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Stélio Furlan José Carlos Siqueira Doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestre em Literatura Brasileira pela UFSC e graduado em História pela UFSC. Mestre em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portu- guesa pela Universidade de São Paulo (USP) e bacharel em Linguística pela USP. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br

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Stélio Furlan

José Carlos Siqueira

Doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestre em Literatura Brasileira pela UFSC e graduado em História pela UFSC.

Mestre em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portu-guesa pela Universidade de São Paulo (USP) e bacharel em Linguística pela USP.

Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br

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Trovadorismo: 1198-1418Stélio Furlan1

José Carlos Siqueira2

Lo vers es fis e naturaus e bos celui qui be l’enten;

e melher es, qui.l joi aten.3

Bernart de Ventadorn (1150-1180)

Contexto históricoOs primeiros registros escritos da Literatura Portuguesa são em

verso. As produções do primeiro período medieval, que se estende dos séculos XII ao XV, são agrupadas no movimento literário conhecido como Trovadorismo.

Essa expressão deriva do verbo provençal trobar, que exprimia o fazer poético da época enquanto ação de compor, de inventar, de criar. Em A lírica trovadoresca, livro indispensável aos estudiosos da poética medieval, Segismundo Spina sugere que entre tantas etimologias pro-postas a mais aceitável se associa à tese litúrgica da poesia trovadoresca. Assim, trobar derivaria do vocábulo tropare, “decalcada sobre tropo – in-terpolação, adição ou introdução de texto literário e musical numa peça da liturgia. Daí tropare – fazer tropos, compor (um poema, uma melodia), inventar, descobrir” (SPINA, 1996, p. 407).

1 Doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestre em Literatura Brasileira pela UFSC e graduado em História pela UFSC.2 Mestre em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e bacharel em Linguística pela USP.3 “A canção é autêntica e sincera, / capaz de honrar àquele que a compreenda bem; / Mas melhor é para aquele que aguarda as alegrias do amor.” – tradução de Segismundo Spina.

Iluminura medieval com representação de uma cena trovadoresca.

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Chamava-se trobador o poeta que criava, instrumenta-va e, por vezes, entoava suas próprias composições poéticas. As cantigas também eram criadas e divulgadas pelo segrel, o trovador profissional, que ia de corte em corte com o seu jogral (dançarino, acrobata, mímico). O músico era o menestrel.

Um dos mais notáveis trovadores medievais foi, por cer-to, o rei D. Dinis (1261-1325). As suas cantigas evidenciam um dos momentos mais altos da poesia no sentido da apropriação dos recursos verbais e da sua adequação ao dizer poético. D. Dinis levou a bom termo o desejo de todo trovador medieval, a saber, a plena realização da aliança entre motz el son, entre a palavra e música. Leia-se:

Quer’eu em maneira de proençal

fazer agora un cantar d’amor,

e querrei muit’i loar mia senhor

a que prez nen fremusura non fal,

nen bondade; e mais vos direi en:

tanto a fez Deus comprida de ben

que mais que todas las do mundo val. (DOM DINIS, 2008)4

De imediato, surgem estas perguntas:

Como esse fragmento textual chegou até nós se foi escrito por volta de 700 anos atrás?::::

Em que língua foi escrito? O que significa compor um “cantar d’amor” ao modo provençal?::::

Enfim, o que se entende por “amor” e qual a importância de se estudar textos medievais?::::

Ora bem, a referida estrofe e as demais composições da lírica trovadoresca medieval encon-tram-se preservadas em três compilações manuscritas chamadas de cancioneiros. Se o mais antigo é o Cancioneiro da Ajuda, composto de 310 cantigas (acredita-se que compilado entre os séculos XIII e XIV), o mais completo é o Cancioneiro da Biblioteca Nacional, formado de 1.647 manuscritos de cantigas líricas e satíricas. O nosso interesse se volta para o Cancioneiro da Vaticana, assim designado por ter sido encontrado na Biblioteca do Vaticano, contendo 1.205 cantigas de vários autores, entre os quais D. Dinis e suas 137 cantigas. Você pode acessar todas as cantigas de D. Dinis pela Biblioteca Digital da Universidade Federal de Santa Catarina, disponível em <http://bibdigital.inf.ufsc.br/bdnupill/>, ou pelo Portal Galego da Língua, disponível em <http://www.agal-gz.org/modules.php?name=Biblio.> Neste último, afora uma galeria de imagens do medievo, você encontrará também uma biografia do chamado Rei Trovador.

4 “Quero fazer agora uma canção de amor ao modo provençal. E quero louvar a minha senhora, a quem honra nem formosuras não faltam, nem bondade; e mais vos direi ainda: tanto Deus a fez cheia de virtudes, que no mundo não há outra igual.”

D. Dinis, sexto rei de Portugal, subiu ao trono em 1279 e governou até 1325. Afora o incentivo à agricultura, destacou-se pela fundação da primeira universidade de Portugal, em 1290, então sediada na cidade de Lisboa.

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A poesia trovadoresca Os poemas recebiam o nome de cantigas (ou canções e mesmo cantares)

pelo fato de o lirismo medieval associar-se intimamente com a música: a poesia era cantada, ou entoada e instrumen-tada. Letra e pauta musical andavam juntas de molde a formar um corpo único e indissolúvel. Daí compreender que o texto sozinho, como o temos hoje, apenas fornece uma incompleta e pálida imagem do que seriam as cantigas quan-do cantadas ao som do instrumento, ou seja, apoiadas na pauta musical. (MOISÉS, 1997, p.15)

Observe essa necessária proximidade na seguinte iluminura:

Cantiga de Afonso X , o Sábio. Um fólio da cantiga “Ondas do mar de Vigo”, de Martin Codax.

Note-se que a cantiga de D. Dinis foi grafada em galego-português, que era a língua utilizada por todos os poetas do período, por conta da importância de Santiago de Compostela (capital da Galiza), situada na extremidade noroeste da Península Ibérica.

Portugal, que a partir do século XII se firmou como reino independente, mantinha laços econô-micos, sociais e culturais com a Galiza e tais relações favoreceram o surgimento de uma língua de traços específicos: o galego-português. Isso justifica o fato de a produção literária da época ter sido elaborada nessa variação linguística.

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Mapa da península ibérica no século XII, à época do esplendor do trovadorismo.

Características da poesia trovadoresca As cantigas medievais se dividem em composições líricas e satíricas. No primeiro caso, situam-se as

cantigas de amor e as cantigas de amigo. Já as composições satíricas se dividem em cantigas de escárnio e cantigas de maldizer.

Se as cantigas líricas versam em geral sobre o amor ou sua ausência, nas cantigas satíricas faz-se a crítica a pessoas, comportamentos ou instituições do mundo feudal. Caso a crítica seja velada, indireta, temos uma cantiga de escárnio. Já a zombaria direta, agressiva, com expressões de baixo calão, define uma cantiga de maldizer.

É interessante notar que os critérios que diferenciavam tais modalidades da poética trovadoresca galego-portuguesa foram sistematizados na chamada Arte de Trovar, redigida no século XIII, que se encontra anexa ao Cancioneiro da Biblioteca Nacional. Leia-se:

E como há algumas cantigas em que falam tanto eles como elas, por isso é importante que entendais se são de amor ou de amigo, porque se falam eles na primeira cobra e elas na outra, é de amor, pois move-se segundo a argumentação dele (como vos dissemos antes); e se falam elas na primeira cobra, então é de amigo; e se falam ambos em uma cobra, então depende de qual deles fala primeiro na cobra. (VIEIRA, 2008)

Em síntese, o que define uma canção de amor ou de amigo é a voz do poema presente na primeira cobra ou estrofe. Se a voz que abre o poema é a de um eu lírico masculino, esse poema é classificado como uma canção de amor, a exemplo da composição de D. Dinis.

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A poesia trovadoresca em PortugalD. Dinis demonstra consciência artesanal ao revelar o modo do seu fazer poético: tecer uma can-

ção à maneira de proençal, o que gera toda uma expectativa de leitura. A estrofe é reveladora das regras da arte que chegam a Portugal no século XII, oriundas da Provença, a região Sul da França medieval, palco do esplendor do trovadorismo. O trovadorismo à provençal não só se difundiu para o continente europeu como também influenciou o lirismo europeu dos séculos vindouros.

Na cantiga Quer’eu en maneira de proençal, ao revelar a firme disposição de louvar a “mha senhor”, a qual não faltam a honra, a formosura e a bondade, D. Dinis cede à descrição física e moral da mulher prevista pelas regras da arte daquele tempo. É de se notar que o trovador mantém em sigilo a identida-de da sua musa. E o sentimentalismo hiperbólico típico dos trovadores medievais se exibe nesse encare-cimento do feminino: ela é um verdadeiro prodígio criado por Deus, uma coleção de excelências – logo, inigualável perante as demais.

A Cantiga de AmorAo cantar uma dama de eleição (“mha senhor”), o trovador comporta-se como um vassalo dian-

te do seu suserano. A expressão mha senhor utilizada pelo trovador significava “minha senhora”. No medievo, o termo senhor se associava a senhorio, significando tanto uma propriedade territorial quanto os meios de que dispõe um senhor feudal “para se apropriar do rendimento do trabalho realizado por homens sob o seu domínio” (FRANCO JÚNIOR, 1995, p.192). Assim, uma forma de organização social é sugerida a partir do texto poético. Em outras palavras, o ritual amoroso da cantiga de amor reproduz a relação entre senhor e vassalo típico do medievo. Comentando essa transposição do esquema social criado pelo feudalismo, Segismundo Spina afirma que o amor se tornou um “serviço” (culto) prestado pelo trovador à sua dama, como compromisso que se estabelecia entre o senhor e vassalo.

Segismundo Spina apresenta-nos um quadro bastante convincente dos aspectos mais relevantes da mensagem poética do amor cortês à provençal:

Do princípio de que o Amor é fonte perene de toda Poesia, e de que o amor é leal, inatingível, sem recompensa (porque a dama é sans merci) decorre todo o formalismo sentimental dessa poesia:

a submissão absoluta à sua dama;::::

uma vassalagem humilde e paciente;::::

uma promessa de honrá-la e servi-la com fidelidade;::::

o uso do :::: senhal (imagem ou pseudônimo poético com que o trovador oculta o nome da mulher amada);

a mesura, prudência, moderação, a fim de não abalar a reputação da dama (:::: pretz), pois a inobservância deste preceito acarreta a sanha da mulher;

a mulher excede a todas do mundo em formosura (de que resulta o tema do elogio impossível);::::

por ela o trovador despreza todos os títulos, todas as riquezas e a posse de todos os impérios;::::

o desprezo dos intrigantes da vida amorosa;::::

a invocação de mensageiros da paixão do amante (pássaros);::::

a presença de confidentes da tragédia amorosa. (SPINA, 1996, p. 363)::::

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Isso explica o respeito constante, a moderação, a mais completa submissão do trovador diante da mulher. Tais elementos estão associados a uma das principais concepções medievais sobre o amor: o que se convencionou chamar amour courtois ou “amor cortês”. Sobre as especificidades do amor cortês, Georges Duby afirma que “Esse amor, os historiadores da literatura corretamente o chamaram cortês. Os textos que nos fazem conhecer suas regras foram todos compostos no século XII, em cortes, sob a ob-servação do príncipe e para corresponder às suas expectativas.” Nesse sentido, o autor afirma que as regras do “amor delicado” vinham reforçar as regras da moral vassálica, o que o leva a assinalar as corres-pondências entre o que essas canções expõem e “a verdadeira organização dos poderes e das relações da sociedade” (DUBY, 1989, p. 59-65). A compreensão desse formalismo sentimental, que torna a arte de amar uma etiqueta cerimoniosa de corte, em consequência, em signo de distinção da nobreza, ajuda a explicar aquele famoso verso de Camões: amor “é servir a quem vence o vencedor”.

O fragmento textual de D. Dinis apresentado ganha interesse como poema-síntese de uma das manifestações líricas do medievo – a canção de amor. Graças à consciência artesanal do trovador, assegura-se a qualidade estética de versos tecidos ao gosto provençal.

Também de D. Dinis, a composição a seguir, sendo inequivocamente de amor, é uma verdadeira obra-prima da poesia medieval.

Em gram coita, senhor, (gram coita: “grande sofrimento”)

que peior que mort’é,

vivo, per bõa fé, (per bõa fé: “na esperança”)

e polo voss’amor

esta coita sofr’eu

por vós, senhor, que eu

vi polo meu gram mal;

e melhor mi será

de moirer por vós já;

e, pois me Deus nom val, (nom val: “não me socorre”)

esta coita sofr’eu

por vós, senhor, que eu

polo meu gram mal vi;

e mais mi val morrer

ca tal coita sofrer

pois por meu mal assi

esta coita sofr’eu

por vós, senhor, que eu

vi por gram mal de mi,

pois tam coitad’and’eu. (DOM DINIS, 2008)

Observe que D. Dinis faz uso, com maestria, das técnicas da composição poética comuns ao lirismo trovadoresco: o refrão, o paralelismo, a atafinda e a fiinda.

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O refrão ou estribilho – fragmento poético ao qual se regressa ao final de cada estrofe (esta coyta sofr`eu ⁄ por vós, senhor, que eu) – sugere a existência de um coro ou de um solista, assim decorrendo da inseparabilidade entre letra e pauta musical.

O refrão se encadeia à estrofe seguinte pelo processo de encadeamento ou atafinda, e isso per-mite que o lamento plangente do eu lírico se desenvolva sem interrupção até o final da cantiga, rema-tada com um dístico (ou estrofe de dois versos). Conforme a Arte de Trovar medieval, trata-se da fiinda. Leia-se:

As fiindas são coisas que os trovadores sempre costumaram pôr no fim das suas cantigas, para concluírem e acabarem melhor nelas os argumentos (razones) que disseram nas cantigas, chamando-lhes fiinda, porque quer dizer conclusão de argumento. E essa fiinda podem fazê-la de uma ou de duas ou de três ou de quatro palavras (versos). (MONGELLI, 2003, p. 147)

Afora o refrão, você pode observar também o uso do paralelismo, um processo repetitivo que envolve versos com a mesma estrutura sintática e/ou semântica no corpo da composição – no caso, “Vy polo meu gram mal, Polo meu gram mal vy”.

No aspecto temático, D. Dinis retoma os lugares-comuns típicos da cantiga de amor. Embora o foco não esteja voltado à celebração das virtudes da donna, sua idealização é evidente. Observe que nesse poema a coyta (ou, conforme um termo utilizado por Caetano Veloso, a queixa) derivada do tormento passional do sujeito poético masculino se associa ao olhar. O olhar é, por certo, janela da alma e nesse caso não surge como o responsável pela transmissão do amor ao coração, pois antes disso expressa a perdição do eu lírico.

Vale lembrar que o olhar como causa do tormento amoroso é uma constante, não só na lírica medieval, mas circunstância típica da tópica amatória da poesia romântica luso-brasileira, como os poemas “Este inferno de amar”, de Almeida Garrett e “Olhos verdes”, de Gonçalves Dias.

Cantiga de Amigo É interessante notar que o sentimento de perda da continuidade

do relacionamento amoroso remete a um dos primeiros textos poéticos escritos da literatura portuguesa. Há quem diga que a cantiga de amigo “Ai eu coytada”, de D. Sancho I (1154-1211), rei de Portugal, dedicada à formosa Maria Paes Ribeiro, merece ser considerada o manuscrito inau-gural da literatura portuguesa. Observe como o trovador incorpora poeti-camente o ponto de vista feminino para descrever o sentido saudosismo da mulher perante a ausência do amado:

Ai eu coitada!

Como vivo en gran cuidado (cuidado: “aflição”)

por meu amigo

que ei alongado! (ei alongado: “tenho esperado”)

Muito me tarda

o meu amigo na Guarda!

Ai eu coitada!

Iluminura medieval das Cantigas de Santa Maria, de Afonso X.

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Como vivo en gran desejo (desejo: “recordação saudosa”)

por meu amigo

que tarda e non vejo!

Muito me tarda

o meu amigo na Guarda! (apud SPINA, 1996, p. 319)

O manuscrito dessa composição se encontra registrado no Cancioneiro da Biblioteca Nacional, sob o número 456. Logo no primeiro verso, a mulher se diz coytada. Como dissemos, a palavra coyta traduzia o tormento passional dos amantes. Ela sofre de saudade (en gran desejo) de tanto esperar (que ei alon-gado) por seu namorado que se está em uma cidade distante (na Guarda). O fato de não vê-lo intensifi-ca ainda mais a recordação saudosa.

A aparente simplicidade dessa cantiga é típica de uma das manifestações da poesia lírica que se desenvolveu na Península Ibérica. Nas cantigas de amigo, que têm origem galego-portuguesa, percebe-se o papel ativo da mulher na busca de soluções para os seus anseios erótico-sentimentais. A composição é válida para se pensar um tipo peculiar de cantiga de amigo,

o das paralelísticas, que aliam uma simplicidade de motivos e recursos semânticos ao elaborado arranjo da sua expressão, através de um esquema de repetitividade que enriquece o sentido pelo tom de litania e sugestão encanta-tória, muitas vezes magoada, perplexa ou interrogativa, que cria. (CANTIGAS DE AMIGO, 2008)

Em outras palavras, entre os temas desenvolvidos nas cantigas de amigo, encontramos situações da vida amorosa das moças casadoiras. A mulher expressa os seus ciúmes e dúvidas, ou faz confidên-cias dos seus sucessos amorosos.

As cantigas de amigo também podem ser dialogadas, embora o sujeito poético feminino não dirija necessariamente o seu lamento para o destinatário do seu amor (o amigo), mas para a mãe ou amigas, ou mesmo para elementos inanimados (árvores, ondas).

Afora o tipo de voz que inicia as cantigas, o espaço é decisivo para a sua classificação. As canções de amor são identificadas por traduzirem o ponto de vista de um sujeito poético masculino e pelo cenário palaciano. Já as cantigas de amigo se ambientam fora do palácio e do templo: ora no campo, sob frondosas avelaneiras ou pinheiros, ora junto ao mar, ora à frente das igrejas.

Enfim, não se pode esquecer que essas duas modalidades da lírica medieval se destinavam ao canto e a dança. O esquema paralelístico e o estribilho ou refrão são os elementos formais que punham em evidência essa relação.

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Descoberto por Pedro Vindel este pergaminho contém as letras e as respectivas pautas musicais das cantigas de Martim Codax (segunda metade do séc. XIII).

Segundo Spina, o esquema paralelístico diz respeito a um processo repetitivo que constitui o fundamento da poesia popular, sendo que na sua base “estão presentes a música e a dança alternada a dois coros” (SPINA, 1996, p. 396). A presença do coro é sugerida pelo refrão ou estribilho: “um fragmento poético no corpo da composição, ao qual regressa constantemente o coro (às vezes cantados por um solista), entre a execução de uma estrofe e outra” (SPINA, 1996, p. 400).

É o que ocorre na cantiga de D. Sancho, tanto pela presença do refrão (“Muito me tarda / o meu amigo na Guarda!”), quanto pelo recurso à estrutura simples da forma paralelística: “Como vivo en gran cuidado / Como vivo en gran desejo”. A repetição de versos semelhantes, com alterações nas palavras finais, permite que a ideia principal se reproduza ao longo do poema, facilitando sua memorização.

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Cantigas de Escárnio e Maldizer Apesar de alguns estudiosos considerarem a vertente satírica do trovadorismo como uma

produção menor dentro desse movimento (MOISÉS, 1980, p. 28), acreditamos que ela tenha qualidade e significado relevantes dentro da literatura medieval. As modalidades satíricas que estudaremos são escárnio e maldizer.

Nas cantigas de escárnio, como já dissemos, o trovador critica sem individualizar a pessoa que estaria sendo criticada. As de maldizer são aquelas em que a pessoa criticada é mencionada. Fazendo um esquema, temos:

cantiga de escárnio:::: – sátira a alguém com sutileza, sendo que o processo estilístico utilizado é a ironia;

cantiga de maldizer:::: – sátira direta, com linguagem obscena.

Tais cantigas revelam aspectos típicos da vida dos jograis ou segreis, bem como da corte. Os jograis levavam uma vida diferente do artificialismo cortês ou do regime servil a que estava sujeito o trabalhador comum. Socialmente, esses artistas eram párias. Nas suas canções, eles contavam suas experiências com mulheres da vida, bebedeiras, fidalgos de menor expressão com pretensões a senhor feudal, as sovinices de um senhor etc.

No entanto, esse tipo de cantiga não se restringia ao jogral, pois qualquer trovador, até mesmo o rei D. Dinis, trataram dessa temática e lançaram mão desse gênero poético. Em algumas cantigas, podemos inclusive ver a rivalidade entre jograis e trovadores: os primeiros queriam ascender da condição de executantes para a de compositores, enquanto os segundos defendiam a manutenção da hierarquia.

Em termos políticos, a sátira foi pouco utilizada, mas ela é o documento de uma época, pois a condição dos jograis – andando de castelo em castelo, de feira em feira – possibilita-nos o conhecimento daquela realidade sob variados aspectos. Tomemos como exemplo disso a canção de João Garcia Guilhade:

Ai dona fea! foste-vos queixar porque vos nunca louv’en meu trobar mais ora quero fazer un cantar en que vos loarei toda via; e vedes como vos quero loar: dona fea, velha e sandia!

Ai dona fea! se Deus mi perdon! e pois havedes tan gran coraçon que vos eu loe en esta razon,

vos quero já loar toda via; e vedes qual será a loaçon: dona fea, velha e sandia!

Dona fea, nunca vos eu loei en meu trobar, pero muito trobei; mais ora já un bon cantar farei en que vos loarei toda via; e direi-vos como vos loarei: dona fea, velha e sandia! (GUILHADE, 2008)

O poeta João Garcia Guilhade foi um importante trovador português do século XIII e nos deixou, além de cantigas de escárnio como “Ai Dona Fea”, também cantigas de amor e de amigo (COHEN, 1996). No poema citado, o trovador se dirige a uma dama que se queixava de nunca receber versos dele, louvando sua pessoa. Irritado com a cobrança, o poeta explica que os únicos elogios que lhe poderia fazer eram “feia, velha e louca”.

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Principais trovadores João Soares de Paiva – considerado o mais antigo poeta em português com a canção “Ora faz ::::host’o senhor de Navarra”. O poema se encontra no Cancioneiro da Vaticana.

Paio Soares de Taveirós – visto como o autor de um dos primeiros textos em português, “Canção ::::da Ribeirinha” (1189 ou 1198). Sua obra se encontra no Cancioneiro da Ajuda.

D. Afonso X, o Sábio – rei de Leão e Castela, era avô de D. Dinis. Escreveu numerosos versos, ::::sendo os mais conhecidos as Cantigas de Santa Maria.

D. Dinis – a figura mais proeminente do trovadorismo português. Foi rei de Portugal, grande ::::incentivador das artes e do conhecimento (fundou a Universidade de Coimbra) e um dos melhores e mais profícuos poetas do período. Frequentou todos os gêneros poéticos da época: cantigas de amor, amigo, escárnio e maldizer.

Martim Codax – sua história é pouco conhecida, mas as poucas composições (sete cantigas de ::::amigo) que nos deixou foram compiladas junto com a notação musical dos poemas.

A permanência do Trovadorismo Aproveitando o fio da meada, ao longo do século XIX e do século XX ocorreu uma verdadeira

revisitação à cultura medieval. Se a Era Clássica escolheu o passado greco-latino como modelo, o Romantismo escolheu para si a recriação do passado medieval.

Enquanto estética do século XIX, o Romantismo se relaciona com a reação aos preceitos clássicos e a busca da identidade nacional. Daí a valoração do medievo, berço da nação lusitana e da cristandade. O gosto pelo medievo se constata tanto na arquitetura com a (re)construção de templos góticos como também nos motivos poéticos e procedimentos compositivos da literatura medieval.

Vamos dar dois exemplos.

Alexandre Herculano, principal escritor do movimento romântico em Portugal, escreveu um ::::romance histórico intitulado Eurico, o Presbítero (1844), ambientado no século VIII, que revive o clima das novelas de cavalaria e o espírito das Cruzadas típicas da prosa medieval. O autor também era poeta e um de seus versos é autoexplicativo: “Eu, o cristão, trovador do exílio” (HERCULANO, 2008).

Almeida Garrett, no melhor livro de poemas do romantismo português, intitulado :::: Folhas Caídas, retoma o lirismo fluente, de ritmos populares, das composições medievais. Leia-se o poema intitulado “Barca Bela”:

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A retomada dos processos de composição da arte poética medieval se observa pela escolha da chamada medida velha – no caso, as redondilhas (os dois primeiros versos possuem sete sílabas poéticas). Note-se ainda que esse poema reitera um mesmo verso, à guisa de refrão, como remate de cada estrofe. Enfim, a repetição de versos com a mesma identidade semântica, na primeira e na última estrofe, lembra a estrutura paralelística das cantigas trovadorescas.

Para Garrett, a reação romântica contra a literatura clássica de feições greco-latinas “trouxe a renascença da poesia nacional e popular”. Segundo ele, “nenhuma coisa pode ser nacional se não for popular” (FERREIRA, s.d., p. 5). Assim, Garrett deixa bem claro que essa retomada é uma contribuição à busca da cor local, ou dos matizes da identidade pátria.

Dicas de estudoA propósito das manifestações da Literatura Medieval, consulte o site <http://alfarrabio.::::di.uminho.pt/vercial/trovador.htm>, que apresenta vários exemplos das modalidades da poesia trovadoresca. Vale dizer que esse site é considerado a maior base de dados sobre a Literatura Portuguesa, do medievo às textualidades contemporâneas.

Consulte também o Portal Galego, <http://www.agal-gz.org/modules.php?name=Biblio.>. ::::Nele você vai encontrar um excelente elenco de cantigas e uma bela galeria de iluminuras medievais.

Texto complementar Vamos ler os fragmentos que restaram da Arte de Trovar conservados nos fólios 3 e 4 do Cancioneiro

da Biblioteca Nacional (também conhecido pelo nome de Cancioneiro Colocci-Brancuti), que definem aspectos fundamentais da poética trovadoresca. Em seguida, os pertinentes comentários da professora Yara Frateschi Vieira.

Pescador da barca bela, Onde vais pescar com ela, Que é tão bela, Ó pescador?

Não vês que a última estrela No céu nublado se vela? Colhe a vela, Ó pescador!

Deita o laço com cautela, Que a sereia canta bela...

Mas cautela, Ó pescador!

Não se enrede a rede nela, Que perdido é remo e vela Só de vê-la, Ó pescador,

Pescador da barca bela, Inda é tempo, foge dela, Foge dela Ó pescador! (ALMEIDA GARRETT, 2008)

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A Poética Galego-Portuguesa(VIEIRA, 2008)

Capítulo QuartoE como há algumas cantigas em que falam tanto eles como elas, por isso é importante que

entendais se são de amor ou de amigo, porque se falam eles na primeira cobra e elas na outra, é de amor, pois move-se segundo a argumentação dele (como vos dissemos antes); e se falam elas na primeira cobra, então é de amigo; e se falam ambos em uma cobra, então depende de qual deles fala primeiro na cobra.

Capítulo QuintoCantigas d’escárnio são aquelas que os trovadores fazem, querendo dizer mal de alguém nelas,

e dizem-lho por palavras cobertas que tenham dois entendimentos, para que não sejam entendidas... ligeiramente: e essas palavras chamam os clérigos equivocatio. E essas cantigas se podem fazer também de mestria ou de refrão. E embora alguns digam que há algumas cantigas de “joguete d’arteiro”, essas não são mais do que de escárnio, nem têm outro entendimento. Mas também dizem ainda que há outras “de risabelha”: essas ou são de escárnio ou de maldizer; e chamam-lhes assim porque riem por causa delas às vezes os homens, mas não são coisas em que haja sabedoria ou qualquer outro bem.

Capítulo SextoCantigas de maldizer são aquelas que fazem os trovadores [contra alguém] descobertamente:

nelas entrarão palavras em que querem dizer mal e não terão outro entendimento se não aquele que querem dizer claramente. [...]

O quarto capítulo em que se contêm seis capítulos.

Capítulo quartoAs fiindas são coisas que os trovadores sempre costumaram pôr no fim das suas cantigas,

para concluírem e acabarem melhor nelas os argumentos (razones) que disseram nas cantigas, chamando-lhes fiinda, porque quer dizer conclusão de argumento.

E essa fiinda podem fazê-la de uma ou de duas ou de três ou de quatro palavras (versos). E se a cantiga for de mestria, a fiinda deve rimar com a última cobra; e se for de refrão, deve rimar com o refrão. E ainda que diga que a cantiga deve ter uma delas, houve alguns (trovadores) que lhe fizeram duas ou três, segundo a vontade de cada um deles. E também outros houve que as fizeram sem fiindas, mas a fiinda dá um melhor acabamento.

Capítulo quinto: contém dois capítulos

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Capítulo segundoAlém disso, como o disse, as cantigas [podem] fazer-se em rimas longas ou breves ou em todas

misturadas. E por isso convém mostrarmos quais são as rimas longas ou as breves, embora não possamos mostrá-las todas cabalmente, porque são muitas e de muitas maneiras: no entanto, todas as rimas que acabam nestas vogais, as quais sejam as últimas, são longas, convém saber: as que acabam no a ou no o; após o a ou o o, põe o e ou qualquer das outras vogais que se ponham no fim da rima na última sílaba, ela sozinha. E as outras rimas todas que se acabam em letras breves, todas são curtas; por isso convém que o trovador que quiser trovar, se começar em sílabas longas ou em curtas, com elas acabe; poderá, porém, meter na cobra umas e outras, se quiser, contanto que, da maneira que as meter numa cobra, da mesma forma as meta nas outras. No entanto, convém que, se assim as meter, que faça rimar longas com longas e curtas [com curtas].

ComentárioA Arte de Trovar anônima e fragmentária, que se encontra aposta ao atual Cancioneiro da Biblioteca

Nacional de Lisboa, antigo Cancioneiro Colocci-Brancuti, é o único documento dessa natureza de que dispõe a lírica galego-portuguesa dos séculos XIII e XIV. Segundo o seu último editor, não é improvável que tenha sido redigido pelo Conde Barcelos, filho de D. Dinis, ou por um dos dois trovadores que devem ter colaborado com ele na organização do cancioneiro: João de Gaia e Estêvão da Guarda.

Pelo fato de ser o único texto a tentar uma sistematização da arte poética trovadoresca ga-lego-portuguesa, é realmente uma pena que tenha chegado a nós em forma acéfala: antes de ter sido feita a única cópia que possuímos, já se tinham perdido os títulos um e dois e parte do ter-ceiro. O tratado teria seis títulos, dividido cada um em capítulos. Podemos perceber uma certa or-ganização na distribuição da matéria: assim, o terceiro título, além dos gêneros mais prestigiosos, trata de formas dialogadas e “dialógicas”, no sentido contemporâneo de um texto que utiliza outro já existente e o reelabora (as cantigas de “seguir”); o quarto título dedica-se a questões de estrutu-ra textual, tais como o número de cobras por composição e de versos por cobra; procedimentos de coesão interestrófica, como a “palavra perduda”, a “ateúda”, a “fiinda”, o “dobre” e o “mozdobre”; o quinto título ocupa-se da adequada utilização dos tempos verbais e da necessidade de manter a coerência temporal, embora remeta o leitor para o que se expôs anteriormente em relação ao “mozdobre”; outro procedimento de coerência textual é a estrutura rímica, que pode incluir rimas longas ou breves, mas não permite rimar longas com breves; finalmente, o último título trata mui-to brevemente dos erros poéticos provenientes de encontros entre vocábulos que produzem “pa-lavras feias” (cacófato), e de encontros entre vogais que produzem sons desagradáveis (hiato). O que nos resta do tratado começa no capítulo quarto do título terceiro, dedicado às cantigas dialo-gadas em que falam o homem e a mulher. Podemos supor que pelo menos dois dos três capítulos anteriores tratassem dos dois gêneros maiores: a cantiga de amor e a cantiga de amigo, uma vez que, por um lado, como nos diz o autor anônimo, anteriormente já falara da cantiga de amor e, por outro lado, as cantigas de escárnio e maldizer ocuparão os capítulos cinco e seis. A descrição que o tratadista oferece da cantiga de amor é bastante sumária: nas suas próprias palavras, ela se move a razon d’ele – dito isso assim, de forma tão sintética, não fica muito claro o que queria dizer, embora possamos supor que significaria algo como “move-se segundo a argumentação dele”, ou

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desenvolve-se apresentando o ponto de vista do homem. Preferimos a versão “move-se segundo a argumentação dele”, porque o próprio texto declara que o critério decisivo para estabelecer se a cantiga dialogada é de amor ou de amigo é determinar quem fala primeiro na cobra, e a cantiga de amor é em geral um “arrazoado” sobre o amor do poeta (razon).

Os capítulos quinto e sexto desse título terceiro são importantes, porque nos elucidam acerca do critério para distinguir as cantigas de escárnio das de maldizer, embora já o próprio cancionei-ro use a expressão às vezes de forma não discriminada, apresentando, na rubrica, algumas cantigas como de escárnio e maldizer. De qualquer forma, segundo o tratadista, é decisiva para a caracteriza-ção dessas cantigas a presença ou a ausência daquilo que os letrados chamam de equivocatio, ou seja, ambiguidade. A cantiga de escárnio é, portanto, aquela que se vale dessa figura lógica ou retó-rica para falar mal de alguém, por “palavras cobertas que tenham dois entendimentos, para que não sejam entendidas... ligeiramente: e essas palavras chamam os clérigos equivocatio, enquanto a can-tiga de maldizer se faz “descobertamente: nelas entrarão palavras em que querem dizer mal e não terão outro entendimento senão aquele que querem dizer claramente”. É relevante observar que o autor do tratado exibe o seu conhecimento da cultura “clerical”, usando o termo latino para a figura lógica e retórica da ambiguidade e explicando o seu sentido. Oferece depois um elemento técnico, informando que essas cantigas tanto podem ser de mestria (isto é, sem refrão) como de refrão, o que nos leva novamente a supor que esses termos tivessem sido objeto de descrição anterior, num ca-pítulo que tratasse desses dois tipos de estrutura poética comuns na lírica galego-portuguesa. Essa terminologia retorna no capítulo primeiro do título quarto, onde se discutem os “talhos” (a estrutu-ra) das cantigas: o texto, porém, apresenta dificuldades de leitura, reconhecidas pelo seu editor, que impedem a cabal compreensão.

No capítulo segundo do título quarto, dá uma informação clara sobre a “palavra perduda”, isto é, o verso (ou dois versos) que alguns trovadores, para mostrarem maior mestria, colocaram na can-tiga, sem que rimasse com nenhum outro verso da mesma estrofe; ela pode vir no começo, no meio ou no fim da estrofe, mas depois deverá ser repetida a mesma rima no mesmo lugar nas demais es-trofes. Outros recursos estruturais merecem a sua atenção, como a “fiinda”, a forma de composição chamada “ateúda”, o dobre e o mozdobre (capítulos terceiro, quinto e sexto do título quarto). O capí-tulo sobre as rimas supõe que o leitor conhece a terminologia empregada para os dois tipos de rima, isto é, a rima longa (oxítona ou aguda) e a rima breve (paroxítona ou grave). A explicação é muito mais perfunctória do que a que já antes víramos em outros tratados poéticos vernáculos, como no de Jofre de Foixá, pois deixa de lado a questão crucial do acento. O texto conclui com um tratamen-to muito rápido de alguns erros que se podem cometer na composição trovadoresca, desculpando-se o autor pela sua brevidade, porque “os erros são tantos – e de tantas maneiras – que não posso falar em todos completamente”.

O tratado galego-português impressiona, portanto, como geralmente pouco minucioso e pouco rigoroso nas suas definições e descrições. Não contém, tampouco, como alguns dos demais tratados vernáculos, exemplificação fornecida pelos textos. Nem seria de grande utilidade para o aspirante a poeta, embora algumas vezes o autor pareça dirigir-se a ele: por exemplo, quando diz algo como “convém que o trovador que quiser trovar”. As mais das vezes, porém, a sua intenção soa como mais descritiva do que didática, baseando-se de forma normativa na tradição seguida pelos trovadores, conforme o autor a percebe.

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O tratadista revela possuir um critério de mestria técnica (capítulo sobre a fiinda), marcado também pelo uso abusivo das expressões “convém que” ou “não convém que” e do verbo “dever”, e de “valor poético”, fundado no domínio da técnica, mas também, embora esse ponto não seja desenvolvido de forma suficiente, no campo da moral. Por esse motivo, exclui do rol das composições que devem ser registradas ou imitadas aquelas que “não são coisas em que haja arte ou qualquer outro bem”, e das composições, aquelas palavras que se aproximam da “caçorria ou lixo, que não convém ser posto numa boa cantiga”.

Atividades1. A propósito das origens das cantigas de amor galego-portuguesas, António José Saraiva e Oscar

Lopes afirmam, em sua História da Literatura Portuguesa, que os provençais eram os modelos a seguir. Cite versos de D. Dinis que podem corroborar essa tese.

2. O que significa escrever uma canção de amor à maneyra de proençal? Justifique apontando pelo menos três das suas principais características temáticas.

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3. É possível estabelecer correspondências entre o que as canções de amor expõem e a organização da sociedade medieval? Justifique.

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Gabarito1. D. Dinis (1261-1325) foi um dos mais fecundos compositores galego-portugueses e os seus versos

que denotam a origem provençal das cantigas de amor são estes:

Quer’eu en maneyra de proençal fazer agora hun cantar d’amor..

2. Ao afirmar que deseja fazer canção de amor à maneyra de proençal, D. Dinis, o Rei Trovador, define o modo do seu fazer poético pautado nas regras da arte originárias da região da Provença, o Sul da França medieval. Entre as principais características podem-se mencionar que:

o sujeito poético (a voz do poema) é masculino;::::

a mulher é idealizada, geralmente chamada de “mia senhor”; e::::

a vassalagem amorosa é paciente e com respeito constante.::::

3. Sim, pois nas canções de amor o sujeito poético masculino deve se colocar em uma posição de inferioridade ou submissão absoluta diante da mulher, jurando fidelidade e demonstrar respeito constante. Ao exaltar as virtudes da “mia senhor”, o sujeito poético se comporta como um vas-salo ou servo diante do seu suserano e desse modo reproduz e reforça as relações sociais típicas do feudalismo.

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