próxima
de todos os que realmente necessitam.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
62
2
O que que seria melhor? Mais informação (...) Muita gente não sabe
dos seus direitos (...) “Eu não sabia que eu tinha direito”. (...) E a
credibilidade, que tá faltando. Tem gente que diz: “Ah, não, é perda de
tempo. Não vou me estressar.” É a credibilidade que tá faltando. (...)
Acreditar
3
Eu acho que ela deveria ser mais prática, mais acessível. Porque tem
uma burocracia muito grande, que atrapalha a urgência. Quando você
chega a demandar a justiça, ela tende a ser demorada. Eu acho que
deve agilizar. Precisaria de mais advogados, defensores públicos, mais
juízes, talvez seja até esse o problema nacional. Os processos ficam
durante muito tempo. E isso vale de um modo geral pra sociedade.
Tem pessoas que estão presas e não foram julgadas. (...) Casos que
rolam por muito tempo sem ser resolvidos e depois perdem a sua
validade. Então, eu acho que deveria haver uma agilidade e menos
burocracia. E a credibilidade. Eu acho que existe um risco público de
também o Judiciário perder a credibilidade. Eu acho que isso vai ser
um golpe na esperança, na expectativa das pessoas.
4
A gente já falou isso, não? (...) eu acho que o acesso à justiça tá muito
ligado com essa questão do conhecimento, da questão da informação,
as pessoas terem ciência dos seus direitos. Eu acho que o acesso à
justiça já é a própria justiça. É porque o Campilongo fala assim, que o
direito mais básico é o acesso à justiça, se ele não for garantido os
outros não serão, e eu li aquilo dali, durante muito tempo eu falava:
Gente, mas por quê? Entendendo justiça não como Judiciário, mas
como a garantia mesmo desses direitos, buscar uma via. Então eu acho
que garantindo o acesso das pessoas a esses direitos já é a própria
garantia da justiça. Mas se for pra gente falar assim de forma a afetar o
Judiciário, aí, vamos falar um pouco do que a gente já falou,
garantindo a formação de profissionais do direito que respondam aos
interesses dos grupos sociais, garantindo também que essas pessoas
saibam dos seus direitos, pra que busquem os seus direitos, tendo, por
exemplo, dentro da universidade, extensão como política de Estado,
pra garantir que esses profissionais sejam bem formados.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
63
5
Que esse sistema, começando por instâncias maiores, funcione. De
instância a instância. Por exemplo, é chefe de polícia, é chefe de
delegado, é chefe de não sei quem, é chefe de juiz, chefe acima de não
sei de que, começando do primeiro homem pra fazer seu papel de
cumprir a justiça, fazer o direito acontecer, que cumpra. A nossa
sugestão é isso. Que toda essa escala de hierarquia até chegar na ponta,
é que cada um fazendo sua parte, cada um cumprindo direito sua
função, executando o projeto, aquilo que ele tem como função pra
executar. Se todos cumprirem, creio que a justiça, que cada papel, que
cada instituição funciona.
6
Reforma do poder judiciário, mais informação, participação e controle
da sociedade.
7
A gente já chegou a discutir; esse, eu achoque, é o principal ponto,
porque as pessoas apontam muitas saídas e muitas vezes, né... mas é
que o principal ponto é a democratização do... acho que tem que
apostar também na própria formação dos magistrados porque sem essa
formação acho que...; não sei qual formação , não tenho uma coisa
pronta. E um outro aspecto, isso pode gerar mais demanda, mas é
fundamental é... primeiro a gente tem discutido muito... não sabe
também como... mas é melhorar as informação da sociedade relativos a
seus direitos. Acho que quanto mais a sociedade em geral tiver
consciência dos seus direitos, mais ela pode ter uma cobrança maior,
ela pode... isso só vai aumentar mais a demanda, mas esse... quanto
mais ela tiver cobrando mais ela vai ter, queira ou não, vai ter mais
acesso não só...
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
64
8
Eu acho que precisa simplificar o acesso a justiça. Ah! trazer a justiça
mais pra perto da sociedade. Eu acho... outro dia eu tava achando
interessante a história da abertura desses juizados especiais de
pequenas causas nos aeroportos em função do caos e tinha alguma
coisa no jornal que questionava assim 'poque é que não tem um juizado
como esse, por exemplo, dos lados dos postos de saúde, dos postos do
INSS, em lugares e regiões onde o mesmo tipo de conflito de falta de
atendimento, de falta de reconhecimento e de respeito de direito
acontece com a população mais pobre'... eu acho ótimo que abriu no
aeroporto que embora você possa ter enormes problemas você está
atendendo a uma parcela, sei lá, de 10% da população brasileira que
viaja de avião. Então, acho que falta a justiça se colocar mais próxima
dos problemas do dia-a-dia do cidadão. Ser uma aliada do cidadão no
dia-a-dia, tá mais aberta pra isso. Hoje em dia, no geral pra você ter ,
conseguir ter acesso ao sistema judiciário para garantir os seus direitos
você precisa ter minimamente um advogado; o acesso a esse
procedimento é um acesso muito distante da maior parte da população.
Então eu acho que a justiça tem que chegar mais perto dessa população
e ela tem quer ir se atualizando no sentido de incorporar esses novos
direitos de uma forma mais clara, mais imediata; que muitas vezes
também você tem direitos que são reconhecidos por novas legislações,
mas que levam muitos anos pra começar a valer, fundamentalmente,
em função de uma certa... você não tem se quer o posicionamento
daquilo judicialmente pra fazer aquilo funcionar. Tem que ter mais
proximidade e agilidade.'
9
É um trabalho de conscientização nacional... e educação primária, e de
ensino médio... nas escolas, temas como direitos humanos. Eu acho um
absurdo você passar vários anos estudando tão profundamente, tão
especificamente várias matérias aprendendo cálculo e não saber... seus
direitos... o modelo que está aí hoje é um modelo proveniente da
ditadura aprendia física, química, matemática, mas não tinha um
pensamento crítico sobre a sociedade... pra que procure essa criticidade
sobre o mundo... ensino superior menos técnico, mais holístico e...a
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
65
mídia; acho que a mídia hoje é muito responsável... ela não procura seu
papel de ouvir a sociedade; ela está muito voltada para os interesses
econômicos, da elite, por exemplo a mídia nacional é formada por 5, 6
ou 7 famílias. É um absurdo você pensar que tudo que você ouve...
10
Maior acessibilidade aos objetivos, funções e práticas do Sistema
Judicial brasileiro para aproximá-lo dos cidadãos organizados ou não
em movimentos, redes e/ou associações.
11
Reforma do Judiciário, principalmente dos organismos de controle.
Dando maior transparência aos processos de apreciação da atuação dos
representantes dos poderes que atuam no sistema de segurança e
justiça.
12 NS/NR
13
Desde a formação dos operadores do direito nas faculdades, ter linhas
de formação que incluam ética, que incluam direitos humanos, isto é,
formas de comprometimento maior com as questões sociais. Acho que
os concursos para as instituições públicas devem ser também menos
livrescos e considerarem mais os perfis e as compatibilidades das
pessoas com as funções que vão exercer. Acho que, culturalmente, é
necessário que essas instituições se revejam também, revejam suas
posições de poder, revejam suas linguagens, revejam seus espaços
físicos, e que estejam mais a serviço da sociedade, do povo.
14
Liberdade de expressão, participação da sociedade junto às questões
judiciárias.
15
A ampliação dar-se-ia a partir de uma visão ampliada do acesso á
justiça, desvinculando-o exclusivamente como acesso ao Judiciário. A
garantia, por outro lado, dar-se-ia mediante a criação de espaços de
reconhecimento de demandas a partir da politização dos conflitos,
permitindo que os atores assumam a condição de agentes
transformado(re)s da realidade social.
16
Em primeiro lugar considero de extrema importância a informação, as
pessoas/sociedade devem saber como funciona a lei e quais os
benefícios podem ser alcançados por meio disto e em segundo lugar
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
66
aplicação da lei com ética e coerência
17
Eu acho que sim, porque se a justiça fosse melhor muita coisa não
aconteceria, né. Se eles tivessem um bom salário, fossem umas pessoas
que pudessem acudir as coisas que acontecem no mundo, porque em
uma briga bem aqui e não tem nenhum policial pra resolver, né...(...)
[cem relação] A nós? nós lá não tem negócio disso... (...) Até que se
tivesse era bom, se nós tivéssemos apoio disso aí, era bom, porque a
gente podia contar com o apoio de algum órgão de comunicação, mas
só que isso ta fora do nível das quebradeiras de coco lá do meu
povoado
18
Fazer um mutirão e construir ações para observar e controlar o
judiciário.
19 NS/NR
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
67
GRUPO 02
Coordenador: Prof. Alexandre Bernardino Costa
INTRUDOÇÃO
O projeto “Dossiê Justiça – uma proposta de observação da relação entre
Constituição e Democracia no Brasil” teve como objetivo geral “Subsidiar a elaboração
de um programa nacional de democratização do acesso à justiça e contribuir para a
institucionalização de um Observatório da Justiça no Brasil, no âmbito do Ministério da
Justiça”. Como parte desse projeto, o Grupo 2 procurou “identificar as lutas sociais e
seus discursos organizativos por posições interpretativas de realização da Constituição
Brasileira”.
As investigações foram dividas em duas frentes: A primeira centrou sua atenção
para os limites e possibilidades de acesso à justiça das demandas sociais por políticas
públicas voltadas à efetivação de direitos sociais. Já a segunda esteve voltada para
análise em torno das garantias constitucionais dos direitos fundamentais de grupos
excluídos.
Assim, foi fundamental para o grupo demonstrar como as disputas interpretativas
e os discursos organizativos dos movimentos sociais inserem-se no objetivo maior do
projeto, ou seja, a elaboração de um programa nacional de democratização do acesso à
justiça. Como passo para se obter a resposta, foi estudado inicialmente o que significa o
acesso à justiça. Em um segundo momento, foi exposta a importância da disputa
interpretativa para a efetivação e demanda por direitos fundamentais. Por fim, foram
expostas como a luta protagonizada pelos movimentos sociais é indispensável para se
pensar o direito e o acesso à justiça.
Para que se pudesse compreender o que é o acesso à justiça, foi necessário
refletir sobre o que se entendia por justiça. Constatou-se que em uma sociedade
moderna, como a brasileira, conceitos transcendentais de justiça não são admissíveis. Ao
se pensar sobre o que é justo deve-se partir da sociedade que temos, vislumbrando a
sociedade que queremos. Nessa busca o direito adquire centralidade, afinal, em uma
sociedade em que nada mais se tem por natural, são os princípios de liberdade e
igualdade de cada cidadão que proporcionarão parâmetros para se responder o que é
socialmente justo. Práticas que ferem o princípio da igualdade serão injustas. Para que
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
68
uma compreensão de justiça possa ser minimamente compartilhada em nossas
sociedades contemporâneas, o aspecto democrático é fundamental46.
Dessa forma, a justiça é a busca contínua de cada sociedade sobre quais direitos
devem ser afirmados e quais práticas devem ser negadas para que cada cidadão tenha o
seu direito à igualdade preservado. Essa busca não é simples, envolve uma permanente
reflexão sobre o que é ser tratado com igual respeito, quais práticas violam esse ideal e
como se deve administrar os conflitos decorrentes disso. Assim, acesso à justiça foi
compreendido como a possibilidade de a sociedade administrar seus conflitos tendo por
base os princípios de liberdade e igualdade que cada cidadão é merecedor.
Por meio dessas conclusões, o objetivo levantado pelo Grupo 2 demonstrou-se
essencial para responder ao objetivo geral do projeto. Afinal, a democratização do
acesso à justiça está associada a como a sociedade compreende a justiça. Isso se dá por
meio de disputas interpretativas conduzidas por diversos grupos sociais, sobre o que é
justo e o que é injusto.
Os movimentos sociais adquirem um destacado papel no acesso à justiça. Parte-
se da pressuposição que em uma sociedade em que todos são considerados iguais,
exclusões e violações a esse direito são sentidas inicialmente pelo cidadão. O sujeito
sofre por ter seu direito ao igual tratamento desrespeitado. Esse sofrimento individual
pode transformar-se em uma demanda coletiva, caso sujeitos que compartilham do
mesmo sentimento de exclusão organizem-se e lutem por reconhecimento47.
As demandas dos movimentos sociais contribuirão para que a sociedade repense
quais práticas estão desrespeitando direitos e gerando exclusões. As lutas protagonizadas
pelos movimentos sociais contribuirão para o projeto reflexivo sobre quais práticas
devem ser revistas por serem consideradas injustas. Dessa forma, a democratização do
acesso à justiça está diretamente associada a maior possibilidade de repercussão de
demandas por reconhecimento e implementação de direitos.
Como foi demonstrado pelo Grupo 2, os cidadãos são os responsáveis em dizer
quais lesões a direitos estão sofrendo, bem como participar da implementação de
políticas públicas para que essas violações sejam corrigidas. Nesse sentido, o Estado não
pode desrespeitar a autonomia pública e privada dos cidadãos. Poder Executivo,
46 Para mais, veja texto sobre “Acesso à Justiça” produzido pelo Grupo 2. 47 Para mais, ver texto “Políticas Públicas para a concretização da justiça social: uma nova face para a democratização do acesso e da justiça” produzido pelo Grupo 2.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
69
Legislativo e Judiciário devem proteger direitos fundamentais, sem, no entanto,
desconsiderar o direito à participação.
As disputas interpretativas são intrínsecas à participação. Os direitos estão
associados ao projeto reflexivo da sociedade, quais princípios devem ser auto-impostos
para uma maior justiça social. Essa reflexão envolve disputas, servindo os princípios de
liberdade e igualdade como parâmetros para definir quais as demandas são legítimas.
Algumas dessas disputas foram localizadas e estudadas.
Em relação ao direito de família o próprio conceito de família está em disputa.
Conceitos fechados excluem diversas relações parentais que não se enquadram no
modelo tradicional, pai, mãe e filhos. Com base nos princípios de liberdade e igualdade
exige-se que outras formas de interação familiar sejam reconhecidas, como as uniões
entre sujeitos do mesmo sexo48.
As disputas interpretativas também ganham destaque no tocante ao direito
tributário. Os movimentos sociais podem utilizar-se da linguagem do direito para exigir
interpretações constitucionais tributárias corretas e diferentes das hoje utilizadas. O
direito tributário deve atender critérios de justiça social, servindo de critério distributivo
para o que é melhor para todos. Será por meio do intenso debate público que se poderá
denunciar violações a direitos protagonizadas por meio do direito tributário49.
No tocante à mediação de conflitos, há grande disputa sobre o que se
compreende como a efetividade e legitimidade da pena. O que se coloca em xeque é
lógica baseada no binômio vencedor e vencido, que norteia o Poder Judiciário. Essa
lógica pode agravar os conflitos. Uma justiça que pretenda administrar pretensões
colidentes e restabelecer a paz social deverá priorizar a restauração dos laços sociais
desfeitos com o conflito50.
Em relação ao racismo foi levantado que o exercício da igualdade realiza-se por
meio do reconhecimento das diferenças. É necessário enfrentar o mito da democracia
racial brasileiro que dificulta o debate público sobre o tema. Nesse sentido, reflexos do
racismo podem ser encontrados mesmo no Poder Judiciário. São poucos os crimes de
racismo denunciados, e quando isso ocorre, não são raras as sentenças que retomam o
mito da democracia racial, diante do qual, atitudes racistas seriam inconcebíveis, não
48 Para mais, ver texto “Direitos Fundamentais” produzido pelo Grupo 2. 49 Para mais, ver texto “Direitos Fundamentais” produzido pelo Grupo 2.
50 Para mais, ver texto “Justiça Restaurativa e Direitos Humanos: Dos Conflitos armados aos conflitos interpessoais” produzido pelo Grupo 2.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
70
ultrapassando o intuito da brincadeira, fruto da nossa cultura ‘extrovertida’ e
‘espontânea’51.
Assim, as disputas interpretativas protagonizadas, neste caso em especial, pelo
movimento negro irão afirmar que o enfrentamento do mito da democracia racial e o
reconhecimento de diferenças raciais são essenciais para o exercício de direitos
fundamentais consagrados na Constituição.
Em relação ao direito à saúde, foi levantado que diante da complexidade da
sociedade moderna, não lhe é possível atribuir um conceito irrefutável e permanente,
uma vez que é construído e reconstruído a cada dia conforme as necessidades e as
demandas da população. E daí a importância da participação da sociedade nesse
contínuo processo de atribuição de sentido à expressão “direito à saúde”, que, sem
dúvida, interfere na formulação das políticas públicas sanitárias52.
O direito à alimentação também se insere nessas disputas interpretativas. Por um
lado há os movimentos sociais de segurança alimentar que compreendem a alimentação
associada à diversidade cultural, ao prazer, ao lazer, ao respeito ao meio ambiente. Por
outro lado, há aqueles setores da sociedade que têm uma visão minimalista sobre o tema,
entendendo-o como a quantidade energética e nutricional mínima diária, ou ainda, não
como um problema jurídico, mas um problema que o mercado deve resolver, por meio
da oferta de alimentos53.
A legitimidade de uma ordem constitucional é observada pela garantia das
complementares autonomias pública e privada de indivíduos que se reconhecem como
concidadãos livres e iguais e que se enxergam, reciprocamente, como destinatário e co-
autores do direito estabelecido. O constitucionalismo é um processo de reconhecimento
das lutas sociais e seus discursos organizativos por posições interpretativas com o intuito
de construir uma Constituição.
A disputa interpretativa não se resume à mera discussão de diferentes posições
teóricas ou concepções de direito e justiça, ela se afirma por meio das disputas e práticas
constitucionais vividas na sociedade, seja por meio do confrontamento entre diferentes
grupos e setores da sociedade, seja pela afirmação e reconhecimento dos movimentos
sociais e suas pretensões. Assim, a Constituição se revela democrática na legitimidade
de sua prática.
51 Para mais, ver texto “Racismo institucional e acesso à justiça” produzido pelo Grupo 2. 52 Para mais, ver “O direito à saúde numa perspectiva democrática” produzido pelo Grupo 2. 53 Para mais, ver “Direito à alimentação: disputas interpretativas, alimentação adequada, lutas sociais e afirmação de Direitos” produzido pelo Grupo 2.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
71
A relação existente entre os cidadãos e o ato constitucional fundador atualizado é
que garante a dimensão cotidiana da Constituição e de seu poder constituinte. Uma
prática constitucional duradoura e contínua não está associada à idéia de poder
constituinte permanente. A potência desse poder está na prática popular, a quem
cumpre, de forma plural, o seu exercício.
Evidentemente, a prática do poder constituinte não se constrói apenas de forma
idealizada. Ela decorre do confronto entre a faticidade do direito e dos riscos inerentes
às tomadas de decisões pelo povo, que é o autor e o destinatário do direito. A
complexidade e pluralidade da sociedade contemporânea exigem a constante tomada de
decisões em relação aos direitos constitucionais pelo povo, considerando os riscos a que
está submetido em cada uma delas. Nesse contexto é que se localizam as lutas sociais e
as disputas por posições interpretativas de realização da Constituição brasileira.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
72
DIREITO À ALIMENTAÇÃO: DISPUTAS INTERPRETATIVAS,
ALIMENTAÇÃO ADEQUADA, LUTAS SOCIAIS E AFIRMAÇÃO DE
DIREITOS
Por: Eduardo Gonçalves Rocha54
Em 2006, foi aprovada a Lei Orgânica da Segurança Alimentar e Nutricional
(LOSAN), Lei n°11.346/06, que em seu art. 2° versa:
“A alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à
dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na
Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam
necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população”.
A aprovação pelo Congresso Nacional da LOSAN foi parte de um importante
movimento nacional em defesa do direito a todos os brasileiros a se alimentarem
adequadamente. Este movimento iniciou-se na década de 40 do século passado,
ganhando força e respaldo na década 90, por meio dos movimentos sociais contra a fome
e em defesa da cidadania. A aprovação da LOSAN é parte e relevante passo na luta pelo
direito à alimentação.
A dinâmica dos direitos passa pelos textos legais, por sua institucionalização,
porém não se restringe a ela. O direito se faz na rua, no campo por meio do debate e da
discussão pública, por meio da luta e defesa de princípios fundamentais. Como
conseqüência e parte dessa discussão são promulgados os documentos legais. O direito
fundamental a se alimentar é preexistente à LOSAN. A compreensão deste tópico é
fundamental para o debate jurídico contemporâneo.
Em um direito que se encontra e se faz na rua, a sociedade civil e os movimentos
sociais ganham centralidade. Será por meio deles que demandas dos grupos excluídos
poderão ser escutadas e terão repercussão pública. Os movimentos sociais servirão como
amplificadores de sofrimentos que não são escutados pela sociedade: desigualdades
antes desconhecidas e não reconhecidas motivarão ações sociais visando à correção de
exclusões.
Assim, a participação torna-se essencial para a implementação dos direitos: o
cidadão deve se reconhecer como autor e destinatário do sistema jurídico. Políticas
54 Eduardo Gonçalves Rocha é mestrando em Direito pela UnB, tendo como tema o Direito à Alimentação. Contato: [email protected]
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
73
públicas devem ser formuladas, implementadas e fiscalizadas com a participação da
sociedade civil e dos movimentos sociais. Isto está no cerne da promoção da cidadania.
Disputas interpretativas e o direito à alimentação
Está no cerne do direito a reflexão sobre as práticas sociais e os compromissos
assumidos coletivamente: quais são os princípios que a sociedade assume e impõe-se.
Porém, essas práticas sociais são objeto de constante reflexão, afinal, todos os cidadãos
são iguais e livres, merecedores de igual respeito e consideração, tornando-se legítimos
apenas os compromissos que afirmem esses princípios fundamentais.
Qualquer prática social que contrarie esses princípios está se opondo aos
fundamentos do direito moderno, portanto é condenável. Os movimentos sociais
adquirem aqui centralidade, afinal, serão eles que conferirão voz aos seguimentos mais
excluídos da sociedade. Por meio deles segmentos sociais poderão expressar a toda
comunidade que não estão sendo tratados como seres iguais e livres. Com isso surge a
demanda por novos direitos, ou mesmo a luta pela implementação dos já existentes.
Um novo direito surge quando a comunidade se convence de que um novo
compromisso público deve ser afirmado para que cidadãos sejam tratados com igual
respeito e consideração. Aos movimentos sociais compete levar sofrimentos de exclusão
sentidos por seus membros à discussão pública. Questionam as relações de exclusão,
buscando convencer os demais de que determinada situação é injusta, portanto devendo
ser reparada.
Assim, os direitos são dinâmicos, pois sempre surgirão novas demandas e
exclusões que devem ser corrigidas. O que antes não se enxergava como negação da
liberdade e igualdade de cada indivíduo em um momento posterior pode ser visto como
tal. Exemplo significativo se dá em relação ao direito à alimentação.
Até a década de 40 do século passado havia poucos estudos sobre a fome. Este,
até então, era um tema proibido, quase nunca discutido publicamente, e quando levado a
público era associado a preconceitos raciais, climáticos, regionais e a falsas teorias,
como o malthusianismo, que mais distorciam o tema que o esclareciam. Coube a Josué
de Castro demonstrar a fragilidade dessas teorias e apontar os fatores econômicos e
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
74
sociais que estão por trás dessa calamidade pública55. (CASTRO, 2003¹, p.11;
BASTISTA FILHO e BATISTA, 2003, p.40-41)
Josué de Castro personificou o movimento contra a fome que, somente então,
emergia no Brasil e no mundo. O autor desenvolveu uma densa obra demonstrando as
razões políticas que estão no seio desse problema, desnaturalizando-o. Tendo a fome
razões políticas, deveria ser superada por meio da modificação das estruturas sociais que
a ocasionam. Um problema que antes não tinha conotações políticas, e que, portanto,
não era discutido como tal, encontra na obra de Josué de Castro campo fértil. Milhões de
brasileiros padeciam de fome. Competia à sociedade civil levar esse problema aos
demais brasileiros, convencendo-os de que a fome não era um fenômeno natural, mas
fruto de relações sociais excludentes.
Josué de Castro foi protagonista ao enfrentar o utilitarismo, que via a fome a
partir das conseqüências econômicas, e começar a estudá-la como uma questão de
injustiça social. Essa mazela é injusta e, portanto, devia ser combatida. Assim, não era a
lógica do mercado, guiada pelo lucro, que deveria nortear o enfrentamento da fome, mas
políticas públicas fundadas em critérios de justiça social.
Neste momento inicial, a fome era compreendida como quantidade energética e
nutricional mínima diária necessárias à sobrevivência. Coube ao debate público posterior
ampliar essa compreensão. A sociedade civil levantou o problema da fome
publicamente, mas também alargou suas dimensões. Se essa, em um primeiro momento,
foi concebida como mínimo energético e nutricional, a luta por direitos promovida pelos
movimentos sociais alargou seus horizontes. O art. 3° da LOSAN, ao definir o que é
segurança alimentar, é uma prova da amplitude que assumiu o tema.
Josué de Castro foi um protagonista de sua época, expressão emblemática de uma
era que descobria a fome. Um tempo que tirou essa calamidade pública da invisibilidade.
Não que a fome não existisse antes, mas somente neste momento histórico ela veio à
cena pública, ensinando às gerações posteriores que este era um grave problema a ser
enfrentado em uma sociedade que queira se nortear pelo reconhecimento recíproco.
Com o endurecimento da ditadura, o movimento contra a fome foi silenciado. As
discussões ressurgiram com a redemocratização do país. A alimentação ainda não era
pensada como um direito. Por ser um tema essencialmente intersetorial não era assumida
55 O malthusianismo associava a fome à explosão demográfica. Estava na base do seu argumento a tese de que a população cresce em progressão geométrica (multiplicação) e os recursos alimentares em progressão aritmética (adição). Como conseqüência, inevitavelmente, ocorreria o cataclismo da fome.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
75
por nenhuma das áreas do conhecimento ou sujeitos da sociedade civil. O combate à
fome estava fortemente associado às ações assistencialistas, o que gerava forte
preconceito por parte dos movimentos sociais, dificultando, ainda mais, as discussões
públicas. (VALENTE, 2007)
Em 1986, ocorreu a VIII Conferência Nacional de Saúde. Mais de 4000 pessoas
participaram, sendo que 50% eram representantes da sociedade civil organizada. A
Conferência foi um importante momento pré-constituinte, em que os movimentos sociais
sanitaristas formularam as propostas para a saúde e se organizaram em torno delas. Isso
permitiu que a Saúde fosse o setor com as propostas mais debatidas e com maior
articulação na Assembléia Constituinte. (OLIVEIRA, 2005, p.72 e ss.)
A I Conferência Nacional de Alimentação e Nutrição, realizou-se no “interior”
da VIII Conferência de Saúde. O incipiente movimento pela segurança alimentar lutou
para que ela ocorresse como uma pré-conferência, o que permitiria que suas discussões
tivessem reflexo nas bandeiras constituintes do movimento sanitarista. Devido aos
preconceitos que envolviam o tema, apesar de integrante da VIII Conferência, ela só se
realizou após a mesma, sendo seu impacto quase nulo sobre as reivindicações
sanitaristas. Assim, não ocorreram relevantes discussões na Assembléia Constituinte
sobre a segurança alimentar. (VALENTE, 2007)
A ruptura do preconceito em relação à fome, bem como a redefinição de seu
horizonte se deu em um momento pós-constituinte. Foi com os debates desencadeados
nacionalmente pelo movimento Ação da Cidadania que o combate à fome foi associado
à efetivação da cidadania. Com isso os movimentos sociais começaram a superar seus
próprios preconceitos no trato do tema, bem como vislumbraram a superação da fome
como algo além da satisfação das reservas calóricas e nutricionais diárias. Foram
lançadas as bases para se pensar a alimentação como um direito. (MAGALÃES, 2002,
121 e ss.)
A preparação para a Cúpula Mundial de Alimentação, realizada em 1996, foi um
importante momento para o amadurecimento do tema entre governo e sociedade civil.
Foi nos espaços de interlocução e nos intensos debates pré-cúpula que o conceito de
segurança alimentar começa a ser compreendido como um meio para se atingir o direito
humano à alimentação. A Ação da cidadania teve uma destacada atuação neste sentido.
A segurança alimentar começa a se associar à linguagem do direito: a exigência de todos
os brasileiros se alimentarem adequadamente.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
76
Paralelamente, o governo federal desenvolvia uma política econômica de
liberação dos mercados e desmantelamento da máquina pública. Essa política estava
diretamente associada à política alimentar, que tinha como fundamento a liberdade dos
mercados como principal promotora da segurança alimentar. O país deveria dedicar-se à
sua vocação, aos produtos agrícolas tradicionais, e com isso acumularia capital. O
comércio mundial de alimentos asseguraria o acesso aos demais gêneros alimentícios. A
segurança alimentar dar-se-ia por meio da abertura dos mercados.
Por um lado, os movimentos sociais, após um longo processo de aprendizado
histórico, começavam a associar o combate à fome à garantia do direito à alimentação.
Por outro lado, o governo federal não se norteava pela lógica do direito. O lucro e a livre
troca comercial por si proporcionariam o bem-estar alimentar.
O conceito de segurança alimentar estava em disputa. Em 2003, um novo
presidente é eleito, tendo como principal proposta o combate à fome. Seu principal
projeto político, intitulado Fome Zero, foi fortemente influenciado e construído com
base no intenso diálogo com os movimentos sociais que lutavam pela segurança
alimentar, a partir da perspectiva dos direitos. O combate à fome é visto pelo governo
eleito a partir do prisma da justiça social. Para tanto, foi essencial o amadurecimento das
reflexões dos movimentos sociais, fruto do aprendizado histórico das lutas
desenvolvidas nos anos anteriores.
Pode-se apontar como momento contemporâneo da luta pelo direito à
alimentação a recriação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar, em 2003, bem
como, a aprovação da LOSAN, em 2006. Esta lei institucionalizou a alimentação como
direito, no entanto isso não significa que a disputa interpretativa chegou ao fim com um
grande vitorioso. Como alerta o presidente do CONSEA, Renato Maluf, o grande
desafio para o movimento social será enfrentar as visões minimalistas sobre a fome que
ainda são fortes na sociedade. Há a forte associação do combate à fome com a oferta de
quantidades energéticas e nutricionais mínimas. Alimentação adequada é assegurada
quando há o respeito à dignidade e à promoção de relações sociais que possibilitem o
gozo de alimentos saudáveis e prazerosos.
O direito é fruto da constante reflexão das relações sociais e dos compromissos
públicos, nem sempre tácitos, assumidos a partir dessa reflexão. Esta é norteada pelo
ideal moderno de uma sociedade fundada por homens livres e iguais, que devem ser
tratados com igual respeito e consideração. Cabe aos movimentos sociais conduzir à
sociedade problemas, demonstrá-los como injustos e exigir a sua superação.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
77
Os direitos, novos compromissos assumidos coletivamente, estão associados à
luta, às reivindicações. Assim, a aprovação de uma lei não pode ser considerada o fim do
processo, mas o momento em que se reconhece formalmente um direito. Para a sua
implementação é essencial que haja mobilização e demandas exigindo a efetivação. O
conflito oxigena o direito.
Na luta contra a exclusão toda a sociedade aprende e transforma-se. O direito à
alimentação é prova disso. Surgiu como combate à Fome, déficit nutricional e energético
diário. Foi excluído do debate constituinte em razão do preconceito social, que envolvia
os próprios movimentos sociais. Apenas após longo processo de amadurecimento foi
possível enxergá-lo, já na década de 90, como um direito, algo essencial para a
efetivação da liberdade e igualdade de todos os brasileiros.
Conclusão
Este texto expôs que direitos se fazem na rua, no campo por meio das lutas e
reivindicações sociais. Os movimentos sociais são fundamentais para a criação e
implentação dos direitos. Eles possuem a importante tarefa democrática de empoderar as
vozes dos excluídos, levando suas reivindicações à sociedade e exigindo mudanças.
O direito à alimentação insere-se nessa lógica. Inicialmente, a fome não era
considerada um problema político, fruto das relações sociais, mas sim um fenômeno
natural, fruto do clima e das condições ásperas que a natureza submetia determinadas
localidades. Coube na década de 40 do século passado, ao movimento contra a fome,
personificado na figura de Josué de Castro, questionar esse pensamento comum.
Hoje, a fome já é considerada um problema social, já é possível falar no direito
de todos a se alimentarem adequadamente, respeitando o meio ambiente, o prazer, o
lazer, a saúde, o desenvolvimento. Isso foi conquistado após muita mobilização e
reivindicação, o que ocasionou a aprovação da Lei Orgânica da Segurança Alimentar
(LOSAN).
A LOSAN não pode ser considerada um passo definitivo na garantia do direito
de todos a se alimentarem, mas sim uma importante conquista, que exige ainda mais luta
e reivindicação para ser implementada. A institucionalização do direito por meio de uma
lei não deixa de ser uma atitude provocativa. É a sociedade explicitando para ela mesma
seus compromissos auto-impostos, exigindo maior reflexão sobre o conjunto de práticas
e relações sociais desenvolvidas. A LOSAN é um compromisso, mas ao mesmo tempo
uma provocação à sociedade, exigindo-lhe mudanças.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
78
REFERÊNCIA
BASTISTA FILHO, M. e BATISTA, L. V. A geografia da fome 50 anos depois:
o que mudou? In.: ANDRADE, M. C. de [et al.] Josué de Castro e o Brasil. São
Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.
CASTRO, A. M. Apresentação da quarta edição. In: CASTRO, J. Fome um
tema proibido: últimos escritos de Josué de Castro. Anna Maria de Castro (org.)
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
MAGALHÃES, R. Enfrentando a pobreza, Reconstruindo os vínculos, sociais:
as lições da Ação pela Cidadania, Contra a Fome e a Miséria, Pela Vida.
Cadernos de Saúde Pública. 18(Suplemento)121 – 137, 2002.
OLIVEIRA, M. S. C. Por uma construção democrática do direito à saúde: a
constituição federal, os instrumentos de participação social e a experiência do
conselho nacional de saúde. Dissertação de mestrado UnB, 2005.
VALENTE, L. S. V. Entrevista realizada em Brasília, dia 21, de Setembro, de
2007. Entrevistador: Eduardo Gonçalves Rocha. Brasília, 2007.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
79
O DIREITO À SAÚDE NUMA PERSPECTIVA DEMOCRÁTICA
Fabiana Perillo de Farias
O paradigma do Estado Democrático de Direito surge no Brasil com a
Constituição de 1988, que prevê tanto a democracia representativa quanto a participativa
(também chamada de democracia direta), enfatizando a efetiva participação social na
esfera pública.
Diferentemente do Estado Social, no qual a tomada de decisões ficava a cargo
exclusivamente da máquina estatal, atualmente se exige um processo verdadeiramente
democrático na implementação de direitos, de forma que os indivíduos atuem ativamente
em espaços de deliberação e de tomada de decisões a respeito de questões que envolvam
o interesse de todos. Isso porque não é mais possível identificar o público com o Estado,
sendo ambas as esferas (privada e pública) percebidas como complementares e não mais
em recíproca oposição56. Assim, a participação do cidadão, seja na esfera pública
institucionalizada ou não, é fundamental para que as decisões políticas adquiram
legitimidade e eficácia, ao refletirem verdadeiras escolhas dos membros da comunidade.
Nesse contexto, a Constituição Cidadã, além do voto direto, propugna a
instalação de fóruns de deliberação popular para a formulação de políticas públicas, as
quais devem ser fruto de um processo de identificação de pretensões, de prioridades e,
principalmente, de um interesse público a ser efetivado sob a gerência do Estado, e não
sob o seu mando.
No caso do direito à saúde, diante da complexidade da sociedade moderna, não
lhe é possível atribuir um conceito irrefutável e permanente, uma vez que é construído e
reconstruído a cada dia conforme as necessidades e as demandas da população. E daí a
importância da participação da sociedade nesse contínuo processo de atribuição de
sentido à expressão “direito à saúde”, que, sem dúvida, interfere na formulação das
políticas públicas sanitárias.
56 “A emancipação de uma esfera pública independente dos comandos estatais e que viabilize a redefinição da relação entre a dimensão privada da existência e o aspecto público da organização social constitui o maior desafio a ser enfrentado por sociedades que se pretendam democráticas. A sobrevivência e renovação do Constitucionalismo, como construção social típica do mundo moderno, dependem, em grande parte, dessa relação complementar”. ARAUJO PINTO, Cristiano Paixão. Arqueologia de uma distinção- o público e o privado na experiência histórica do direito. In: OLIVEIRA, Cláudia Fernanda de. (Org.). O novo direito administrativo brasileiro: O Estado, as agências e o terceiro setor. Belo Horizonte: Fórum, 2003. P. 19-50.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
80
No atual paradigma constitucional, não cabe mais ao Estado, por meio de seu
corpo técnico-burocrático, tomar decisões que tenham como fundamento uma
compreensão autoritária – não construída socialmente - a respeito do que é o direito à
saúde. Hoje é necessária a convivência entre a sociedade e o Estado para que se definam
as prioridades públicas sanitárias de acordo com um conceito de saúde que guarde
pertinência com as necessidades e com os anseios sociais. Nessa perspectiva
democrática, o Estado e a sociedade civil devem ser co-responsáveis na concretização do
direito fundamental e social em questão.
Um exemplo de democracia participativa no âmbito do direito sanitário revela-se
na atuação dos Conselhos de Saúde, cuja composição paritária contempla representantes
do Estado, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários. Tais Conselhos
possuem função de fiscalização e de deliberação no tocante às políticas públicas de
saúde.
No entanto, inúmeros são os problemas identificados no funcionamento desses
Conselhos. Verifica-se, por exemplo, que, apesar da previsão legal de seu caráter
deliberativo, há um déficit de atuação no tocante a essa função. Com efeito, prestigia-se
mais suas atribuições de fiscalização, em detrimento da importante discussão sobre o
conteúdo do direito à saúde, relegando, novamente, ao Estado e ao mercado, a sua
definição.
Apesar dessa e de outras dificuldades, os Conselhos de Saúde, institucionalizados
pela Constituição de 1988, representam um efetivo avanço democrático, pois
possibilitam a aproximação entre Estado e comunidade e a elaboração, por
conseqüência, de políticas públicas de saúde mais condizentes com as necessidades
sociais. Os conselhos precisam sim ser fortalecidos, por meio da preservação de sua
autonomia em relação aos gestores de saúde, bem como do incremento da participação
de cidadãos interessados em influir diretamente na gestão do Estado57.
Ainda assim, os atores sociais devem ser multiplicados e os espaços
democráticos devem ser ampliados para além desse conselhos e demais instâncias
legalmente previstas de participação social. É imprescindível a criação de outros espaços
57 Além disso, é necessário impedir, dentro dos Conselhos de Saúde, “a paralisia decisória, a corporativização dos espaços de participação e a estreiteza do comunitarismo e do particularismo. Os conselhos, embora essenciais, só realizam um papel democrático efetivo se houver instâncias de articulação capazes de propor medidas universais e igualitárias, inclusivas e não exclusivas das massas marginalizadas economicamente ou das minorias social e culturalmente” (LIMA LOPES, José Reinaldo de, Os Conselhos de Participação Popular – Validade Jurídica de suas Decisões, In: Revista de Direito Sanitário, vol. 1, n. 1, Nov/2000, São Paulo: LTR).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
81
em que o exercício democrático na construção permanente do conceito de saúde
influencie direta e indiretamente a formulação e o monitoramento das políticas públicas
sanitárias.
Estado e sociedade civil, que antes se viam com desconfiança – no Estado
Liberal e também no Social –, agora precisam participar conjuntamente do processo
democrático de contínua (re)construção do significado do direito à saúde, levando em
consideração as diversas experiências que somente a pluralidade de atores sociais nesse
processo proporciona.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
82
JUSTIÇA RESTAURATIVA E DIREITOS HUMANOS: DOS CONFLITOS ARMADOS AOS
CONFLITOS INTERPESSOAIS
Jan Yuri Figueiredo de Amorim
Os conflitos sempre existiram na sociedade. Sempre existirão. Assim, a idéia de
paz deve ser entendida como a administração do conflito pelos seus agentes. A idéia de
identificar paz com a ausência de conflitos é, no mínimo, falsa. Assim, é preciso que
sejam dadas aos indivíduos oportunidades e meios de solucionarem seus conflitos. Esses
conflitos podem variar de intensidade e complexidade. Podem surgir entre duas pessoas
que disputam um bem, pode ser entre povos, nações e podem ocorrer até mesmo após o
fim de um conflito armado. Ao fim desse, surgem outros problemas, especialmente o de
se reconstruir o país.
A justiça restaurativa se apresenta, portanto, como uma forma de auxiliar na
resolução desse problema. Durante um conflito armado diversos crimes são praticados.
Nos conflitos armados internos a questão se torna ainda mais complexa porque muitas
vezes esses crimes são praticados por pessoas que antes eram da convivência de suas
vítimas. Em algumas ocasiões, o evento criminoso foi isolado, tendo apenas ocorrido
porque se estava em uma situação caótica de conflito armado. Muito provavelmente, se a
situação fosse de paz o crime não teria sido cometido. Ocorre que, com o fim das
hostilidades, em outras palavras, com o fim do conflito armado, outro conflito se
estabelece: entre os ofensores e suas vítimas. Como resolver esse problema, já que há a
necessidade de restabelecimento do país e da convivência entre as pessoas? É necessário
que seja dado à vítima e ao ofensor a oportunidade de decidirem qual será a melhor
forma de lidar com as violações perpetradas e seus desdobramentos futuros.
É exatamente essa a idéia central da justiça restaurativa. Esse modelo teórico
prático de justiça permite que os indivíduos sejam vistos como verdadeiros seres
humanos, dotados de autonomia e controle sobre suas vidas e sobre seus destinos. Ao
permitir que os indivíduos decidam sobre suas vidas, a justiça restaurativa os emancipa.
Durante o conflito armado haviam se transformado em corpos dóceis. Com a justiça
restaurativa, voltam a ser seres humanos.
Enquanto cada vez mais se discute no âmbito da criminologia a efetividade e
legitimidade da aplicação de penas, a impressão que se tem é que esses debates ainda
não chegaram na esfera internacional, ou ao menos ainda não foi dada a devida
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
83
importância. O Tribunal Penal Internacional é um exemplo do que se está tentando dizer.
Sem dúvida o seu estabelecimento através do Estatuto de Roma é importante. Ele é um
marco dentro do tema da responsabilização do indivíduo no sistema internacional. O
problema é que ele foi criado em um contexto em que o próprio direito penal tem sido
colocado em xeque.
Nas palavras de Eugenio Raúl Zaffaroni:
Enquanto os direitos humanos assinalam um programa realizador de
igualdade de direitos de longo alcance, os sistemas penais são instrumentos
de consagração ou cristalização da desigualdade de direitos em todas as
sociedades. Não é por acaso que os dispositivos dos instrumentos de direitos
humanos referentes aos sistemas penais sempre sejam limitadores,
demarcadores de fronteiras mais ou menos estritas do seu exercício de poder:
fica claro que os direitos humanos se defrontam ali com fatos que desejam
limitar ou conter58.
Vítimas são pessoas que perderam suas autonomias, que perderam o controle
sobre suas vidas e que se transformaram em meros fantoches. A título de exemplo,
aplicar uma pena ao Presidente estadunidense George W. Bush ou a Charles Taylor, ex-
ditador da Libéria, acusado, entre outras acusações, de utilizar meninos-soldados, não
fará com que suas vítimas voltem a ter autonomia e confiança para darem continuidade a
suas vidas. É preciso que as histórias de vítimas como essas sejam ouvidas. É preciso
que seus sofrimentos sejam levados em consideração. A justiça restaurativa, ao dar voz
às vítimas, permitirá que elas mesmas digam o que entendem como justiça, como
Direito, como Constituição. Dessa forma será possível entender o que ocorreu e também,
a partir de então, trabalhar para que eventos como os que causaram a vitimação não
voltem a ocorrer.
A justiça restaurativa, possibilitando a participação efetiva das vítimas e de seus
ofensores e suas conseqüentes emancipações, permite que a abstração de normas
constitucionais, especialmente as qualificadas como direitos fundamentais59, e os
direitos humanos tenham real concretude.
Não se pode ser ingênuo também a ponto de achar-se que um modelo de justiça,
seja ele qual for, será capaz de resolver todos os problemas. É necessário que exista um
58 ZAFFARONI, E.R. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. (tradução de Vânia Romano Pedrosa, Amir Lopes da Conceição). Rio de Janeiro: Revan, 1991. p.149. 59 PAIXÃO , C. A reação norte-americana aos atentados de 11 de setembro 2001 e seu impacto no constitucionalismo contemporâneo: um estudo a partir da teoria da diferenciação do direito. Belo Horizonte, 2004. Tese de Doutorado. Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. (inédito). p.343.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
84
equilíbrio. Conflitos armados são complexos e suas conseqüências são inúmeras. A
exemplo do que ocorreu em Ruanda, após o massacre étnico agravado especialmente em
1994, muitas vezes pode ser necessário que tanto o modelo penal quanto o modelo
restaurativo venham a ser implantados. Para resolver o problema do país africano a ONU
criou o Tribunal Penal Internacional ad hoc para Ruanda, através da Resolução 955 do
Conselho de Segurança. Esse tribunal especial ficou encarregado de julgar os grandes
perpetradores de violações aos direitos humanos durante a guerra civil, em especial
comandantes e líderes (os chamados big fish). Já para outros indivíduos, que também
cometeram crimes durante o desenrolar do massacre étnico, foram restabelecidas antigas
práticas restaurativas adotadas pelas tribos locais. Tais práticas, chamadas gacacas, são
incentivadas pelo próprio Ministério da Justiça ruandense e se desenvolvem no âmbito
da comunidade local.
Percebe-se que não há uma fórmula pronta e acabada. Como nas palavras de
Gustav Radbruch60, “não temos que fazer do Direito Penal algo melhor, mas sim que
fazer algo melhor do que o Direito Penal”. Devem ser buscadas formas de resolução de
conflito que possam emancipar o indivíduo, restabelecendo sua autoconfiança, sua
autonomia. Práticas como as da justiça restaurativa permitem que os envolvidos se
sintam como verdadeiros protagonistas de suas vidas. Faz com que eles voltem a
controlar seus destinos.
Em 2009 está prevista a ocorrência da Conferência de Revisão do Estatuto de
Roma61 que criou o Tribunal Penal Internacional. Dentre outros problemas que deverão
ser analisados durante a conferência62, uma pertinente pauta seria o debate sobre o
próprio direito penal e a sua efetividade no cenário internacional, além do papel que
deve ser desempenhado pelo Tribunal, bem como o incentivo a práticas restaurativas.
Tal discussão interessa ao Brasil também. Muito embora o país não enfrente
conflitos armados deve-se lembrar que ele faz parte do Estatuto de Roma, tendo assim
60 Citado no artigo de PINTO, R. S. G. Justiça Restaurativa é Possível no Brasil? In: BASTOS, M. T.; LOPES, C. e RENAULT, S. R. T. (Orgs). Justiça Restaurativa: Coletânea de Artigos. Brasília: MJ e PNUD, 2005. Disponível em: www.justica21.org.br/interno.php?ativo=BIBLIOTECA. Acesso em 20 de dezembro de 2007. 61 De acordo com o artigo 123 do Estatuto de Roma. 62 Tais como a questão dos acordos bilaterais que tem impedido a atuação do TPI, o problema da definição do crime de agressão, a inclusão ou não do terrorismo e do tráfico de drogas sob a jurisdição do Tribunal, a responsabilidade criminal de pessoas jurídicas etc. Para mais detalhes sobre os debates que estão antecedendo a Conferência de revisão, vide: SALZBURG Retreat: the future of the International Criminal Court. Salzburg, Áustria, 25-27 May 2006. Material distribuído durante a 9ª sessão de verão da Salzburg Law School on International Criminal Law, Humanitarian Law and Human Rights Law (5-17 de agosto de 2007). O material também se encontra parcialmente disponível em www.sbg.ac.at/salzburglawschool/retreat.pdf
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
85
contribuído para a própria criação do Tribunal Penal Internacional, além de haver uma
representante brasileira entre os juízes da Corte. Assim o debate sobre a implementação
da justiça restaurativa e o seu incentivo através do sistema internacional e mais
especificamente através do Tribunal Penal Internacional afeta diretamente o Brasil.
Tal debate também interessa ao Brasil pois, domesticamente, também é possível
ver iniciativas de aplicação da justiça restaurativa. Aos poucos o país vem aplicando
formas alternativas de solução do conflito que são capazes de emancipar os indivíduos.
Há projetos de justiça restaurativa implementados em Porto Alegre, São Caetano do Sul
e em Brasília. Todos esses projetos são financiados pela Secretaria de Reforma do
Judiciário do Ministério da Justiça e pelo Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD). Apesar de diferentes, todos os projetos contam com a
participação da sociedade civil e tem como uma das metas principais a solução do
conflito através da emancipação dos envolvidos.
Seja em conflitos armados, seja em conflitos interpessoais a justiça restaurativa
pode ser aplicada. Busca-se através dela o restabelecimento da paz social, necessário
para o convívio em sociedade. A justiça é alcançada através do estabelecimento da paz,
que não deve ser entendida como a ausência de conflitos, já que fazem parte da própria
vida em sociedade. A paz deve ser entendida como a administração do conflito pelos
seus próprios protagonistas, livres e iguais e que se autocompreendem como tais.
Elementos conformadores e importância da enfatização de uma Identidade
constitucional brasileira
Os debates recentes suscitados por questões de gênero, do movimento negro,
índios e outros grupos têm revelado desigualdades naturalizadas ao longo da história
brasileira. O contexto mundial em que esse processo se desenrola é o da modernidade
líquida, em que a liberdade da política do Estado é incansavelmente erodida pelos novos
poderes globais providos das armas da extraterritorialidade, velocidade de movimento e
capacidade de evasão e fuga.63
As sociedades, nessa modernidade, são atravessadas por diferentes divisões e
antagonismos sociais que produzem uma variedade de identidades para os indivíduos e
63 BAUMAN, Zygmunt. Globalização – as conseqüências humanas. Tradução: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1999, p. 74.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
86
se tais sociedades não se desintegram totalmente não é porque sejam unificadas, mas
porque seus diferentes elementos e identidades podem, sob certas circunstâncias, ser
conjuntamente articulados. Essa articulação, todavia, é sempre parcial. A estrutura da
identidade permanece aberta, é um devir. Essa é a condição de continuidade da
história.64
Dessa perspectiva, é urgente a inserção do reconhecimento sob a rubrica dos
direitos humanos fundamentais, inclusive para luta na defesa de outros direitos,
considerando-se a íntima relação entre identidade e auto-estima.
Levando-se em conta que o não-reconhecimento ou o reconhecimento
inadequado muitas vezes coincide com condições graves de demérito social e injustiças
sócio-econômicas. Nancy Fraser, quanto à indiscriminada separação da política cultural
da diferença em relação à política social da igualdade, afirma que justiça hoje requer
tanto a redistribuição65 quanto o reconhecimento, porque não é justo que indivíduos ou
grupos vejam negado seu status de plenos parceiros na interação social simplesmente em
decorrência de padrões institucionalizados de valor cultural de cuja construção não
participaram com igualdade e que menosprezam suas características distintivas ou
características distintivas a eles atribuídas.66
A demanda por reconhecimento fica desarmada se não for sustentada pela prática
da redistribuição e a afirmação da especificidade cultural serve de pouco consolo para
aqueles que, pela desigualdade cada vez maior na divisão dos recursos, têm de aceitar as
escolhas que lhes são impostas.
Diante disso, deslocar a ênfase da identidade nacional – baseada na idéia de que
uma boa vida depende da pertença a um agrupamento humano por intermédio de laços
históricos, culturais, de lealdade e de sangue – para uma identidade constitucional pode
funcionar como catalisador na densificação das promessas constitucionais de construir
uma sociedade livre, solidária e justa, que promova o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
A expressão identidade constitucional, no contexto brasileiro, remete, em
primeiro lugar, a uma história de pouca ou nenhuma participação do povo na construção
64 HALL, Stuart. A identidadde cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro – 11ª ed. – Rio de Janeiro: DP&A, 2006, p. 17. 65 FRASER, Nancy. “Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista”. In SOUZA, Jessé (org.). Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora UnB, 2001, p. 204. 66Fraser apud BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: A busca por segurança no mundo atual. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, pp. 71/72.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
87
das instituições nas quais estão inseridos e às quais são submetidos. Em segundo lugar, à
produção de silêncios, pela homogeneização cultural produzida por uma falsa
democracia racial. Por último, remete a uma desigualdade econômica e social renitente,
e, por conseguinte, uma ausência da maioria do povo no processo de construção de
sentido de sua própria identidade.
Esse horizonte, todavia, tem se modificado nos últimos vinte anos, coincidindo
com o período da redemocratização e com a promulgação da Constituição de 88, ainda
que, em diversos aspectos, as mudanças se dêem de forma lenta. No mundo atual,
observando-se a simultaneidade de presentes67, enquanto na Europa se discute a
possibilidade de aprofundamento da integração dos Estados por meio de uma
Constituição Européia, por aqui, pode-se dizer que o Estado-nação configura-se ainda
como um anteparo, ainda que frágil, para as hordas de excluídos.
A questão que se coloca é em que medida a comunidade e os Estados nacionais
conformam ainda os espaços discursivos privilegiados para a tematização dos assuntos
de relevância comum, num mundo em que os cidadãos encontram-se, de fato, inseridos,
simbólica e materialmente, em teias de relações que extrapolam os limites da nação.
O problema, entretanto, é saber quais cidadãos podem ser considerados
inseridos. Essa distinção é relevante porque para os inseridos a questão de configurar
uma identidade ligada a um Estado-nação não representa empecilhos ao pleno
desenvolvimento de seus projetos de vida, pois para esses superintegrados68 o Estado-
nação representa, de fato, menos que um carimbo no passaporte. Conforme assinala
Bauman:
a nova elite não é definida por qualquer localidade: é em verdade e
plenamente extraterritorial. Só a extraterritorialidade é garantida contra a
comunidade, e a nova “elite global” que, exceto pela companhia inevitável (e
às vezes agradável) dos maîtres, arrumadeiras e garçons, é sua única
detentora e que assim seja.
No universo dos extraterritoriais, falar de identidade é tratar de questões de
escolha e resolução, e é não só aconselhável, mas incentivado, sob pena de infringir as
regras não ditas, que as identidades sejam acompanhadas de um arsenal de sinalizadores
67 SANTOS, Boaventura de Sousa. “Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências”. In SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez, 2004. 68 O termo superintegrado foi retirado do artigo “Democracia e Exclusão Social em Face da Globalização” de Friedrich Müller, disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_72/artigos/artigos.htm >, acesso em: 24-06-2007.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
88
desse poder de opção: um carro, uma roupa, um relógio, um bairro específicos. A defesa
da autenticidade resume-se, basicamente, à discussão sobre o gosto69. Essas escolhas,
todavia, seguem padrões de qualidade rigorosos e, por conseguinte, limitam. Mas as
escolhas de cada um devem, acima de tudo, ser respeitadas. Jessé Souza aponta uma
contradição nesse modo de vida:
entre a lógica do ideal de autenticidade, que exige uma revelação expressiva
da originalidade de cada qual cujo ineditismo, na medida em que se refere
apenas àquela pessoa e sua singularidade, é ameaçado pela lógica do quik fix,
que implica o controle instrumental e a elaboração de padrões preexistentes e
heterônomos.70
Para os inseridos a questão da identidade não tem nada a ver com
reconhecimento ou auto-realização. É uma questão menor, quase tão variável quanto o
humor. Os membros dessa comunidade não tecem entre seus componentes uma rede de
responsabilidades éticas e, portanto, de compromissos de longo prazo. As ligações
estabelecidas nessa comunidade tendem “a evaporar quando os laços humanos realmente
importam – no momento em que são necessários para compensar a falta de recursos ou
impotência do indivíduo.71
Em outro universo, aos excluídos, aos vagabundos, ou seja, à grande maioria dos
habitantes do planeta, atrelados a um local de nascimento, ou efetivamente confinados,
conforme o caso, resta a obrigatoriedade da convivência perpétua e, portanto, da criação
de sentidos em comum. Nesse mundo em que cidadãos de direito lutam para tornarem-se
cidadãos de fato, a comunidade deve ser tecida de compromissos de longo prazo, de
direitos inalienáveis que, graças à sua durabilidade prevista, melhor ainda,
institucionalmente garantida, possa ser considerada como uma variável dada no
planejamento e nos projetos de vida72.
Retomo o caso brasileiro para concluir que o Estado Democrático de Direito é
ainda uma possibilidade, senão a única, de proteção contra as intempéries da
“globalização”, o que nos remete à imprescindibilidade de reforço de uma identidade
constitucional. Bauman alerta para o caráter não pacífico da identidade: “o campo de
69 “O gosto funciona como senso de distinção por excelência precisamente por separar e unir, constituindo, portanto, solidariedades e preconceitos de forma universal – tudo é gosto! – a partir de fios invisíveis e opacos”. Bourdieu apud SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003. (Coleção Origem), p. 57. 70 SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003. (Coleção Origem), p. 37. 71 BAUMAN, Zygmunt. Op. cit., 2003, p. 68. 72 Idem, ibidem.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
89
batalha é o lar natural da identidade. (...) A identidade é uma luta simultânea contra a
dissolução e a fragmentação; uma intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa
resoluta a ser devorado”73.
O campo de batalha da identidade constitucional parece situar-se, sobretudo, na
sua função de obstáculo à hegemonia de outras identidades. Conforme nos alerta
Rosenfeld a disputa “entre a identidade constitucional e outras identidades relevantes,
tais como a nacional, as étnicas, religiosas ou culturais, torna-se inevitável pela tensão
entre o pluralismo inerente ao constitucionalismo contemporâneo e a tradição”.74 E, em
seguida, o autor recorre a Ulrich Preuss, para destacar que “em um importante sentido, a
identidade constitucional compete com outras identidades relevantes opondo-se a
elas”.75
A idéia é, assim, transferir a carga de coesão da sociedade de uma identidade
nacional, edificada sobre distinções histórico-culturais, para uma identidade
constitucional fundada na não-homogeneidade cultural; legitimada pela ampla
participação na construção de sentido de termos essenciais como dignidade e justiça; e
empenhada na busca de mecanismos cada vez mais eficientes para institucionalização de
vontades produzidas na esfera pública, enfatizando com Rosenfeld que:
A identidade constitucional surge como algo complexo, fragmentado, parcial
e incompleto. Sobretudo no contexto de uma constituição viva, de uma living
constitution, a identidade constitucional é o produto dinâmico sempre aberto
à maior elaboração e à revisão. Do mesmo modo, a matéria constitucional
(the constitution subject) – de qualquer modo que seja definida – parece
condenada a permanecer incompleta e sempre suscetível de maior definição,
de maior precisão.76
Vale lembrar, com Jeffrey Weeks que, nessa batalha, não há agente social
privilegiado para atingir os fins; só a multiplicidade das lutas locais contra o peso da
história e as várias formas de dominação, subordinação e produção de silêncios. A
contingência e não o determinismo é que está subjacente ao nosso presente complexo77.
73 BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, pp. 83/84. 74 ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. Tradução: Menelick de Carvalho Netto. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, pp. 20/21. 75 Idem, ibidem, p. 21. 76Idem, ibidem, p. 23. 77 WEEKS, Jeffrey apud BAUMAN, Zygmunt. Op. cit., 2003, p. 126.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
90
As ações a serem empreendidas exigem a superação dos limites formais e
culturais impostos às condutas individuais e coletivas. Exige também um tipo de
subjetividade com capacidade e vontade de explorar novas possibilidades
emancipatórias, capaz de conceber e desejar alternativas sociais baseadas na
transformação de relações de poder em relações de autoridade partilhada e na
transformação das ordens jurídicas despóticas em ordens jurídicas democráticas e, além
disso, uma subjetividade para quem o futuro é, também, uma questão pessoal.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
91
O DIREITO À EDUCAÇÃO E A ATUAÇÃO DAS PROMOTORIAS DE
JUSTIÇA E DE DEFESA DA EDUCAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO
DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS ENTRE 2001 E 2007
Denise Gisele de Britto Damasco78
O direito à educação e sua garantia foram analisados por meio das
Recomendações79 públicas expedidas pelas duas Promotorias de Justiça e de Defesa da
Educação do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios – Proeduc, entre 2001 e
2007. Além da análise das sessenta e quatro Recomendações expedidas nesse período,
foram realizadas entrevistas com Promotores de justiça e Promotores adjuntos do
Ministério Público do Distrito Federal80 que participaram da comissão de criação das
Proeduc ou que atuaram em uma dessas duas Promotorias.
As Recomendações analisadas entre 2001 e 2007 pelas Proeduc, estão
disponíveis no sítio eletrônico81 do MPDFT e foram organizadas em quatro grupos,
segundo a atuação das Proeduc pela garantia: a) de acesso à educação; b) de
permanência com qualidade na escola; c) de participação na gestão escolar; d) pela
garantia da natureza pública da escola pública.
Observamos que 80% das sessenta e quatro Recomendações públicas no DF
foram dirigidas majoritariamente à Rede Pública de Ensino do DF, ou seja, à Secretaria
de Estado de Educação do DF, representando o Poder Executivo local. Em menor escala,
11% das Recomendações foram endereçadas à Rede Privada de Ensino. Em 9% dos
casos, as Recomendações foram encaminhadas ao Sistema de Ensino do DF como um
todo, ou seja, dirigidas à Rede Pública e à Privada.
Constatamos que das sessenta e quatro Recomendações expedidas entre 2001 e
2007, cinqüenta e sete foram referentes à educação básica, tornando premente a
necessidade de se ter políticas públicas mais eficientes para esses cidadãos. Dessas
cinqüenta e sete Recomendações para Educação básica, vinte e sete não especificaram a
etapa de ensino a qual eram direcionadas. São poucas as Recomendações públicas no
78Mestranda da Faculdade de Educação da UnB e professora da Secretaria de Estado de Educação do DF. 79As Recomendações são um dos instrumentos de atuação do Ministério Público em que essa instituição emite um documento “visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública, bem como ao respeito, aos interesses, direitos e bens cuja defesa lhe cabe promover, fixando prazo razoável para a adoção das providências cabíveis” – Lei Complementar 75/1993, art. 6°, inciso XX. 80O campo pesquisado foi o MPDFT e suas duas Promotorias especializadas em educação. 81www.mpdft.gov.br
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
92
DF que, em seu texto, identificam o reclamante que as originou. Entre 2001 e 2007,
cinqüenta e quatro Recomendações públicas apresentam somente o código e o número
do procedimento investigativo das mesmas. Tivemos a identificação de apenas duas
reclamações realizadas por alunos e uma anônima, que propiciaram duas
Recomendações públicas, respectivamente. Constatamos quatro reclamações de pais que
geraram Recomendações públicas e três Recomendações públicas expedidas por
iniciativa da própria Proeduc.
O direito à educação para sete dos Promotores entrevistados nesse estudo, o
direito à educação significa: a) o direito ao acesso à educação; b) o direito à qualidade na
escola; c) o direito à participação na elaboração do projeto político-pedagógico e no
Conselho Escolar; d) que esse direito à educação é uma questão complexa porque
envolve a União, os Estados e os Municípios, bem como a família do educando; e) o
direito à educação passa pela formação do professor, que segundo o Promotor
entrevistado, deve ser preparado para que a educação possa dar resultados; f) o direito à
educação significa atacar a causa dos problemas de criminalidade e finalmente g) o
direito à educação é um direito fundamental e deve estar associado ao direito à saúde
para que seja garantido em sua plenitude.
O direito à educação engloba dois conceitos convergentes, direito e educação,
que encerram constantes lutas em nossa sociedade. O direito e a educação possuem uma
característica que os aproxima: movimento e processo. Esse movimento e processo
implicam em reconhecer fortalecer as instituições democráticas e suas articulações com
movimentos sociais, não se lançando individualmente ou isoladamente e sim articulando
e se aliando com aqueles que sofrem todo tipo de opressão: racial, econômica e de
classe, sexual, gênero entre outras. O direito humano à educação engloba lutas contínuas
por instâncias mais democráticas nas escolas, pela qualidade do ensino, contra o
individualismo que descaracterizam o espaço coletivo e luta por uma justiça social82.
O direito humano à educação nos traz a convicção de que a educação além de ser
um direito do cidadão é antes um direito fundamental dos homens e das mulheres. Faz
parte do conjunto de direitos que conferem a todo ser humano a sua dignidade e a sua
condição de ser respeitado. A educação como um direito humano reconhece a
82Partimos do conceito de justiça social por meio do artigo de Balaudé, intitulado “Instituir o Bem” em que o autor admite a impossível conciliação do bem individual e do justo coletivo. Esse debate político, segundo o autor, “é polarizado entre a liberdade e a justiça, remetendo à questão do bem na esfera individual e privada, consagrando a questão da justiça como o único valor susceptível de ser perseguido pela coletividade”- tradução nossa. (Balaudé, 2007, p.09)
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
93
necessidade de uma vida digna e essa dignidade requer condições concretas para que
esse direito se realize, exigindo condições sociais, culturais, econômicas, ambientais e
políticas.
Destacamos o direito à educação como um direito humano e social. Ewald
(1986)83 afirma que o direito social introduz e organiza o conflito dos direitos. Como
conseqüência, esse autor apresenta que o direito social é indissociável da idéia de
solidariedade, pois se torna um grande operador de concessões mútuas, uma escola de
tolerância recíproca.
83A obra “L’État Providence” foi publicada originalmente em 1986, na França, e dedicada a Michel Foucault e ainda não há tradução em português. Nessa obra o autor aborda o conceito de Estado Providência e oferece uma oportunidade de reflexão sobre seu sentido na França. Ewald (1986) apresenta seu itinerário para a concepção dessa obra, datado de agosto de 1985. O cenário são as minas de carvão e a Lei francesa de 1898 que colocou em prática, de maneira inédita, a categoria do risco. Permeando a questão sobre o risco, refletia uma das grandes experiências morais do Ocidente. O homem por inteiro: futuro, acaso, fortuna, providência, fatalidade. A ordem e a desordem na natureza. O mundo e a sociedade e a existência do mal, sua origem, suas responsabilidades e os combates por ele impostos. Nesse itinerário, há o acidente de trabalho: uma experiência nova e má. O autor resume a história de dois séculos de indústria e de lutas sociais. Assim procurou compreender os dois últimos séculos por meio da problematização do acidente, a proliferação das instituições de seguridade; pelo nascimento da Seguridade Social, a aparição do Estado Providência e pelo processo de socialização que caracteriza a história contemporânea de nossas sociedades, a socialização das responsabilidades. Estuda também a passagem do direito civil ao direito social com a transformação das relações de obrigação.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
94
RACISMO INSTITUCIONAL E ACESSO À JUSTIÇA
Judith Karine Cavalcanti Santos84
Embora o ordenamento jurídico brasileiro seja repleto de normas
antidiscriminatórias, poucos casos de racismo são conduzidos ao fim do procedimento
judicial como tais.
Os casos de racismo no Brasil sofrem inúmeros bloqueios para sua efetivação.
Em geral, os obstáculos vão desde o medo de denunciar (entrave subjetivo) até o
indeferimento do caso – passando pela desclassificação do crime e pelo arquivamento do
inquérito –, praticamente anulam as possibilidades de efetividade da norma
antidiscriminatória. Resta à condenação cerca de apenas 0,06% do total de casos, como
demonstram estudos recentes85.
O Sistema de Justiça brasileiro86, entretanto, parece não atentar para essa falha e,
por vezes, os discursos expressos nas sentenças retomam o mito da democracia racial,
diante do qual, atitudes racistas seriam inconcebíveis, não ultrapassando o intuito da
brincadeira, fruto da nossa cultura ‘extrovertida’ e ‘espontânea’. Essa postura não
somente uma reprodução individual de preconceitos sociais, por um ou outro funcionário
desse sistema, mas uma reprodução institucional, que tem como conseqüência o
“fracasso da instituição em prover um serviço profissional e adequado às pessoas em
virtude de sua cor, cultura, origem racial ou étnica”87.
Pesquisas nacionais demonstram que nos casos em que o negro figura não como
vítima, mas como réu, os casos seguem mais céleres e são conduzidos por todo o
processo judicial adequado. Verificando, portanto, a eficácia normativa nos casos de
crime de racismo através dessas duas perspectivas (negro como réu e como vítima),
observa-se que as decisões judiciais tendentes a condenar o réu negro e a desqualificar o
crime de racismo, quando do negro vítima, não são mera reprodução individual de
conceitos preestabelecidos socialmente.
84 Professora de Direito Constitucional, Pesquisadora em Direitos Humanos e Metranda em Direito (UnB). 85 SALES, R. Raça e Justiça. O mito da Democracia Racial e o racismo institucional no fluxo da justiça. Tese de doutorado. Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Recife, 2006.
86 Para fins exclusivos desse projeto, optou-se por uma abordagem mais geral do termo Sistema de Justiça, com a inserção de vários agentes responsáveis pelo acesso à justiça e não somente os tribunais, como classicamente entendidos. Nesse sentido, Sistema de Justiça engloba também o Ministério Público, as Delegacias e o Sistema Penitenciário. Sistemas não convencionais com participação popular direta também estão compreendidos no conceito, embora não sejam objeto de estudo nesse momento.
87 PNUD; DFID; PCRI. RELATÓRIO REVISÃO ANUAL. Brasília: PNUD/DFID, 2005.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
95
Muito embora independa de ações individuais, o racismo institucional traduz em
certa medida os interesses sociais de exclusão. À medida que tais grupos racialmente
dominantes utilizam-se do meio institucional para a reprodução de uma cultura racista.
Tal postura é reflexo do racismo como processo de exclusão social e em sua acepção
institucional, o racismo institucional, que limita o acesso da população negra à justiça
fica restrito ao caráter punitivo.
O racismo não é mais um meio de se conseguir privilégios somente, como se fez
por mais de um século. Essa construção histórica ainda é utilizada, o diferencial é que,
hoje, o racismo institucional é o meio mantenedor de privilégios. Essa redução é ainda
mais problemática que a ausência total, porque ela ilude a sociedade quanto ao
cumprimento do direito e a sofisticação das estratégias do racismo neste século é tão
grande que nem ao menos se faz necessária a menção ao termo raça ou cor.
O Sistema de Justiça brasileiro reproduz o racismo em sua estrutura interna de
várias formas. Argumenta, por exemplo, a não intencionalidade e o álibi negro88,
prejudicando a aplicabilidade real da norma anti-racista. Instante esse em que o sistema
impede qualquer discurso plausível de acusação, visto que as provas da intenção
resumem-se a duas: a reafirmação por parte do acusado ou a existência de testemunhas.
A primeira raramente acontece e o ônus da prova, portanto, recai necessariamente sobre
a vítima, embora o sistema penal permita que, no caso da culpa ser presumida, “inverte-
se o ônus da prova e o autor da prova só precisa provar a ação ou omissão e o dano
resultante do agente requerido”89.
O racismo institucional, nessa medida, pode ser apontado talvez como a melhor
demonstração da sofisticação a que chegou o racismo na atualidade. Numa época em que
explicitar um discurso racista é dito como politicamente incorreto, o racismo adotou o
formato do institucional, que inclusive tenta retirar a responsabilidade individual. Por
essa razão fica difícil identificá-lo.
Outra perspectiva faz-se ainda necessária para que efetivamente se possa
classificar a inoperância do sistema como racismo institucional. É importante que se
88 A inocência é sustentada pela familiaridade com pessoas negras (SALES, R. Raça e Justiça. O mito da Democracia Racial e o racismo institucional no fluxo da justiça. Tese de doutorado. Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Recife, 2006). 89 HACK, P. Responsabilidade civil por danos morais. In PEREIRA, G.; SANTOS, J.; COSTA, L. et. Al. Dano moral nos Atos de Racismo. Olinda: Djumbay, 2001. p.18.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
96
observe se há os mesmos limites no encaminhamento dos processos e na eficácia das
normas quando o negro não é a vítima, mas denunciado90.
Os dados apontam, por exemplo, que os negros são mais abordados pela polícia
que os brancos, prática decorrente do racismo estrutural das polícias. Além disso,
pesquisas mostram que na capital paulista, por exemplo, os negros são mais punidos que
os brancos, considerando a eficácia processual91.
Com a pesquisa, é possível observar que as trajetórias iniciais da população
negra (homem e mulher) são substancialmente inferiores em termos percentuais aos da
população branca (homem e mulher), no entanto, à medida que o procedimento judicial
aproxima-se da execução, os números se agravam para a população negra e declinam
surpreendentemente para a população branca.
O sistema de justiça está preparado para uma postura determinada desse sujeito
quando esse corresponde ao estereotipo [racista] ‘do ladrão’. Ao ocupar qualquer outro
papel, o sistema não encontra referência e o atributo raça/cor torna-se ima categoria
irrelevante. Ocorre que no racismo, esse atributo é o ponto de partida para caracterização
do crime.
O acesso à justiça para a população negra continua restrito ao viés repressivo, ou
seja, a justiça somente é perceptível aos negros quando agem contra e a não a seu favor.
90 Há de se ressalvar que esses dados de raça/cor em geral são atribuídos pelas autoridades coatoras, e não com base na autoclassificação. 91 Fundação SEADE apud LIMA, R. Op. Cit., 2004. pp.62-63
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
97
GRUPO 3 E GRUPO 4
Coordenadores: Prof. Menelick de Carvalho Netto e Prof. Cristiano Paixão
A OBSERVAÇÃO DA OBSERVAÇÃO: ABORDAGENS SOBRE A
APROPRIAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PELA JURISDIÇÃO
CONSTITUCIONAL E SEUS DESDOBRAMENTOS
Cristiano Paixão
Menelick de Carvalho Netto
Leonardo Augusto Andrade Barbosa
Paulo Henrique Blair de Oliveira
Quando a pesquisa relacionada à construção de um Observatório Permanente da
Justiça Brasileira foi adquirindo identidade e maturidade, algumas perspectivas
complementares surgiram do material coletado e analisado. Gradativamente, as
observações realizadas pelos grupos 3 e 4 foram se aproximando, considerando que a
tarefa de “estruturar um lócus de interlocução com as diversas vertentes e movimentos
enunciadores de discursos de interpretação e realização da constituição brasileira”
(objetivo do grupo 3) estava diretamente intrincada com o trabalho de “identificar
estratégias de desconstitucionalização de direitos, desvelando as demandas por reformas
no sistema de justiça que se encontram ocultas, latentes ou suprimidas” (objetivo do
grupo 4). Em ambos os casos, trata-se de observar, com as lentes da teoria da
constituição e da sociologia do direito, o complexo movimento de reconstrução da
identidade constitucional brasileira a partir da promulgação e vigência da Constituição
da República de 1988, com o olhar direcionado para a tradução desta identidade (e,
portanto, sua transformação) pelas instituições encarregadas da aplicação do direito. Um
desdobramento desse processo consistiu na observação das manifestações da atividade
institucional e de suas insuficiências. Daí a abertura maior do campo de pesquisa, para
abarcar os movimentos alternativos de resolução de conflitos e a repercussão nos meios
de comunicação da atividade jurisdicional.
Em comum acordo entre os grupos de pesquisa, decidiu-se então pela
concentração, num documento integrado, dos resultados das investigações promovidas
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
98
pelos grupos 3 e 4 da equipe encarregada de construir as possibilidades de observação
que se abrem ao trabalho futuro do Observatório Permanente da Justiça Brasileira.
Passa-se, agora, à apresentação dos resultados da pesquisa.
No caso do Brasil, o percurso em direção a uma ordem constitucional
democrática foi acidentado, assimétrico, repleto de intercorrências. Impõe-se, portanto,
contribuir para a construção de uma cultura constitucional, fomentando uma arena de
debates própria para a defesa e construção de posições interpretativas inclusivas
vinculadas às mais diversas lutas por reconhecimento.
A invenção democrática e a construção constitucional estão, contudo, sempre em
seu início. Assim, partimos da pressuposição de que os caminhos da sociedade, da
política e do direito incluem, necessariamente, a interlocução constante, aberta e livre
entre as organizações formais e a sociedade civil. Entende-se, portanto, que a atuação
dos organismos tradicionais de circulação do poder político – em especial, o Judiciário –
só pode ser compreendida, analisada e criticada em um contexto mais abrangente. Trata-
se, então, de uma dimensão ampliada de observação, que lança seu olhar sobre as trocas
comunicativas que ocorrem entre o Poder Judiciário e a sociedade civil. A partir desse
olhar, pode surgir um panorama muito mais diversificado e intrincado que revelará
movimentos de reivindicações de direitos, estratégias de contenção e possibilidades de
atuação dos sujeitos sociais no mundo contemporâneo.
Tendo em vista que a análise de acesso à justiça dos presentes grupos perpassa a
questão da desconstitucionalização, as referências teóricas da pesquisa não poderiam ser
outras senão àquelas voltadas para a teoria constitucional. Nesse sentido, as principais
fontes da pesquisa são as teorias tecidas a partir de um viés sociológico por Niklas
Luhmann, Jürgen Habermas e Boaventura de Sousa Santos.
A tese principal de Niklas Luhmann, a esse respeito, é no sentido de que a
constituição surge como um fundamental mecanismo de acoplamento estrutural entre os
sistemas do direito e da política. Ela representa, na verdade, uma reação à radical
separação entre os dois sistemas, que só é possível com a diferenciação funcional da
sociedade moderna. Porém, para que se compreenda o papel da constituição nesse novo
quadro social, é fundamental lembrar a feição dual do texto constitucional: a constituição
é, ao mesmo tempo, um documento de tipo fundamental, que contempla as principais
opções políticas de um dado Estado – consagra direitos fundamentais, disciplina a
relação entre os vários ramos do governo, estipula procedimentos diferenciados para sua
própria modificação – e uma norma de tipo legal – dela se extraem direitos, sua aplicação
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
99
pode ser postulada nas cortes de justiça e algumas regras de interpretação são passíveis
de enunciação a partir do texto constitucional. Nas palavras de Luhmann, isso faz com
que a constituição se transforme num texto autológico, que “se propõe ser parte do
direito”.
Se esta proposta de trabalho deve dispor de um marco teórico que não se deixa
vincular a um único ponto de vista disciplinar, mas, pelo contrário, permanece aberto a
diferentes objetivos teóricos, a diferentes papéis sociais e a diferentes atitudes
pragmáticas de pesquisa a fim de que uma abordagem normativa não perca o seu
contato com a realidade, nem uma abordagem objetiva exclua qualquer aspecto
normativo então deve necessariamente valer-se dos preceitos metodológicos contidos
na Teoria Discursiva do Direito e da Democracia, formulada por Jürgen Habermas. Pois,
a partir dos postulados teóricos e metodológicos de Habermas é possível sustentar que
partindo de práticas comunicativas cotidianas vivenciadas no Estado Democrático de
Direito o qual considera os pressupostos comunicativos e as condições procedimentais
da formação de opinião e vontade democráticas como fonte de legitimidade pode-se
investigar tanto as pretensões de “justiça” que radicam nas demandas populares por
acesso à Justiça (reduzidas forçosamente ao Judiciário) quanto a adequação destas
demandas à Constituição.
Ademais, tendo em vista o recorte temático alusivo ao tema do acesso à justiça,
articulando a questão da desconstitucionalização com o do acesso, principalmente no que
tange ao controle de constitucionalidade, buscar-se-á verificar os meios de participação
social no processo de realização constitucional de dois modelos democráticos, o
representativo institucional-procedimentalista e o participativo, social-instituinte, no
sentido conferido por Boaventura de Sousa Santos. A verificação da democratização do
acesso à justiça far-se-á, neste ponto, por meio da análise das ações e iniciativas
populares que têm lugar constitucional: ações populares, mandado de injunção, omissão
constitucional e inúmeros outros instrumentos em construção.
O trabalho apresentado a seguir desenvolveu-se a partir desses recortes.
Conforme adiantado no relatório preliminar, a investigação proposta supõe um
redimensionamento do próprio conceito de acesso à justiça. Se, por um lado, reformas
constitucionais e legislativas têm tornado possível o acesso de cidadãos antes excluídos à
assistência estatal diante de situações-conflito, por outro, é evidente que não podemos
considerar “mais decisões judiciais” ou simplesmente “mais sentenças” como “mais
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
100
justiça”. Ainda que o oferecimento de uma prestação jurisdicional célere e em
conformidade com a Constituição e as leis seja central no regime democrático, devemos
manter presente que “justiça” não é um bem que possa, simplesmente, ser entregue pelo
Estado aos administrados. O “acesso à justiça” extrapola em muito a problemática
jurisdicional, como procuramos sustentar ao longo de todo o trabalho.
O eixo para pensar criticamente a questão do “acesso à justiça” envolve a noção
de cidadania e o conceito de constituição. Em uma sociedade complexa, é impossível
localizar o “justo” em um conjunto de valores compartilhados por todos em razão de
uma identidade nacional autêntica. A marca das sociedades contemporâneas é a
diferença, a pluralidade. A justiça deixa de ser uma fórmula ou idéia estática para
assumir-se enquanto projeto permanentemente inacabado; nas palavras de Jacques
Derrida, como um “apelo sempre ferido”. Se a justiça deve ser construída, e não
revelada pelas instituições estatais, a questão central colocada pelo problema do “acesso
à justiça” diz respeito às condições nas quais é possível interferir nos processos sociais e
institucionais que, concretamente, respondem “o que é justo para nós?”. O conceito de
cidadania liga-se precisamente à garantia e promoção da possibilidade de participação
nesses processos, que são sempre mediados por compreensões da Constituição e
representados concretamente pela construção social de novos direitos, pela formulação
de políticas públicas, pela elaboração de medidas legislativas, pelo exercício da função
jurisdicional. Em todas as suas múltiplas facetas, o direito se torna reflexivo, isto é,
passa a problematizar as próprias condições de sua produção.
Essas observações têm um impacto decisivo sobre as relações entre direito e
justiça e, portanto, sobre o problema da legitimidade do direito. Na medida em que a
própria noção de justo se torna problemática e artificial, o confronto entre direito e
justiça não pode mais ser visto como procedimento apto a distinguir entre o direito
legítimo e o direito ilegítimo. Esse papel cabe, agora, ao próprio direito, mais
especificamente, à Constituição. O direito moderno produz sua própria legitimidade na
medida em que dá curso a um processo democrático de debate acerca do significado que
deve ser concretamente atribuído aos seus princípios constitutivos, a igualdade e a
liberdade. Esse processo, contudo, não existe por si próprio, não está sequer
minimamente garantido. Ele precisa ser construído a todo momento.
O caráter democrático da concretização da Constituição requer que a participação
de todos esteja protegida não só do arbítrio estatal, mas também da espoliação pela
própria sociedade (como bem ilustrado, por exemplo, pelo trabalho escravo e pelo abuso
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
101
sexual de crianças e adolescentes). Esse é o sentido dos direitos fundamentais. Eles
atuam como condições possibilitadoras de um autogoverno dos cidadãos, conectando
autonomia pública e privada. Entretanto, os direitos fundamentais, como qualquer outra
norma jurídica, possuem um caráter aberto e seu significado encontra-se continuamente
em jogo onde quer que haja uma decisão a ser tomada sobre qual direito deve regular
uma situação determinada.
Os direitos fundamentais – afirmação de liberdade e igualdade – são hoje
constitutivos da própria forma do direito (que não é mais uma “casca vazia”, capaz de
comportar qualquer ordem baseada na legalidade, como no modelo kelseniano), que
guarda uma conexão interna com a Democracia. Entretanto, a forma de densificação
desses direitos depende da compreensão que se adote em determinado local do espaço e
do tempo e das formas de vida específicas. Mas diante da definição sempre problemática
do conteúdo dos direitos que os cidadãos se atribuem reciprocamente numa comunidade,
o apelo a uma perspectiva mais ampla de justificação, que remeta para além de um
determinado ethos é constitutivo do processo de luta por reconhecimento de direitos. O
aspecto contra-majoritário dos direitos fundamentais reside exatamente na sua pretensão
universalizante – naquilo que deve ser garantido a cada cidadão independentemente dos
valores compartilhados pela eventual maioria – possibilitando assim que a tensão entre
argumentos de apelo maioritário e minoritário operem continuamente, de forma que as
posturas comunitárias ético-políticas não percam sua reflexividade e, portanto, seus
potenciais inclusivos e emancipatórios.
Neste sentido, a institucionalidade pode ser visualizada, simultaneamente, em sua
possibilidade emancipatória e nas dimensões de risco que pretensões juridicamente
abusivas podem abrigar, em especial aquelas que se utilizem da argumentação do direito
contra a normatividade dos próprios direitos fundamentais abrigados
constitucionalmente. Aqui, há sem dúvida uma perspectiva de que o debate legislativo é
a “porta de entrada” institucional dos argumentos de formação do direito, mas de modo
algum representa o término desta trajetória de afirmação de liberdade e de igualdade.
Deste modo, se um texto de lei pode representar uma grande conquista na afirmação de
direitos fundamentais, esta afirmação não está isenta dos riscos de dissolução por uma
prática jurisdicional que lhe seja corrosiva e que lhe reduza ou extinga a força normativa
ou mesmo que lhe atribua sentidos que neguem a liberdade e a igualdade que ele
afirmava. Por este motivo, dentre as observações do acesso à justiça, a perspectiva
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
102
emancipatória que este acesso deve conter não pode prescindir da análise das práticas
institucionais.
Os objetivos que couberam aos grupos, quais sejam, “estruturar um lócus de
interlocução com as diversas vertentes e movimentos enunciadores de discursos de
interpretação e realização da constituição brasileira” e “identificar estratégias de
desconstitucionalização de direitos”, guardam importância central para o debate acerca
do sentido da expressão “acesso à justiça”. Explicando melhor: nas condições acima
descritas, o acesso à justiça equivale à promoção da cidadania num contexto de plena
vigência de uma Constituição democrática, pluralista e aberta à reconstrução no futuro.
A promoção da cidadania também exige constante reflexão acerca do sentido e extensão
dos direitos fundamentais, os quais possibilitam, na prática, o sucesso do
empreendimento democrático. Não obstante, o direito está fadado a decidir. E a decisão,
venha de onde vier, ainda que produzida no seio de um procedimento democrático, é
sempre uma leitura condicionada por limitações de tempo e de conhecimento. Mesmo
sendo lícito exigir do aplicador do direito a solução correta para os problemas postos sob
sua consideração, é fundamental recordar que, do ponto de vista sociológico, sua decisão
é sempre falível. Ao mesmo tempo em que joga luz sobre determinados aspectos, oculta
outros. A operação do sistema do direito produz, inevitavelmente, seleções, recortes,
exclusões.
Pensar sobre “estratégias de desconstitucionalização” é lidar com esse problema.
É investigar como essas seleções e exclusões afetam o sentido e a extensão dos direitos
fundamentais e avaliar se elas podem ser – e se estão sendo – tematizadas de forma
aberta e transparente. Não se trata, portanto, de exorcizar o risco de uma seletividade
“perversa”, mas de instituir um esforço de observação crítica desse processo, torná-lo
visível, dissecar seus pressupostos, permitir ver o que se esconde por trás das intenções
declaradas, identificar o fio histórico que liga a declaração formal com a intenção de
restringir o alcance de determinadas conquistas constitucionais.
Para tanto, neste esforço de pesquisa exploratório, foram destacados direitos
estabelecidos no texto constitucional – na conformidade do processo de
constitucionalismo democrático de que foram protagonistas vários países da América
Latina desde os fins da década de 1980 – que assumem a característica de direitos
fundamentais.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
103
A pesquisa propõe, então, uma visão crítica e problematizante acerca de
determinados direitos fundamentais e sua tradução institucional. Podemos enumerar
esses direitos, que correspondem às observações realizadas pelos grupos:
1. Direito ao devido processo legislativo – veiculada numa perspectiva
abrangente, a pesquisa envolve a recuperação do elemento democrático na
Constituição da República e na atividade legislativa, o que significará uma
discussão acerca da idéia de controle dos atos interna corporis do Poder
Legislativo e sua assimilação pela jurisprudência;
2. Direito à participação social no processo judicial – analisado sob a perspectiva
de desvelamento dos pressupostos ocultos ou latentes que residem nas escolhas
promovidas, pela jurisdição constitucional, em relação aos atores sociais
habilitados a promover o debate, tanto no controle concentrado quanto no
controle difuso;
3. Direito ao devido processo legal – visto, na pesquisa, como possibilidade de
submeter ao Poder Judiciário temas constitucionais sobre o significado dos
dispositivos constitucionais, com formas transparentes, abertas e públicas de
seleção de casos a serem submetidos à jurisdição constitucional;
4. Direito à prestação jurisdicional efetiva e independente – o que implica a
crítica e a recusa à formulação de exigências procedimentais voltadas ao
esvaziamento de determinados preceitos constitucionais e uma prestação
jurisdicional livre das pressões por decisões baseadas em conseqüências no
campo da política e da economia;
5. Direito de greve – compreendido, na pesquisa, como o direito das organizações
sindicais à apreciação dos conflitos coletivos originados pelo exercício do direito
de greve, o que exige uma observação da orientação dos órgãos da Justiça do
Trabalho, da Justiça Comum, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo
Tribunal Federal acerca do significado do direito de greve numa constituição
democrática;
6. Direito à liberdade de crença – afirmado como corolário da liberdade que
decorre da adoção, pelo ordenamento constitucional brasileiro, do modelo laico
de Estado, ou seja, sem a interferência, no debate constitucional, de argumentos
de autoridade vinculados a concepções transcendentes de mundo;
7. Direito a ver resolvidas disputas de forma democrática e com respeito à
autonomia da vontade – o que pressupõe uma reflexão e uma proposição acerca
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
104
dos meios extrajudiciais de solução de conflitos, baseados numa perspectiva
emancipatória e voltada à concretização, no âmbito social, com mediação
institucional, dos direitos fundamentais;
8. Direito à informação – relativo às atividades do Judiciário, suas formas de
decisão, seus ritos próprios e suas práticas institucionais, o que deve ocorrer por
meio da observação das representações do Judiciário na mídia);.
A cada um dos pontos acima enumerados corresponde um texto que representa
uma pesquisa coletiva, fundamentada e aberta ao debate. A estrutura dos artigos
compreende a explicitação do problema, sua discussão e, por fim, a apresentação de
propostas para as futuras atividades do Observatório Permanente da Justiça no Brasil.
Esse primeiro esforço testemunha a fecundidade da pesquisa proposta e,
principalmente, aponta para a conveniência de institucionalizá-la, o que contribuiria para
desvelar de que forma uma constituição democrática, inserida nos caminhos históricos
do constitucionalismo moderno e que representa uma mudança significativa nas bases da
normatividade, com nítido conteúdo democratizante, inclusivo e participativo confronta
estruturas de argumentação e decisão que persistem a replicar uma semântica autoritária,
excludente e que reitera a denegação do acesso à justiça, nos termos acima articulados.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
105
Referências
CARVALHO NETTO, Menelick. PAIXÃO, Cristiano. Entre permanência e
mudança: reflexões sobre o conceito de constituição. Manuscrito inédito.
CORSI, Giancarlo. Sociologia da Constituição. Trad. Juliana N. Magalhães.
Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.
Nº 39. Belo Horizonte: UFMG, janeiro-junho de 2001.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia entre facticidade e validade. Trad.
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. V.1.
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro - estudos de teoria política. São
Paulo: Edições Loyola, 2002.
PAIXÃO, Cristiano. BIGLIAZZI, Renato. História constitucional inglesa e
norte-americana: do surgimento à estabilização da forma constitucional.
Brasília: Editora da UnB e FINATEC, 2007 (no prelo).
SANTOS, Boaventura de Sousa. Constitucionalismos perversos. Constituição &
Democracia . Nº 4. Brasília, maio de 2006.
VERSCHRAEGEN, Gert. Human Rights and Modern Society: A Sociological
Analysis from the Perspective of Systems Theory. Journal of Law and Society.
Vol. 29, nº 2. Oxford and Malden: Blackwell, junho de 2002.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
106
CONTROLE JUDICIAL DO PROCESSO LEGISLATIVO: EM DEFESA DE
UMA CIDADANIA ATIVA
Leonardo A. de Andrade Barbosa*
DEMOCRACIA E DIREITO AO DEVIDO PROCESSO LEGISLATIVO
Em junho de 2007, no Ministério da Justiça, Boaventura de Sousa Santos
concluiu sua palestra sobre o que chamou de “revolução democrática da justiça”
sugerindo que “sem direitos de cidadania efetivos a democracia é uma ditadura mal
disfarçada”92. Essa observação ressalta que democracias não são simplesmente regimes
políticos nos quais a maioria detém o poder. Uma decisão tomada pela maioria num
contexto social onde não há garantias para o exercício da livre manifestação da opinião,
para o acesso amplo à informação, para a liberdade de associação, e assim por diante,
não tem valor democrático. Sem o respaldo de direitos fundamentais, a democracia é
privada de todo seu potencial emancipatório e vice-versa.
O direito ao devido processo legislativo, tema deste texto, guarda uma conexão
estreita com a garantia do regime democrático, na medida em que postula que o Estado
só pode editar leis mediante a estrita observância das normas constitucionais que
regulam o processo legislativo. Tais normas, mais que organizar procedimentos internos
dos órgãos legislativos ou assegurar determinadas prerrogativas aos seus membros,
visam garantir a possibilidade de ampla participação da sociedade na definição das leis
que nos regem.
O que devemos entender, porém, por ampla participação? Numa democracia
representativa, a participação dos cidadãos no processo legislativo não se dá, em regra,
diretamente93, mas por meio da outorga de mandatos populares a políticos profissionais.
O fato de os representantes populares ao Poder Legislativo serem eleitos não afasta a
possibilidade de que concorram para uma privatização do espaço público por interesses
particulares, sejam eles de financiadores de campanha, sejam do próprio governo. As
eleições legislativas não resultam num “cheque em branco” para os eleitos, isto é, não
resolvem de uma vez por todas o problema da legitimidade do exercício da atividade
parlamentar. Seu propósito central é garantir a formação de um órgão representativo,
* Mestre e doutorando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília. Pesquisador do grupo “Sociedade, Tempo e Direito” (UnB). Analista legislativo da Câmara dos Deputados. 92 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez, 2007. p. 90. 93 Exceção para a iniciativa popular de leis e, eventualmente, plebiscitos e referendos, previstos no art. 14 da Constituição Federal.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
107
isto é, de um espaço no qual as diversas perspectivas de mundo presentes na sociedade
possam ter voz, ainda que minoritárias.
Esse espaço institucionalizado, entretanto, só faz sentido se confrontado com
uma esfera pública politicamente ativa, progressivamente construída e reconstruída em
situações cotidianas mais ou menos organizadas (conversas em bares e cafés, encontros
na rua, o público que freqüenta o teatro, o cinema ou concertos de Rock, reuniões de
partidos, encontros nas associações de bairro ou congressos de igrejas, etc.), mediada por
uma “esfera pública abstrata”, produzida pelos meios de comunicação (a imprensa e os
respectivos leitores, ouvintes e espectadores)94. Um parlamento que não deseja ou que
não é capaz de se conectar aos problemas, informações e argumentos que circulam na
opinião pública enfraquece a própria base de seu funcionamento legítimo.
A relação entre parlamento e esfera pública é de interdependência, de influência
recíproca. Se, por um lado, os órgãos legislativos não podem se alhear frente à formação
da opinião pública em circuitos informais, por outro, os atores do processo legislativo
não são marionetes comandados por uma suposta vontade geral hipotética, una e
coerente. Não é verossímil, em sociedades complexas, conceber o povo como uma
entidade. Pelo contrário, o povo é produtor e, ao mesmo tempo, produto da comunicação
sobre as leis que nos regem – não é um dado da realidade, mas uma identidade em
permanente construção95. Pressupomos um povo no momento em que esse mesmo povo
se dá leis, mas o povo será, também, forjado pelas leis que dá a si próprio96.
A soberania popular, portanto, não se afirma na mera prevalência dos valores e
preferências de uma maioria circunstancial, mas na abertura do processo democrático,
que, apoiado em direitos fundamentais, possibilita simultaneamente a preservação da
diferença (coexistência de diferentes visões de mundo, diversos valores) e a crítica à
transformação da diferença em desigualdade, seja para privilegiar, seja para excluir
determinados segmentos da sociedade.
94 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. II. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 107. 95 ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. Tradução: Menelick de Carvalho Netto. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. 96 Conforme a brilhante intuição de Derrida, analisando a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América: “Não havia, por direito, o subscritor antes do texto da Delcaração, o qual permanece, ele próprio, o produtor e garantidor de sua própria assinatura”. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que a Declaração pressupunha a existência do povo americano, ela também o constituía enquanto tal. DERRIDA, Jacques. Declarations of independence. Tradução: Tom Keenan e Tom Pepper. In: DERRIDA, Jacques. Negotiations: interventions and interviews – 1971-2001. Princeton: Princeton University Press, 2002. p. 50.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
108
O direito ao devido processo legislativo busca, em sua dimensão principal,
assegurar essa conexão entre o debate público e o debate parlamentar, isto é, organizar o
procedimento de formação da vontade política (produção das leis) de acordo com regras
que garantam uma ampla participação da sociedade. Busca conectar potenciais de poder
produzidos nas interações comunicativas livres que ocorrem na esfera pública com um
processo de decisão institucionalizado. As duas pontas do processo se retro-alimentam.
O devido processo legislativo implica a publicidade e transparência dos atos que o
compõe, de forma a reduzir as possibilidades de que lobbies financiados pelos poderes
estabelecidos (sejam eles oriundos do mercado, do Estado ou da sociedade civil) se
imponham sem reflexão e crítica pública, isto é, sem justificar devidamente as
pretensões que estão a defender.
POR QUE É IMPORTANTE GARANTIR O DIREITO AO DEVIDO PROCESSO
LEGISLATIVO?
O princípio da legalidade encontra-se entre as mais básicas garantias
constitucionais de um Estado de direito. De acordo com ele, somente em virtude de lei
somos obrigados a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa. Em outras palavras, somos
livres para escolher de que forma nos comportar, a menos que uma lei diga que devemos
ou não devemos agir de uma determinada maneira. Chamamos este espaço de liberdade
individual, delimitado pela lei, de autonomia privada. A lei, entretanto, não é um mero
limite à liberdade individual instituído em prol da consecução de objetivos sociais.
Reduzi-la a tanto é, ao mesmo tempo, errado e anacrônico.
Errado, porque as relações entre lei e liberdade são muito mais complexas e
polêmicas. O direito constitucional e a filosofia política até hoje enfrentam dificuldades
quando questionados, por exemplo, sobre em que medida é necessário recorrer à lei para
promover uma organização social justa – certamente a lei não é capaz de promovê-la por
si só – ou, ainda, em que medida a maioria pode impor sua vontade a minorias ou a
indivíduos isolados. Anacrônico, porque no Estado democrático de direito a lei não é um
limite formal à liberdade individual. As leis que nos regem são, elas próprias, uma
manifestação da nossa vontade. São o produto da expressão livre daqueles que se
submetem aos seus comandos. A isso chamamos autonomia pública.
Não é difícil ver que há uma relação estreita entre autonomia pública e
autonomia privada. Se a lei fosse uma mera imposição externa, absolutamente
desconectada de um processo público do qual podemos participar de diversas formas, as
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
109
restrições que ela impõe à nossa liberdade, bens e direitos seriam percebidas, em geral,
como arbitrariedades. Por outro lado, se as instituições públicas e a sociedade civil
forem capazes de cultivar um processo político que torna crível nossa condição de co-
autores das leis vigentes, as possibilidades de aplicação democrática e legítima do direito
se vêem fortalecidas. Por essa razão, autonomia privada requer autonomia pública e
vice-versa.
O papel do processo legislativo é, portanto, tornar plausível a idéia de que os
cidadãos são co-autores das leis vigentes. Por isso, a garantia das normas que o regem
deve ser levada a sério. O processo legislativo não é meramente um direito corporativo,
destinado a regular relações entre parlamentares e órgãos legislativos. É fato que as
normas internas dos parlamentos organizam no tempo os atos destinados à formação da
lei, criam competências, instituem prerrogativas e assim por diante. Entretanto, tudo o
que se passa no parlamento ocorre em função de um público que suportará as
conseqüências da aplicação das leis em discussão. Se esse público não sabe de que
forma e sob quais condições o debate avançará, tampouco saberá em que circunstâncias
e de que modo pode buscar exercer influência sobre a formação da decisão parlamentar.
Em síntese: as normas de processo legislativo regulam quem pode praticar certos
atos e quando; o momento em que alterações às propostas discutidas podem ser
introduzidas e de que maneira isso pode ser feito; quando e como argumentos pró e
contra podem ser apresentados; quando e como se dará a votação; que publicidade deve
ser dada às matérias discutidas e com qual antecedência; quanto tempo deve transcorrer
entre um ato e outro e assim por diante. Se essas normas, por um lado, tornam possível o
funcionamento institucional do Legislativo, por outro esclarecem ao público de que
maneira a deliberação ocorrerá e, portanto, como ele pode interferir. Essa interferência
se concretiza de maneiras muito diversas e, não raro, associadas: manifestações na
imprensa, mobilizações populares e comunitárias, audiências com parlamentares ou
outros órgãos legislativos, promoção de seminários, captação de apoio político de atores
diversos, e assim por diante. Todas essas estratégias apostam seu sucesso na
intensificação do debate público sobre os temas em jogo, elevando a quantidade de
informações pró e contra a proposta debatida.
As regras de processo legislativo permitem, ainda, negociações. A obstrução
parlamentar, os pedidos de verificação de votação e o direito à apresentação de
destaques para votação em separado são instrumentos utilizados pela minoria para forçar
a maioria a ceder em alguns pontos. Esses recursos contribuem para (ainda que não
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
110
garantam por si sós) decisões mais equilibradas, pois impedem que uma maioria se
imponha sem esclarecer adequadamente suas razões ou sem assumir responsabilidade
política pela decisão tomada.
A conexão entre debate público e deliberação parlamentar é, entretanto, frágil.
Ela pode ser rompida, e recorrentemente o é, por lobbies corporativos poderosos, que
não estão interessados em tornar públicos os motivos pelos quais defendem sua agenda.
Ancorados no poder econômico ou no próprio governo, esses lobbies procuram impor-se
contra o debate público, infantilizando-o. As políticas e medidas legislativas que
defendem são sempre urgentes e imperativas. Rejeitá-las equivale a comprometer a
“governabilidade”, colocar em risco a credibilidade das instituições, desestabilizar a
economia, gerar desconfiança no mercado.
A edição abusiva de medidas provisórias é hoje a forma mais conhecida e eficaz
de cerceamento do debate público sobre as leis que nos regem. Ao exíguo prazo de
votação, soma-se o fato de que as medidas são apreciadas de maneira atabalhoada, com
violação a várias normas regimentais do Congresso Nacional. Em geral, chegam a
Plenário com relatórios preparados às vésperas ou mesmo no momento da votação. Não
raro, retornam à Câmara dos Deputados, após passar pelo Senado, com um grande
número de emendas “contrabandeadas”: na gíria legislativa, regras novas, pouco ou nada
relacionadas ao tema da medida provisória, que acabam sendo convertidas em lei em
prazos reduzidíssimos (às vezes, um punhado de dias). O apelido justifica-se, ainda, pelo
fato de que a prática, ainda que popular, é contrária ao direito. O regimento da Câmara
(art. 100, § 3º e art. 125), o regimento do Senado (art. 230, I) e o regulamento da
tramitação de medidas provisórias vigente no Congresso (art. 4º, § 4º) proíbem emendas
que tratam de matéria estranha à regulada na proposição principal.
Um bom exemplo desse expediente é fornecido pela tramitação da Medida
Provisória nº 252, de 2005. A MP dispunha sobre benefícios fiscais a determinados
setores produtivos. Durante sua tramitação, entretanto, o governo “contrabandeou” uma
emenda do Senado para a Câmara com o objetivo de se livrar das chamadas “requisições
de pequeno valor”. As requisições, conhecidas pela sigla RPV, são ordens emitidas pelos
Juizados Especiais federais determinando o pagamento de ações judiciais de menor
valor, nas quais a União foi derrotada. Essas ações, que normalmente têm a ver com
benefícios do sistema de Seguridade Social (e, portanto, versam sob recursos
indispensáveis à sobrevivência do cidadão que recorre à justiça), funcionam como
válvula de escape: enquanto na justiça comum o INSS, ainda que derrotado, é capaz de
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
111
adiar por anos o pagamento de sua dívida, nos juizados especiais o pagamento ocorre em
até dois meses.
O aumento significativo do impacto das RPV’s no orçamento da União levou o
governo a propor várias restrições ao pagamento das requisições. A mudança das regras
foi aprovada no Senado, juntamente com outras duas dezenas de emendas, em 5 de
outubro de 2005, uma quarta-feira. A Câmara tinha até o dia 13, quinta-feira, para
concluir a apreciação da matéria. Certamente, o fato de as RPV’s serem vistas por
grande parte da sociedade e, em especial, dos operadores do direito, como um avanço
importante na garantia de direitos sociais foi decisivo para a definição da estratégia do
governo: procurar aprovar a medida chamando o mínimo possível de atenção.
A repercussão, entretanto, foi amplamente desfavorável à emenda. Os juízes
federais acusaram o governo de “agir na calada da noite” e o Conselho Nacional de
Justiça publicou nota oficial repudiando a alteração na sistemática de pagamento das
RPV’s. O governo ainda pressionou o Congresso, avisando que os benefícios concedidos
a vários setores produtivos pelo texto original da medida provisória só seriam
viabilizados se a emenda fosse aprovada. Nada disso adiantou. O prazo de vigência da
MP expirou sem que ela fosse apreciada, mas o episódio revelou de modo exemplar
como o desrespeito ao processo legislativo pode funcionar em detrimento do debate
público e transparente das leis.
Esse tipo de manipulação e privatização da atividade parlamentar, seja pelo
governo, seja por agentes econômicos, enfraquece os vínculos entre o processo
legislativo e esfera pública. Há quem pense, entretanto, que a preservação desses
vínculos é dispensável ou mesmo indesejável. Aqueles que defendem essa idéia alegam
que: a) a legitimação das decisões tomadas por uma legislatura resolve-se com a eleição
dos parlamentares; b) a democracia representativa supõe a especialização do debate e,
conseqüentemente, seu fechamento nos órgãos institucionais do Legislativo; c) o público
não tem interesse em debater as questões maçantes com as quais a legislatura se depara
ao aprovar leis e, se tivesse, careceria de competência para tanto, uma vez que a
produção das leis teria se transformado contemporaneamente numa atividade
“técnica”97. Se isso fosse verdade, o devido processo legislativo não poderia jamais
reivindicar a condição de direito fundamental. Estaria reduzido a um problema para os
97 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 269.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
112
parlamentares e para o Congresso, que têm a responsabilidade política exclusiva pelas
decisões tomadas.
De acordo com essa perspectiva teórica, portanto, os cidadãos devem se abster do
debate parlamentar, seja porque já opinaram ao eleger representantes, seja porque não
possuem o saber técnico necessário para intervir. Os advogados desse tipo de abordagem
alegam que a ausência de uma cultura política que suscite a participação popular
corrobora que o povo não está interessado ou não é suficientemente preparado para a
tarefa de participar da produção das leis.
Essa é uma objeção que não merece crédito. Ela reflete uma postura ao mesmo
tempo cínica e elitista, apoiada sob o argumento conveniente de que o “povo é assim
mesmo”. Oliveira Vianna, um dos intelectuais conservadores mais influentes da história
brasileira, gostava de repetir que devíamos abandonar a “vã expectativa de mudar de
natureza a golpes de leis ou de Constituições”98. O povo, entretanto, “não é um dado
histórico naturalizado e ontologizado, é um problema, não uma solução”99. Podemos
aprender essa lição com a guerra civil norte-americana, com os difíceis processos de
unificação de Alemanha e Itália, com os conflitos regionais espanhóis, com o debate
sobre a necessidade de uma constituição para a Europa ou com a própria história
brasileira, repleta de momentos de crise federativa. Em que medida o povo está
representado na constituição e em que medida o povo representa a constituição em sua
prática cotidiana? Essa relação será sempre de tensão, nunca de superposição. O que
importa ressaltar é que, em grande medida, a institucionalização democrática por meio
da constituição catalisa o processo de debate público, esse fluxo de comunicação sobre
nossa comunidade política que aqui chamamos “povo”.
Negar efetividade às normas que regulam o processo legislativo é estimular a
autonomização do parlamento, é cercear o desenvolvimento desse “povo” que funciona
como instância crítica do poder instituído. É condená-lo à eterna tutela de uma elite
burocrática, especializada em reduzir questões políticas a “problemas técnicos”.
PROTEÇÃO JURISDICIONAL DO DIREITO AO DEVIDO PROCESSO
LEGISLATIVO
98 VIANNA, Oliveira. Instituições políticas brasileiras. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. p. 129. 99 CARVALHO NETTO, Menelick. A hermenêutica constitucional e os desafios postos aos direitos fundamentais. In: SAMPAIO, José Adércio L. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 152.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
113
O direito norte-americano criou a doutrina das questões políticas para designar
controvérsias a respeito das quais o Judiciário não deveria se pronunciar, reservando sua
solução aos poderes políticos. Essa doutrina e seus desenvolvimentos jurisprudenciais
exerceram alguma influência sobre o pensamento jurídico brasileiro. Rui Barbosa foi
responsável, entretanto, por firmar, desde logo, a idéia de que a doutrina das questões
políticas não poderia ser invocada para afastar da apreciação judicial a violação a
direitos individuais. Nessa hipótese, a interferência do Judiciário sobre o Legislativo ou
sobre o Executivo seria sempre legítima e conforme o princípio da independência e
harmonia entre os poderes.
Entre as matérias tratadas como questões políticas ao longo de nossa experiência
constitucional, figuram os chamados atos interna corporis praticados pelas Casas
Legislativas. A expressão interna corporis designa algo que é do exclusivo interesse de
um órgão, de sua “economia interna”, como alguns costumam dizer. Essa relativa
imunidade dos atos interna corporis é uma tradição que remonta ao direito parlamentar
inglês. Já em 1689, o Bill of Rights proclamava que “a liberdade de palavra e os debates
ou processos parlamentares não devem ser submetidos à acusação ou apreciação em
nenhum tribunal ou em qualquer outro lugar que não seja o próprio Parlamento”100. É
óbvio, entretanto, que essa tradição foi fundada num contexto histórico muito diferente
do nosso e, por essa razão, entre outras, não pode ser absolutizada. É possível que
algumas matérias tratadas na esfera parlamentar sejam reputadas como questões
internas, mas, certamente, a condução do processo legislativo num Estado democrático
de direito não pode estar entre elas.
O Supremo Tribunal Federal, entretanto, vem afirmando de forma recorrente que
a interpretação das normas dos regimentos internos das Casas Legislativas enquadra-se
entre as matérias insuscetíveis de apreciação judicial. Segundo a Corte, “o fundamento
regimental, por ser matéria interna corporis, só pode encontrar solução no âmbito do
Poder Legislativo, não ficando sujeito à apreciação do Poder Judiciário”101. De acordo
com a jurisprudência dominante, quando se trata de irregularidades no processo
legislativo, há que se fazer uma distinção entre o descumprimento de normas
regimentais das Casas Legislativas, quando temos uma questão interna corporis, na qual
o Judiciário não deve interferir, e a violação “direta” de uma norma constitucional,
100 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7ª. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 857. 101 MS 22.183-DF, Rel. Min. Marco Aurélio (Diário da Justiça, 12.12.1997, p. 65569).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
114
hipótese na qual o controle judicial está autorizado. Em poucas palavras, a menos que
ocorra descumprimento de preceito expresso no texto constitucional, a violação do
devido processo legislativo não acarreta nenhuma conseqüência jurídica.
Nessa mesma linha, o STF entende que a legitimidade para reclamar
judicialmente a observância do processo legislativo é apenas do parlamentar. O tribunal
trata a questão como se estivesse diante de um “interesse particular e exclusivo dos
deputados e senadores”, e “jamais referida à produção da lei como afeta à cidadania em
geral”102.
A idéia de que, as normas de processo legislativo geram “direitos subjetivos”103
para os parlamentares é, no mínimo contra-intuitiva. Não que um deputado ou senador
esteja impedido de reivindicar o cumprimento do regimento interno da Casa a qual
pertence ou da Constituição. A questão é que, ao fazê-lo, ele não age no exercício de um
direito que lhe é próprio. Primeiro porque a regularidade do processo legislativo é
indisponível, isto é, a observância das normas regimentais e constitucionais que regulam
a matéria não é uma faculdade do parlamentar. Segundo, porque deputados e senadores
exercem mandato, isto é, representam interesses alheios por meio do exercício de
prerrogativas às quais, no exercício de suas funções, ele sequer pode renunciar. Em
suma, não se trata de um direito subjetivo.
Mas a questão é: quem tem direito a exigir que os procedimentos constitucionais
e regimentais sejam observados no momento de produção das leis? Apenas os
parlamentares? Aqueles que respondem afirmativamente à essa questão lembram o fato
de que normas internas do parlamento, por força do princípio da legalidade, não têm o
condão de gerar obrigações imponíveis a terceiros estranhos ao Poder Legislativo. Disso
não decorre, porém, que essas mesmas normas sejam incapazes de gerar direitos para
além dos muros do Congresso Nacional. Ainda que caiba ampla discussão sobre os
instrumentos processuais adequados, bem como sobre o momento em que tais
instrumentos podem ser manejados, é evidente que todo cidadão tem direito ao devido
processo legislativo.
E mais: a afirmação de tal direito pode ter como base tanto normas
constitucionais quanto normas regimentais. O ex-Ministro do STF, Sepúlveda Pertence,
durante um julgamento em que se debatia o processo de reforma constitucional, disse
102 CATTONI, Marcelo. Devido processo legislativo: uma justificação democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000. p. 24. 103 MS 24.642-1–DF, Rel. Min. Carlos Velloso (Diário da Justiça, 18.6.2004, p. 45), entre outros.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
115
não se sentir autorizado a afirmar categoricamente que “da violação da norma regimental
não pode surgir jamais uma questão susceptível de solução jurisdicional”. O essencial,
para o ex-Ministro, seria “saber, seja qual for a norma jurídica invocada, se há, em tese,
direito subjetivo a proteger”104.
A distinção entre violação direta de norma constitucional e indireta (violação
reflexa, por meio de ofensa a normas regimentais), apesar de popular, é falaciosa. Pelo
entendimento jurisprudencial, uma violação à Constituição só é direta se puder ser
aferida sem necessidade de “exame prévio de norma infraconstitucional”. Uma violação
ao princípio do devido processo legal, portanto, nunca pode ser “direta” nesse sentido,
pois o princípio requer, exatamente, que a autoridade constituída comporte-se de acordo
com uma norma infraconstitucional, seja ela a lei, seja o Regimento Interno da Câmara
ou do Senado. Pelo entendimento vigente, o princípio só pode ser violado
“indiretamente”, o que levaria a impossibilidade de conhecer questões constitucionais
resultantes de seu descumprimento.
Essa, entretanto, não é – e nem poderia ser – a realidade dos órgãos de prestação
jurisdicional. A solução supostamente objetiva oferecida pelo critério “violação direta-
indireta” tem, tão-somente, permitido que o fundamento justificador da decisão de
interferir ou não no processo legislativo permaneça oculto. Explicando melhor: o critério
vale para determinadas hipóteses e não vale para outras. Vale, por exemplo, para afastar
o controle judicial do processo legislativo em sentido estrito, mas não vale
(corretamente, pensamos) quando se trata de atos praticados no curso de CPI’s e
processos por quebra de decoro parlamentar. Nesses casos os cidadãos e parlamentares
investigados têm obtido sucesso na imposição judicial do devido processo legal aos
órgãos legislativos, ainda que com base em violações “indiretas” da Constituição. Um
exemplo paradigmático é o MS nº 25.594-DF105 no qual deputados acusados de
envolvimento no esquema do “mensalão” anularam o encaminhamento de processos
disciplinares ao Conselho de Ética por parte da Mesa Diretora da Câmara com base no
desrespeito a uma norma aprovada pela própria Mesa, no exercício de competência
privativa para regulamentar o Regimento Interno106. Estamos falando, portanto, de uma
norma de hierarquia inferior à lei, isto é, de um mero regulamento administrativo.
104 MS 22.503-DF, Rel. Min. Marco Aurélio (Diário da Justiça, 6.6.1997). 105 Decisão do então Presidente do STF, Min. Nelson Jobim, deferindo cautelar em mandado de segurança. 106 Trata-se do Ato da Mesa nº 17, de 2003.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
116
Em tais casos o Tribunal justifica a interferência no Legislativo pela iminência de
violação a direitos fundamentais dos investigados. Ora, da mesma forma que a decisão
arbitrária de uma CPI fere direitos fundamentais do cidadão sob investigação, a lei
aprovada com desrespeito às normas que regem o processo legislativo fere o direito
fundamental de todos os cidadãos ao devido processo legislativo. A lei é geral e abstrata,
vale indistintamente para qualquer um. É difícil compreender porque o conjunto dos
cidadãos não pode usufruir da mesma proteção que o Tribunal garante aos políticos
investigados por crimes ou por quebra de decoro parlamentar. O fundamento invocado
pelo STF para justificar o controle sobre as CPI’s e os Conselhos de Ética desqualifica,
por si só, as razões que o próprio tribunal apresenta para negar-se a garantir o devido
processo legislativo.
A desconfiança acerca do uso estratégico e pouco transparente da distinção entre
“violação direta” e “violação indireta” aumenta quando analisamos episódios em que, a
despeito do evidente descumprimento do texto constitucional, o Tribunal prefere uma
postura permissiva. Um exemplo recente envolve a apreciação de vetos pelo Poder
Legislativo. De acordo com a Constituição, se o Presidente da República veta total ou
parcialmente um projeto de lei, ele deve devolvê-lo ao Congresso, que tem a palavra
final sobre a matéria. Segundo os §§ 4º e 6º do artigo 66 da Constituição, uma vez
recebido o veto, o Congresso deve deliberar sobre ele no prazo de 30 dias, seja para
mantê-lo, seja para derrubá-lo. Esgotado esse prazo sem deliberação, o veto passaria a
figurar necessariamente na pauta do Congresso, “sobrestadas as demais proposições, até
sua votação final”. Em outras palavras, antes de votar o veto, não se pode votar mais
nada.
Pois bem. O Congresso foi convocado para uma reunião em 11 de abril de 2006,
e, em sua pauta, constava a votação do projeto de lei de diretrizes orçamentárias. Havia,
entretanto, centenas de vetos pendentes de deliberação por mais de 30 dias, sendo que
alguns se encontravam há anos aguardando decisão do Congresso sobre sua manutenção
ou rejeição. Essa situação (que se perpetua até hoje) é fruto de uma interpretação no
mínimo questionável do regimento comum do Congresso Nacional, que permite, contra
a determinação constitucional, que os vetos permaneçam por anos a fio pendentes de
deliberação, numa espécie de limbo jurídico107. De acordo com a Constituição, portanto,
107 Nesse sentido, conferir a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.719, ajuizada pelo PSOL.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
117
o projeto de lei de diretrizes orçamentárias somente poderia ser votado após a apreciação
dos vetos pendentes.
Um mandado de segurança foi impetrado contra o ato do Presidente do
Congresso que fixou a pauta da sessão desconsiderando os vetos pendentes de
apreciação108. O Ministro Sepúlveda Pertence, entretanto, negou o pedido. De acordo
com o Ministro, “o sobrestamento de todas as demais proposições legislativas,
determinado pelo art. 66, § 6º, da Constituição, pressupõe a inclusão na ordem do dia
das mensagens presidenciais de veto não apreciadas no prazo [algo que, é bom que se
diga, apenas o Presidente do Congresso possui competência para fazer]”. Em outras
palavras, de acordo com esse raciocínio, o Presidente do Congresso pode impedir por ato
próprio a apreciação de um veto aposto pelo Presidente da República a um projeto de lei
aprovado pelo Congresso, impossibilitando a conclusão do processo legislativo. Para
isso, basta que ele nunca coloque em pauta esse veto. A interpretação do STF subverte a
Constituição Federal, pois concede poder soberano ao Presidente do Congresso para
tornar definitivo o pronunciamento do Presidente da República sobre um projeto de lei,
quando, nesse tipo de matéria, a última palavra é do Poder Legislativo.
É óbvio que, havendo vetos pendentes de deliberação por mais de trinta dias, o
sobrestamento de todas as proposições legislativas não pressupõe que o Presidente do
Congresso tenha incluído os vetos em pauta. Pelo contrário, a Constituição obriga o
Presidente do Congresso a incluí-los na pauta109. Pela interpretação do STF, o
descumprimento, por parte do Presidente do Congresso, de sua obrigação constitucional
de colocar em pauta o veto, não é sancionado, mas premiado. Ao descumprir seu dever
constitucional, o Presidente do Congresso ganha a faculdade de estabelecer a pauta que
bem entender, ao arrepio da prioridade constitucional assegurada aos vetos.
Os exemplos acima problematizam os critérios adotados pelo STF para decidir
acerca de quando interferir ou não do processo legislativo. Antes de concluir, entretanto,
é importante ressaltar que a crítica não se dirige ao caráter seletivo da atuação do
Tribunal. Parece claro que o ofício de qualquer corte envolve necessariamente
seletividade, isto é, definição de prioridades, formulação de uma agenda. O problema
surge quando os critérios utilizados para decidir o que é ou não relevante são pouco
108 Mandado de Segurança nº 25.939-DF, Relator Min. Sepúlveda Pertence. Íntegra da decisão monocrática disponível em: http://stf.gov.br/imprensa/pdf/ms25939.pdf. 109 A Constituição dispõe, textualmente, que “esgotado sem deliberação o prazo estabelecido no § 4º [30 dias], o veto será colocado
na ordem do dia da sessão imediata, sobrestadas as demais proposições, até sua votação final”.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
118
transparentes e, ao invés de esclarecer, ocultam os fundamentos das decisões do
Tribunal, as quais, ainda que definitivas, devem permanecer abertas à crítica.
ALTERNATIVAS EM CONSTRUÇÃO
Hoje, a garantia da livre formação da opinião pública por meio da afirmação dos
direitos fundamentais e a proteção às condições da gênese democrática da lei, por meio
da imposição do devido processo legislativo, são as principais tarefas da jurisdição
constitucional. Quanto à primeira, já é possível perceber avanços significativos. No que
tange à segunda, entretanto, ainda há muito por fazer. O primeiro passo é ultrapassar a
postura formalista que tem marcado a atuação do STF. Países como Colômbia110, Costa
Rica111 e Espanha112 já há algum tempo adotam entendimento segundo o qual a violação
de normas regimentais pode, em determinadas circunstâncias, acarretar a
inconstitucionalidade das leis produzidas pelo procedimento viciado. Os tribunais desses
países consideram que os regimentos internos das assembléias legislativas, mesmo não
integrando o texto constitucional, devem ser considerados como normas de hierarquia
constitucional quando seu descumprimento impede a formação democrática das leis.
110 MUÑOZ, Eduardo Cifuentes. La jurisdicción constitucional en Colombia. In: GARCÍA BELAUNDE, D.; FERNÁNDEZ SEGADO, F. (Coord.). La jurisdicción constitucional en Iberoamerica. Madrid: Ed. Dykinson, 1997. p. 476. A Corte Constitucional colombiana já reconheceu sua competência para declarar a inconstitucionalidade de leis produzidas com violações ao processo legislativo. A este respeito, a Sentecia C-577/2006, disponível: http://www.ramajudicial.gov.co/csj_portal/index.jsp, na qual se afirma: “a violação dos trâmites próprios do procedimento legislativo que configurem vícios de envergadura suficiente para declarar a inconstitucionalidade de uma lei podem ser materializados por meio de infrações a disposições contidas na Lei 5ª de 1992 (Regimento do Congresso)”. 111 A Lei de Jurisdição Constitucional da Costa Rica (Lei 7.135, de 1989, disponível em: http://www.cesdepu.com/nbdp/ljc.htm) dispõe, em seu artigo 73, c, que o Regimento Interno da Assembléia Legislativa integra o parâmetro de legitimidade constitucional, isto é, o conjunto de normas com as quais todo o direito ordinário deve guardar compatibilidade formal e material. De acordo com o mesmo dispositivo, cabe ação de inconstitucionalidade “quando, na formação das leis, se viole algum requisito ou trâmite substancial previsto na Constituição ou, se for o caso, estabelecido no Regulamento de Ordem, Direção e Disciplina da Assembléia Legislativa”. Ver VALLE, Ruben Hernandez. La jurisdicción constitucional en Costa Rica. In: GARCÍA BELAUNDE, D.; FERNÁNDEZ SEGADO, F. (Coord.). La jurisdicción constitucional en Iberoamerica. Madrid: Ed. Dykinson, 1997. p. 511. 112 De acordo com a célebre Sentencia 99/1987, prolatada em 11.6.1987 e publicada no BOE nº 152, “ainda que o art. 28.1 Lei Orgânica do Tribunal Constitucional não mencione os Regimentos parlamentares entre aquelas normas cuja infração pode acarretar a inconstitucionalidade da lei, não há dúvida de que, tanto pela intangibilidade de tais regras de procedimento frente à ação do legislador como, sobretudo, pelo caráter instrumental que essas regras têm em face de um dos valores superiores de nosso ordenamento, o pluralismo político (art. 1.1 CE), a inobservância dos preceitos que regulam o procedimento legislativo poderia viciar de inconstitucionalidade a lei quando tal inobservância altere de modo substancial o processo de formação da vontade no seio das Câmaras” (destacamos). Ainda na jurisprudência espanhola, é interessante conferir a Sentencia 227/2004, prolatada em 29.11.2004 e publicada no BOE nº 3, suplemento, de 4 de janeiro de 2005: “Os Regulamentos parlamentares, que têm força de lei e que, em algumas situações podem ser considerados como normas interpostas entre a Constituição e as leis e, por isso, em tais casos, são condição de validade constitucional dessas últimas, cumprem uma função ordenadora da vida interna das Assembléias parlamentares, intimamente vinculada a sua natureza representativa e ao pluralismo político de que são expressão e reflexo (arts. 1.1 e 66.1 CE)”.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
119
Esse tipo de posição encontra respaldo na doutrina constitucional113, mas sua
penetração na jurisprudência brasileira ainda é muito pequena. Algumas decisões
isoladas em âmbito estadual chamam a atenção, como o julgamento, pelo Tribunal de
Justiça do Estado do Paraná, do Mandado de Segurança nº 37, no início da década de 70.
Os regimentos internos, de acordo com a decisão, seriam “complementos necessários
das leis constitucionais”, cuja violação é sancionada com a inconstitucionalidade. O
Tribunal afirmou, ainda, que “um ato legislativo é inconstitucional quando se formou em
desacordo com as normas regimentais que deveriam lhe dar forma e essência”114.
Em decisões mais recentes, entretanto, não é comum encontrar afirmações tão
contundentes. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal, por exemplo, sustentou que a
Câmara Legislativa havia violado o processo legislativo durante a apreciação de um
veto. O presidente da Câmara acolhera questão de ordem para anular uma votação já
concluída, na qual o veto sob análise havia sido derrubado. Submetido a nova votação
dois dias depois, o veto foi mantido. Segundo o TJ-DF, a decisão de submeter a nova
votação a matéria vencida não era produto de uma interpretação do regimento interno
(algo que a jurisprudência do STF tem reiteradamente descrito como matéria interna
corporis), mas de “deliberada violação de normas regimentais”. A decisão foi objeto de
recurso ao Superior Tribunal de Justiça115, que manteve a posição do TJ-DF.
Ainda no Distrito Federal, outra decisão reconhece que o princípio constitucional
da proporcionalidade partidária autorizava o Tribunal de Justiça a interferir no processo
eleitoral para a Mesa Diretora da Câmara Legislativa. Segundo o acórdão, mesmo sujeita
à regulamentação interna de cada Casa, a eleição para as mesas diretoras deveria
observar as normas constitucionais aplicáveis116. Essa decisão é especialmente
interessante, pois contraria um precedente do Supremo Tribunal Federal a respeito da
matéria117. Naquela oportunidade, o STF foi confrontado com o indeferimento de uma
candidatura do Partido dos Trabalhadores ao cargo de Terceiro-Secretário da Mesa da
Câmara, sob o argumento de que o partido já possuía candidato inscrito à Presidência da
113 Conferir, entre outros, CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7ª. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p.922-923 e LAVIÉ, Humberto Quiroga. La potestad legislativa. Buenos Aires: Zavalia, 1993, p. 13 e ss. 114 Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 111, I-XII, p. 313. 115 REsp nº 251.340-DF, Rel. Min. João Otávio de Noronha. Diário da Justiça, 20.3.2006. 116 Mandado de segurança autuado sob o número 2003 00 2 000038-7, Rel. designado Des. Vaz de Mello (Diário da Justiça de 14.11.2006, Seção III, p. 87). 117 MS 22.183-DF, Rel. Min. Marco Aurélio (Diário da Justiça, 12.12.1997, p. 65569).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
120
Casa118. O Tribunal entendeu que a decisão fundava-se “exclusivamente, em norma
regimental referente à composição da Mesa e indicação de candidaturas para seus cargos
(art. 8º do Regimento Interno da Câmara dos Deputados)”. E, ainda: “o fundamento
regimental, por ser matéria interna corporis, só pode encontrar solução no âmbito do
Poder Legislativo, não ficando sujeito à apreciação do Poder Judiciário”. É precisamente
essa posição que o TJ-DF contradiz ao afirmar que o exame de ato do Legislativo
fundado em norma regimental é “da essência do Estado Democrático de Direito” e não
ofende o princípio da separação de poderes119. A votação de projetos de lei “não
constitui procedimento circunscrito ao âmbito dos assuntos internos da Corporação
porquanto interessa aos cidadãos e aos demais Poderes, devendo submeter-se ao crivo do
Judiciário”.
Há vários outros casos de controle judicial do processo legislativo em razão de
violação de normas regimentais espalhados pelos Tribunais estaduais. O Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul120 defendeu, recentemente, que a ausência de convocação
de vereador para sessão extraordinária nos termos do Regimento Interno da Câmara de
Vereadores havia viciado as deliberações adotadas. Segundo o Tribunal, “o Regimento
Interno da Câmara de Vereadores de Mata exige que o edil, para sessão extraordinária,
seja convocado por escrito. Disto não há prova. Por sinal, alegou-se que não se localizou
o impetrante – via telefone. Confirma-se, indiretamente, o vício”. Todos os atos
praticados na sessão foram anulados.
O Tribunal de Justiça de Pernambuco121 anulou, em outubro de 2006, emenda à
lei orgânica do município de Alagoinha que restringia o direito de vereadores a
concorrerem ao cargo de Presidente da Mesa Diretora da Câmara com fundamento em
violações regimentais, alegando que “a promulgação da emenda questionada sob o pálio
de um processo legislativo viciado consubstancia ofensa ao princípio constitucional do
devido processo legal”.
118 Para uma análise detalhada dos diversos problemas relacionados à aplicação do princípio da proporcionalidade partidária às eleições da Mesa da Câmara dos Deputados, Cf. MARIANI, Onivaldo Moisés. Aplicação do princípio da proporcionalidade partidária na Câmara dos Deputados. Monografia (especialização em análise da constitucionalidade). Universidade do Legislativo. Brasília: UNILEGIS, 2006. 119 Rel. Des. Jeronymo de Souza, Conselho Especial. Diário da Justiça de 11/11/1997, Seção III, p. 27.434. 120 Mandado de Segurança (reexame necessário), processo nº 70013304456. 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. A íntegra do acórdão encontra-se disponível no sítio do Tribunal: http://www.tj.rs.gov.br/site_php/consulta/download/exibe_documento.php?ano=2006&codigo=271163. 121 Apelação cível nº 124.329-4, 8ª Câmara Cível. Julgamento em 26.10.2006.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
121
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais122, por sua vez, reconheceu sua
competência para examinar a alteração irregular do Regimento Interno da Câmara
Municipal de Dom Cavati. “Segundo o art. 160 do Regimento Interno da Câmara
Municipal, somente pelo voto da maioria absoluta dos membros do Poder Legislativo do
Município (5 Vereadores) aprova-se, validamente, proposição sobre a modificação ou
reforma do Regimento Interno. Entretanto, para se atingir o quorum da maioria absoluta
necessário à aprovação da Resolução Legislativa 13/2003, que pretendia modificar o art.
164 do Regimento Interno, foi necessário o voto do Presidente da Câmara Municipal,
além das hipóteses que lhe era permitido votar, previstas, justamente, no artigo que se
pretendia alterar. O processo legislativo previsto no Regimento Interno da Câmara de
Vereadores para a aprovação de Projetos de Resolução Legislativa deve ser seguido à
risca quando da elaboração da norma. Se o Presidente da Câmara, impedido de votar,
exerce tal prerrogativa e a matéria é aprovada, nulo é o ato legislativo, por afronta direta
aos preceitos do Regimento Interno e, conseqüentemente, ao Princípio da Legalidade”.
Essas decisões mostram que muitas autoridades judiciais consideram o controle
da regularidade do processo legislativo como algo ínsito às suas funções, ou, para usar as
palavras do TJ-DF, “da essência do Estado Democrático de Direito”. Há, entretanto, dois
pontos que merecem atenção. Primeiro, em todos os casos analisados acima, o
cumprimento das disposições legais acerca do devido processo legislativo é reivindicado
por um parlamentar. Dessa forma, os precedentes não apontam para um avanço no que
se refere à superação da idéia segundo a qual a regularidade do processo legislativo é um
direito exclusivo do parlamentar, apesar de afirmarem a possibilidade de controle
judicial sobre o processo de formação da lei.
O segundo ponto é mais delicado. Como a regularidade do processo legislativo é
sempre tratada como direito subjetivo do parlamentar, o judiciário analisa os problemas
por meio de mandados de segurança. Ocorre que, após promulgada a lei, a anulação de
atos praticados no curso do processo legislativo acaba tendo como efeito a anulação da
própria lei. Tal situação apresenta uma dificuldade: a anulação de uma lei e sua
supressão do mundo jurídico demandam, de acordo com nossa Constituição, um
procedimento especial. Esse procedimento não pode ser iniciado por qualquer um, há um
rol restrito de legitimados e também um rito particular, que difere da apreciação do
mandado de segurança. Apenas o Supremo Tribunal Federal pode declarar a nulidade de
122 Reexame Necessário n° 1.0309.04.003326-3/001, em sede de Mandado de Segurança, publicado no Diário Oficial do Estado de Minas Gerais, de 8.3.2006.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
122
uma lei em face da Constituição Federal nesse tipo de procedimento, denominado de
controle de constitucionalidade em abstrato. Os Tribunais de Justiça dos estados
também podem fazê-lo, mas apenas confrontando leis municipais e estaduais com a
Constituição Estadual. Em uma palavra: as decisões analisadas são vistas pela
jurisprudência dominante como uma invasão de competência do STF: o mandado de
segurança não pode substituir a ação direta de inconstitucionalidade.
Uma das formas de equacionar essa dificuldade é tratar as violações ao devido
processo legislativo, seja pelo descumprimento de norma constante do texto
constitucional, seja pelo descumprimento de normas regimentais diretamente executoras
da Constituição, como verdadeiras inconstitucionalidades, tal como admitido pela
jurisprudência espanhola, colombiana e costa-riquenha. Essa alternativa permitiria que,
após a promulgação da lei aprovada em desconformidade com o processo legislativo, o
cidadão prejudicado pela sua aplicação pudesse questioná-la perante qualquer autoridade
judicial no controle de constitucionalidade difuso, ainda que, nessa hipótese, a decisão
valha apenas entre as partes da ação, isto é, a lei não é apagada do mundo jurídico.
A mesma norma poderia, ainda, ser submetida, por aqueles a quem a
Constituição atribui legitimidade, ao controle de constitucionalidade em abstrato, seja
perante o STF, seja perante os tribunais de justiça estaduais, com vistas à sua supressão
do ordenamento jurídico. Nessa alternativa, o controle judicial do devido processo
legislativo antes da promulgação da norma deveria ser tratado como medida
excepcional, uma vez que a intensificação da interferência do Judiciário sobre o
funcionamento parlamentar pode dificultar ou mesmo impossibilitar o curso do processo
legislativo, o que, por certo, é indesejável123.
Em síntese, um arranjo desse tipo, mesmo que possa despertar problemas (e
certamente despertará), tende a reforçar o controle público sobre a atividade parlamentar
e estimular no âmbito do Congresso, das assembléias legislativas e câmaras de
123 A argüição de descumprimento de preceito fundamental poderia se prestar a essa função. A vantagem sobre o mandado de segurança é evidente: após a promulgação da norma, a ação poderia seguir seu curso normalmente, em geral, pela sua conversão em ação direta de inconstitucionalidade (supondo que a ação direta de inconstitucionalidade e a argüição de descumprimento de preceito fundamental são fungíveis). Isso não esgota, é claro, o debate sobre a possibilidade de se continuar a admitir (e sob quais circunstâncias) o mandado de segurança impetrado por parlamentar. Sustentar o descabimento do mandado de segurança em qualquer hipótese pode tornar difícil o acesso de legislaturas municipais e estaduais à tutela jurisdicional em casos nos quais a interferência do Judiciário no curso do processo legislativo se mostra justificável, em especial nos casos relacionados a cerceamento de prerrogativas do mandato parlamentar.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
123
vereadores, uma cultura de respeito às normas que regem o processo legislativo
democrático.
CONCLUSÃO
Como sugerimos no início deste texto, para evitar uma abordagem reducionista
do acesso à justiça devemos pensá-lo sob a chave da efetividade dos direitos
fundamentais. Confinar a realização da justiça ao Poder Judiciário é, já de saída,
fracassar em desenvolver essa concepção. O Judiciário não pode garantir, pelas suas
próprias forças, a efetividade da Constituição. Numa sociedade democrática, a
Constituição é um processo vivo, aberto, em permanente construção. Seu sentido
normativo está em jogo não apenas nas decisões do STF, mas em todos os níveis de
positividade do direito, em cada reivindicação que lhe dirigem os movimentos sociais,
no trabalho cotidiano da administração pública, na condução da política legislativa e
assim por diante.
Isso não quer dizer, entretanto, que o Judiciário não cumpra um papel importante
na luta pela efetividade dos direitos fundamentais. No caso da garantia ao devido
processo legislativo, a participação do Judiciário é indispensável, pois ela neutraliza a
imposição ilegítima da maioria sobre a minoria e oferece a possibilidade de uma decisão
imparcial. Ao velar pelas condições procedimentais da formação livre da opinião pública
e da vontade política, os tribunais buscam garantir a abertura da Constituição,
assegurando que as decisões sobre as leis que nos regem sejam tomadas em meio a um
debate efetivamente público, e não arquitetadas às escondidas sob exclusiva influência
de interesses privados e particulares (aí incluídos os do governo). Nesse contexto, “o
procedimento formal se converte em garante da justeza e justiça material”124.
Uma jurisdição constitucional democrática não se substitui ao legislador, mas
procura contribuir para a manutenção de condições nas quais uma democracia
deliberativa possa funcionar de forma crível. Assumir esse desafio é transformar
radicalmente a concepção de acesso à justiça que tem orientado o debate público sobre o
tema. A realização da justiça é promoção de cidadania. Justiça não é um bem que a
Administração outorga ao “contribuinte-cliente”; é fruto do envolvimento em um
processo de participação cujos resultados são incertos, mas que, devem ser construídos a
partir do confronto aberto e transparente dos argumentos em jogo.
124 HÄBERLE, Peter. Pluralismo y constitución: estudios de teoría constitucional de la sociedad aberta. Tradução: Emilio Mikunda. Madrid: Tecnos, 2002. p. 144.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
124
Sintetizando as conclusões desse esforço de investigação exploratório sobre o
direito ao devido processo legislativo, poderíamos afirmar que:
a) o projeto da Constituição de 1988 passa pela construção de uma cultura
política forjada no conceito de cidadania, isto é, na afirmação do direito à participação
ativa do processo de construção do próprio direito. Isso se dá de formas muito
diferentes: por meio da fiscalização de políticas públicas, por meio do tratamento
imparcial dos interesses em confronto num processo judicial, por meio da manifestação
pública de demandas sociais excluídas do discurso político, e assim por diante. No caso
do processo legislativo, a afirmação dessa cultura de cidadania passa pela garantia de
que os cidadãos afetados pelas decisões do parlamento terão oportunidade de interferir
no debate, de pressionar publicamente seus representantes e de apresentar argumentos
relevantes para a formação da lei. A doutrina dos atos interna corporis afasta-se dessa
cultura, na medida em que legitima uma negativa de prestação jurisdicional que
contribui para estreitar o acesso à justiça, impondo limites e obstáculos à participação
social no processo legislativo;
b) o entendimento predominante no Supremo Tribunal Federal, representado pela
doutrina dos atos interna corporis, favorece a privatização do processo legislativo e a
autonomização dos órgãos de representação. Isso equivale à supressão da vocação
emancipatória do direito ao devido processo legislativo, ligada, em primeira linha, à
noção de autonomia dos sujeitos. A regularidade do processo legislativo não é vista
como garantia da cidadania, mas como questão de “economia interna” do Poder
Legislativo;
c) contra a doutrina dos atos interna corporis, existem alternativas consolidadas
em outras experiências jurídicas que podem ensinar muito ao Brasil, mas,
principalmente, há alternativas em construção dentro de nossa própria cultura jurídica.
Tais alternativas, entretanto, desenvolvem-se ainda de forma errática e pouco
sistemática. Elas não freqüentam os livros de doutrina, mas o dia-a-dia dos órgãos
judiciais, confrontados com todo tipo de abuso praticado em nome do Poder Legislativo
nos vários níveis da Federação;
d) as premissas teóricas da doutrina dos atos interna corporis estão, hoje, a ruir.
Não são apenas as decisões esparsas de tribunais estaduais e mesmo de tribunais
superiores que apontam para isso; são as decisões do próprio STF no controle da
atividade parlamentar pertinente às CPI’s e aos processos políticos disciplinares. Tais
decisões esclarecem que os direitos fundamentais valem como trunfos contra a discrição
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
125
política dos órgãos do Congresso. Se reconhecermos que as normas que regem o
processo legislativo não geram direito apenas para os parlamentares, mas para todos os
cidadãos, como admitir que seu desrespeito possa passar imune à censura judicial?
Diante desse quadro, o projeto de um Observatório da Justiça Brasileira
confronta-se com vários desafios. Procuramos, abaixo, sistematizar alguns deles:
a) Investigar e dar visibilidade às formas de participação social no debate
parlamentar, bem como analisar o papel desempenhado pelas normas que regulam o
processo legislativo na promoção e garantia dessa participação;
b) Investigar de que forma o debate público acerca de uma medida legislativa se
atualiza e repercute na atividade da Administração e do Poder Judiciário, instâncias
encarregadas da aplicação do direito;
c) Compor um banco de informações sobre a produção jurisprudencial da justiça
estadual, federal e dos tribunais superiores acerca do controle do processo legislativo e
organizar sua atualização;
d) Analisar e sistematizar práticas judiciais e parlamentares latentes e, por vezes
intuitivas, relacionadas à garantia do devido processo legislativo. Confrontar essas
práticas com as alternativas consolidadas, interrogando-as a respeito de sua contribuição
para a efetividade dos direitos fundamentais e a afirmação da democracia.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
126
REFERÊNCIAS
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7ª.
ed. Coimbra: Almedina, 2003.
CARVALHO NETTO, Menelick. A hermenêutica constitucional e os desafios
postos aos direitos fundamentais. In: SAMPAIO, José Adércio L. Jurisdição
constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
CATTONI, Marcelo. Devido processo legislativo: uma justificação democrática
do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo.
Belo Horizonte: Mandamentos, 2000.
DERRIDA, Jacques. Declarations of independence. Tradução: Tom Keenan e
Tom Pepper. In: DERRIDA, Jacques. Negotiations: interventions and interviews
– 1971-2001. Princeton: Princeton University Press, 2002.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 4ª. ed. São
Paulo: Saraiva, 2001.
HÄBERLE, Peter. Pluralismo y constitución: estudios de teoría constitucional de
la sociedad aberta. Tradução: Emilio Mikunda. Madrid: Tecnos, 2002.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. II.
Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
LAVIÉ, Humberto Quiroga. La potestad legislativa. Buenos Aires: Zavalia,
1993.
MARIANI, Onivaldo Moisés. Aplicação do princípio da proporcionalidade
partidária na Câmara dos Deputados. Monografia (especialização em análise da
constitucionalidade). Universidade do Legislativo. Brasília: UNILEGIS, 2006.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
127
MUÑOZ, Eduardo Cifuentes. La jurisdicción constitucional en Colombia. In:
GARCÍA BELAUNDE, D.; FERNÁNDEZ SEGADO, F. (Coord.). La
jurisdicción constitucional en Iberoamerica. Madrid: Ed. Dykinson, 1997.
ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. Tradução:
Menelick de Carvalho Netto. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. São
Paulo: Cortez, 2007.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ. Mandado de segurança
nº 37. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 111, I-XII, p. 313.
VALLE, Ruben Hernandez. La jurisdicción constitucional en Costa Rica. In:
GARCÍA BELAUNDE, D.; FERNÁNDEZ SEGADO, F. (Coord.). La
jurisdicción constitucional en Iberoamerica. Madrid: Ed. Dykinson, 1997.
VIANNA, Oliveira. Instituições políticas brasileiras. Belo Horizonte: Itatiaia,
1987.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
128
JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E CONCENTRAÇÃO DO ACESSO À
JUSTIÇA: “A VOZ QUE VEM DE CIMA”
Aline Lisbôa Naves Guimarães
Guilherme Cintra Guimarães
Paulo Sávio Maia
Tahinah Albuquerque
Em uma recente entrevista ao jornal Valor Econômico, publicada em 18 de
outubro de 2007, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes analisou
diversas mudanças no perfil institucional do STF ocorridas desde a promulgação da
Constituição de 1988, classificadas pelo jornal como uma “revolução silenciosa no
Supremo”. Sentenças de perfil aditivo, modulação dos efeitos da decisão, critério da
repercussão geral, súmulas vinculantes: são todas elas inovações que estariam
contribuindo, segundo o Ministro, para transformar o tribunal em uma verdadeira “corte
constitucional”, nos mesmos moldes existentes em diversos outros países.
A entrevista é extremamente interessante sob muitos aspectos. Ela transmite, por
assim dizer, um pequeno relato do imaginário que circula na mídia acerca do papel do
poder judiciário como um todo, e de um tribunal constitucional, em particular.
Celeridade, economia processual, eficácia das decisões e segurança jurídica são palavras
de ordem. Questões manifestas que dominam todo o discurso construído em torno desse
novo perfil do Supremo. O judiciário é avaliado a partir de uma lógica guiada pela idéia
do custo/benefício: os juízes devem adotar decisões céleres, rápidas, eficientes, que
possam ser impostas de maneira efetiva na prática e que não causem transtornos
desnecessários em termos de governabilidade e estabilidade econômica.
O mais interessante, no entanto, não são esses aspectos manifestos, mas sim
aquilo que permanece latente, que não está dito de modo expresso, que pode ser
percebido nas entrelinhas. O que está por trás dessa “análise econômica” do judiciário e
dessas inovações que têm modificado o perfil do STF e da jurisdição constitucional
brasileira como um todo? Como observar a observação da mídia e a própria auto-
observação do Supremo – refletida, de certo modo, no discurso do Ministro Gilmar
Mendes – sobre a organização e o funcionamento dos tribunais brasileiros?
O que se tem observado nos últimos anos é uma concentração cada vez maior de
poderes nas mãos do STF. A reforma do judiciário promovida pela Emenda
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
129
Constitucional n ۫45 no final de 2004 confirmou uma tendência que vem desde a
promulgação da Emenda Constitucional nº 3 em 1993, que introduziu a ação declaratória
de constitucionalidade no texto da constituição, e da edição das Leis nº 9.868 e nº 9.882
em 1999, que regularam as ações de controle concentrado de constitucionalidade (ADI,
ADC e ADPF). Uma tendência que se reflete, principalmente, na ampliação das
hipóteses em que o tribunal está autorizado a adotar decisões abstratas de efeitos
vinculantes. Ou seja, decisões não necessariamente ligadas à solução de um caso
concreto específico, mas que têm eficácia geral em relação a toda a administração
pública e aos demais órgãos do poder judiciário, que permitem regular (ou “legislar”
sobre) determinadas questões de forma abstrata, como no exemplo recente da fidelidade
partidária. Uma espécie de intervenção “provisória” e “minimalista”, nas palavras do
Ministro Gilmar Mendes.
Essa concentração de poderes no Supremo pode ser observada sob dois aspectos
distintos. Partindo da lógica econômica do custo/benefício, ela pode ser associada a uma
maior efetividade das decisões judiciais. Uma decisão abstrata de efeitos vinculantes da
nossa “mais alta corte” poderia supostamente resolver questões delicadas que
multiplicam exponencialmente o número de processos nos tribunais. Demandas
repetitivas seriam, então, solucionadas de uma só vez. Além disso, ao “modular os
efeitos da decisão”, o tribunal evitaria a produção de conseqüências eventualmente
gravosas para o governo ou potencialmente negativas para a economia nacional. De
acordo com o Ministro Gilmar Mendes: “Se se tiver que provocar um caos jurídico ou
uma hecatombe econômica, muito provavelmente o tribunal poderia fingir que a lei é
constitucional, porque não quer assumir as conseqüências de uma decisão em sentido
contrário. Se nós pensarmos isso em perspectiva histórica, sana-se o problema para o
futuro, ainda que contemple-se os efeitos verificados no passado. Em questões
tributárias, isto ocorre no mundo todo”.
A questão, todavia, também pode ser analisada a partir de uma outra perspectiva.
Embora a celeridade e a eficácia das decisões judiciais sejam certamente importantes,
até que ponto concentração de poderes é sinônimo de eficiência? De qual eficiência
estamos tratando? Uma eficiência em termos de conveniência política e econômica ou
em termos de democratização do acesso à justiça?
Em relação ao acesso à justiça (ou à concentração do acesso à justiça), uma
observação crítica desse novo perfil do STF pode revelar traços bastante autoritários e
antidemocráticos. E não apenas levando em conta o acesso no seu aspecto formal ou
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
130
tradicional, como possibilidade de recorrer ao judiciário em situações de conflito, mas
também no seu aspecto mais plural e substantivo, como efetivo acesso (ou acessos) aos
diversos meios de concretização de direitos e de articulação democrática e participativa
de demandas por justiça.
A normatividade corrompida
Um risco específico que está presente em toda a atividade judicial é o de
corrupção das normas. Mais especificamente, o de corrupção das normas pelos fatos. O
que também significa uma desconsideração da própria distinção entre normas e fatos.
A distinção normas/fatos constitui um critério básico para a formulação de
decisões jurídicas. Uma espécie de distinção-guia que orienta todas as operações que se
desenvolvem em torno da decisão sobre o que deve e o que não deve ser considerado
direito em um determinado caso. Ela simboliza o fundamento de toda a normatividade.
Quando afirmamos que um direito foi violado, isso significa que as expectativas geradas
acerca do cumprimento de uma norma foram frustradas. O que se esperava (ou o que se
supõe que podia ser esperado) não aconteceu. Contudo, apesar da violação “de fato”, a
expectativa pode ainda ser mantida “de direito”. Ninguém é obrigado a aprender com a
frustração. O direito supostamente nos alivia dessa obrigação.
Toda reivindicação de um direito implica, portanto, uma recusa ao aprendizado.
Uma recusa em aprender com os fatos. Uma possibilidade de afirmar a expectativa
normativa sustentada no direito contra a ocorrência do fato da violação. Nesse processo
de “não aprendizado contrafático”, os tribunais desempenham (“de direito”, mas não
necessariamente “de fato”) um papel relevante. Suas decisões são importantes para a
manutenção da possibilidade de uma afirmação contrafática das normas que prevêem
direitos e garantias.
Em diversas ocasiões, no entanto, os órgãos do poder judiciário desenvolvem
estratégias que permitem inverter, de certa forma, a sua função. Ao invés de garantir
direitos através da afirmação de expectativas normativas em contextos fáticos de
violação, os juízes e tribunais se valem de contingências fáticas, em geral de natureza
política e econômica, para justificar limitações à eficácia das normas, o que significa, na
prática, a sua não aplicação ou a sua aplicação parcial.
A subordinação da eficácia das normas a contingências políticas e econômicas
constitui uma estratégia oculta ou latente de desconstitucionalização. Com base em
argumentos políticos e econômicos, a normatividade da constituição e do direito como
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
131
um todo é corrompida. Permite-se, assim, uma espécie de violação “juridicamente
ordenada” dos direitos dos cidadãos, justificada a partir de critérios como reserva do
possível, proporcionalidade, razoabilidade, ponderação, adequação meios/fins,
governabilidade e estabilidade econômica.
Todos esses critérios têm algo em comum. Eles abrem espaço para que a decisão
seja orientada a partir das suas conseqüências. Normas podem, assim, ser
“relativizadas”. Direitos podem, então, ser “ponderados”. Relativização e ponderação
que são justificadas não a partir do direito, mas sim a partir dos fatos. Evitar déficits nas
finanças públicas, não gerar ingovernabilidade, impedir abalos na economia: estariam os
juízes em condições de controlar esses “efeitos fáticos indesejáveis”?
Tudo indica que não. Os juízes não possuem uma “bola de cristal” que lhes
permita prever o futuro (ou o que será dos fatos no futuro). Cálculos econômicos e
estudos estatísticos certamente não se incluem entre as competências específicas de uma
organização judicial, com seus procedimentos rígidos e seus prazos limitados. O que se
espera de um juiz é a afirmação, no presente, de expectativas frustradas por fatos
passados, e não a subordinação da eficácia presente das normas às conseqüências que
poderão ou não ser produzidas no futuro. Isso não significa que os juízes devam ser
inconseqüentes, mas que, se desejam realmente ser imparciais, não podem decidir com
fundamento em critérios puramente conseqüencialistas.
Esse risco de corrupção política e econômica da normatividade do direito e da
constituição, embora inerente a toda a atividade judicial, está presente, de forma ainda
mais significativa, no contexto do controle concentrado de constitucionalidade
desenvolvido pelo Supremo Tribunal Federal. Isto é, nos casos, cada vez mais
numerosos, em que o STF está autorizado a adotar decisões abstratas de efeitos
vinculantes. Um exemplo interessante pode ser extraído do julgamento de uma das
primeiras ações declaratórias de constitucionalidade propostas junto ao tribunal, a ADC
nº 9, julgada em junho 2001.
Para combater a crise energética que assolava o país à época, mais conhecida
como crise do “apagão”, o governo federal editou uma medida provisória (MP nº 2.148-
1, de 22 de maio de 2001, sucessivamente reeditada) que introduzia diversas regras com
o objetivo de reduzir o consumo interno de energia. Muitas dessas regras eram
polêmicas, pois suspendiam a aplicação de dispositivos do Código de Defesa do
Consumidor na relação entre consumidores e empresas concessionárias, e foram alvo de
um intenso e imediato questionamento judicial.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
132
Tendo em vista evitar o questionamento judicial das medidas e a correspondente
instauração de uma suposta situação de insegurança jurídica, o Presidente da República,
representado pelo Advogado-Geral da União – à época, o atual Ministro do STF Gilmar
Mendes – propôs uma ação declaratória de constitucionalidade junto ao Supremo
Tribunal Federal, com pedido de concessão de medida cautelar. Em 28 de junho de
2001, o STF deferiu, por maioria de votos, a medida cautelar requerida. Em 13 de
dezembro de 2001, a cautelar foi confirmada, e a ação, julgada procedente, também por
maioria de votos.
A maioria do tribunal endossou os argumentos expostos pelo governo na inicial
da ação: diante da situação emergencial de escassez no fornecimento de energia, as
medidas eram essenciais para restabelecer o equilíbrio entre oferta e demanda e evitar,
assim, o risco de um apagão elétrico generalizado. Alguns Ministros, inclusive,
chegaram a argumentar que uma posição contrária do Supremo poderia afetar o suposto
apoio popular conferido à política de racionamento, com efeitos gravosos para a
economia nacional.
Para justificar as medidas do ponto de vista jurídico, o Supremo recorreu ao
princípio da proporcionalidade. As restrições impostas – por meio de medida provisória,
é bom lembrar – aos direitos dos consumidores foram, então, consideradas adequadas e
necessárias ao enfrentamento da crise. Ponderados os direitos em relação aos fatos, o
tribunal conclui que as medidas eram razoáveis e proporcionais. Deveriam, portanto, ser
declaradas constitucionais de forma abstrata e com efeitos vinculantes.
“Forma abstrata” e “efeitos vinculantes”. Na prática, isso significa que o STF
decidiu impedir que as medidas governamentais fossem questionadas em qualquer outro
tribunal, mesmo sem analisar um só caso concreto em que a aplicação da medida
provisória estivesse sendo considerada inconstitucional. Obviamente, não por um motivo
qualquer, mas sim para supostamente evitar, na visão do tribunal, as conseqüências
desastrosas do apagão.
Todavia, o que estava em jogo, no caso, não era necessariamente a aprovação ou
não da política de racionamento em si, mas sim o direito dos consumidores de recorrer
ao judiciário caso se sentissem prejudicados “em concreto”, e não “em abstrato”. Ao
decidir de maneira vinculante que as medidas eram “abstratamente” constitucionais, o
Supremo concentrou em si a competência para o controle de constitucionalidade da MP.
Vale dizer, concentrou e, conseqüentemente, restringiu toda e qualquer possibilidade
“concreta” de acesso à justiça. Os direitos foram postos na balança e o que pesou mais
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
133
foram os fatos. As eventuais expectativas quanto ao cumprimento das normas do Código
de Defesa do Consumidor e da própria constituição tiveram que aprender com o “peso”
da contingência política e econômica da situação emergencial.
Esse é apenas um exemplo dos riscos de uma ponderação “abstrata” e
“vinculante” dos direitos dos cidadãos, efetuada em sede de controle concentrado de
constitucionalidade. Ao se deixar levar por um cálculo limitado e superficial das
conseqüências políticas e econômicas das suas decisões, quase que em um exercício de
futurologia, o tribunal tende a deixar de lado as expectativas legítimas que se formam
acerca do cumprimento das normas. Expectativas essas que justificam, em último caso, o
próprio recurso ao poder judiciário.
Diversos outros casos poderiam ser analisados para exemplificar esse risco
específico de corrupção da normatividade. Um deles merece atenção especial, não tanto
pela repercussão obtida junto à mídia e à opinião pública em geral, mas sim pelo seu
caráter emblemático. Trata-se da Suspensão de Segurança (na sigla, SS) nº 3154, julgada
em março de 2007.
No caso, o Ministro Gilmar Mendes, em exercício provisório da presidência do
tribunal, cassou uma liminar concedida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
em sede de mandado de segurança. O MS fora impetrado contra a decisão da
Governadora do Estado, Yeda Crusius, de parcelar o pagamento dos salários de
funcionários do executivo estadual sob a justificativa de necessidade de preservação das
finanças públicas. Na fundamentação da decisão, o Ministro fez algumas considerações
acerca da “situação fática excepcional”, que, segundo ele, demonstrava a
proporcionalidade e a razoabilidade da medida: “O ato da Chefe do Poder Executivo do
Estado do Rio Grande do Sul enquadra-se numa situação excepcional, em que as
finanças públicas estaduais encontram-se em crise. As garantias constitucionais da
irredutibilidade e do pagamento em dia da remuneração dos servidores públicos devem
ser interpretadas, nesse contexto fático extraordinário, conforme o “pensamento do
possível”. Neste juízo sumário de delibação, portanto, entendo que a medida adotada
pela Governadora do Estado do Rio Grande do Sul não desborda dos parâmetros de
proporcionalidade e razoabilidade, tendo em vista a situação excepcional em que se
encontram as contas públicas estaduais”.
Novamente, contingências fáticas de natureza política e econômica foram
utilizadas para justificar uma exceção à eficácia das normas. O direito dos servidores de
receberem seus salários – isto é, “verbas alimentares”, conforme a definição jurídica
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
134
tradicional – em dia foi relativizado “proporcionalmente” à excepcionalidade da suposta
crise nas finanças estaduais. O curioso é que tal direito já havia sido garantido pelo
tribunal de justiça local. Contudo, o STF, em decisão monocrática, suspendeu os efeitos
da decisão após considerar que a restrição imposta pela governadora era “razoável” e
“proporcional”.
É interessante notar que o recurso utilizado pela Procuradoria do Estado, a
chamada suspensão de segurança, foi introduzido no direito brasileiro logo após o golpe
militar de 1964, com o objetivo claro de concentrar poderes nas instâncias judiciais
superiores e diminuir a efetividade da utilização do mandado de segurança contra atos
abusivos e ilegais da administração pública. A Lei n۫º 4.348/1964 prevê a sua utilização
pelas “pessoas jurídicas de direito público” nos casos em que seja necessário suspender a
eficácia de decisões judiciais para “evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à
economia públicas”.
Embora não seja classificada como um instrumento específico de controle
concentrado de constitucionalidade, a suspensão de segurança é geralmente utilizada
pelo poder executivo como um meio de cassar decisões judiciais “indesejáveis” com
base em argumentos conseqüencialistas genéricos de cunho político e econômico, como
no caso do parcelamento dos salários dos servidores do Rio Grande do Sul.
Tanto nesse caso como no caso do “apagão”, o Supremo Tribunal Federal, a
partir de um instrumento de concentração judicial de poderes – suspensão de segurança e
ação declaratória de constitucionalidade, respectivamente –, utilizou o princípio da
proporcionalidade para colocar os fatos acima do direito, corrompendo, assim, a
normatividade da constituição. Em ambos os casos, o mesmo argumento: a
excepcionalidade dos fatos prevalece sobre as regras do direito.
Os argumentos de necessidade ou de exceção são algo bastante comum no
discurso jurídico. Constituem um artifício que os juristas utilizam para, paradoxalmente,
fundamentar juridicamente a própria violação do direito. Situações fáticas excepcionais
são, assim, utilizadas como um pressuposto para a restrição da eficácia das normas.
Diante de fatos excepcionais, apela-se para a suposta necessidade de um
descumprimento “proporcional” do direito.
Essa é uma estratégia que sempre foi utilizada por governos autoritários para
justificar a restrição de direitos e garantias básicos dos cidadãos. Em geral, a exceção é
associada à necessidade de combater ameaças bélicas internas ou externas, como no
exemplo recente das políticas norte-americanas de combate ao terrorismo. Contudo, o
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
135
que tem se tornado cada vez mais comum é a associação entre estado de exceção e
emergências econômicas, em que a governabilidade política e a estabilidade da
economia são supostamente ameaçadas – seja por uma crise no fornecimento de energia,
por uma situação de déficit nas finanças estatais ou pela necessidade de combater a
inflação, como no caso do confisco de poupanças e ativos financeiros no início do
governo Collor125.
A imposição desse tipo de exceção ao cumprimento do direito equivale a uma
corrupção da sua normatividade. Trata-se de uma situação que tende a se agravar na
medida em que um só tribunal passe a concentrar em si amplos poderes para interpretar,
de forma abstrata e com efeitos vinculantes, o que diz a constituição. Ao se abstrair a
necessária concretude do direito, as normas correm o risco de se transformar em
disposições vazias, que podem ser facilmente ponderadas e relativizadas em face de
contingências políticas e econômicas. E o caráter vinculante dessa ponderação abstrata
apenas contribui para estender os seus efeitos corrosivos de forma exponencial, com o
conseqüente risco de blindagem dos tribunais ao acesso da população e de transformação
do judiciário em um mecanismo antidemocrático de chancela das medidas emergenciais
adotadas pelo governo.
O real sentido dos direitos do cidadão não está nas “belas” e “imponentes”
descrições dogmáticas presentes nos manuais, mas sim na eficácia concreta que se possa
dar a eles, seja nas pautas de reivindicações elaboradas pelos movimentos sociais, seja
nas diversas formas de participação popular na formulação de políticas públicas, seja nos
casos concretos que são submetidos ao julgamento dos tribunais. Quando o Supremo
Tribunal Federal atua de modo a impedir que a normatividade desses direitos se
concretize, ainda que devido a uma suposta preocupação com os efeitos pragmáticos das
suas decisões, o resultado só pode ser, então, a produção de uma forma específica e
institucionalizada de “desacesso” à justiça.
125 Em relação à chamada “retenção dos ativos financeiros” no início do governo Collor, é importante
registrar que alguns autores – como, por exemplo, o Ministro Gilmar Mendes, à época Consultor Jurídico da Secretaria-Geral da Presidência da República – defenderam a constitucionalidade das medidas de exceção impostas pela Media Provisória n° 168/1990, posteriormente convertida na Lei n° 8.024/1990, também com base no princípio da proporcionalidade. No caso, a necessidade de conter os elevados índices inflacionários foi apresentada como justificativa para a restrição do direito de propriedade dos cidadãos que tiveram parte dos seus ativos financeiros confiscados. Para maiores informações acerca dos argumentos utilizados, cf. MENDES, Gilmar Ferreira. A reforma monetária de 1990: problemática jurídica da chamada “retenção dos ativos financeiros” (Lei n° 8.024, de 12.04.1990). In: MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 2a ed. São Paulo: Celso Bastos Editor, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
136
A restrição do acesso
A Constituição Federal de 1988 mostrou-se defensora da democracia e da
participação social em vários ramos do Estado, inclusive em relação ao controle de
constitucionalidade. Apesar de haver consagrado um controle concentrado abrangente,
fato que pode ser considerado uma perda democrática – já que essa modalidade de
controle se caracteriza pela limitação de legitimados ativos e pela delegação do
julgamento constitucional a um único órgão jurisdicional, no caso, o Supremo Tribunal
Federal –, ainda assim, houve a preocupação em estabelecer mecanismos para a
participação social junto ao tribunal em questão.
Com a finalidade de potencializar a participação social no controle concentrado
de constitucionalidade, a Constituição de 1988 incluiu representantes da sociedade civil
no rol de legitimados à propositura de ações diretas constitucionais. De acordo com o
artigo 103 da CF/88, são legitimados para a propositura de ações diretas de
inconstitucionalidade e ações declaratórias de constitucionalidade: o Presidente da
República; a Mesa do Senado Federal; a Mesa da Câmara dos Deputados; a Mesa de
Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; o Governador de
Estado ou do Distrito Federal; o Procurador-Geral da República; o Conselho Federal da
Ordem dos Advogados do Brasil; partido político com representação no Congresso
Nacional; confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
Ao incluir neste rol partidos políticos, confederações sindicais e entidades de
classe, a constituição alterou substancialmente o sistema anterior - em que apenas o
Procurador-Geral da República possuía legitimidade para propor ações diretas ao
Supremo Tribunal Federal - e também rompeu com o modelo de controle de
constitucionalidade adotado por diversos países nos quais os órgãos do poder público
são os únicos legitimados a instaurar processos de controle abstrato de normas perante a
corte constitucional. A legitimação de confederações sindicais e de entidades de classe
evidencia a preocupação constitucional em conferir a uma parcela da sociedade civil a
possibilidade de participação no controle concentrado de constitucionalidade brasileiro.
Essa discussão ganha relevância na medida em que se vislumbra o crescente
avanço do controle concentrado sobre o difuso, especialmente por meio do chamado
efeito vinculante de decisões e súmulas do STF. Diante da vinculação, por mais que a
sociedade civil tenha a seu dispor o controle difuso para questionar a constitucionalidade
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
137
de normas em concreto – possibilidade democrática aberta a todos os cidadãos –, a sua
exclusão dos debates travados em sede de controle concentrado mostra-se prejudicial à
atuação jurídica dos cidadãos, especialmente em face do acesso comparativamente direto
que o poder público tem ao tribunal, jurisprudencialmente vedado à massa da população
civil.
A grande inovação constitucional relacionada ao incremento da participação
popular no controle concentrado de constitucionalidade de normas, entretanto,
consubstanciou-se na ausência de qualquer distinção qualificativa entre legitimados, de
forma que, a priori, todos os entes previstos no artigo 103 possuiriam legitimação ampla
para propor as referidas ações constitucionais. Todavia, não é este o entendimento atual
do STF, cuja farta construção jurisprudencial estabelece uma série de critérios para a
admissão de ações propostas pelos ditos “entes privados” legitimados pela Constituição
Federal de 1988, consubstanciando-se em evidente estratégia de desconstitucionalização.
A interpretação restritiva direcionada aos entes da sociedade civil iniciou-se logo
na conceituação do que viria a ser considerado “entidade de classe de âmbito nacional”.
Em voto de desempate, no julgamento da ADIn nº 386/SP, o Ministro Moreira Alves
esclareceu o entendimento de “âmbito nacional” adotado pela Corte. Ainda hoje, só é
considerada entidade de âmbito nacional aquela com representação em pelo menos nove
Estados da Federação.
Entretanto, o que chama a atenção é como alguns dos votos, especialmente os
vencidos, já exprimiam a consciência de que o julgamento tratava exatamente da
interpretação a ser dada pelo tribunal acerca da promoção ou limitação da participação
social no controle de constitucionalidade. O Ministro Celso de Mello, vencido, o diz
expressamente: “Justifico o meu voto, ainda, Senhor Presidente, pelo receio que tenho
de uma interpretação restritiva da locução constitucional em análise possa limitar o
exercício, pelo Supremo Tribunal Federal, no instante mesmo em que se busca tornar
efetivo e real o princípio da universalidade da tutela jurisdicional, da mais expressiva,
fundamental e relevante competência que lhe outorgou a Assembléia Nacional
Constituinte: a guarda e defesa da Constituição”.
O STF enfrentou o problema da promoção/limitação da participação social no
controle de constitucionalidade em outras diversas ocasiões. Uma das mais
representativas foi o debate acerca da legitimidade ativa da União Nacional dos
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
138
Estudantes-UNE (ADIn nº 894-3/DF), em que se discutiu a abrangência do conceito de
“classe” previsto na constituição, quando se refere a “entidade de classe de âmbito
nacional”, questionando-se se o termo “classe” refere-se a “classe social” ou a “classe
profissional”: “Será, nesse plano, a UNE entidade de classe de âmbito nacional? Se se
der à cláusula ‘entidade de classe’ compreensão ampla, a partir da só literalidade da
locução, e se se lhe conferir conteúdo meramente social, a resposta deveria ser
afirmativa, entendendo-se existente uma ‘classe estudantil’, como a expressão é
correntemente usada nos meios culturais e de comunicação. Nesse sentido, a UNE seria
entidade representativa, de âmbito nacional, da classe dos estudantes universitários
brasileiros. Assim tem se proposto ser e agido a entidade requerente. Se, entretanto, se
emprestar, aos efeitos do inciso IX do art. 103, da Lei Maior, compreensão estritamente
de índole profissional à fórmula ‘entidade de classe’, a resposta à indagação inicial há de
ser negativa. Com efeito, sob o ponto de vista profissional, não tenho como correta a
afirmação de que os estudantes constituam uma classe, enquanto ao termo se atribui
conteúdo imediatamente dirigido à idéia de profissão, entendendo-se ‘classe’ não como
simples classe social, segmento social, mas como categoria profissional” (Trecho do
voto do Ministro relator. ADIn nº 894-3/DF - relator: Min. Néri da Silveira).
Essa discussão envolve dois aspectos relevantes: pode-se dizer que o primeiro
aspecto seria quantitativo, uma vez que a concepção de “classe social” é mais abrangente
e inclusiva com relação à quantidade de associações abarcadas pela expressão; já o
segundo, adquire conotação qualitativa, na medida em que o parâmetro adotado para a
restrição ao acesso à propositura das ações diretas é particularmente perverso, pois
permite a participação apenas das classes inseridas no mercado de trabalho, ou seja, das
classes “profissionais”, por meio da utilização de um critério econômico - não previsto
pela Constituição - para determinar a inclusão/exclusão de representantes da sociedade
civil.
A partir desse julgamento, o STF estabeleceu jurisprudencialmente que apenas
entidades representativas de classes profissionais teriam legitimidade para a propositura
de ações diretas.
A mesma interpretação restrita do conceito de classe foi utilizada pelo tribunal
para declarar ilegítimas outras entidades, como a Associação de ex-Combatentes do
Brasil, em cujo julgamento (ADIn nº 974-5/RJ) o STF entendeu que “ex-combatentes”,
assim como estudantes universitários, não constituem “classe”.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
139
Além de optar reiteradamente por interpretações excludentes da norma
constitucional, o Supremo Tribunal Federal também criou requisitos específicos para o
reconhecimento da legitimação constitucional de entes privados. No julgamento da
ADIn nº 1.114-6/DF, por exemplo, o tribunal negou a existência de legitimidade ativa
por parte da Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos para ver declarada
a inconstitucionalidade de dispositivos do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil.
De acordo com o STF, apesar de a requerente enquadrar-se na hipótese do inciso IX do
artigo 103 da Constituição Federal, ela não cumpriu a exigência de pertinência temática,
que constitui requisito “objetivo”, erigido pelo próprio Supremo Tribunal Federal, para o
conhecimento de ação direta promovida por confederações sindicais ou entidades de
classe de âmbito nacional.
Segundo esse entendimento, confederações e entidades de classe, por serem
pessoas jurídicas de direito privado, não possuem a mesma legitimação que os demais
entes previstos pela constituição. A despeito de a Carta não fazer qualquer distinção
entre legitimados, o STF entende que os privados só podem impugnar dispositivos legais
que digam respeito especificamente a seus associados, enquanto os demais possuem
legitimidade ativa para impugnar quaisquer dispositivos legais.
A justificativa para a distinção foi apresentada nos seguintes termos: “Na
hipótese de confederações sindicais, não há razão para deixar de aplicar-se o critério de
pertinência, reconhecido nos precedentes acima indicados, já que, de modo relevante,
destaca-se a circunstância de que tais órgãos, assim como as entidades de classe de
âmbito nacional, representam interesses nitidamente privados, sem a conotação de uma
generalidade que os habilite a uma inserção sem limites no domínio do controle de
constitucionalidade”.
No mesmo julgamento (ADIn nº 1.114-6/DF), o tribunal destacou que alguns
entes privados seriam defensores do interesse público, como partidos políticos e a
Ordem dos Advogados do Brasil, e que, em razão disso, possuiriam legitimação ampla,
assim como os entes públicos: “Não se pode olvidar que a Constituição conferiu para os
partidos políticos, pessoas jurídicas de direito privado, a legitimidade para igualmente
acionar a jurisdição constitucional concreta, mas tais órgãos não atuam precipuamente
na esfera dos interesses privados, antes exercem atividade política, que presume o
interesse público, justificando, assim, que não lhes seja aplicável o critério da
pertinência. Por sua vez, a Ordem dos Advogados do Brasil, embora seja uma entidade
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
140
de classe, com estas não se confunde para os efeitos de legitimidade em ação direta de
inconstitucionalidade, já que a sua própria natureza autárquica revela a importância de
sua atuação, transcendendo, portanto, dos limites de mero órgão de representação dos
interesses da categoria profissional”. Os demais entes privados - associações e
confederações sindicais -, por outro lado, seriam aptos apenas a defender os interesses
privados/egoísticos de seus associados, o que justificaria o seu afastamento da função
verdadeiramente pública de defesa da ordem constitucional.
Fica clara, portanto, a extensa construção jurisprudencial desenvolvida pelo
Supremo Tribunal Federal no sentido de limitar o acesso conferido pela constituição a
entidades da sociedade civil. As decisões proferidas pelo tribunal acerca da participação
social no controle concentrado de normas, entretanto, não se restringem ao aspecto da
legitimidade ativa conferida pelo artigo 103 da Constituição Federal. Também são
exemplos da interpretação restritiva adotada pelo tribunal, as decisões que negam a
participação de representantes da sociedade civil como amicus curiae126.
No julgamento da ADPF n° 54, por exemplo, o Ministro Marco Aurélio manteve
o entendimento de que a possibilidade de intervenção como amicus curiae, prevista no
art. 7º, § 2º, da Lei n° 9.868/99, não implica o reconhecimento de direito subjetivo a
tanto, de modo que fica a critério do relator admitir ou não o pedido de intervenção,
assim como a decisão que admite ou nega a intervenção não precisa de qualquer
fundamentação e não é passível de impugnação na via recursal. Como conseqüência, o
mesmo ministro recusou reiterados pedidos de manifestação de entidades como a
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, a Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família - Pró-Vida-
Família, a Associação Univida e a Associação de Desenvolvimento da Família – ADEF.
Outra postura, todavia, foi adotada pelo Ministro Carlos Ayres Britto no
julgamento da ADI n° 3510/DF, em que deferiu inúmeros pedidos de participação de
entidades como amicus curiae e, diante da repercussão da matéria, decidiu pela
realização da primeira audiência pública do Supremo Tribunal Federal. O ministro fez
questão de frisar que a realização da audiência pública teve a função de envolver a
126 O amicus curiae é um terceiro capaz de municiar o Supremo Tribunal Federal de informações com o
intuito de auxiliá-lo em sua decisão, podendo ser qualquer pessoa com representatividade social que demonstre interesse na questão debatida. Esse instituto permite aos interessados participar do debate constitucional, compartilhando com o Tribunal as informações que possuem e, muitas vezes, oferecendo-lhes a possibilidade de defender seus pontos de vista em processos que gerarão efeitos sobre eles. Ademais, essas informações acrescentam à Corte argumentos para embasar as decisões e oferecem dados relativos à opinião pública acerca do tema. Assim, o amicus curiae confere aos processos objetivos um certo grau de contraditório, além de inserir na discussão informações de interesse da sociedade.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
141
sociedade no debate da controvérsia constitucional, ressaltando os ganhos de democracia
e legitimidade operados pela medida.
Esse acontecimento sinaliza para a possibilidade de mudança da compreensão do
STF a respeito da importância da participação social no controle de constitucionalidade e
do seu papel enquanto viabilizador das possibilidades participativas. Entretanto, mesmo
quando promove a participação, o faz conforme a sua conveniência, considerando-a uma
possibilidade passível de uso pelo tribunal, e não um direito da sociedade.
A aplicação dos institutos do amicus curiae e da audiência pública deixam clara essa postura. Os
critérios utilizados pelo STF para limitar a participação da sociedade civil organizada
acabam por deixar transparecer, ao fim e ao cabo, o quanto é contraditória a sua
pretensão de arrogar exclusivamente para si o juízo de constitucionalidade. Ao mesmo
tempo em que defensores da concentração do controle de constitucionalidade afirmam
que o amicus curiae é a prova viva de que o STF possui certa “abertura procedimental”,
os mesmos juristas vêem com naturalidade a limitação drástica que a jurisprudência do
mesmo Tribunal faz da participação de tais atores. Na hora de justificar a concentração
do controle, o amicus curiae serve; mas quando é para fazer valer a “abertura
procedimental”, aí ele é uma ameaça à segurança jurídica. A contradição é mais que
evidente.
O ambíguo tratamento dado ao amicus curiae revela mais que as “aporias” da
concentração do controle: indica os riscos que residem nessa assim-chamada “revolução
silenciosa”. Riscos de que o STF não mais compreenda direitos fundamentais como uma
barreira que possa ser erigida contra eventuais expedientes inconstitucionais oriundos
dos poderes constituídos da República Federativa do Brasil: seja o Poder Executivo, o
Poder Legislativo ou o próprio Poder Judiciário. A Constituição de 1988 tem como seu
centro e vértice a noção de cidadania. E uma das maneiras mais gravosas de se violentar
a cidadania é entender que direitos fundamentais dos cidadãos possam ser
desconsiderados, utilizados como moeda de troca frente às intempéries orçamentárias do
Estado. Entre a “glória do Estado” e os “direitos dos cidadãos”, o STF tem que ficar com
a segunda opção. Seu compromisso não é com uma suposta (e mítica)
“governabilidade”, mas com o fortalecimento da democracia: consoante determinou a
Assembléia Nacional Constituinte de 1987-1988.
Sugestões de pesquisa para o Observatório
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
142
Diante do diagnóstico traçado em relação à concentração da jurisdição
constitucional e seus reflexos no acesso à justiça, propõe-se a pesquisa das seguintes
questões:
(a) Embora a celeridade e a eficácia das decisões judiciais sejam importantes, até
que ponto concentração de poderes é sinônimo de eficiência? De qual eficiência estamos
tratando? Uma eficiência em termos de conveniência política e econômica ou em termos
de democratização do acesso à justiça?
(b) O que está por trás da “análise econômica” do judiciário e das inovações que
têm modificado o perfil da jurisdição constitucional brasileira?
(c) Como observar a observação da mídia e a própria auto-observação do STF –
refletida, de certo modo, no discurso do Ministro Gilmar Mendes – sobre a organização
e o funcionamento dos tribunais brasileiros?
(d) Qual o papel do Supremo Tribunal Federal para a manutenção da
possibilidade de uma afirmação contrafática das normas constitucionais que prevêem
direitos e garantias?
(e) Quais são os mecanismos ou justificativas de que se vale o poder judiciário,
especificamente o STF, para, ao invés de garantir direitos a partir da afirmação de
expectativas normativas em contextos fáticos de violação, valer-se de contingências
fáticas, em geral de natureza política e econômica, para justificar limitações à eficácia
das normas em suas decisões?
(f) O uso de argumentos baseados na reserva do possível, proporcionalidade,
razoabilidade, ponderação, adequação meios/fins, governabilidade e estabilidade
econômica relativizam a “força normativa” da Constituição?
(g) A adoção do efeito vinculante das decisões proferidas pelo STF é capaz de
“blindar” os tribunais ao acesso da população e de transformar o judiciário em um
mecanismo antidemocrático de chancela de medidas emergenciais adotadas pelo
governo?
(h) Pode-se considerar que a jurisprudência desenvolvida pelo Supremo Tribunal
Federal no sentido de restringir a participação social no controle concentrado de
constitucionalidade tem a função de intensificar o processo de concentração do seu
poder de decisão acerca das questões constitucionais?
(i) Quais são as justificativas apresentadas para a limitação da participação de
representantes da sociedade civil no controle de constitucionalidade brasileiro? Elas são
pertinentes ou aparentam encobrir outras razões/interesses?
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
143
(j) A construção jurisprudencial do STF de fato restringe o acesso das entidades
da sociedade civil às discussões constitucionais? Há outras formas de participação
nesses debates?
(k) Como a sociedade civil participa da jurisdição constitucional no direito
comparado? Quais países conferem legitimidade ativa a entidades privadas e quais
limitam a propositura de ações diretas a órgãos estatais? Como o instituto do amicus
curiae é aplicado em outros países? Há institutos correlatos?
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
144
INDICATIVOS PARA A PESQUISA DE SÚMULAS VINCULANTES E DA
REPERCUSSÃO GERAL COMO REQUISITO DE ADMISSIBILIDADE DOS
RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS: SUA ANÁLISE ANTE O ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A RELAÇÃO ENTRE DIREITO E
DEMOCRACIA
Paulo Henrique Blair de Oliveira
I – À guisa de introdução: uma breve justificativa dos temas específicos constantes na
presente análise.
Sob o ponto de vista da observação institucional dos instrumentos de jurisdição
constitucional agregados mais recentemente à ordem jurídica, dois deles se destacam, a
instituição das chamadas súmulas vinculantes e da repercussão geral do tema tratado em
um recurso extraordinário como requisito de sua admissibilidade, ambos acrescidos ao
texto constitucional pela emenda de número 45, de 8 de dezembro de 2004, posicionados
respectivamente no art. 103 –A e no art. 102, § 3º, da Constituição Federal (BRASIL,
2007, p. 84-85). Tal destaque se justifica porquanto é posta sobre estes instrumentos uma
pretensão bastante forte, que é a de solução para o imenso número de feitos que
tramitam perante o Supremo Tribunal Federal nas várias formas em que é exercida por
aquela corte o controle de constitucionalidade pela via difusa.
Em si, esta pretensão já revela uma pré-compreensão de que o principal
obstáculo para uma jurisdição constitucional difusa exercida a partir do Supremo
Tribunal Federal possa ser descrito como um fator de natureza numérica. Neste mesmo
sentido, a extensão deste raciocínio aos demais pontos de “congestionamento” do
aparelho judiciário traz esta questão numérica para o centro das preocupações,
produzindo-se uma análise que descreve (e, em certa medida, termina por reduzir) a
justiça a uma questão de números. A expressão “justiça em números” foi, desta forma,
incorporada aos parâmetros descritivos que o próprio que o Conselho Nacional de
Justiça atribui ao Poder Judiciário127.
Tomando-se em conta que a reflexão sobre o acesso à justiça certamente
perpassa o exame crítico de como e por quais instrumentos o Supremo Tribunal Federal
127 Cf. <http://www.cnj.gov.br/index.php?option=com_banners&task=click&bid=12>, acessado em 5 de dezembro de 2007. Ao tempo do acesso, já se achava disponível a terceira edição da análise denominada “A Justiça em Números”.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
145
compreende seu próprio papel na jurisdição constitucional difusa (ainda que, certamente,
esta análise de modo alguma esgote a multiplicidade sócio-jurídica da questão do acesso
à justiça), há uma contribuição que a observação institucional pode dar a este exame
crítico. Ante o recorte exemplificativo dos temas mencionados acima (súmulas
vinculantes e a repercussão geral como requisito de admissibilidade dos recursos
extraordinários), indica-se a necessidade de um exame de quais são as suas
potencialidades quais são seus os seus riscos na construção de uma concepção plural
tanto do acesso à justiça como também dos direitos fundamentais.
II - Exame do papel das súmulas jurisprudenciais.
Em dissertação de Mestrado em Direito, Estado e Constituição, defendida por
este pesquisador perante a Universidade de Brasília, este pesquisador teve ocasião de se
debruçar sobre as pretensões postas sobre as súmulas jurisprudenciais, a suportabilidade
destas pretensões por tais súmulas ante a teoria do direito e a teoria constitucional, e
apontar no sentido da existência de leituras constitucionalmente adequadas para tais
papéis no âmbito paradigmático do Estado Democrático de Direito128. Sem dúvida que a
experiência institucional da edição e aplicação de súmulas jurisprudenciais não difere,
em sua essência e em sua intenção, da natureza vinculante que a Emenda Constitucional
nº 45 pretendeu atribuir às súmulas que fossem doravante editadas pelo Supremo
Tribunal Federal, mediante "quorum" decisório qualificado de dois terços de seus
membros, para consolidar reiteradas decisões de observância obrigatória por todos os
órgãos judiciários e ainda por todos os integrantes da administração pública, direta ou
indireta, em todas as esferas da federação - União, Estados Membros e Municípios.
Mesmo as súmulas editadas por tribunais superiores claramente carregam a pretensão de
orientar e vincular bem mais do que a própria corte que a editou, mas também servir de
elemento unificador da interpretação do direito pelas instâncias que lhe são
processualmente inferiores. Daí porque as pretensões postas (ou, mais precisamente,
renovadas) nas agora súmulas vinculantes foi objeto de contraste com o processo
formador de uma das mais antigas (e mais revisadas) súmulas do Tribunal Superior do
Trabalho (a de número 90), com fito de verificar tanto a possibilidade de que tais
pretensões de controle interpretativo fosse atingidas, como também aferir que papel tal
128 OLIVEIRA, 2006.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
146
súmula pode cumprir no ambiente do discurso de aplicação do Direito. A súmula
referida foi tomada como objeto da pesquisa porque, ao versar sobre a questão central
dos salários, articula duas outras categorias fundamentais na inserção do sujeito, quais
sejam, o tempo e o espaço, ao definir em que condições um determinado deslocamento
espacial do trabalhador deve ser computado como tempo de trabalho e,
conseqüentemente, resultar no pagamento de salários (TRIBUNAL SUPERIOR DO
TRABALHO, 2006a, p. 23).
Uma leitura de senso comum dada ao art. 103 – A, § 1º, da Constituição Federal,
abriga a idéia de que seja possível fixar a interpretação de normas sobre as quais pese
controvérsia entre órgãos judiciários, ou entre estes e a administração pública, a partir do
pressuposto de que funcionalidade e racionalidade do sistema judiciário são obtidas
quando se impede uma multiplicação de ações sobre questões que seriam idênticas sob
esta ótica. A lógica de que este controle interpretativo é imprescindível à racionalização
dos trabalhos judiciários elevou-se à condição de senso comum, a tal ponto que mesmo
parte dos que manifestavam reservas a ela acabam por afirmar a natureza vinculante
destas súmulas como única "alternativa ao caos", consoante exemplifica opinião colhida
junto ao ministro Ricardo Lewandowski, pelo periódico eletrônico Consultor Jurídico
em sua edição de 22 de maio de 2006 (MOROSIDADE NA JUSTIÇA, 2006). Mesmo a
ministra Ellen Gracie, ao tomar posse no cargo de Presidente do Supremo Tribunal
Federal, afirmou que viabilizaria a aplicação de instrumento que, a seu ver, garantiria um
volume menor e uma qualidade maior de trabalho para a Corte: a súmula vinculante, já
estabelecida pela Emenda Constitucional 45. Na compreensão da ministra, este
mecanismo poderia contribuir para a eliminação da quase totalidade da demanda em
causas tributárias e previdenciárias e teria o extraordinário potencial de fazer com que
uma mesma questão de direito receba afinal tratamento uniforme para todos os
interessados (REPERCUSSÃO GERAL, 2006). Dando eco a este senso comum, há
juristas que tomam as súmulas vinculantes como capazes de ensejar uma definição
célere do processo, autorizando o manejo da reclamação contra qualquer decisão,
encerrando rapidamente a ação e conceder mais certeza para aplicação obrigatória de um
entendimento determinado (OLIVEIRA JÚNIOR, 2006).
Estas pretensões de controle interpretativo e de "alívio da sobrecarga" de
processos judiciais são as mesmas que orientam normas infraconstitucionais que, no
processo civil e no processo trabalhista, expressam-se na leitura de normas que vedariam
a admissão de recursos quando o órgão prolator da decisão recorrida entender que esta
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
147
estiver em conformidade com súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior
Tribunal de Justiça ou do Tribunal Superior do Trabalho. As disposições normativas
neste sentido são presentes, dentre outros, na redação que se acha em vigor dos artigos
518, § 1º, do Código de Processo Civil (BRASIL, 2006a, p. 1) e 896, § 5º, da CLT
(BRASIL, 2006c, p. 139). A disseminação desta lógica operacional chegou, até mesmo,
a ponto de se buscar estendê-la ao primeiro grau de jurisdição, permitindo-se ao juiz que,
estando diante questões "apenas de direito", e já tendo decidido matéria "idêntica" em
sentido contrário, conclua pela improcedência da pretensão do autor de forma sumária,
sem a necessidade de que o réu seja citado, dispensando-se até mesmo a formação da
clássica relação processual triangular.
Todavia, a questão tem também levantado preocupações que, embora em sentido
oposto, também passaram a ser tratadas como senso comum de outra parte de juristas.
Trata-se da idéia de que súmulas jurisprudenciais, tomadas desta forma "vinculativa"
poderiam resultar em um aprisionamento da jurisprudência. É o que se vê,
exemplificativamente, na manifestação do advogado Roberto Busato, no sentido de que
tais súmulas se transformariam no "rolo compressor da cúpula do Judiciário sobre a
grande maioria dos juízes de primeiro e segundo graus" e que seriam "um artifício que
engessa por completo as decisões dos juízes das instâncias inferiores" (REFORMA DO
JUDICIÁRIO, 2006).
A pesquisa feita propôs que ambas estas posturas (a de que súmulas propiciem
uma celeridade processual ou de que elas sejam um entrave à evolução interpretativa no
Direito) assentam-se no pressuposto de que a linguagem possa ser controlada (de sorte
que aplicadores do Direito possam lançar mão de um resultado já construído
aprioristicamente), e de que (por conseqüência) existam casos idênticos em que essas
decisões a priori pudessem ser implementadas. Em uma frase, a hipótese levantada foi a
impossibilidade de que linguagem e interpretação possam ser aprioristicamente fixados e
a existência de um papel constitucionalmente adequado às súmulas jurisprudenciais.
Porém, igualmente formula a hipótese da existência de um potencial de racionalidade
lingüística e de racionalidade hermenêutica que permitam conceber o papel
constitucionalmente adequado para o uso das súmulas jurisprudenciais.
A análise procedida na pesquisa fez uso da Teoria Discursiva do Direito, de
Jürgen Habermas (2002b, p. 452-453), o qual, ante os limites da linguagem e ante os
usos lingüísticos que a modernidade simultaneamente libera (o estratégico e o
comunicativo), retoma a busca por uma racionalidade que somente pode ser universal
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
148
em concreto e de modo intersubjetivo (HABERMAS, 2001b, p. 52-54 e 58). A segunda
ferramenta teórica utilizada foi o conceito de integridade no Direito, formulado por
Ronald Dworkin, no qual será tematizada uma tensão que marca em especial as súmulas
jurisprudenciais: o confronto entre certeza do Direito (na sua abstração e generalidade,
como conquistas fundamentais da modernidade) e a realização de uma justiça que
obrigatoriamente deve considerar toda a especificidade de cada caso concreto posto ante
o crivo do aplicador do Direito (DWORKIN, 1999, p. 7-8, 271-272).
Ao se trabalhar, em uma análise, perspectivas do giro lingüístico-pragmático e do
giro hermenêutico não se anulou as diferenças entre estas posturas teóricas, mas se fez
uso da oposição entre ambas, da tensão estabelecida entre elas, que permite percebê-las
como complementares (CAMERON, 1995, p. 261-263). Na particularidade e na
incontrolabilidade das formas de linguagem buscou-se demonstrar a necessidade de que,
ao operarmos com enunciados sumulares dotados de pretensão de generalidade, façamos
a reconstrução dos elementos (vestigiais que sejam) da racionalidade que deu origem a
esta pretensão de universalidade (HABERMAS, 1987, p. 32). De outra parte, a pretensão
de universalidade presente na hermenêutica filosófica permitiu ver que a compreensão e
aplicação de um enunciado sumular são frutos de uma tradição interpretativa, e que é
indispensável considerar-se todas as particularidades de cada caso concreto.
A pesquisa utilizou ainda outros autores nas respectivas tradições teóricas
trabalhadas por Jürgen Habermas e Ronald Dworkin. É o caso de Ludwig Wittgenstein,
no que concerne às origens do giro lingüístico-pragmático sobre o qual se assentam os
pressupostos teóricos habermasianos. É também o caso de Hans-Georg Gadamer, no que
tange à formulação de um giro hermenêutico-filosófico, a partir do qual são articuladas
duas idéias centrais para Ronald Dworkin, a noção do "encadeamento" do Direito e de
integridade do Direito. Porém, o recurso feito a estes outros autores não objetivou um
"grande e abrangente resumo" da Teoria Constitucional sob o influxo do giro pragmático
e do giro hermenêutico, mas somente uma compreensão melhor de parte dos pontos de
partida das reflexões dos marcos teóricos que centrais na pesquisa, repelir pretensões
totalizantes de cada uma destas teorias e demonstrando que a sua utilidade reside
precisamente no fato de que, nelas, a questão do método toma um outro rumo. O que tais
autores têm de comum é o fato de tomarem a razão como falível e parcial, sabedores de
que o aprofundamento da análise de um aspecto não se pode fazer sem um sacrifício
(provisório que seja) da visibilidade de outros aspectos do mesmo problema a ser
investigado. Porém, todos também abraçam uma possibilidade - ainda que reconstrutiva
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
149
- para o uso da razão, em um esforço bastante típico de um período que, no dizer de
Giddens, é marcado por uma compreensão que, até em nível institucional, já vê a razão
moderna como limitada e, desta forma, repensa a si mesma (GIDDENS, 1992, p. 4 e 6).
Ao final da análise do processo de formação da súmula 90, do Tribunal Superior
do Trabalho, foi constatada a falibilidade das pretensões de que súmulas de
jurisprudência pudessem servir de instrumento de controle da linguagem ou como
soluções construídas aprioristicamente para casos considerados “idênticos” – ou mesmo
que não é a rigor possível falar em casos que sejam efetivamente idênticos. Uma leitura
que insistisse na possibilidade de apreensão da "literalidade" do contido naquela súmula
esbarrava com a constante necessidade de edição de novas súmulas e orientações
jurisprudenciais "explicativas". Os mesmos dados empíricos indicaram uma verdadeira
impossibilidade de que de antemão fossem controlados de modo absoluto os sentidos das
normas para os seus aplicadores futuros. A existência de súmulas resultantes da
agregação de outras súmulas e de orientações jurisprudenciais anteriores revela uma
incessante mutação interpretativa que conflita com esta pretensão. Paradoxalmente, este
ambiente de mudança interpretativa aprofunda o desafio de levar-se o Direito a sério na
especificidade de sua aplicação.
O enfoque do giro pragmático-lingüístico revelou que, como todo uso da
linguagem, a enunciação de súmulas jurisprudenciais renova a oportunidade para o uso
abusivo que já se achava presente nas normas que tais súmulas buscam interpretar. O
uso de novas e mais complexas formas de enunciação lingüística do sentido dado às
normas, ao tempo em que incorpora novas vivências, abre espaços de visibilidade
também novos, permitindo a descoberta de possibilidades antes não vistas de abuso do
Direito. A trajetória da formação da súmula 90, do Tribunal Superior do Trabalho, é
pródiga de exemplos neste sentido nas sucessivas etapas históricas de sua formação. A
descrição desta trajetória formadora demonstrou, na praxis judiciária, que o uso de
súmulas de jurisprudência não é isento de modo algum de riscos, e que tais riscos se
agigantam quando o aplicador do Direito sobrecarrega tais súmulas com a pretensão de
que elas possam aclarar o sentido das normas para além de quaisquer dúvidas. Sob o
ponto de vista da Teoria Discursiva do Direito, estas súmulas são atos de fala cuja
abstração e generalidade são apenas um pouco menores do que as normas sobre as quais
elas versam. Isto porque são oriundas de um processo no qual a aplicação reiterada das
normas incorporou uma experiência vivencial. Contudo, a pretensão de aplicação de
súmulas aos casos futuros requer que nelas esta riqueza vivencial seja reconduzida
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
150
novamente a um certo grau de generalidade. Deste modo, súmulas jurisprudenciais não
podem ser tomadas elas próprias como atos de julgamento em sentido mais estrito.
A Teoria Discursiva do Direito permitiu compreender, nas súmulas
jurisprudenciais, um potencial para o seu uso legítimo, mediante o respeito à
racionalidade comunicativa que elas tematizam, abandonando-se pretensões oriundas de
uma racionalidade que, em seus delírios e excessos, ocultavam este potencial. Para tanto,
o seu uso pelo aplicador vai requerer mais do que a simples identificação da origem, isto
é, mais do que a sua invocação como argumentos de autoridade. A racionalidade
comunicativa potencialmente presente nelas requer que se leve em conta o seu processo
formador, as razões presentes na descrição de fatos contida nelas e as justificativas dadas
como conseqüências jurídicas de tais fatos. Um uso comunicativamente racional destas
súmulas busca a sua legitimidade para além de seu uso repetitivo, insistindo que em sua
aplicação seja exercido um juízo de adequabilidade face contingências específicas de um
caso concreto. A aplicação legítima e adequada de súmulas de jurisprudência não pode
ser regida apenas por parâmetros semânticos, ou do contrário as razões que
fundamentam a aplicação apenas descreverão novamente regras gerais e abstratas,
incidindo em uma circularidade que, ao final, torna desfundamentada a decisão judicial,
violando a exigência constitucional presente no artigo 93, IX, da Constituição Federal.
Estas decisões, como atos de fala que são, poderão reivindicar legitimidade, na medida
em que seu autor esteja pronto a justificar, argumentativamente, as razões de veracidade
e de adequabilidade do sentido com o qual uma determinada súmula foi aplicada no
caso, reconstruindo o vínculo entre as razões da validade geral e abstrata do enunciado
sumular e a adequabilidade do sentido que se dá àquela súmula ante as contingências e
especificidades do caso. Esta é uma imposição do princípio democrático na aplicação do
Direito, para que assim ele cumpra o papel integrador de, simultaneamente, sedimentar
um passado institucional, e dar aos afetados pela norma a possibilidade de recebê-la
como legítima, ainda que se oponham a ela.
Neste sentido, súmulas não encerram o dissenso, porquanto, ao emergirem como
síntese de razões já aplicadas anteriormente, elas imediatamente reabrem o debate sobre
os sentidos dados por elas às normas. Apesar de se apresentarem como o término de um
debate nos tribunais, estas súmulas abrigam a pretensão de incidência em casos futuros.
Por isto, ao ganharem um grau de generalidade, irão requerer, na aplicação futura, a sua
adequabilidade a cada caso específico.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
151
A pesquisa apontou para a conclusão de que súmulas de jurisprudência irão
certamente aumentar a complexidade lingüística especializada no Direito, de modo que a
estabilidade que elas podem trazer é apenas a compreensão de que os sentidos na
linguagem especializada do Direito estão sempre em movimento, em constante
reconstrução. Uma estabilidade que não é jamais estagnação, mas, ao contrário, abertura
permanente para a divergência e para a mudança, produzindo conteúdos variáveis em
sua trajetória. É esta possibilidade de dissenso, aumentada pelas súmulas
jurisprudenciais, que pode até mesmo reforçar os vínculos entre Direito e democracia,
sendo esta uma compreensão mais adequada ao Estado Democrático de Direito quanto
ao papel destas súmulas.
De outra parte, esta abertura para o dissenso e para o futuro pode ser tomada
como indicativo claro, sob a perspectiva do construtivismo dworkiniano, que, mesmo
integrando as concepções prévias de um intérprete, estas súmulas não interditam a
possibilidade dos novos significados - ao contrário, na verdade dão origem a indagações
ainda mais complexas e, deste modo, realimentam o processo hermenêutico. Súmulas
jurisprudenciais portanto não exoneram riscos e dúvidas interpretativas. Ao invés, a
inevitabilidade da condição hermenêutica requer que elas sejam tomadas como uma
expressão da permanente reconstrução de sentidos. Como texto que elas próprias são,
desde o momento em que editadas, passam a novamente fazer parte de um círculo
hermenêutico. Logo, a segurança jurídica que pode emergir delas é somente a concessão
de uma maior visibilidade a este processo de mutação, resultando disto a possibilidade
de que a alteração de sentidos (ou a resistência a ela) seja enfrentada de modo
argumentativo, público, adequado e caso a caso. Ou, dito de modo dworkiniano: a
segurança jurídica que emerge de uma compreensão principiologicamente coerente do
ordenamento jurídico é aquela que exige que o Direito seja lido como integridade, e que
princípios sejam tomados sempre sob uma ótica deontológica, exigindo-se que a
adequação de sua incidência seja demonstrada caso a caso. Isto permitirá a produção de
respostas únicas e corretas para as dúvidas postas diante do aplicador do Direito - desde
que resposta única e correta seja compreendida aqui como correta para o caso específico.
Isto porque a irrepetibilidade hermenêutica de eventos nos aponta a
impossibilidade de que existam "casos idênticos" em sentido estrito. E, quando menos,
mesmo o intérprete que lançar mão de uma súmula de jurisprudência incorpora esta
experiência ao seu horizonte, e assim o modifica. Em uma próxima ocasião não serão
mais os mesmos, nem o caso, nem o próprio aplicador do Direito. A permanência que
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
152
uma súmula pode buscar é somente a condição de sua permanente mudança, a sua
abertura para indagações crescentemente complexas e o seu refazimento como resposta a
estas situações. Neste sentido, a trajetória da súmula 90 do Tribunal Superior do
Trabalho foi considerada exitosa, ainda que por razões diametralmente opostas àquelas
postas pelos que buscavam em súmulas (vinculantes ou não) um modo de homogeneizar
a interpretação do Direito.
Quanto ao papel constitucionalmente adequado às súmulas jurisprudenciais no
Estado Democrático de Direito, concluiu-se que ele requereria a percepção de que
súmulas jamais poderão regular, elas mesmas e a priori, as suas condições de aplicação.
Neste sentido é inconstitucional - por violar a exigência de fundamentação das decisões
judiciais e a integridade do Direito - qualquer tentativa de inferir-se, mediante uma
abstração lógica (mesmo que extraída inicialmente de um caso concreto), que pretenda
eliminar o ônus de o aplicador fundamentar a adequabilidade do sentido que ele dá às
normas cuja incidência foi acolhida em cada nova situação. Aqui, é necessário um
cuidado com esta afirmação: a pretensão uniformizadora das súmulas de jurisprudência,
ou mesmo a afirmação de que sejam vinculantes não é em si inconstitucional. É preciso
indagar o que tais súmulas podem uniformizar ou vincular de fato em um determinado
caso. Sob a ótica da integridade, apenas naquele caso será possível examinar se os
argumentos envolvidos na sedimentação jurisprudencial representada por uma
determinada súmula guardam a coerência principiológica para com a forma indisponível
do Direito.
Emergiu, na pesquisa, a questão em torno dos limites da razão e a falibilidade de
métodos ou de modelos de aplicação do Direito. Súmulas de jurisprudência não são tudo
o que as pretensões de um senso comum teórico lhes têm cobrado, até porque tais
pretensões não são nem lingüisticamente nem hermeneuticamente realizáveis, violando
tanto a vinculação entre Direito e Democracia que é enfatizada na Teoria Discursiva de
Jürgen Habermas, quanto a proposta de Ronald Dworkin de que a leitura do Direito
como integridade conduza ao aprofundamento dos compromissos de uma comunidade
política para com os direitos que ela elegeu como fundamentais.
Porém tais súmulas de jurisprudência não podem ser repelidas como se não fosse
possível dar a elas um uso constitucionalmente adequado. Sob o enfoque da Teoria
Discursiva, pode-se ver que as súmulas de jurisprudência são portadoras de um potencial
de racionalidade comunicativa capaz de gerar uma complexidade exponencialmente
crescente dos juízos de adequabilidade dos princípios jurídicos, reforçando em muito a
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
153
relação entre Direito e Democracia, por abrigar a possibilidade do dissenso e respeitar a
natureza contra-fática e contra-majoritária que são próprias da distinção que uma
constituição articula entre Direito e Política. E, sob a compreensão do Direito como
integridade, tais súmulas jurisprudenciais agregam complexidade ao círculo
hermenêutico no curso do "encadeamento" do Direito. Isto reafirma a percepção de que
direitos fundamentais são "trunfos" para que, democraticamente, uma minoria subsista
de modo digno ante o governo de uma maioria, estabelecendo coerência principiológica
(e não sacrifício mútuo) entre liberdade e igualdade na adjudicação de direitos.
Em síntese, a pesquisa apontou para o fato de que súmulas jurisprudenciais
(vinculantes ou não) não suportam a pretensão de conterem parâmetros para um
julgamento absolutamente "verdadeiro". Ao contrário, quando assumida a precariedade e
a necessária condição hermenêutica presentes nas interpretações do Direito, aí sim é
possível que súmulas de jurisprudência estabilizem procedimentalmente a complexidade
do Direito necessária ao se lidar com a complexidade e com a riqueza da vida humana.
III - Exame do papel da repercussão geral como requisito de admissibilidade dos
recursos extraordinários.
Em projeto de tese que está sendo desenvolvido por este pesquisador no âmbito
do Programa de Doutorado em Direito, Estado e Constituição da Universidade de
Brasília, foi considerado um segundo aspecto presente na Emenda Constitucional 45, de
30 de dezembro de 2004. Trata-se do acréscimo, no art. 102, da Constituição Federal, do
parágrafo terceiro, instituindo como requisito de admissibilidade dos recursos
extraordinários a demonstração da "...repercussão geral das questões constitucionais
discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do
recurso" (BRASIL, 2006b). A exemplo do que se deu com as súmulas vinculantes, este
instrumento foi reputado meio de contenção seletivo dos recursos extraordinários, de
modo a viabilizar uma redução no volume de recursos extraordinários apreciados pelo
Supremo Tribunal Federal, e, deste modo, permitir que sejam examinadas sob a via do
controle difuso de constitucionalidade, no âmbito daquela corte, apenas questões de
maior relevância e repercussão. Manifestações de juristas carregam, não sem polêmica, a
expectativa de que a exigência desta repercussão geral dê maior celeridade aos recursos
extraordinários e aprofunde a análise de matérias estritamente constitucionais pelo
Supremo Tribunal Federal, como afirmou a Presidente da corte, Ministra Ellen Gracie
(ERDELYI, 2006).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
154
Tais expectativas demonstram a relevância de uma observação e investigação do
tema. A pretensão posta sobre ele é nada menos que a solução em definitivo a chamada
"crise do recurso extraordinário", acrescendo racionalidade, segurança e celeridade à
jurisdição de uma forma geral e, em particular, ainda aprofundando o perfil estritamente
constitucional do Supremo Tribunal Federal. Esta investigação deve apontar como e se
críticas iniciais podem ser suplantadas para que a repercussão geral exigida como
requisito de admissibilidade de recursos extraordinários reafirme de modo democrático e
legítimo o papel do controle de constitucionalidade pela via difusa. Para tanto, é
necessário tematizar os riscos envolvidos na utilização deste instrumento, de modo a
lidar-se com eles adequadamente. É preciso investigar o papel deste instrumento na
sedimentação de jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal, para
verificar se esta sedimentação sofre impactos deste novo requisito de admissibilidade na
viabilidade reconstrutiva permanente d o sentido que atribuímos a nossos direitos e
garantias fundamentais.
Pode ser útil a esta investigação, ainda em fase embrionária, a reconstrução da
trajetória de praxis institucional da Suprema Corte dos Estados Unidos da América,
porquanto de há muito tal corte já vem se apoiando em seletividade semelhante,
exercendo-a em jurisdição constitucional difusa. A premissa teoria que se deseja aplicar
aqui é a de que direitos não se acham necessariamente enumerados, isto é, não esgotam
na literalidade do texto da norma (DWORIN, 1985, p. 173) e, deste modo, abrem-se para
novos sentidos futuros. Assume-se o conceito de que a leitura correta do texto da
constituição é antes de tudo principiológica (DWORKIN, 2002, p. 37) e que há um papel
institucional importantíssimo para a jurisprudência na construção dos significados e
limites (ainda que limites historicamente mutáveis) destes direitos fundamentais
(MENDES, 2002, p. 1).
Esta análise opõe-se a que o Texto Constitucional seja utilizado como pretexto
para a sua própria desconstrução, mas dá a ele uma leitura principiológica coerente com
o processo de aprendizagem que resulta da reconstrução crítica de uma história
institucional de aplicação de normas jurídicas, lendo as normas constitucionais sob o
enfoque dos compromissos de uma comunidade política com a afirmação basilar da
igualdade e liberdade dos seus integrantes (DWORKIN, 1999, p. 243 e p. 251).
Portanto, neste item, a pergunta a ser respondida pela pesquisa em andamento
pode ser sintetizada da seguinte forma: levando-se em conta as pretensões e as críticas
que um senso comum teórico tem aplicado sobre a norma do artigo 102, § 3º, da
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
155
Constituição Federal, e que este senso comum as oculta, que leitura deve ser dada, ante
os princípios constitucionais vinculativos de nossa comunidade política, para o requisito
de repercussão geral como condição de admissibilidade dos recursos extraordinários? A
hipótese levantada na pesquisa em curso é a de que a seletividade na admissão dos
recursos extraordinários, afastando-se da pretensão de semanticamente fixar o conteúdo
de direitos fundamentais em definitivo, permita uma constante reconstrução o horizonte
de sentidos dos direitos fundamentais, mantendo a abertura destes direitos para o futuro,
aprofundando a visibilidade do papel de corte constitucional do Supremo Tribunal
Federal e, simultaneamente, servindo ela própria como garantia fundamental da
importância de que a justiça não seja negada à geração presente. Uma hipótese,
portanto,que articula em sua formulação as dimensões passada, presente e futura na
adjudicação de direitos.
O problema e a hipótese mencionados aqui exigem o exame da relação entre o
tempo e a atribuição de sentidos às normas e às práticas sociais, sob um enfoque voltado
para a compreensão dos direitos fundamentais como resultantes de um compromisso
político ainda aberto para o futuro, porém cuja forma constitucional (a articulação e a
tensão entre liberdade e igualdade) não pode ser tornada disponível, nem mesmo sofrer
sacrifícios mútuos. É viável esta análise porquanto a leitura dada a toda praxis social
(inclusive, portanto, à praxis dos sentidos normativos) estabelece-se como campo no
qual é possível resgatar os vestígios de uma racionalidade efetivamente comunicativa na
formação do constitucionalismo como marco essencial da modernidade (HABERMAS,
1998, p. 168 e seguintes).
Semelhantemente ao que ocorre com súmulas jurisprudenciais, é duvidoso que a
corte possa aplicar uma "compreensão sobre repercussão geral a casos idênticos". Isto
exigiria não apenas a existência de tais casos idênticos, mas também que as afirmações
feitas pela corte na apreciação de casos anteriores ou na edição de uma súmula de
jurisprudência prescindissem de nova interpretação. Estes pressupostos são pouco
sustentáveis, à luz da noção hermenêutica da irrepetibilidade dos eventos e a
conseqüente exigência, feita ao aplicador da norma, de que seja pensada a também única
solução correta para aquele caso irrepetível (RICOEUR, 1995, p. 146 e DWORKIN,
2000, p. 203-204), através de um verdadeiro "encadeamento" narrativo dos sentidos das
normas através da multiplicidade e da singularidade de cada um dos casos concretos
examinados ao longo da formação de uma tradição interpretativa sobre o sentido das
normas (DWORKIN, 2000, p. 240).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
156
Mas este limite não significa a ausência de um papel constitucionalmente
adequado para uma seletividade hermenêutica exercida pela corte na admissão de
recursos extraordinários. Ao contrário, a tradição mais antiga e sedimentada na
jurisdição constitucional pela via difusa - a tradição norte-americana - pode revelar como
esta seletividade é em si mesma realimentadora e reconstrutora de um horizonte de
compreensão sobre os direitos fundamentais de uma comunidade política, tanto nos
momentos em que expressamente fala sobre um determinado tópico, como nos
momentos em que se recusa a conhecer dele. A investigação do potencial rico desta
tradição é um dos objetos específicos da pesquisa proposta aqui.
Por este motivo é que a pesquisa do tema se volta para a leitura do Direito como
integridade. Tal marco volta sua análise para a tradição que deu origem à jurisdição
constitucional desenvolvida nos Estados Unidos da América e debate, no contexto desta
tradição, a repercussão interpretativa estabelecida a partir tanto das manifestações
expressas quanto dos silêncios (eloqüentes) da Suprema Corte, na medida em que, ao
não conhecer de uma determinada questão, a corte em verdade ratifica tacitamente as
interpretações que vêm sendo adotadas até então. Sem dúvida, é uma tradição
respeitabilíssima, na qual a grande contribuição para o constitucionalismo é
precisamente a noção de um judicial review no qual no qual convivem riscos e imensas
possibilidades da reafirmação da Democracia pelo Direito (DWORKIN, 2006, p. 139).
Vale notar que a analogia entre o instituto da repercussão geral e a imensa
seletividade aplicada pela Suprema Corte dos EUA na admissão dos casos submetidos a
ela já era confessada no voto do relator do projeto de lei que veio a regulamentar o tema,
ainda quando tal projeto tramitava na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos
Deputados. No penúltimo parágrafo, aquele voto afirmava que a implementação da
medida possibilitará a atualização de nosso sistema de controle de constitucionalidade,
tornando-o mais semelhante ao sistema norte-americano (tradição constitucional que, ao
lado do sistema germânico, é considerada por aquele relator como formadora do sistema
brasileiro de controle de constitucionalidade - CUNHA, 2006). É certo que o exame
comparativo entre dois sistemas jurídicos distintos há de ser tratado com o cuidado
necessário a que um argumento de analogia não se justifique a si próprio, produzindo
uma impostura. Mas, este cuidado não deve impedir o que Bouveresse (2005, p. 141 e
seguintes) denomina de uso necessário da liberdade científica para os fins críticos que
caracterizam a própria ciência. Espera-se com isto que a investigação proposta desvele
um horizonte crítico, a partir do qual se possa problematizar, desde seu início, a
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
157
seletividade procedimental instituída na referida Emenda Constitucional 45, de 30 de
dezembro de 2004.
IV – Conclusão: um indicativo para a continuidade nas observações dos temas tratados
aqui.
A exposição resumida feita nos itens anteriores buscou servir como fundamento
que destaca não um caráter de “novidade” nestes dois instrumentos de jurisdição
constitucional (súmulas vinculantes editadas pelo Supremo Tribunal Federal e a adoção
da repercussão geral como requisito de admissibilidade de recursos extraordinários)129,
mas aponta para o fato de que seu acompanhamento é de grande relevância para um
Observatório da Justiça Brasileira, especialmente quando voltado para as questões do
acesso a ela. Ainda que os tribunais (felizmente) não esgotem em si o conceito de justiça
– nem as formas de acesso a ela – sem dúvida que ocupam uma posição de centralidade
que não é apenas formal, mas sim decorrente de um imperativo sociológico sistêmico
que lhes é particular: eles são obrigados a decidir as questões que lhes são postas, ônus
que não pesa de forma obrigatória (ao menos sob o ponto de vista constitucional) sobre
outras instituições no sistema do direito (LUHMANN, 2005, p. 381 e p. 387). A
centralidade do papel dos tribunais, no sistema do direito, deve levar a uma cautela ainda
maior quando se observa o papel da jurisdição constitucional no acesso à justiça. Uma
vez mais, embora o Supremo Tribunal Federal não esgote a jurisdição constitucional, ele
certamente tem um mandato institucional para atuar fortemente em seu balizamento
(Constituição Federal, art. 102). Deste modo, e se, vista novamente sob a ótica da
sociologia do direito, as constituições articulam em si direito e política (LUHMANN,
1990, p. 35-39). Isto sugere que é imperioso que se continue a análise crítica da práxis
que venha a ser estabelecida, pelo Supremo Tribunal Federal, nas súmulas vinculantes e
na repercussão geral como requisito de conhecimento da jurisdição constitucional pela
via difusa. Estes instrumentos são, a um só tempo, dotados de grandes potencialidades e
129 A rigor, como visto na exposição sobre as pretensões de senso comum incidentes sobre estes instrumentos, e como já indicam a norma de lei e a alteração regimental no âmbito do STF sobre a repercussão geral dos recursos extraordinários, há muito pouca novidade nas idéias que originalmente fundamentaram estes instrumentos. Em ambos, prevalece ainda a pretensão de uma racionalidade judiciária que toma a prestação jurisdicional prioritariamente com um recorte estatístico e propõe soluções que tanto tendem a desconsiderar especificidade entre demandas diversas, ignorando a inevitabilidade hermenêutica da compreensão de cada momento no curso do tempo e não atentando para a tessitura necessariamente aberta da linguagem. Sob esta ótica, tais instrumentos apenas repetem as pretensões de há muito já postas sob as súmulas jurisprudenciais, e que não foram atingidas não por uma “rebelião de instâncias inferiores” (como demonstra o pequeno índice de reforma destas decisões pelos Tribunais Superiores e pelo Supremo Tribunal Federal), mas porque são em verdade irracionais.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
158
de grandes riscos no que tange ao acesso à justiça e à construção de vínculos – que entre
nós ainda precisam ser grandemente incrementados – entre direito e democracia, no
reforço à exigência de que todo constitucionalismo seja democrático e emancipatório,
afastando-se da perversidade a qual se refere SANTOS (2005, p. 1-2).
Propõe-se, nesta linha, que o Observatório da Justiça Brasileira tome, entre suas
tarefas, o mapeamento periódico das súmulas chamadas vinculantes e das decisões sobre
a repercussão geral de temas trazidos em sede de recurso extraordinário perante o
Supremo Tribunal Federal, fazendo incidir sobre estes dados uma análise crítica de seus
efeitos na relação entre direito e democracia e no acesso à justiça.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
159
REFERÊNCIAS
BOUVERESSE, Jacques. Prodígios e vertigens da analogia: o abuso das belas-
letras no pensamento. Tradução: Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
BRASIL. Lei nº 11.276, de 7 de fevereiro de 2006. Altera os arts. 504, 506, 515 e
518 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil,
relativamente à forma de interposição de recursos, ao saneamento de nulidades
processuais, ao recebimento de recurso de apelação e a outras questões.
Disponível em: <htpp:// https://www.planalto.gov.br/>. Acesso em: 13 mai.
2006a.
__________. Constituição Federal da República Federativa do Brasil, de 5 de
outubro de 1988. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao >. Acesso em: 19 nov.
2006b.
___________. Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a
Consolidação das Leis do Trabalho. In: SARAIVA, Editora (autoria coletiva).
CLT Saraiva e Constituição Federal. São Paulo: Ed. Saraiva, 33ª ed. 2006c.
__________. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de
1988. In: SARAIVA, Editora (autoria coletiva). Constituição da República
Federativa do Brasil. São Paulo: Ed. Saraiva, 40ª ed. atualizada e ampliada. 2007.
CAMERON, W. S. K. Tradition and transcendence in the critical theories of
Gadamer and Habermas. Nova York, 1995. 286 f. Tese (Doutorado em
Filosofia). Graduate School of Arts and Science, Fordham University.
CUNHA, Odair. Relatório e voto no Projeto de Lei 6.648, de 2006, que
acrescenta à Lei 5.859, de 11 de janeiro de 1973, Código de Processo Civil,
dispositivos que regulamentam o art. 102, § 3º, da Constituição Federal.
Disponível em <htpp://www.camara.gov.br/sileg/integras>. Acesso em 20 out.
2006.
DWORKIN, Ronald. Law's ambition for itself. Virginia Law Review, Vol. 71,
No. 2, Mar., 1985, p. 173-187. Disponível em <http://links.jstor.org >. Acesso
em: 20 nov. 2006.
__________. O império do direito. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São
Paulo: Martins Fontes, 1999.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
160
__________. Uma questão de princípio. Tradução: Luís Carlos Borges. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.
__________. Levando direitos a sério. Tradução: Nelson Boeira. São Paulo:
Martins Fontes, 2002.
__________. Justice in robes. Cambridge: Havard University Press, 2006.
EDERLYI, Maria Fernanda. Pauta seletiva: repercussão geral vai tirar briga de
vizinho do STF. Consultor Jurídico, 4 mai. 2006. Disponível em
<htpp://conjur.estadao.com.br>. Acesso em : 7 nov. 2006.
GIDDENS, Anthony. “Entrevista com Anthony Giddens”, entrevista concedida a
José Maurício Domingues, Mônica Herz e Cláudia Rezende. Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, vol. 8, n. 16, 1992.
HABERMAS, Jürgen. Dialética e hermenêutica: para a crítica da hermenêutica
de Gadamer. Tradução: Álvaro L. M. Valls. Porto Alegre: L & PM Editora,
1987.
__________. Between facts and norms: contribuitions to a discoursive theory of
law and democracy. Tradução: William Rehg. Cambridge: MIT Press, 1998.
__________. On the pragmatics of social interaction: preliminary studies in the
theory of communicative action. Tradução: Barbara Fultner. Cambridge: MIT
Press, 2001b.
__________. O discurso filosófico da modernidade. Tradução: Luiz Sérgio Repa
e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2ª reimp. 2002b.
LUHMANN, Niklas. A constituição como aquisição evolutiva. Tradução
realizada a partir do original (Verfassung als evolutionäre Errungenschaft. In:
Rechthistorisches Journal. Vol. IX, 1990, pp. 176 a 220), cotejada com a
tradução italiana de F. Fiore (La costituzione come acquisizione evolutiva. In:
ZAGREBELSKY, Gustavo. PORTINARO, Pier Paolo. LUTHER, Jörg. Il Futuro
della Costituzione. Torino: Einaudi, 1996), por Menelick de Carvalho Netto,
Giancarlo Corsi e Raffaele De Giorgi. Notas de rodapé traduzidas da versão em
italiano por Paulo Sávio Peixoto Maia (texto não revisado pelo tradutor).
__________. El derecho de la sociedad. Tradução: Javier Torres Nafarrate.
Cidade do México: Herder; Universidad Iberoamericana, 2ª ed. 2005.
MENDES, Gilmar Ferreira. Os direitos fundamentais e seus múltiplos
significados na ordem constitucional. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, n. 10,
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
161
p. 1-12, 2002. Disponível em <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em 10
jul. 2006.
MOROSIDADE na justiça. CONSULTOR JURÍDICO, São Paulo, SP, 22 mai.
2006. Disponível em: <htpp:// http://conjur.estadao.com.br/> Acesso em: 22 mai.
2006.
OLIVEIRA, Paulo Henrique Blair de. Legitimidade e interpretação nas
súmulas jurisprudenciais: um estudo a partir da súmula 90 do Tribunal
Superior do Trabalho. Brasília, 2006, 144 f. Dissertação (Mestrado em Direito,
Estado e Constituição) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília.
OLIVEIRA JÚNIOR, Roney. A solidez da súmula vinculante e a fragilidade da
súmula impeditiva de recursos. Disponível em <
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6271> Acesso: 24. set. 2006.
REFORMA do Judiciário. CONSULTOR JURÍDICO, São Paulo, SP, 10 fev.
2004. Disponível em: < http://conjur.estadao.com.br/static/text/790> Acesso:
24.set.2006.
REPERCUSSÃO geral. CONSULTOR JURÍDICO, São Paulo, SP, 27 abr. 2006.
Disponível em: <http://conjur.estadao.com.br/static/text/43908> Acesso: 24 set.
2006.
RICOEUR, Paul. O justo ou a essência da justiça. Tradução: Vasco Cassimiro.
Lisboa: Instituto Piaget, 1995.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Constitucionalismos perversos. Visão. Lisboa, 8
dez. 2005.
TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Livro de Súmulas, Orientações e
Precedentes Normativos. Disponível em <htpp://www.tst.gov.br>. Acesso: 26
mai. 2006a.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
162
Os critérios ocultos do uso seletivo da Constituição pelos Tribunais
Paulo Rená da Silva Santarém
Ricardo Machado Lourenço Filho
Aquisições evolutivas do Direito
Violações da Constituição da República Federativa do Brasil não justificam um
pronunciamento judicial. Essa é a regra construída na jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça, no Tribunal Superior do Trabalho e no Supremo Tribunal Federal
Trabalho130, a partir da interpretação de normas que regulam os julgamentos. Há
exceções, que não são poucas, mas que são minoria, e nas quais permanecem ocultos os
critérios pelos quais as Cortes decidem analisar ou não uma demanda pelo parâmetro do
texto constitucional.
Seguindo a trajetória evolutiva dominante entre as nações ocidentais, a
Constituição Federal ocupa um posto assimétrico na estrutura legal do ordenamento
brasileiro. Suas disposições são fortalecidas pela maior dificuldade de alteração de seu
texto. Assim (mesmo considerando as flutuações da intensidade de democracia e
autonomia popular), desde sua primeira versão, em 1824, até a atual, de 1988, sua
pretensão é materializar e dar maior proteção aos determinados anseios políticos por
direitos. Nessa posição, ela serve de anteparo para a verificação de justiça das demais
normas, denominadas “infraconstitucionais”.
Os tribunais brasileiros também detêm um posto assimétrico. Como incremento
evolutivo da institucionalização do procedimento que leva à decisão, os tribunais se
colocam como segundos observadores de uma prévia observação: sua atribuição é
proferir decisões que avaliem outras decisões, proferidas nos graus de jurisdição
anteriores, tendo como parâmetro as disposições legais e como meta a congruência entre
os posicionamentos adotados no território sob sua jurisdição. Especificamente, os
tribunais superiores se baseiam nas normas federais e devem manter a uniformidade das
decisões em todo o território nacional, considerando a estrutura federalista.
Essas duas aquisições evolutivas, a Constituição e os tribunais superiores, têm
em comum a capacidade de permitir que o direito não mais precise recorrer a uma
justificação “externa” para os pronunciamentos jurídicos. São formas de internalização,
130 Excluem-se dessa enumeração o Tribunal Superior Eleitoral e o Superior Tribunal Militar, tendo em vista os baixos volume e constância das decisões que esses tribunais produzem, bem com a natureza especial de que tratam.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
163
reflexividades pelas quais as comunicações jurídicas produzem e reproduzem a si
mesmas, de forma autônoma. Tanto as leis podem ser consideradas contrárias ao direito
porque contrariam uma lei maior como as sentenças podem ser consideradas contrárias
ao direito por meio de um novo julgamento.
A partir dessas considerações, pode-se então observar como os tribunais
verificam se as decisões proferidas estão ou não de acordo com a Constituição.
O uso da Constituição nos tribunais superiores
Primeiro, é necessário pontuar que, na evolução da instrumentalização do
procedimento decisório, a decisão se configura como o momento de aplicação da regra,
e se distingue do nascimento dessa regra131. Esse pressuposto, disseminado no
ordenamento jurídico, permite que o momento da criação da regra seja prolongado. As
regras de legislação incorporam previsões claramente direcionadas a proporcionar o
debate das matérias, os quais podem resultar inclusive, sopesadas as conseqüências
perante a opinião pública, na não-criação de regra nenhuma. Diferentemente, ao Poder
Judiciário é vedado se esquivar de decidir. Uma vez proposta uma demanda judicial,
deve ser proferida uma sentença que ponha fim ao processo. Não obstante, a validade
dessa sentença exige que ela seja devidamente fundamentada, explicitando os seus
critérios decisórios132.
Uma primeira constatação paradoxal é que o fim do processo pode não se dar
com a solução jurídica da matéria em debate. Apenas se for encaminhada de acordo com
as regras processuais, uma controvérsia entre dois sujeitos de direito terá um
pronunciamento “com resolução de mérito”, ou seja, um pronunciamento que verse
sobre a incongruência de interesses que originou o pedido de um pronunciamento
judicial.
No âmbito dos tribunais superiores, são os recursos que movimentam o Poder
Judiciário, e eles também se submetem a regras de admissibilidade, as quais, se não
satisfeitas, permitem ao Estado-Juiz não se pronunciar quanta à matéria de fundo e dar
cabo ao processo em um nível apenas formal-processual. Antes de adentrar nesse tema, é
necessário explicitar a diferença entre os tribunais superiores.
De forma redutora, pode-se dizer que a atribuição precípua do STJ e do TST é
preservar a aplicação das leis federais, ao passo que a do STF é preservar a Constituição.
131 Cf. LUHMANN, Niklas, “A posição dos tribunais no sistema do direito”. In: Revista da Ajuris. Nº 49, ano XVII, julho de 1990. 132 Assim dispõem expressamente os artigos 93, inciso IX, da CF, 458 do CPC e 832 da CLT.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
164
Recompondo a complexidade, é necessário atentar que o ordenamento brasileiro admite
o controle difuso de constitucionalidade, ou seja, permite que também os juízes de
primeiro grau de jurisdição, ao analisar os casos concretos, exerçam o controle da
aplicação da Constituição, por exemplo, considerando que determinada lei federal não
deve ser seguida, porque inconstitucional. Essa decisão, contudo, pode ser seguida por
recursos que a levem a ser analisada posteriormente pelos tribunais superiores.
Na justiça do trabalho, o percurso pode ser explicado de forma simplificada nas
seguintes palavras. O empregado ajuíza uma a reclamação trabalhista, postulando o
recebimento de verbas a que teria direito em razão de determinada postura do
empregador, alegando que este violou uma cláusula de norma coletiva, um artigo de lei
federal e um artigo da Constituição. Indica ainda que lhe seriam favoráveis as decisões
tomadas em outros casos semelhantes, tanto pelos tribunais de sua e de outras regiões,
bem como as do TST e do STF. Recebida a reclamação, o empregador apresenta sua
contestação, infirmando as alegações do empregado, tanto quanto ao que aconteceu
quanto à sua pretensão, além de apontar eventuais falhas procedimentais no ajuizamento
da reclamação. Após analisar as provas produzidas, o juiz firma convencimento quanto
ao que aconteceu, analisa a situação à luz das normas pertinentes e profere uma
sentença, que suporemos desfavorável ao empregado. Este interpõe recurso ordinário ao
Tribunal Regional do Trabalho de sua região, indicando novamente os mesmo
fundamentos. O Empregado apresenta contra-razões e o tribunal reavalia as provas para
determinar o que aconteceu, reanalisa a situação pelo prisma normativo e profere um
acórdão, que suporemos novamente contrário ao interesse do empregado. Este recorre
novamente, agora ao TST, por meio de um recurso de revista, e esta contextualização
permite que adentremos no cerne da presente observação.
A norma processual que regulamenta os recursos de revista estabelece duas
hipóteses de cabimento. Na primeira, por divergência jurisprudencial, caso na decisão
recorrida o Regional tenha interpretado, de forma diferente da adotada pelo Pleno ou
Turma de um outro Tribunal Regional, pela Seção de Dissídios Individuais ou pela
Súmula de Jurisprudência Uniforme dessa Corte do Tribunal Superior do Trabalho, a)
um dispositivo de lei estadual, Convenção Coletiva de Trabalho, Acordo Coletivo,
sentença normativa ou regulamento empresarial, cuja vigência não se limite à jurisdição
do tribunal prolator, ou b) um dispositivo de lei federal. O objetivo é manter a
uniformidade das interpretações em todo o território nacional, evitando que em um
estado federativo se imponha uma regra diversa da imposta no estado vizinho.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
165
Na segunda hipótese, que é o objeto central da presente observação, o recurso de
revista deve ser conhecido caso a decisão recorrida implique “violação literal de
disposição de lei federal ou afronta direta e literal à Constituição Federal”133.
Antes passar diretamente ao exame do que seja a exigência da violação direta, e
de como ela representa uma forma de desconstitucionalização das controvérsias, é
necessário apontar que a presente observação também se direciona ao STF. Retomando
o itinerário processual acima, caso o TST mantenha a decisão contrária ao interesse do
empregado, este poderá ainda recorrer ao STF, por meio de um recurso extraordinário,
no qual se analisará a constitucionalidade da decisão134. Como este apelo também é
cabível justiça comum135, os problemas aqui apontados não se limitarão à jurisdição
trabalhista.
Além disso, sinale-se que a extensão do espectro possível de observação da
prática de desconstitucionalização poderia ser ainda ampliada ao máximo, uma vez que
o Tribunal Superior do Trabalho não julga apenas causas individuais, pois sua
competência inclui processos de natureza coletiva; e que o exercício do controle de
constitucionalidade pelo STF abrange ainda ações diretas de constitucionalidade e ações
declaratórias de constitucionalidade, que compõem o controle de constitucionalidade
abstrato.
As bases dos fundamentos decisórios
Na tomada das decisões, os tribunais valem-se não apenas das leis estritamente.
Outros elementos que orbitem a expectativa deduzida judicialmente são considerados
pelas decisões das cortes na medida em que possam ser relevantes para a utilização do
binômio direito ou não-direito, traduzível em convergente ou divergente (em relação à
interpretação por outros tribunais), legal ou ilegal e ainda constitucional ou
inconstitucional.
Nesse contexto complexo, as leis correspondem a programas condicionais (do
tipo “se, então”) que informam a aplicação do código. Isso possibilita a exclusão de
133 Art. 896, alínea “c”, da Consolidação das Leis do Trabalho. 134 Art. 102, III, “a”, da CF. 135 Na Justiça comum o recurso extraordinário é interposto diretamente a partir da decisão proferida pelo Tribunal do Estado (que na estrutura organizacional equivalente ao Tribunal Regional Trabalho), portanto, sem a necessidade de ser avaliada previamente pelo STJ, cuja competência se limita à análise da legalidade da decisão, nos termos do art. 105 da CF. Ressalte-se que como a Constituição apenas prevê expressamente a Justiça do Trabalho, sem delinear sua estrutura organizacional, a competência do TST é definida em legislação infraconstitucional.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
166
argumentos econômicos (vinculados ao poder de disposição material dos envolvidos),
políticos (voltados a finalidades e orientados a programas teleológicos), morais, ou,
ainda, religiosos, entre outros. A comunicação interna do direito exclui as racionalidades
que não possam ser “lidas” a partir do código direito/não-direito.
Entretanto, com freqüência é ocultado o uso desse código pelos próprios
tribunais segundo parâmetros que não propriamente jurídicos, principalmente em
utilização política ou econômica. O direito é jogado contra si mesmo, utilizado
juridicamente para negar o direito. Nas entrelinhas, subjazem, de forma não expressa,
razões políticas, econômicas ou mesmo religiosas. Evidências recolhidas na
jurisprudência brasileira apontam que essa corrupção do código traz consigo o
esvaziamento da normatividade constitucional. Normalmente nas hipóteses em que, por
um dado formal-processual, o Estado-Juiz não se isenta de proferir uma decisão, mas
emite um pronunciarem que não responde as questões que lhe foram apresentadas.
Há vários exemplos dessa postura “tangencial”, pela qual um incontável número
de processos é finalizado por uma decisão que não resolve o mérito. Os tribunais
superiores, incluindo o STF, entendem que não podem, em seus julgamentos, revolver
questões fáticas e probatórias136. Outro exemplo é a necessidade de
prequestionamento137, regra segundo a qual se o tema não foi previamente analisado na
instância anterior, de forma específica e pelo prisma aventado, o tribunal julgador do
apelo não pode apreciá-la.
As Cortes se utilizam desses fundamentos para negar seguimento aos recursos
que lhes são submetidos, fechando os olhos para o direito individual em debate, embora
prolatem uma decisão que formalmente responde ao pedido de reforma da decisão
anterior, mas com um “não” que oculta seus reais fundamentos.
A regra da admissão da violação indireta à Constituição
Talvez uma das práticas mais curiosas, senão perigosas, dos tribunais
superiores138 seja a utilização do termo “violação indireta”, para justificar a
desnecessidade de se analisar um caso concreto submetido a seu exame, por meio de
uma desqualificação formal da alegação do recorrente de que houve ofensa à
Constituição. 136 Ver Súmulas 279 do STF, 126 do TST e 7 do STJ. 137 Súmulas nº 282 e 356 do STF, 297 do TST. 138 Reitere-se que, em face da competência constitucional, o campo desta pesquisa se restringe ao Supremo Tribunal Federal e ao Tribunal Superior do Trabalho.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
167
Como dito, a legislação que regula o cabimento dos recursos de revista alude à
necessidade de demonstração de ofensa “direta” ao texto constitucional, sendo que em
processos de execução a admissibilidade exige a constatação de violação “direta e
literal”139. Mas a legislação não delimita o que pode ser uma violação indireta da
Constituição, e como ela pode ser admitida pelos tribunais a ponto de não justificar a
reforma de uma decisão anterior. Para tanto, podem-se observar algumas decisões cuja
linguagem utilizada revele o significado que se confere ao termo, a distinção semântica
que se traça.
Em freqüentes julgados é denegado seguimento ao recurso, sob o fundamento de
que as questões foram resolvidas pelas instâncias inferiores à luz de legislação
infraconstitucional e ensejariam “quando muito” ofensa indireta ao texto constitucional.
Uma recente decisão do STF asseverou que “a jurisprudência deste Tribunal
fixou-se no sentido de que a verificação, no caso concreto, da ocorrência, ou não, de
violação do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada [todos previstos
no art. 5º, XXXVI, da Constituição] situa-se no campo infraconstitucional”140.
Esse julgamento apenas reverbera a jurisprudência da Corte, segundo a qual “não
cabe recurso extraordinário por contrariedade ao princípio constitucional da legalidade,
quando a sua verificação pressuponha rever a interpretação dada a normas
infraconstitucionais pela decisão recorrida”141, entre outros exemplos:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO TRABALHISTA: DESCABIMENTO: Questão
de natureza processual ordinária, inocorrente violação direta e frontal aos dispositivos
constitucionais invocados (CF, arts. 5º, II, XXXV, LIV e LV, e 93, IX)” (STF-AgR-AI-
323.141/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, “in” DJ de 20/09/02).
“CONSTITUCIONAL - RECURSO EXTRAORDINÁRIO: ALEGAÇÃO DE
OFENSA AOS ARTS. 5º, II, XXXV, XXXVI, LIV, LV, 7º, XXIX, E 93, IX. I - Alegação de
ofensa à Constituição que, se ocorrente, seria indireta, reflexa, o que não autoriza a
admissão do recurso extraordinário. II - Ao Judiciário cabe, no conflito de interesses,
fazer valer a vontade concreta da lei, interpretando-a. Se, em tal operação, interpreta
razoavelmente ou desarrazoadamente a lei, a questão fica no campo da legalidade,
inocorrendo o contencioso constitucional. III - Agravo não provido” (STF-AgR-RE-
245.580/PR, Rel. Min. Carlos Velloso, 2ª Turma, “in” DJ de 08/03/02).
139 Art. 896, § 2°, da CLT. 140 STF-AI 663.405-AgR/RS, Diário da Justiça de 23/11/2007. 141 Súmula 636 do TST.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
168
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO - ALEGADA VIOLAÇÃO AOS PRECEITOS
CONSTITUCIONAIS INSCRITOS NOS ARTS. 5º, II, XXXV, XXXVI, LIV , LV, E 93, IX -
AUSÊNCIA DE OFENSA DIRETA À CONSTITUIÇÃO - CONTENCIOSO DE MERA
LEGALIDADE - RECURSO IMPROVIDO. A situação de ofensa meramente reflexa ao
texto constitucional, quando ocorrente, não basta, só por si, para viabilizar o acesso à
via recursal extraordinária” (STF-AgR-AI-333.141/RS, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª
Turma, “in” DJ de 19/12/01).
Na mesma linha, o TST afirmou que “não há como se vislumbrar ofensa ao art.
5º, inciso II, da Constituição da República, porque a lesão ao referido texto
constitucional depende de violação de norma infraconstitucional, de forma que, somente
após caracterizada esta última, poder-se-á, indireta e reflexivamente, concluir que aquele
foi desrespeitado”142.
Também do TST tem-se a seguinte decisão: “para se chegar à violação do
princípio da ampla defesa, previsto no inciso LV do art. 5º da Constituição Federal,
fazia-se necessário, antes, analisar os termos da legislação infraconstitucional pertinente
à matéria em debate, o que se traduziria, no máximo, em eventual violação indireta ou
reflexa” (cf. TST-ERR-513.606/1998, Rel. Min. José Luciano de Castilho, DJ-7.5.2004).
Assim, pode-se observa a regra de que há “violação indireta” da Constituição
quando a normatização entre o texto constitucional e o caso concreto é mediada pela
legislação infraconstitucional. Uma decisão do STF sintetiza: “as alegações de violação
aos princípios da legalidade, da motivação dos atos decisórios, do devido processo legal
e do contraditório, quando demandarem a apreciação da legislação infraconstitucional,
configuram, em regra, situação de ofensa reflexa ao texto constitucional, o que impede a
utilização do recurso extraordinário”143.
No caso da época própria da correção monetária dos salários, tema regulado pelo
art. 459, parágrafo único, da CLT, em vários julgados do TST não se conhece dos
recursos, sob o argumento de que a matéria detém natureza infraconstitucional. O
mesmo vale ainda para o debate sobre a prescrição qüinqüenal, se parcial ou total, à qual
142 TST-EEDRR-31.214/2002-900-09-00, DJ de 17/08/2007. No mesmo sentido, entre outros, TST-RR-546.404/1999.3, DJ de 27/02/04; TST-RR-805/1999-014-05-00.2, DJ de 13/02/04; TST-RR-593.842/1999.3, DJ de 27/06/03; TST-RR-1.141/2003-011-06-00.1, DJ de 10/12/04; TST-RR-607.153/1999.1, DJ de 21/05/04; TST-E-RR-587.882/1999.0, DJ de 30/01/04. 143 AI 656.772-AgR/AM, DJ de 23.10.2007
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
169
não se reconhece o caráter constitucional por se tratar de construção jurisprudencial, e
não estar regulada expressamente no art. 7°, XXIX, da CF144.
O exame dessa prática sugere algumas indagações. Quando se afirma que a
constatação de ofensa à Constituição depende de exame prévio de uma lei, não se estará
invertendo a assimetria, e lendo o parâmetro constitucional à luz das disposições
infraconstitucionais? Ou, ainda, mais curiosamente, a edição de uma lei ordinária que dê
conteúdo à previsão constitucional, ao invés de reforçar, tem o condão de enfraquecer a
normatividade do texto constitucional?
Os critérios ocultos e a exceção à regra da violação indireta
A perplexidade aumenta, contudo, quando uma análise mais detalhada da
jurisprudência do STF e do TST revela certos casos em que essa regra é relativizada. Em
casos “especiais”, entende-se que a violação, mesmo não sendo direta, permite o
conhecimento do recurso. O problema está que a forma argumentativa utilizada não
transparece quais os critérios utilizados.
Um interessante exemplo, no âmbito do STF, e que indica o condicionamento
político do julgamento, pôde ser observado no julgamento da questão relativa à correção
das contas vinculadas do FGTS, por força das perdas decorrentes dos expurgos
inflacionários dos planos econômicos “Bresser”, “Verão”, “Collor I” e “Collor II”. Os
jornais da época (como a Folha de São Paulo, de 2.8.2000 a 1.9.2000) noticiavam que
uma decisão do Supremo favorável à correção referente a todos os planos teria um o
impacto negativo de gerar para o governo uma dívida de aproximadamente R$ 53
bilhões. O STF acabou concluindo que, com relação aos planos “Verão” e “Collor I”, a
matéria era infraconstitucional e não dizia respeito a direito adquirido, razão pela qual
não ensejava o conhecimento dos recursos extraordinários. Já para os demais planos, a
Corte entendeu que não há direito adquirido a regime jurídico145. Essa postura limitou o
impacto a R$ 38 bilhões.
Como dito anteriormente, na Justiça do Trabalho o TST desenvolveu uma
jurisprudência no sentido de não examinar recursos de revista, apresentados em processo
144 Súmula 409 do TST: “AÇÃO RESCISÓRIA. PRAZO PRESCRICIONAL. TOTAL OU PARCIAL. VIOLAÇÃO DO ART. 7º, XXIX, DA CF/1988. MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL. Não procede ação rescisória calcada em violação do art. 7º, XXIX, da CF/1988 quando a questão envolve discussão sobre a espécie de prazo prescricional aplicável aos créditos trabalhistas, se total ou parcial, porque a matéria tem índole infraconstitucional, construída, na Justiça do Trabalho, no plano jurisprudencial”. 145 RE-226.855-7/RS, DJ 13/10/2000.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
170
de execução, quando a matéria tratada for objeto de legislação infraconstitucional. O
fundamento é que nesses casos a ofensa seria, se existente, reflexa e indireta.
Em 24 de agosto de 2001, a Medida Provisória nº 2.180-35 acresceu o art. 1º-F à
Lei nº 9.494/97, dispondo que, nas condenações impostas à Fazenda Pública, os juros de
mora aplicáveis são de 0,5% ao mês. Tal preceito contraria a regra geral de 1% ao ano,
prevista na Lei nº 8.177/90. Não há dúvida que essa matéria tem natureza
infraconstitucional e, pela regra, o Tribunal Superior do Trabalho, nos processos de
execução, não examinaria os recursos de revista que tratam desse tema, certo? Errado.
Diversos Tribunais Regionais do Trabalho deixaram de aplicar o art. 1º-F da Lei
nº 9.494/97, quer por vício de forma na edição da referida Medida Provisória, quer
porque o dispositivo ofenderia o princípio da igualdade, uma vez que os juros de mora
incidentes sobre os créditos do empregado público seriam menores do que os incidentes
sobre os créditos devidos aos demais trabalhadores. O TST foi provocado a se
manifestar inúmeras vezes, por meio de recursos de revista, e, não obstante os processos
já estivessem na fase de execução (o que implicaria a limitação indicada quanto ao
exame dos recursos), foi pronunciada a violação “direta e literal” ao texto constitucional,
justamente ao inciso II do art. 5° da CF.
Nas decisões consta que “não há norma que ampare a incidência de juros de 1%
ao mês na execução trabalhista”146, ou que “a violação ao princípio da legalidade
insculpida no art. 5º, II, da Constituição Federal resta patente quando há condenação sem
base legal ou quando se decide frontalmente contra a letra da lei”147.
Em alguns julgados é possível colher argumentos que remetem à natureza de
ordem pública e à observância obrigatória do art. 1º-F da Lei nº 9.494/97. Mas o art.
459, parágrafo único, da CLT também o é. O que o TST deixa oculto ao se pronunciar é
que na questão da época própria da correção monetária, matéria análoga e igualmente
versada em lei, não se considera a ocorrência de violação direta. O critério distintivo não
fica claro:
“Todavia, mesmo sendo reflexa a ofensa ao art. 5º, II, da Carta Magna
(conforme reconhecido pela jurisprudência do STF), esta Corte tem mitigado o rigor do
óbice legal para admitir, excepcionalmente, o conhecimento do apelo por vulneração ao
comando constitucional, quando violada de forma teratológica norma legal de caráter
cogente, que impõe expressamente conduta ao juiz, como na hipótese do art. 1º-F da Lei
146 ERR-214/1996-122-04-00. 147 RR-207/2005-010-17-00.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
171
9.494/97, que estabelece que os juros de mora, nas condenações impostas à Fazenda
Pública para pagamento de verbas remuneratórias devidas a servidores e empregados
públicos, não poderão ultrapassar o percentual de 6% ao ano. 3. No caso, trata-se de
acórdão regional que manteve a aplicação de juros de mora no percentual de 1% ao
mês, ficando caracterizada a violação do art. 5º, II, da CF, por desrespeito ao princípio
da legalidade” (TST-RR-51.054/2005-656-09-00.0, 7ª Turma, DJ de 19/10/2007).
Os exemplos dos recursos interpostos em processo de execução são os de
identificação mais fácil, certamente pela restrição imposta pela lei ao cabimento do
recurso, o que põe em maior evidência eventuais manobras jurisprudenciais. Não se deve
perder de foco um ponto importante da crítica aqui formulada: o problema não é o mero
fato de o Tribunal se pronunciar no caso acima indicado, mas, sim, o fato de não se
pronunciar (ou melhor, decidir) nos demais casos, operando uma seleção cujo critério
não é revelado no texto da decisão.
Toda a obscuridade é sintetizada na seguinte ementa de um julgado da Subseção
de Dissídios Individuais – I, do TST, órgão de cúpula responsável pela uniformização da
jurisprudência nas reclamatórias trabalhistas:
“RECURSO DE EMBARGOS. DESCONTOS PREVIDENCIÁRIOS E FISCAIS.
RECURSO DE REVISTA EM EXECUÇÃO DE SENTENÇA. ART. 896, § 2.º, DA CLT E
SÚMULA 266 DO TST. VIOLAÇÃO DO ART. 5.º, II, DA CARTA MAGNA.
IMPOSSIBILIDADE. DESPROVIMENTO. 1. Cinge-se a controvérsia em saber a
possibilidade de conhecimento de Recurso de Revista, em execução de sentença, ou seja,
quando preenchido o requisito do art. 896, § 2.º, da CLT e da Súmula 266 do TST, por
violação direta do art. 5.º, II, da Constituição Federal, em face da jurisprudência
pacífica no TST, e no STF também, no sentido de que se trata de norma-princípio, cuja
violação ocorreria, quando muito, de forma reflexa, mas nunca direta. 2. A egr. 4.ª
Turma, Órgão Colegiado que muito me honra compor, tem mitigado o alcance da
Súmula 266 do TST e do art. 896, § 2.º, da CLT quando, em processo de execução,
ocorrer violação teratológica, como ocorre na hipótese em que se desrespeita a
literalidade de legislação infraconstitucional, adotando posicionamento de que fica
configurada a violação direta e frontal ao princípio da legalidade, como ocorre na
hipótese em que não se impõem as contribuições previdenciárias e fiscais na forma das
leis que as regulamentam. 3. Todavia, por disciplina judiciária, curvo-me à recente
decisão desta col. Seção Especializada que, contra posicionamento pessoal desta
Relatora, entende não ser possível o reconhecimento de violação direta do art. 5.º, II, da
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
172
Carta Magna, mesmo nas hipóteses teratológicas. Recurso de Embargos desprovido.”
(TST-E-RR-45.716/2002-900-02-00.9, DJ de 09/11/2007).
Nesse caso, o calcanhar de Aquiles está no uso do temo “teratológico”. Mas da
leitura da decisão não fica claro qual seria o fator caracterizador da peculiaridade do
caso que ensejaria flexibilização da regra da “violação indireta”.
Entrementes, a teratologia parece assombrar em várias oportunidades. A própria
SBDI-1 admite a violação direta do direito de defesa, garantido na Constituição, em face
da inobservância de regras processuais previstas no CPC:
“A oposição de embargos de declaração, por uma das partes, interrompe o prazo para
interposição de outros recursos para ambas as partes (CPC, art. 438, caput). E o
acréscimo da condenação, em razão do efeito modificativo que lhe foi atribuído,
assegura à parte vencida o direito de recorrer (CPC, art. 499). A decisão do Regional,
ao não conhecer das razões recursais aditivas oportunamente apresentadas pela parte
sucumbente, sob o fundamento apontado, cerceando manifestamente o direito de defesa
da parte vencida, é teratológica, e, nessas circunstâncias, esta Corte tem conhecido do
recurso, por afronta direta ao art. 5º, LV, da Constituição Federal.” (TST-E-RR-
52395/2002-900-10-00.5, DJ de 09/07/2004).
Um exemplo final, que demonstra todo o ocultismo na definição de qual espécie
de violação do texto constitucional enseja ou não o cabimento do recurso de revista
aflora quando o TST, julgando procedente um apelo do Estado de Alagoas, entendeu que
“a inobservância do prazo específico para o ente público opor embargos à execução
enseja ofensa ao art. 5º, LV, CF”148. Nesse caso, entendeu-se que havia sido observado
pelo ente público o prazo previsto no art. 730 do CPC para a oposição de embargos à
execução, determinando-se o retorno dos autos ao Tribunal Regional da Trabalho, para
que fosse debatida a execução contra a Fazenda Pública.
A rarefação da Constituição
Como conquista improvável da modernidade, a Constituição acopla direito,
política e economia, estabelecendo os canais pelos quais esses sistemas podem coexistir
sem prejuízo do fechamento operacional de cada um, ou seja, sem que cada subsistema
social abdique do seu código próprio em nome das premissas lógicas de outro. Segundo
Niklas Luhmann, “o sistema jurídico, graças a esse acoplamento, tolera um sistema
148 TST-RR-00230/2005-008-19-40.3, 1ª Turma, DJ de 22/06/2007.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
173
político que tende para o Estado regulador e que não deixa passar o que possa submeter
às suas próprias operações. Também o sistema político, graças a esse acoplamento,
tolera um sistema jurídico que dá curso continuamente a processos próprios, protegidos
da interferência política logo que a questão direito/não-direito, lícito/ilícito, se
apresente”149.
Mas se a resposta às pressões políticas e econômicas exercida sobre os tribunais,
é o esvaziamento do conteúdo normativo do texto constitucional favorece esse tipo de
prática, há na verdade a corrupção do código, o uso do direito contra ele mesmo.
Há conseqüências práticas dessa rarefação do conteúdo normativo da
Constituição. A utilização seletiva enviesada dos dispositivos constitucionais, mais do
que indicar a fragilidade do acoplamento estrutural entre direito e política, debilita o
controle jurídico do poder político, e, ao mesmo tempo, fragiliza a participação dos
interessados no debate dos direitos, submetidos a uma coerção política eficientemente
antidemocrática. Como indicado por Juliana Magalhães, tem-se “um processo crescente
de ‘deslegitimação’, ou seja, de esmaecimento das expectativas sociais quanto a uma
regulação jurídica do exercício do poder político. Mais ainda, pode ocorrer de o direito,
e sobretudo ‘os direitos’ serem cada vez menos ‘levados a sério’”150.
Observações futuras
Além da violação indireta, outros flancos abertos à desconstitucionalização já
foram apontados: a impermeabilidade dos tribunais às questões fáticas e a necessidade
de prequestionamento. São compromissos formais com a análise dos processos que
permite o desprestígio do conteúdo das expectativas normativas em questão, mesmo que
constitucionais.
Há outras fissuras na jurisprudência que podem minar a efetivação do texto
constitucional, cuja análise depende de futuras observações. Por exemplo, o papel das
súmulas de jurisprudência e orientações jurisprudenciais na admissibilidade dos recursos
deve ser problematizado. Atualmente a sua diferenciação e suas regras de criação são
149 LUHMANN, Niklas, “A Constituição como Aquisição Evolutiva”. Trad. de Menelick de Carvalho Netto (para fins acadêmicos). In: ZAGREBELSKY, Gustavo, PORTINARO, Píer Paolo, LUTHER, Jörg (Orgs.). Il Futuro della Constituzione. Torino: Einaudi, 1996 (manuscrito). Cf. também PAIXÃO, Cristiano. A Reação Norte-Americana aos Atentados de 11 de Setembro de 2001 e seu Impacto no Constitucionalismo Contemporâneo: Um Estudo a partir da Teoria da Diferenciação Funcional do Direito. Tese de Doutorado. UFMG. Belo Horizonte, 2004. 150 MAGALHÃES, Juliana Neuenschwander. “Constituição e Diferença”, Rio de Janeiro, 2007 (manuscrito inédito). Ver também CAMPILONGO, Celso. “Direitos Fundamentais e Poder Judiciário”. In: O Direito na Sociedade Complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
174
reguladas quase que inteiramente por normas internas das Corte, não sujeitas sequer
formalmente ao controle de constitucionalidade. E as diretrizes por elas traçadas se
beneficiam da assimetria do papel das Cortes para se manterem fora do debate, uma vez
que o recurso que poderia questioná-las é previamente analisado pelo próprio tribunal
que as emitiu.
Outro problema é a crescente restrição do trânsito de recursos, sempre
comprometida com uma pretensa celeridade dos processos. Mas a quem beneficia essa
celeridade na prolação de uma decisão que não oferece uma resposta sobre a expectativa
normativa frustrada?
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
175
DESCONSTITUCIONALIZAÇÃO E DIREITOS SOCIAIS: O EXERCÍCIO DO
DIREITO DE GREVE E O ACESSO À JUSTIÇA
Marthius Sávio Cavalcante Lobato
Introdução
Para que a greve fosse elevada a nível constitucional, como preceito
fundamental, na Constituição da República de 1988, necessário foi um grande
envolvimento da classe trabalhadora, com atuação firme e determinada para que a ela
fosse reconhecida a condição humana151.
De fato, a relação entre labor e trabalho que envolvia a condição humana estava
sempre restrita à própria atividade exercida pelo homem, ou seja, laborar significava ser
escravizado pela necessidade que era inerente à condição humana. Talvez seja por isso
que na era moderna não se conseguiu estabelecer uma distinção clara entre o “labor de
nosso corpo e o trabalho de nossas mãos”, mas tão somente a apontar diferenciações
entre trabalho produtivo e improdutivo, posteriormente diferenciou-se entre qualificado
e não-qualificado para, finalmente, trabalho manual e trabalho intelectual.152
Na modernidade, mesmo tendo alterado o conceito de escravidão, somente com
o Estado de direito é que se impôs ao Estado um agir não de forma única e autoritária,
mas através de uma conduta de observação do cidadão não mais como súdito, mas
como pessoa detentora de personalidade e, portanto, de direitos. Ou seja, o centro do
poder político na modernidade é ocupado pelo homem trabalhador, a partir deste
processo de evolução estatal153.
O constitucionalismo social trouxe para o mundo o início de um processo de
conquista social. Os direitos humanos passaram de uma expectativa de direito para
tornar-se um efetivo direito fundamental do cidadão. Esses direitos, inscritos no texto
constitucional na forma de normas principiológicas, devem estar ao alcance de todos. O
Estado constitucional procura não somente organizar o exercício do poder político
151 Sobre uma nova referência da condição humana, ver Hannah Arendt. A Condição Humana.Tradução Roberto Raposo. 10ª Ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. 152 Sobre uma distinção entre labor e trabalho, demonstrando claramente um evolução da máquina de trabalhar produtiva e a preservação da vida, ver Hannah Arendt, A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo, 10ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2007,em especial o Capítulo III, p. 90/180. 153 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo. 10 ª edição: Rio de Janeiro. Forense Universitária, 2007, p. 94/95.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
176
soberano, mas, na busca de limitação do poder, procura definir os direitos fundamentais
do cidadão, de modo a conformar a atuação dos governantes, seja no respeito aos
direitos individuais e coletivos, seja ainda na exigência de promoção dos direitos
sociais, econômicos e culturais. As relações sociais do trabalho recebem um tratamento
constitucional tendo como expectativa a afirmação dos Direitos do Homem trabalhador
por meio de uma regulamentação mais rigorosa, se comparada com a legislação
ordinária. As Constituições contemporâneas têm dado ênfase à realização dos direitos,
como um sistema aberto de regras e princípios diante de sua força normativa154.
Sendo assim, deve-se também interpretar os direitos sociais dos trabalhadores
como forma não meramente de promessas, mas como mecanismos concretos de
realização de direitos. São, portanto, dotados de eficácia jurídica, que não podem se
tornar vazias, ou inconseqüentes, na medida em que já estão prontas para produzir
efeitos concretos.
A Constituição brasileira assim instituiu, como direitos do trabalhador, direitos
humanos fundamentais que estão dispostos no artigo 7º e seus trinta e quatro incisos.
Quanto ao direito fundamental institucional, ou coletivo (estrutura sindical) está
previsto no artigo 8º e seus oito incisos da Constituição da República. Os direitos
constantes nos incisos do artigo 7º tratam dos Direitos do Homem, individuais, ou das
pessoas singulares, voltadas para a proteção da liberdade pessoal.
O Poder judiciário: observação necessária para o direito de greve numa
constituição democrática
O Poder Judiciário tem sido o palco para a solução de conflitos cuja origem é o
exercício do direito de greve. Este tema acaba por envolver pré-concepções de
conceitos há muito afirmados em nosso ordenamento jurídico – a dicotomia entre o
público e o privado – para a justificação da não aplicação de direitos a determinadas
situações concretas.
A interpretação negativa que vem sendo conferida por juízes e tribunais da
justiça comum, federal e, após a Emenda Constitucional nº 45/2004, pela justiça do
trabalho, de todos os Estados desta Federação, inclusive do Superior Tribunal de Justiça
traz em seu bojo não somente negação de um direito constitucionalmente garantido,
154 CANOTILHO, J.J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª edição. Portugal: Livraria Almedina, 2002, p.1.145.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
177
qual seja, o direito de greve dos trabalhadores, mas, também, a inacessibilidade da
Justiça.
De fato, as ações possessórias são instrumentos jurídicos utilizados para a
preservação da posse, do direito de um indivíduo ao exercício de fato, quando este se vê
ameaçado em seu direito. Neste sentido, não se discute a sua aplicabilidade nos casos
concretos como mecanismo para a preservação de direitos. O que não se pode permitir é
o seu desvirtuamento como vem ocorrendo reiteradamente em todos os segmentos
econômicos, para, sob a óptica possessória impedir a realização de movimento de
greve.
Conforme se demonstra através da farta documentação pesquisada, o setor
patronal tem se utilizado do interdito proibitório155 para de fato, impedir a realização de
greves por parte dos trabalhadores. Ao ser comunicado oficialmente pelas entidades
sindicais, em cumprimento a Lei de Greve, 7783/89156, utiliza-se do judiciário para, sob
a alegação de que se estaria na iminência de ver turbada ou esbulhada sua posse, por ato
das entidades sindicais e de seus diretores, impetra o referido instrumento processual
para obter, como de fato tem obtido, liminarmente, a expedição de mandato proibitório,
para que os trabalhadores se abstenham da prática de qualquer ato que pudesse
configurar a turbação ou esbulho, determinando, em muitos casos, que os trabalhadores
fiquem mais de 500 (quinhentos) metros da porta da fábrica, impedindo, inclusive, o
convencimento pacífico por parte dos trabalhadores157.
155 CPC - Art. 932 – O possuidor direto ou indireto, que tenha justo receio de ser molestado na posse, poderá impetrar ao juiz que o segure da turbação ou esbulho iminente, mediante mandado proibitório, em que se comine ao réu determinada pena pecuniária, caso transgrida o preceito.
156 Art. 3º Frustrada a negociação ou verificada a impossibilidade de recursos via arbitral, é facultada a cessação coletiva do trabalho. Parágrafo único. A entidade patronal correspondente ou os empregadores diretamente interessados serão notificados, com antecedência mínima de 48 (quarenta e oito) horas, da paralisação; Art. 13 Na greve, em serviços ou atividades essenciais, ficam as entidades sindicais ou os trabalhadores, conforme o caso, obrigados a comunicar a decisão aos empregadores e aos usuários com antecedência mínima de 72 (setenta e duas) horas da paralisação.
157 A Lei 7.783/89 garante expressamente aos trabalhadores: Art. 6º São assegurados aos grevistas, dentre outros direitos: I - o emprego de meios pacíficos tendentes a persuadir ou aliciar os trabalhadores a aderirem à greve; II - a arrecadação de fundos e a livre divulgação do movimento.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
178
Não se discute, quando da realização de greve, o direito de propriedade158 ou
mesmo o esbulho possessório. Não há o mínimo fundamento em colocar a “iminência
de esbulho e turbação da posse” como fator para a concessão da ordem liminar. Até
porque, também como se verá a seguir, não há greve surpresa em nosso ordenamento
jurídico e muito menos o animus de obter a posse.
A desconstitucionalização do direito de greve é afirmado judicialmente
quando é aplicado o instituto possessório, conferindo prevalência ao direito privado em
detrimento do direito público.O exercício do direito de greve deve ser preservado em
sua essência, sem os limites impostos pelo interdito proibitório, mas tão somente, pelos
limites procedimentais impostos pela própria Constituição da República em seu artigo
9º.
A Greve no Direito Brasileiro
Em uma caminhada conjunta, o direito dos trabalhadores em paralisar suas
atividades em prol de uma reivindicação que garanta a ampla efetividade de um direito
fundamental, qual seja, a preservação da dignidade humana, evoluiu na mesma
intensidade.
O direito de greve no ordenamento jurídico brasileiro passou de um total
silêncio159 para uma permissão através de mecanismos de interpretação160,
posteriormente considerada como uma liberdade dos trabalhadores, a ser exercida sem
leis que a regulamentassem161, obtenção de direito162, chegando, ao fim e ao cabo, como
158Lei 7.783/89- Art. 6º [...] § 3º As manifestações e atos de persuasão utilizados pelos grevistas não poderão impedir o acesso ao trabalho nem causar ameaça ou dano à propriedade ou pessoa. Observe-se que, aqui, o que se protege são os danos materiais da propriedade e não os danos possessórios. 159 As Constituições do Império de 1824 e a primeira Republicana de 1891 silenciaram quanto ao direito de greve. Como não havia leis trabalhistas, o Código Penal de 1890, Decreto 847, proibiu o exercício da greve mesmo sendo pacífica. 160 O Decreto 1.162 de 12/12/1890 – passou a punir apenas a violência no exercício da greve, sendo considerado como o primeiro reconhecimento do direito de greve no ordenamento jurídico brasileiro. 161 Entre 1900 e 1937, mesmo sendo considerada como liberdade do trabalhador alternou-se entre períodos de tolerância e repressão, sendo que, entre os períodos de 1906-1920 – predominou o pensamento de resistência ao patronato com influência direta dos anarquistas – Itália – Espanha – Portugal. A Constituição de 1937, ao mesmo tempo em que cria a Justiça do Trabalho, em um período eminentemente corporativo, declara-se a greve e o Locaute como recursos anti-sindicais.Para tanto, através do Decreto 1.237/39 – artigo 722 da CLT – passa a prever punição ao empregado que abandonar o serviço coletivamente e sem autorização do Tribunal do Trabalho. O Código Penal de 1940 – pune a violência contra coisa ou pessoa em razão de greve – considerado infra-penal a paralisação do trabalho, como perturbação da ordem pública e contrária ao interesse coletivo. Sem ambiente para a efetivação dos direitos coletivos , entre eles o exercício do direito de greve, uma vez que os mesmos foram expressamente limitados, os direitos individuais dos trabalhadores são ampliados por normas infraconstitucional. Trata-se, portanto, de uma lei antidemocrática.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
179
direito constitucionalmente garantido enquanto fundamental, com a Constituição da
República de 1988, artigo 9º163.
A evolução estabelecida pelas Constituições brasileiras, chegando ao atual
quadro normativo, demonstra claramente a intenção do legislador constituinte em
considerar o direito de greve, direito coletivo como um direito fundamental
institucional. Não se trata apenas de enunciá-lo. Houve a intenção clara e
manifestamente demonstrada no sentido de que a greve, mais que um simples direito, é
uma garantia fundamental para que as relações de trabalho sejam exercidas dentro de
um mínimo Estado Democrático de Direito.
O legislador constituinte impôs os limites a serem adotados pelos trabalhadores
quando agirem com liberdade e autonomia para a deflagração do movimento de greve.
Os limites foram imputados ao legislador ordinário que não se omitiu164 e, de forma
ágil, aprovou a Lei 7.783 de 26 de junho de 1989165 que “Dispõe sobre o exercício do
direito de greve, define as atividades essenciais, regula o atendimento das necessidades
inadiáveis da comunidade, e dá outras providências”, regulamentando o Direito de
Greve previsto no artigo 9º da Constituição da República.
162 A Constituição de 1946, em seu artigo 158 expressamente consignou que “É reconhecido o direito de greve, cujo exercício a lei regulará”. Inicia-se o período de reconhecimento da greve como direito dos trabalhadores face a mudança da ordem Internacional – Conferência do México – 21/02-08/03/1945 – a qual é aprovado a recomendação ao reconhecimento do direito de greve, tendo o Brasil aprovado a referida recomendação. O Decreto-Lei 9.070 de 1946, Primeira Lei ordinária, define o conceito de greve, facultando-a nas atividades acessórias; limitado o exercício após o ajuizamento de dissídio coletivo, criando as formalidades para a sua proclamação; considerando falta grave o descumprimento dos prazos e procedimento. No mesmo período, o STF – declara a constitucionalidade do referido Decreto-Lei – RE 48.207-SP – Rel. Ministro Gallotti – mesmo tendo entrado em vigor na vigência da Constituição de 1937. O Art. 158 – “É reconhecido o direito de greve, cujo exercício a lei regulará” Como golpe de Estado de 1964, foi editada nova Lei de Greve. Considerada como Lei anti-greve, a Lei 4.330/64. Editada no período de autoritarismo e supressão de direitos individuais e coletivos, mantinha em seu bojo uma infinidade de inconstitucionalidades, na medida em que, estabelecia condições de greve em atividades essenciais, cm estabelecimento de quorum – assembléia dos trabalhadores – em número extremamente elevados com votação por escrutínio secreto. O artigo 22 da Lei estabeleceu o conceito de greve ilegal quando não atendidos os prazos e condições para a realização do movimento paredista, bem como entendia ser ilegal quando as reivindicações fossem julgadas improcedentes. Quando a greve fosse julgada ilegal (100% das vezes), justificaria a punição disciplinar e ainda, o enquadramento na Lei 6.620/78 – Lei de Segurança Nacional. 163 Artigo 9º - É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender. § 1º - A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. § 2º - Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis nas penas da Lei. 164 Ao contrário do exercício do direto de greve garantido aos servidores públicos, que até o presente momento não há lei específica para regular a matéria. Sobre o debate desta omissão é mister analisar os votos proferidos no Mandado de Injunção nº 670 e 712. 165 Publicado no DOU de 29.06.1989.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
180
Portanto o exercício do direito constitucionalmente garantido de greve está
devidamente regulamentado, ou seja, os limites constitucionais foram devidamente
impostos pela Lei 7.783/89, não havendo qualquer vazio normativo quanto aos efeitos
decorrentes de um movimento paredista.
Neste sentido, é o voto do Ministro Eros Grau, no Mandado de Injunção nº 712-
8 – Pará:
“13. A Constituição, tratando dos trabalhadores em geral, não prevê
regulamentação do direito de greve: a eles compete decidir sobre a
oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dela
defender. Por isso a lei não pode restringi-lo, senão protegê-lo, sendo
constitucionalmente admissíveis todos os tipos de greve: greves
reivindicatórias, greves de solidariedade, greves políticas, greves de protesto.
Não obstante, os abusos no seu exercício, como, de resto, qualquer abuso de
direito ou liberdade, sujeitam os responsáveis às penas da lei [§ 2º do art. 9º] –
lei que, repito, não pode restringir o uso do direito. A Constituição [§ 1º do
art. 9º] apenas estabelece que lei definirá s serviços ou atividades essenciais e
disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da
comunidade”.166 (o realce é meu).
A ADPF nº 123
Diante da desconstitucionalização que vem sido levado a cabo pelo exercício do
controle difuso de constitucionalidade ao direito de greve e seu pleno exercício, houve a
necessidade de se submeter ao controle concentrado de constitucionalidade, através a
Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, junto ao Supremo Tribunal Federal
para que se possa reinterpretar o texto constitucional para garantir-lhe a efetividade dos
direitos constitucionais.
O objetivo do Estado Constitucional, portanto, é dotar a Constituição material
da necessária efetividade normativa. O estabelecimento de conceitos dotados de
concretudes traz em seu bojo a necessidade de reinterpretar a Constituição, rompendo-
se com o conceito clássico Kelseniano para impor a sua aplicação de forma horizontal.
A concepção de um Estado Social subverte totalmente a materialidade da Constituição
166 Voto do Ministro Eros Grau, p. 10/11, disponível no sitio do STF.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
181
uma vez que, as prestações sociais passam a ser valoradas com mais eficiência
normativa. Esta eficiência normativa se dá pela concretização da vontade popular, haja
vista que, esta é que deve imperar na conformação constitucional.167Por esta razão,
temos que ir além do discurso jurídico tradicional. Por isso não somos meros leitores de
textos. Toda a norma jurídica necessita de interpretação para que o próprio direito seja
aplicado.
A Constituição é aberta, como devem ser todas as Constituições democráticas.
A interpretação é que tem o dever de fechá-la. É nesta abertura e fechamento através da
interpretação é que o direito se realiza se concretiza, porque é por ela (interpretação)
que as transformações da sociedade são adequadas dentro do campo do saber teórico e
pelo campo da ciência jurídica. É a exceção que deve ser vista como uma forma de
desconstruir o direito de império do empregador para construir o direito do trabalhador.
É exatamente em razão da existência desse caos que a estabilidade é necessária. Para
Derrida esse é o Paradoxo entre justiça e direito, ou seja, “é a estrutura desconstrutível
do direito ou, se vocês preferirem, da justiça como direito, que assegura a possibilidade
da desconstrução. A Justiça em si mesma, se é que isso existe, fora ou além do direito,
não pode ser desconstruída.”168
A Confederação Nacional dos Metalúrgicos da CUT, ingresso com a ADF nº
123, pode obter do Supremo Tribunal Federal a interpretação conforme à constituição
para sem redução de texto, para que seja pronunciado a inconstitucionalidade da
aplicação do artigo 932 do CPC – interdito proibitório – quando se tratar de
manifestação dos trabalhadores devidamente aprovada e deflagrada para o pleno
exercício do direito de greve, para reconhecer e garantir a eficácia do direito subjetivo
dos trabalhadores ao pleno exercício de manifestação e greve.
É a violência imputada à dignidade humana do trabalhador ao impedir o
exercício de seu direito de greve. A desconstrução do direito de império do empregador
(interdito proibitório) garantirá a construção da Justiça ao trabalhador em obter, em
momento em que considerar mais adequado a reparação da violência lhe imposta.
Portanto, o direito fundamental dos trabalhadores quer em sua dimensão individual,
167 LOBATO, Marthius Sávio Cavalcante. O Dano à Saúde e à Dignidade do Trabalhador e vida nua: A Prescrição Imprescritível. In A Prescrição nas Relações de Trabalho. José Luciano de Castilho Coord. São Paulo: LTr. 2007, p. 159. 168 DERRIDA, Jaques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes. 2007.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
182
quer em sua dimensão coletiva deve preservar principalmente o direito a igualdade. O
direito de igualdade não é conferir ao trabalhador condições especiais. O direito a
igualdade é garantir o direito à diferença. É o direito que o trabalhador tem de ser
diferente e, conseqüentemente, ter garantias de proteção à essa diferença para preservar
e efetivar a sua dignidade humana.169
Identificando a desconstitucionalização de direitos.
Pelos casos relatados, podemos concluir que o acesso ao judiciário tem sido
utilizado pelos setor patronal como um mecanismo para desconstitucionalizar os
direitos dos trabalhadores, o direito de greve, único mecanismo eficaz para buscar a
igualdade nas relações entre o capital e trabalho. Este ativismo judicial, na
judicialização da política sindical, tem apontado para a quebra do Estado Democrático
de Direito, aplicando a desconstitucionalização dos direitos sociais dos trabalhadores.
A ADPF nº 123, deve ser observada não apenas enquanto instrumento de
proteção egoísta da classe trabalhadora, mas sim, e principalmente, a partir de um olhar
para o controle concentrado de constitucionalidade na aplicação da efetividade dos
direitos constitucionais.
169 Para Ronald Dworkin “o verdadeiro significado das cláusulas de processo legal justo e de igual proteção irá depender da melhor e mais exata compreensão da liberdade e da igualdade”. In Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais:Tradução Jefferson Luiz Camargo; revisão da tradução Silvana Vieira. São Paulo: Martins Fontes, 2003. – (Justiça e Direito) p.166.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
183
ACESSO À JUSTIÇA EM QUESTÕES BIOÉTICAS: DA DIFERENCIAÇÃO DO
DISCURSO JUDICIAL NA ABORDAGEM JURÍDICA DA ANENCEFALIA
FETAL NO BRASIL
Silvia Regina Pontes Lopes
1. O problema do acesso à justiça na abordagem jurídica de questões bioéticas
A relação entre vida e direito é polêmica. Por envolverem concomitantemente
temas de ordem ética, moral, religiosa, científica e jurídica, questões bioéticas desafiam
o problema da diferenciação do direito. Em discussões acerca da disciplina jurídica do
aborto, da eutanásia, da ortotanásia, de pesquisa com células-tronco, dentre outras,
articulam-se simultaneamente o sentido e os limites de proteção jurídica da vida.
Mostra-se relevante a investigação da influência, por vezes destrutiva, de esferas de
eticidade estranhas ao desenvolvimento de um discurso judicial democraticamente
legítimo.
A tematização bioética permeia nossos tribunais. Recentemente, o Superior
Tribunal de Justiça permitiu a interrupção de gravidez de feto portador da Síndrome de
Meckel-Gruber, doença genética que resulta na malformação cerebral do feto, levando-o
à morte, sob a dupla alegação de risco de vida da mãe e da impossibilidade de
sobrevivência relativamente alongada do feto (HC 86.835). Em novembro do corrente
ano, a Justiça Federal no Distrito Federal suspendeu, por meio de liminar proferida nos
autos da Ação Civil Pública nº 2007.34.00.014809-3, resolução do Conselho Federal de
Medicina (CFM) que permitia a prática da ortotanásia - interrupção de tratamento e
procedimentos para prolongar a vida de pacientes sem chances de cura. Mencionem-se
ainda as Ações Diretas de Inconstitucionalidade nos 3.510 e 3.526 contra a Lei nº 11.105,
de 2005 (Lei de Biossegurança), que questionam a constitucionalidade da pesquisa com
células-tronco no Brasil.
Referidas situações revelam o problema do acesso à justiça na intersecção
conflituosa entre ética, moral, religião, ciência e direito quando o assunto em questão
afigura-se o sentido da tutela institucional da vida em confronto com a moderna
pluralidade de visões de mundo e com o caráter multidisciplinar do tema.
A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54-8/DF (ADPF nº 54-
8/DF) mostra-se um caso emblemático. Embora a questão da interrupção de gravidez de
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
184
feto anencéfalo já há algum tempo tenha sido enfrentada pelo Poder Judiciário
brasileiro170, foi com a ADPF nº 54-8/DF que se submeteu ao Supremo Tribunal
Federal, por via de controle abstrato de constitucionalidade, a apreciação da legitimidade
jurídica da interrupção de gravidez de fato anencéfalo no Brasil.
O problema do acesso à justiça de inúmeras gestantes é trazido à discussão. O
embate intelectual em torno da natureza do feto humano depara-se com pessoas comuns,
como Tatielle171 e Severina,172 gestantes de fetos biologicamente inviáveis, que, em
nome da vida, viram-se, por decisão judicial, impedidas de “abreviarem seu
sofrimento”173. O desabafo do esposo de Tatielle, em face da concessão de habeas
corpus impetrado por padre desconhecido da família, traduz, com simplicidade e
precisão, o problema da diferenciação do direito numa sociedade moderna complexa: “(o
padre) acabou com a possibilidade de não agravar futuramente (a vida) para mim e para
a Tatielle. (...) Ele fez uma coisa sem o consentimento meu e da Tatielle. Ele fez uma
coisa para ele, não para mim, nem para a Tatielle, e, acho, nem para Deus. (...) A pessoa
vem, interfere na minha vida, da minha esposa, sem ser nada meu, sem me conhecer,
julga as coisas e acha ainda errado, sem ter o conhecimento de fato do que está
acontecendo, e a Justiça ainda acata isso como se fosse uma coisa normal.”174.
170 Cite-se, exemplificativamente, o caso de uma estudante do Rio de Janeiro que ingressou na Justiça fluminense para ver autorizada a interrupção de sua gestação em virtude de anencefalia fetal. Sob o fundamento de que não haveria autorização legal para o pedido, o pleito foi rejeitado em primeira instância, dando azo à interposição de recurso ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que concedeu liminarmente a autorização. Um padre ingressou com habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça (HC nº 32.159-RJ) contra a decisão liminar. A Ministra Relatora Laurita Vaz, em decisão monocrática, cassou a liminar então concedida sob o argumento de que tão-somente ao legislador caberia a decisão acerca da possibilidade de interrupção da gravidez por anencefalia fetal. Essa decisão foi confirmada pela 5ª Turma do STJ, que acolheu seus fundamentos. Contra ela, novo habeas corpus foi impetrado perante o Supremo Tribunal Federal (HC nº 84.025-6/RJ). Na ocasião, o Ministro Relator Joaquim Barbosa considerou o feto anencéfalo um simples “desenvolvimento biológico” e não uma vida juridicamente tutelável. A ação restou, entretanto, prejudicada, em virtude de ulterior nascimento do bebê. 171 Caso relatado no documentário “Habeas Corpus”, dirigido por Débora Diniz e Ramon Navarro, e produzido por “Imagens Livres”, que acompanha a trajetória de Tatielle, uma garota de 19 anos natural de Morrinhos, interior de Goiás, que, grávida de 5 meses de um feto que não sobreviveria ao parto, por ter todos os seus órgãos da cavidade abdominal expostos, viu-se impedida de interromper sua gestação por um habeas corpus impetrado pelo Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz, presidente da entidade católica “Pró-Vida” de Anápolis. 172 Caso relatado no documentário “Uma História Severina”, dirigido por Débora Diniz e Eliane Brum, e realizada pela produtora “Imagens Livres”. Trata-se de experiência vivida por Severina, que se viu impedida de interromper gravidez de feto anencéfalo por decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, que revogou autorização liminar concedida, em sede da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54-8/DF, pelo Ministro Marco Aurélio, para a realização de antecipação de parto nas hipóteses de anencefalia. 173 Tal expressão espelha a dor das gestantes relatada nos documentários mencionados nas notas anteriores. 174 Depoimento constante no documentário “Habeas Corpus”, mencionado na nota 1.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
185
A discussão é fomentada em situações, consideradas raras pela medicina, de
sobrevida por meses de bebê anencéfalo. Tal foi o caso da menina de Patrocínio Paulista,
nascida no dia 20 de novembro de 2006 vítima de anencefalia, que permanece viva até
hoje.175 A mãe Cacilda Ferreira relata que, antes de o bebê nascer, médicos sugeriram
que antecipasse o parto, pois não haveria possibilidade de sobrevivência da criança. Por
razões religiosas, ela se negou, após conversar com o padre da cidade, a interromper sua
gestação: "Nunca perdi a esperança de que minha filha viveria", desabafa.176
Em meio a questões bioéticas, que operam simultaneamente nas esferas da ética,
da moral, da ciência e da religião, surge o problema da diferenciação. Pretende-se, no
presente trabalho, abordar a discussão sobre a legitimidade jurídica da interrupção de
gravidez de feto anencéfalo. Observar o desenvolvimento do discurso judicial nessa
matéria mostra-se exemplar para a avaliação do acesso à justiça em questões bioéticas
no Brasil.
2. Observação paradigma: anencefalia fetal e os rumos esperados da ADPF nº 54-
8/DF
A ADPF nº 54-8/DF levou ao STF, como observado, a discussão acerca da
legitimidade jurídica da interrupção de gravidez de feto anencéfalo em sede de controle
abstrato de constitucionalidade. A Confederação Nacional dos Trabalhadores de Saúde –
CNTS, entidade autora, requereu a atribuição de interpretação conforme a Constituição
aos arts. 124, 126, caput, e 128, incs. I e II, todos do Código Penal, voltada ao
reconhecimento da licitude do chamado “aborto de feto anencéfalo”. Sustentou a
confederação requerente que os dispositivos da legislação penal, tal como vêm sendo
interpretados pelos órgãos jurisdicionais ordinários, ofendem os arts. 1º, inc. IV
(dignidade da pessoa humana); 5º, inc. II (princípio da legalidade, liberdade e autonomia
da vontade); 6º, caput, e 196 (direito à saúde), todos da Constituição da República, por
não se reconhecer o direito à interrupção da gestação de feto anencefálo.
No desenvolvimento da ação, a Procuradoria-Geral da República defendeu a
inadequação da via eleita. Alegou, para tanto, ofensa ao princípio da legalidade, ao
sustentar que o art. 128 enumera hipóteses numerus clausus de exclusão de ilicitude
175 Cf. http://www.omovimento.com.br/modules/popnupblog/index.php?postid=769. Acesso em 15 de agosto de 2008. No caso específico de Marcela, sua sobrevivência há mais de nove meses opera-se em razão de possuir um pouco mais de tecido cerebral do que os anencéfalos em geral. 176 FRANCA. “CosmoOnLine”. Disponível em http://www.cosmo.com.br/cidades/franca/integra.asp?id=181085 . Acesso em 19 de dezembro de 2007.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
186
penal, não cabendo ao Tribunal Constitucional assumir o papel de legislador positivo.
Quanto ao mérito, sustentou que o “direito à vida é posto como marco primeiro, no
espaço dos direitos fundamentais”, razão pela qual não poderá ser sacrificado em prol da
“dor temporal da gestante”.
Em 1º de julho de 2004, o Ministro Relator Marco Aurélio deferiu a medida
liminar pleiteada, autorizando a interrupção de gestação de feto anencéfalo. Determinou,
assim, o sobrestamento dos processos e de decisões não transitadas em julgado que
pretendessem aplicar ou tenham aplicado os mencionados dispositivos do Código Penal,
reconhecendo o direito constitucional da gestante de submeter-se ao procedimento
cirúrgico abortivo a partir de laudo médico que atestasse a deformidade, sob o
argumento de que, in casu, prevaleceria a dignidade da mulher sobre a vida do feto.
A argüição da preliminar de inadequação da via eleita pelo membro do Parquet
ensejou a instauração incidental do procedimento de questão de ordem, em que o
Supremo Tribunal Federal discutiu amplamente a admissibilidade da referida ação. Na
ocasião, a Corte decidiu, por maioria de 7 a 4, cassar parcialmente a liminar concedida
pelo Ministro Relator Marco Aurélio, referendando-se, por maioria, a primeira parte da
liminar concedida (sobrestamento de feitos) e revogando-se a segunda (direito ao aborto)
com efeitos ex nunc. Entendeu-se que não havia justificativa para a manutenção da
liminar, tendo em conta a pendência de decisão quanto à admissibilidade da ação.
Salientou-se, ainda, o caráter satisfativo da medida deferida e a indevida introdução, por
meio dela, de outra modalidade de excludente de ilicitude no ordenamento jurídico.
Na análise da questão de ordem propriamente dita, foram vencidos os votos
proferidos pelos Ministros Eros Grau, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Carlos Velloso, que
sustentaram pretender a requerente a criação pelo Supremo Tribunal, por via oblíqua, de
nova hipótese de não punibilidade do aborto, violando o princípio da reserva legal, por
transformar a Corte em legislador positivo.
Várias foram as entidades que requereram ingresso como amici curiae na
referida ação, tais como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, Católicas
pelo Direito de Decidir, Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família, Associação de
Desenvolvimento da Família – ADEF, Conectas Direitos Humanos e Centro de Direitos
Humanos. Todos os pedidos foram, entretanto, rejeitados, à exceção do formulado pela
Conectas Direitos Humanos e pelo Centro de Direitos Humanos, que não foi, até o
presente momento, apreciado.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
187
Considerando-se a relevância e a controvérsia da matéria, bem como a
importância de se conferir à sociedade ampla participação na análise da questão,
determinou o Ministro Marco Aurélio, Relator, com fulcro no art. 6º, § 1º, da Lei nº
9.882, de 3 de dezembro de 1999, a oitiva das entidades supramencionadas (à exceção
da CDH), bem como a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, a Sociedade
Brasileira de Genética Clínica, a Sociedade Brasileira de Medicina Fetal, o Conselho
Federal de Medicina, a Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sociais e Direitos
Representativos, a Escola de Gente, a Igreja Universal, o Instituto de Biotécnica,
Direitos Humanos e Gênero e o Deputado Federal José Aristodemo Pinotti. Até a
presente data, não foi realizada audiência pública.
A perquirição acerca da legitimidade de aborto de feto anencéfalo no Brasil
envolve a análise de prescrições legais e constitucionais sobre o sentido jurídico da vida,
da liberdade de crença, do conceito jurídico de pessoa e de morte, da noção de estado de
necessidade e das excludentes de ilicitude do aborto. Três são as posturas possíveis:
a) enquadramento da interrupção de gravidez de feto anencéfalo no art. 124 do
Código Penal, tipificando a conduta sob o entendimento de que o ordenamento
jurídico brasileiro confere tutela a um ser anencéfalo;
b) exclusão da tipicidade da conduta por considerar-se que o tipo penal tutela a
expectativa de vida humana, que não se encontra presente na hipótese em
questão, na medida em que a grande maioria dos fetos anencéfalos morrem no
período intra-uterino, sendo que os nascidos vivos morrem logo após o parto, não
havendo relatos de sobrevivência de recém-nascidos com este tipo de
malformação por mais do que poucas horas;
c) exclusão da antijuridicidade da conduta com fulcro no art. 128, inc. II, ou na
previsão mais genérica do art. 24 do Código Penal, que define o estado de
necessidade.
Uma compreensão democrática do acesso à justiça reclama algumas
considerações. Primeiramente, não se deve interpretar a proteção à vida instituída no art.
5°, caput, da Constituição Federal isolada e solipsisticamente, vinculando-a a um
conceito ontológico de vida. Deve-se, antes, considerar a leitura conferida a referido
princípio pela comunidade política, que se expressa na legislação antecedente e
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
188
subseqüente à própria Constituição, ao estabelecer o que é vida para o direito, ou, mais
apropriadamente, o sentido de vida juridicamente tutelável177.
Analogias descontextualizadas de uma análise publicística da matéria, tal como a
formulada pelo Ministro Sepúlveda Pertence, ao equiparar o feto anencéfalo a “uma
crisálida que jamais, em tempo algum, chegará ao estádio de borboleta”178, ou ainda,
como a elaborada pelo Ministro Carlos Britto, ao comparar o feto anencéfalo a “um ser
que de alguma forma parou a meio ciclo do humano”179, não se mostram, de todo,
apropriadas.
A questão do início da vida humana, ou, antes, do momento e das circunstâncias
pelas quais uma vida merece tutela jurídica deve ser analisada por uma jurisdição
constitucional que se pretende democrática, a partir de uma ampla discussão pública em
que reclamam devida consideração projetos de vida e concepções de mundo os mais
diversos.
O acesso à justiça é garantido mediante o desenvolvimento de uma ética
discursiva calcada nas noções de solidariedade e de pluralidade. Trazendo essa
consideração para os discursos jurídicos até agora articulados na ADPF nº 54-8/DF, a
primazia ora do bem jurídico vida, ora da dignidade da pessoa humana, ali implícita ou
explicitamente, apregoada, notadamente na petição inicial da ADPF nº 54-8/DF, na
manifestação do Ministério Público e nos votos dos Ministros do Supremo Tribunal
Federal, leva-nos a questionar em que medida referido discurso desenvolve-se
legitimamente.
Ao Supremo Tribunal Federal, às entidades e aos órgãos diretamente envolvidos
na referida ação compete empreender um discurso baseado numa moralidade pública,
que se expressa, ante a natureza jurisdicional do discurso em questão, em princípios
jurídicos próprios integrantes dos direitos fundamentais, distintos tanto de uma moral
pessoal, fruto de uma consciência socrática ou de uma moral cristã, quanto de uma
moralidade comum, baseada em simples usos e costumes.
O desfecho legítimo da questão da licitude do aborto por anencefalia fetal
expressa-se na legislação infraconstitucional em vigor, que delineia intersubjetivamente
o sentido de uma vida juridicamente tutelável. Desconsiderar tais preceitos dogmáticos
de inquestionável constitucionalidade no discurso jurídico acerca da legitimidade do
177 Cf. SIMON, Henrique Smidt. Antecipação terapêutica do parto e os Direitos Fundamentais. Constituição & Democracia. n. 1. Brasília, 5 fev. 2006. Observatório do Judiciário, pp. 20-21. 178 Voto do Ministro Sepúlveda Pertence na Questão de Ordem em sede da ADPF nº 54-8/DF. 179 Voto do Ministro Carlos Britto na Questão de Ordem em sede da ADPF nº 54-8/DF.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
189
aborto de feto anencéfalo no Brasil implica introduzir elementos estranhos ao próprio
direito, dispondo-se de seu papel de atribuir sentido normativo a condutas a partir de
princípios públicos independentes de moralidades individuais, impondo-se uma visão
monolítica de mundo.
A articulação ora da vida, ora da dignidade da pessoa humana como bens
superiores, consoante se observa a partir do desenvolvimento discursivo da ADPF nº 54-
8/DF, situa-se na contramão de uma reconstrução normativa pautada numa ética
democrática da solidariedade, na medida em que pondera valores180, aproximando-se de
uma eticidade irreflexiva, voltada para a contemplação de um suposto melhor tutelado
pelo ordenamento jurídico.
O discurso judicial democraticamente legítimo deve colher os elementos
constantes no próprio ordenamento, que, ao manifestar uma instância significativa
intersubjetivamente compartilhada, demonstra uma moralidade pública específica, que,
apartada de moralidades individuais, articula definições e valorações próprias. Essas
definições devem ser consideradas pelos aplicadores do direito na elaboração de um
discurso sujeito à apreciação pública.
As prescrições legais ou constitucionais acerca da liberdade de crença, do
conceito jurídico de pessoa e de morte, da noção de estado de necessidade e das
excludentes de ilicitude do aborto devem, portanto, de ser levadas em conta no discurso
judicial empreendido na ADPF nº 54-8/DF. Caso contrário, corre-se o risco de abandono
do caráter deontológico dos direitos fundamentais e de adoção disfarçada de princípios
integrantes de uma moralidade pessoal, escapando-se da feição própria de um discurso
sujeito ao olhar público.
Há ainda de se diferenciar as posturas de um operador do direito e de um
indivíduo particular, dotado de uma moralidade própria. A argumentação judicial não
deve desenvolver-se a partir de visões monolíticas de mundo, manifestas na articulação
pública de valores absolutos ou numa hierarquização de valores, sob pena de subverter-
se a função principal do direito, a saber: chamar à igualdade (reconhecimento recíproco)
os desiguais, constituindo, artificialmente, um espaço de liberdade, que possibilite a
revelação simultânea e plural da novidade inaugurada por cada indivíduo.181
180 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. 181 Cf. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, pp. 245-246. Hannah Arendt identifica a existência de uma moralidade pública diferenciada a nortear o espaço público, no que se distancia do pensamento aristotélico, que associa a política à consecução de fins
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
190
Ao operador do direito compete respeitar a dimensão plural e aberta dos
discursos públicos, assumindo a postura performativa de considerar imparcialmente as
mais distintas visões de mundo, a fim de alcançar uma solução justa, não
necessariamente coincidente com aquilo que é bom para ele. Assim, o operador do
direito pode condenar eticamente o aborto por anencefalia sem refutar a existência de
um direito subjetivo a tal conduta.182
Não cabe a uma jurisdição constitucional que se pretende democrática
empreender uma análise solipsística e metafísica do sentido da vida e da dignidade da
pessoa humana, devendo, antes, reconstruir pluralística e coerentemente o discurso dos
direitos humanos, considerando-se, dentre outros aspectos, o discurso até agora
construído acerca da questão, que se manifesta em decisões judiciais, bem como na
legislação infraconstitucional, notadamente nos arts. 124, 126 e 128 do Código Penal,
bem como no art. 3º da Lei nº 9.437/97.
O discurso acerca da legitimidade da interrupção de gravidez de feto anencéfalo,
empreendida na ADPF nº 54-8/DF, guarda íntima relação com a questão metodológica
da reconstrução de uma identidade constitucional de dimensões espacial e temporal
problemáticas: espacialmente, deve-se construir uma identidade constitucional aberta e
plural, apta a recepcionar identidades sociais das mais diversas ordens (étnicas,
nacionais, religiosas e culturais), afigurando-se, porém, distintas de todas elas;
temporalmente, há de se reconstruir uma identidade de um sujeito constitucional que não
se identifica nem com os constituintes, nem com os intérpretes da Constituição, nem, ao
menos, com os que se encontram sujeitos às prescrições constitucionais183. Nesse
sentido, a construção da identidade do sujeito constitucional deve operar-se mediante
uma re-apropriação crítica e coerente de normas e princípios que conferem sentido
últimos, expressos por ensinamentos éticos, igualmente válidos na esfera privada. O espaço público não comporta, para a autora, quer uma moralidade absoluta, com o é a religiosa –, quer meros costumes e tradições, facilmente modificáveis: “moralidade pessoal em suas formas autênticas, como consciência socrática e bondade cristã, poderia, de fato, prevenir indivíduos de praticarem o mal, mas nenhuma das duas estão suficientemente envolvidas com os negócios públicos para prevenir práticas totalitárias” (CANOVAN, Margaret. Hannah Arendt – A reinterpretation of her political thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p. 197.). Assim, a moralidade pública, autônoma e distinta das formas de moral pessoal, seria fundamentada na afirmação da cidadania, na igualdade de direitos e na criação de instituições políticas aptas a preservar a liberdade do homem. 182 Observou-se alhures que “Defender a antecipação terapêutica do parto de fetos inviáveis não implica ser a favor do aborto. Assegurar o direito da mulher e autorizar o aborto nos casos previstos em lei não implica ser a favor do aborto. Implica tão-somente conhecer o Direito Penal e suas bases ontológicas, cumprir a lei e a Constituição Federal.” (FAÚNDES, Aníbal. Prefácio. In: DINIZ, Débora; RIBEIRO, Diaulas Costa. Aborto por anomalia fetal, p. 141.) 183 Cf. ROSENFELD, Michel. Identidade do sujeito constitucional, pp. 40-41.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
191
jurídico à conduta de abortamento por anencefalia. Há de se recorrer às prescrições
dogmáticas que se mostram relevantes para a atribuição de sentido jurídico a tal conduta.
O acesso à justiça reclama que a proteção à vida instituída no art. 5°, caput, da
Constituição Federal não seja interpretada isolada e solipsisticamente, amparando-se em
um conceito ontológico de vida. Antes, mostra-se crucial para a afirmação da
democracia uma leitura do princípio de proteção à vida formulado por uma comunidade
política, que se expressa na legislação antecedente e subseqüente à própria Constituição
e estabelece o que é vida para o direito, ou, mais apropriadamente, o sentido de vida
juridicamente tutelável. Nessa perspectiva, salienta-se, com Diaulas Costa Ribeiro, que:
“o conceito jurídico-penal de vida deve ser isento de conveniência moral,
religiosa e emocional. Vida, para o direito penal, não é dom, não é alma,
não é intocável e nem é fruto santificado. Vida é um bem jurídico integrante
da personalidade, sujeito à tutela penal. E essa tutela é prestada com base
nos mesmos padrões estabelecidos para a proteção de todos os demais bens
jurídico-penais.”184
Na contramão de uma linha argumentativa democrática, atente-se para a posição
irreflexiva e ausência de diferenciação entre discursos jurídicos, éticos e morais,
presentes no parecer apresentado em sede da ADPF nº 54-8/DF pelo Ministério Público
Federal, subscrito por seu então Procurador-Geral da República Cláudio Fonteles, no
qual se alega a primazia do direito à vida do feto anencéfalo e a necessidade de
observância do princípio da solidariedade.
A superioridade irreflexiva e metafísica da vida, tal como defendida no referido
parecer, subverte o discurso judicial, ao articular, sem qualquer respaldo sistêmico, o
valor absoluto vida sobre todos os bens igualmente tuteláveis pelo direito. A conhecida
formação católica do parecerista talvez o tenha levado a desconsiderar que, na condição
de Procurador-Geral da República, cumpre-lhe velar pela observância de uma ordem
jurídica democrática e plural no interesse de uma sociedade supercomplexa. A leitura
descontextualizada do direito à vida enunciado no art. 5º, caput, da Carta Magna
conduziu-o a uma linha argumentativa fundamentalista, de base religiosa, que, ao
atribuir a condição de pessoa ao feto anencéfalo, não considerou o sentido específico da
tutela jurídica da vida.
184 RIBEIRO, Diaulas Costa. Antecipação Terapêutica de Parto: Uma releitura jurídico-penal do aborto por anomalia fetal. In: DINIZ, Débora; RIBEIRO, Diaulas Costa. Aborto por anomalia fetal, p. 96.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
192
Mencionada inviabilizaria diversos institutos jurídicos já amplamente
consagrados no direito brasileiro, como o estado de necessidade, a partir do qual a vida
humana pode ser sacrificada em salvaguarda a bem jurídico alheio. Caso se considere a
superioridade incondicional da vida sobre os demais bens jurídicos, afigurar-se-iam
inconstitucionais as excludentes de antijuridicidade previstas no art. 128 do Código
Penal, notadamente a hipótese de aborto sentimental, autorizada pelo inciso II do
mencionado dispositivo, que se presta exclusivamente a evitar a dor psíquica da mãe
violentada em detrimento do produto da concepção.
O discurso desenvolvido pelo então Procurador-Geral da República mostra-se
absolutamente incoerente com o ordenamento jurídico pátrio, ao desconsiderar que a
vida é um bem jurídico dentre outros, possuindo, para o direito, um significado
particular, que não deve ser obscurecido por concepções éticas, morais e religiosas
particulares.
A remissão efetuada pelo parecerista ao art. 2° do Código Civil Brasileiro
mostra-se ambígua. A disposição no sentido de que “A personalidade civil da pessoa
começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos
do nascituro”, ao invés de afirmar a condição de pessoa do feto no direito civil,
obscurece-a, porquanto estabelece uma relação nebulosa entre a negação de
personalidade jurídica ao feto e a salvaguarda de “seus” direitos civis.
O invocado art. 4.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o qual
prescreve que “Toda pessoa tem direito a que se respeite sua vida. Este direito estará
protegido pela lei, no geral, a partir do momento da concepção”, tampouco corrobora a
tese defendida pelo ilustre parecerista. A utilização da expressão “no geral” denota que a
proteção por ele estabelecida não se afigura absoluta. A remissão ao art. 1º da
Convenção sobre os Direitos da Criança, segundo a qual “A criança, por falta de
maturidade física e mental, necessita de proteção e cuidado especiais, aí incluída a
proteção legal, tanto antes, como depois, do nascimento”, em nada acrescenta à
discussão, porquanto procura atribuir a qualidade de criança ao feto anencéfalo em
desconsideração a um sem número de prescrições normativas específicas, que conduzem
a um enquadramento jurídico oposto.
A referência à solidariedade prevista no art. 3º, inciso I, da Constituição da
República mostra-se inapropriada. Não encontra qualquer consistência jurídica, nem
plausibilidade argumentativa a alegação de que a formação de uma sociedade solidária
abarcaria, na espécie, a compulsoriedade jurídica da perpetuação da gravidez em prol de
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
193
uma possível doação de órgãos do bebê anencéfalo para outros bebês. De acordo com a
legislação federal em vigor, a doação de órgãos sujeita-se à voluntas do doador, não se
reconhecendo, na hipótese, a incidência compulsória do princípio da solidariedade.
O parecerista afirma que “não são todas as gestantes que, por sua dor, almejam
livrar-se do ser humano, que existe em seus ventres maternos. Há outras também
gestantes que, se experimentam a dor, superam-na e, acolhendo a vida presente em seu
ser, deixam-na viver, pelo tempo possível”. Deve-se reconhecer que a solidariedade, em
um sentido jurídico, reside no exato respeito à dor da gestante que não vê qualquer
sentido na perpetuação de uma gravidez infrutífera. Semelhante dor, por sua intensidade,
encontra-se tutelada pela expressa autorização jurídica de aborto sentimental, sendo
injustificado o não reconhecimento da mesma tutela, quer na esfera da atipicidade, quer
da antijuridicidade, na hipótese ora examinada. A exigência de construção crítica e
coerente de um discurso judicial em sede da ADPF nº 54-8/DF a partir de princípios
jurídicos compreendidos à luz das noções de pluralidade e de solidariedade conduz ao
reconhecimento da legitimidade da interrupção da gravidez de feto anencéfalo.
Um discurso judicial não há de pautar-se quer pela afirmação da bondade na
Terra, quer pela reificação de concepções metafísicas irreflexivas, cabendo-lhe antes
zelar pela pluralidade democrática, expressa na noção do justo enquanto aquilo que é
“correto para nós”. Não há como negar a necessária procedência da ADPF nº 54-8/DF,
reconhecendo-se a justiça (correção) da decisão que expressa a possibilidade de
realização do aborto de feto anencéfalo no Brasil.
Mostram-se, nesse ponto, pertinentes as considerações de Hannah Arendt acerca
das diferenças principiológicas que regem as esferas públicas e privadas. A autora
identifica a existência de uma moralidade pública diferenciada a nortear o espaço
político, no que se distancia do pensamento aristotélico, que associa a política à
consecução de fins últimos, expressos por ensinamentos éticos, igualmente válidos na
esfera privada. O espaço político não comporta, para a autora, quer uma moralidade
absoluta, com o é a religiosa –, quer meros costumes e tradições, facilmente
modificáveis: “moralidade pessoal em suas formas autênticas, como consciência
socrática e bondade cristã, poderia, de fato, prevenir indivíduos de praticarem o mal,
mas nenhuma das duas estão suficientemente envolvidas com os negócios públicos para
prevenir práticas totalitárias”185. Assim, a moralidade pública, autônoma e distinta das
185 CANOVAN, Margaret. Hannah Arendt – A reinterpretation of her political thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p. 197.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
194
formas de moral pessoal, seria fundamentada na afirmação da cidadania, na igualdade de
direitos e na criação de instituições políticas aptas a preservar a liberdade do homem.
A moralidade política que propõe não provém da natureza das coisas, nem de
deduções lógicas. Essa moralidade política decorre, sim, da própria condição humana da
pluralidade, situando-se dentro da ação: “esses preceitos morais são os únicos que não
são aplicados à ação de fora, de alguma suposta faculdade superior ou de experiências
situadas fora dos próprios fins da ação. Afloram, do contrário, diretamente da vontade de
viver com os outros através da ação e da fala”186.
A distinção entre uma moralidade pessoal e uma moralidade pública, regida por
princípios próprios, objetiva garantir a pluralidade, pretendendo-se obstaculizar a
incidência, na esfera pública, de absolutos, tais como noções referentes à bondade, ao
amor, à compaixão e à piedade, as quais eliminam a distância entre os homens. As
relações públicas devem assentar-se no meio termo, no âmbito da virtude e do vício
ordinários, e não na esfera do bem e do mal absolutos. A cada princípio moral absoluto
opõe-se, portanto, um princípio político: no lugar do amor, respeito; ao invés de
compaixão e piedade, solidariedade; no lugar da consciência, cidadania ativa.
À luz desse mesmo espírito, observa-se, com Habermas, que uma jurisdição
constitucional democrática deve-se submeter ao princípio democrático do discurso,
segundo o qual “D: válidas são aquelas normas (e tão-somente aquelas normas) a que
todos que por ela possam ver-se afetados possam prestar seu assentimento como
participantes em discursos racionais.”187 Nesse sentido, pode-se adaptar tal princípio
para a hipótese específica dos discursos judiciais, afirmando-se que “válidas são aquelas
decisões judiciais (e tão-somente aquelas decisões judiciais) a que todos que por ela
possam ver-se afetados possam prestar seu assentimento como participantes em
discursos racionais.” Dessa forma, a versão jurisdicional do princípio do discurso
corrobora a exigência de que as decisões judiciais sejam fundadas na imparcialidade,
aqui compreendida como igual consideração a todos, pressupondo a solução de questões
litigiosas a partir de um reconhecimento de princípios e regras jurídicas
democraticamente construídas.
A questão da legitimidade do discurso judicial empreendido na ADPF nº 54-
8/DF mostra-se de singular complexidade por envolver questões de ordem moral, ética,
religiosa e jurídica. Ressalta-se, à luz da teoria do discurso, a postura performativa que
186 ARENDT, Hannah. A Condição Humana, p. 245-246. 187 HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung, p. 138.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
195
deve ser assumida pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal no discurso acerca da
licitude da prática de interrupção de gravidez de feto anencéfalo no Brasil.
O manuseio pelo direito de questões éticas e morais não compromete sua
operacionalidade particular, na medida em que é regido por princípio específico, a saber:
o princípio democrático.188 Deve-se assegurar, no processo de criação de normas, uma
participação igualitária de porta-vozes dos mais diversos interesses e concepções de
mundo. No exercício da atividade jurisdicional, há de se observar o pano de fundo
institucionalmente estabelecido pela positivação de princípios que espelham o zelo pelo
caráter plural das sociedades modernas complexas.
Insere-se aqui a crítica habermasiana à solução comunitarista ao problema da
indeterminação do direito em sede da jurisdição constitucional. A dimensão axiológica
conferida pelos comunitaristas aos princípios jurídicos, em detrimento de seu caráter
deontológico, compromete o pluralismo democrático, pois pressupõe um ethos
hipoteticamente compartilhado pela comunidade política e supostamente tutelado pelo
direito.189
Trazendo tais ilações para a discussão acerca da legitimidade da interrupção da
gravidez de feto anencéfalo no Brasil, um discurso judicial que se volte para a
superioridade do direito à vida do feto sobre a dignidade e a autonomia da vontade da
mãe, ou vice-versa, subverte a legitimidade da atividade jurisdicional, porquanto dispõe
de razões éticas, de que apenas o legislador democrático ou o poder constituinte poderia
dispor, vilipendiando-se o caráter deontológico dos princípios jurídicos, posto
equiparados a valores agrupáveis em um plexo axiológico fundado em um ethos fechado
e irreflexivo.
Salienta-se a necessidade de se estabelecer uma postura performativa calcada na
tolerância, mediante a qual temas ética e moralmente controvertidos, como aborto e
eutanásia, são discutidos a partir de um respeito mútuo a diferenças éticas: “A tolerância
é o preço que pagamos por vivermos em uma comunidade jurídica igualitária, na qual
grupos com diferentes backgrounds culturais e éticos devem conviver uns com os
outros.”190 Nesse contexto, cumpre ao direito viabilizar a convivência de concepções de
mundo e projetos de vida os mais diversos: “Um tal direito eticamente ‘abstrato’ fornece
o padrão para regulamentações que, em virtude de poderem ser aceitas por todos pelas
188 HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung, p. 140. 189 HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung, p. 303. 190 HABERMAS, Jürgen. Reply to symposium participants at the Benjamin N. Cardozo School of Law, p. 17.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
196
mesmas razões em vista da finalidade da coexistência, poupam os cidadãos de
compromissos essencialmente mais dolorosos e arriscados para a integridade em
irreconciliáveis conflitos de valor.”191
Sob o prisma da teoria do discurso, a perspectiva performativa que se espera de
uma Corte Constitucional deve pautar-se na perquirição acerca do significado e dos
limites dos princípios envolvidos na questão, a saber: aos princípios de proteção à vida,
da dignidade da pessoa humana, da legalidade, da liberdade e da autonomia da vontade,
do direito à saúde e da liberdade de crença. Nesse sentido, enquanto participantes de um
discurso público, “deve(m) abandonar a questão ética acerca de qual regulamentação é
respectivamente a ‘melhor para nós’ do ‘nosso’ ponto de vista. Eles devem, ao contrário,
assumir o ponto de vista moral e examinar cada regulação proposta buscando qual é a
‘igualmente boa para todos’ à vista da pretensão precedente a um igual direito de
coexistência.”192
O pano de fundo normativo formado pela inquestionada constitucionalidade dos
arts. 24, 124, 126 e 128 do Código Penal, bem como do art. 3° da Lei nº 9.437/97
mostra-se importante fonte de perquirição acerca da dimensão de proteção de tais
princípios no ordenamento pátrio, delineando a linha discursiva dos direitos humanos no
Brasil. Exsurge, assim, a idéia da responsabilidade política dos juízes, na medida em
que devem ser, em geral, coerentes com decisões tomadas no passado. Tal noção é
definida nos seguintes termos:
“As decisões judiciais são decisões políticas, ao menos no sentido amplo que
interessa à doutrina da responsabilidade política. Se a tese dos direitos é
válida, a distinção que acabamos de estabelecer explicaria, de maneira
muito geral pelo menos, a preocupação especial que mostram os juízes tanto
nos precedentes, quanto nos exemplos hipotéticos. Um argumento de
princípio pode servir de justificação para uma decisão determinada,
amparada na doutrina da responsabilidade, apenas se se pode demonstrar
que o princípio citado é coerente com decisões anteriores que não hajam
sido modificadas e com decisões que a instituição está disposta a tomar nas
circunstâncias hipotéticas. Não é muito surpreendente que assim seja, mas o
argumento não seria válido se os juízes baseassem suas decisões em
argumentos políticos. Então teriam a liberdade de dizer que uma política
191 HABERMAS, Jürgen. Reply to symposium participants at the Benjamin N. Cardozo School of Law, p. 17. 192 HABERMAS, Jürgen. Reply to symposium participants at the Benjamin N. Cardozo School of Law, p. 17.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
197
poderia estar bem servida em apenas servi-la no caso que julga (...), de
modo que não teria de entender que as decisões anteriores nem as
hipotéticas decisões futuras estejam a serviço da mesma política.”193
A distinção realizada por Ronald Dworkin entre argumentos políticos e
argumentos de princípios é bastante relevante. Os argumentos de princípio propõem-se a
estabelecer direitos individuais, ao passo que os argumentos políticos traçam objetivos
coletivos. Subjaz a tal distinção a justificação de transferir-se a função de controle
abstrato de constitucionalidade a cortes constitucionais, retirando-a do parlamento, na
medida em que envolve, em geral, um discurso acerca de direitos fundamentais, não se
confundindo com o estabelecimento de bens e metas coletivas estritamente políticas. O
discurso público empreendido a partir de tais princípios estabelecem o que Dworkin
chamou de uma moralidade política, a vincular os magistrados, distinta tanto de uma
moralidade pessoal, quanto de uma moral grupal, ou mesmo de uma moralidade
compartilhada por uma maioria.
Apesar de o controle abstrato de normas constituir atividade essencialmente
legislativa, reconhece-se a anterioridade do discurso dos direitos fundamentais à própria
legislação. Não pode, assim, submeter-se a objetivos políticos, mesmo que traçados por
uma maioria, ressaltando-se a função contramajoritária da jurisdição constitucional.
Aqui, aflora, a distinção entre a noção de integridade na atividade legislativa e na
jurisdição constitucional: “Temos dois princípios de integridade política: um princípio
legislativo, que pede aos legisladores que tentem tornar o conjunto de leis moralmente
coerente, e um princípio jurisdicional, que demanda que a lei, tanto quanto possível, seja
vista como coerente nesse sentido.”194
Ante os chamados “casos difíceis” (hard cases), em que se verifica,
preliminarmente, a possibilidade de incidência de mais de um princípio a ensejar
decisões conflitantes, defende-se a aplicabilidade de apenas um desses princípios, e que
conduziria a uma única decisão correta. A noção de integridade possibilita a tomada de
decisões dentro de um sistema de justiça não fundado em concessões: “um princípio de
justiça não é deixado de lado nem limitado por outro de alguma maneira que expresse
uma hierarquização dos dois”195.
193 DWORKIN, Ronald. Los Derechos en serio. Trad. Marta Guastavino. Barcelona: Editorial Ariel, 1995, p. 153. 194 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito, p. 213. 195 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito, p. 213.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
198
A integridade, que constitui um terceiro ideal do direito, juntamente com a
justiça e com a observância às regras do jogo (righteousness), fundamenta-se na noção
de solidariedade e assenta-se numa moralidade política historicamente construída por
uma comunidade vista como “agente moral distinto”. A fim de explicitar o sentido de
“integridade do direito”, Dworkin recorre à figura metafórica de um romance
desenvolvido em cadeia: o juiz seria comparável a um romancista que escreve um
capítulo de um livro a partir de capítulos pré-existentes. A figura do livro reporta-se ao
ordenamento jurídico, enquanto os capítulos pré-existentes constituir-se-iam normas
integrantes do ordenamento (leis, precedentes judiciais etc.). Na condição de romancista
que dá continuidade à obra literária, compete ao juiz elaborar uma interpretação fluida e
coerente com o texto considerado como um todo, ou seja, com o ordenamento e com a
jurisprudência, de tal sorte que sua decisão possua “um poder explicativo geral”, sendo
“mal sucedida se deixar sem explicação algum importante aspecto estrutural do texto,
uma trama secundária tratada como se tivesse grande importância dramática, ou uma
metáfora dominante ou recorrente”196.
Deve-se empreender a descoberta dos princípios efetivamente incidentes, ou seja,
aqueles que não conduzem a decisões conflitantes a partir de elementos normativos de
decisões passadas, de tal forma a construir globalmente um discurso coerente e justo.
Surge o desafio da reconstrução democrática de uma identidade constitucional aberta e
plural, considerando-se tanto normas e decisões judiciais passadas, quanto a presença de
um auditório ideal de cuja aprovação a decisão final não poderá prescindir. A
legitimidade da decisão é auferida tanto a partir da coerência com o tratamento de casos
análogos, quanto segundo a concordância com o sistema de regras em vigor e que se
funde concretamente em uma racionalidade comunicativa, de sorte que seja aceita pelos
membros jurídicos como decisões racionais.
A concorrência de alguns princípios hipoteticamente aplicáveis à discussão
acerca da interrupção de gravidez por anencefalia fetal no direito brasileiro é aparente.
Deve ser solucionada a partir da averiguação da incidência de tal ou qual princípio, ao
invés de outro tido prima facie por concorrente no caso em exame, deixando-se de levar
em conta uma hipotética superioridade de um princípio sobre outro. Nesse ponto, o
Supremo Tribunal Federal deve rejeitar uma postura comunitarista de afirmação de
preponderância de um princípio constitucional sobre outro, no que golpeia
196 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito, p. 277.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
199
violentamente a pedra angular do Estado Democrático de Direito, que se expressa na
idéia de indisponibilidade do direito.
Assim, deve-se realizar uma abordagem do tema de interrupção de gravidez de
feto anencéfalo sob uma perspectiva diferenciada de uma jurisprudência, abandonando-
se o usual - e irracional! - modelo de hierarquização de valores pela noção fluida de
integridade, único caminho para se alcançar uma decisão coerente e racionalmente
aceitável, a zelar pela indisponibilidade do direito.
Nessa perspectiva, indaga-se: qual princípio seria aplicável ao caso considerado?
Ou, em outras palavras, qual é a moralidade política subjacente ao tema de interrupção
de gravidez de feto anencéfalo no Brasil? Ou, ainda em outros termos, qual seria a
decisão coerente com o ordenamento jurídico e racionalmente aceitável?
Consoante observado, a discussão pode ser realizada na esfera da tipicidade ou
no âmbito da antijuridicidade da conduta em exame. Quanto à tipicidade, deve-se atentar
para o fato de que o Supremo Tribunal Federal não admite o chamado “aborto
eugênico”, ou seja, a interrupção da gravidez de feto portador de doença grave. Indaga-
se: abrangeria tal situação a noção de anencefalia? A resposta afigura-se negativa, na
medida em que a morte humana ocorre, no direito brasileiro, com a morte encefálica,
segundo estabelece o mencionado art. 3º da Lei nº 9.437/97: “A retirada post mortem de
tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá
ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada por dois médicos não
participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios
clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina”. A
partir daí, constata-se, por razões principiológicas, que o direito brasileiro não tutela o
“ciclo de vida” do feto anencéfalo, na mesma medida em que não tutela o “ciclo de
vida” do indivíduo que possui um cérebro morto, cujas funções vitais permanecem, por
algumas horas, em funcionamento.
A discussão jurídica acerca da tutela da vida deve afluir antes de um acordo
político do que da reificação de uma crença específica sobre o sentido e o começo da
vida. Seguindo a liberdade de crença, expressamente afirmada no art. 5º, inc. VI, da
Carta Constitucional, o Estado, por ser laico, não pode impor uma concepção do sagrado
a todas as pessoas, mesmo que tal concepção encontre respaldo na opinião da maioria.
Ao discutir o tema do aborto e da eutanásia à luz do sistema jurídico norte-americano,
observa Dworkin que convicções objetivas sobre porque e como a vida tem importância
intrínseca são questões religiosas: “a crença em que o valor da vida humana transcende
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
200
seu valor para a criatura de cuja vida se trata – que a vida humana é impessoal e
objetivamente valiosa – é uma crença religiosa mesmo quando defendida por pessoas
que não acreditam em Deus.”197
Evidencia-se o papel contramajoritário da jurisdição constitucional: “Nesse caso,
em uma sociedade pluralista constitucionalmente organizada, tal questão eticamente
controversa não pode ser regulada sob a descrição eticamente permeada de uma
autocompreensão que, da perspectiva do universo de companheiros cidadãos, é apenas
uma das muitas auto-interpretações coletivas (ainda que seja a cultura majoritária). É
necessário, ao contrário, buscar uma regulação neutra que, no nível mais abstrato do
igual direito de coexistência das comunidades distintamente integradas eticamente, possa
encontrar o reconhecimento racionalmente fundado de todas as partes do conflito.”198
Entre tantas divergências éticas e religiosas sobre o sentido da vida, cumpre ao
direito, e conseqüentemente à jurisdição constitucional, viabilizar o dissenso, eximindo-
se de dizer o “bom” ou o “verdadeiro” sobre a vida, estabelecendo antes o correto (justo)
a seu respeito, entendendo-se como tal o estabelecimento de uma noção de vida
juridicamente tutelável que possibilite a afirmação, na esfera privada, de diferentes
concepções de mundo e de projetos individuais.
A definição jurídica de morte traçada no art. 3º da Lei 9.437/97 (“Art. 3°. A
retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a
transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica,
constatada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante,
mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do
Conselho Federal de Medicina.”), amplamente aceita e não contestada pela
jurisprudência pátria, revela a atipicidade da conduta de interrupção de gravidez de feto
anencéfalo, não constituindo aborto para fins do direito penal.
No que se refere à questão da antijuridicidade da conduta, o nosso Código Penal
estabelece, em seu art. 128, duas causas excludentes de antijuridicidade do aborto, quais
sejam: a hipótese de aborto necessário, também denominado terapêutico, situação em
que a vida da mãe corre perigo; bem como a do aborto sentimental, no caso de gravidez
resultante de estupro. Registre-se a impossibilidade de antever-se, em 1940, casos de
197 DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida – Aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 218. 198 HABERMAS, Jürgen. Reply to symposium participants at the Benjamin N. Cardozo School of Law, p. 12.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
201
anencefalia no período de gestação, razão pela qual o problema não foi posto àquela
época.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal pacificou entendimento no
sentido de excluir a ilicitude da conduta de abortamento no caso de gravidez resultante
de atentado violento ao pudor, sob o argumento de que haveria a mesma ratio da
exclusão de antijuridicidade constante do art. 128, incido II, do CP, a saber: gravidez
resultante de crime praticado com violência contra a liberdade sexual da mulher.
As previsões penais que autorizam os abortos sentimental e terapêutico são
reputadas constitucionais pela doutrina (esmagadora maioria) e pela jurisprudência
brasileiras. A sensibilidade do sistema à situação estendeu-se, conforme observado, à
permissão do aborto sentimental no caso de gravidez resultante de atentado violento ao
pudor. Em situações como tais - hipóteses em que a saúde física ou psíquica da mãe vê-
se seriamente ameaçada por gestação brutalmente anormal -, compreende-se que a vida
do feto não seja juridicamente tutelável. Incide, na hipótese, o princípio da dignidade da
pessoa humana, aos quais se seguem, por serem, no caso, correlatos, os princípios da
liberdade e da autonomia da vontade, do direito à saúde e da liberdade de crença,
facultando-se à gestante a interrupção ou continuação da gravidez.
Uma corte constitucional que afirme uma visão monolítica, metafísica e reificada
da questão não exerce uma atividade jurisdicional de bases democráticas, incorporando
antes um discurso materialmente religioso no seio da jurisdição constitucional. Há de se
empreender, no discurso judicial que decidirá sobre a licitude da interrupção da gravidez
de feto anencéfalo no direito brasileiro, um abandono de concepções objetivantes acerca
do conceito de vida e de uma imperiosa e absoluta exigência de sua tutela institucional.
A solução judicial há de considerar o discurso jurídico subjacente a princípios
públicos intersubjetivamente compartilhados. Os princípios da dignidade da pessoa
humana, da liberdade e da autonomia da vontade, do direito à saúde e de liberdade de
crença, bem como as disposições do art. 14, 126 e 128 do Código Penal, e o art. 3º da
Lei nº 9.437/97, mostram-se relevantes para a construção do “capítulo” seguinte do
“romance” até aqui escrito no direito pátrio em matéria de aborto. A ADPF nº 54-8/DF
adicionará mais um “capítulo” à “obra”, devendo-se indagar o teor que deve assumir este
“capítulo”, a fim de que resulte numa elaboração jurídica coerente com os capítulos
precedentes.
A definição jurídica de morte a partir da paralisia irreversível das funções
cerebrais, preconizada pela Lei nº 9.437/97, bem como a autorização genérica constante
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
202
no art. 24 do Código Penal, segundo a qual é lícito, ante uma situação de perigo não
causada pelo agente, que este sacrifique bem jurídico alheio em favor de bem jurídico
próprio, convergem para a irrepreensibilidade de interrupção de gravidez de feto
anencéfalo no Brasil, reconhecendo-se a atipicidade de tal conduta. O entendimento
sufragado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de excluir a
ilicitude da conduta de abortamento no caso de gravidez resultante de atentado violento
ao pudor, corrobora o argumento de que, no presente caso, seria igualmente possível
conferir-se uma analogia in bonam partem ao art. 128, incido II, do CP, para reconhecer-
se a incidência, na hipótese, de uma excludente de ilicitude.
Por razões de coerência e de aceitabilidade racional, espera-se que o próximo
capítulo seja favorável ao aborto de feto anencéfalo, entendendo-se pela não incidência
dos arts. 124 e 126 do Código Penal na hipótese. Como a integridade diz respeito a
princípios, incide, na questão, e em consonância com as decisões legislativas e
pretorianas supramencionadas, o princípio da dignidade da pessoa humana, e seus
correlatos princípios da liberdade e da autonomia da vontade, do direito à saúde e de
liberdade de crença. Tais considerações expressam a moralidade política que perfaz o
sistema e devem ser refletidas pela jurisdição constitucional.
O exercício democrático da jurisdição constitucional pressupõe uma
diferenciação entre questões éticas e morais, com a subordinação de critérios éticos de
“vida boa” à temática moral da justiça. Operada em um nível pós-convencional, a
diferenciação entre questões de ordem ética e moral ocorre quando da aceitação da
diversidade de valores e opiniões. Uma análise democraticamente legítima da licitude do
aborto de feto anencéfalo no Brasil exige a adoção de uma postura performativa pós-
convencional, a partir da qual se abdica de uma compreensão individualmente fundada,
considerando-se um universo de princípios universais a zelarem pela pluralidade de
concepções de mundo e projetos individuais.
Deve-se considera princípios universais, independentemente de estarem de
acordo com posturas individuais, mesmo as majoritárias, respeitando-se
individualidades. Aqui, os seres humanos são considerados fins em si mesmos,
tornando-se a proteção da dignidade humana a premissa moral básica, que assume a
forma de um princípio moral de justiça.
Espera-se, no julgamento da ADPF nº 54-8/DF, a assunção de uma postura
performativa democraticamente fundada, em que se abandonam razões éticas
particulares. Considerando-se os princípios de nosso ordenamento jurídico, tal como
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
203
entendidos por uma comunidade política plural e consolidados numa moralidade pública
intersubjetivamente construída, há de se reconhecer a licitude do aborto de feto
anencéfalo no Brasil, sob pena de denegação do acesso à justiça à inúmeras mulheres no
Brasil.
3. Conclusão: o papel prospectivo de um Observatório da Justiça Brasileira
Os desafios democráticos presentes na tematização de questões bioéticas, dentre
as quais se mostra exemplar a matéria discutida na ADPF nº 54-8/DF, revelam o
problema da diferenciação do direito e dos riscos de não acesso à justiça. Nessa
perspectiva, sugere-se que o Observatório da Justiça Brasileira (OJB) não opere apenas
retrospectivamente, mediante avaliação crítica de decisões pretéritas, mas assuma uma
postura prospectiva, apontando para perspectivas democráticas na abordagem de
questões como o aborto, a pesquisa de células-tronco, a eutanásia, a ortotanásia, dentre
outras.
No desempenho de referido papel, o projeto de um Observatório da Justiça
Brasileira depara-se com as seguintes possibilidades de atuação:
a) analisar decisões judiciais pretéritas, emanadas de todas as instâncias
jurisdicionais, voltadas à averiguação da argumentação judicial em questões bioéticas, a
fim de investigar os riscos e possibilidades para a constituição de uma jurisdição
democrática;
b) formar um lócus de tematização pública acerca da legitimidade de decisões
judiciais em matéria bioética, velando pela afirmação da pluralidade e abertura dos
discursos públicos e do acesso à justiça numa comunidade política de princípios;
c) promover a discussão jurídica de questões bioéticas, apontando para soluções
democráticas de matérias submetidas ao Poder Judiciário brasileiro, a fim de afirmar-se
a diferenciação do direito e a indisponibilidade do discurso judicial.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
204
MEIOS AUTOCOMPOSITIVOS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS Gláucia Falsarella Foley
1. INTRODUÇÃO
A delimitação do objeto da presente análise requer, primeiramente, o
esclarecimento de quais são os meios de solução de conflitos à disposição da sociedade.
Segundo Azevedo199, a processualística atual organiza-se em torno de três
espécies de resolução de conflitos: a autotutela ou autodefesa, que implica a dissolução
do conflito com a imposição de uma vontade sobre outra pela violência física ou moral;
a heterocomposição que enseja a resolução de disputas por meio da imposição de uma
decisão de um terceiro ao qual as partes encontram-se vinculadas – assim como ocorre
no processo judicial e na arbitragem – e, finalmente, a autocomposição.
Os meios autocompositivos são aqueles em que a resolução do conflito decorre
da vontade dos próprios envolvidos na situação, sem a intervenção vinculativa de um
terceiro, ou seja, sem a emanação de uma decisão unilateral.
Essa autocomposição pode ser impulsionada pela aplicação de técnicas de
negociação, conciliação ou mediação. Como todos estes instrumentos podem ser
judiciais ou extrajudiciais, a primeira delimitação a ser feita em relação ao objeto da
presente análise é a de que nem sempre os meios autocompositivos de solução de
conflitos correspondem aos meios extrajudiciais – por vezes, denominados
“alternativos” – ao Sistema Judiciário.
Ou seja, o critério de classificação que diferencia os meios de solução de
conflitos entre judiciais e extrajudiciais pode ser útil para outras análises que levem em
consideração a jurisdição como a referência oficial, mas não o será para pesquisas que
pretendam investigar quais são os métodos passíveis de geração de energia
emancipatória, conforme se verá adiante.
Feita essa ressalva, o próximo passo para a delimitação precisa do objeto desta
pesquisa, é desvelar a sua finalidade. O propósito deste trabalho é investigar quais são os
meios de resolução de conflito que, convertidos em práticas comunicativas, podem
colaborar para a promoção da emancipação e coesão sociais, da autonomia e do
199 GOMMA, André Azevedo. Perspectivas metodológicas do processo de mediação: apontamentos sobre a autocomposição no direito processual, p. 151-153.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
205
empoderamento200 individuais e coletivos. Trata-se de uma escolha dos métodos de
solução de disputas que apresentem vocação para a realização da Constituição na
realidade social em que o conflito está inserido.
Antes, porém, que se proceda a essa seleção, é preciso traçar um panorama dos
principais instrumentos de resolução de disputas colocados à disposição dos cidadãos
em conflito.
Uma vez definido o meio de resolução de conflitos que apresenta alta intensidade
de energia emancipatória, este trabalho pretende ilustrar o tema, oferecendo um retrato
de três experiências de mediação comunitária, impulsionadas por entes de naturezas
diversas: o Poder Judiciário, a Universidade e a uma organização da Sociedade Civil.
Ao final, pretende-se traçar alguns desafios ao Sistema de Justiça com vistas a
aprofundar a democratização do acesso à justiça, em especial na sua relação com os
meios de solução de conflitos analisados.
2. DESJUDICIALIZAÇÃO E ‘EXPLOSÃO DE LITIGIOSIDADE’
As sociedades contemporâneas ocidentais passam por um momento de
transformação em relação ao Sistema de Justiça que revela um fenômeno aparentemente
paradoxal: de um lado, o acelerado processo de urbanização e o desenvolvimento da
sociedade de consumo – e, com ele, o aumento da consciência em relação aos direitos
individuais e coletivos – ensejaram uma explosão de litigiosidade201 que judicializou o
social. De outro, é possível constatar um processo de “desjudicialização”202 da resolução
dos conflitos.
O processo de judicialização da esfera social, visível a partir do aumento
vertiginoso das demandas judiciais sem a correspondente ampliação dos recursos
estatais, elevou a expectativa social em relação ao papel do Sistema de Justiça, que
passou a absorver quase que exclusivamente a quota da responsabilidade pela coesão
social. Ocorre que este fenômeno atingiu somente uma determinada parcela da sociedade
que dispõe de recursos para recorrer ao Sistema de Justiça mediante a violação de um
200 A palavra empoderamento, traduzida do inglês, empowerment, será adotada neste trabalho, à luz da definição talhada por SCHWERIN, pela qual “O processo de empoderamento reúne atitudes individuais (auto-estima, auto-eficácia) e habilidades (conhecimento, aptidões e consciência política) para capacitar ações individuais e colaborativas (participação política e social), a fim de atingir metas pessoal e coletivas (direitos políticos, responsabilidades e recursos)”, In: SCHWERIN, Edward. Mediation, Citizen Empowerment and Transformational Politics, p. 56. 201 Também denominado “o direito em abundância”, por Marc GALANTER. Apud, PEDROSO, João; TRINCÃO, Catarina; DIAS, João Paulo. Percursos da informalização e da desjudicialização – por caminhos da reforma da administração da justiça (análise comparada), p. 14, disponível na Internet no sítio: htttp://opj.ces.uc.pt/pdf/6.pdf , acessado em 07/11/2007. 202 PEDROSO, João; TRINCÃO, Catarina; DIAS, João Paulo. Percursos da informalização e da desjudicialização – por caminhos da reforma da administração da justiça (análise comparada, p. 32-33. Idem.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
206
direito. Além disso, essa demanda aumentada foi colonizada por causas numerosas,
porém de baixo impacto, como o são as dívidas cobradas pelas prestadoras de serviço
público203, fato que contribuiu ainda mais para o déficit de celeridade e eficiência que
trazem insatisfação aos – poucos – usuários do Sistema de Justiça.
A desjudicialização, por seu turno, ocorre exatamente por força dessa exclusão
de uma significativa parcela da sociedade do acesso ao Sistema de Justiça, aliada à
fragmentação e complexidade das sociedades contemporâneas que exigem respostas
plurais a uma realidade multifacetada. Essa busca por informalização revela uma (re)
descoberta de novos meios de resolução de conflitos que não se limitam à atividade
jurisdicional e que procuram veicular uma “justiça democrática da proximidade”.204
Compreender esse fenômeno e posicionar-se diante dele é uma tarefa necessária para
aqueles que consideram que a criação do direito – mesmo antes da (re) emergência
destes meios “alternativos” de solução de conflitos – não é, nem nunca foi, obra
exclusiva dos parlamentos e tribunais.
O monopólio estatal da resolução de litígios nunca foi uma realidade. Há um
direito vivo, latente, que se traduz na forma como os cidadãos lidam com as
adversidades da vida no cotidiano. Afastados dos tribunais, estes conflitos vão sendo
solucionados da melhor maneira – nem sempre emancipatória – encontrada pelos seus
protagonistas.
Como afirma Aguiar205, “o direito nunca está posto, ele sempre está in fieri. Ele é
expressão das lutas das sociedades, não se restringindo à legalidade estatal, mas
vicejando em todas as situações onde existam as relações de alteridade, onde os olhares
diversos sobre problemas engendrem soluções novas, aberturas diferentes e consignação
de novos direitos”.
É em meio a este pluralismo jurídico que se contextualiza a (re)emergência dos
meios ‘alternativos’ de resolução de conflito que, por si só, não têm por pretensão nem
reproduzir a regulação estatal, nem servir de instrumento para a emancipação social, ou
seja, nenhum destes meios é, per se, emancipatório tão somente porque se apresentam
como alternativas ao sistema oficial.
203 Fenômeno que se verifica no Brasil, conforme notícias diariamente veiculadas na imprensa e, em Portugal, conforme SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma Revolução Democrática da Justiça, p.27. 204 Idem, p. 59.
205 AGUIAR, Roberto Armando Ramos. Procurando superar o ontem: um direito para hoje e amanhã, p. 70.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
207
Conforme análise realizada junto aos Tribunais de Portugal206, “de um ponto de
vista sociológico, as sociedades são juridicamente pluralistas na medida em que o direito
oficial coexiste com outros direitos que circulam não oficialmente na sociedade, no
âmbito das relações sociais específicas, tais como relações de família, de produção e
trabalho, de vizinhança, etc. Essa normatividade é freqüentemente mobilizada pelos
mecanismos informais de resolução de litígios”.
Embora a utilização de métodos autocompositivos de solução de conflitos não
seja uma novidade do século XX207, houve um resgate do uso destes meios, nos anos
60/70, nos EUA, reunidos sob a sigla ADR208. Este processo foi o resultado de dois
movimentos sócio-políticos aparentemente contraditórios. De um lado, o ADR mostrou-
se um remédio para lidar com o excessivo número de demandas judiciais que, uma vez
não absorvidas pelo sistema oficial, causaram insatisfação e descrédito na justiça. Era o
“direito em abundância”209, para expressar o fenômeno da inflação jurisdicional,
verificado em um momento de grande atividade política voltada para a defesa dos
direitos. De outro, o movimento ADR constituiu um meio de contestação da centralidade
do monopólio estatal, visando valorizar o espaço comunitário e estimular a participação
ativa na solução dos conflitos. O propósito era o de promover a reapropriação da gestão
dos conflitos pela comunidade.
Um dos meios adequados a essa retomada da gestão dos conflitos pela
comunidade é a autocomposição, por se tratar de um método aberto à produção da
normatividade que se constrói nas relações sociais concretas. Nesse sentido, os meios
autocompositivos de solução de conflitos implicam a possibilidade de autolegislação,
adequando a lei às inúmeras e fragmentadas realidades sociais210. Segundo, ainda,
Galanter, “o problema posto pelo acesso à justiça não é, apenas, assim, permitir a todos
recorrer aos tribunais; implica que se procure realizar justiça no contexto em que se
colocam as partes: nesta óptica, os tribunais só desempenham um papel indirecto e,
talvez mesmo, menor”.211
206 SANTOS, Boaventura de Sousa, MARQUES, Maria Manuel Leitão, PEDROSO, João, FERREIRA, Pedro Lopes. Os Tribunais nas sociedades contemporâneas. O caso português, p. 48. 207 Conforme Nazareth SERPA, “Começando pelo diálogo até a guerra, são incontáveis e informais os métodos utilizados pela humanidade para pôr fim aos seus conflitos. Os tribunais sempre foram a última opção. ADR não é panacéia do século XX. É a institucionalização do que vem sendo feito, desestruturada e informalmente, em matéria de resolução de disputas em todo século. Apud ROMÃO, José Eduardo Elias, Justiça procedimental. A prática da Mediação na Teoria Discursiva do Direito de Jürgen Habermas, p. 155. 208 Alternative Dispute Resolution (ADR) ou Resolução Alternativa de Disputas (RAD). 209 Conforme nota n. 3. 210 HESPANHA, António. Justiça e Litigiosidade: história e prospectiva, p. 21 211 GALANTER, Marc. A justiça não se encontra apenas nas decisões dos tribunais. In: HESPANHA, idem, p. 75.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
208
Confere-se, assim, aos cidadãos, a autonomia de participar na formação racional
da vontade e da opinião. “Trata-se da idéia de autolegislação, que, estabelecendo um
nexo interno entre razão e vontade, passa a exigir a consideração simétrica da liberdade
individual de cada um. Isto é, só há sentido na autonomia privada de cada indivíduo se
se considera a autonomia pública de cidadãos integrados numa sociedade, e vice-
versa”.212 Sob esta ótica, somente aqueles meios de resolução de conflitos que
contemplam a razão comunicativa, ou seja, que garantem a participação com direitos
iguais de comunicação, a racionalidade, a exclusão de enganos e ilusões e de coação – é
que podem proporcionar a aplicação de um Direito válido.
“Todavia, se discursos (e, como veremos, negociações, cujos procedimentos são
fundamentados discursivamente) constituem o lugar no qual se pode formar uma
vontade racional, a legitimidade do direito apóia-se, em última instância, num arranjo
comunicativo: enquanto participantes de discursos racionais, os parceiros do direito
devem poder examinar se uma norma controvertida encontra ou poderia encontrar o
assentimento de todos os possíveis atingidos”.213
Assim, se o objeto da presente análise é verificar em que medida os meios de
solução de conflito são capazes de promover a pacificação das relações sociais, mas
também a participação nas decisões políticas; a criação de redes que promovam
solidariedade, mas também a autonomia e autodeterminação; a prevenção de litígios,
mas sem a pretensão de destruir o potencial transformador dos conflitos, não basta
delimitar como objeto desta pesquisa os meios alternativos ao sistema judiciário porque
não necessariamente todos eles veicularão os propósitos acima. A partir de uma
apresentação do panorama e da classificação dos meios de resolução de conflitos
disponíveis na sociedade, todo o enfoque da pesquisa estará na mediação comunitária
porque, conforme se verá adiante, este mecanismo está em sintonia com o pressuposto
desta pesquisa que busca “produzir novos procedimentos que propiciem um acesso à
Justiça pelo agir comunicativo, pelo exercício partilhado da autonomia, pela força
transformadora do diálogo”.214
3. APRESENTAÇÃO E CLASSIFICAÇÃO DOS MEIOS DE RESOLUÇÃO DE
CONFLITOS
212 ROMÃO, José Eduardo Elias, Idem, p. 135. 213 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. Volume I, p. 138. 214 ROMÃO, José Eduardo Elias, Idem, p. 29.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
209
A apresentação dos principais mecanismos de resolução de conflito em um
panorama que revele os meios mais aptos a promover emancipação social pode ser feita
a partir de um critério de classificação que contenha as variáveis
regulatório/emancipatório e estatal/não-estatal. A primeira variável se justifica pelo fato
de que o objeto da presente investigação é analisar em que medida as práticas
comunicativas estabelecidas entre cidadãos em conflito podem colaborar para a
emancipação social. O critério estatal/não-estatal, apesar da sua dificuldade – posto que,
em uma sociedade complexa, por vezes, essa classificação não se mostra suficiente –
tem por finalidade desmistificar a associação de que basta ser comunitária para que a
experiência seja emancipatória215.
A fim de apresentar um quadro no qual os meios de resolução de conflitos se
organizam segundo os vértices estatal/não-estatal e regulatório/emancipatório, urge
adotar uma definição de direito capaz de abarcar diferentes ordens jurídicas, posto que
um dos pressupostos deste trabalho é o de que o monopólio estatal do direito não se
verifica na realidade.
Adotar-se-á, aqui, a definição talhada por Sousa Santos, pela qual o direito é “um
corpo de procedimentos regularizados e de padrões normativos, com base nos quais uma
terceira parte previne ou resolve os litígios no seio de um grupo social”.216
Neste cenário múltiplo de reconhecimento da pluralidade de ordens jurídicas,
podemos identificar a variável estatal/não-estatal, esta última abarcando as práticas
jurídicas levadas a efeito fora do âmbito oficial, ainda que densamente reguladas pelo
direito estatal, como é o caso da arbitragem.
Os modelos podem vir a ser classificados, ainda, sob a variável
regulatório/emancipatório. Teoricamente, o modelo emancipatório é o campo de
exercício da retórica, enquanto que no regulatório impera o direito permeado pela
coerção e/ou burocracia. Assim, o grau de “contaminação” ou colonização entre estes
elementos – retórica, coerção e burocracia – é que define se o modelo é do tipo
emancipatório ou regulatório.
O presente texto pretende analisar quais as combinações possíveis entre as
variantes estatal/não-estatal e regulatória/emancipatória. Nada impede que, nas esferas
não estatais, haja uma forte prevalência da coerção, em detrimento da retórica. Ou ainda,
215 FOLEY, Gláucia Falsarella. Dissertação de Mestrado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, sob a orientação do Prof. José Geraldo de Sousa Junior e co-orientação do Prof. Cristiano Paixão Araújo Pinto, Brasília. 2003. 216 SOUSA SANTOS, Boaventura de. O Estado e o Pluralismo Jurídico em África, In: SOUSA SANTOS, Boaventura de e TRINDADE, João Carlos (Orgs.). Conflito e transformação social: uma paisagem das justiças em Moçambique, p. 5.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
210
uma retórica persuasiva ao invés de dialógica217. Nesse sentido, essas classificações são
válidas para guiar o nosso debate, mas deve-se ressalvar que “as dicotomias são um bom
ponto de partida se for claro, desde logo, que não são um bom ponto de chegada”.218
O critério, portanto, de classificação sob as variáveis adotadas obedecerá à
articulação entre os três componentes estruturais do direito219, bem assim, da natureza da
retórica utilizada. Assim, onde há prevalência da retórica dialógica, há o exercício do
direito emancipatório. As práticas que privilegiam a coerção e a burocracia serão
identificadas como manifestações do direito regulatório. Em um campo intermediário,
situa-se a retórica do tipo persuasivo, cujo enfoque se concentra na produção de
resultados satisfatórios para as partes.
A adoção dessas duas variáveis nos conduz a desenhar um quadro com quatro
campos para a classificação das diferentes ordens jurídicas: 1) o direito estatal
regulatório; 2) o direito estatal emancipatório; 3) o direito não-estatal regulatório e 4) o
direito não-estatal emancipatório.
O gráfico apresentado a seguir classifica os diversos modelos segundo os
critérios já expostos. Desse modo, temos os seguintes modos de resolução de litígios: 1)
a jurisdição; 2) a conciliação; 3) a arbitragem; 4) a violência; 5) a mediação – judicial e
comunitária.
217 Segundo SANTOS a ‘novíssima retórica’, ou retórica dialógica “deve privilegiar o convencimento em detrimento da persuasão, deve acentuar as boas razões em detrimento da produção de resultados.” SOUSA SANTOS, Boaventura de. A crítica da razão indolente. Contra o desperdício da experiência, p. 104-105 218 SOUSA SANTOS, Boaventura de. O Estado e o Pluralismo Jurídico em África, In: SOUSA SANTOS, Boaventura de e TRINDADE, João Carlos (Orgs.). Conflito e transformação social: uma paisagem das justiças em Moçambique, p. 20. 219 Retórica, burocracia e coerção são, na análise de Sousa Santos, os três componentes estruturais do direito que podem se articular sob diferentes combinações, a depender do campo jurídico ou dentro de um mesmo campo. SOUSA SANTOS, Boaventura de. O Estado e o Pluralismo Jurídico em África, In: SOUSA SANTOS, Boaventura de e TRINDADE, João Carlos (Orgs.). Conflito e transformação social: uma paisagem das justiças em Moçambique, p. 7.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
211
3.1. A jurisdição
Sob o modelo estatal do tipo regulatório, identificam-se os meios de resolução de
litígios realizados por intermédio da jurisdição formal. Nele estão incluídas as
experiências que, embora denominadas “informais”, reproduzem os mesmos
pressupostos da jurisdição formal.220
A jurisdição formal é, por excelência, palco da justiça da Modernidade, já que
inspirada em princípios universais baseados em imperativos de uma razão
profundamente intrínseca a todos os seres humanos. Essa é a justiça que, codificada,
aplica o mesmo procedimento a casos tão diferentes, com base em deduções racionais
advindas da autoridade da lei ou dos precedentes.
220 Tais como as iniciativas de democratização do acesso à jurisdição no Brasil – juizados especiais cíveis e criminais; juizados itinerantes; etc – os quais procuram despir a jurisdição do excessivo formalismo que reveste o rito comum.
Jurisdição
Mediação Judicial
Arbitragem
Mediação Comunitária
Conciliação
Meios de Resolução de Conflitos
REGULATÓRIO EMANCIPATÓRIO
Violência Retórica Persuasiva Retórica Dialógica Coerção Burocracia
Estatal
Não Estatal
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
212
Nas democracias ocidentais, uma das fontes de legitimidade do parlamento está
no procedimento democrático por meio do qual seus membros são eleitos. O pressuposto
é que os indivíduos são livres e racionais, capazes de eleger seus representantes. Esta
lógica, quando transferida para a resolução de disputas, é a de que, quando em conflito,
os indivíduos – sujeitos de direitos – provocam o Estado para “dizer o direito” no caso
concreto. Nesta esfera, os representantes deste Estado legítimo são os juízes que, com
imparcialidade e saber jurídico, aplicarão a lei, que fora expedida pelo parlamento
democrático, ao caso concreto.
Todo o procedimento judicial é, pois, estruturado para dar cumprimento a esta
racionalidade: a) o sistema é adversarial e dialético – porque direcionado a oferecer uma
síntese resultante da contraposição de direitos que necessariamente se excluem. Ao final,
haverá um vencedor e um vencido; b) é autocrático – posto que pautado na autoridade da
lei ditada por um terceiro imparcial também revestido da autoridade estatal; c) tem
pretensão universal, porque, conforme adverte Shonholtz, “o tratamento da lei é igual,
não respeitando as diversidades cultural, lingüística, étnica, cultural e racial”;221 d) é
coercitivo, burocrático e não-participativo, na medida em que produz resultados
mandamentais, sem que tenha sido dada a oportunidade das partes interessadas se
manifestarem livres das amarras e estratégias da linguagem forense traduzida pelos
advogados.
Não raro, os “clientes da justiça” sentem-se excluídos do processo de decisão
conduzido pelos advogados e juízes, os quais fornecem uma interpretação baseada não
somente na autoridade da lei, mas das próprias necessidades das partes, de suas metas e
do comportamento para atingi-los. Muitos clientes ficam intimidados com a formalidade
do processo de adjudicação e sentem que não estão aptos a participar de forma ativa.
Trata-se da “advocacia ritualística”, conforme denomina W. Simon222, pela qual “os
litigantes não são os sujeitos da cerimônia, mas os pretextos para ela”.
O padrão adversarial nem sempre se mostra adequado, na medida em que o
sistema binário – considerado pela Modernidade o melhor meio de se atingir a verdade –
polariza o debate, distorce a realidade, omite informações importantes, simplifica
complexidades e obscurece, ao invés de clarificar. Carrie Menkel-Meadow223 argumenta
que a pós-modernidade é marcada por uma realidade multicultural que apresenta
221 SHONHOLTZ, Raymond. Justice from another perspective: the ideology and developmental history of the Community Boards Program, p. 203. 222 Apud MACFARLANE, Julie In: An alternative to what? p. 5. 223 MENKEL-MEADOW, Carrie. The Trouble with the Adversary System in a Postmodern, Multicultural World, 2001.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
213
problemas complexos, os quais requerem soluções multifacetadas nem sempre
fornecidas pelas cortes. Neste cenário múltiplo, verifica-se que as disputas envolvem
mais do que duas faces do problema ou, ainda, mais que duas partes. Toda esta
complexidade é distorcida quando o conflito é analisado sob uma estrutura binária.
Nesse sentido, é preciso explorar alternativas de modelos para que os processos legais
respeitem as características da pós-modernidade.
Apesar de sua longevidade, o padrão adversarial como um modo do discursar
humano e como uma ferramenta para se buscar a verdade parece ter entrado em crise. O
problema está em saber se a verdade existe fora daquilo que se conhece. No mundo
atual, marcado pela complexidade, fragmentação e multiplicidade, não há como
sustentar a imutabilidade ou universalidade dos fatos e valores. Seria possível fixar a
verdade? Sentidos são “descobertos” ou estabelecidos contextualmente? As pessoas cuja
tarefa é “encontrar” a verdade – juízes, jurados, a mídia – possuem interesses sociais,
econômicos, políticos, raciais, de gênero que afetam a forma como eles vêem o mundo.
Este novo olhar que questiona a objetividade e neutralidade traz sérias conseqüências
para o modelo adversarial baseado na imparcialidade, neutralidade e passividade dos
juízes. Para Menkel-Meadow, a realidade da vida não pode ser reconhecida pela
“verdade”, mas por meio de múltiplas histórias e deliberações. Há que se pensar em
caminhos que possibilitem mais vozes, mais histórias e mais complexas versões da
realidade.
É possível identificar uma alta intensidade regulatória na jurisdição formal, tendo
em vista a presença dos elementos da burocracia e da coerção, em detrimento da
retórica. Urge, assim, apontar outros meios capazes de realizar a justiça para a
emancipação, fora do âmbito jurisdicional.
O fato de a jurisdição pertencer ao campo do direito regulatório, contudo, não
significa que o seu exercício não possa contribuir para a emancipação. Em situações
extremas, nas quais os conflitos repousam na violência e na ausência de diálogo, a
jurisdição revela-se um instrumento hábil a conferir uma decência na regulação,
protegendo direitos e garantindo a realização da justiça.
3.2. A conciliação
Em uma zona intermediária, mais próxima do exercício da retórica persuasiva,
encontra-se a conciliação, como um meio de resolução de conflito também pertencente
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
214
ao campo regulatório. Embora tecnicamente a conciliação seja uma modalidade de
autocomposição do conflito, uma vez que dispensa o pronunciamento unilateral do juiz
sobre o mérito da causa, a condução do procedimento é atribuída a um terceiro – juiz,
juiz leigo ou conciliador privado – com poderes para sugerir, ponderar, aconselhar as
partes quanto à melhor solução para o conflito.
Sem prejuízo de que a conciliação pode ocorrer em uma esfera privada, a
tentativa de conciliação judicial está prevista na legislação brasileira como uma etapa
obrigatória, tanto no procedimento ordinário – art. 331 do Código de Processo Civil –
quanto no rito previsto na Lei de Juizados Especiais – art. 21 da Lei 9099/95 – bem
assim, no art. 846 da CLT. Além disso, em geral, o que se verifica é que o objeto da
conciliação judicial encontra seus limites no próprio objeto da lide. De qualquer sorte,
sendo ou não judicial, a atuação do conciliador é interventiva, na medida em que seu
papel é o de estimular as partes para que cheguem a um acordo, sugerindo alternativas e
condições para a resolução do conflito, interferindo, assim, na composição amigável.
Conforme se verá adiante quando da análise da mediação, enquanto na
conciliação o objetivo é a celebração de um acordo para evitar um processo judicial, na
mediação, o acordo não é a meta, mas a – provável – resultante de um processo de
comunicação sobre os reais interesses que se escondem sob a rigidez das posturas
assumidas pelas partes em conflito.
Além disso, a conciliação limita-se a atuar na disputa das posições, não no
conflito e em suas circunstâncias. Segundo Warat, “... a conciliação e a transação não
trabalham o conflito, ignoram-no, e, portanto, não o transformam como faz a mediação.
O conciliador exerce a função de ‘negociador do litígio’, reduzindo a relação conflituosa
a uma mercadoria. O termo de conciliação é um termo de cedência de um litigante a
outro, encerrando-o. Mas, o conflito no relacionamento, na melhor das hipóteses
permanece inalterado, já que a tendência é a de agravar-se devido a uma conciliação que
não expressa o encontro das partes com elas mesmas”. 224
Embora opere com elementos da retórica, a conciliação é do tipo persuasivo o
que afasta a sua consideração nesta pesquisa como um meio de resolução de conflitos de
alta intensidade emancipatória.
224 WARAT, Luis Alberto. O ofício do mediador, p.79- 80.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
215
3.3. A arbitragem
Conforme afirma Moore, arbitragem é um termo genérico para um processo
voluntário em que as pessoas em conflito submetem a questão objeto de controvérsia a
uma terceira parte imparcial e neutra para que tome uma decisão por elas. O instituto,
segundo previsão na legislação brasileira225, é definido como um processo formal pelo
qual as partes, de comum acordo, aceitam submeter o litígio envolvendo direito
patrimonial disponível a um terceiro, cuja decisão terá observância obrigatória. A
sentença arbitral produzirá os mesmos efeitos que a sentença proferida pelos órgãos do
Poder Judiciário, constituindo, inclusive, título executivo, quando condenatória.
Tendo em vista que o papel do árbitro é o de adjudicação, este instrumento
tampouco será objeto de análise neste trabalho, posto que sua estrutura segue o padrão
do processo judicial, já desenvolvido no item 3.1. O paradigma que se revela na
arbitragem é o de uma estrutura piramidal-coercitiva, sendo que no vértice desta relação,
ao invés do estado-juiz, está o árbitro escolhido pelas partes nos contratos celebrados à
luz do direito privado.
3.4. A violência
Algumas formas de resolução de conflitos, estatais ou não, reproduzem um
modelo no qual imperam a violência e a coerção em detrimento da retórica. São
experiências que ora são efetivadas em uma esfera não-estatal, muito embora com a
anuência passiva do Estado, ora sob a sua cumplicidade ativa. Tais práticas têm assento
em um pilar regulatório, na medida em que funcionam por meio de mecanismos de
controle, tutela e coerção.
A violência, como meio de resolução de conflitos, pode assumir diversas
colorações. No seu extremo, temos aquela realizada por um fascismo social226 local, que
opera segundo as regras da denominada sociedade civil não civil.227 Não há qualquer
exercício da retórica e o poder de decisão acerca dos conflitos é monopólio dos membros
da comunidade que a controlam pela imposição do silêncio, do medo e das armas. Como
exemplo, os chefes do tráfico de drogas nas favelas brasileiras, que destroem o sentido
da comunidade a partir da negação do outro.
225 Conforme previsão na Lei n. 9.307, de 23/09/96. 226SOUSA SANTOS, Boaventura de. Reinventar a democracia.
227 Segundo Santos, “A sociedade incivil é o círculo exterior habitado por aqueles que estão completamente excluídos. Eles são socialmente invisíveis. Este é o círculo do social fascismo e, a rigor, aqueles que o habitam não pertencem à sociedade civil, na medida em que foram jogados no novo Estado de natureza. Eles não têm expectativas estáveis porque, na prática, não possuem direitos”. In: SOUSA SANTOS, Boaventura de. Toward a New Legal Common Sense, p. 457.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
216
A justiça desenvolvida segundo os ditames do fascismo social opera por meio da
violência, e sua retórica é a arma. O julgador, terceiro a substituir a vontade das partes,
não se pretende imparcial. Ao contrário, trata-se de uma justiça politizada e parcial, na
medida em que o julgador não atua segundo orientação da justiça, mas do controle da
política. A justiça do fascismo societal não oferece um segundo grau de jurisdição;
qualquer questionamento da decisão pode implicar eliminação física do queixoso,
mesmo porque este modelo comunitário adota, em alguns casos, a pena de morte como
uma das formas de punição. A violência – estatal ou não – é, pois, a manifestação mais
extremada da justiça, praticada sob um viés regulatório.
3.5. A mediação
Com precisão e simplicidade, Littlejohn afirma que “mediação é um método no
qual uma terceira parte imparcial facilita um processo pelo qual os disputantes podem
gerar suas próprias soluções para o conflito”.228
Segundo a sistematização de Garrett229, mediação é um processo voluntário de
resolução de conflitos, no qual um terceiro coordena as negociações entre as partes.
Diferentemente do juiz, o mediador não tem autoridade para impor a decisão sobre os
disputantes. Ao contrário, o mediador conduz o processo, por meio da discussão do
problema, dos temas que precisam ser resolvidos e das soluções alternativas para a
solução do conflito. As partes, entretanto, é que decidem como construirão o consenso.
Vê-se, pois, que o núcleo do conceito de mediação, não obstante as diferentes
abordagens acerca de sua metodologia, contém, basicamente, os seguintes elementos: a)
processo voluntário; b) mediador como terceira parte desinteressada; c) mediador sem
poder de decisão; d) solução talhada pelas partes em conflito.
Mais completa, contudo, é a análise de Schwerin230 que reúne os elementos da
mediação a partir das suas finalidades. Para o autor, trata-se de um processo:
i. Apto a lidar com as raízes dos problemas;
ii. Não-coercitivo;
iii. Voluntário e permite aos disputantes resolverem seus problemas por eles próprios;
228 LITTLEJOHN, Stephen W. Book reviews: The Promise of Mediation: Responding to Conflict Through Empowerment and Recognition by Roberto A. B. Bush and Josepf. P. Folger, p. 103. 229 GARRETT, Robert. Mediation in Native America, p. 40. 230 SCHWERIN, Edward. Mediation, Citizen Empowerment and Transformational Politics, p. 21.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
217
iv. Mais rápido, barato e igualitário;
v. Desenvolve a capacidade de comunicação entre os membros da comunidade;
vi. Reduz o congestionamento das cortes;
vii. Reduz as tensões na comunidade;
viii. Não-burocrático e flexível;
ix. Os mediadores não são profissionalizados, eles representam a comunidade e
compartilham os valores, não sendo estranhos aos disputantes;
x. Um veículo de empoderamento da comunidade e um estímulo às mudanças sociais.
Porque voltada para a construção do consenso, a mediação sugere que onde há
conflito, disputas e dificuldades humanas, há a oportunidade para a reconciliação, a
comunicação, o entendimento, o aprendizado. O paradigma visivelmente presente na
proposta da mediação desafia o sistema oficial de resolução de disputas baseado na
lógica adversarial, o qual pressupõe um sistema binário, dialético, pelo qual as partes
confrontam-se entre si perante uma autoridade cuja decisão será coercitiva e amparada
no ordenamento legal.
A lógica da mediação, ao contrário, obedece a um padrão dialógico, horizontal e
participativo, o qual inaugura um novo enfoque para o tema da realização da justiça.
As soluções construídas pelas partes envolvidas no conflito podem ser talhadas
além da lei. Quando os protagonistas do conflito inventam seus próprios remédios, em
geral, não se apóiam na letra da lei porque seu pronunciamento é por demais genérico
para observar a particularidade dos casos concretos. Há, pois, a liberdade de criar
soluções sem as amarras dos resultados impostos pelo ordenamento jurídico. Nesse
sentido, as partes, antes alheias ao processo de elaboração das leis, “legislam” ao
constituir suas próprias soluções não somente para enfrentar os conflitos já instaurados,
mas para evitar adversidades futuras.231
Por tais razões, poder-se-ia afirmar que, mesmo nos modelos atrelados ao
sistema judicial, a estrutura da mediação pode veicular, em sua gênese, um
potencial emancipatório, na medida em que sua lógica subverte o padrão
adversarial do sistema oficial. Contudo, além da mediação processual ser um 231 Isto não quer dizer, por óbvio, que a mediação seja um instrumento voltado para o “fazer justiça com as próprias mãos”, o que poderia, em alguns casos, configurar o crime de “exercício arbitrário das próprias razões”, conforme art. 345 do Código Penal Brasileiro. Na verdade, trata-se de um “fazer justiça com múltiplas vozes”. Conforme FOLEY, Gláucia Falsarella. Dissertação de Mestrado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, sob a orientação do Prof. José Geraldo de Sousa Junior e co-orientação do Prof. Cristiano Paixão Araújo Pinto, Brasília. 2003.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
218
instrumento voltado tão somente àquela camada social que tem acesso ao Sistema
de Justiça, a intensidade da energia emancipatória que pode ser produzida nas
experiências concretas estará intimamente ligada à adoção do espaço comunitário
como lócus preferencial, conforme se verifica a seguir.
4. Mediação comunitária: uma proposta emancipatória.
Quando realizada sob um modelo comunitário – ou seja, na comunidade, para a
comunidade e, preferencialmente pela comunidade – a mediação para a emancipação
está inserida na teoria política, na medida em que trata de autodeterminação, de
participação nas decisões políticas e, ainda, porque reelabora o papel do conflito na
sociedade, desenhando um futuro sob novos paradigmas232.
Dentre os inúmeros critérios utilizados para distinguir os modelos de
mediação – que veiculam vertentes ideológicas diferenciadas – adotar-se-á neste
trabalho o dual, que divide os modelos de mediação em: modelo de agência cujo
enfoque é voltado para a satisfação das partes, geralmente operado em práticas de
mediação vinculadas ao sistema judicial oficial, e modelo comunitário que oferece uma
perspectiva transformadora, porque direcionado à organização comunitária.
Adler, Lovaas e Milner233 ilustram esta distinção, a partir da análise de
duas experiências americanas concretas: o Conselho Comunitário de São Francisco
(SFCB) e o Centro de Justiça de Vizinhança de Atlanta (NJCA).
O modelo comunitário com o qual trabalha Shonholtz no Conselho de São
Francisco possui algumas premissas, baseadas em quatro idéias: 1) a diversidade e a
complexidade da vida social promovem o fortalecimento das entidades não-
governamentais, na medida em que há um compromisso de partilhar os recursos sociais
e articular projetos em comum; 2) a supressão do conflito, individual ou coletivo, é
prejudicial; 3) os fóruns de justiça comunitária são meios para organizar mecanismos de
resolução de conflitos locais; 4) o desenvolvimento e a manutenção destes centros são
um direito democrático e uma responsabilidade dos cidadãos.234
232 FOLEY, Gláucia Falsarella. Idem. 233 ADLER, Peter; LOVAAS, Karen; MILNER, Neal. The Ideologies of Mediation: The Movement’s Own Story. p. 320. 234 SHONHOLTZ, Raymond. Neighborhood Justice Systems: Work, Structure, and Guiding Principles, p. 13.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
219
Há um componente preventivo neste enfoque, na medida em que o modelo de
justiça comunitária é voltado para o fortalecimento dos recursos da comunidade, das
responsabilidades e habilidades. Não se trata, pois, de uma mera extensão do aparato
estatal, eis que as atividades comunitárias operam dentro de uma arena de prevenção que
busca resolver os conflitos antes que eles cheguem às cortes.
Os resultados da mediação comunitária voltada ao empoderamento e à
transformação social, conduzida pelo Programa de São Francisco, são inúmeros e
Shonholtz os elenca:
1. Fornece um espaço de transparência de normas e valores e de construção de
entendimentos compartilhados sobre comportamentos socialmente apropriados, o
que possibilita a redução das tensões sociais;
2. Permite o aprendizado individual e coletivo acerca das responsabilidades em
quaisquer situações, inclusive futuras. Este fator desenvolve a autonomia local,
no sentido de auto-gestão;
3. Desenvolve habilidades individuais em problemas concretos que, uma vez
enfrentados coletivamente, fornecem um sentimento de auto-realização
individual e crescimento de um senso coletivo;
4. Estimula a comunicação, sobretudo em ambientes hostis em razão da
diversidade, constrói respeito às diferenças e neutraliza a alienação e o
isolamento;
5. Fornece um espaço nos quais problemas locais possam ser resolvidos por meio
da identificação e utilização dos recursos comunitários;
6. Proporciona um veículo de resolução de disputas justo aos olhos dos
participantes, respeitando o potencial benéfico do conflito.235
Bush e Folger236 também dividem o vasto campo da mediação em duas vertentes.
A primeira, a abordagem resolução de problemas, a qual enfatiza a capacidade da
mediação para encontrar soluções e gerar acordos. O foco da segunda abordagem,
transformadora, é a capacidade de promover empoderamento e reconhecimento.
Os autores, contudo, identificam, sob estas duas vertentes, quatro abordagens, a
depender dos objetivos a serem alcançados no processo de mediação: a) da satisfação,
235 Idem, p. 28. 236 BUSH, Robert A. Baruch; FOLGER, Joseph P. The Promise of Mediation. Responding to Conflict Through Empowerment and Recognition, p. 12.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
220
cuja meta é reduzir o congestionamento das cortes e fornecer justiça com qualidade nos
casos individuais (Fisher e Ury, 1981; Fisher e Brown, 1989; Susskind e Cruikshank,
1987)237; b) da justiça social, que busca, no processo, um veículo de organização
popular e comunitária; c) da opressão representada pela visão crítica da mediação que
denuncia seu caráter opressivo; d) da transformação, que tem por enfoque a
transformação e integração das relações humanas.238
Sob o foco da justiça social, cujo representante é Shonholtz (1987), entre outros
(Carl Moore, 1994 e Margaret Herrman, 1993)239, a mediação oferece um efetivo sentido
de organizar indivíduos em torno de objetivos comuns e de construir fortes laços nas
estruturas comunitárias. Por sua capacidade de ajudar as partes a resolver seus
problemas por eles próprios, a mediação reduz a dependência das instituições oficiais e
estimula a emancipação individual incluindo a formação de bases comunitárias. Sob esta
vertente, a adjudicação e o arbítrio retiram as possibilidades de empoderamento dos
participantes, por meio da perda do controle dos resultados, outorgando o destino da
resolução dos conflitos aos representantes técnicos.
Sob a visão transformadora, a mediação pode conduzir as partes ao exercício da
autodeterminação, ajudando-as a mobilizar seus próprios recursos para resolver
problemas e atingir metas. Os participantes de um processo de mediação ganham um
senso de auto-respeito e autoconfiança. Sob essa perspectiva, esse é o resultado do
empoderamento. (Albie Davis, 1989; Leonard Riskin, 1984; Carrie Menkel-Meadow,
1991; Dukes, 1993 e Bush e Folger, 1994).240
Warat estabelece o mesmo critério sob a classificação acordista e
transformadora, sendo esta uma concepção que “vê o conflito como uma das principais
forças positivas na construção das relações sociais e na realização da autonomia
individual. A diferença de força puramente negativa, autodestrutiva da indiferença, o
conflito brinda com um incentivo para a interação, termina erigindo-se numa
possibilidade para criar, com o outro, a diferença.”241
As abordagens da justiça social representada por Shonholtz, fundador dos
Conselhos de São Francisco, e a transformadora desenvolvida por Bush e Folger242
ganham especial relevo neste trabalho. O propósito é investigar em que medida estes
237 Idem, p. 17. 238 Ibidem, p. 15-24. 239 Ibidem, p. 19. 240 Ibidem, p. 21. 241 WARAT, Luis Alberto. Ecologia, Psicanálise e Mediação, p. 16. 242 Trata-se da obra The Promise of Mediation.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
221
enfoques podem ser úteis para a nossa tarefa de refletir sobre os traços de uma mediação
comunitária para a emancipação.
Embora veicule elementos emancipatórios, a mediação processual opera com
uma retórica que é em parte persuasiva, em parte dialógica. Isso porque, todo o
procedimento da mediação processual é tutelado pelo juiz. A qualquer momento em que
as partes não estiverem mais dispostas ao diálogo, o curso do processo – e seu intrínseco
risco de sucumbência – é retomado. Além disso, não há, nessa modalidade de mediação,
uma relação direta com a comunidade, no sentido de permitir que o conflito social possa
servir de matéria prima para a promoção de coesão social, pacificação e solidariedade.
Quando a prática da mediação ocorre na esfera comunitária, pode haver uma integração
das estratégias de fortalecimento comunitário pelo acesso à informação, a inclusão e a
participação, a co-responsabilidade e o compromisso e a capacidade de organização
local.
E é aqui que a escolha pela metodologia comunitária da mediação se justifica
pela potencialidade emancipatória que a vida em comunidade proporciona. “O âmbito
comunitário é, em si, um espaço de grande riqueza por sua aptidão em difundir e aplicar
os métodos pacíficos de gestão de conflitos ou tramitação das diferenças. A mediação,
como instrumento apto a este propósito, brinda os protagonistas – aqueles que
compartilham o espaço comunitário – a oportunidade de exercer uma ação coletiva na
qual eles mesmos são os que facilitam a solução dos problemas que se apresentam em
suas pequenas comunidades. Neste sentido, o desenvolvimento destes processos, assim
como a transferência de ferramentas e técnicas específicas de mediação aos integrantes
das comunidades constituem um valioso aporte e um avanço concreto relativo à nossa
maturidade como sociedade e colabora efetivamente em pró de um ideal de uma vida
comunitária mais satisfatória”.243 E complementa: “A mediação é valorada como um
terreno privilegiado para o exercício da liberdade, um lugar de crescimento e
desenvolvimento, a partir de – na expressão de Habermas – uma atuação
comunicativa”.244
5. Três experiências concretas de Mediação Comunitária
243 NATÓ, Alejandro Marcelo, QUEREJAZU, Maria Gabriela Rodríguez, CARBAJAL, Liliana Maria. Mediación Comunitária. Conflictos en el escenario social urbano, p. 109. 244 Idem, p. 161.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
222
Uma vez justificada a seleção da mediação comunitária como um método
autocompositivo de conflitos de alta intensidade emancipatória, este estudo ilustra, a
seguir, três experiências de mediação comunitária que revelam ter em comum a
construção permanente da cidadania, por meio da democratização do acesso à
informação; da mediação comunitária e do fortalecimento das redes sociais.
5.1. A experiência do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos
Com a missão de democratizar o conhecimento sobre o Direito e promover a
cidadania através da oferta de serviços de orientação sobre os direitos, mediação popular
e assessoria a organizações públicas e não-governamentais, foi fundada, em junho de
2001, em Salvador-Ba, a organização não-governamental Juspopuli Escritório de
Direitos Humanos.
A educação para os direitos humanos e cidadania é a principal estratégia de
atuação do Juspopuli, por meio da realização de programas de formação voltados para
diferentes atores sociais e da manutenção de uma rede de serviços de orientação sobre
direitos e mediação: Os Escritórios Populares de Mediação e Orientação sobre Direitos.
Desde sua criação, a instituição tem investido na mediação popular como forma
alternativa de acesso à Justiça e de resolução de conflitos. Como principal estratégia,
implantou e mantém Escritórios Populares de Orientação sobre Direitos e Mediação de
Conflitos em bairros populares de Salvador.
No campo da assistência técnica, o Juspopuli realiza projetos de prestação de
serviços de interesse social; concebe, planeja e executa projetos voltados,
prioritariamente, para comunidades pobres, oferecendo orientações sobre direitos,
modos alternativos de solução de conflitos e encaminhamentos adequados para
atendimentos por outras organizações, do Poder Público ou ONG’s.
Os Escritórios Populares de Mediação e Orientação sobre Direitos são espaços
organizados em parceria com associações de moradores e outras entidades de atuação
local, e oferecem às comunidades orientação sobre direitos básicos da cidadania,
mediação de conflitos relacionados com direitos disponíveis e encaminhamentos para
outros serviços prestados por instituições públicas ou entidades civis.
Os Escritórios inserem-se no âmbito do Programa de Balcões de Direito,
desenvolvido pela Secretaria de Estado dos Direitos Humanos - que congrega iniciativas
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
223
de diferentes organizações voltadas para difusão dos conhecimentos sobre direitos,
mediação de conflitos e facilitação do acesso à justiça.
Como executora direta, o Juspopuli implantou e mantém quatro Escritórios de
Mediação Popular, sendo três fixos e um móvel, que atendem às comunidades de bairros
populares de Salvador. Desde a implantação do primeiro escritório, em 2001, já foram
diretamente atendidas cerca de 14 mil pessoas, beneficiando grande número de crianças
adolescentes por meio da resolução problemas na área de família e encaminhamentos a
serviços públicos.
Para realizar o atendimento à população, o Juspopuli capacita lideranças
comunitárias para desenvolverem o trabalho de mediação, que consiste em ouvir e
orientar as partes envolvidas em questões de família, relações trabalhistas, de
consumidor, entre outras, e ajudá-las a encontrar uma solução amigável através do
diálogo. Os mediadores contam com a retaguarda técnica de advogados e estudantes de
Direito.
A legitimidade dessa experiência vem se firmando pelas parcerias institucionais
com o Brazil Foundation, Petrobrás, UNICEF, Secretaria Especial de Direitos Humanos/
Presidência da República, Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, Faculdades de Direito
e da UFBA, Faculdades Jorge Amado, Núcleo de Práticas Jurídicas da Universidade
Católica do Salvador e, mais recentemente, Defensoria Pública do Estado da Bahia e
pelas relações com as organizações nos bairros/comunidades, onde se implantam os
escritórios.
5.2. A experiência do Programa Pólos de Cidadania - MG 245
Criado em 1995 como projeto institucional da Faculdade de Direito da
Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, o Programa Pólos de Cidadania
desenvolve atividades de ensino, pesquisa e extensão de forma integrada, com o objetivo
de promover a inclusão e a emancipação de grupos sociais com histórico de exclusão e
trajetória de risco.
Interinstitucional e interdisciplinar, o PÓLOS atua em parceria com outras
unidades da UFMG, com instituições públicas e privadas de ensino superior e com
instituições da administração pública, envolvendo graduandos, pós-graduandos e
245 Mais informações sobre o Programa, consulte o sítio: http://www.ufmg.br/proex/publish/site/listarprojetos.php?cat=Direitos+Humanos
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
224
profissionais de Direito, Sociologia, Comunicação, Economia, Psicologia, Arquitetura,
Administração, Serviço Social, Urbanismo e Artes Cênicas, num conhecimento
integrado na defesa, promoção e efetividade dos direitos fundamentais e de cidadania.
A metodologia do PÓLOS é qualitativamente diferenciada e fundamenta-se no
relacionamento permanente entre investigações e atuação social, com entrecruzamento e
retro-alimentação de seus resultados. A característica marcante dessa metodologia é o
envolvimento ativo da própria comunidade em uma atuação interativa e emancipadora,
com o objetivo de redução dos índices de pobreza urbana e de riscos sociais. Dessa
forma, a pesquisa passa a ser um elemento de transformação e os integrantes das
comunidades sujeitos ativos e não meros destinatários de ações externas.
O Pólos conta com apoio institucional do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) e da Pró-Reitoria de Extensão da
UFMG. São parceiros de seus projetos: o Ministério de Desenvolvimento Social e
Combate à Fome, o Ministério da Educação, a Secretaria Especial de Direitos Humanos
da Presidência da República, o Governo do Estado de Minas Gerais, o Tribunal de
Justiça de Minas Gerais, a Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa – FUNDEP, a
Fundação Professor Vale Ferreira, a Fundação Guimarães Rosa, a Elo - Inclusão e
Cidadania, a Associação dos Magistrados do Trabalho de Minas Gerais (AMATRA), a
CEMIG, a COPASA e a OSCIP Sociedade, Ciência e Democracia (SCD).
Devido a sua complexidade, o Programa Pólos constitui-se por eixos temáticos
que podem ser renovados ou recriados por meio de diferentes projetos, de acordo com
algumas demandas de interesse público, formuladas diretamente pelas comunidades ou
por outras organizações parceiras. Os Eixos temáticos são: Minimização de Violências,
Defesa e Promoção dos Direitos das Minorias, Regularização Fundiária Sustentável,
Trabalho e Geração de Renda e o Eixo Comunicação, Arte e Cidadania.
Entre as inúmeras ações realizadas no âmbito dos projetos mencionados, destaca-
se a instalação de Núcleos de Mediação e Cidadania – NMC em áreas de favelamento na
cidade de Belo Horizonte – MG, com o objetivo de intermediar a resolução de conflitos
atribuindo à própria população e suas lideranças a responsabilidade da gerência de sua
vivência comunitária e autonomia no encaminhamento das demandas particulares e
coletivas. Os Núcleos de Mediação e Cidadania realizam um diagnóstico das
características da comunidade: suas lideranças, suas demandas e suas expectativas. Do
ponto de vista operacional, o serviço jurídico-social em questão pretende identificar
situações de violações de direitos fundamentais, compreender tais situações como
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
225
problemáticas jurídicas e promover a prevenção de lesões a direitos, buscando restaurá-
los. Os procedimentos metodológicos previstos são: atendimento, por meio de mediação,
constituição colegiada de “casos”, discussão e encaminhamentos e promoção
participativa de direitos.
5.3. A experiência do Programa Justiça Comunitária – DF246
O Projeto Justiça Comunitária foi criado em outubro de 2000, com o objetivo de
democratizar a realização da justiça, restituindo ao cidadão e à comunidade a capacidade
de gerir seus próprios conflitos com autonomia. A iniciativa foi levada a efeito pelo
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, em parceria com o Ministério
Público do Distrito Federal, a Defensoria Pública do Distrito Federal e a Faculdade de
Direito da Universidade de Brasília (UnB), sob o convênio firmado com a Secretaria de
Estado de Direitos Humanos da Presidência da República.
Atualmente, o Programa conta com parcerias celebradas com a Secretaria
Nacional de Segurança Pública – Senasp e a Secretaria de Reforma do Judiciário, ambas
do Ministério da Justiça, além do Programa Nacional das Nações Unidas para o
Desenvolvimento - PNUD. O Programa está instalado nas cidades-satélites de Ceilândia
e Taguatinga, com 332.455 e 223.452 habitantes, respectivamente247 e conta com 100
Agentes Comunitários que, na qualidade de membros das comunidades nas quais atuam,
compartilham a linguagem e o código de valores comunitários.
Os Agentes Comunitários são credenciados no Programa, por meio de um
processo de seleção levado a efeito por uma equipe interdisciplinar. Encerrada essa
etapa, os selecionados iniciam um treinamento junto à Escola de Justiça e Cidadania.
Esse processo de permanente capacitação inclui: a) noções básicas de Direito; b)
mediação comunitária; c) animação de redes sociais; d) direitos humanos; e) confecção
permanente do mapeamento social de sua região – diagnóstico local que contém não
somente as demandas e necessidades como as habilidades e talentos daquela
comunidade.
A atuação dos Agentes Comunitários é acompanhada por uma equipe
interdisciplinar, composta de advogados, psicólogos, assistentes sociais, servidores de
apoio administrativo, um artista e uma juíza que coordena o Programa. As atividades
246 Consulte o site http://www.tjdft.gov.br/tribunal/institucional/proj_justica_comunitaria/comunitaria.htm para obter mais informações sobre o Programa Justiça Comunitária. 247 Fonte: Seplan/Codeplan. Pesquisa distrital por amostra de domicílios, 2004.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
226
desenvolvidas pelos Agentes Comunitários são as seguintes: 1) informação e
encaminhamento sócio-jurídico; 2) mediação comunitária; e 3) animação de redes
sociais.
A primeira atividade tem por objetivo democratizar o acesso às informações dos
direitos dos cidadãos, decodificando a complexa linguagem legal. Para tanto, os Agentes
Comunitários produzem, em comunhão com os membros da equipe interdisciplinar,
materiais didáticos e artísticos voltados para a comunidade, tais como cartilhas, filmes,
peças teatrais, musicais, cordéis, dentre outros.
A mediação comunitária, por sua vez, é uma importante ferramenta para a
promoção do empoderamento e da emancipação social. Por meio dessa técnica, as partes
direta e indiretamente envolvidas no conflito têm a oportunidade de refletir sobre o
contexto de seus problemas, de compreender as diferentes perspectivas e, ainda, de
construir em comunhão uma solução que possa garantir, para o futuro, a pacificação
social.
A terceira atividade refere-se à transformação do conflito – por vezes,
aparentemente individual – em oportunidade de mobilização popular e criação de redes
solidárias entre pessoas que, apesar de partilharem problemas comuns, não se
organizam, até porque não se comunicam. Ao desenvolver essas atividades, o Programa
Justiça Comunitária tem por pretensão a transformação de comunidades fragmentadas
em espaços abertos para o desenvolvimento do diálogo, da autodeterminação, da
solidariedade e da paz.
Pela leitura dos textos acima, é possível constatar características que unificam
essas três experiências, a despeito da particularidade de cada Programa em termos de
arranjo institucional e de adoção de procedimentos no dia-a-dia.
Todos os Programas em tela desenvolvem, a partir de um diagnóstico das
características da comunidade, as atividades de mediação comunitária; de educação para
os direitos e de encaminhamento para a rede sócio-jurídica. Em todos esses modelos, há
um envolvimento interativo dos membros da própria comunidade nas atividades
desenvolvidas pelos Programas, sob a supervisão de uma equipe técnica. Um fator
comum que permeia as três experiências é o protagonismo conferido ao membro da
comunidade, neles considerado sujeito ativo e não mero destinatário das ações
desenvolvidas pelos Programas. Por fim, verifica-se que todos os Programas contam
com núcleos, centros ou escritórios instalados em bairros populares nos quais são
desenvolvidas as atividades de atendimento e de capacitação.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
227
O que parece visível é que todos esses Programas, ainda que conduzidos por
entes de naturezas tão diversas, buscam o mesmo objetivo de promover a inclusão e a
emancipação de indivíduos e grupos sociais, por meio da mediação comunitária, da
formação de redes solidárias, e do acesso à informação sobre os direitos. Esta busca que
permeia as experiências ilustradas confere especial significado ao conceito de cidadania
como algo a ser construído na realidade social. A propósito, segundo Nato, “a cidadania
não é algo simplesmente dado, mas o resultado de processos de construção nos quais o
diálogo social seria um veículo disponível para este fim. Este diálogo pode ter momentos
de consenso e de conflito, mas devemos entender o consenso, não como uma
unanimidade, senão como um processo de compromissos e convergências em contínua
troca entre convicções divergentes”.248
Dado o pioneirismo que envolve estas e outras experiências de mediação
comunitária, é natural que os Programas se encontrem em processo de construção. Neste
contexto de permanente elaboração, descobertas, tentativas e erros, seria prematuro
traçar qualquer desenho institucional para conferir unidade procedimental a estes
Programas. Aliás, conforme alerta Santos249, é valioso que essas iniciativas tenham
caráter experimental, tenham forma própria e que sejam autônomas. Qualquer tentativa
de submetê-las à lógica estatal implicará o engessamento de suas energias
emancipatórias. Isto não significa afirmar que o Sistema de Justiça não deva adotar o
impulsionamento e o apoio aos programas de mediação comunitária como uma política
pública, conforme se verá a seguir.
6. Desafios do Sistema de Justiça para a democratização do acesso à justiça
Um dos desafios impostos ao Sistema Judiciário na busca pela universalização
do acesso à justiça é o incremento dos meios autocompositivos de resolução de conflitos.
De acordo com a análise deste trabalho, além de contribuir para a pacificação,
mobilização e coesão sociais – traços essenciais de uma sociedade justa e democrática –
a mediação comunitária institui uma prática comunicativa capaz de desenvolver
autonomia individual e coletiva, sob a ética da alteridade. Para tanto, o Sistema
Judiciário comprometido com o pluralismo jurídico deve impulsionar transformações de
natureza normativa, cultural e institucional, voltadas para a valorização e o incentivo de
programas de mediação inseridos na realidade comunitária.
248 NATÓ, Alejandro Marcelo, QUEREJAZU, Maria Gabriela Rodríguez, CARBAJAL, Liliana Maria. Idem, p. 26. 249 Conforme palestra proferida pelo Prof. Boaventura de Sousa Santos, no Seminário “Democratização do acesso à justiça”, em 06/06/07, no Ministério da Justiça.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
228
Investigar a realização da justiça fora do âmbito estatal não implica a
desconstrução do modelo adjudicatório de prestação jurisdicional predominante nos
tribunais brasileiros. Todavia, requer uma avaliação constante sobre a efetividade dos
procedimentos adjudicatórios e autocompositivos, bem como sobre os resultados de sua
articulação.
Além do papel avaliativo, o Sistema de Justiça pode, ainda, servir de
impulsionador de uma política pública que deve ser resultar do debate entre todos os
entes envolvidos na realização da justiça, inclusive as comunidades contempladas com
programas de mediação comunitária. Conforme já alertado, não se trata de engessar as
diferentes experiências – as que estão em construção e as que podem vir a ser – em um
modelo institucional único. A finalidade da elaboração de uma política pública está em
potencializar a capacidade estatal de apoiar estas experiências sem colonizá-las.
Os desafios colocados ao Sistema de Justiça para a democratização do acesso à
justiça no que dizem respeito aos métodos autocompositivos de solução de conflitos
envolvem: a) a sensibilização dos membros do Sistema de Justiça para o reconhecimento
da pluralidade jurídica e da emergência de novos direitos e novos atores, a fim de
ampliar a concepção de realização do Direito, desassociando-a aos limites da atividade
jurisdicional; b) o desenvolvimento de mecanismos institucionais que estreitem o elo
entre as práticas auto-compositivas e o Sistema de Justiça, para que este possa expressar
o seu reconhecimento da mediação e de outros recursos como métodos legítimos de
resolução pacífica de conflitos; c) a capacitação de integrantes do Sistema de Justiça –
juízes, promotores, defensores, advogados, estudantes – e de cidadãos interessados nas
técnicas auto-compositivas de resolução de conflitos, sob enfoque multidisciplinar, de
maneira a transformar a cultura adversarial; d) a promoção de avaliações permanentes –
pautadas por indicadores previamente definidos – do impacto social gerado pelas
práticas da mediação – processual e comunitária; e) a formação de uma rede virtual de
debates e de seminários periódicos para a interlocução entre sobre as diversas
experiências, visando a colaboração recíproca; f) a articulação de um debate público
sobre a necessidade ou não de elaboração de proposta legislativa que confira unicidade
aos métodos autocompositivos de solução de conflitos250.
250 O Projeto de Lei 94/2002 se encontra, atualmente, na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados, após ter recebido, no Senado, substitutivo de autoria do Senador Pedro Simon. A proposta institucionaliza e disciplina a mediação, como método de prevenção e solução consensual de conflitos. A proposta prevê, dentre outras, a obrigatoriedade da mediação no processo de conhecimento, quando o elemento volitivo dos participantes é essencial para o êxito do processo de mediação. Além
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
229
BIBLIOGRAFIA
ADLER, Peter; LOVAAS, Karen; MILNER, Neal. The Ideologies of Mediation:
The Movement’s Own Story. Law and Policy, n. 10, p. 317-339, 1988.
AGUIAR, Roberto. Procurando superar o ontem: um direito para hoje e amanhã.
Notícia do Direito Brasileiro. Nova série, Brasília: Universidade de Brasília.
Faculdade de Direito, n. 9, 2002.
BUSH, Robert A. Baruch; FOLGER, Joseph P. The Promise of Mediation.
Responding to Conflict Through Empowerment and Recognition. San Francisco:
Jossey-Bass, 1994.
FOLEY, Gláucia Falsarella. Dissertação de Mestrado em Direito pela Faculdade
de Direito da Universidade de Brasília, sob a orientação do Prof. José Geraldo de
Sousa Junior e co-orientação do Prof. Cristiano Paixão Araújo Pinto, Brasília.
2003.
GALANTER, Marc. A justiça não se encontra apenas nas decisões dos tribunais.
In: HESPANHA, António (Org.). Justiça e Litigiosidade: história e perspectiva.
Lisboa: Calouste Gulbekian, 1993.
GARRETT, Robert D. Mediation in Native America. Dispute Resolution
Journal, p. 40, março, 1994.
disso, o PL prevê a remuneração obrigatória para os mediadores, o que implica impedir que alguns programas desenvolvam estas atividades com base na Lei de Voluntariado. Há, também, outras exigências no sentido de que os mediadores, nas mediações judiciais, sejam advogados e de que, quando o tema envolver Direito de Família, haja co-mediação conduzida por psicólogo ou assistente social ou psiquiatra. Ora, se já há previsão de que a mediação judicial seja conduzida, obrigatoriamente na presença dos advogados das partes, não é necessário que o mediador seja bacharel em Direito, até porque um bom mediador é aquele que domina as técnicas da mediação de conflito, independentemente de sua formação profissional. E, ainda, se a mediação é uma técnica para resgatar a comunicação entre as pessoas em conflito e não um processo terapêutico que demande profissionais da área de saúde, esta exigência também se mostra descabida. A excessiva proteção de mercado para algumas profissões que a proposta parece veicular retira da mediação comunitária todo o seu potencial emancipatório, no sentido de que membros da comunidade, independentemente do grau de escolaridade, possam atuar como mediadores de conflitos. Ao que parece, o tema da mediação ainda não foi suficientemente pensado, nem experimentado, a justificar a promulgação de uma norma que venha a engessar um instituto que, segundo tudo o que já foi exposto, tem potencial emancipatório.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
230
GOMMA, André Azevedo. Perspectivas metodológicas do processo de
mediação: apontamentos sobre a autocomposição no direito processual. In:
Estudos em Arbitragem, Mediação e Negociação. Brasília: Editora Grupos de
Pesquisa, 2003.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
HESPANHA, António (org). Justiça e litigiosidade: história e perspectiva.
Lisboa: Calouste Gulbekian, 1993.
LITTLEJOHN, Stephen W. Book reviews: The Promise of Mediation:
Responding to Conflict Through Empowerment and Recognition by Roberto A.
B. Bush and Josepf. P. Folger. International Journal of Conflict, p. 101-104,
janeiro, 1995.
MACFARLANE, Julie. An alternative to what? In: MACFARLANE, Julie (Ed.).
Rethinking Disputes: The Mediation Alternative. UK: Cavendish Publishing,
1997.
MENKEL-MEADOW, Carrie (Ed.) The Trouble with the Adversary Sistem in a
Postmodern, Multicultural World. In: Mediation. USA: Georgetown University
Law Center, 2001.
NATÓ, Alejandro Marcelo, QUEREJAZU, Maria Gabriela Rodríguez,
CARBAJAL, Liliana Maria. Mediación Comunitária. Conflictos en el escenario
social urbano. Buenos Aires: Editorial Universidad, 2006.
PEDROSO, João; TRINCÃO, Catarina; DIAS, João Paulo. Percursos da
informalização e da desjudicialização – por caminhos da reforma da
administração da justiça (análise comparada). Coimbra: Observatório permanente
da Justiça Portuguesa, Centro de Estudos Sociais, Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra, novembro de 2001.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
231
ROMÃO, José Eduardo Elias, Justiça procedimental. A prática da Mediação na
Teoria Discursiva do Direito de Jürgen Habermas. Brasília: Maggiore, 2005.
SCHWERIN, Edward. Mediation, Citizen Empowerment and Transformational
Politics. London: Westport Connecticut, 1995.
SHONHOLTZ, Raymond. Neighborhood Justice Systems: Work, Structure, and
Guiding Principles. Mediation Quarterly, p. 3-30, 1984.
________. Justice from another perspective: the ideology and developmental
history of the Community Boards Program. In: MERRY, Sally Engle; MILNER,
Neal (Ed.). The Possibility of Popular Justice: a case study of Community
Mediation in the United States. USA: University of Michigan Press, 1996.
SOUSA SANTOS, Boaventura de. A crítica da razão indolente. Contra o
desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000.
________. Toward a New Legal Common Sense. London: Second Edition,
Butterworths-LexisNexis, October, 2002.
________. Reinventar a Democracia. Cadernos Democráticos. Lisboa: Gradiva,
1998.
________ e TRINDADE, João Carlos (Orgs.). Conflito e transformação social:
uma paisagem das justiças em Moçambique. Porto: CES, 2003.
_________. Para uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo: Cortez,
2007.
________e MARQUES, Maria Manuel Leitão, PEDROSO, João, FERREIRA,
Pedro Lopes. Os Tribunais nas sociedades contemporâneas. O caso português.
Porto: Afrontamento, 1996.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
232
WARAT, Luis Alberto. Ecologia, Psicanálise e Mediação. In: WARAT, Luis
Alberto. Em nome do Acordo. A Mediação no Direito, 2A. ed., Argentina: Almed,
1999.
______________. O ofício do mediador. Florianópolis: Habitus, 2001.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
233
AFINAL, A MÍDIA TEM O PODER DE AMPLIAR
OU RESTRINGIR O ACESSO À JUSTIÇA?
José Eduardo Elias Romão
“No espaço de poucas semanas, o Supremo Tribunal Federal (STF) ganhou
manchetes ao tomar decisões polêmicas [...] Esse novo ativismo judiciário contrasta com
a história da corte”. Essa foi a opinião que os donos do jornal Folha de S. Paulo
veicularam no Editorial do dia 5 de novembro de 2007 intitulado “Ativismo judiciário”.
Além de revelar o entusiasmo do jornal com a decisão do STF que impunha limites às
greves de servidores públicos e ao troca-troca de partido político pelos parlamentares
eleitos (como é tratada a questão da “fidelidade partidária”), a opinião publicada
descortina algo mais, algo que não está escrito, algo que não salta aos olhos à leitura
ordinária e apressada que fazemos dos periódicos.
Quem se dispor a reler o dito Editorial depois dessa breve introdução não como
quem procura agulha em palheiro ou uma empresa sórdida dirigida à ocultação e à
manipulação, mas como quem compreende que não pode haver informação neutra
simplesmente porque não há neutralidade (ausência de interesse) na produção da
informação, provavelmente perceberá que a Folha “fala” dando voz a uma certa
compreensão da justiça e do papel do judiciário. E ao exprimir de forma velada e sem
maiores explicações uma idéia de justiça como se fosse naturalmente a única, acaba
certamente “fechando” ou no mínimo indispondo seus leitores para outros tantos
modos de se conceber e de se realizar justiça.
Antes, contudo, de continuar discutindo qual concepção de justiça é essa que um
dos maiores grupos de mídia do Brasil preconiza (aliás, em coro com os outros três
jornais de temática nacional, como veremos logo mais analisando a cobertura do
“julgamento do mensalão”), vale esclarecer que o problema da (falta de) explicitação
dos pressupostos necessariamente presentes em qualquer discurso não está circunscrito
ao jornalismo, não é monopólio da mídia, muito menos da denominada mídia impressa.
Porém, apenas o discurso científico considera a explicitação dos conceitos e das
visões de mundo, que estão por trás dos argumentos e das opiniões, um problema a ser
tratado e resolvido. Por isso é que sobre todo processo de investigação que se pretende
científico pesa a exigência da problematização dos pressupostos pela qual se desvelam
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
234
as referências teórico-metodológicas, os limites conceituais e principalmente a
parcialidade na escolha de um “fundamento” em detrimento de outros.
Assim, o primeiro objetivo deste texto é mostrar que também ao jornalismo, e
em particular à imprensa, se aplica a exigência de explicitar e promover a crítica de
seus pressupostos, ou seja, deve-se considerar a necessidade de sistematicamente
problematizar suas próprias escolhas. Pois se, de acordo com Pierre Bourdieu (1997, p.
67) “não há discurso nem ação que, para ter acesso ao debate público, não deva
submeter-se a essa prova de seleção jornalística, isto é, a essa formidável censura que os
jornalistas exercem, sem sequer saber disso, ao reter apenas o que é capaz de lhes
interessar [...]”, então, nada mais honesto do que submeter à discussão os pré-conceitos
que “justificam” e que fundamentam a tal seleção. Vale esclarecer que o Grupo de
Pesquisa "Observatório da Constituição e da Democracia" tem tentado reforçar a idéia
de que o grande problema não é a seletividade da mídia ou mesmo do judiciário, que
operam e sempre operarão excluindo argumentos relevantes (na prática, ainda que
almejem inclusão). O ponto é: em que medida os critérios que orientam uma ação
seletiva estão expressos, são observáveis, criticáveis?
É bom que se diga de antemão que consideramos um dever a problematização
dos critérios, dos pressupostos que fundamentam a seletividade da mídia, porque não se
pode deixar de reconhecer a imprensa como uma verdadeira instituição nacional,
indispensável à manutenção do Estado Democrático de Direito e à integração da
sociedade. E, se a mídia é a sexta “instituição nacional” de maior credibilidade, à frente
do Judiciário e do Congresso Nacional, como indicou uma pesquisa do Instituto Vox
Populi realizada em junho de 2006, é preciso criar condições para que seja avaliada e
cobrada como as demais instituições democráticas.
Por isso que o segundo objetivo deste ensaio é desenvolver e sustentar as
seguintes hipóteses:
1) se não se pode explicitar e explicar os pressupostos (conceituais e — por que
não? — financeiros) de que a mídia lança mão para produzir quaisquer
informações, então, acaba-se por incorrer no velho paradoxo antidemocrático:
“as regras que eu aplico, a mim não se aplicam”; noutras palavras, a mídia cria
condições para a crítica das instituições, mas não para ser criticada.
Até aqui pode parecer que a única conseqüência de uma mídia controlada por
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
235
grupos empresariais, que não se interessam pela publicização dos critérios de seleção da
produção e da reprodução da informação, seja uma instituição com "baixa densidade
democrática" ou pouco propensa à participação da sociedade e ao controle social. Agora
se considerarmos que essa mídia que não quer (ou não pode?) revelar e submeter à
discussão seus próprios interesses na produção da informação é a mesma que
freqüentemente se põe a revelar o “sentido oculto” dos direitos inscritos na Constituição
(como se existissem), é forçoso reconhecer que as conseqüências são desastrosas para o
desenvolvimento da democracia no país, pelo menos em hipótese é o que se deve
verificar:
2) se não se pode explicitar e explicar os pressupostos (conceituais e — por que
não? — financeiros) de que a mídia lança mão quando publica suas opiniões
sobre os direitos constitucionais fazendo com que suas interpretações pareçam
manifestações de uma opinião pública produzida necessariamente nos termos de
um processo público de discussão, caracterizado pela contradição de argumentos
consistentes, então, acaba-se por promover o fechamento da Constituição às
outras interpretações igualmente válidas, restringindo o acesso e inviabilizando a
inclusão dos diferentes cidadãos ao sistema de direitos.
É claro que este texto não tem qualquer pretensão de cobrar dos meios de
comunicação uma (auto)crítica dirigida aos seus próprios pressupostos. Isto está fora de
questão.
Contudo, como estamos tentando compor uma espécie de plano de trabalho para
subsidiar a criação de um Observatório da Justiça brasileira, a exemplo do Observatório
Permanente da Justiça Portuguesa sediado no Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra (CES/UC), parece oportuno considerar a observação crítica
(tematização e problematização) da mídia como uma atividade permanente não apenas
dos ombdsmans e ouvidores dos veículos de comunicação.
Ainda que possamos identificar iniciativas exitosas produzidas no seio da
sociedade civil como o "Observatório da Imprensa" e mesmo que consideremos a
existência de um público de leitores (e também de uma audiência de telespectadores)
capaz de avaliar a qualidade da informação fornecida, parece crucial dispor de um órgão
público, embora não necessariamente estatal, organizado para observar o modo como a
mídia observa, sobretudo, como observa a aplicação da justiça. Porque esse "tipo" de
observação reducionista que a mídia realiza sobre o trabalho complexo de interpretação
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
236
e aplicação do Direito quando vira notícia, vira verdade e, portanto, vira mentira já que
não pode haver uma única interpretação correta ou verdadeira do Direito que resulte
absolutamente em Justiça.
Vamos ver se um exemplo facilita a compreensão do que estamos propondo aqui.
A lição do “mensalão”
Sem descartar outros tantos disponíveis, talvez o exemplo mais expressivo — e
também mais fácil de ser observado e verificado — do quanto essa drástica redução que
a mídia opera sobre o Direito, principalmente sobre a interpretação dos direitos
constitucionais, acaba por resultar no fechamento da Constituição à diferença e à
pluralidade nos tenha sido dado pela interpretação do direito ao acesso à justiça que a
mídia propalou ao longo de todo o episódio denominado “julgamento do mensalão”.
Embora tratado como o “julgamento do século” por parte da imprensa ou como o
“julgamento mais importante da história” do Supremo Tribunal Federal, é preciso
esclarecer que no denominado “julgamento do mensalão” ocorrido no final do mês de
agosto de 2007 não estava em pauta a condenação das pessoas envolvidas no esquema
de compra de votos de parlamentares em troca de apoio político ao Governo. Decidiu-se
apenas pelo recebimento da denúncia apresentada pelo Ministério Público.
De qualquer forma justifica-se a ênfase e a repercussão atribuída àqueles cinco
dias de sessão do STF pelo fato incomum de que um “escândalo político” contrário aos
interesses do Governo recebeu tratamento jurídico, isto é, neste episódio a mais alta
corte do país não pôde se eximir de avaliar as conseqüências jurídicas de fatos
costumeiramente considerados meras questões da disputa política.
O simples fato do STF ter se comportado como um Poder independente do
Executivo já seria suficiente para considerar o julgamento do mensalão um marco na
história da República no Brasil. Mas o episódio também entrou para a história por
mostrar como a mídia se comporta hoje como um Poder acima dos demais; não mais um
4° ou um 5° Poder, mas o 1°, aquele ao qual o Executivo, o Legislativo e o Judiciário
devem se referir, devem explicações.
Essa revelação foi a grande novidade do julgamento, muito embora não tenha
sido noticiada e muito menos problematizada em nenhum dos jornais responsáveis pela
extensa cobertura. Tomamos conhecimento do modo como a mídia pautou e conduziu
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
237
a partir de suas próprias pretensões de justiça a atuação das instituições envolvidas,
sobretudo do STF, apenas depois que a presidência do Supremo veio a público para
confirmar (as avessas) aquilo que todos suspeitavam, com a seguinte nota:
NOTA OFICIAL
O Supremo Tribunal Federal – que não permite nem tolera que pressões externas
interfiram em suas decisões – vem reafirmar o que testemunham sua longa história e a
opinião pública nacional, que são a dignidade da Corte, a honorabilidade de seus
Ministros e a absoluta independência e transparência dos seus julgamentos. Os fatos,
sobretudo os mais recentes, falam por si e dispensam maiores explicações.
Brasília, 30 de agosto de 2007.
Presidente do Supremo Tribunal Federal
Ministra Ellen Gracie
Nem mesmo a crítica especializada e os especialistas de plantão (juristas e
cientistas políticos da Corte) tematizaram o comportamento da imprensa. Joaquim
Falcão, membro do Conselho Nacional de Justiça, bem que tentou, mas sucumbiu ao
temor de debater os deveres decorrentes da liberdade de expressão e terminou por
sugerir um acordo tão elitista quanto excludente: a mídia deve garantir aos ministros
pelo menos uma salinha lá no STF onde eles possam se reunir e trocar opiniões sem ter
que prestar contas a ninguém.
A ausência de comentários ou de avaliações sobre a atuação dirigente da
imprensa no episódio do mensalão provavelmente se explique por vários motivos; um
em especial: a novidade da conduta, pois, estávamos acostumados a criticar a imprensa
apenas quando ela se comportava como se fosse o 3° Poder, usurpando o lugar do
Judiciário para atribuir responsabilidades e realizar condenações sem julgamento, sem
contraditório.
A lição que o mensalão oferece ao país não tem nada a ver (ainda) com a punição
dos 40 acusados — convém reiterar que em agosto eles não foram julgados —, tem a ver
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
238
sim com a necessidade de que toda e qualquer expressão de poder social, que emana do
povo ou dos editores de um jornal, esteja sujeita aos procedimentos democráticos de
formação da opinião e da vontade, previstos na Constituição Federal, antes de
produzirem decisões e condicionarem a atuação das instituições republicanas.
Porque o problema não é o STF julgar com a “faca no pescoço”, como esclareceu
o Ministro Lewandowski. O problema é julgar apenas sob a pressão que a “faca” da
mídia exerce, sem que possamos criticá-la e sem que outros cidadãos tenham o direito de
empunhar suas pretensões de justiça contra a atuação do judiciário.
Se assim o for, isto é, se aceitarmos sem discussão que a opinião publicada pelos
donos dos meios de comunicação sobre como se deve realizar justiça no Brasil
representa a compreensão de todos nós sobre o tema, então teremos de admitir que a
solução de todo e qualquer conflito depende de uma sentença tão incompreensível
quanto ineficaz resultante da intervenção morosa de um juiz provocada pela solicitação
onerosa de um advogado. Pois é esta a compreensão de justiça que preconiza a grande
mídia, uma compreensão que confunde “acesso à justiça” com “acesso ao judiciário”.
Esclarecimentos sobre as nossas próprias opções metodológicas
Nesta altura do texto pode ser que alguém esteja incomodado com o destaque
dado à mídia impressa. Pois, questionarão alguns, como dar tanta importância para a
imprensa quando sua abrangência não chega a 2% da população? Mas, há também quem
possa se incomodar com o fato desta argumentação ter tomado a imprensa, que é apenas
uma parte da mídia, como a representação do todo, ou melhor, como a representação do
paradoxo antidemocrático sobre o qual operam os meios de comunicação de massa.
A pergunta que certamente estamos nos fazendo é: por que não a televisão?
Hoje em dia qualquer trabalho ou estudo com pretensões científicas destinado a
abordar quaisquer aspectos da comunicação social deve necessariamente dedicar, pelo
menos, um capítulo inteiro à televisão. Para justificar um de seus muitos trabalhos sobre
o tema “criança e mídia”, Inês SAMPAIO (2004 , p. 17) esclarece que: “A opção recaiu
sobre a televisão, pela sua relevância e centralidade indiscutíveis para a compreensão do
processo de tematização pública da realidade na sociedade brasileira e pela riqueza de
seus recursos técnicos em relação às outras mídias [...].”
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
239
Evidentemente, não é outro o nosso entendimento, sobretudo quando se tem em
vista a constituição de um projeto institucional de observação da relação “mídia e
justiça”. Não há dúvidas de que a televisão deve ser o objeto principal de observação da
mídia no âmbito do “Observatório da Justiça Brasileira”.
Entretanto, tomamos a mídia impressa como “objeto” privilegiado de observação
tão somente porque consideramos o texto escrito um produto bem mais fácil de ser
analisado para o fim a que se destina este ensaio: delimitar um problema e alinhavar
hipóteses sobre a temática “mídia, justiça e democracia”. Estamos nos valendo da
conhecida distinção que o próprio campo do jornalismo costuma fazer entre notícia na
tevê e notícia no jornal. Esta diferentemente daquela não pode se contentar apenas com o
espetáculo da notícia (com a urgência e o impacto da imagem, do conteúdo audiovisual),
a notícia publicada no jornal traz, quase sempre, a marca do tempo, da reflexão e da
compreensão sobre os fatos; por isso, sustentamos que é mais fácil identificar opiniões e
entendimentos na análise do texto escrito.
De qualquer forma, não se pode desconsiderar o “peso relativo que os ‘jornais de
temática nacional’ (O Globo, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil)
têm na formação da opinião pública brasileira”. Pois como nos explica Venício A. de
LIMA (2006, p. 165-173) a relevância diferenciada desses jornais tem sido sustentada
(em relação a definição de uma agenda política nacional e, por conseqüência, da
formação da opinião pública) em torno de três argumento principais:
(I) primeiro, porque eles mantém as agências de notícias que disponibilizam seu
noticiário on-line, via Internet;
(II) segundo, porque eles são lidos e reproduzidos pelas emissoras de rádio e
pelas assessoria de imprensa ao redor do país;
(III)terceiro, porque cabe à televisão a popularização da agenda política por eles
definida diariamente”.
O autor conclui afirmando: “sua [a desses jornais de temática nacional] maior
influência fosse ‘indireta’, na medida em que, embora com circulação insignificante
diante da magnitude de nossa população, alcançariam pelo menos parte dos formadores
de opinião (não-jornalistas) [...]”. Algo parecido poderia ser dito a respeito de alguns
programas de televisão veiculados na Rede Pública, como o Roda Viva da TV Cultura
por exemplo. Apesar de possuir índices de audiência considerados modestos, o programa
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
240
é visto pela quase totalidade dos formadores de opinião e tomadores de decisão do país.
Com essas breves considerações sobre as nossas próprias opções metodológicas
de jeito nenhum estamos dando por encerrada a discussão sobre a metodologia a ser
utilizada no processo de observação da observação que mídia realiza. Pelo contrário,
pretendemos aqui lançar questões para que ela se inicie e, rapidamente, possa resultar na
definição de um marco teórico-metodológico passível de institucionalização.
Considerações transitórias
O final de um texto deve ser sempre considerado como o início da discussão
sobre as questões e os argumentos que ele apresenta. Neste caso, em especial; pois, se
queremos contribuir com o estabelecimento de um “espaço público” institucional que
concorra discursivamente para a efetivação do acesso à justiça no Brasil, devemos neste
momento oferecer considerações capazes de estruturar o debate e indicar o caminho da
transição entre “o que não há” e “o que deve haver”.
É por isso que as hipóteses acima descritas não têm agora condições de
responder à indagação basilar que nos persegue: afinal, a mídia tem o poder de
ampliar ou restringir o acesso à justiça? Muito embora considerando a premissa
fundamental de que o acesso à justiça se define não como o acesso a algo que já existe e
não muda em conseqüência do acesso, mas como o reconhecimento das diferentes
pretensões de justiça sustentadas pelos atores sociais, e, dessa forma, não pode ser
reduzida a uma prestação judicial parece correto afirmar, desde já, que a mídia tem o
poder sim de ampliar e restringir o acesso a um determinado tipo de justiça ou a uma
determinada concepção de justiça com o qual se identifica e, de alguma forma,
representa.
Mesmo não dispondo de conclusões seguras sobre cada uma das questões
suscitadas, não é preciso ser o Niklas LUHMANN (2005, p. 15) para saber que: “Aquilo
que sabemos sobre a nossa sociedade, ou mesmo sobre o mundo no qual vivemos, o
sabemos pelos meios de comunicação”.
Do mesmo modo, não é necessário ser o Jürgen HABERMAS (2006) para
compreender que a mídia é condição sine qua nom para a existência de uma democracia
nas sociedades contemporâneas, isto é, sem meios de comunicação não há democracia,
porque não haveria como circular as opiniões de uma esfera pública caótica e
hipercomplexa. Portanto, reescrevendo o paradoxo descrito acima, podemos afirmar de
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
241
antemão que a mídia é o “ponto cego” da democracia: ela opera distinguindo o que é e o
que não é notícia, mas não consegue observar a distinção que lhe sustenta, isto é, não é
capaz de problematizar sua própria “censura” natural e (é fundamental que se diga),
inevitável.
Sendo assim, se não se pode exigir e sequer esperar dos meios de comunicação
uma (auto)crítica dirigida aos seus próprios pressupostos, é oportuno considerar que
outras instituições entre as quais poderia estar incluído um Observatório da Justiça
Brasileira. Sem com isso menosprezar ou substituir a capacidade do cidadão de produzir
suas próprias interpretações a partir daquilo que lê, reafirmando o “equívoco” de
ADORNO e HORKEIMER na avaliação da denominada industria cultural.
Por fim, sintetizando esse esforço de investigação exploratório sobre a relação
“mídia, justiça e democracia”, podemos concluir preliminarmente que:
a) os meios de comunicação (a mídia) produzem a realidade, e não apenas a
reproduzem;
b) os meios de comunicação são essenciais para a existência da democracia,
porque não há como circular as opiniões de uma esfera pública caótica e hipercomplexa;
c) os meios de comunicação favorecem (selecionam) a circulação das opiniões e
entendimentos que representam os seus próprios interesses;
d) o problema não está na seleção em si, mas na ausência de discussão sobre os
pressupostos, os critérios e os interesses que fundamentam a atuação da mídia;
sobretudo, quando esta seleção diz respeito às interpretações dos direitos constitucionais.
e) quando a mídia seleciona e circula uma determinada interpretação sobre os
direitos inscritos na Constituição que é polissêmica e, por conseguinte, aberta à
diferentes interpretações , sem contudo explicitar os critérios de sua seleção, acaba por
produzir um fechamento da Constituição às diferentes interpretações sobre o Direito em
prejuízo da participação dos cidadãos, em detrimento da democracia;
f) o cidadão é sujeito ativo no processo de comunicação e, portanto, é capaz de
compreender a seleção operada pela mídia e a partir dela selecionar os entendimentos (as
notícias) que lhe interessa conhecer.
g) apenas uma instituição voltada à observação e à problematização sistemática
dos critérios pelos quais a mídia seleciona e cristaliza interpretações sobre o direito pode
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
242
restaurar o caráter polissêmico do Direito e, assim, reconhecer a legitimidade das
diferentes pretensões “por justiça” no processo de realização do Direito com
Democracia. Neste sentido é que deve ser entendida a seguinte assertiva de Boaventura
de Sousa SANTOS (2007, p. 85) “a administração da justiça será tanto mais legitimada
pelos cidadãos quanto mais conhecida e reconhecida for por eles”.
Isto posto, podemos asseverar que a criação de um Observatório da Justiça
Brasileira, que leve a sério a relação entre “mídia, justiça e democracia”, deve estar
calcada na:
1. Investigação das formas pelas quais populações historicamente alijadas do
acesso ao judiciário resolvem seus conflitos, identificando como suas demandas
por justiça (pretensões de validade normativa mapeadas) são tratadas/tematizadas
pelos meios de comunicação;
2. Investigação do tratamento dispensado pelos meios de comunicação aos
denominados métodos alternativos de resolução de conflitos;
3. Identificação das representações sociais que os meios de comunicação
difundem sobre o Judiciário e, por conseguinte, avaliação do impacto que essa
difusão produz no próprio judiciário (recorrendo ao conceito de agendamento ou
agenda-setting);
4. Sistematização e análise das decisões judiciais que tenham
tratado/problematizado, ao menos indiretamente, dos critérios que fundamentam
a atividade seletiva dos meios de comunicação;
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
243
Referências bibliográficas
ADORNO, Theodor W.; HORKEIMER, Max. Dialética do esclarecimento:
fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1985.
BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Trad. Maria Lúcia Machado. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1997.
FALCÃO, Joaquim. Privacidade do STF ou liberdade de imprensa. Folha de S.
Paulo, 28 de agosto de 2007, A3.
HABERMAS, Jürgen. Political communication in media society: does democracy
still enjoy an epistemic dimension? The impact of normative theory on empirical
research. Communication Theory 16 (2006) 411-426 International
Communication Association
MAINGUENEAU, Dominique. Termos-chave da análise do discurso. Trad. Márcio
Venício Barbosa e Maria Emília Amarante Torres Lima. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 1998.
LIMA, Venício A. de. Mídia: crise política e poder no Brasil. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2006.
LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. Trad. Ciro Marcondes
Filho. São Paulo: Paulus, 2005.
SAMPAIO, Inês Sílvia Vitorino. Televisão, Publicidade e Infância. São Paulo:
AnnaBlume, 2004.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. São
Paulo: Cortez, 2007 (Coleção questões de nossa época; v. 134).
______. Folha de S. Paulo, 17 de setembro de 2007, “A Justiça em debate”.
SILVA, Patrícia Soares da. A criança e a apropriação das mensagens de violência
nos desenhos animados. In: Mídia de chocolate: estudos sobre relação infância,
adolescência e comunicação. SAMPAIO, Inês Sílvia Vitorino; CAVALCANTE,
Andréa Pinheiro Paiva; ALCÂNTARA, Alessandra Carlos. Rio de Janeiro: E-
papers, 2006. p. 97-110.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
244
GRUPO 5
Coordenadores: Profª. Margarida Maria Lacombe Camargo
SUMÁRIO
1. APRESENTAÇÃO DO RELATÓRIO
............................................................
24
6
2. HISTÓRICO...............................................................................................
.........
25
0
2.1. O caso da
verticalização......................................................................................
25
0
2.1.1. Caso de 2002
........................................................................................................
25
0
2.1.2. Caso de 2006
........................................................................................................
25
4
2.2. O caso da cláusula de barreira
...........................................................................
25
7
2.3. O caso da fidelidade partidária
.......................................................................... 17
2.4. Quadro das decisões do STF sobre a questão partidária (2002 -
2007)..........
26
3
3. ANÁLISE DO CASO DIFÍCIL DA FIDELIDADE PARTIDÁRIA
3.1. A judicialização da política e o ativismo judicial
.............................................
26
5
3.2. Neoconstitucionalismo, minimalismo e
democracia.........................................
26
9
3.3. Interpretação e decisão do caso difícil da fidelidade partidária
.....................
27
8
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
245
3.3.1. Formalismo
..........................................................................................................
27
8
3.3.2. O problema da mudança na interpretação da Constituição
...........................
28
4
3.3.3. Análise dos elementos da decisão
....................................................................... 42
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
.............................................................................
28
9
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
.............................................................. 49
ANEXOS
A. Mapeamento da Emenda Constitucional 45 (de Marcus Firmino Santiago) ... 51
B. Relatório sobre a proposta de estruturação do Observatório da Justiça
Brasileira apresentado pelo Grupo 5 – UFRJ ............................................ 69
C. Organograma sobre a estruturação do OJB (Grupo 5)................................. 74
D. Visualização articulada dos elementos da política pública proposta (de
Fábio Sá e Silva ) ................................................................................................. 76
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
246
1. APRESENTAÇÃO DO RELATÓRIO
A temática do acesso à justiça comporta uma pluralidade de abordagens,
elaboradas por diferentes disciplinas, cada qual com as suas particularidades
metodológicas. No Brasil, o tema do acesso à justiça constitui, desde a década de
sessenta, um dos principais objetos de investigação pelos sociólogos do direito,
acompanhados, nas décadas seguintes, pelos processualistas. Recentemente, com o
advento da Constituição de 1988, passou também a ser estudado pelos
constitucionalistas preocupados com a questão da efetividade das normas
constitucionais, especialmente dos direitos difusos, coletivos e sociais. Para além do
campo teórico do Direito, este tema também é estudado por cientistas sociais com
diferentes orientações metodológicas.
O direito fundamental de acesso à justiça possui, diante da complexidade de seu
objeto e de suas múltiplas abordagens, diferentes significados. Os distintos enfoques que
são construídos ora tendem a destacar uma dimensão mais sociológica da questão, ora
ressaltam um viés mais procedimental do problema. Cabe mencionar algumas definições
que contribuirão para a delimitação e problematização do presente tema. Neste sentido,
segundo Mauro Cappelletti e Bryant Garth, o enfoque do acesso à justiça determina dois
objetivos básicos para o sistema jurídico: em primeiro lugar, o sistema deve ser
igualmente acessível a todos, tanto de um ponto de vista formal quanto substancial.
Assim, o acesso formal, ou seja, a igual possibilidade jurídica de todos demandarem seus
respectivos direitos em um sistema jurídico, e o acesso efetivo, real ou concreto à justiça
são considerados indissociáveis. Em segundo lugar, o sistema jurídico deve produzir
resultados que sejam, ao mesmo tempo, individual e socialmente justos251.
Para Canotilho, o direito fundamental de acesso à justiça pelo cidadão, que
constitui uma dimensão essencial do Estado de Direito, desdobra-se em acesso ao direito
e acesso aos tribunais. O primeiro refere-se ao “direito de acesso ao direito, o direito de
conhecer e reclamar os seus direitos”252 que, por sua vez, não pressupõe somente os
modos tradicionais de litigância formal ante os tribunais. O acesso aos tribunais implica,
para além da dimensão anterior, diferentes modalidades de organização e de
procedimento que aproximem a via judiciária do cidadão, especialmente daqueles
excluídos ou menos favorecidos na luta pela garantia de seus direitos “em igualdade de
251 CAPPELLETTI, Mauro. GARTH, Bryant. Acesso à justiça, p. 08. 252 CANOTILHO, J. J. Gomes. Estado de Direito, p. 70.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
247
chances”. Esta última dimensão do acesso à justiça se aproxima do ideal de uma “justiça
democrática de proximidade”253, isto é, de uma justiça próxima fisicamente de todos os
cidadãos capaz de romper com os obstáculos financeiros, de tempo, geográficos e
processuais que separam aqueles que possuem daqueles que não têm um acesso efetivo à
justiça.
As definições mencionadas acima, dentre outras, tendem a ressaltar duas
dimensões fundamentais, porém não suficientes, da questão do acesso à justiça.
Primeiramente, o tema do acesso à justiça refere-se à expansão, formal e institucional, da
representação judicial efetiva, ou seja, investiga a promoção de modelos alternativos –
estatais ou não – de solução de conflitos, a difusão de práticas de assistência e assessoria
jurídicas populares, a capacitação de líderes comunitários para a identificação de
demandas jurídicas reprimidas, a expansão dos juizados especiais estaduais e federais, a
inovação da justiça itinerante, dentre outras experiências. Ao lado da anterior, há uma
dimensão procedimental ou instrumental do acesso à justiça voltada a garantir,
principalmente, uma prestação jurisdicional mais ágil, menos custosa e burocrática, em
síntese, uma prestação mais eficiente e efetiva. Dentre outras questões, almeja-se
encontrar um ponto ótimo entre dois valores nem sempre convergentes, que são o da
rapidez da justiça e o de uma justiça justa. Ainda nesta dimensão do acesso à justiça,
podemos citar as reformas processuais no sentido de uma crescente informatização da
justiça254, a introdução e ampliação da representação de interesses coletivos e difusos
com a participação da sociedade civil, a constitucionalização da justiça itinerante255 e
medidas processuais para a celeridade e descongestionamento de processos idênticos nos
tribunais superiores, tais como a súmula vinculante, o efeito vinculante e a cláusula de
repercussão geral.256
O mapeamento das reformas legislativas decorrentes do advento da Emenda
Constitucional nº 45/04257 estuda o acesso à justiça a partir das duas dimensões
supramencionadas, definindo-o como “a possibilidade irrestrita de invocar a atuação
jurisdicional e a presença de todos os mecanismos necessários à sua manifestação”.258
253 SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma revolução democrática da justiça, p. 57. 254 Cf. Lei nº 11.419, de 19/12/2006, que dispõe sobre a informatização dos procedimentos judiciais. 255 Cf. os artigos 107, § 2º; 125, § 7º da CF acrescentados pela EC nº 45/04. 256 Cf. Lei nº 11.418, de 19/12/2006. 257 Cf. o anexo A do presente relatório. 258 WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo. Participação e Processo, p. 134 APUD SANTIAGO, Marcus Firmino, MAPEAMENTO DAS REFORMAS LEGISLATIVAS DECORRENTES DO ADVENTO DA EC Nº 45/04.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
248
Estas duas dimensões são indispensáveis para a correta análise da temática em tela. No
entanto, apesar de indispensáveis, não são suficientes, pois ambas não estão aptas a
conferir o merecido relevo teórico ao atual protagonismo institucional exercido pelos
tribunais superiores no sistema político brasileiro, especialmente o Supremo Tribunal
Federal, com a intensificação do processo de judicialização da política, assim como a
autocompreensão construída pelo tribunal para legitimar a sua própria atuação em casos
controversos (hard cases) e, finalmente, a repercussão de suas decisões sobre o tema da
democratização do acesso à justiça, objeto central de estudo do Projeto Dossiê Justiça.
O tema do acesso à justiça é tradicionalmente abordado a partir de uma
perspectiva externa ao sistema judiciário e, particularmente, também exterior ao
Supremo Tribunal Federal e ao seu papel institucional desempenhado no sistema político
brasileiro. No entanto, é difícil imaginar hoje em dia alguma questão política,
econômica, cultural ou ambiental que não possa ser debatida em termos jurídico-
constitucionais e que, mais cedo ou mais tarde, não venha a ser objeto de um
pronunciamento do STF. Neste relatório, enfatizaremos importantes decisões do STF em
casos difíceis envolvendo a discussão e redefinição das regras do jogo democrático.
Serão estudados comparativamente os casos sobre a verticalização das coligações
partidárias259, a cláusula de barreira260 e o recente caso sobre a fidelidade partidária261. A
partir da elaboração de um histórico e de um quadro comparativo entre os casos
mencionados, procurar-se-á construir um panorama do protagonismo desempenhado
pelo STF em um contexto de intensificação do processo de judicialização da política,
concebida, em breve síntese, como um processo de expansão decisória do Poder
Judiciário em direção a áreas de competência tradicionalmente exercidas pelo Poder
Executivo e pelo Poder Legislativo.262 A partir de uma análise do discurso dos ministros
sobre a autocompreensão de sua atuação na garantia dos direitos fundamentais em
relação às decisões do legislador ordinário, pretende-se também investigar em que
medida o sistema político brasileiro caminha para uma “juristocracia” (juristocracy263)
ou, segundo Oscar Vilhena Vieira, para uma “supremocracia”264.
259 ADI nº 2626-7 e ADI nº 3685-8. 260 ADI nº 1351-3 e ADI nº 1354-8. 261 MS nº 26602, MS nº 26603 e MS nº 26604 (STF) e Resolução nº 22526 (TSE). 262 Cf. EISENBERG, José. Pragmatismo, direito reflexivo e judicialização da política. In: VIANNA, Luiz Werneck (Org.). A democracia e os três poderes no Brasil, p. 45 et seq. 263 Cf. HIRSCHL, Ran. Towards juristocracy: the origins and consequences of the new constitutionalism. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2004. 264 Cf. VIEIRA, Oscar V. Supremocracia: vícios e virtudes republicanas. Jornal O Valor. 06/11/2007.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
249
Neste sentido, o Grupo 5 propõe, de modo complementar, uma terceira dimensão
do acesso à justiça, que será destacada em nossa análise no decorrer do presente
relatório. Esta pressupõe uma perspectiva interna ao sistema judiciário, particularmente
em relação ao Supremo Tribunal Federal, que se propõe a analisar, dentre outras
importantes questões, (a) a relação entre o direito e a política a partir do estudo de
decisões do STF em casos difíceis, (b) o papel institucional desempenhado atualmente
pelo tribunal tendo em vista o seu maior “ativismo” em recentes decisões sobre a
definição e reformulação das regras partidárias e eleitorais e (c) a autocompreensão dos
ministros do STF como “representantes argumentativos265” do cidadão e sua repercussão
sobre a atuação político-institucional dos demais poderes, bem como sobre a
tematização, mobilização e participação da sociedade civil em debates sobre questões
políticas e morais profundamente controversas. Esta terceira dimensão do acesso à
justiça traduz-se nas seguintes indagações: como os ministros concebem o papel
institucional do STF na definição de questões políticas e morais profundamente
controversas na sociedade brasileira? Em que medida a compreensão, atuação e as
decisões do STF orientam ou estimulam a participação da sociedade civil nestas
questões? O STF encontra-se aberto à participação argumentativa da sociedade civil
nestes casos difíceis? Qual a relação do STF com os demais órgãos do Poder Judiciário,
por um lado, e com o Poder Legislativo e o Poder Executivo, por outro? Por sua vez,
estes objetivos estão intimamente ligados à institucionalização de um Observatório da
Justiça Brasileira, instância crítica de reflexão acadêmica sobre o Poder Judiciário e a
solução de conflitos.
O relatório final elaborado pelo Grupo 5 da Universidade Federal do Rio de
Janeiro apresentará, em primeiro lugar, um histórico sobre os casos da verticalização
partidária, cláusula de barreira e fidelidade partidária. Em segundo lugar, apresentará um
quadro comparativo entre os casos mencionados. Em seguida, será analisado o caso
difícil da fidelidade partidária segundo a metodologia anteriormente descrita em nosso
documento-base, destacando os seguintes pontos: (a) a judicialização da política e o
ativismo judicial, (b) a tensão entre o neoconstitucionalismo e a democracia e (c) a
interpretação e decisão do caso. Por último, encontram-se anexados três documentos ao
relatório, que constituem três produtos elaborados pelo Grupo 5 para o Projeto Dossiê
265 ALEXY, Robert. Direitos fundamentais no Estado constitucional democrático: para a relação entre direitos do homem, direitos fundamentais, democracia e jurisdição constitucional. Revista de Direito Administrativo, 217, 1999, p. 66.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
250
Justiça: o mapeamento das reformas legislativas decorrentes do advento da Emenda
Constitucional nº 45/04266, o relatório com a proposta de estruturação do Observatório da
Justiça Brasileira (OJB)267 e o organograma com a proposta de estruturação do OJB268.
No âmbito das atividades desenvolvidas pelo Grupo 5, cabe ressaltar, ainda, a
elaboração de um blog269, intitulado “Supremo em Debate”, para discussão sobre a
atuação do Supremo Tribunal Federal em hard cases e sobre temas de direito
constitucional comparado.
2. HISTÓRICO
2.1. O caso da verticalização
2.1.1. Caso 2002 (ADI 2626-7)
A ADI em questão teve como requerentes o Partido Comunista do Brasil (PC do
B), o Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido Liberal (PL) e o Partido Socialista
Brasileiro (PSB) que objetivavam a declaração de inconstitucionalidade do §1°, do
artigo 4°, da Instrução n° 55, aprovada pela resolução n° 20.993 de 26 de fevereiro de
2002, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O dispositivo impugnado foi resultado de
uma resposta a uma consulta de n° 715, formulada por parlamentares no objetivo de
esclarecer a disciplina das coligações previstas no artigo 6° da Lei nº 9.504/97.
Na referida consulta ao TSE os parlamentares indagaram sobre a possibilidade de
celebração de coligação com alguns partidos para a eleição de Presidente da República e
com outros terceiros partidos (que também possuíam candidatos à Presidência), visando
a eleição de Governador de Estado. À base da interpretação da lei, objeto da consulta,
houve detida ponderação de dois princípios do estatuto constitucional dos partidos
políticos: de um lado, o “caráter nacional”, e do outro, o da “autonomia dos partidos
políticos”, ambos assegurados no artigo 17° da CF/88. Ao primeiro desses princípios,
deram prevalência os votos vencedores (5 a 2), sendo que a resposta do TSE à consulta
foi negativa, restando vencidos os votos dos Ministros Sepúlveda Pertence e Sávio de
Figueiredo.
266 Anexo A (Mapeamento da Emenda Constitucional 45) deste relatório, p. 51. 267 Anexo B (Relatório sobre a proposta de estruturação do Observatório da Justiça Brasileira apresentado pelo Grupo 5 – UFRJ) deste relatório, p. 69. 268 Anexo C (Organograma sobre a estruturação do OJB) deste relatório, p. Erro! Indicador não definido.. 269 Cf. <www.supremoemdebate.blogspot.com>.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
251
O Advogado Geral da União, Dr. Walter do Carmo Barletta, no exercício de sua
atribuição conferida pelo artigo 103, §3° da CF/88, apresentou defesa do ato impugnado,
sustentando que a ação não preenchia os pressupostos necessários para o seu
conhecimento, visto que tratava de matéria que afeta apenas o campo da legalidade.
O STF por maioria de votos não conheceu do pedido formulado pelos
requerentes, na inicial da ação, vencidos os Ministros Sydney Sanches (relator), Ilmar
Galvão, Sepúlveda Pertence e o Presidente do Tribunal à época, o Min. Marco Aurélio
de Mello.
Os ministros vencidos na votação consideraram que o ato em causa teria caráter
de ato normativo autônomo, passível, assim, de controle normativo abstrato de
constitucionalidade, argumentando que o que se impugnava não era a resposta dada à
consulta, que teria mero caráter administrativo e sim a inclusão do §1° do artigo 4° nas
instruções baixadas pelo TSE, a serem observadas por todos os juízes e Tribunais
Regionais Eleitorais, afetando, mesmo que indiretamente, os partidos políticos e os
candidatos, modificando o processo eleitoral. Assim, o ato objeto de ADI “trata-se de
‘norma de decisão’ e não apenas de ‘decisão sobre normas’”, como menciona o Min.
Sepúlveda Pertence em seu voto, enfatizando que o objeto da ADI é muito mais do que
uma mera interpretação da norma como pretendeu afirmar o TSE, revelando-se, na
realidade, uma regra absolutamente nova que transforma a disciplina das coligações no
processo eleitoral.
Em relação ao mérito, esses mesmos ministros vencidos na votação, declararam
procedente o pedido dos requerentes em sua inicial, fundamentando suas decisões com
os seguintes argumentos:
• Ofensa ao Princípio da Anualidade, tendo em vista que o TSE, no exercício
do poder-dever de baixar instruções, acabou por introduzir norma inteiramente nova,
alterando abruptamente o processo eleitoral de 2002 fora do prazo estabelecido pelo
artigo 16° da Constituição Federal. A regra citada é claramente resultante do Princípio
da Segurança Jurídica, que também, é ofendido pela Resolução, uma vez que este é
orientado no sentido de evitar bruscas alterações, de caráter constritivo de direitos, na
exegese de leis.
“A norma constitucional – malgrado dirigida ao legislador -, contém princípio
que deve levar a Justiça Eleitoral a moderar eventuais impulsos de viradas
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
252
jurisprudenciais súbitas, no ano eleitoral, acerca de regras legais de densas implicações
na estratégia para o pleito das forças partidárias” (Ministro Sepúlveda Pertence).
• Ofensa ao Princípio da Autonomia Partidária , uma vez que a imposição
pelo TSE, por intermédio do dispositivo impugnado, subtrai dos partidos a sua
autonomia para definir seu “funcionamento”, segundo o artigo 17°, §1°, da CF. O texto
constitucional delega claramente às agremiações partidárias a definição das normas
disciplinares e de fidelidade partidária, inclusive quanto à deliberação das coligações
para os pleitos eleitorais. A autonomia dos partidos políticos é total, respeitada a
circunscrição definida no artigo 86° do Código Eleitoral.
• Violação do Princípio Constitucional da Reserva Legal (artigo 5°, II, da
CF). O TSE estatui em sua Resolução uma nova regra, não se tratando apenas de
interpretação da lei, mas de inovação legal, visto que o ato normativo estabelece
proibição não prevista em lei, agredindo, assim, o principio da reserva legal. Neste
sentido, “(...) verticalização é eufemismo para vinculação que quer se estabelecer sem
base legal270”.
• Violação do Princípio da Razoabilidade ou da Proporcionalidade. Um
juízo sobre a proporcionalidade ou razoabilidade de uma medida tem que resultar da
ponderação entre o significado da alteração para o atingido e os objetivos perseguidos
pelo legislador, assim como da necessidade da medida e a adequação do meio eleito para
alcançar o objetivo visado. Partindo destes pressupostos, observa-se que a
“verticalização” das coligações nas eleições de 2002 não só impõe restrição vedada
constitucionalmente (reserva legal), como também não se compatibiliza com o princípio
da proporcionalidade, na medida em que há total desproporção entre o objetivo
perseguido e o ônus imposto ao atingido, agravada, ainda, pela questionável necessidade
de sua utilização e inadequação absoluta do meio eleito para a consecução dos objetivos.
• Ofensa ao Princípio da Reserva Constitucional de Competência
Legislativa do Congresso Nacional. A disciplina do processo eleitoral, que inclui as
regras sobre a celebração das coligações partidárias, configura matéria de competência
270 Citação de trecho do voto do Ministro Sydney Sanches na ADI 2626-7 (STF).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
253
exclusiva do Congresso Nacional, conforme previsto no artigo 22°, inciso I, combinado
com o artigo 48° da CF, competindo ao TSE somente a expedição de instruções
necessárias à execução das leis eleitorais (artigo 23, IX do Código Eleitoral). Deste
modo, no exercício dessa competência, não cabe ao regulamento inovar na ordem
jurídica, criando, modificando, ampliando ou restringindo direitos e obrigações
estabelecidas pela lei regulamentada. No caso em exame, o TSE, ao instituir a
vinculação das coligações formadas nas circunscrições dos estados àquela composta para
a eleição de Presidente da Republica, exorbitou de seus limites, inovando na ordem
eleitoral:“ O juízo de conveniência, confiado ao TSE, tem por objeto a expedição ou não
da instrução, não o seu conteúdo271(...)”
Os Ministros Nelson Jobim, Ellen Gracie, Moreira Alves, Maurício Corrêa,
Carlos Velloso, Celso de Mello e Néri da Silveira acolheram a preliminar de
descabimento da ADI, suscitada no caso, fundamentados no argumento de que o ato
questionado, por veicular conteúdo meramente interpretativo, teria resultado do
exercício, pelo TSE, de competência materialmente administrativa que lhe foi conferida
pelo Código Eleitoral.
Assim, os Ministros que tiveram seus votos vencedores, não conheceram da
ação, visto que o objeto desta (§1° do artigo 4° da Instrução n° 55) é ato normativo
secundário, decorrente de ato normativo primário, que no caso é o artigo 6° da Lei
9504/97.
“O ato em causa revela-se efetivamente desprovido do necessário coeficiente de
normatividade qualificada, configurando, por isso mesmo, ato de caráter meramente
secundário, eis que se limitou a interpretar, na espécie, regra legal pertinente à
celebração de coligações partidárias272”.
Segundo o posicionamento vencedor, o objeto da ação consiste inegavelmente
em ato de interpretação. Entretanto, saber se esta interpretação excedeu ou não os
limites da norma que visava integrar, exigiria necessariamente o seu confronto com esta
regra, e o STF tem rechaçado as tentativas de submeter ao controle concentrado de
constitucionalidade o controle de legalidade do poder regulamentar. Neste sentido, os
alegados excessos do poder regulamentar da Resolução em face do artigo 6º da Lei
271 Citação de trecho do voto do Ministro Sepúlveda Pertence na ADI 2626-7 (STF). 272 Citação de trecho do voto do Ministro Celso de Mello na ADI 2626-7 (STF).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
254
9.504/97 não revelariam inconstitucionalidade, mas sim eventual ilegalidade frente à lei
ordinária regulamentada, sendo indireta ou reflexa a alegada ofensa à Constituição.
Logo, segundo a posição sustentada por esses Ministros não há violação direta a
nenhum dos princípios constitucionais invocados no caso em exame.
Não há que se falar em desrespeito ao principio da anualidade, já que foi
respeitado o termo final para o TSE expedir as instruções para as eleições de 2002
segundo o artigo 105 da Lei nº 9504/97. Quanto ao princípio da autonomia partidária, a
Constituição dá autonomia aos partidos políticos quanto ao seu funcionamento,
entretanto, não pode haver autonomia quanto ao funcionamento externo do partido visto
que a CF não se ocupa diretamente do assunto, não estabelecendo o princípio
constitucional da liberdade de coligação. A autonomia partidária, portanto não é total.
No hard case da verticalização em 2002, outro Tribunal Superior, que não o
STF, assumiu uma postura ativista, típica do processo de judicialização da política273.
No caso examinado é o TSE que exerce esse ativismo judicial, ao estabecer normas
referentes ao processo eleitoral que inicialmente seriam de competência exclusiva do
Congresso Nacional, como já mencionado anteriormente.
Por último, cabe ressaltar que a ADI 2626-7 de 2002 restringe o acesso à justiça,
devido ao excesso de formalismo por parte dos ministros, visto que não foi avalido
sequer o mérito da questão por concluírem que o objeto desta era apenas um ato de
interpretação, mera norma secundária.
2.1.2. Caso 2006 (ADI 3685-8)
O Conselho Federal da Ordem dos Advogados propôs em 2006, ação direta de
inconstitucionalidade em face do artigo 2° da Emenda Constitucional n° 52/06 que
alterou a redação do artigo 17° §1° da CF, introduzindo neste, texto novo que disciplina
o regime das coligações partidárias eleitorais, estabelecendo a regra da não
obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual,
municipal e distrital.
A Emenda Constitucional em questão, proposta no ano de 2002, visava
claramente contornar a Resolução nº 20.993 votada pelo TSE no mesmo ano, visto que
esse dispositivo determinava a aplicação dos seus efeitos “às eleições que ocorrerão em
2002” e ainda atribuía status constitucional à matéria que antes era tratada apenas por
273 Os temas da judicialização da política e do ativismo judicial serão aprofundados no item 3.1. do presente relatório.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
255
legislação ordinária, provocando assim a perda da validade de qualquer restrição à
autonomia dos partidos políticos nos planos federal, estadual, distrital e municipal,
alcançando assim a Resolução do TSE.
Por maioria de votos, os ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram pela
procedência da ação, estabelecendo que a EC 52/06 não se aplicaria às eleições de 2006,
vencidos os votos dos Ministros Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio de Mello.
Segundo a linha de pensamento dos Ministros Ellen Gracie, Nelson Jobim, Celso
de Mello, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa, Eros Grau e
Ricardo Lewandowski, que votaram pela procedência do pedido, os principais
argumentos foram:
• Violação do Princípio da Anualidade (artigo 16° da CF), visto que a EC
sob exame dispunha que entraria em vigor na data de sua publicação, desrespeitando o
prazo legal para a introdução de novas regras no processo eleitoral, que é de um ano.
Esse princípio visa conferir segurança jurídica tanto aos candidatos que serão
surpreendidos pela medida quanto ao eleitor, afastando qualquer alteração feita por
conveniências de momento, independentemente se por emenda à constituição, lei
ordinária ou complementar, que acabassem por ferir a legitimidade democrática,
prevenindo o casuísmo legislativo.
• Ofensa ao Princípio da Segurança Jurídica (artigo 5°, caput, CF). A
confiança que se deposita em determinado modelo legal torna essencial a adoção de
cláusulas de transição nos casos de mudança radical de um instituto jurídico. Este é o
papel (o de limite temporal) exercido no caso pelo artigo 16° da Constituição Federal,
constituindo uma previsão de segurança jurídica qualificada expressamente pela Carta
Magna.
• Violação do Principio do Devido Processo Legal (artigo 5°, LIV, da
CF). Garantia genérica que pode ser concretizada no principio do devido processo legal
eleitoral, compreendida como cláusula pétrea pelos ministros vencedores, a teor do
inciso IV do §4° do artigo 60 da Constituição. Segundo os ministros, a garantia do
devido processo legal foi desrespeitada pela EC em tela, uma vez que a anterioridade
exigida pelo artigo 16 é essencial à segurança e à isonomia, que estão subjacentes á idéia
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
256
qualificada de processo, não bastando que o legislador respeite os preceitos que regem o
processo legislativo, impondo-se ainda a observância da anterioridade.
Os ministros que tiveram seus votos vencidos insistiram na questão de que a
Emenda Constitucional n° 52/06 não modificou o cenário eleitoral, pois não alterou
coisa alguma em termos de normatividade, apenas constitucionalizando o artigo 6° da
Lei 9.504/97. O argumento de que a EC n° 52 ofende uma cláusula pétrea (artigo 16° -
Princípio da Anualidade), foi questionado, na medida em que esse artigo seria passível
de reforma, até porque sua redação atual decorreu da EC n° 04/93, não cabendo assim a
sua classificação como clausula pétrea:
“(...) se nem o próprio artigo 16° eu consigo erigir em clausula pétrea, com
todo o respeito que tenho por aquela decisão do TSE (consulta 715 de 2002
que gerou a ADI 2626), não consigo erigir em clausula pétrea a decisão do
Tribunal Superior274”.
De acordo com esse trecho, consegue-se extrair, assim como em seu voto na ADI
2626 de 2002, na qual ele compara o TSE com o Supremo Tribunal de Eleições da Costa
Rica, que o citado ministro possui a preocupação em garantir o acesso à justiça na
medida emeque se posiciona contra a tendência da imutabilidade das decisões não só do
STF.
Durante seu voto, o Ministro Marco Aurélio de Mello afirma que não estaria ele
e os outros Ministros ali, se em 2002 não tivesse havido a guinada na interpretação da
ordem jurídica, bem como se “(...) houvéssemos aberto, como costumo dizer, o
embrulho, quando se atacou a resolução do TSE, mediante ADI (2626), sob o ângulo da
autonomia dos partidos políticos e da atuação do referido Tribunal, como se fosse órgão
incumbido de legislar275”.
Por último, de acordo com o Ministro Sepúlveda Pertence (ainda se referindo à
consulta n° 715), o Tribunal Superior Eleitoral não pode deixar-se envolver nas
polêmicas sobre a conveniência ou não de se impor a simetria entre as coligações, visto
que antes disso se faz necessário saber se o problema já encontra solução na legislação
eleitoral, o que, em sua compreensão, tem resposta afirmativa, uma vez que o artigo 6°
da Lei n° 9504/97 é o único dispositivo legal pertinente à questão. Neste sentido, o Min.
Sepúlveda Pertence conclui que há expressamente uma opção legislativa que deriva do
principio da autonomia dos partidos políticos, não cabendo substituí-la pela visão do
274 Trecho do voto do Min. Sepúlveda Pertence na ADI 3685-8, disponível em <www.stf.gov.br>. 275 Trecho do voto do Min. Marco Aurélio de Mello na ADI 3685-8, disponível em <www.stf.gov.br>.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
257
Tribunal, sobre como deveriam se organizar os partidos, até porque esta competência já
foi conferida aos próprios, segundo o artigo 17°, §1° da CF.
2.2. O caso da cláusula de barreira
Em dezembro de 2006, o STF julgou as ADI’s 1351 e 1354 propostas pelos
partidos políticos que se sentiram prejudicados com a cláusula de barreira instituída pelo
art. 13 da Lei nº 9.096/95 (Lei dos partidos políticos), e que passaria a ter seus efeitos a
partir da legislatura que se iniciaria em 2007. Estas ações tramitavam no Supremo
Tribunal Federal desde 1995, ano em que entrou em vigor a referida lei, e tinham como
pedido, a declaração da inconstitucionalidade da cláusula de barreira, sob alegação de
que confrontaria os princípios da isonomia e do pluralismo político, ferindo, assim, o
direito de manifestação política das minorias.
No passado, a matéria relativa à cláusula de barreira foi disciplinada na
Constituição Brasileira outorgada de 1967, exigindo que, para a manutenção de sua
existência, as agremiações deveriam ter obtido na última eleição geral para a Câmara dos
Deputados dez por cento do eleitorado – atualmente 5% – distribuídos em pelo menos
sete estados – e não nove como agora – com um mínimo de sete por cento – hoje 2% –
em cada um deles. Sob a regência da Carta Política de 1967, tanto na redação primitiva,
quanto nas resultantes das Emendas Constitucionais nº 01/69 e 11/78 , as exigências
ligadas à representatividade de partidos políticos alcançaram a própria organização,
funcionamento e extinção das agremiações. Com a Emenda Constitucional nº 25/85,
foram estabelecidas, de forma precisa, as conseqüências de não ter o partido atingido os
patamares fixados, dentre as quais, a perda do mandato dos representantes eleitos por
essas agremiações se estes não optassem por nenhum outro partido remanescente em 60
dias276.
Com a ruptura daquele período autoritário e o início de uma nova fase política
nacional, assentada em uma Constituição com bases democráticas, o constituinte
originário optou por disciplinar apenas as linhas gerais partidárias, estabelecendo
princípios jurídicos, tais como o do pluripartidarismo e da livre organização, e deixando
276 Observa-se que a Constituição de 1967 considerava como pertencente ao representante o mandato político, podendo este permanecer com o cargo desde que se filiasse a outro partido, qualquer que fosse, tratando, assim, a filiação partidária como mera condição para o exercício do cargo no Poder Legislativo.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
258
o seu funcionamento parlamentar como matéria a ser regulada por lei
infraconstitucional277.
No Brasil, os partidos políticos sofreram com a alternância entre regimes
democráticos e ditatoriais, que pouco contribuiu para conferir-lhes uma base ideológica
sólida, que fosse capaz de ensejar o surgimento de agremiações partidárias divorciadas
do patriarcalismo, do patrimonialismo e dos interesses econômicos dominantes.
A discussão do caso, portanto, diz respeito a dois pontos importantes: (1.) o
conflito entre norma infraconstitucioal e princípios constitucionais que não admitiriam
os efeitos provocados pela cláusula de barreira e (2.) qual deveria ser a interpretação
dada ao art.17 da Constituição Federal de 1988, que disciplina sobre os partidos
políticos.
O Supremo Tribunal Federal entendeu que o texto constitucional estabelece
diversos princípios além de regras, os quais devem prevalecer diante de normas que os
contrariem, podendo até serem, às vezes, mitigados, mas nunca inobservados. Dentre os
princípios mencionados na fundamentação do julgamento, podemos destacar os da
soberania popular, do pluralismo político, da igualdade de chances entre os partidos
políticos e, finalmente, o princípio da proporcionalidade.
Os ministros começam o julgamento tentando se posicionar em discussões sobre
matérias em que não são especialistas, como é o caso do sistema de representação
proporcional, soberania popular, democracia, mandato político, etc. Matérias que são
objeto, sobretudo, da ciência política. No entanto, verifica-se que apesar da relevância
social do caso em discussão e da acentuada repercussão na vida política brasileira que a
decisão poderia gerar, contribuindo para o desenvolvimento de nosso sistema político-
eleitoral, os ministros, ainda assim, se sentiram plenamente capazes de discutir, analisar
e julgar as ADIs mencionadas. Podem ser destacados os seguintes pontos centrais da
argumentação dos ministros do STF, que decidiram por unanimidade pela
inconstitucionalidade da cláusula de barreira:
• Os ministros reconhecem a relevância de um dos fundamentos do Estado de
Direito brasileiro, que é o pluralismo político, refletindo no reconhecimento de um
pluripartidarismo que assegura aos partidos a liberdade de criação, o direito à
igualdade de chances no tocante à defesa, funcionamento e manifestação de seus ideais
políticos, pois todos têm o direito e a liberdade de se expressarem livremente.
277 Cf. art.17, caput, IV e §1 da Constituição Federal de 1988.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
259
• Defenderam o direito à igualdade entre os eleitores no sentido de que todos
têm direito a voto com o mesmo peso político, não devendo este peso estar subordinado
à possibilidade ou não de o partido poder ter representatividade no Parlamento através
de uma restrição imposta pela cláusula.
• Observa-se que através desta análise, a soberania popular não estaria sendo
respeitada, uma vez que um representante ou partido que tenha sido legitimado a assumir
uma cadeira no Parlamento e representar o ideal de uma parcela da sociedade, o perderia
por não ter alcançado os limites exigidos pela cláusula de barreira.
• Um Estado democrático deve acolher as diferenças, as desigualdades
existentes e o direito de pensar diferente, acolhendo o direito das minorias. Defendem
que as previsões constitucionais encerram a neutralização da ditadura da maioria que
outrora existiu, afastando do cenário nacional tal óptica hegemônica e, portanto,
totalitária, garantindo a representatividade dos diversos segmentos sociais, dando ênfase
às minorias. Todos têm igual direito em se associar livremente, formando um partido
fundado em um determinado ideal político.
• Com as regras da cláusula de barreira, estar-se-ia restringindo o
financiamento desses partidos e suas possibilidades de propagarem seus ideais, de forma
tão desproporcional que os levariam a extinção, impossibilitando, também, o
surgimento de novos partidos.
• Menciona-se a importância de se observar o princípio da
proporcionalidade, escolhendo para o caso a interpretação que menos restrinja os
demais princípios constitucionais.
• Com relação à interpretação que deve ser dada ao art. 17, inciso IV da CF,
entenderam que a expressão “na forma da lei” não pode ser compreendida como uma
liberdade absoluta para o legislador ordinário dispor livremente sobre a representação
parlamentar, esvaziando os princípios constitucionais.
São discutidos, em alguns momentos da decisão, outros assuntos correlatos tais
como a necessidade de se respeitar a fidelidade partidária, que deveria ter como
conseqüência natural a perda de mandato em caso de desfiliação por motivos não
relevantes, e da enorme necessidade da realização de uma reforma política em nosso país
tendo em vista a crise estrutural de nosso sistema político e os recentes escândalos
amplamente veiculados pela mídia.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
260
O Ministro Gilmar Ferreira Mendes menciona, ainda, dois precedentes relativos
ao caso, um do Tribunal Superior Eleitoral278, que teve a oportunidade de discutir a
aplicação do principio da igualdade de chances em 1986, e na ocasião, por quatro votos
a três, decidiu que não se aplicava o princípio ao caso (decisão muito fértil de
discussões, porém lamentada por ele); e outro relativo à decisão do próprio Supremo
Tribunal Federal279, do ano de 1981, que decidiu que a infidelidade partidária não teria
repercussão sobre o mandato exercido pelo representante eleito.
Em síntese, no caso sob exame, decidiu-se por unanimidade sobre a
inconstitucionalidade da cláusula de barreira, que ofenderia diversos princípios
constitucionais e impediria o crescimento dos pequenos partidos, levando-os até mesmo
à “morte”.
2.3. O caso da fidelidade partidária
A Constituição de 1967 passou a disciplinar a fidelidade partidária com a
Emenda nº 01/69, que, em seu artigo 152, parágrafo único (que, com alteração de
redação, passou a parágrafo 5º desse mesmo dispositivo por força da Emenda
Constitucional nº 11/78), estabelecia que o deputado que deixasse o partido sob cuja
legenda fora eleito, perderia o mandato. Essa perda era decretada pela Justiça Eleitoral,
em processo contencioso no qual era assegurada a ampla defesa e, em seguida, declarada
pela mesa da Câmara dos Deputados. Com a EC nº 25/85, deixou de existir esse
princípio e a atual Constituição também não o adotou em seu texto, ficando sem
previsão constitucional a fidelidade partidária, o que tem permitido a livre mudança de
partido pelos parlamentares, sem a perda do mandato.
O debate político e judicial sobre a fidelidade partidária ganhou relevo quando o
Partido da Frente Liberal (PFL), hoje Democratas (DEM), formulou ao Tribunal
Superior Eleitoral a consulta nº 1.398/DF280, indagando se os partidos e coligações têm o
direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando houver
pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um
partido para outra legenda.
278 MS nº. 754 (TSE), Relator Min. Roberto Rosas, DJ 11.04.1990; MS nº. 746 (TSE), Relator Min. Roberto Rosas, DJ 11.04.1990; RMS nº. 785, Relator Min. Aldir Passarinho, DJ 02.10.1987. 279 MS nº 20.297, Relator Min. Moreira Alves, julgado em 18.12.1981; Acórdão – TSE nº. 11.075, Relator Min. Célio de Oliveira Borja, DJ 15.05.1990. 280 Demais consultas sobre o caso: TSE - CTA 1439; CTA 1403; CTA 1407; CTA 1416; CTA 1440; CTA 1408.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
261
Em julgamento realizado em março de 2007, o TSE entendeu por maioria de seis
contra um, que os partidos tinham sim o direito de preservar as vagas, pois o mandato
pertenceria ao partido e não ao candidato. As consultas não têm caráter vinculante,
podendo servir, no entanto, de suporte para as razões do julgador.
Em maio de 2007, três partidos políticos impetraram mandados de segurança no
STF (MS 26.602, 26.603 e 26.604) em face de ato do Presidente da Câmara dos
Deputados que indeferiu o requerimento por eles formulado para que fosse declarada a
vacância dos mandatos exercidos por deputados federais que se desfiliaram das
agremiações partidárias, sob o fundamento de não figurar a hipótese de mudança de
filiação partidária entre aquelas expressamente previstas no § 1º do art. 239 do
Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Nas decisões analisadas, as linhas gerais
dos votos contêm os seguintes entendimentos:
Reconhecimento de uma “partidocracia”, sendo, os partidos, essenciais ao
funcionamento da democracia281. A vinculação entre o candidato e o partido é inerente
ao próprio sistema representativo proporcional adotado por nosso ordenamento, sendo o
partido um ente intermediário entre o povo e o Estado. Fala-se também em “fidelidade
ao eleitor”.
Aplicação imediata dos princípios constitucionais, fundamentada no voto do
Ministro César Asfor Rocha na consulta feita ao TSE, baseada numa superação da
“velha hermenêutica282”. Defende-se, também, que a interpretação do direito deve ser
sempre sistemática, pois vários textos combinados exprimem diferentes normas. As
normas não encerram em si mesmas todas as soluções do direito, devendo o intérprete
combinar normas e extrair todo seu significado.
Menção que César Asfor Rocha faz sobre o princípio da moralidade, contido
no art. 37, caput, da CF de 1988. Para ele, a desfiliação e o uso do mandato como se
fosse patrimônio seu, seria um ato imoral. O mesmo ministro, também afirma que as
Cortes de Justiça têm um papel importante na tarefa de contribuir para o conhecimento
dos aspectos axiológicos do direito283.
Dicotomia entre o Direito Público e o Direito Privado. É ressaltada a função
pública do mandato, não devendo prevalecer o interesse particular do candidato. No
281 Destaque para o voto do Ministro Cezar Asfor Rocha dizendo que “ao seu sentir” a mandato pertenceria ao partido. 282 Classificação dada pelo Professor Paulo Bonavides. (Curso de Direito Constitucional, São Paulo, Malheiros, 2000). 283 Sobre o voto do Min. César Asfor Rocha, confira a seção sobre neoconstitucionalismo, minimalismo e democracia neste relatório, p. 29.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
262
regime do Direito Público, tudo o que a lei não permite considera-se que implicitamente
é ilícito (a lei não permite que o candidato se aproprie do mandato ou que este lhe
pertença).
A perda do mandato por desfiliação não tem a natureza de sanção284, pois a
mudança de partido não é ato ilícito. Os ministros entendem que o art.55 da CF/1988
estabelece as sanções de perda de mandato em rol taxativo somente para os atos ilícitos
(devendo, nestas hipóteses, respeitar o princípio da legalidade). No entanto, a troca de
partido é ato lícito e tem a perda do mandato como conseqüência lógica e natural,
decorrente do reconhecimento de inexistência de direito subjetivo autônomo ou de
expectativa de direito autônomo à manutenção pessoal do cargo (perda da legitimidade
para ser representante). Consolidam-se como exceções à perda do mandato pelo
candidato, a mudança significativa de orientação programática pelo partido e os casos de
perseguição ao candidato, visando, assim, respeitar o voto do eleitor.
Decidiu-se que o candidato “infiel” tem direito ao devido processo legal,
exercendo ampla defesa em processo perante órgão competente da Justiça Eleitoral,
para que seja decidido se é caso ou não de perda do mandato. Além disso, em
observância ao princípio da segurança jurídica, os ministros fixaram o dia 27 de
março de 2007, data do julgamento da consulta nº 1.398 pelo TSE, como data para o
início da vigência do princípio da fidelidade partidária.
Na decisão da consulta, pode-se observar a prevalência dada pelos ministros aos
princípios constitucionais ao tentarem interpretar as normas em coerência com estes.
Todavia, em alguns momentos, eles chegam a desvirtuar alguns conceitos tradicionais de
institutos jurídicos para conseguir chegar, assim, à decisão desejada.
Alguns ministros (Celso de Mello e Carmem Lúcia, por exemplo) levaram em
consideração, também, a realidade cotidiana do sistema político brasileiro, analisando
dados e situações fáticas que vêm ocorrendo em nossa sociedade, como o “troca-troca”
que tem atendido muito mais a interesses particulares, a falta de congruência entre os
ideais partidários e a plataforma política do candidato e, ainda, os escândalos
recentemente ocorridos no Poder Legislativo. O Poder Judiciário, diante do descrédito
popular em relação ao Legislativo e da suposta omissão deste, sente-se legitimado a
atuar como ator político fundamental, estabelecendo regras na vida política brasileira e
interferindo em competências que são originariamente do Poder Legislativo, ao ditar as
284 Confira o item 3.3.3. sobre a análise dos elementos da decisão, p. 42.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
263
regras do “jogo político” de acordo com o que eles julgam ser a “melhor” interpretação
da Constituição. No entanto, durante o julgamento, eles próprios afastaram a alegação de
que o STF estaria usurpando atribuições do Congresso Nacional, ao sustentarem que
competiria ao STF, guardião da Constituição, interpretá-la e, de seu texto, extrair a
máxima eficácia possível.
2.4. Quadro das decisões do STF sobre a questão partidária (2002 - 2007)
Como sugere a metodologia analítica já exposta no documento-base do Grupo 5
(UFRJ), um trabalho consistente de pesquisa não deve limitar-se apenas ao caso difícil
ou à decisão em si. Deve, também, estar atento aos contextos político, histórico e
normativo concernentes à questão, além de seguir linhas bem delimitadas de estudo ao
estabelecer os rumos, os objetivos e a linha investigativa do trabalho. Para uma
investigação mais aprofundada sobre o caso difícil da fidelidade partidária (MS nº
26602, 26603 e 26604 – STF), destacamos no quadro a seguir algumas variáveis
consideradas fundamentais, sistematizando dentro de um corte temporal285 a postura dos
julgados do STF a respeito da temática partidária. Explicitam, assim, as linhas
estruturais de nossa análise e sobre as quais debruçaremos os nossos estudos futuros. O
quadro elaborado para atingir esses objetivos fundamenta-se em variáveis de caráter
interpretativo (princípios), parâmetros articulados com a Teoria do Direito (a questão
normativa) e, dentro dos objetivos do Projeto Dossiê Justiça, contempla o aspecto
político com destaque para a judicialização e o acesso à justiça.
285 De acordo com os casos utilizados como base de análise do comportamento do STF neste relatório.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
264
VARIÁVEIS VERTICALIZAÇÃO CLÁUSULA DE
BARREIRA
FIDELIDADE
PARTIDÁRIA
VIA JUDICIAL • ADI 2626 e ADI
3685
• ADI 1351
• ADI 1354
• MS 26602,
26603 e
26604
PRINCÍPIOS
• Anualidade
• Segurança
Jurídica
• Autonomia
Partidária
• Reserva Legal
• Razoabilidade e
Proporcionalidade
• Reserva
Constitucional de
Competências
• Devido Processo
Legal
• Igualdade de
chances
(isonomia)
• Pluripartidarismo
• Proporcionalidade
• Moralidade
• Segurança
jurídica
• Ampla defesa
• Legalidade
NATUREZA DAS
NORMAS
• 2002:
Interpretação de
lei pelo TSE é
levada ao STF por
aparente conflito
com princípios
constitucionais.
• 2006: EC que
visava contornar a
interpretação de
2002 do TSE é
• Lei infra-
constitucional
incompatível
com os
princípios
constitucionais
• Interpretação de
normas
constitucionais
• Ausência de
regulação
expressa
• Interpretação
de princípios
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
265
levada ao STF por
entrar em conflito
com princípios
constitucionais.
JUDICIALIZAÇÃO
DA POLÍTICA
• Neste caso, em
respeito à decisão
do TSE, o STF
sequer analisa o
mérito
• Discussão sobre
as regras do
sistema político
• Estabelece
regras do jogo
democrático
• Interfere na
esfera de
competência
do Poder
Legislativo
ACESSO À
JUSTIÇA
• Excesso de
formalismo na
ADI 2626 impede
a análise de
mérito
• Assegura o
direito das
minorias
• Defesa da
igualdade
• Prevalência dos
princípios
constitucionais
• Discute a
fidelidade ao
voto do eleitor
3. ANÁLISE DO CASO DIFÍCIL DA FIDELIDADE PARTIDÁRIA
3.1. A judicialização da política e o ativismo judicial
A expansão do protagonismo político dos tribunais nas democracias
contemporâneas, ao menos no ocidente, constitui um fenômeno que caracteriza este
início de século. “Revoluções constitucionais” vêm sacudindo, inclusive, os últimos
bastiões da democracia majoritária, tais como os sistemas políticos da África do Sul,
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
266
Canadá, Israel e Nova Zelândia286. Inúmeros são os fatores apontados pelos cientistas
políticos, sociólogos e juristas, responsáveis pela ampliação e consolidação deste
processo. Ernani Rodrigues de Carvalho, por exemplo, elenca seis condições para o
surgimento e consolidação da judicialização da política: a existência de um sistema
político democrático, a separação dos poderes, o exercício dos direitos políticos, o uso
dos tribunais pelos grupos de interesse, o uso dos tribunais pela oposição e, por último, a
inefetividade das instituições majoritárias287. Todos esses fatores, em maior ou menor
intensidade, encontram-se presentes nos sistemas político e jurídico brasileiros. De
acordo com José Eisenberg, a judicialização da política é um processo complexo
composto por dois movimentos distintos:
“(1.) refere-se a um processo de expansão dos poderes de legislar e executar
leis do sistema judiciário, representando uma transferência do poder
decisório do Poder Executivo e do Poder Legislativo para os juízes e
tribunais – isto é, uma politização do judiciário; (2.) a disseminação de
métodos de tomada de decisão típicos do Poder Judiciário nos outros
Poderes. Em nosso juízo, este segundo movimento é mais bem descrito como
uma “tribunalização” da política, em oposição à judicialização representada
pelo primeiro movimento”288.
Ran Hirschl define esse processo como “juristocracia” (juristocracy), ou seja,
como a progressiva transferência de poderes decisórios das instituições representativas
para o Judiciário289. Este fenômeno é acompanhado e alimentado por uma mudança na
ideologia jurídica, consistente em uma crítica crescentemente realizada pelas principais
elites políticas, jurídicas e econômicas à premissa majoritária que define a democracia
em sua dimensão popular. Hirschl assume uma metodologia de análise que procura
afastar o tema em questão dos debates normativos usuais neste campo de investigação,
procurando estudar as origens e conseqüências das “revoluções constitucionais”, isto é,
da consolidação do novo constitucionalismo (new constitutionalism) em diferentes
sociedades.
Neste sentido, o autor enumera três postulados responsáveis pela orientação
metodológica de sua abordagem sobre o tema da judicialização da política. As premissas 286 Cf. HIRSCHL, Ran. Towards juristocracy: the origins and consequences of the new constitutionalism. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2004. 287 CARVALHO, Ernani Rodrigues de. Em busca da judicialização da política no Brasil: apontamentos para uma nova abordagem. In: Revista de Sociologia Política, p. 117-120. 288 EISENBERG, José. Pragmatismo, direito reflexivo e judicialização da política. In: VIANNA, Luiz Werneck (Org.). A democracia e os três poderes no Brasil, p. 47. 289 HIRSCHL, op. Cit., p. 01.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
267
descritas a seguir também constituirão importantes guias metodológicos para as futuras
análises que serão empreendidas pelo Observatório da Justiça Brasileira sobre a
necessidade, o design e o impacto dos projetos de reformas institucionais em diferentes
áreas dos sistemas jurídico e judiciário. As futuras investigações do OJB, para além da
dimensão de justificação normativa, devem também levar em consideração os efeitos
distributivos de diferentes ordens inseridos em uma opção por um determinado modelo
institucional em detrimento de outros.
Deste modo, o primeiro postulado metodológico afirma que a transferência
progressiva de poderes do Legislativo para o Judiciário, assim como para outras
instâncias administrativas de decisão cujos representantes não são eleitos
democraticamente – agências administrativas independentes ou agências reguladoras,
por exemplo – não pode ser estudada separadamente das lutas políticas, econômicas e
sociais que modelam o sistema jurídico-político de uma sociedade. Em segundo lugar, as
instituições políticas e jurídicas promovem efeitos distributivos diferenciados, isto é:
elas tendem, inevitavelmente, a privilegiar mais alguns grupos e indivíduos do que
outros. Por último, em regra, os diferentes atores políticos, econômicos e jurídicos
tendem a agir estrategicamente no sentido de apoiar a consolidação de estruturas
institucionais que beneficiarão na maior medida possível os seus próprios interesses
particulares ou corporativos290.
Essas premissas metodológicas deslocam a análise da judicialização da política,
em especial as suas origens e conseqüências, de um debate puramente normativo para
uma abordagem institucional, enriquecendo a interpretação dessa temática. Tais
postulados ampliam o escopo da análise de tal modo a vislumbrar os interesses
corporativos ou particulares inscritos em uma opção por um arranjo legal-institucional
mais ou menos favorável à “juristocracia”. A hipótese explicativa desenvolvida pelo
autor consiste na tese da preservação hegemônica (hegemonic preservation thesis).
Segundo Hirschl:
“O poder judicial não cai do céu; ele é politicamente construído. Acredito que a
constitucionalização dos direitos e o fortalecimento do controle de constitucionalidade
das leis resultam de um pacto estratégico liderado por elites políticas hegemônicas
continuamente ameaçadas, que buscam isolar suas preferências políticas contra
290 Cf. HIRSCHL, op. Cit., p. 38 et seq.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
268
mudanças em razão da política democrática, em associação com elites econômicas e
jurídicas que possuem interesses compatíveis”291.
A abordagem realista e estratégica do fenômeno da judicialização da política
permite afirmar que a progressiva transferência de poderes para o Judiciário nas
democracias contemporâneas “serve aos interesses de uma Suprema Corte que procura
ressaltar sua influência política”292. Segundo Alec Stone Sweet, há um interesse
institucional dos tribunais em “resolver conflitos legislativos sobre constitucionalidade,
mantendo e reforçando, ao mesmo tempo, a legitimidade política da revisão
constitucional para o futuro293”. Para o autor, a judicialização da política constitui uma
tendência de difusão das técnicas de argumentação e aplicação das normas típicas do
Direito Constitucional em outros poderes, ou seja:
“o processo pelo qual os legisladores absorvem as normas de conduta da
adjudicação constitucional, a gramática e o vocabulário do Direito Constitucional (...).
Em uma política judicializada, o discurso legal é responsável pela mediação entre o
debate partidário e as estruturas de exercício do poder legislativo”294.
Além disso, a judicialização promove o “entrincheiramento constitucional de
direitos295” e, neste sentido, tanto o Executivo quanto o próprio Poder Legislativo
podem, mediante o apoio a esta estratégia de transferência de poderes, retirar temas
controvertidos do debate público, onde dificilmente seriam decididos, seja porque não há
consenso possível, seja porque não foram suficientemente debatidos296. As premissas
metodológicas estudadas constituem importantes instrumentos analíticos para a
investigação da visibilidade conferida ao Poder Judiciário, particularmente às decisões
dos ministros do Supremo Tribunal Federal, assim como das conseqüências de tal
protagonismo na mobilização e participação da sociedade civil.
Uma relevante linha de pesquisa que merecerá ser desenvolvida no âmbito das
investigações acadêmicas do futuro Observatório da Justiça Brasileira, consistirá no
estudo do impacto da concentração de decisões politicamente controversas nas
291 Idem, p. 49. 292 Idem, p. 49 293 SWEET, Alec Stone. Governing with judges: constitutional politics in Europe, p. 199-200. 294 Id., ibid., p. 203. 295 Idem, p. 44. 296 Idem, p. 39. Uma terceira hipótese para a transferência deliberada e estratégica de uma decisão para o Poder Judiciário, evitando que o Poder Legislativo ou o Poder Executivo tenha que tomá-la, consiste no menor custo político de tal decisão controversa para o governo ou a oposição quando a mesma é prolatada pelos tribunais.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
269
estratégias de organização e atuação do Legislativo e de mobilização da sociedade civil
e, neste sentido, em relação ao próprio tema da democratização do acesso à justiça. Em
que medida tal concentração decisória estimula ou desencoraja a crítica, tematização,
inovação e a proposição de mudanças institucionais deliberadas democraticamente?
Outro tema intimamente relacionado com a questão da judicialização da política
é o do ativismo judicial. Durante o relatório utilizaremos uma definição normativamente
inerte de “ativismo judicial”. A prática jurídica mostra que magistrados ativistas podem
tanto adotar um posicionamento progressista quanto uma decisão conservadora. Ao
mesmo tempo, não é possível afirmar, de antemão, que uma atitude ativista seja sempre
a atitude correta ou incorreta diante de todos os casos jurídicos possíveis.
Neste sentido, o ativismo judicial será medido pela freqüência com que um
determinado magistrado ou tribunal invalida as ações (normas e atos normativos) de
outros poderes de Estado, especialmente do Poder Legislativo297. Ou seja, com que
freqüência os tribunais “retiram a decisão das mãos dos eleitores298”. Além disso,
também será considerado ativista o magistrado ou tribunal que procura suprir omissões
(reais ou aparentes) dos demais poderes299 com suas decisões, por exemplo, no tocante à
definição ou concretização de políticas públicas ou regulamentação das regras do jogo
democrático.
Os dois conceitos, judicialização da política e ativismo judicial, revelam-se
fundamentais para a análise das recentes decisões do STF nos hard cases da
verticalização das coligações partidárias, da cláusula de barreira e da fidelidade
partidária. Além disso, ambos constituem importantes ferramentas analíticas para a
atuação do Observatório da Justiça Brasileira na qualidade de órgão de assessoramento
acadêmico, crítico e independente, responsável pela formulação e proposição de
inovações institucionais no sentido de uma ampliação democrática do acesso à justiça no
Brasil.
3.2. Neoconstitucionalismo, minimalismo e democracia
297 Cf. SUNSTEIN, Cass. Radicals in robes: why extreme right-wing Courts are wrong for America, p. 41-44. 298 Id., ibid., p. 43. 299 Essa definição é mais adequada, por exemplo, para a análise do caso da fidelidade partidária (MS nº 26602, 26603 e 26604 – STF), que será estudado adiante. Por outro lado, a definição imediatamente anterior revela-se mais adequada para a análise do caso da cláusula de barreira (ADIS 1351 e 1354), no qual o STF decidiu pela inconstitucionalidade de inúmeros dispositivos da Lei 9.906/95 (Lei dos Partidos Políticos).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
270
O neoconstitucionalismo é mencionado pela doutrina jurídica em diferentes
sentidos. Não há um acordo sobre uma versão “standard” do neoconstitucionalismo na
atualidade. Em regra, o vocábulo é utilizado como um sinônimo para o
constitucionalismo contemporâneo, constitucionalismo principialista, novo direito
constitucional ou constitucionalismo do segundo pós-guerra. De acordo com Prieto
Sanchís, o neoconstitucionalismo pode caracterizar uma concepção renovada sobre o
Estado de Direito, uma proposta de reformulação da teoria jurídica, uma ideologia
política aplicada ao Direito ou, ainda, em um sentido muito amplo, uma filosofia jurídica
que estuda questões conceituais e metodológicas sobre a definição do Direito, o estatuto
do conhecimento e a função do jurista.300
O debate sobre o neoconstitucionalismo, originário dos meios doutrinários
italiano e espanhol, vem encontrando recentemente intensa difusão no Brasil. No
entanto, essa difusão, própria dos neologismos, ainda não alcançou a prática do STF,
pois, até o presente momento, esse vocábulo ainda não foi citado em seus julgados. Em
muitos casos, o neoconstitucionalismo é utilizado para denominar fenômenos que não
são tão recentes em nosso sistema jurídico como, por exemplo, o processo de
constitucionalização do direito e a força normativa da Constituição. De um modo geral,
o conceito vem sendo utilizado pela doutrina para destacar as transformações
metodológicas, teóricas e ideológicas ocorridas no âmbito do Direito Constitucional,
especialmente nos países ibéricos e latino-americanos, no período histórico posterior ao
término da segunda guerra mundial. Segundo esta perspectiva teórica, tais
transformações não tiveram lugar apenas na dimensão histórico-positiva de inúmeros
ordenamentos jurídicos nacionais, repercutindo, também, sobre o estilo e os
pressupostos metodológicos e filosóficos assumidos por parte da doutrina jurídica em
suas reflexões sobre os direitos fundamentais, a democracia e a legitimação do texto
constitucional.
O neoconstitucionalismo possui um duplo significado em regra olvidado pela
doutrina: em uma primeira acepção, tal expressão destaca alguns elementos estruturais
dos sistemas jurídico-constitucionais típicos do período histórico posterior ao término da
segunda grande guerra, que são descritos pelo neoconstitucionalismo enquanto uma
nova teoria geral atenta para as transformações empíricas decorrentes do fato da
constitucionalização do ordenamento jurídico.
300 SANCHÍS, Luis Prieto. Justicia constitucional y derechos fundamentales, p. 101-102.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
271
Em segundo lugar, o neoconstitucionalismo designa, à semelhança da tradicional
classificação do positivismo jurídico elaborada por Norberto Bobbio301, (a) um método
de análise do direito, (b) uma teoria do direito e (c) uma ideologia do direito. Neste
sentido, o neoconstitucionalismo em sua dimensão prescritiva refere-se, sobretudo, aos
itens (a) e (c), ou seja, propõe uma metodologia e uma ideologia do direito que
constituem uma crítica ao positivismo jurídico.
Riccardo Guastini cuidou de abordar descritivamente o fenômeno de
constitucionalização do ordenamento jurídico, definindo-o como “um processo de
transformação de um ordenamento ao término do qual o ordenamento em questão resulta
totalmente ‘impregnado’ pelas normas constitucionais”302. Um sistema jurídico
constitucionalizado caracteriza-se pela existência de uma Constituição “invasora”, capaz
de condicionar tanto a legislação quanto a jurisprudência e a doutrina, assim como o
conjunto das relações sociais que tem lugar em uma determinada comunidade jurídica. O
ordenamento jurídico encontra-se, segundo tal definição, “impregnado” pela eficácia
irradiante das normas constitucionais que atinge os diferentes ramos do Direito, sejam
eles de direito público ou de direito privado. Embora centrado no estudo do caso
constitucional italiano, suas conclusões são igualmente pertinentes para a análise do
fenômeno no Brasil.
O fenômeno de “constitucionalização do direito” é, por sua vez, gradativo, no
sentido de que a implementação parcial ou integral das condições necessárias para a sua
realização dá-se segundo um processo histórico que pode ser mais ou menos longo e
cambiante consoante o sistema jurídico estudado. Neste sentido, o
neoconstitucionalismo trabalha com as seguintes teses:
(1) a existência de uma Constituição rígida, cujo procedimento de revisão
constitucional exija um quorum qualificado para modificar ou revogar normas
constitucionais. A Constituição pode eventualmente conter cláusulas dotadas de
intangibilidade (ou cláusulas superconstitucionais) frente às deliberações do poder
constituinte reformador, constituindo uma espécie de super-rigidez constitucional,
normalmente para assegurar a inderrogabilidade de certos direitos e garantias
fundamentais e dos princípios estruturais do Estado Democrático de Direito303;
301 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, p. 131-134. 302 GUASTINI, Riccardo. La constitucionalización del ordenamiento jurídico: el caso italiano. In: CARBONELL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo(s), p. 49. 303 Confira, neste sentido, o importante livro: VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de justiça: um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma, p. 222 et seq.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
272
(2) a existência de uma garantia jurisdicional da Constituição mediante a
previsão de alguma modalidade (ou de várias) de controle de constitucionalidade das
leis;
(3) o compartilhamento pela comunidade jurídica da tese da força normativa da
Constituição, que defende a idéia de que toda norma constitucional é norma jurídica,
imperativa e, portanto, suscetível de produzir alguma modalidade de efeito jurídico. Esta
condição diz respeito à ideologia difundida na cultura jurídica de um determinado país,
não guardando relação com a estrutura do ordenamento jurídico. A Constituição é vista
como um documento jurídico, dotado de efetividade e, conseqüentemente, incompatível
com a vetusta idéia – típica do constitucionalismo europeu anterior ao término da
segunda grande guerra – de que suas normas não constituem mais do que um “manifesto
político”, cuja concretização constituiria uma tarefa deixada ao julgamento de
conveniência e oportunidade do legislador ordinário;
(4) a idéia de “sobreinterpretação” do texto constitucional: uma Constituição é
“sobreinterpretada” quando, após a interpretação de seus dispositivos, não há espaços
vazios, isto é, livres de regulação pelo Direito Constitucional. As normas constitucionais
condicionam a interpretação de todas as normas jurídicas. Neste sentido, é comum
afirmar que toda interpretação jurídica é, direta ou indiretamente, interpretação
constitucional. Em síntese, as normas constitucionais passaram a constituir um “filtro”
ou “lente” através do qual todas as normas jurídicas devem ser interpretadas. A
Constituição condiciona, tanto negativa quanto positivamente, o espaço de liberdade de
conformação do legislador ordinário;
(5) a aplicação direta das normas constitucionais. Esta condição encontra-se
intimamente relacionada com a idéia de força normativa da Constituição. Toda norma
constitucional é norma jurídica e, portanto, dotada de imperatividade e suscetível de
produzir, em diferentes graus, efeitos jurídicos imediatos;
(6) a interpretação das leis conforme a Constituição, enquanto uma técnica de
interpretação das leis à luz das normas constitucionais com o objetivo de manter-lhes a
validade jurídica;
(7) a influência da Constituição sobre as relações políticas. Esta condição cuida
do fenômeno da judicialização da política, segundo o qual conflitos de natureza
eminentemente política ou envolvendo temas morais profundamente controversos,
bastante freqüentes em sociedades democráticas, passam a ser resolvidos pelo Poder
Judiciário com fundamento em normas constitucionais de conteúdo principiológico.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
273
Apesar de o neoconstitucionalismo não ter sido citado expressamente nas
decisões analisadas por este relatório, as suas teses principais integram, sem dúvida, a
autocompreensão da maioria dos ministros do STF e do TSE sobre a atuação destes
tribunais no hard case da fidelidade partidária. Começaremos, então, pela análise da
Resolução nº 22.526 adotada pelo TSE a partir da Consulta nº 1.398 formulada pelo
Partido da Frente Liberal (PFL), atualmente Democratas, com a seguinte indagação
dirigida ao tribunal:
“Os partidos e coligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo
sistema eleitora proporcional, quando houver pedido de cancelamento de
filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra
legenda?”304
O voto do relator do caso em tela, o Min. César Asfor Rocha, é bastante
representativo das teses supramencionadas, ao afirmar, acerca da aplicabilidade imediata
dos princípios constitucionais, que “tem-se, hoje em dia, como pertencente ao passado, a
visão que isolava os princípios constitucionais da solução dos casos concretos”305. Mais
adiante, assevera que “o tempo presente é o da afirmação da prevalência dos princípios
constitucionais sobre as normas de organização dos Partidos Políticos”306 e, com uma
linguagem excessivamente axiológica, destaca em sua conclusão:
“Outro ponto relevante que importa frisar é o papel das Cortes de Justiça no
desenvolvimento da tarefa de contribuir para o conhecimento dos aspectos
axiológicos do Direito, abandonando-se a visão positivista tradicional,
certamente equivocada, de só considerar dotadas de força normativa as
regulações normatizadas; essa visão, ainda tão arraigada entre nós, deixa de
apreender os sentidos finalísticos do Direito e, de certo modo, desterra a
legitimidade da reflexão judicial para a formação do pensamento jurídico”307.
O Min. César Asfor Rocha justifica o seu voto vencedor, no sentido da
possibilidade de perda de mandato em caso de troca injustificada de partido político pelo
representante eleito, com apoio em uma interpretação extensiva do princípio da
moralidade em um sentido menos usual, e mais ambicioso, do que aquele
tradicionalmente atribuído ao art. 37, caput, da CF:
304 Resolução nº 22.526 (TSE), p. 02, disponível em <www.tse.gov.br>. 305 Idem, p. 04, disponível em <www.tse.gov.br>. 306 Idem, p. 07, disponível em <www.tse.gov.br>. 307 Idem, p. 09, disponível em <www.tse.gov.br>.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
274
“o princípio da moralidade (...) inserido solenemente no art. 37 da Carta
Magna, repudia de forma veemente o uso de qualquer prerrogativa pública,
no interesse particular ou privado, não tendo relevo algum afirmar que não se
detecta a existência de norma proibitiva de tal prática”308
“(...) Não tenho dificuldade em perceber que razões de ordem jurídica e,
sobretudo, razões de ordem moral, inquinam a higidez dessa movimentação,
a que a Justiça Eleitoral não pode dar abono, se instada a se manifestar a
respeito da legitimidade de absorção do mandato eletivo por outra corrente
partidária, que não recebeu sufrágios populares para o preenchimento
daquela vaga.”309
A moralização da decisão, uma das conseqüências da adoção do
neoconstitucionalismo em sua versão “expansionista”, com a aplicação imediata de
princípios com forte carga axiológica e, também, excessivamente indeterminados,
constitui uma característica da argumentação empreendida pelo Min. César Asfor Rocha
em seu voto. No presente caso, o Tribunal decidiu por maioria, restando apenas um
ministro vencido, o Min. Marcelo Ribeiro, que adotou um posicionamento mais
formalista310. O Min. Marcelo Ribeiro, em seu voto, procurou também adotar uma
postura minimalista311, isto é, evitando entrar em considerações profundas, extremamente
abstratas e controversas sobre quais valores ou, mais especificamente, quais normas
jurídicas, podem ser extraídos argumentativamente do princípio democrático, da
moralidade administrativa e da proporcionalidade do sistema eleitoral. O voto do Min.
Marcelo Ribeiro é bem menos ambicioso do que o posicionamento dos ministros
vencedores.
308 Idem, p. 05, disponível em <www.tse.gov.br>. 309 Idem, p. 06, disponível em <www.tse.gov.br>. 310 O formalismo será analisado de modo detalhado na seção 3.3.1. (Formalismo), p. 278 do presente relatório sobre a interpretação e decisão do caso difícil da fidelidade partidária. 311 O minimalismo é aqui utilizado segundo o significado atribuído por Cass Sunstein em sua obra: SUNSTEIN, Cass. One case at time: judicial minimalism on the Supreme Court, p. 03-23. Os minimalistas decidem cada caso de uma vez, evitando formular regras muito gerais para a orientação de casos futuros. São céticos sobre as tentativas de construção de grandes teorias acerca da interpretação jurídica. Suas decisões não são fundacionalistas, evitam entrar em questões profundamente controversas, isto é, em temas ou debates de larga escala, deixando-os em aberto (leaving things undecided, nas palavras do autor). Neste sentido, os minimalistas assumem uma postura restritiva com relação ao exercício do “poder judicial”. Sobre o minimalismo, confira também: SUNSTEIN, Cass. Testing minimalism: a reply. Michigan Law Review, n. 104, I, p. 123-129, 2005.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
275
Em regra, os ministros vencedores pretenderam, de um modo perfeccionista312,
construir grandes interpretações sobre a democracia, o mandato representativo, a
moralidade na função pública, extraindo dessas considerações algumas orientações
gerais para a atuação dos atores políticos no futuro313. Assumido uma postura bem menos
ambiciosa, o Min. Marcelo Ribeiro sintetiza que “não há norma na Constituição, nem em
lei infraconstitucional, que diga que aquele que mudar de partido perderá o mandato314”.
Em seguida, há um debate entre os Ministros Marco Aurélio e Marcelo Ribeiro que
ilustra bem as diferentes pretensões hermenêuticas do neoconstitucionalismo e do
minimalismo. O Min. Marco Aurélio questiona: “E precisaria de uma norma diante dos
princípios consagrados pela Constituição Federal? Seria acaciano315”. Em seguida, o Min.
Marcelo Ribeiro ratifica o seu posicionamento:
“Não me parece haver espaço para invocar princípios implícitos quando a
matéria foi tratada expressamente na Constituição anterior e a alusão à perda
de mandato, de modo claro, foi retirada da atual Constituição. Parece-me,
com a devida, vênia, que o constituinte não quis que essa hipótese, de
mudança de partido pelo parlamentar eleito, acarretasse a perda do
mandato”.316.
Continuando em sua postura minimalista, o ministro vencido procura separar as
razões éticas ou morais que sustentam a plausibilidade da tese da fidelidade partidária,
com as quais concorda, das razões jurídico-positivas que poderiam autorizar semelhante
conclusão com apoio em nosso texto constitucional. Segundo o magistrado, tais razões
normativas não existem em nosso direito positivo.
Segundo Cass Sunstein, há boas razões para o minimalismo judicial nos casos
difíceis. Em primeiro lugar, os juízes não são eleitos pelo voto popular. Em segundo
lugar, os magistrados não possuem uma particular expertise em teoria ética, moral ou
política. Por último, eles não possuem também suficiente conhecimento técnico para
312 O perfeccionismo propõe-se interpretar o texto constitucional a partir de questões profundas, controvertidas na sociedade, buscando fazer da Constituição o melhor que ela pode ser ou, ao menos, aquilo que o intérprete julgue ser a “melhor luz” sobre o problema em questão. Cf. SUNSTEIN, Cass. Radicals in robes: why extreme right-wing Courts are wrong for America, p. 31 et seq. 313 Esta afirmação é válida para a argumentação dos ministros vencedores no TSE e também no STF. 314 Resolução nº 22.526 (TSE), p. 55, disponível em <www.tse.gov.br>. 315 Idem, p. 55, disponível em <www.tse.gov.br>. 316 Idem, p. 60-61, disponível em <www.tse.gov.br>.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
276
prever as principais conseqüências de suas decisões, especialmente nos planos político e
econômico317.
Nos julgamentos dos Mandados de Segurança 26602, 26603 e 26604 (STF),
posicionamento semelhante será adotado pelo parecer do Procurador-Geral da República
e pelo Min. Eros Roberto Grau, ambos com estratégias de argumentação, ao mesmo
tempo, minimalistas e formalistas318.
Os trechos dos votos comentados anteriormente nos auxiliam na compreensão
das tensões entre o neoconstitucionalismo e a democracia, outro ponto importante que
merece ser explorado nesta seção do relatório. Juan Antonio García Amado, em diversos
ensaios, elabora uma contundente crítica ao neoconstitucionalismo, em particular às
teses da “onipresença da Constituição”, seu caráter excessivamente principialista, sua
pretensão desmedida de conformação do mundo político, além do protagonismo
exacerbado que é habitualmente conferido ao Poder Judiciário pela teoria jurídica com
apoio na metodologia da ponderação.319 Para García Amado, o neoconstitucionalismo
“tem como transfundo político a crescente desconfiança frente ao legislador parlamentar
e a correlativa fé nas virtudes taumatúrgicas da magistratura320”. Em sua crítica, o autor
chama a atenção para os perigos de uma versão inflacionada do neoconstitucionalismo
que acabaria por comprometer o pluralismo e a liberdade do legislador ordinário
responsáveis pela definição do campo da disputa política nas democracias
contemporâneas:
“O Direito e, especialmente, a Constituição, delimita o território da política,
definindo limites infranqueáveis para aquilo que seja politicamente possível.
Porque se não há âmbitos de livre configuração e, portanto, imunes à
correção por parte dos órgãos judiciais, não restará espaço para uma
sociedade que exerça a política, passando todos a serem súditos do supremo
órgão político e não democrático, a magistratura”321.
García Amado concebe o neoconstitucionalismo como uma teoria defensora de
um “controle judicial de máximos322”, pois concebe o texto constitucional em um sentido
317 SUNSTEIN, Cass. Radicals in robes: why extreme right-wing Courts are wrong for America, p. 35. 318 O parecer do Procurador-Geral da República e o voto do Min. Eros Roberto Grau serão analisados na seção 3.3.1.(Formalismo), p. 34, sobre o formalismo jurídico no caso difícil da fidelidade partidária (no STF) e suas conseqüências para o tema do acesso à justiça. 319 Para uma exposição minuciosa das críticas elaboradas pelo autor ao neoconstitucionalismo confira: PULIDO, Carlos Bernal. El neoconstitucionalismo a debate, p. 13-23. 320 GARCÍA AMADO, J. A. apud PULIDO, Carlos Bernal. El neoconstitucionalismo a debate, p. 17. 321 Id., ibid, p. 18. 322 Id., ibid., p. 20.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
277
axiológico e argumentativo que acaba por ressaltar o papel interpretativo (e construtivo)
do Poder Judiciário na definição e maximização do conteúdo dos direitos fundamentais.
Em sentido contrário, o autor defende um “controle judicial de mínimos” restrito àquelas
“normas que manifestamente vulnerem a semântica dos enunciados constitucionais323”.
Neste sentido, García Amado defende uma regra de preferência em favor do
legislador – in dubio pro legislatore – no momento de estabelecer quem tem a última
palavra na zona de penumbra ou no âmbito de abertura do texto constitucional. Esta
preferência traduz-se em um convite à auto-restrição (self-restraint) por parte da
jurisdição constitucional principalmente naquelas hipóteses em que o texto
constitucional nada nos diz, ou seja, quando se encontra aberto a uma pluralidade de
concretizações politicamente possíveis ou, nas palavras de Häberle, ao “pensamento
possibilista” que define a própria democracia como “reversibilidade de toda
possibilidade e alternativa que surja no marco constitucional324”. A mesma conclusão é
válida, ainda mais fortemente, para aqueles casos nos quais o texto constitucional
pretendeu ser taxativo, decidindo por não incluir dispositivos jurídicos existentes em
documentos constitucionais passados.
Robert Alexy propõe uma tentativa de solução para este dilema entre
constitucionalismo e democracia ao desenvolver recentemente uma dogmática das
margens de ação325. A Constituição é compreendida pelo autor como uma “ordem
marco”, que deixa para o legislador uma ampla margem de ação estrutural para a eleição
dos fins políticos em conformidade com os direitos fundamentais (que definem uma
ordem fundamental em sentido qualitativo) e bens coletivos tutelados
constitucionalmente, assim como a definição dos meios para a promoção de tais fins.
Segundo esta visão, “se reconhece que a legislação não é uma mera aplicação dos
princípios entendidos como mandados de otimização326”. Neste sentido, argumenta
Carlos Bernal Pulido com apoio nas reflexões de Robert Alexy:
“As disposições de direitos fundamentais não ordenam nem proíbem nada,
nem sequer implicitamente, para muitos casos. Isto se faz evidente quando o
resultado da ponderação é um empate. E ali onde a Constituição nada
prescreve, o legislador tem a competência para decidir. Quando esta
323 Id., ibid., p. 19. 324 HÄBERLE, Peter. Pluralismo y constitución: estudios de teoría constitucional de la sociedad abierta, p. 68. 325 Sobre a teoria das margens de ação, confira: ALEXY, Robert. Epílogo a la teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Fundación Beneficentia et Peritia Iuris, 2004. 326 PULIDO, Carlos Bernal. El neoconstitucionalismo a debate, cit., p. 63.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
278
circunstância se apresenta na ponderação, o Tribunal Constitucional deve ser
deferente com esta competência legislativa”.327
O neoconstitucionalismo em sua versão “inflacionada” ou “expansionista”, ao
preconizar um ideal de Constituição “invasora” e “onipresente”, não é compatível com
uma visão aberta da democracia como “pluralismo de iniciativas e de alternativas328”. A
tese da força irradiante dos direitos fundamentais, se levada às últimas conseqüências,
resulta na completa conformação da atividade legislativa, ou seja, na afirmação de que
“na Constituição de direitos não há espaço isento para o legislador porque todos os
espaços aparecem regulados329”. O neoconstitucionalismo deve adequar-se a uma visão
experimentalista de democracia, deixando ao legislador eleito democraticamente, assim
como aos atores políticos que atuam no espaço público, a crítica, tematização e
proposição de novas alternativas institucionais para problemas que não foram decididos
no plano jurídico-constitucional ou, então, propor reformas, mediante emenda
constitucional, das decisões legais do passado.
Esta deve ser a regra de preferência: in dubio pro legislatore, pois é o
representante eleito democraticamente o agente mais legitimado para tomar decisões no
espaço de abertura da Constituição que, por sua vez, deve ser interpretado em um
sentido maximalista em favor do debate político. Segundo esta visão, o legislador
democrático é o legitimado inclusive para tomar uma decisão eventualmente errada,
pois é responsável politicamente pela mesma, enquanto o Poder Judiciário não. De um
ponto de vista hermenêutico, a dimensão objetiva dos direitos fundamentais não deve ser
compreendida como contendo sempre uma única resposta correta para a solução de
todos os problemas.
3.3. Interpretação e decisão do caso difícil da fidelidade partidária
3.3.1. Formalismo
O tema da fidelidade partidária é especialmente interessante na medida em que
nos mostra que, em última análise, a questão sobre como interpretar a nossa Constituição
é sempre uma escolha moral ou política em sentido amplo. Tal ponto ficou evidenciado 327 Idem. 328 HESSE, K. apud HÄBERLE, Peter. Pluralismo y constitución: estudios de teoría constitucional de la sociedad abierta, p. 67. 329 PULIDO, Carlos Bernal. El neoconstitucionalismo a debate, p. 12.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
279
pela pletora de posturas interpretativas reveladas no âmbito da discussão e decisão a
respeito dos MS 26.602, 26603 e 26.604 (STF). Entretanto, se por um lado parece
correto afirmar que a escolha por abordagens interpretativas possíveis, mas mutuamente
incompatíveis, reside em opções políticas, por outro não parece correto inferir, a partir
disso, que todas as escolhas ou abordagens interpretativas são iguais na quantidade de
teoria política e teoria moral que elas requerem dos juízes.
Alguns dos ministros entenderam que, no caso em tela, era necessário investigar
um amplo e complexo conjunto de elementos morais e políticos para alcançar alguma
solução. Tal posicionamento foi caracterizada no presente documento como sendo uma
postura pragmática330. Entretanto, outros fizeram uma opção política por abraçar um tipo
de interpretação de caráter mais formalista, entendendo que o texto da Constituição e o
significado que o acompanha era claro e, sendo assim, as opções dos juízes estavam
limitadas. Tais foram as posições do Ministro Eros Grau, no seu voto, e a do Procurador
Geral da República em sua sustentação oral. Os pormenores das razões envolvidas na
escolha entre uma postura mais ou menos particularistas são relevantes por si só e para
relacionar tais elementos com a questão da justiça e do acesso à justiça331. Porém, antes
de realizar a investigação cabe chamar a atenção para alguns pontos relevantes.
Os pragmatistas podem ser enquadrados dentro de uma categoria mais ampla,
denominada de “particularismo”. O particularista é aquele que não se sente constrangido
ou cerceado pelo texto da lei ou da Constituição (isso pode acontecer em função de uma
concepção ontológica sobre a natureza da linguagem ou por motivos políticos). Para o
particularista o texto e o seu significado mais imediato é no máximo o início da conversa
e nunca o fim da atividade interpretativa. Uma série de outros elementos devem ser
levados em consideração para que se possa alcançar a melhor decisão. A regra
expressada por um texto normativo não fecha as portas para que outras considerações
sejam levadas em conta no âmbito da decisão. Em suma, o particularista é aquele que
não mede esforços para ajustar a regra, trabalhando como um alfaiate, sempre que a
mesma aponta para um resultado diverso daquele pretendido pela totalidade das razões
relevantes ou pelos próprios propósitos da regra.
330 Cf. item 3.3.2 (O problema da mudança na interpretação da Constituição) deste relatório, p. 38, onde o que e porque entendemos como pragmatismo hermenêutico por parte dos Ministros do STF será aprofundado. 331 Cf. item 3.3.3 (Análise dos elementos da decisão) deste relatório, p. 42, onde destinamos algumas páginas para analisar e problematizar os elementos que participam do processo de decisão dos ministros do STF, e quais seriam as conseqüências ou origens dos posicionamentos frente aos diversos casos.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
280
Assim, a título de exemplo, se o propósito da Constituição é garantir o sistema
representativo proporcional a todo custo, desconsidera-se uma regra clara como aquela
extraída a partir da leitura do art. 55 da CF, que dispõe de forma direta e límpida quais
são as condições taxativas para a perda do mandato. A pergunta que fica no ar é a
seguinte: em um sistema onde as regras podem ser rotineiramente ajustadas ou afastadas
diante de cada caso concreto para que se possa alcançar os propósitos subjacentes, a
justiça, ou qualquer outra coisa considerada mais fundamental e que expressa o resultado
correto, é de fato um sistema de regras? Afinal, por que optar por um sistema de regras
(um sistema formalista), se é o particularismo que nos permite chegar, em tese, mais
próximo do justo? Antes de explorar a última questão, vejamos os compromissos dos
formalistas.
Em contraposição à postura particularista descrita acima é possível identificar
uma atitude interpretativa de caráter mais “formalista”. É importante frisar que o
formalista mais instigante não é aquele que adota uma concepção essencialista em
relação à linguagem. Conseqüentemente, acredita em um paraíso conceitual onde os
termos são totalmente (e absolutamente) claros, indicando uma única possibilidade
correta de atribuição de significado: ou, bem, algo pertence a um conceito ou não. Tal
espécie de conceitualismo aparece, por exemplo, no voto proferido no TSE pelo
Ministro Cezar Peluso, que entende que “no próprio seio do conteúdo significativo da
expressão “sistema proporcional”, está o primado dos partidos políticos e sua
conseqüente titularidade sobre as cadeiras conquistadas nas eleições332”. Inferir tudo isso
a partir da mera expressão “sistema proporcional” tomada isoladamente é, no mínimo,
polêmico.
Todavia, o formalismo não se confunde com o conceitualismo indicado acima. O
formalista é aquele que, por razões políticas ou morais, se compromete com o resultado
do significado padrão ou ordinário do texto, mesmo quando ele entende que talvez, do
ponto de vista moral ou político pessoal a sua opção seria diferente. Tal posição
formalista pressupõe a possibilidade de que em certas ocasiões o texto e o significado
imediatamente associado ao mesmo podem ser claros. Entretanto, a possibilidade de que
o texto venha a ser claro não significa que ele sempre o será, como acredita o
conceitualista. Nas situações de indeterminação ou intoxicação lingüística, geradas pela
textura aberta, vagueza, ambigüidade ou carga afetiva da linguagem, o processo de
332 Confira o voto do Min. Cezar Peluso na Resolução nº 22.526 (TSE) disponível em <www.tse.gov.br>.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
281
interpretação do responsável pela aplicação do texto é mais construtivo e criativo e
menos um processo de constatação e descoberta. Nas circunstâncias de indeterminação,
não existe diferenças profundas entre o modus operandi do particularista e do formalista.
O ponto que diferencia os dois é a atitude adotada diante dos casos que se enquadram
dentro do núcleo de significado da regra. Para o formalista, as regras direcionam o foco
do aplicador ou intérprete, que só pode procurar os fatos considerados relevantes pelas
categorias engessadas das regras. O particularista pode afastar, revisar ou recalibrar a
regra sempre que as suas categorias indicam um resultado que não está de acordo com o
que imaginam ser a solução correta.
Sendo assim, os formalistas são capazes de diferenciar o direito como um campo
prático distinto dos domínios da moral e do político. Tal posição formalista fica bastante
acentuada no voto do Ministro Eros Grau e na sustentação oral do Procurador-Geral da
República. Ambos fazem questão de demarcar limites de atuação do intérprete,
sugerindo que o texto, quando o seu significado é claro, pode obstar considerações
políticas e morais pessoais. Vejamos.
O Ministro Eros Grau diz:
“Permito-me, para dizer que a simpatia ou antipatia pessoal por esse ou
aquele modelo de fidelidade partidária não pesa em relação à decisão que nos
cabe tomar, mencionar que ontem, quando me faltou a voz, na exposição de
meu voto, ecoaram em meus ouvidos algumas palavras que eu gostaria de ter
pronunciado. Para afirmar que sentia recalcitrar a miserável garganta, aliás
um dos órgãos mais resistentes do meu sadio organismo; para repetir o que
foi dito em Santa Maria, no dia 20 de setembro de 1908: ´[não] importa, com
garganta ou sem ela é preciso falar e hei de falar’. A minha simpatia em
matéria de fidelidade partidária pelo pensamento de Assis Brasil não conta
em relação à decisão a ser tomada a partir e nos limites do texto da
Constituição333”.
E o Procurador-Geral da República afirma:
“Comungo das intenções e dos pressupostos éticos e políticos que inspiraram
a decisão do TSE, mas não creio que umas e outros autorizem a adotação de
interpretação que conduza à desconsideração de mandato eletivo em hipótese
333 Cf. MS 26.602-3 e MS 26.604, disponíveis em <www.stf.gov.br>.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
282
não contemplada no artigo 55 da Constituição. Sobre o tema - perda de
mandato - considero que a Constituição é exaustiva334”.
Em fim, a questão a ser formulada neste momento naturalmente é por que optar
por um modelo formalista que exclui de antemão a possibilidade de se alcançar o melhor
resultado para cada caso. Afinal, os formalistas se sentem constrangidos pela linguagem
utilizada no documento. Ou seja, esses constrangem-se pelas categorias previamente
selecionadas pelo legislador, enquanto o particularista, se sente à vontade para afastar ou
recalibrar a regra na tentativa de alcançar o seu espírito ou propósito subjacente, ou
simplesmente para poder chegar à resposta correta ou mais justa.
Colocado dessa forma, o modelo formalista parece ser mais um modelo que
frustra o acesso à justiça do que o modelo particularista. Entretanto, também pode existir
uma dimensão de justiça substancial na opção pelo formalismo. O formalismo é uma
forma de garantir maior segurança e previsibilidade. Mas, um modelo formalista é capaz
de garantir a alocação de poder, o que é ainda mais importante. Se regras claras são
sempre reconstruídas de acordo com certos propósitos ou metas pessoais diante de cada
caso concreto, então as regras nunca estão fazendo qualquer trabalho normativo e ou
alocando poder.
A própria noção de separação de poderes pressupõe o uso de regras. A
diferenciação de funções pressupõe a existência de regras. Se regras nunca fossem
levadas a sério, nenhum tipo de decisão poderia ser tomada previamente por outro órgão
qualquer, cabendo, na verdade, sempre àquele que tem a última palavra. Em nossa
sociedade, acreditamos que certas decisões cabem aos órgãos representativos por
excelência, aqueles que foram eleitos, e não aos caprichos do julgador não eleito com a
sua visão particular do justo, do correto, ou dos propósitos do direito, por mais que de
acordo com alguma moral crítica desconhecida ele possa estar certo. Finalmente, se
acreditamos que os juízes erram mais que acertam quando tentam alcançar o justo
afastando as regras, então temos boas razões para desenhar as nossas instituições de tal
forma que os julgadores não se sintam tão à vontade para exercer esta prerrogativa,
justamente entendida como arbitrária.
Para fazer isso, temos que criar boas razões prudenciais para não deixá-lo
totalmente à vontade em fazer o que acha que é o certo, em detrimento daquilo que foi
previamente estabelecido. É importante perceber que tal argumento é contingente. Se
334 Cf. MS 26.602-3 e MS 26.604, disponíveis em <www.stf.gov.br>.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
283
acreditamos e confiamos nos juízes, principalmente nos juízes de última instância, então
temos boas razões para deixá-los à vontade para tratar as regras como sendo flexíveis e
maleáveis. O Observatório da Justiça Brasileira pode funcionar como um mecanismo de
desenho institucional, realizando uma fiscalização constante não só do Judiciário, mas
da justiça, mostrando quando o afastamento das regras parece ser adequado e aceito pela
sociedade e pelos diversos movimentos sociais e quando o apego ao que foi prévia e
claramente estabelecido parece ser a postura mais adequada e aceita335.
Quando se fala em "desenhos institucionais", não se está englobando apenas a
situação na qual novos arranjos institucionais são confeccionados ex nihilo. A expressão
obviamente abarca o caso supracitado, e é mais freqüentemente utilizada para fazer
referência ao projeto de examinar arranjos sociais existentes na tentativa de estabelecer
se são satisfatórios ou se requerem algum tipo de modificação. Em outras palavras, a
empreitada dos desenhos institucionais tem sido mais a de pensar e remodelar
instituições previamente existentes do que a de conferir a forma inicial de instituições.
Assim, o uso rotineiro da expressão "desenhos institucionais" abarca primordialmente a
preocupação com a necessidade e modo de se realizar intervenções institucionais.
Além disso, cabe ressaltar que a preocupação com os desenhos institucionais é
um projeto não elitista por excelência. Afinal, quando se pensa sobre para quem é a
teoria dos desenhos institucionais e quem são os potenciais desenhistas, fica claro que
todos os interessados devem participar. Em uma democracia, ao menos em tese, todos os
cidadãos têm interesse acerca dos modos de arranjo da vida social, quem deve operar as
mudanças mais significativas nesses arranjos e de que forma isso deve ser feito. Nas
palavras de Pettit:
"Em toda sociedade existente, há, sem sombra de dúvida, uma variedade de
problemas severos, e todo aquele que se sente movido para pensar acerca
desses problemas deve ter um interesse na empreitada dos desenhos
institucionais; o caráter do exercício não é elitista336".
Reconhece-se, todavia, que há uma participação diferenciada nesse processo por
cada um dos desenhistas e que nem sempre há uma igualdade de oportunidades,
promovendo por vezes uma inserção assimétrica na modelagem e nos processos
335 Cf. item 4 (Considerações Finais), p. 44. 336 PETTIT, P. Institutional design and rational choice. In: Goodin, R (Ed.). The theory of institutional design. New York: Cambridge University Press, 1998.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
284
decisórios. Uma instituição bem desenhada não é só aquela que apresenta um encaixe
consistente com outras instituições internas e uma harmonia com instituições externas,
mas, além disso, é importante que a empreitada responda a certos anseios morais da
sociedade.
3.3.2. O problema da mudança na interpretação da Constituição
O tema da fidelidade partidária tratada nos MS 26.602, 26.603 e 26.604 assume
especial importância pela problemática que gera em torno da questão da interpretação
constitucional e da previsibilidade de suas decisões para a vida dos cidadãos. Foi um
caso de alteração significativa na Constituição, sem que o seu texto tenha sido
modificado. A partir de resoluções firmadas pelo Tribunal Superior Eleitoral no início de
2007, passou-se a entender que a mudança de partido político por parlamentar implica a
perda do seu mandato. Dessa forma, foi estabelecida a data de 27 de março de 2007 em
que o Tribunal Superior Eleitoral manifestou-se a respeito do assunto, antes do que era
possível a troca de partido sem a perda do mandato. A instância máxima da Justiça
Eleitoral no país entendeu, também, que, após essa data, os partidos estão autorizados a
procederem pedidos de perda dos mandatos políticos daqueles seus representantes que
deixaram as suas siglas partidárias originais. Diante da manifestação de recusa de assim
autuar pela Mesa da Câmara dos Deputados, determinados partidos políticos impetraram
respectivos mandados de segurança junto ao Supremo Tribunal Federal.
Nesse contexto específico, passamos, ainda que brevemente, a uma análise dos
pressupostos pragmáticos que levaram a uma tomada de posição da nossa Jurisdição
Constitucional no tocante à manifestação do TSE sobre o “troca-troca” partidário, bem
como à compreensão que tem sobre os seus limites da interpretação. Neste ponto, vale
lembrar determinados votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal apontando para
categorias do teor de mutação ou de ruptura constitucional como termos antagônicos. O
primeiro, assinala alteração da norma, resultado da interpretação, sem alteração do
texto. Isto é, o limite máximo de alteração de um determinado significado da lei, sem
alterar o seu texto. No segundo caso, quando a interpretação extrapola os limites legais,
a ruptura, inaceitável teoricamente, tem lugar.
Nessa linha de raciocínio, sem dúvida alguma, encontra-se um aspecto
pragmático da questão, que se revela na contextualização do problema, nos dados
empíricos que auxiliam em sua compreensão e nas conseqüências antevistas por quem
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
285
decide. É uma visão que pouco se ancora nos valores ou objetivos visados, de antemão,
na lei. Os seus aspectos, empírico e futuro, apontam para uma dimensão não
propriamente valorativa e perene. Acentua o que é contingente, em função dos efeitos
que gera. Pode-se, a partir daí, dimensionar o acerto da decisão, em função do seu
impacto na vida dos cidadãos. A práxis cotidiana, afetada por todo tipo de demanda e
necessidade, muitas vezes prevalece sobre ideais de ordem valorativa. Problemas
concretos sobressaem.
No caso em pauta, o STF lança-se, ao examinar a citada decisão do Tribunal
Superior Eleitoral, em referendar, também, uma tarefa moralizadora. Busca alterar uma
prática abusiva que fere os fundamentos básicos do Estado Democrático de Direito. O
contexto demanda uma tomada de posição mais do que simplesmente direcionada ao
caso particular. Decide-se em sentido instrumental, como outra característica do
pragmatismo jurídico. As decisões dessa ordem possuem alcance político e o STF sente-
se legitimado a fazê-lo enquanto intérprete autêntico da Constituição que, como carta
política, enseja ações também políticas.
Notamos nos votos do Ministro Celso de Mello e da Ministra Carmen Lúcia a
força do contexto. É triste, afirma a Ministra, “ter de se tratar, ainda hoje, do
comportamento reiterado de troca de partidos e de suas causas e efeitos para o sistema
político...”, citando Victor Nunes Leal, autor de Coronelismo, Enxada e Voto337.
Comportamento este que gera insegurança na vida dos eleitores. “A mudança dos
parlamentares de um para outro partido também gera insegurança”338. São premissas
contextuais que apontam muito para a tomada de decisão, em lugar de pensarmos apenas
na força das regras positivadas ou nos valores nela guarnecidos.
De acordo com o Ministro Celso de Mello,
“Episódios notórios e lamentáveis de nossa recente história político-eleitoral,
que registram sucessivas transmigrações partidárias, com desrespeito
evidente e frontal à vontade soberana dos eleitores, (...) evidenciam um
comportamento que ofende a própria integridade do modelo consagrado pela
Constituição”. (19).
Ou seja, a partir de comportamentos verificados na prática o juiz analisa o
dispositivo legal para a tomada de decisão. O conhecimento da realidade a partir do
acesso a dados empíricos comprovadores com certeza levaram o Ministro Ricardo
337 Cf. MS 20.602, 20.603 e 20,604, p. 73, disponível em <www.stf.gov.br>. 338 Cf. Idem, p. 109, disponível em <www.stf.gov.br>.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
286
Lewandowisky a condenar a infidelidade partidária. Analisa-se a trajetória da
consolidação dos partidos no Brasil com base na alternância de governos ditatoriais e
democráticos para, a partir daí, firmar uma convicção sobre a necessidade da
arregimentação político-partidária, fruto da conquista pela institucionalização da
democracia. Mas apesar de mostrar preocupação com a mudança radical no sentido da
jurisprudência do STF, rende-se ao que mostram os dados: em 16 anos, 846
parlamentares (28,8%) trocaram de partido 1, 2, 3 e até 4 vezes, perfazendo um total de
1035 migrações339. Pesquisa esta que apresenta uma tendência à migração partidária.
Portanto, não se trata da existência de casos isolados, mas da probabilidade de
acontecimentos futuros. A (ou uma) questão está em torno da força dos fatos sobre o
direito; sobre o que podemos apresentar em determinado momento como direito.
Lançar-se sobre concepções de ordem pragmática pode levar, muitas vezes, a um
ativismo judicial que resulte na realização de um fenômeno: a judicialização da política.
Em linhas gerais, queremos dizer com isso que o Tribunal se ocupa de questões em
princípio sob a alçada do Poder Legislativo, casa da representação popular. O Ministro
Eros Grau mostra sua preocupação no sentido de o STF atropelar a obra do legislador:
“(...) consta que o Poder Legislativo vem atuando em direção à implantação de uma
reforma política, no bojo da qual o item da fidelidade partidária compõe-se entre os
temas prioritários.” Por isso mesmo, diz o Ministro, “a usurpação, pelo Poder Judiciário,
de função de Poder Constituinte derivado já em si consubstancia ‘quebra
constitucional’.” Quer dizer, a extrapolação dos limites de interpretação possível,
respeitando-se o texto constitucional.
Assim, não apenas nos defrontamos com o problema da interferência indevida do
Judiciário no Legislativo, como nos deparamos com situações em que o intérprete vai
além do permitido. O limite seria o da “mutação constitucional”, compreendida como o
poder de alterar-se o significado do texto sem mexer na sua estrutura gramatical.
Ultrapassado esse limite, poderíamos, com o Ministro Eros Grau, falar em “quebra” da
Constituição, o que fugiria ao poder do Tribunal. Alterar o texto constitucional é tarefa
do poder constituinte derivado, consagrado na Casa Parlamentar. Ao Tribunal compete
apenas, o que não é pouco, a sua aplicação. Este tem sido um tema sensível e de grande
interesse tanto para teóricos quanto para o próprio Judiciário. É a partir daí que se
definem os limites do seu poder de criação ou os limites do seu ativismo340.
339 Cf. idem, p. 20, disponível em <www.stf.gov.br>. 340 Confira o item 3.1. sobre a judicialização da política e o ativismo judicial.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
287
No momento em que o STF se esforça em aumentar sua força sobre todo o
sistema, decorrente da posição hierárquica que ocupa, o tema da mutação entra em cena.
Na Reclamação Constitucional nº 4.335, no denominado caso do Acre, vale ressaltar, a
Corte já aparece com uma postura forte, a provocar a crítica de boa parte dos
constitucionalistas brasileiros. Talvez, algo que deva merecer uma reflexão e
justificativa mais ponderada é dizer que, sob o argumento de um novo contexto
normativo, nas palavras do Ministro Gilmar Mendes, o Senado Federal é encarregado
simplesmente da publicação das leis declaradas inconstitucionais em última instância
pelo STF enquanto o texto constitucional expressamente prevê um papel ativo à câmara
alta do Congresso nos procedimentos de controle de constitucionalidade. Na ocasião, o
Ministro Eros Grau identificou o caso de “mutação”, enquanto agora, no caso da
fidelidade, condena a possibilidade de o intérprete entender como acolhidos nos
princípios constitucionais a tese da fidelidade. A partir da interpretação restritiva do
artigo 55 de nossa Constituição, que prevê as possibilidades de perda de mandato pelo
parlamentar, fica afastada a possibilidade de se ver apoio para este entendimento
considerando determinados princípios constitucionais.
3.3.3. Análise dos elementos da decisão
Especial consideração merece o estudo dos elementos da decisão no caso da
fidelidade partidária. Se for exigida do Poder Judiciário uma atitude de coerência,
previsibilidade e, sobretudo, racionalidade na tomada de decisões, não pode ser olvidado
o valor dos precedentes no labor jurisprudencial, seja em sua função meramente
persuasiva, seja em sua eficácia vinculante por meio do controle abstrato de
constitucionalidade.
O caso da fidelidade partidária revelou uma forma especial de ativismo judicial,
e que gerou certa polêmica. Embora os impetrantes dos mandados de segurança341
tenham obtido uma decisão denegatória, a menção de que a pretensão referente à perda
dos mandatos poderia, mediante o devido processo legal, ser deferida pela Justiça
Eleitoral foi suficiente para deixá-los satisfeitos.
Cabe indagar: seria tal menção um obiter dictum ou a ratio decidendi do
acórdão? Estariam os órgãos do Poder Judiciário obrigados a observar tal decisão?
341 MS 26.602 (Relator Ministro Eros Grau), MS 26.603 (Relatora Ministra Cármen Lúcia) e MS 26.604 (Relator Ministro Celso de Mello), disponíveis em <www.stf.gov.br>.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
288
Mostra-se fundamental a identificação dos elementos objetivos (RATIO
DECIDENDI E OBITER DICTUM) da decisão como ferramentas cognitivas do intérprete.
Tal instrumental teórico afigura-se importante para que o observador e o aplicador do
direito estejam cientes não só dos elementos determinantes da decisão, mas também do
seu alcance.
Com efeito, a ratio decidendi para a denegação dos remédios constitucionais foi
no sentido de que a perda de mandato dos parlamentares eleitos e que trocaram de
partido só poderia ocorrer após instrução probatória que apurasse a inexistência de
perseguição política do parlamentar ou mudança na ideologia do partido. Como não há
fase específica para a produção de provas no mandado de segurança, os writs foram
denegados.
É de se observar que para chegar-se à conclusão acima era preciso responder se
havia o direito de os partidos aplicarem, por via judicial, a sanção de perda de mandato.
Embora o conceito de sanção (até então pacífico na tradição da Corte considerando os
precedentes atrelados aos casos de fidelidade partidária) tenha se revelado polêmico no
curso do julgamento, surpreendentemente prevaleceu o entendimento de que não haveria
pena na perda de mandato simplesmente pelo fato de a troca de partido se tratar de ato
lícito. Na verdade, não restou clara a natureza do ato que decreta a perda do mandato,
em primeiro lugar, porque era gravoso para a esfera do parlamentar; em segundo lugar,
porque para a sua decretação haveria a necessidade de conferir ao parlamentar o direito à
ampla defesa. Obviamente, se fosse reconhecida a natureza de sanção (pena) à perda de
mandato, esta não poderia ser aplicada, em virtude do princípio da legalidade,
lembrando-se que o art. 55 da Constituição Brasileira de 1988 não contempla a hipótese
de perda de mandato por troca de partido.
Em resumo, a vexata quaestio desdobrava-se em duas questões: 1) se havia o
direito dos partidos de aplicarem, por via judicial, a sanção de perda de mandato; 2) se
este direito poderia ser exercido por via de mandado de segurança.
Curioso notar que, do ponto de vista técnico, a adequação da via mandamental
deveria ter sido julgada em primeiro lugar, já que configura uma questão processual (e
não de mérito). Realmente falece interesse processual ao impetrante de mandado de
segurança que objetiva a declaração de perda de mandato em razão da inviabilidade de
se conferir uma fase de instrução para apurar a existência de perseguição política ou
mudança de ideologia do partido. No entanto, a questão de mérito (direito à declaração
de perda de mandato) foi enfrentada antes da questão processual (interesse-adequação).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
289
Isto causa um certo desconforto na caracterização da questão de mérito como ratio
decidendi, já que ela não foi determinante para a decisão denegatória dos writs.
Cumpre, no entanto, reconhecer, que a questão de mérito (direito à declaração de
perda de mandato) enfrentada pela Corte Constitucional findou por orientar outros
tribunais e sinalizou como será a decisão em casos futuros, embora tenha o valor de
mera “afirmação incidental” (obiter dictum).
Resta examinar, ainda, se os órgãos do Poder Judiciário estariam obrigados a
observar tal decisão.
Recorde-se que no âmbito do controle de constitucionalidade não só a parte
dispositiva, mas também os fundamentos determinantes (ratio decidendi) têm eficácia
vinculante, de acordo com o parágrafo único do art. 28 da Lei 9.868/99.342
Uma primeira observação é a de que a decisão do caso da fidelidade partidária
ocorreu em sede de mandado de segurança sendo, por esta razão, inaplicável a referida
lei. Em outras palavras: a decisão não possui eficácia vinculante para os órgãos do Poder
Judiciário.
Em segundo lugar, embora tenha a discussão referente ao direito à declaração de
perda de mandato ocupado uma posição de destaque no julgamento, parece mais
acertado atribuir mero valor de obiter dictum (afirmação incidental) à questão de mérito
ventilada, com eficácia meramente persuasiva.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em um contexto de intensificação do processo de judicialização da política, o
STF assume o importante papel de um ator institucional estratégico no sistema político
brasileiro. O recente protagonismo dos tribunais no cenário político nacional determinou
uma profunda alteração nos cálculos elaborados pelos diferentes atores políticos,
institucionais ou não, para o arranjo, composição e consecução de seus objetivos, seja no
tocante à implementação de políticas públicas, seja em relação à modificação das regras
342 Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal. Cf. IVES GANDRA DA SILVA MARTINS e GILMAR FERREIRA MENDES, Controle Concentrado de Constitucionalidade, p. 337 e ss.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
290
do jogo democrático. Neste sentido, “o governo, além de negociar seu plano político
com o Parlamento, [tem] que se preocupar em não infringir a Constituição343”.
Semelhante afirmação também é válida para a atuação do Poder Legislativo
diante da eficácia expansionista dos direitos fundamentais apregoada pelo
neoconstitucionalismo. Como bem lembra Oscar Vilhena Vieira, a equação é bastante
simples: “se tudo é matéria constitucional, o campo de liberdade dado ao corpo político
é muito pequeno344”. Neste ponto há um importante trade-off em regra esquecido pela
teoria neoconstitucional: quanto maior a amplitude e intensidade da dimensão objetiva
dos direitos fundamentais concebidos como princípios com forte conteúdo axiológico,
menor será o espaço de livre conformação do legislador democrático, assim como o da
sociedade civil para o exercício de sua “imaginação institucional”. Dessa forma,
“qualquer movimento mais brusco gera um incidente de inconstitucionalidade e,
conseqüentemente, a judicialização de uma contenda política345”.
O texto constitucional não deve ser compreendido como sempre contendo uma
única resposta para todas as questões ou controvérsias políticas, econômicas e morais.
Esta modalidade de leitura da Constituição é perfeccionista, ou seja, “tenta fazer da
Constituição o melhor que ela pode ser346”, interpretando-a, sempre que possível, a partir
de “questões profundas” e, em geral, também controversas diante do fato do pluralismo
que define as democracias contemporâneas. Esta visão excessivamente axiológica
concebe o resultado do jogo político como algo fortemente pré-definido pelo direito,
aproximando a Constituição de um modelo puramente material, segundo o qual, em
última análise, “para tudo existe a previsão de um mandado ou uma proibição”.347 Outra
dimensão importante deste processo é a reiterada utilização dos tribunais superiores
como instâncias de revisão política da deliberação legislativa, fomentada por atores
políticos agrupados de modo minoritário no Poder Legislativo. Deste modo, é
importante destacar que, nos casos aqui estudados, são os próprios legisladores os
responsáveis por demandar do Supremo Tribunal Federal um pronunciamento jurídico-
constitucional sobre tais questões.
343 CARVALHO, Ernani Rodrigues de. Em busca da judicialização da política no Brasil: apontamentos para uma nova abordagem. Revista de Sociologia Política, p. 115. 344 VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia: vícios e virtudes republicanas. Jornal O Valor, 06/11/2007. 345 Idem. 346 SUNSTEIN, Cass. Radicals in robes: why extreme right-wing Courts are wrong for America, p. xii, grifo nosso. 347 ALEXY, Robert. Epílogo a la teoría de los derechos fundamentales, p. 30.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
291
Tendo em vista o processo de judicialização da política, o relatório procurou
desenvolver uma abordagem mais ampla da temática do acesso à justiça, capaz de
abarcar a análise de um ativismo judicial que tem gerado efeitos políticos relevantes
sobre a atuação dos demais poderes. Neste sentido, diante do caráter maximalista, isto é,
ao mesmo tempo amplo e profundo, do escopo e do conteúdo das decisões do STF
analisadas neste relatório, não há uma clara distinção entre o obter dictum (afirmações
incidentais) e a sua ratio decidendi (fundamentos determinantes da decisão). Tal
afirmação culmina na constatação de que ambos os elementos da decisão acabam por
exercer, indistintamente, forte apelo persuasivo sobre a atuação dos demais poderes e da
sociedade civil, concentrando a decisão de questões que, por diferentes motivos,
deveriam permanecer em aberto para posterior deliberação democrática. Além disso, ao
centralizar as principais decisões sobre temas políticos e morais controversos, o STF
gera conseqüências importantes também na esfera pública, pois tais decisões podem
constituir um estímulo ora positivo, ora negativo, sobre a participação popular na
deliberação, tematização e elaboração de soluções criativas para questões polêmicas na
sociedade.
Revela-se igualmente importante a identificação dos elementos objetivos da
decisão (RATIO DECIDENDI E OBITER DICTUM, MANCIONADOS ACIMA) como
ferramentas cognitivas do intérprete. Entende-se que a decisão referente à questão de
mérito (direito à declaração de perda de mandato) enfrentada pelo Supremo Tribunal
Federal no caso da fidelidade partidária findou por orientar outros tribunais e sinalizou
como será a decisão em casos futuros, embora tenha apenas o valor de obiter dictum,
com eficácia meramente persuasiva.
Observa-se, também, que o Supremo Tribunal Federal tem dado demonstrações
em seus julgados no sentido de preservar as decisões do Poder Judiciário348,
particularmente em relação aos casos difíceis analisados neste relatório. Os acórdãos
estudados, em regra, citam entendimentos adotados por ministros, atuais e antigos,
legitimando, assim, a própria atuação do tribunal em tais casos. No entanto,
posicionamento semelhante não tem ocorrido em relação às decisões e escolhas do Poder
Legislativo, como ficou patente no caso emblemático da cláusula de barreira, no qual o
STF, assumindo uma postura abertamente ativista, invalidou uma decisão
democraticamente tomada pelo Legislativo.
348 Em especial, as decisões do Tribunal Superior Eleitoral.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
292
Caberia avaliar em futuros estudos do Observatório da Justiça Brasileira, se tal
comportamento adotado por nossa jurisdição constitucional não seria oriundo de uma
espécie de tratamento corporativo adotado pelo STF no sentido de resguardar as
instâncias de poder e de competências inerentes ao Poder Judiciário. Também merece
ser investigado, uma vez institucionalizado o OJB, se há uma natureza política nesse
“conflito” entre o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal. Outra linha de
pesquisa que justifica termos um espaço investigativo como o OJB é o fato de que a
nossa jurisdição constitucional procura legitimar-se, por meio de novos conceitos
(sentença de perfil aditivo, por exemplo), e de modo nem sempre explícito, como
instância "criadora de norma". Esta autocompreensão produz conseqüências graves,
principalmente para a desconsideração ou afastamento do legislador devido a uma
propalada inércia normativa.
Resta também em aberto a definição de acesso à justiça, e por diversas razões.
Argumenta-se que a morosidade do Poder Legislativo na edição de leis tem transferido
para o Supremo Tribunal Federal a tarefa de regulamentar temas sem consenso na
sociedade. Essa aparente usurpação de competência normativa vem estabelecendo certo
atrito entre os Poderes de Estado, particularmente tensões entre o Poder Judiciário e o
Poder Legislativo, inclusive com repercussão na mídia. Constata-se a presença de um
ativismo judicial cada vez mais forte e com significativa interiorização de questões
políticas no âmbito judicial, rompendo com a tradicional concepção de um Supremo
Tribunal Federal como órgão de fiscalização negativa da constitucionalidade das leis.
Por meio de decisões recentes do STF, são regulamentadas matérias controvertidas cujas
transformações e implicações atuais, argumentam os ministros, o Legislativo não
consegue acompanhar. Cabe ressaltar que não foram vislumbradas tentativas de diálogo
entre o STF e o Poder Legislativo nos casos estudados, comprovando, assim, o grande
descompasso nas relações políticas entre os dois poderes.
É possível identificar um processo conflituoso não só na relação político-
institucional entre os poderes, mas igualmente no corpo das decisões que se fundam ora
em razões morais, ora em razões pragmáticas, ora na legalidade estrita. Neste sentido,
procurar-se-á, com o posterior aprofundamento do estudo sobre o processo decisório do
Supremo Tribunal Federal nos hard cases mencionados em nosso documento-base,
alcançar uma melhor compreensão sobre o contexto de descobrimento e o contexto de
justificação de tais decisões no âmbito do STF, assim como os seus efeitos sobre o Poder
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
293
Legislativo, o Poder Executivo e a sociedade civil. Deste modo, espera-se criar um
controle mais efetivo e uma maior previsibilidade das decisões.
Assim, com a institucionalização do OJB, as questões encontradas para uma
investigação mais abrangente são:
1. As alternativas de acesso à justiça e sua relação com o protagonismo institucional
do STF;
2. Qual é a correlação política de forças existente entre o Poder Judiciário e o Poder
Legislativo, particularmente entre o Congresso Nacional e o STF nos casos
difíceis que ainda serão estudados?
3. Aprofundar o tema do ativismo judicial e suas modalidades;
4. Que variáveis relacionadas a um caso difícil são determinantes para a opção por
um modelo mais pragmático ou mais formalista de decisão?
A partir de uma análise histórica, foi possível identificar uma trajetória ativista
de atuação do STF inclusive antes do advento da Emenda Constitucional nº 45/04 em
decorrência, em grande parte, da nova composição do tribunal. A partir da análise dos
casos mencionados neste relatório, constatou-se uma postura por parte de nossa Corte
Constitucional no sentido de não preservar a figura do legislador dentro de uma tradição
kelseniana. Diversamente, o STF vem assumindo uma postura que não só é contrária a
essa perspectiva democrática recomendada por Hans Kelsen, como se pauta por uma
orientação bem nítida, qual seja: a de preservar mais as decisões oriundas do próprio
espaço do Poder Judiciário. Para legitimar a sua própria atuação, o STF tem recorrido à
noção de um "Judiciário de portas abertas para a sociedade349”.
Por último, cabe destacar que, além do presente relatório, três foram os
produtos elaborados pelo Grupo 5 (UFRJ) para o Projeto Dossiê Justiça: (1.) o
mapeamento das reformas legislativas decorrentes do advento da Emenda
Constitucional nº 45/04, (2.) o relatório sobre a proposta de estruturação do
Observatório da Justiça Brasileira e (3.) o organograma (em powerpoint) sobre a
estruturação do OJB. Foi criado, ainda, um blog – intitulado “Supremo em
Debate” - para a discussão de temas relacionados à pesquisa do Grupo. As
principais propostas institucionais formuladas pelo Grupo 5 (descentralização,
participação de Programas de Pós-Graduação e de Centros de Pesquisa por meio
349 Comentário do Min. Marco Aurélio de Mello realizado durante o julgamento da ADI 1351, p. 89, disponível em <www.stf.gov.br>.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
294
de Editais (projetos), Comitês “ad hoc” e participação da Capes e do CNPq) foram
aceitas e incorporadas ao projeto final de estruturação do Observatório da Justiça
Brasileira, como é possível depreender a partir da comparação entre os anexos C e
D.
5. REFERÊNCIAS
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
295
ALEXY, Robert. Direitos fundamentais no Estado constitucional democrático: para a
relação entre direitos do homem, direitos fundamentais, democracia e jurisdição
constitucional. Revista de Direito Administrativo, 217, 1999, p. 55-66.
__________. Epílogo a la teoría de los derechos fundamentales. Traducción de Carlos
Bernal Pulido. Madrid, Fundacion Beneficentia et Peritia Juris, 2004.
BARBOSA, Rui. Obras Seletas de Rui Barbosa – Trabalhos Jurídicos, Rio de Janeiro:
Casa de Rui Barbosa, 1962.
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo:
Editora Ícone, 1995.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Estado de Direito. Lisboa: Editora Gradiva, 1999.
CAPPELLETTI, Mauro. GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie
Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.
CARVALHO, Ernani Rodrigues de. Em busca da judicialização da política no Brasil:
apontamentos para uma nova abordagem. Revista de Sociologia Política,
Curitiba, 23, 2004, p. 115-126.
EISENBERG, José. Pragmatismo, direito reflexivo e judicialização da política. In:
VIANNA, Luiz Werneck (Org.). A democracia e os três poderes no Brasil. Belo
Horizonte: Editora UFMG, Rio de Janeiro: IUPERJ/FAPERJ, 2002, p. 43-61.
GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Rio de Janeiro:
Editora Revan, 2001.
GUASTINI, Riccardo. La constitucionalización del ordenamiento jurídico: el caso
italiano. In: CARBONELL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid:
Editorial Trotta, 2003, p. 49-73.
HÄBERLE, Peter. Pluralismo y constitución: estudios de teoría constitucional de la
sociedad abierta. Madrid: Tecnos, 2002.
HIRSCHL, Ran. Towards juristocracy: the origins and consequences of the new
constitutionalism. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2004.
KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira. Controle Concentrado de
Constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 2001.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
296
PETTIT, P. Institutional design and rational choice. In: Goodin, R (Ed.). The theory of
institutional design. New York: Cambridge University Press, 1998.
PULIDO, Carlos Bernal. El neoconstitucionalismo a debate. Bogotá: Instituto de Estudios
Constitucionales, 2006.
SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo:
Cortez, 2007.
SCHAUER, F. The Constitution as text and rule. William and Mary Law Review, no 29,
p. 41-51, 1987.
__________. Rules, the Rule of Law and the Constitution. Constitutional Commentary,
no 6, p. 69-85, 1989.
__________. Playing by the rules: a philosophical examination of rule-based decision-
making in law and in life. Oxford: Oxford University Press, 1998.
__________. Determinants of judicial behavior (The Robert Marx Lecture), University of
Cincinnati Law Review, no 68, p. 615-36, 2000.
STRUCHINER, N. Para falar de regras: o positivismo conceitual como cenário para
uma investigação filosófica acerca dos casos difíceis do Direito. Tese de
Doutorado. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2005.
__________. Formalismo jurídico. In: BARRETO, V. P. (Coord.) Dicionário de Filosofia
do Direito. São Leopoldo/Rio de Janeiro: Editora Unisinos / Editora Renovar,
2006.
__________. “Choosing between decision-making models: A Spike Lee joint”. Trabalho
apresentado no 23rd World IVR Congress of Philosophy of Law and Social
Philosophy, Cracóvia, 2007.
SUNSTEIN, Cass. One case at time: judicial minimalism on the Supreme Court.
Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1999.
__________. Radicals in robes: why extreme right-wing Courts are wrong for America.
New York: Basic Books, 2005.
__________. Testing minimalism: a reply. Michigan Law Review, n. 104, I, p. 123-129,
2005.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
297
SUNSTEIN, C. VERMEULE, A. Interpretation and institutions. Michigan Law Review, n.
101, p.885-951, 2003.
SWEET, Alec Stone. Governing with judges: constitutional politics in Europe. New York:
Oxford University Press, 2000.
VERMEULE, A. Judging under uncertainty: an institutional theory of legal
interpretation. Cambridge: Harvard University Press, 2006.
VIEIRA, Oscar V. A Constituição e sua reserva de justiça: um ensaio sobre os limites
materiais ao poder de reforma. São Paulo: Malheiros, 1999.
__________. Supremocracia: vícios e virtudes republicanas. Jornal O Valor. 06/11/2007.
Referências eletrônicas:
<http://www.multcarpo.com.br/latim.htm>
<www.supremoemdebate.blogspot.com>
<www.stf.gov.br>
<www.tse.gov.br>
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
298
ANEXO A Mapeamento da Emenda Constitucional 45
(de Marcus Firmino Santiago)
Mapeamento das Reformas Legislativas Decorrentes do Advento da Emenda
Constitucional n. 45/2004
Marcus Firmino Santiago
Professor voluntário UnB
Ex-professor assistente UFRuralRJ
Ex-professor substituto UFRJ
Doutorando em Direito do Estado UGF/RJ
Mestre em Direito Público UNESA/RJ
Introdução
Dentro do conjunto de temas tratados pelo projeto denominado Observatório da
Justiça encontra-se o levantamento acerca da concreta implementação de medidas
legislativas tendentes a conferir plena aplicabilidade à Reforma do Judiciário, iniciada e
sustentada pela Emenda Constitucional n. 45/2004. Busca-se, desta forma, fornecer
subsídios para aferir o andamento deste plano, iniciado com a reforma constitucional,
mas que depende de uma plêiade de atos normativos, legais e infralegais, para se
completar, especialmente quando se tem em mira que as principais alterações
impulsionadas pela Emenda situam-se nos planos administrativo e processual, duas
esferas onde imperam a adstrição à legalidade.
O presente mapeamento se propõe a identificar as principais medidas apontadas
como necessárias à realização do projeto de aperfeiçoamento do acesso à justiça,
idealizado no seio da EC 45/2004. A Reforma do Judiciário, da forma como tratada
neste Emenda, deve ser concretizada por intermédio de alterações administrativas e
procedimentais, algumas previstas no próprio texto reformador e de aplicação imediata,
outras carentes de complementação legislativa no plano infraconstitucional. Nem sempre
os novos rumos perseguidos, contudo, encontram-se expressos na EC 45/2004, abrindo
margem, alguns de seus dispositivos, a que se busque pelas vias que se mostrem
adequadas, a concretização do ideal reformador, sempre apontado para a celeridade dos
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
299
processos, eficiência na prestação jurisdicional, efetividade das decisões e aproximação
do cidadão ao Judiciário.
Neste conjunto de medidas, a pesquisa ora apresentada busca apontar aquelas que
já foram materializadas em leis, as que se encontram em tramitação em alguma das casas
do Congresso Nacional e as que ainda não saíram do plano das idéias. Realiza-se, para
tanto, pesquisa exploratória, tendente a levantar dados quantitativos, sendo certo que se
mostra necessária sua posterior complementação, de modo a viabilizar a análise
qualitativa das informações aqui levantadas, buscando-se, especialmente, aferir o real
incremento no acesso à justiça decorrente das novas leis adotadas.
1. Os objetivos perseguidos com a reforma legislativa
Na esteira dos debates que culminaram com a promulgação da Emenda
Constitucional n. 45/2004, os chefes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário
federais se reuniram com o propósito de indicar os itens prioritários de uma agenda
voltada a pelo menos minimizar alguns dos mais gritantes problemas da Justiça
brasileira. Neste turno, o Pacto de Estado em favor de um Judiciário mais rápido e
republicano buscou sistematizar as dificuldades a demandar mais imediata intervenção
com o fim de assegurar o pleno exercício do direito de acesso à justiça.350
Assim é que o Pacto identifica uma lista de questões a serem tratadas
preferencialmente, questões que se espalham por vasto espectro do sistema processual e
da administração judiciária. A simples passada de olhos sobre ela, como se fará linhas
abaixo, evidencia que o acesso à justiça, neste momento, tem sido compreendido em sua
vertente exclusivamente jurisdicional, sendo possível identificar propostas tendentes a
incrementar o acesso ao Poder Judiciário, no sentido de aproximá-lo dos cidadãos, e
outras voltadas a garantir uma prestação jurisdicional mais célere e efetiva. Identifica-se
claramente a implementação daquilo que Cândido Dinamarco assim sintetiza:
350 O teor do Pacto pode ser encontrado na página eletrônica do Ministério da Justiça, no endereço http://www.mj.gov.br/main.asp?ViewID=%7B8E452D90%2D6A84%2D4AA6%2DBBCE%2DD6CB5D9F6823%7D¶ms=itemID=%7BA08DD25C%2D48A6%2D490B%2D9989%2DECC844FA5FF1%7D;&UIPartUID=%7B2868BA3C%2D1C72%2D4347%2DBE11%2DA26F70F4CB26%7D Acesso em 01 dez.2007.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
300
Só se tem verdadeiro acesso à justiça (a) quando se teve oportunidade de
postular perante a Justiça, seja como autor ou como réu, (b) quando este se
desenvolveu segundo as garantias explicitadas da Constituição e formas
legitimamente definidas em lei, (c) quando a pretensão deduzida pelo
demandante recebeu julgamento, (d) quando a decisão foi justa segundo a
interpretação do caso e da lei à luz de valores legítimos – e, para conferir
utilidade social e política a tudo isso, (e) quando o Poder Judiciário tiver sido
capaz de dar efetividade ao que decidiu, conformando a realidade do mundo
ao que se dispôs na sentença justa.351
Estas proposições Kazuo Watanabe resume na expressão acesso à ordem jurídica
justa352, a qual congrega as duas vias mestras, sob o ponto de vista do acesso ao
Judiciário, que devem ser seguidas para efetivá-la: a possibilidade irrestrita de invocar a
atuação jurisdicional e a presença de todos os mecanismos necessários à sua
manifestação, de modo que possa o Estado tutelar adequada e eficazmente a todas as
pessoas. Essas duas linhas fundamentais (o despertar para a necessidade de se assegurar
os benefícios da tutela jurisdicional a toda a sociedade e a conscientização de que as
prestações emanadas do Estado devem ser capazes de, efetivamente, preservar os
interesses que lhe são apresentados) identificam-se como o cerne da vertente
jurisdicional do movimento pelo acesso à justiça, que visa a estruturar os caminhos a
serem trilhados para romper os obstáculos que tornam inacessíveis para tantos o
exercício de seus direitos e liberdades.
Neste turno, os onze pontos destacados foram:
1. Implementação da Reforma Constitucional do Judiciário
2. Reforma do sistema recursal e dos procedimentos
3. Defensoria Pública e Acesso à Justiça
4. Juizados Especiais e Justiça Itinerante
5. Execução Fiscal
6. Precatórios
7. Graves violações contra os Direitos Humanos
8. Informatização
9. Produção de dados e indicadores estatísticos
351 DINAMARCO, Cândido Rangel. Universalizar a Tutela Jurisdicional. Fundamentos do Processo Civil Moderno. tomo II. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 854. 352 WATANABE , Kazuo. Acesso à Justiça e Sociedade Moderna. GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE , Kazuo. Participação e Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988, p. 134.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
301
10. Coerência entre a atuação administrativa e as orientações jurisprudenciais já
pacificadas
11. Incentivo à aplicação das penas alternativas
Sua implementação tem demandado um esforço conjunto que se materializa tanto
na propositura de novas leis quanto na realização de medidas administrativas voltadas a
realizar estes ideais, todos coadunados com os objetivos perseguidos com a promulgação
da EC 45/2004, estopim de uma reforma bastante mais ampla do Judiciário do que
podem fazer crer as alterações normativas de fato realizadas no texto constitucional. O
levantamento aqui realizado priorizou a compilação das mudanças legislativas
decorrentes do advento da EC 45/2004, dividindo-as em dois focos: leis voltadas a
regulamentar dispositivos modificados ou implementados pela EC 45/2004; e leis
propostas com o fim de permitir a consecução dos ideais perseguidos com a reforma.
2. A regulamentação da Emenda Constitucional 45/2004
Por força do disposto no art. 7º da Emenda Constitucional n. 45/2004,353 deveria
ser criada comissão especial, no âmbito do Congresso Nacional, para elaborar os
projetos de lei necessários à regulamentação dos dispositivos modificados ou
incorporados ao texto constitucional, sempre que estes demandassem explicitação por
meio de norma infraconstitucional. Ademais, a esta tarefa foi somada a de propor outras
medidas tendentes a incrementar o objetivo de assegurar o acesso à justiça, claramente
identificado, como se explicou acima, com a noção de acesso ao Judiciário e a um
processo judicial eficaz.
A comissão foi formalizada regularmente e sua reunião de instalação ocorreu em
05.04.2005, estendendo-se os trabalhos até 13.12.2005. Em 23.02.2006 foi apresentado o
relatório final de suas atividades onde se encontra: síntese dos principais problemas
identificados como causadores da morosidade e da baixa eficácia da prestação
jurisdicional; levantamento dos dispositivos trazidos pela EC 45/2004 que necessitariam
regulamentação; lista das medidas já em tramitação no congresso Nacional tendentes a
viabilizar a implementação dos objetivos da reforma; e indicações legislativas
353 Art. 7º O Congresso Nacional instalará, imediatamente após a promulgação desta Emenda Constitucional, comissão especial mista, destinada a elaborar, em cento e oitenta dias, os projetos de lei necessários à regulamentação da matéria nela tratada, bem como promover alterações na legislação federal objetivando tornar mais amplo o acesso à Justiça e mais célere a prestação jurisdicional.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
302
concretamente gestadas pela comissão. Cumpre destacar, quanto a este último ponto, as
propostas de lei idealizadas na comissão, salientando desde já que nem todas chegaram a
se materializar em projetos de lei:
a) Projeto sobre repercussão geral no Recurso Extraordinário;
b) Projeto que regulamenta a edição, revisão e cancelamento de súmulas com
efeito vinculante;
c) Projeto que regulamenta pedido de federalização de crimes contra os direitos
humanos;
d) Projeto que regulamenta Fundo de Garantia das Execuções Trabalhistas;
e) Projeto que regulamenta a competência suplementar da Justiça do Trabalho;
f) Projeto que legitima, para propositura de Argüição de Descumprimento de
Preceito Fundamental, as pessoas lesadas ou ameaçadas de lesão por ato do poder
público.354
O trabalho de mapeamento das medidas legislativas elaboradas a partir da EC
45/2004, portanto, orienta-se segundo parâmetros indicados pela Comissão Mista
Especial para Reforma do Judiciário, aos quais se junta a lista de prioridades
materializada no Pacto, de modo a permitir a mais ampla coleta de dados dentro do
balizamento assim encontrado.
2. 1. Dispositivos dependentes de regulamentação mediante edição de lei de
iniciativa do Poder Legislativo, segundo a Comissão Mista Especial para Reforma
do Judiciário:
a) Art. 93, IX: estabelecimento das hipóteses de cabimento do segredo de
justiça;
b) Art. 98, § 2º: destinação de custas ao Poder Judiciário;
c) Art. 103-A: revisão ou cancelamento de súmula com efeito vinculante;
d) Art. 103-A: repercussão geral no Recurso Extraordinário;
e) Art. 109, V, § 5º: federalização dos crimes contra os direitos humanos;
f) Art. 111-A, § 1º: competência do TST;
354 O relatório final da comissão mista encontra-se publicado na página eletrônica do Senado Federal, no endereço http://webthes.senado.gov.br/sil/Comissoes/ESP/Comissoes/EMC45/Relatorios/RF200601.rtf Acesso em 01 dez. 2007.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
303
g) Art. 114, IX: competência suplementar da Justiça do Trabalho;
h) Art. 3º, EC 45/2004: Fundo de Garantia das Execuções Trabalhistas;
i) Demais instrumentos que assegurem a razoável duração do processo, no
âmbito judicial e administrativo, e os meios que garantam a celeridade de sua
tramitação.
Normas jurídicas editadas ou em tramitação:
Lei 11.417, de 19.12.2006: Regulamenta o art. 103-A da Constituição Federal e altera a
Lei no 9.784, de 29 de janeiro de 1999, disciplinando a edição, a revisão e o
cancelamento de enunciado de súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal, e dá
outras providências
Origem: Comissão mista especial para reforma do Judiciário / Senado Federal (instalada
por determinação do art. 7º da EC 45/2004) – PL 13/2006;
Lei 11.418, de 19.12.2006: Regulamenta o § 3o do art. 102 da Constituição Federal,
acrescentando à Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil,
dispositivos referentes à repercussão geral nos Recursos Extraordinários.
Origem: Comissão mista especial para reforma do Judiciário / Senado Federal (instalada
por determinação do art. 7º da EC 45/2004) – PL 12/2006;
PL 6542/2006: Regulamenta o art. 114, IX, sobre competência suplementar da Justiça
do Trabalho;
Andamento: aguardando manifestação da CCJ da Câmara desde 09.03.2006;
PL 6541/2006: Regulamenta o art. 3º, EC 45/2004, que trata sobre a criação do Fundo
de Garantia das Execuções Trabalhistas;
Andamento: aguardando manifestação da CCJ da Câmara desde 09.03.2006;
Obs.: Quanto aos demais (itens a, b, e, f) , nenhum projeto encontrado.
2.2. Dispositivos dependentes de regulamentação mediante edição de lei de
iniciativa do Poder Judiciário, segundo a Comissão Mista Especial para Reforma
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
304
do Judiciário (modificação na Lei Orgânica da Magistratura, Organização da Justiça do
Trabalho e Organização das Justiças Estaduais):
2.2.1. Iniciativa do STF:
a) Art. 93, I: Ingresso na carreira;
b) Art. 93, II, c, d, e: Critérios de promoção;
c) Art. 93, III: Critérios de acesso aos tribunais;
d) Art. 93, IV e art. 105, par. único, I: Cursos oficiais;
e) Art. 95, par. único, IV e V: Obrigações e vedações dos magistrados;
f) Art. 93, VIII: Remoção, disponibilidade e aposentadoria por interesse público;
g) Art. 93, VIII-A: Remoção a pedido ou permuta de magistrados;
h) Art. 93, X: Decisões administrativas dos tribunais;
i) Art. 93, XII: Férias;
j) Art. 103-B: Instalação e definição da competência do Conselho Nacional de Justiça;
l) Art. 103-B, § 7º: Criação de ouvidorias de justiça;
Normas jurídicas editadas ou em tramitação:
Lei 11.364, de 26.10.2006: Regulamenta o art. 103-B fixando a estrutura administrativa
e as atividades de apoio ao CNJ;
Origem: Supremo Tribunal Federal – PL 5819/2005.
Obs.: Quanto aos demais (itens a, b, c, d, e, f, g, h, i, l), nenhum projeto encontrado.
2.2.2. Iniciativa do TST:
a) Art. 111-A, § 2º, II: Criação do Conselho Superior da Justiça do Trabalho;
b) Art. 111-A, § 2º, I: Criação da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento
dos Magistrados do Trabalho;
c) Art. 112: Criação de varas da Justiça do Trabalho;
d) Art. 115, § 1º: Justiça itinerante na Justiça do Trabalho;
Normas jurídicas editadas ou em tramitação:
Nenhum projeto encontrado.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
305
2.2.3. Iniciativa dos Tribunais de Justiça dos Estados:
a) Art. 126: Criação de varas para julgamento de conflitos agrários;
b) Art. 125, § 3º: Justiça Militar Estadual;
Obs.: Matérias de competência dos Poderes Legislativos locais.
2.3. Dispositivos dependentes de regulamentação mediante edição de lei de
iniciativa do Procurador Geral da República, segundo a Comissão Mista Especial
para Reforma do Judiciário:
a) Art.128, §5º, b, II, e, f. §6º; Art.129, §2º: Obrigações e vedações aos membros do MP;
b) Art.129, §3º: Ingresso na carreira;
c) Art.130-A: Regulamentação do Conselho Nacional do Ministério Público;
d) Art.130-A, §5º: Criação de ouvidorias do MP;
Normas jurídicas editadas ou em tramitação:
Lei 11.372, de 28.11.2006: Regulamenta o art. 130-A, tratando da forma de indicação
dos membros do CNMP;
Origem: Ministério Público da União – PL 5049/2005.
PL 939/2007: Regulamenta o art. 130-A, que trata da criação do Conselho Nacional do
Ministério Público;
Andamento: apresentada Mensagem da PGR encaminhando projeto de lei sobre
estrutura e organização funcional do CNMP, em 03.05.2007.
Obs.: Quanto aos demais (itens a, b, d), nenhum projeto encontrado.
3. ‘Pacote’ de medidas infraconstitucionais
O item identificado pela Comissão Mista Especial para Reforma do Judiciário
como “instrumentos que assegurem a razoável duração do processo, no âmbito judicial
e administrativo, e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” materializa-
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
306
se em diversos projetos de lei em matéria de Processo Trabalhista, Processo Civil e
Processo Penal, além de outras proposições relevantes, tendentes a implementar os
objetivos da Reforma do Judiciário. O chamado ‘pacote’ de medidas infraconstitucionais
abrange propostas elaboradas após o advento da EC 45/2004, diretamente por influência
dela, e outras, que já vinham tramitando nas Casas Legislativas e se identificavam com
os propósitos perseguidos pela Comissão.
3.1. Processo Trabalhista:
PL 4730/04 - Autenticação de cópias
Dá nova redação aos arts. 830 e 895 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada
pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1º de maio de 1943.
Descrição: Permite que o próprio advogado declare a autenticidade das cópias
oferecidas como provas no processo trabalhista, dispensando o procedimento de
autenticação, que se mostra dispendioso, moroso, e pouco eficaz. Ressalte-se que a
proposta regulamenta e permite a suspeição dos documentos apresentados e impõe a
responsabilização do advogado pelas suas declarações.
Andamento: Aprovado em decisão conclusiva na CCJ em 06.12.2005; Remessa ao
Senado em 14.12.2005; Identificação no Senado: PLC 04/2006; Aguardando votação em
plenário.
PL 4731/04 - Execução trabalhista
Dá nova redação aos arts. 880 e 884 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada
pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1º de maio de 1943, e revoga o seu art. 882.
Descrição: Propõe que o executado, ao ser notificado da sentença condenatória, pague
ou apresente seus bens aptos a garantir a dívida. A omissão acarretará na vedação ao
recurso da execução. A finalidade da proposta é agilizar a execução e impedir manobras
de ocultamento de bens, usuais na seara trabalhista.
Andamento: Aprovado em decisão conclusiva na CCJ em 09.10.2007; Aguardando
apreciação de recurso interposto contra apreciação em caráter conclusivo na CCJ em
14.08.2007.
PL 4732/04 - Recurso de revista
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
307
Dá nova redação ao art. 896 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo
Decreto-Lei no 5.452, de 1º de maio de 1943
Descrição: Reduz as possibilidades de recursos de revista em causas de valor inferior a
60 salários mínimos.
Andamento: Aprovado em decisão conclusiva na CCJ em 09.10.2006; Retorno à CCJ
para apreciação de emendas à redação original feitas no Senado, em 16.08.2007.
PL 4733/04 - Embargos
Dá nova redação ao art. 894 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo
Decreto-Lei no 5.452, de 1º de maio de 1943, e à alínea “b” do inciso III do art. 3o da
Lei no 7.701, de 21 de dezembro de 1988.
Descrição: Reduz as possibilidades de embargos com fins protelatórios ao TST e
diminui de oito para cinco dias o prazo para a apresentação do recurso.
Andamento: Transformado na Lei 11.496, de 24.06.2007.
PL 4734/04 - Sistemática recursal trabalhista
Acrescenta o art. 899-A à Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-
Lei no 5.452, de 1º de maio de 1943, e revoga o seu art. 899.
Descrição: Estende a obrigatoriedade do depósito recursal a todos os tipos de recursos
trabalhistas, independentemente do valor da condenação; aumenta o limite dos valores
do depósito recursal para 60 (sessenta) salários mínimos, no caso de recurso ordinário, e
para 100 (cem) salários, no caso de recurso de revista e recursos posteriores.
Andamento: Aprovado em decisão conclusiva na CCJ em 07.11.2006; Aguardando
apreciação de recurso interposto contra apreciação em caráter conclusivo na CCJ em
30.11.2006.
PL 4735/04 - Rescisória trabalhista
Dá nova redação ao art. 836 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo
Decreto-Lei no 5.452, de 1º de maio de 1943.
Descrição: Exige depósito prévio para a ação rescisória. O depósito tem o escopo de
filtrar as ações rescisórias, pois será revertido em multa se a mesma for julgada
improcedente pelos membros do tribunal
Andamento: Transformado na Lei 11.495, de 24.06.2007.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
308
3.2. Processo Civil
PL 4827/1998 - Mediação
Descrição: Institui e fortalece a mediação no processo civil, tornando obrigatória a
tentativa de mediação para solucionar um conflito antes de submetê-lo ao processo
judicial tradicional, nos termos do projeto já apresentado pelo Ministério da Justiça.
Andamento: Aprovado em decisão conclusiva da CCJ em 30.10.2002; Remessa ao
Senado; Identificação no Senado: PLC 94/2002; Aprovado no plenário do Senado em
11.07.2006; Devolução à Câmara; Aguardando manifestação da CCJ da Câmara, em
10.04.2007.
PL 4331/01 - Fazenda Pública
Descrição: Alterações nos prazos diferenciados para a Fazenda; Fim do reexame
necessário para condenações de até 500 salários mínimos; Alterações na execução contra
a Fazenda Pública, e possibilidade de penhora de bens dominicais
Andamento: Aprovado em decisão conclusiva da CCJ em 14.08.2003; Remessa ao
Senado; Identificação no Senado: PLC 61/2003; Aguardando manifestação da CCJ do
Senado, em 25.01.2007.
PL 5828/2001 - Informatização dos procedimentos
Descrição: Informatização dos procedimentos judiciais.
Andamento: Transformado na Lei 11.419, de 19.12.2006.
PL 6954/02 - Competência Juizados Especiais Estaduais
Descrição: Inclui a Fazenda Pública Estadual na competência dos Juizados Especiais
Estaduais. Apensado aos PLs 3283/1997, 3914/1997, 3947/1997, 4000/1997, 4021/1997,
4275/1998, 4404/1998, 6429/2002, 6910/2002, 7165/2002 e 3594/2004.
Andamento: Apresentado parecer na CCJ pelo acolhimento de todos os projetos, a
exceção do PL 7165/2002, em 16.11.2005; Novo parecer na CCJ pela rejeição de todos
os PLs, em 03.04.2007; Parecer aprovado em 11.04.2007.
PL 3253/04 - Execução de títulos judiciais
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
309
Inclui e dá nova redação a dispositivos da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973,
Código de Processo Civil, relativamente ao cumprimento da sentença que condena
pagamento de quantia certa, e dá outras providências.
Descrição: Propõe que a liquidação e a execução da sentença judicial deixem de ser
processo autônomo e passem a fazer parte do processo de conhecimento que analisa o
mérito da ação. Com isso, agiliza-se o rito de cumprimento da sentença, ao simplificar a
notificação do réu, que passa a ser por intimação ao invés de citação, além de arbitrar
multa de 10% sobre o valor devido em caso de não cumprimento tempestivo, em 15
dias, da sentença. Dessa forma, são reduzidos os incentivos a atitudes protelatórias que
passariam a ter um ônus maior para as partes. Além disso, propõe-se que o autor passe a
indicar os bens do réu a serem penhorados e o fim dos embargos à execução, que tem o
efeito automático de suspender o processo, criando a figura da impugnação, sem efeito
suspensivo automático.
Andamento: Transformado na Lei 11.232, de 22.12.2005.
PL 4497/04 - Execução de títulos extrajudiciais
Altera dispositivos da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973, Código de Processo Civil,
relativos ao Processo de Execução e a outros assuntos.
Descrição: O Projeto de Lei nº 4.497, de 2004, propõe mudanças no processo de
execução por título extrajudicial. O objetivo da reforma é simplificar e agilizar o
processo de execução, reequilibrando os direitos e deveres das partes e reduzindo o
acesso a mecanismos puramente protelatórios. Segundo a proposta, são concedidos ao
credor alguns direitos como o de indicar os bens do devedor a serem penhorados e de
obter, no início do processo, certidão com a qual poderá gravar os bens do devedor até o
valor da dívida. Dentre os pontos essenciais em que se alicerça o presente projeto
encontra-se a modificação da sistemática dos embargos à execução, que poderão ser
ajuizados independentemente da prévia segurança do juízo, mas ficarão desprovidos de
efeito suspensivo, o qual somente será concedido em casos excepcionais e com o juízo já
garantido por penhora ou caução. Ademais, a alienação em hasta pública perde a
preferência para outros meios expropriatórios, quais sejam, a adjudicação em favor do
exeqüente e a alienação por iniciativa particular, reguladas pela proposição.
Andamento: Transformado na Lei 11.382, de 06.12.2006.
PL 4723/04 - Uniformização de jurisprudência nos juizados
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
310
Inclui Seção ao Capítulo II da Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995, que dispõe
sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, relativa à uniformização de
jurisprudência.
Descrição: Uniformização de jurisprudência das Turmas Recursais
Andamento: Aprovado em decisão conclusiva na CCJ em 07.03.2007; Remessa ao
Senado; Identificação no Senado: PLC 16/2007; Aguardando parecer da CCJ do Senado
em 03.09.2007.
PL 4724/04 - Processamento de recursos
Altera os arts. 504, 506, 515 e 518 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de
Processo Civil, relativamente à forma de interposição de recursos, ao saneamento de
nulidades processuais, ao recebimento de recurso de apelação e a outras questões.
Descrição: Possibilidade de o Tribunal sanar nulidades ocorridas em primeira instância
já em sede de apelação; Súmula impeditiva de recursos.
Andamento: Transformado na Lei 11.276, de 07.02.2006.
PL 4725/04 Simplificação de procedimentos
Altera dispositivos da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo
Civil. Apensado ao PL 731/03.
Descrição: Inventário e partilha consensual por escritura pública e separação
consensual por escritura pública.
Andamento: Prejudicado pela aprovação do PL 155/2004, de iniciativa do Senado,
transformado na Lei 11.441, de 04.01.2007, que dispõe sobre a realização de divórcios,
separações e inventário e partilha consensual por escritura pública; Arquivado em
15.02.2007.
PL 4726/04 - Competência
Altera os arts. 112, 114, 154, 219, 253, 305, 322, 338, 489 e 555 da Lei no 5.869, de 11
de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil, relativos à incompetência relativa, meios
eletrônicos, prescrição, distribuição por dependências, exceção de incompetência,
revelia, carta precatória e rogatória, ação rescisória e vista dos autos, e revoga o art. 194
da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil.
Descrição: Declaração de incompetência relativa de ofício pelo juiz em contratos de
adesão; Disciplina a prática e comunicação dos atos processuais em meio eletrônico;
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
311
Pronunciamento de ofício de prescrição em alguns casos; Disciplina a cautelar em ações
rescisórias; Regulamenta o pedido de vista através de prazos para devolução dos autos.
Andamento: Transformado na Lei 11.280, de 16.02.2006.
PL 4727/04 - Agravo de instrumento e agravo retido
Dá nova redação aos arts. 523 e 527 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código
de Processo Civil.
Descrição: Limitação dos agravos de instrumento
Andamento: Transformado na Lei 11.187, de 19.10.2005.
PL 4728/04 - Julgamento de processos repetitivos
Acresce o art. 285-A à Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo
Civil.
Descrição: Quando a lide versar sobre matéria de direito, em processos repetitivos, e no
juízo já houver sentença de improcedência em caso análogo, poderá ser dispensada a
citação e proferida sentença reproduzindo a anteriormente prolatada.
Andamento: Transformado na Lei 11.277, de 07.02.2006.
PL 4729/04 - Julgamento de agravos - apensado ao 1823/96
Acresce parágrafos aos arts. 552 e 554 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 -
Código de Processo Civil.
Descrição: Proposta da OAB sobre inserção de julgamentos em pauta em casos de
vista; Proposta da OAB sobre sustentação oral em agravos internos.
Andamento: Aguardando manifestação na CCJ desde 23.06.2005.
PL 136/04 - Efeitos da apelação
Descrição: Apelação apenas com efeito devolutivo; Ampliação da multa para agravo
interno manifestamente inadmissível ou improcedente; Depósito do valor da condenação
(até 60SM) para recorrer, sob pena de deserção.
Andamento: Aguardando manifestação da CCJ do Senado, em 24.01.2007.
PL 138/04 - Extinção de embargos declaratórios
Descrição: Extingue os embargos de declaração e substitui por pedido de correção.
Andamento: Aguardando manifestação da CCJ do Senado em 24.01.2007.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
312
3.3. Processo Penal
PL 4203/01- Júri
Descrição: Altera dispositivos do Código de Processo Penal referentes ao Tribunal do
Júri, criando a instrução preliminar, anterior ao recebimento da acusação e da pronúncia,
simplificando o instituto do desaforamento, a instrução em plenário, alterando a matéria
relativa aos quesitos e da outras providências.
Andamento: Aprovado em plenário em 07.03.2007; Remessa ao Senado; Identificação
no Senado: PLC 20/2007; Aprovado no plenário do Senado em 05.12.2007, com
emendas; Aguardando devolução à Câmara.
PL 4205/01- Provas
Descrição: Altera dispositivos do Código de Processo Penal relativos à atividade
probatória, impedindo a fundamentação de condenação em provas colhidas na
investigação, salvo em algumas hipóteses, alterando a sistemática da perícia e da oitiva
de testemunhas.
Andamento: Aprovado em plenário em 17.05.2007; Remessa ao Senado; Identificação
no Senado: PLC 37/2007; Aprovado no plenário do Senado em 05.12.2007, com
emendas; Aguardando devolução à Câmara.
PL-4207/01- Sumarização de procedimentos
Altera dispositivos do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de
Processo Penal, relativos à suspensão do processo, emendatio libelli, mutatio libelli e aos
procedimentos.
Descrição: Objetiva garantir o contraditório na emendatio libelli; estabelecer nova
sistemática para a mutatio libelli, exigindo exata correlação entre acusação e sentença;
autorizar a absolvição sumária; alterar formas procedimentais: no procedimento
ordinário, para os crimes com pena igual ou superior a quatro anos; no procedimento
sumário, para os crimes com pena inferior a quatro anos; estabelecer a competência
privativa do ministério público para o exercício da ação penal pública.
Andamento: Aprovado em plenário em 17.05.2007; Remessa ao Senado em
23.05.2007; Identificação no Senado: PLC 36/2007; Aprovado no plenário do Senado
em 05.12.2007, com emendas; Aguardando devolução à Câmara.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
313
PL 4208/01 - Cautelares
Altera dispositivos do Decreto- lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941 - Código de
Processo Penal, relativos à prisão, medidas cautelares e liberdade, e dá outras
providências
Descrição: Altera dispositivos do CPP referentes às medidas cautelares, especialmente
no que concerne à prisão preventiva
Andamento: Aguardando votação em plenário desde 07.07.05.
3.4. Outros projetos relevantes:
Emenda Constitucional
PEC 358/05 - Reforma do Judiciário
Descrição: Altera dispositivos dos arts. 21, 22, 29, 48, 93, 95, 96, 98, 102, 103-B, 104,
105, 107, 111-A, 114, 115, 120, 123, 124, 125, 128, 129, 130-A e 134 da Constituição
Federal, acrescenta os arts. 97-A, 105-A, 111-B e 116-A, e dá outras providências.
Andamento: Ato da Presidência que cria Comissão Especial em 12.09.2005; Parecer da
CCJ publicado em 04.10.2005; Instalada Comissão especial em 24.11.2005; Aprovado
parecer da Comissão especial, em 20.12.2006.
PL 7570/06 - Custas Judiciais no STJ
Descrição: Dispõe sobre as custas judiciais devidas no âmbito do Superior Tribunal de
Justiça.
Andamento: Apresentado o Projeto de Lei na Câmara dos Deputados em 20.11.2006.
PL 4108/04 - Contenção da litigiosidade
Descrição: Inclui os advogados como passíveis de multa por atitudes protelatórias (antes
a multa era cabível apenas às partes); Regulamenta os honorários, fixa honorários para
recursos e estabelece cumulatividade de honorários para cada recurso apreciado;
Suspensão facultativa do processo quando a lide versar sobre matéria pendente de
julgamento perante o STF ou Tribunal Superior; No caso de multiplicação de ações com
os mesmos fundamentos, contra o mesmo réu o juiz poderá elevar o valor dos honorários
a 50% do valor da causa ou condenação;
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
314
Andamento: Aprovado em decisão conclusiva na CCJ em 13.12.2005; Remessa ao
Senado; Identificação no Senado: PLC 13/2006; Na CCJ do Senado aguardando
designação de relator, em 24.01.2007.
PL 1343/03 - Recurso especial e extraordinário
Descrição: Repercussão geral para o recurso especial; Avocatória nos casos de
multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia.
Andamento: Arquivado em 31.01.2007 sem apreciação da CCJ.
Conclusão
É nítido o esforço legislativo que se vem empreendendo na esteira na
promulgação da EC 45/2004, sendo possível identificar vasto conjunto de projetos de lei,
alguns dos quais já transformados em leis ordinárias, tendentes a implementar as
condições necessárias a concretizar o ideal de ampliação do acesso à justiça.
Evidentemente, todo este esforço não esgota as carências que, mesmo a olhos leigos, se
colocam com nitidez. Ademais, percebe-se claramente que o tempo inerente ao processo
legislativo é deveras longo, havendo acúmulo de projetos, por vezes sobrepostos, com
relação aos quais dificilmente se pode imaginar em que momento virão a se tornar
realidade.
Ao lado do estudo aqui iniciado, outro ainda se mostra extremamente pertinente,
posto que aponta na mesma direção - conferir efetividade ao ideal de acesso à justiça
trazido pela EC 45/2004 - mas provém de diferente esfera estatal: o Poder Judiciário.
Além da regulamentação apontada, vale a pena verificar o que o STF está produzindo
em termos de estrutura de competência, tendo em vista que, nos anos mais recentes, esta
Corte vem, gradualmente, reformulando sua jurisprudência, especialmente em matéria
procedimental, de modo a conferir diferente feição a institutos como a Reclamação, a
Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental e o Mandado de Injunção. A
partir de algumas decisões emblemáticas (como, por exemplo, a Reclamação 4.335; os
Mandados de Injunção 608 e 712; ou a ADPF 54) o STF tem buscado imprimir nova
feição a procedimentos e, com isso, permitir que estes sejam utilizados como vetores
para a implementação de decisões mais eficazes e abrangentes. Veja-se, por todos, o
caso do Mandado de Injunção que, com as recentes decisões proferidas pela Corte acerca
do exercício do direito de greve por servidores públicos, verdadeiramente retirou este
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
315
instrumento processual do ostracismo ao qual foi há tempos relegado, permitindo que,
por seu intermédio, a Constituição se realizasse.
Medidas semelhantes evidenciam que a efetivação constitucional não precisa
nem pode depender exclusivamente das iniciativas legislativas, subsistindo largo espaço
para atuação no plano prático, pela via da interpretação e aplicação cotidiana do Direito.
Verifica-se, assim, que os intérpretes são autorizados a, dentro dos limites impostos pelo
plano normativo constitucional e na direta razão deste, reconstruir o Processo
contemporâneo, remodelando normas ou revisando conceitos tradicionais, sempre com o
objetivo de alcançar a realização de um bem maior: a estruturação de um Processo capaz
de dar respostas satisfatórias à sociedade, permitindo o alcance de soluções equânimes e
a concretização das promessas constitucionais de justiça e democracia.
ANEXO B Relatório sobre a proposta de estruturação do Observatório da Justiça Brasileira
apresentado pelo Grupo 5 – UFRJ
Professores José Ribas Vieira, Margarida Maria Lacombe Camargo, Noel
Struchiner, Juliana Magalhães, Alexandre Garrido da Silva e Fernando Gama
Miranda Neto.
I. Introdução:
O Observatório da Justiça Brasileira (OJB), órgão subordinado à Secretaria de
Reforma do Judiciário, apresenta como um dos seus principais objetivos a
instrumentalização institucional de estudos e diagnósticos a respeito da temática do
acesso à justiça, em suas dimensões jurídica e social, bem como a análise do Poder
Judiciário, com ênfase nas decisões judiciais e no seu reflexo na participação e
mobilização da sociedade civil.
O OJB será um órgão permanente de assessoria científica, crítica e independente,
vinculado à Secretaria de Reforma do Judiciário. Os membros do seu Conselho (Órgão
Definidor de Política), de sua Gerência (Agência de Fomento de Estudos sobre o Poder
Judiciário e a solução de conflitos) e de seus Comitês ad hoc (Órgãos de pesquisa e
assessoramento) exercerão suas funções de acordo com um mandato fixo, que poderá ser
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
316
de dois anos, nos moldes do Conselho Nacional de Justiça (art. 103-B CF/88). A
previsão de um mandato fixo constitui uma condição sine qua non para a garantia de
autonomia científica do OJB.
II. Proposta de estruturação do OJB:
A organização institucional do Observatório da Justiça Brasileira caracteriza-se
pela sua articulação com os diversos segmentos do Estado e da sociedade brasileira
preocupados com o estudo, diagnóstico e ampliação do acesso à justiça e a solução de
conflitos. Esta articulação constituirá o princípio norteador da democratização do
universo social e político nesta temática. Para tanto, o OJB apresenta uma estrutura
descentralizada de suas atividades de pesquisa e fomento, pressupondo a presença da
universidade, mediante os Programas de Pós-Graduação, além de outros Centros de
Pesquisa que possuam linhas de pesquisa, com caráter interdisciplinar, dedicadas ao
tema da democratização do acesso à justiça.
Neste sentido, conforme o organograma em anexo, o OJB atuará em consonância
com as diretrizes deliberadas e sistematizadas por um Conselho Definidor de Política
(CDP), responsável pela definição, em suas linhas gerais, das políticas de estudos e
pesquisas do Observatório. O Conselho será integrado por representantes da área
acadêmica, Capes e CNPq, por um representante da classe dos advogados, oriundo do
Conselho Federal da OAB, por um representante da magistratura indicado pela
Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), por um representante do Conselho
Nacional da Justiça (CNJ), dois representantes do Ministério da Justiça, sendo que um
deles necessariamente vinculado à Secretaria Especial de Direitos Humanos da
Presidência da República (SEDH), um representante do Poder Legislativo indicado pela
Câmara dos Deputados e, também, por dois representantes de organizações não-
governamentais, sediadas em diferentes regiões do país, constituídas há pelo menos um
ano, cujo principal objetivo de sua atuação seja a democratização do acesso à justiça355.
355 Deste modo, não será possível a inclusão de dois representantes de ONGs sediadas em um mesmo estado ou região do país, valorizando, assim, a pluralidade de experiências e práticas, bem como o seu intercâmbio, que promovam a democratização do acesso à justiça. Neste sentido, podemos citar as redes de advogados populares, projetos de assistência e/ou assessoria jurídica popular, dentre outros. Para uma participação qualificada no Conselho, a ONG precisaria ter uma “bagagem” mínima de experiências no desenvolvimento e estudo de práticas de democratização do acesso à justiça, daí a importância do requisito temporal mínimo de um ano.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
317
Tendo em vista que um dos principais eixos norteadores do OJB consiste na
ampliação da influência da sociedade civil na produção de novas práticas jurídicas e
judiciais, revela-se fundamental a institucionalização da participação deliberativa e
decisória de organizações não-governamentais nos moldes supramencionados, de tal
modo que o OJB, na qualidade de um “mini-público” deliberativo, não venha a ser
capturado por interesses particulares de corporações ou segmentos estatais ou sociais de
qualquer natureza.
Dentre outros importantes aspectos, o Observatório da Justiça Brasileira
diferencia-se do Conselho Nacional de Justiça em duas dimensões fundamentais que, por
sua vez, permitirão a intervenção qualificada – e também criativa – no debate
contemporâneo sobre as reformas institucionais nos sistemas jurídico, judiciário e de
acesso à justiça no Brasil: (a) em primeiro lugar, uma dimensão acadêmica e de
pesquisa, destacada por este grupo, por intermédio da representação do CNPq e da
CAPES (dois representantes) e da participação, por meio de editais, de Programas de
Pós-Graduação e Centros de Pesquisa dedicados ao tema; (b) em segundo lugar, uma
dimensão prática, não-institucional, de um "mundo da vida" inscrito no cotidiano da
práxis de democratização do acesso à justiça no âmbito da sociedade civil, aqui
protegida do perigo de "colonização" pelo Estado, em razão de sua saudável
desvinculação do Ministério da Justiça. Neste sentido, os representantes das
organizações não-governamentais que desenvolvam práticas de democratização do
acesso à justiça terão origens, perspectivas e experiências necessariamente diferentes dos
representantes provenientes do Ministério da Justiça e da Secretaria Especial de Direitos
Humanos, estes formalmente incorporados ao sistema burocrático-estatal.
Deste modo, a existência de dois representantes acadêmicos (CAPES e
CNPq) e da sociedade civil (dois representantes de ONGs) institucionalizam os
objetivos centrais de pesquisa acadêmica e de participação social que norteiam o
Observatório da Justiça Brasileira. Neste ponto é impossível dissociar pesquisa teórica,
reflexão acadêmica e prática social participativa. Os representantes mencionados
possuem informações que potencialmente contribuirão para os objetivos de pesquisa e
de "imaginação institucional" do OJB na proposta de reformas institucionais de
democratização do acesso à justiça na sociedade brasileira. As duas dimensões
anteriormente citadas legitimam a participação inovadora e a intervenção qualificada do
OJB na esfera de discussão política sobre a reforma da justiça e do Judiciário e, ao
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
318
mesmo tempo, constituem o principal diferencial em relação à composição e à dinâmica
institucional vislumbrada no funcionamento do Conselho Nacional de Justiça.
Ao Observatório da Justiça Brasileira, coordenado por uma gerência, competirá o
desenvolvimento de políticas investigativas ou outros estudos e atividades analíticas,
centrados no problema da democratização do acesso à justiça e da solução de conflitos,
bem como no debate atual sobre as reformas institucionais nos sistemas Da justiça e do
Judiciário brasileiros. Os Comitês ad hoc (órgãos de assessoramento), divididos em
quatro, serão compostos por três pesquisadores coordenadores, com diferentes
formações acadêmicas, identificados por suas respectivas áreas temáticas, a aber: (a)
acesso à justiça, (b) magistratura, (c) reforma do judiciário e (d) decisões judiciais. É
importante ressaltar que não haverá qualquer espécie de hierarquia entre os Comitês ad
hoc. Desta forma, competirá ao Observatório da Justiça Brasileira, por meio de editais
públicos, convocar os Programas de Pós-Graduação e os Centros de Pesquisa para
proporem projetos de pesquisa sobre temas previamente delineados pelo Conselho
Definidor de Políticas e operacionalizados pela Gerência do OJB.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
319
ANEXO C Organograma sobre a estruturação do OJB (Grupo 5 – UFRJ)
Secretaria da Reforma do Judiciário
Conselho(Órgão Definidor de Política)
Comitês “Ad Hoc”(Órgão de Assessoramento)
OJBGerência
(Agência de Fomento de Estudos sobreo Poder Judiciário e a Solução de Conflitos)
Programas dePós-Graduação
Centros de Pesquisa
Acesso à Justiça
Reforma do Judiciário
Magistratura
Decisões Judiciais
Representantes:- Capes- CNPq- Cons. Fed. OAB- CNJ- Min. da Justiça- Sec. de Dir. Humanos- Câmara dos Deputados- AMB- Dois representantes de ONGsque atuem na democratização do acesso à justiça.
(Chamadas por Editais)
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
320
ANEXO D Visualização Articulada dos Elementos da Política Pública Proposta
(in: SILVA, Fábio Sá e. Para Uma Política de Direitos: Uma Proposta de Agenda para
a Secretaria de Reforma do Judiciário, com base nas lições aprendidas no âmbito do
Projeto ‘Dossiê Justiça’, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento; Projeto
BRA/07/004 - Área temática: Observatório do Judiciário, Ministério da Justiça
Secretaria de Assuntos Legislativos / Secretaria da Reforma do Judiciário)
Ministério da Justiça
Secretaria de Reforma do Judiciário
Gerência do Observatório Permanente da Justiça Brasileira
Câmara de Concertação para a Reforma e Modernização da Justiça
Comitê Ad-Hoc
CAPES, CNPq e MEC/SeSu
Pareceristas
CES
Programas de Pós-Graduação e Centros de Pesquisa (Projetos)
Conferência Nacional de Justiça, Segurança e Cidadania
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
321
Para Uma Política de Direitos: Uma Proposta de Agenda para a Secretaria
de Reforma do Judiciário, com base nas lições aprendidas no âmbito do
Projeto “Dossiê Justiça” (ou Subsídios para a Institucionalização de um
Observatório Permanente da Justiça Brasileira no Âmbito do Ministério da
Justiça).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
322
1. Introdução, Justificativa e Proposições Gerais
Como desdobramento que exprime algumas das lições aprendidas na execução
do projeto “Dossiê Justiça: uma Proposta de Observação da Relação entre Constituição
e Democracia no Brasil”, este texto pretende sugerir novos ingredientes para a
construção de uma política de direitos no país, baseando-se na atuação protagônica do
Ministério da Justiça.
A expressão “política de direitos” designa um conjunto de medidas a partir das
quais seria possível explorar mais plenamente o potencial do sistema jurídico para a
produção da cidadania e a realização dos Direitos Humanos356. No caso brasileiro, a
existência de um potencial democrático e democratizante no sistema jurídico é visível
desde o próprio processo constituinte, intensamente permeado pela participação popular
e legatário de um dos textos mais progressistas de nossa história.
Uma política de direitos envolve fatores que muitas vezes parecem contraditórios
entre si. Ela demanda a ampliação radical do acesso ao judiciário e aos demais poderes
públicos por parte dos cidadãos e requer uma intensa vigilância quanto aos modos de
funcionamento dessas instituições, a fim de minimizar os riscos de sua apropriação e
abuso por interesses não-republicanos. Mas ela também envolve o reconhecimento e a
promoção de formas não-convencionais e até mesmo populares de criação e distribuição
do direito, o que aliás tende a ser um dado marcante das situações nas quais os recursos
institucionais disponíveis se revelem hostis ou ao menos insuficientes para a satisfação
de demandas emancipatórias357.
356 A rigor, a expressão “política de direitos” tem origem na experiência americana e remonta à “rights revolution” dos anos 1960, de que dá conta o clássico livro de Stuart Scheingold (“The Politics of Rights: Lawyers, Public Policy, and Political Change”. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2004). Com o avanço no reconhecimento de direitos pelos tribunais, notadamente a partir da jurisprudência da Warren Court, difundiu-se a crença de que a transformação social tem no sistema jurídico uma de suas mais importantes arenas. Em língua portuguesa, essa expressão foi resgatada recentemente por Boaventura de Sousa Santos, para entretanto referir-se a um contexto diferente: o contexto latino-americano no qual vários direitos já foram reconhecidos por processos constituintes, mas que “a hipocrisia e a falta de vontade dos governantes não têm até agora tornados efetivos” (“Para uma Revolução Democrática da Justiça”. São Paulo: Cortez, 2007 p. 10). Como a seqüência da leitura haverá de revelar, essas impressões de Boaventura são plenamente compartilhadas neste projeto. 357 Essa é, mais uma vez, a opinião de Boaventura de Sousa Santos, para quem, aliás, o ângulo privilegiado para a elaboração de reformas da Justiça deve ser justamente o dos “desempregados e dos trabalhadores precários, dos camponeses sem-terra, dos indígenas espoliados, das vítimas de despejos, das mulheres violentadas, das crianças e adolescentes abandonadas, dos pensionistas pobres” (p. 35). Se esse ponto de vista for adotado, diz Boaventura, o resultado será uma dupla transformação: haverá maior acesso à justiça, mas o maior acesso à justiça mudará a justiça a que se tem acesso.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
323
Quer isso dizer que a implementação de uma política de direitos não pode ficar
apenas no plano “técnico”, como o das alterações no processo ou da melhoria na gestão
dos tribunais. O uso da expressão “Justiça” ao longo deste projeto tem exatamente a
intenção de estabelecer um contraste com a noção estreita de “Judiciário”, designando
os vários processos (sociais, ao invés de puramente judiciais) por meio dos quais se
buscam e se afirmam as liberdades individuais e coletivas. É sobre esses processos que
deve recair o foco de análise e intervenção.
Tomando por base o quadro organizativo do Ministério da Justiça, uma política
de direitos parece ter melhor localização na Secretaria de Reforma do Judiciário – órgão
cujo objetivo tem sido o de promover, coordenar, sistematizar e angariar propostas de
reforma e modernização do Judiciário.
É bom lembrar que a criação da Secretaria de Reforma do Judiciário não foi um
evento pacífico no contexto institucional brasileiro. Na posição contrária, o argumento
era de que, enquanto órgão vinculado ao Executivo, o Ministério da Justiça não teria a
prerrogativa de liderar iniciativas que tratassem de temas relacionados a um outro Poder.
Todavia, as realizações da Secretaria têm se mostrado de grande importância para a
geração de um debate mais amplo e transparente sobre os mecanismos de distribuição do
direito. Com a celebração de diversas parcerias e acordos de cooperação internacional, a
Secretaria tem viabilizado a realização de estudos detalhados sobre práticas sociais e
institucionais para a criação e distribuição do direito, incluindo diagnósticos da
Defensoria Pública, do Ministério Público, da Magistratura, de Cartórios Judiciais, de
Sistemas Alternativos de Administração de Conflitos e de experiências de Gestão dos
Tribunais.
Além disso, a Secretaria tem desempenhado um papel extremamente importante
na indução de novas práticas, apoiando projetos nas áreas de Justiça Comunitária e
Justiça Restaurativa, bem como concedendo prêmios para iniciativas inovadoras no
campo da prestação jurisdicional pelo chamado “Prêmio Innovare”. Finalmente, a
Secretaria tem trabalhado na articulação de alterações nos dispositivos constitucionais e
infraconstitucionais que regulamentam os sistemas de justiça e segurança pública,
dialogando intensamente com atores do Legislativo e de segmentos corporativos.
Por outro lado, convém ressaltar que as atuais gestões do Ministério e da
Secretaria têm apresentado condições favoráveis à concepção e implementação de uma
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
324
política de direitos. O binômio “segurança e cidadania”, que integra o mote do
PRONASCI, deixa claro o entendimento de que o direito e as instituições devem operar
como propulsores das lutas pela afirmação das liberdades. Dentre outras repercussões
programáticas358, essa orientação tem direcionado o foco da “reforma e modernização do
judiciário” para a “democratização do acesso à justiça”, título do Seminário realizado em
março de 2006 com a participação de Boaventura de Sousa Santos e a presença de
movimentos sociais, organizações governamentais e não-governamentais e
representantes das carreiras jurídicas.
Este projeto visa a aprofundar tal histórico e suas valências democráticas,
trabalhando a partir das variáveis que nele têm estado presentes de maneira mais
acentuada: a investigação crítica e a concertação política. No primeiro caso, prevê-se a
criação de um centro de pesquisa que funcionará sob o modelo de um Observatório
Permanente da Justiça Brasileira. No segundo caso, sugere-se a criação de uma Câmara
de Concertação para a Reforma e a Modernização da Justiça, associada a uma
Conferência Nacional. As próximas seções deste documento destinam-se então ao
detalhamento dessas propostas, com destaque para o que elas trazem de novo
relativamente ao que tem sido a prática do Executivo Federal frente às questões até
agora levantadas.
2. Proposições Específicas
2.1. Do Observatório Permanente da Justiça Brasileira, sua Gerência (ou Diretoria)
Executiva e sua “Biblioteca de Alternativas”.
A criação de um Observatório Permanente da Justiça Brasileira, inicialmente
articulado à estrutura da própria Secretaria de Reforma do Judiciário, visa a produzir
investigação empírica e crítica sobre os mecanismos de criação e distribuição do direito
socialmente disponíveis, alimentando os Poderes Públicos e a sociedade brasileira com
elementos de informação a partir dos quais podem ser desenvolvidas as estratégias e
pactuações necessárias para a reforma e a modernização do sistema de Justiça.
358 Embora a mídia tenha se interessado mais pela dimensão de Segurança Pública contida no PRONASCI (logo, pelas ações voltadas à prevenção e repressão à violência e à criminalidade por meio do aparato policial e penitenciário), deve-se notar que o programa apresenta diversas à conscientização sobre os direitos (por exemplo, o “canal comunidade”, no campo do direito do consumidor) e à aproximação entre as instituições da Justiça e a sociedade (por exemplo, com a criação de conselhos comunitários de segurança pública, de núcleos de justiça comunitária, de estratégias para a efetivação da Lei Maria da Penha e com o fortalecimento de Ouvidorias). Para maiores informações cf. www.mj.gov.br/pronasci.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
325
Além disso, a criação do Observatório auxiliaria no monitoramento das reformas
já em andamento, permitindo o controle dos seus eventuais efeitos perversos e a
proposição de cenários alternativos de futuro. Muita energia política tem sido investida
na realização das reformas, mas pouca no seu monitoramento, o que poderia ser
importante para corrigir erros e novamente evitar apropriações e abusos. Finalmente, as
pesquisas do Observatório auxiliariam na prospecção e avaliação de experiências que,
embora existentes, podem restar ofuscadas pelo modelo central de Justiça. A partir desse
trabalho verdadeiramente “cartográfico”, realizado nos moldes de uma “sociologia
emergências”359, o Observatório poderia manter uma página na web contendo uma
espécie de “Biblioteca de Alternativas”, como subsídio e estímulo para outras iniciativas
de transformação.
A operacionalização do Observatório será conduzida no âmbito de uma Gerência
ou de uma Diretora Executiva e se possível viabilizada por uma ação no Plano
Plurianual, com descritor que autorize a contratação de instituições ou centros de
pesquisa, a publicação e a divulgação de relatórios e eventualmente a realização de
eventos, tais como painéis, colóquios, etc. A Gerência Executiva ficará subordinada
diretamente ao Secretário de Reforma do Judiciário, correspondendo ao menos a um
Cargo de Direção e Assessoramento Superior de nível 101.4.
A localização da Gerência ou Diretoria Executiva do Observatório no âmbito do
Ministério pode ser inicialmente importante por dois motivos: primeiro, isso coloca a
seu serviço a capacidade de mobilização do governo, chamando a atenção da opinião
pública para as pesquisas e estimulando os grupos potencialmente interessados em
participar de sua execução. Depois, isso permite situar a atividade do Observatório num
autêntico contexto de política pública, de modo que ele não seja apenas um centro de
estudos como muitos outros atualmente já existentes no âmbito de universidades. A
questão é assegurar que esses benefícios não prejudiquem um outro ponto fundamental
das suas atividades: a sua autonomia científica.
Frente a tal desafio, este projeto busca situar o Observatório no que Boaventura
de Sousa Santos já definiu como “[uma] forma de organização política mais vasta que o
Estado, de que o Estado é o articulador e que integra um conjunto híbrido de fluxos, 359 Sobre a “sociologia das emergências”, ver Boaventura de Sousa Santos, “Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências” in Santos, Boaventura de Sousa (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: ‘um discurso sobre as Ciências’ revisitado. São Paulo: Cortez, 2004. p.777-821.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
326
redes e organizações em que se combinam e interpenetram elementos estatais e não
estatais, nacionais, locais e globais”360. Três são as estratégias assim concebidas: a) a
adoção de um Comitê “ad hoc” com perfil técnico-científico, que funcionará junto à
Gerência ou Diretoria Executiva do Observatório com prerrogativas de assessoria; b) a
relação com o sistema de educação superior, integrando ao Observatório a presença de
profissionais da academia; e c) a cooperação internacional, que se reverterá na parceria
com o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES/UC), instituição
que por mais de uma década tem sediado um Observatório Permanente da Justiça
Portuguesa. Tais estratégias encontram-se descritas nas próximas seções.
2.1.1. Do Comitê Científico, dos Pareceristas “ad hoc” e da Seleção de Propostas
O Observatório vem aqui concebido para atuar de maneira descentralizada, ao
invés de contar com quadros próprios de investigação. Assim sendo, seu principal
instrumento de gestão será a contratação de instituições de ensino superior e centros de
pesquisa para a execução dos seus estudos, de acordo com critérios próprios de seleção.
Tais critérios terão evidentemente um duplo caráter: técnico-científico (requisitos
mínimos para a habilitação do proponente, adequação metodológica, etc.) e político
(definição dos temas e problemas que serão objeto da investigação, de acordo com as
demandas presentes na agenda social de reforma e modernização da Justiça).
Para garantir excelência em relação aos critérios técnico-científicos, o
Observatório contará com um Comitê Científico “ad hoc”, composto por atores com
formação interdisciplinar e perfil essencialmente acadêmico. O arranjo inicialmente
sugerido para o Comitê compreende 06 (seis) membros, com background ou destacada
atuação nas áreas de: Direito; Sociologia; Filosofia; Ciência Política; Economia e
Relações Internacionais. Esse Comitê principal poderá solicitar pareceres a outros/as
especialistas, sempre que a complexidade das pesquisas a serem realizadas assim o
sugerir.
Os membros do Comitê Científico “ad hoc” serão indicados pela Gerência e
nomeados pelo Ministro, com mandato de 02 (dois) anos e renovação alternada para a
metade dos membros. Essa métrica garantirá a manutenção dos critérios mesmo em caso
360 Ver o texto “A reinvenção solidária e participativa do Estado” de Boaventura de Sousa Santos in Pereira, L.C. Bresser, Wilheim, Jorge e Sola, Lourdes. Sociedade e Estado em Transformação. São Paulo/Brasília: Editora UNESP/ENAP, 1999.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
327
de transição governamental. Naturalmente, a indicação pode se basear em mecanismos
de consulta pública ou setorial, a critério do Ministério.
A principal função do Comitê será auxiliar na elaboração dos editais e termos de
referências para as pesquisas, a fim de que fiquem bem explicitadas as questões às quais
elas devem responder e enfatizada a necessidade de que os pesquisadores e
pesquisadoras elaborem recomendações em nível de política pública para a reforma e a
modernização da justiça. Tais recomendações devem envolver, tipicamente, propostas de
alterações legislativas e de indução em mudanças organizacionais que possam ser
promovidas ou induzidas a partir dos programas do Ministério da Justiça361 e dos foros
de participação social que acompanham a implementação do Observatório – a
Conferência e a Câmara de Concertação. Nesse quadro, o Comitê se coloca como um
“tradutor” entre demandas por conhecimento e mobilização acadêmica, assegurando
uma importante mediação entre a linguagem política e a linguagem técnico-científica, a
fim de que os estudos sejam metodologicamente rigorosos e socialmente
significativos362.
2.1.2. Da Relação com o Sistema de Educação: CAPES, CNPq e SeSu/MEC
Outro dado importante neste projeto está na sua pretensão de que o Observatório
estabeleça relação de parceria com o sistema de educação superior, notadamente a
CAPES, o CNPq e a SeSu/MEC. Além de reforçar o seu caráter técnico-científico e
facilitar o diálogo com os Programas de Pós-Graduação e Centros de Pesquisa, essa
proximidade também permitiria que as demandas por novos conhecimentos na área
viessem a se refletir nas atividades regulares de ensino, pesquisa e extensão. Desse
modo, a criação do Observatório poderia ainda influenciar na formação (em nível de
graduação e pós-graduação) de uma nova geração de operadores do sistema de justiça,
361 Algumas iniciativas nesse sentido residem, por exemplo, no apoio institucional e material do Ministério à implantação de Varas e/ou Centrais de Execução de Penas e Medidas Alternativas, em projetos-piloto sobre Justiça Restaurativa e, mais recentemente, na implementação da Lei Maria da Penha. 362 A preocupação com as conseqüências sociais na produção de saberes científicos demarca toda a trajetória do pensamento crítico, que na língua portuguesa tem como notável exemplo Boaventura de Sousa Santos e seu “Um Discurso sobre as Ciências” (Porto: Afrontamento, 1988 e Rio de Janeiro: Graal, 1989). Realçar esse princípio de “conseqüencialismo” das atividades do Observatório, portanto, representa um primeiro passo neste projeto para articular ciência e senso comum.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
328
imprimindo nos programas de educação superior as marcas de uma política de
direitos363.
Vale ressaltar que a constituição de uma tal relação orgânica entre a Justiça e o
sistema de Educação Superior no intuito de alterar a formação dos operadores do direito
também se encontra potencializada pelo histórico recente da atuação do Ministério. No
ano de 2005, o Departamento Penitenciário Nacional editou “Fundamentos de Política e
Diretrizes de Financiamento” para a sua política de “Educação em Serviços Penais”364.
O documento conclamava uma parceria com a CAPES e o CNPq para mobilizar a
energia das instituições universitárias no sentido de que aprofundassem suas ações em
torno da questão prisional, incluindo a formação avançada dos/as profissionais com
atuação na execução penal. Embora tal parceria não tenha se concretizado, a idéia ainda
se revela de extrema atualidade, especialmente no momento em que o Ministério da
Justiça consolida uma Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública
(RENAESP)365, em parceria com a SeSu/MEC366.
Da mesma forma, destaca-se a parceria celebrada no ano de 2005 entre a
SeSu/MEC e o Depen no âmbito do programa RECONHECER – Práticas Jurídicas
Emancipatórias. Essa parceria importou na destinação de R$ 100.000,00 (cem mil reais)
do Fundo Penitenciário Nacional a fim de apoiar projetos de extensão ou pesquisa/ação
elaborados por Faculdades de Direito, com atenção específica para a questão prisional.
Finalmente, é de se realçar a participação do Ministério da Justiça no Grupo de
Trabalho instituído no MEC por meio das Portarias nº 3.381, de 20 de outubro de 2004,
e nº 484, de 16 de fevereiro de 2005, com a finalidade de “realizar estudos para
consolidar os parâmetros já estabelecidos para a análise dos pedidos de autorização de
novos cursos jurídicos”. Naquela ocasião, a interlocução entre as duas Pastas foi
simbolicamente atribuída para o fim de “sincronizar o ensino jurídico com os novos
363 A relação entre a formação deficitária dos profissionais da justiça e as dificuldades para a consecução de uma política de direitos, que constitui a razão de fundo desta proposição, é uma constatação recorrente nas pesquisas sobre o tema. 364Ver notícia disponível em: http://www.mj.gov.br/data/Pages/MJ85F7D97EITEMID10E516E83BBE40DCAC6E3A2CD9E1B37CPTBRIE.htm 365 Ver notícia disponível em: http://www.mj.gov.br/data/Pages/MJ2BB50889ITEMID04342454E5E147779AC044B8EB25530EPTBRIE.htm 366 Ver notícia disponível em: http://portal.mec.gov.br/sesu/index.php?option=com_content&task=view&id=9643&interna=6
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
329
desenhos que se postulam para os sistemas de justiça”. O relatório final acrescenta,
ainda, que essa articulação “complementa e aprofunda o projeto de Reforma do
Judiciário, na medida em que toca um dos problemas do sistema de justiça, ou seja, a
fraca sincronia entre a formação do operador do direito, as demandas colacionadas pelos
movimentos sociais e as respostas oferecidas pelo aparato oficial”. 367
O importante desse histórico é perceber que, ao longo dos últimos anos, o
diálogo com o sistema de Educação Superior tem sido visto como um componente
fundamental para qualquer estratégia conseqüente de reforma e modernização da Justiça,
já que uma política pública não se faz sem sujeitos e sem conhecimento. Este projeto
igualmente aproveita essas lições e sugere que o Observatório constitua relação com a
CAPES, o CNPq e a SeSu/MEC por meio um acordo multilateral de cooperação técnica.
O trabalho dos representantes desses órgãos se daria junto à Gerência, no mesmo
contexto do funcionamento do Comitê Assessor “ad hoc”, compreendendo a
participação em reuniões e o acesso a todas as demais atividades conduzidas no âmbito
do Observatório.
2.1.3. Da parceria com o CES/UC
A participação do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra nas
atividades do Observatório já se encontra garantida por contratação efetuada no âmbito
do Projeto BRA/05/036, que tem por objetivo dotar o Ministério da Justiça de orientação
especializada para o trato com o assunto. A disponibilidade dessa consultoria tende a ser
um fator extremamente positivo para o sucesso na implementação do Observatório,
tendo em vista a indiscutível experiência de que desfruta o CES como sede do
Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.
Além disso, o CES tem estado envolvido em vários projetos transnacionais de
investigação sobre a Justiça, como é o caso atual do projeto sobre a pluralidade de
ordens jurídicas e sistemas de justiça em Luanda/Angola, em parceria com a Faculdade
de Direito da Universidade Agostinho Neto. Essa experiência adicional na cooperação e
realização de estudos internacionais poderá ajudar fortemente o Observatório Brasileiro
a integrar-se a redes e projetos internacionais que permitam aprofundar a troca de
367 Ver documento disponível em: http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/nova/grupodetrabalhomecoab.pdf
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
330
experiências e boas práticas, e, sobretudo, a fortalecer a cooperação entre as instituições
do espaço da CPLP.
Tendo isso em mente, este projeto busca apenas indicar o melhor escopo para as
atividades a serem executadas pelo CES, de modo que elas operem em sincronia com o
desenho até agora proposto. Se a Gerência Executiva e o Comitê Científico, com apoio
de pareceristas, serão os responsáveis pela definição dos editais e a seleção das propostas
de investigação, o CES pode atuar como parceiro dos grupos escolhidos para a execução
dessas atividades. Nesse sentido, a equipe do CES viria a conduzir oficinas com os/as
pesquisadores/as brasileiros/as, com a finalidade de trocar experiências, intercambiar
metodologias, oferecer aportes provenientes de estudos internacionais, discutir a
possibilidade de inclusão de dados na perspectiva comparada, etc. Isso daria mais
densidade aos relatórios finais e ainda viria a empoderar os grupos envolvidos, na
medida em que lhes proporcionaria um diálogo privilegiado como etapa do próprio
processo de pesquisa368.
2.2. Da Conferência Nacional para a Democratização da Justiça
As seções anteriores focaram a dimensão técnico-científica deste projeto, cujo
epicentro está no Observatório e seus pontos de apoio (a Gerência Executiva, o Comitê
Assessor “ad hoc”, pareceristas, o Sistema de Educação Superior, o CES/UC e os grupos
de pesquisa). A partir desses elementos, pretende-se ampliar de maneira quantitativa e
qualitativa o conhecimento sobre a Justiça no Brasil. Mas na construção de uma “política
de direitos”, isso ainda não chega a ser suficiente: deve-se discutir o que fazer com os
resultados dessas pesquisas. Nesse sentido, as próximas seções indicam o
estabelecimento de mais dois espaços que se relacionam com o Observatório no
propósito de orientar o sistema jurídico para direções emancipatórias. São eles: uma
Conferência Nacional de Justiça, Segurança e Cidadania; e uma Câmara de Concertação
para a Reforma e a Modernização da Justiça.
O dado central da Conferência é a valorização da participação social nos debates
sobre a Justiça, o que encontra várias fontes de justificação. Em primeiro lugar, ela
equivale a reafirmar o pressuposto de que a Justiça não é um assunto privativo de
368 Para o futuro, esse tipo de parceria pode ser replicado com outros atores internacionais, especialmente no âmbito regional. Uma hipótese que já poderia ser cogitada desde agora é com o ILSA (Instituto de Servicios Legales Alterntivos), sediado na Colômbia, dedicado a analisar “prácticas jurídicas populares para la transformación social y democracia) e mantenedor de um Observatório sobre os processos de “Verdad, Justicia y Reparación na Colômbia. Para maiores informações sobre o ILSA cf. www.ilsa.co.org.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
331
“especialistas”, já que o direito não se restringe aos espaços formais de que esses
especialistas geralmente participam369. Em segundo lugar, ela implica em reconhecer
que a dimensão prática, não-institucional, de “mundo da vida” inscrita no cotidiano da
busca por direitos, é capaz de oferecer alternativas extremamente promissoras, quando
não de notável efetividade para a reorientação democrática da Justiça370. Finalmente, ela
significa salientar que mesmo nos espaços formais como os Tribunais podem existir
canais para a participação cidadã, a qual pode ocorrer por diversos expedientes como a
Conciliação, a Justiça Comunitária, a Justiça Restaurativa e o amicus curiae da
Jurisdição Constitucional. Numa palavra, portanto, incorporar a participação social nos
debates sobre a Justiça significa aceitar que “a criação e a distribuição do direito é um
fenômeno plural em sentido quantitativo e qualitativo, ou seja, acontece não apenas em
diferentes espaços como também de diferentes maneiras” 371.
No seu aspecto operacional, a idéia é de que a Conferência venha a ser um lócus
de deliberação sobre os desafios da política pública de democratização da justiça e de
seu acesso. Num primeiro momento, essas deliberações constituiriam tópicos para as
pesquisas do Observatório, a serem melhor delimitados por sua Gerência, com apoio do
Comitê Assessor. Num segundo momento, as pesquisas poderiam retornar à arena de
debates, como elementos de informação e propulsores de uma abordagem cada vez mais
crítica372. Finalmente, as deliberações da Conferência e as pesquisas do Observatório
constituiriam o material que orientaria um processo mais amplo de concertação política,
a ocorrer no âmbito de uma Câmara, sobre a qual se falará logo adiante.
Nesse sentido, a Conferência se apresenta como um amplo lócus de diálogo com
a sociedade, já que a missão essencialmente científica do Observatório não permite (ou
369 Nos debates epistemológicos, este argumento conduz a uma valorização do “senso comum”, que por várias vezes se mostra mais capaz de responder a questões que a ciência ou o conhecimento especializado não consegue. Por outro lado, ele se volta a combater situações freqüentes de autoritarismo, nas quais o “discurso competente” é usado como forma de tolher a participação e favorecer alguns poucos. 370 Esse é o caso das assessorias jurídicas populares e de projetos como o “Promotoras Legais Populares” e “O Direito Achado na Rua”, para ficar apenas nos mesmos exemplos mencionados por Boaventura de Sousa Santos (op. cit.). 371 Para essa definição de pluralismo jurídico, ver Fábio Sá e Silva (Ensino Jurídico. A Descoberta de Novos Saberes para a Democratização do Direito e da Sociedade. Porto Alegre: SAFE, 2007). 372 Isso permite, aliás, sintetizar os princípios que sustentam a política de direitos aqui proposta: a autonomia científica e o conseqüencialismo das investigações (ver a configuração proposta para o Observatório), a natureza de política pública, mas não estatal (por isso mesmo articulada pelo Ministério da Justiça, mas aberta à participação de diversos setores sociais), a participação social (ver as Conferências e a Câmara de Concertação), a transparência (ver a manutenção de uma “Biblioteca de Alternativas e a divulgação extensiva dos resultados das pesquisas) e a sustentabilidade (ver seção específica, adiante).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
332
ao menos restringe) a representação da cidadania e dos movimentos sociais373 e um dos
elementos chaves para uma autêntica política de direitos é a partilha das decisões com os
grupos por ela afetados. Ao invés de pensar sobre a Justiça (mais uma vez entendida
como prática social), deve-se pensar com os atores envolvidos na Justiça, quer como
seus operadores, quer como seus usuários.
O importante é ressaltar que este projeto não prevê nenhuma prática estranha ao
nosso contexto social e cultural. Inaugurado com a 8ª. Conferência Nacional de Saúde, o
modelo de participação da sociedade civil por Conferências é paradigmático de nossa
experiência jurídico-política, tanto pelos meios que adota quanto para os fins a que se
destina (não apenas consulta, mas eventualmente deliberação). No mais, até mesmo
alguns segmentos com atuação no campo da Justiça formal demonstram habitualidade
com os procedimentos das Conferências. É o caso da Ordem dos Advogados do Brasil,
cujo Regulamento Geral define as Conferências como o “órgão consultivo máximo do
Conselho Federal”, a teor do art. 145 do Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e
da OAB.
2.3. Da Câmara de Concertação para a Democratização da Justiça
A última peça no mosaico da política de direitos proposta neste projeto é o
estabelecimento de uma Câmara de Concertação para a Reforma e a Modernização da
Justiça. Adensando o componente político da proposta, ela reuniria representantes: a)
das instituições da justiça e da segurança pública (Tribunais, Polícias, Administração
Penitenciária, Órgãos de Defesa do Consumidor e Conselhos Nacionais de Justiça, do
Ministério Público e de Política Criminal e Penitenciária); b) das instituições
corporativas vinculados às carreiras jurídicas tradicionais (Magistratura, Ministério
Público, Advocacia e Defensoria Pública); c) do governo federal, tomando-se como
critério a parceria para a atuação no PRONASCI; d) de setores ligados ao setor
produtivo e ao desenvolvimento econômico; e e) da sociedade civil e dos movimentos
sociais.
373 É válido lembrar que, num momento em que o paradigma científico da modernidade encontra-se afetado por uma crise de confiança epistemológica, é sempre possível adotar alguns expedientes para democratizar a produção de saberes. Um caso perfeitamente aplicável ao Observatório seria o das metodologias participativas, como a dos “painéis” utilizados pelo Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, lotado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES/UC). Sobre essa prática, cf. o relatório elaborado por Flávia Carlet (Observações e Acompanhamento no Âmbito do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa – OJP. CES/UC, maio de 2007).
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
333
A composição exata da Câmara deve ser refinada para garantir representatividade
e proporcionalidade entre os segmentos de Estado, Mercado e Sociedade relacionados
acima. Afora os membros natos ou indicados pelas carreiras, o mandato dos demais
membros seria de 02 (dois) anos, permitida a recondução por mais uma única vez. A
nomeação, nesses casos, seria feita pelo Ministro da Justiça, a quem também caberia
presidir a Câmara. As principais atribuições da Câmara seriam: convocar a Conferência
Nacional e sediar processos de negociação para a elaboração ou a implementação de
projetos de reforma e modernização da justiça como fatores de produção da cidadania374.
Novamente é importante destacar que a idéia de diálogo social para a concepção
de reformas estruturais não é de todo original, mas deriva de experiências no Brasil e no
estrangeiro situadas no campo do desenvolvimento econômico e social. Neste projeto,
ela busca objetivar os debates sobre a Reforma e a Modernização da Justiça sem prejuízo
dos aspectos de publicidade e participação.
2.4. Da dinâmica da política pública e de sua posição relativa à democratização da
sociedade
Este projeto coloca o debate sobre Reforma e Modernização da Justiça numa teia
mais ampla e complexa de relações sociais, restringindo o espaço para corporativismos e
escapando da deliberação por “minipúblicos” fundados no já criticado “discurso
competente”. Seus diversos elementos tornam impossível dissociar pesquisa empírica,
reflexão acadêmica e prática social participativa. Os segmentos representados em cada
um dos espaços aqui propostos (Observatório, Conferência e Câmara de Concertação)
trarão informações que contribuirão para os objetivos de pesquisa e de “imaginação
institucional”, a partir dos quais se poderá vislumbrar um novo e mais democrático
momento para a reforma e a modernização do sistema de Justiça.
A figura abaixo ilustra essa dinâmica, enquanto que os Apêndices I e II oferecem
uma abordagem panorâmica das tarefas envolvidas e da articulação das diversas
variáveis presentes no desenho de política pública subjacente a este projeto:
374 A distinção entre elaboração e implementação reflete a constatação de que, em muitos dos casos, já existem possibilidades de mudança que não requerem alteração legislativa, porém maior entendimento entre os órgãos envolvidos numa determinada forma de distribuição do direito.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
334
3. Da Sustentabilidade do Desenho
A preocupação com a sustentabilidade do desenho político e institucional aqui
proposto deve ser colocada em pauta não apenas pelas virtudes democráticas que ele
presumidamente contém, mas também porque a sua implementação envolve um
considerável grau de energia e recursos públicos. A convocação de uma Conferência e o
estabelecimento de uma Câmara de Concertação sinalizam para uma cultura de
participação que tende a atrair a atenção pública e, quiçá, alguma simpatia. Mas isso
evidentemente não é suficiente para proteger o desenho de supressões abruptas e não-
debatidas, no caso de mudanças na gestão do Ministério ou na orientação do Governo.
Nesse aspecto, o Observatório é sem dúvida o elo mais frágil da cadeia. Sua localização
no Ministério da Justiça, baseada num cargo de confiança, o torna um potencial refém de
mudanças de gestão.
A celebração de parcerias com a CAPES e ao CNPq e a conexão com o CES
conferem uma importante legitimidade acadêmica para as suas atividades, mas talvez
isso não seja o suficiente. Por essa razão, este projeto toma a liberdade de indicar
alternativas para a institucionalização do Observatório, campo no qual se visualizam
dois modelos: o primeiro de uma Organização Social, o segundo de Autarquia.
Evidentemente, esses não são os únicos modelos possíveis, e cada um deles
possui vantagens e desvantagens que não podem ser exploradas nos limites deste texto,
cuja preocupação está centrada nos pontos mais imediatos para a construção do
Investigação Empírica dos Mecanismos Socialmente Disponíveis para a Criação e
a Distribuição do Direito;
Identificação de Novas Direções para a Reforma da Justiça;
Elaboração de Recomendações em Nível de Política Pública (Alterações
Legislativas ou outras Mudanças Organizacionais que podem ser induzidas pelos programas do Ministério da Justiça)
Aumento Quantitativo e Qualitativo no Acesso ao Sistema de Direitos
Instituído a partir da Constituição de 1988;
Construção de uma Política de Direitos que mobiliza instituições e operadores
da Justiça
Democratização do Direito e da Sociedade
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
335
Observatório e dos outros componentes de uma política de direitos a ele associadas. Em
todo caso, o importante por agora é deixar registrada a existência dessas alternativas para
que, em havendo necessidade, alguns dos elementos da política se inscrevam no
horizonte do Estado Brasileiro375. Porque se há algo que a trajetória pós-constituinte nos
debates sobre a Justiça revela com clareza é que é preciso abrir sempre novas frentes de
escrutínio público, por custoso ou aparentemente caótico que isso possa parecer. Do
contrário, o assunto continuará sob o domínio de poucos, o que a bem da verdade
representa o maior dos riscos sob os quais se situa o sistema jurídico: o risco de se tornar
insignificante para uma grande maioria e, por isso mesmo, suscetível de ser descartado
em prol de opções menos democráticas.
375 Uma possibilidade debater e aprofundar essa futura institucionalização é convocar um Seminário com a participação da Advocacia Geral da União e do Ministério do Planejamento, já que demandas como esta devem ser bastante comuns no âmbito da administração federal e deve existir alguma orientação de caráter político-administrativo sobre como enfrentá-las.
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
336
Apêndice I.
Relação das Principais Tarefas Necessárias à Implementação da Política Pública
Proposta.
▫ Criação da Gerência do Observatório junto à Secretaria de Reforma do Judiciário;
▫ Nomeação do/a Gerente;
▫ Nomeação do Comitê Assessor;
▫ Celebração de Acordo de Cooperação Técnica com a CAPES, o CNPq e a SeSu-
MEC para o trabalho conjunto no âmbito do Observatório;
▫ Criação da Câmara de Concertação para a Reforma e Modernização do Judiciário;
▫ Nomeação dos representantes da Sociedade Civil e Movimentos Sociais;
▫ Convocação da “I Conferência Nacional de Justiça, Segurança e Cidadania” a partir
da Câmara;
▫ Definição dos Tópicos de Pesquisa para o Observatório a partir dos resultados da
Conferência;
▫ Seleção dos Grupos de Pesquisa;
▫ Execução das Pesquisas em parceria com o CES;
▫ Produção e Difusão de Relatórios;
▫ Promoção de atividades de Concertação, no âmbito da Câmara, para a propositura e
a implementação de projetos de Reforma e Modernização da Justiça
Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça
337
Apêndice II
Visualização Articulada dos Elementos da Política Pública Proposta.
Ministério da Justiça
Secretaria de Reforma do Judiciário
Gerência ou Diretoria Executiva do Observatório Permanente da Justiça Brasileira
Câmara de Concertação para a Democratização da Justiça
Comitê Científico “Ad-Hoc”
CAPES, CNPq e MEC/SeSu
Pareceristas
CES
Programas de Pós-Graduação e Centros de Pesquisa (Projetos)
Biblioteca de Alternativas
Conferência Nacional de Justiça, Segurança e Cidadania