STRAUSS, Claude Levi. Cru e o Cozido

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     M itológicas 

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    tradução de beatriz perrone-moisés

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    O CRU E O COZIDO

    C laude Lévi-Strauss

    mitológicas 1

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    5 Traduzir as Mitológicas [Beatriz Perrone-Moisés]

    19 ABERTURA

    PRIMEIRA PARTE Tema e variações

    57 i . Canto bororo

    91 ii . Variações jê

    SEGUNDA PARTE

    107 i . Sonata das boas maneiras163 ii . Sinfonia breve

    TERCEIRA PARTE

    177 i . Fuga dos cinco sentidos197 ii . Cantata do sarigüê

    QUARTA PARTE  A astronomia bem temperada

    233 i . Invenções a três vozes251 ii . Duplo cânon invertido277 iii . Tocata e fuga295 iv . Peça cromática

    QUINTA PARTE Sinfonia rústica em três movimentos

    327 i . Divertimento sobre um tema popular343 ii . Concerto de pássaros363 iii . Bodas

    389 TABELA DE SÍMBOLOS

    391 BESTIÁRIO

    399 ÍNDICE DE MITOS

    407 ÍNDICE DE FIGURAS

    409 ÍNDICE REMISSIVO

    419 BIBLIOGRAFIA435 SOBRE O AUTOR

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    T raduzir as Mitológicas

    Traduzir Lévi-Strauss é um grande desafio. Autor de uma obra cuja impor-tância transborda o campo da antropologia, Lévi-Strauss é também reconhe-

    cido como escritor. Membro da Academia Francesa, afirmou, em diversosmomentos, sua preocupação com a boa utilização da língua francesa.“A lín-gua é o instrumento de trabalho dos que escrevem — declarou certa vez —um instrumento complicado e de manejo difícil. Convém conhecer seusrecursos e seus limites, algo interminável”.1 E ainda:“Sempre lamentei, ao medirigir a artesãos, ter de usar perífrases pesadas e desajeitadas quando elesdispõem de termos precisos para cada ferramenta,cada material,cada gesto”.Criador de idéias, processos e ferramentas analíticas, Lévi-Strauss é um mes-tre artesão da língua francesa que trabalha cuidadosamente o texto. O estilopróprio, refinado e preciso, só faz tornar mais difícil, em seu caso, o desafioinerente a qualquer tradução.

    Vejo-me diante desse considerável desafio desde , quando fiz minhaprimeira tradução de uma obra de Lévi-Strauss2 consagrada à análise estru-

    Traduzir as Mitológicas |  

    Ú . Lévi-Strauss e Eribon, De perto e de longe, p. (do original). . Tratava-se de A oleira ciumenta (São Paulo: Brasiliense,). Em seguida,vieram aprimeira tradução de O cru e o cozido (São Paulo: Brasiliense, ), História de Lince

    (São Paulo: Companhia das Letras, ) e o último livro de Lévi-Strauss, este não dedi-cado à mitologia, Olhar, escutar, ler (São Paulo: Companhia das Letras, ).

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    tural de mitos ameríndios.A presente tradução do primeiro volume das Mito-lógicas integra o projeto,acalentado há anos,de oferecer aos leitores brasileirosa íntegra da tetralogia, que constitui um marco na antropologia. Pareceu-meser este um momento propício para apresentar algumas reflexões geradas,aolongo de quase duas décadas, pela empreitada de tradução de análises mito-lógicas deste autor.3

    A própria antropologia é freqüentemente comparada à tradução: trata-sede transportar sentidos entre culturas, com todas as transformações que issoexige.E a língua tem,aí,um papel fundamental.Pois embora nem tudo o quea antropologia traduz seja texto, quase tudo o que ela produz o é. E porqueainda que não haja, como aponta Lévi-Strauss,“correlação total em todos os

    níveis” entre língua e cultura, ambas remetem a princípios estruturantescomuns.4 Ou seja, aquilo que só é dizível numa língua muitas vezes parececorresponder a algo que só é pensável na cultura a que está ligada. Todo tra-dutor, como todo antropólogo,em algum momento se vê diante de idéias quesó parecem existir na língua em que foram pensadas. Pensando em/comofrancês, o antropólogo Lévi-Strauss pensaria “coisas” não pensadas ou nãopensáveis em português?5

    Como se não bastassem esses, as Mitológicas colocam problemas especí-ficos. Já de saída, o tradutor se vê diante de uma enorme profusão de termos

    técnicos que pertencem a outras disciplinas, como a zoologia, a botânica, aastronomia. Além de, evidentemente, um vocabulário próprio à etnologia,

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    Ú . Em relação à tradução publicada em ,mencionada acima,esta contém modifica-ções consideráveis,entre revisões, correções e melhorias.Algumas dessas modificaçõesdecorrem da verificação, ao longo dos anos, de falhas na versão anterior. Outras resul-tam da reflexão a que se referem estas notas de tradução.Vários colegas acompanharama lenta elaboração dessas idéias, e me ajudaram a pensar os problemas e as soluções.Entre eles, agradeço especialmente a Eduardo Viveiros de Castro.

    .

    Cf. Lévi-Strauss, Antropologia estrutural ,caps. , e . . Tratar-se-ia de pensar Lévi-Strauss como nativo, nesse sentido que é raramente con-siderado quando se trata de antropólogos,que se supõe exprimam “sua cultura cultural-mente,isto é, reflexiva,condicional e conscientemente”(E. Viveiros de Castro,“O nativorelativo”.  Mana, v. , n. ,abril de , p. ). Sempre me pareceu,aliás,que nada haviade fortuito em um “nativo” francês como Lévi-Strauss chamar a atenção para o fato deque cozinhar e vestir podem ser pensados como processos congruentes de passagem danatureza à cultura (ou cru : cozido :: nu : vestido :: natureza : cultura),nem tampouco napresença constante de análises relativas aos bons modos (discrição excesso,medida x desmedida, respeito x desrespeito etc.). Acompanhando os títulos da tetralogia, per-

    cebe-se um périplo pela mitologia ameríndia que se inicia pela culinária, para terminarna “alta costura”, passando pela etiqueta...

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    que inclui cultura material, organização social, cosmologia. Estas referênciascontínuas ao ambiente e costumes dos povos que contam os mitos fornecemuma primeira lição: a análise estrutural do mito, contrariamente ao que àsvezes se afirma, não pode ser feita sem referências precisas e detalhadas aoscontextos específicos de produção dos mitos.

    As  Mitológicas são, além disso, freqüentemente formuladas em termosmatemáticos e musicais cuja presença remete a um aspecto central da análise.É que a matemática e a música são, aqui, muito mais do que fontes de analo-gias: ao lado do mito e da linguagem, constituem o conjunto dos “seres estru-turais”6 e, em relação a estes últimos, são as expressões mais próximas do“espírito humano” em estado “puro”, por assim dizer. Natural, portanto, que

    a análise estrutural dos mitos tão freqüentemente adote seus códigos. Essapresença central corresponde à maior dificuldade de tradução: a solidarie-dade entre forma e conteúdo. Nas Mitológicas, a forma, moldada em francêspor um grande artesão de sua língua, não se distingue da análise. É, antes, aprópria análise, que se apresenta como uma garrafa de Klein, para utilizaruma referência do autor: objeto cujo interior e exterior não são “faces”, masaspectos de um plano contínuo.Como conseguir, então,manter o objeto ape-sar de sua transformação pela tradução? Como configurar de outra forma otexto, sem lhe afetar a mensagem?

    Sabe-se que uma das críticas feitas à análise proposta por Lévi-Straussreside justamente no fato de apoiar-se não em textos de mitos na sua versãooriginal, mas em traduções. No fechamento das  Mitológicas, Lévi-Straussconsidera, uma a uma, as críticas e objeções feitas à sua análise dos mitosameríndios.A objeção de certos lingüistas e filólogos, quanto à utilização detraduções e ausência de análise lingüística dos textos é, por ele,considerada a“mais séria e digna de atenção”; merece, por isso, duas páginas de esclareci-mentos e várias outras menções. Toda a empreitada das Mitológicas, diz Lévi-Strauss, teria sido impossível a partir de um ponto de vista filológico. E sua justificativa é sua capacidade de indicar caminhos de interpretação, de pro-duzir conhecimento.Outras considerações esclarecem a questão da tradução,como esta, em que emerge com clareza:

    todo mito é por natureza uma tradução,origina-se em outro mito proveniente de

    uma população vizinha mas estrangeira, ou num mito anterior da mesma popu-

    lação, ou ainda contemporâneo, mas pertencente a outra subdivisão social [...]

    que um ouvinte trata de demarcar, traduzindo-o a seu modo, em sua linguagem

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    Ú . Lévi-Strauss, O homem nu,pp. - (do original).

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    pessoal ou tribal, ora para apropriar-se dele ora para desmenti-lo, e assim, sem-

    pre, deformando-o [quem conta um conto aumenta um ponto... mas retornemos

    a Lévi-Strauss]. Se o estudo filológico dos mitos não constitui condição prévia

    indispensável, a razão disso se encontra no que poderíamos chamar de sua natu-

    reza diacrítica. Cada uma de suas transformações resulta de uma oposição dialé-

    tica a uma outra transformação, e sua essência reside no fato irredutível da tradu-

    ção pela e para a oposição. Encarado do ponto de vista empírico, todo mito é ao

    mesmo tempo primitivo em relação a si mesmo, derivado em relação a outros;

    não se situa em uma língua ou em uma cultura ou subcultura, mas no ponto de

    articulação entre elas e outras línguas e outras culturas. O mito não é,conseqüen-

    temente, jamais de sua língua, é uma perspectiva sobre uma língua outra, e o

    mitólogo que o apreende através de uma tradução não se sente numa situaçãomuito diferente da do narrador ou de seu ouvinte.7

    Por isso, na análise proposta,podem retirar-se dos mitos as amarras lingüísti-cas, e mantêm-se as estruturas, ou princípios estruturantes.“Pura realidadesemântica”, diz mais adiante, o mito como veículo de significação, ainda quenecessite da língua (de alguma língua) para expressar-se, pode “descolar deseu suporte lingüístico, ao qual a história que narra está menos intimamenteligada do que seria o caso em mensagens comuns”.8 Finalmente, é dispensá-

    vel, afirma Lévi-Strauss, que se conheça,e conseqüentemente, que se analise alíngua em que um determinado mito era contado no momento em que, regis-trado, passou a constituir matéria de referência para a análise. “A língua por-tadora de um mito perde muito de sua pertinência específica em face de umsentido que se preserva quando é confiado a suportes lingüísticos diferentes”.9

    Já nas últimas páginas de O cru e o cozido, Lévi-Strauss aponta para ana-logias universais que, independentes da língua materna de cada um, podemser familiares a todos nós.10 Por outro lado, a língua em que os mitos foramnarrados no momento em que foram registrados não desaparece completa-

    | Traduzir as Mitológicas

    Ú . Lévi-Strauss,“Final”, in O homem nu,pp. - (do original). . Id.,ibid.,p. .Noto que,apesar de não ser de uso corrente no Brasil,em português,como em francês, aviões também “descolam”... e faço-o porque esse tipo de “eco”, ou“sombra”, das palavras empregadas tece redes de significações e imagens como aquelasque Lévi-Strauss recupera nos mitos, e que sua análise nos faz acompanhar, e perceber. . Id.,ibid.,p.. . Ver pp. -, infra. No mesmo sentido, Lévi-Strauss elenca uma série de expres-

    sões, em várias línguas, que permitem pensar o mel e o tabaco como um par, no iníciode Do mel às cinzas.

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    mente da análise,que incorpora, constantemente, informações acerca das eti-mologias e usos de palavras, expressões e nomes próprios.11 De qualquermodo, é próprio da análise estrutural dos mitos lançar mão de dados dediversos planos: a língua dos povos que narram os mitos, se não é a base daanálise, nem por isso deixaria de fornecer-lhe indícios preciosos.

    Lévi-Strauss afirma que sua obra é, ela mesma, um mito. Vamos levaradiante a comparação, “para ver no que dá”, como ele diz em várias passa-gens de suas análises, como se nos convidasse a acompanhá-lo numa expedi-ção arriscada, cujo ponto de chegada não se pode ainda prever. Mas qual osentido dessa afirmação? Tratar-se-ia da atualização, em língua francesa, dagrande sintaxe do espírito que opera também, e com excepcional transparên-

    cia, nos mitos, de modo que, entre a língua francesa e a grande sintaxe doespírito, sua obra estaria num entre-dois, como o mito, segundo ele, entre afala e a língua? Ancorada na língua francesa em que se expressa (porque nal-guma língua tem de expressar-se) e ao mesmo tempo descolada dessa línguaem que é narrada.Ainda mais neste caso, de uma análise cujo ponto de vistaé declaradamente relativo, que oferece uma perspectiva sobre essas línguasoutras que são complexos míticos dos povos ameríndios.

    Lévi-Strauss mostra que os mitos, ao passarem de um povo para outro,sofrem modificações.A passagem de um mito de um povo para outro impli-

    ca tradução; ancoragens diversas (e não exclusivamente lingüísticas) obrigamos mitos a rearranjos, para que sua estrutura se mantenha.Uma das proprie-dades fundamentais do pensamento mítico,afirma Lévi-Strauss,é a seguinte:

    quando um esquema mítico passa de uma população para outra, e estas apresen-

    tam diferenças de língua, de organização social ou de modo de vida que o tornam

    dificilmente comunicável, o mito começa a se empobrecer e se embaralhar. Mas

    pode-se perceber uma passagem no limite onde, em vez de ser definitivamente

    abolido, perdendo completamente seus contornos, o mito se inverte e recupera

    parte de sua precisão.12

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    Ú . Alguns exemplos, pinçados ao acaso: sentidos e ecos do nome do herói bororo, Bai-togogo,em O cru e o cozido (cf. p.-ss, infra); os nomes de Vênus e Júpiter em xerenteem Do mel às cinzas (p. do original); consideração detalhada do nome de um ritualmandan em A origem dos modos à mesa (p. do original). E inclusive uma perguntalançada aos filólogos, quanto à aparente semelhança entre os nomes de personagens

    míticos arapaho e cowlitz,em O homem nu (p. , n. do original). . Lévi-Strauss, Antropologia estrutural dois, p. (do original).

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    Nas quatro obras que traduzi, uma só passagem obrigou-me a incluir umanota de tradução relativamente longa; trata-se de um exemplo eloqüente doancoramento lingüístico da análise de Lévi-Strauss, dificuldade especial-mente “boa para pensar”, para usar aquela que talvez seja a expressão maisutilizada (e desgastada) produzida por nosso autor. Ocorre em A oleira ciu-menta,e gira em torno do campo semântico recoberto,em francês,pelos ter-mos éclat/éclatement/éclater . Lévi-Strauss nos leva a percorrer trilhas de sig-nificação que ligam dezenas de mitos de dezenas de povos do sul ao norte dasAméricas, e no processo de reconstituição dos campos semânticos desses mi-tos, sua análise avança com naturalidade e elegância, em francês. Em portu-guês, contudo, o leitor pode sentir-se sem apoio, quando segue seus percur-

    sos, pois o campo semântico da família dos éclats tem de ser desdobrado, emportuguês, em “brilhos”, “lascas”, “estilhaços”, “gargalhadas”, “explosões”, eoutros termos. Ou seja, o campo, em português, é estilhaçado, e com ele,parte considerável da análise. Se essa passagem me persegue como um fan-tasma há quase duas décadas, e me faz refletir acerca da tradução, é porque setrata de um considerável “vazamento”de sentido.13

    O sentido da palavra latina que se encontra na raiz da palavra “tradução”é transferência. Quando Lévi-Strauss fala das versões de um mito como tra-duções,remete,mais do que a uma língua ou uma cultura outras, a uma rela-

    ção de transposição, que se pode entender, do mesmo modo que à noção detransformação estrutural, em termos geométricos. O tradutor operaria,assim, como um “transferidor”. Entre o francês e o português, o mito circulaentre “próximos”, o que em princípio indicaria que não se exigiriam tantasmodificações para a transferência: nessas “culturas-línguas” próximas, osobstáculos tenderiam a ser aplainados, enquanto se multiplicariam os pontoscomuns.14 Por outro lado, no trecho que citei acima, em que Lévi-Straussfalava da passagem de mitos entre populações diversas, o empobrecimento eo embaralhamento ocorriam,justamente,entre “próximos”, sendo a inversão

    | Traduzir as Mitológicas

    Ú . Não por acaso, trata-se de um livro que versa sobre cerâmica, cuja fabricação exigeo fogo (que tem éclat , que aparece no éclat de riso de pássaros, originário de éclats depedras etc.), fogo esse que também pode fazê-la rachar, ou... éclater . Tampouco é for-tuito que este livro desenvolva a questão da “garrafa de Klein”, mencionada no início:sua forma lingüística é,mais do que em outras obras,o seu conteúdo. Sob formas enfra-quecidas e, portanto, de modo menos torturante para o tradutor, a questão permanecenas demais Mitológicas.

    . Cf. Mário Laranjeira, A poética da tradução (São Paulo: Edusp/Fapesp, ),p. .A expressão “cultura-língua” é de Henri Meschonnic.

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    que recupera parte da clareza característica das passagens “nos limites”, istoé, nas fronteiras externas, entre troncos lingüísticos diferentes, por exemplo.Nesse caso, pode ser mais difícil traduzir as mitológicas lévi-straussianaspara o português do que para uma língua totalmente alheia à família latina...Trechos de mitos aparentemente desconexos, como demonstra Lévi-Strauss,adquirem sentido quando remetidos a outras versões, variantes ou mitos deoutros povos,que pertencem ao mesmo complexo grupo de transformações,esse conceito original e essencial da análise estrutural do mito.Se a obra é, elamesma, um mito, sempre se pode esperar que passagens que pareçam esdrú-xulas ou incompletas em cada versão/ tradução possam ser esclarecidas gra-ças à consideração da versão francesa que é nosso “mito de referência”. Não

    é, afinal, essa a razão de ser e intuito das notas de tradução,e inclusive desta?Contudo,nas Mitológicas, a formulação integra a significação.Trata-se de

    um tipo de texto que os especialistas definem como literário,15 que apresentaà tradução o obstáculo do que a moderna semiótica chama “significância”,um processo de geração de sentido situado no próprio texto, na cadeia designificantes.O que afastaria consideravelmente este “mito da mitologia” dosmitos ameríndios aqui analisados...

    A análise de Lévi-Strauss não pode ser infirmada por seu ancoramentoevidente na língua francesa. Se a própria nota de tradução permite tornar

    compreensível ao leitor não-francófono a lógica do texto,ainda que às custasde sua elegância e fluência, podemos crer que sobrevive, nessas versões quesão as traduções,a grande sintaxe do espírito que Lévi-Strauss nos quer mos-trar nos mitos: ao mesmo tempo descolada das várias linguas humanas eapenas perceptível quando conformada, encarnada, numa delas. Se as línguassão formas atualizadas, corporificadas, vividas, constituídas a partir de regrasestruturantes que estão aquém e além delas, e essas regras (“as estruturas doespírito”) não podem ser percebidas a não ser através de suas atualizações, alíngua em que Lévi-Strauss pensa e escreve não poderia deixar de infletir suaatualização do pensamento acerca do pensar humano.Línguas diferentes sãorecortes semânticos diferentes,são relações sintáticas e semânticas diferentes.Permanecem as regras que presidem aos recortes de todas as línguas, e atodas as possibilidades de relações e encaixes, as estruturas do espírito que

    Traduzir as Mitológicas |  

    Ú . Há textos, esclarece Laranjeira, em que “a língua, o código, deixa de ser apenas umsuporte, um veículo, para fazer parte integrante da própria mensagem. [...] Estamosentão diante de textos tradicionalmente ditos literários,diante da escritura, do texto em

    sua acepção moderna, com tendência para o apagamento das fronteiras entre prosa epoesia”. Id. ibid., p..

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    Lévi-Strauss com tanto brilho (éclat , em francês) e elegância nos convida asurpreender em ação no pensamento mítico ameríndio. E se as Mitológicassão mitos da mitologia, estas versões brasileiras, apesar de afastadas de suasbelíssimas amarras lingüísticas originais, se bem “transferidas”, serão capa-zes de manter a grandeza de seus mitos de referência.Essa é a aposta.

    sobre algumas escolhas nesta tradução das mitológicas

    armação (do mito) — armature, em francês, é o encaixe de peças de ma-deira ou metal que mantém, sustenta, as diversas partes de uma obra; é a car-pintaria; outras palavras, como “arcabouço”, poderiam ter sido utilizadas

    para traduzir este conceito central na análise estrutural do mito. Teriam avantagem de afastar o aspecto “malandro”que o termo armação pode evocar;mas entre a rigidez de carcaça e confinamento que a palavra “arcabouço”evoca e a esperteza de uma armação, preferi manter a segunda, mesmo por-que me parece que é de esperteza, no melhor sentido da palavra, que se trataaqui.Ainda que a armação dos mitos, do ponto de vista lógico, seja sólida erigorosa, revela-se flexível, transformável, criativa, capaz de suportar e permi-tir as mais diversas “construções”. As armações dos mitos, obras do engenhohumano são, efetivamente, espertas.

    bestiário — Grande parte dos nomes de animais sul-americanos, em fran-cês, tem origem tupi. Este fato, de que os franceses raramente se dão conta,não surpreende quando se considera que seus antepassados conheceramestes animais no século xvi, através dos seus aliados Tupinambá na costa doBrasil, e levaram para casa, junto com os desenhos e espécimes, junto com asdescrições que incorporavam o conhecimento indígena, seus nomes: jaguar,tapir, sarigue, agouti, tamanoir, tatou, urubu, toucan, ara... Os nomes de ori-gem tupi também permaneceram em português: jaguar, tapir, sarigüê, cutia,tamanduá, tatu, urubu, tucano, arara... Por alguma razão, os três primeirosanimais são mais conhecidos, no Brasil,por nomes de origem não-tupi: onça,anta e gambá. Privilegiando o uso corrente, optei, em traduções anteriores,por estes últimos. Opto, nesta tradução,por manter os nomes de origem tupi,e neles toda uma realidade sensível e inteligível indígena, além de traços dahistória das relações entre europeus e grupos tupi.“Jaguar” é a raiz tupi-gua-rani para o nome de uma variedade de felinos americanos, de onde jaguati-rica, jaguarundi,etc.A onça pintada era chamada de “jaguaretê”,“jaguar pro-

    priamente dito”. Nesta tradução,consoante ao que se encontra registrado nosdicionários,“jaguar” é (sinônimo de) “onça pintada”,“tapir”é “anta” e “sari-

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    güê” é “gambá”. Este último é mais conhecido, em vastas regiões do Brasil,como mucura, outra palavra de origem tupi. O termo “sarigüê” foi escolhidopor apresentar a possibilidade de flexão de gênero (sarigüê/sarigüéia), quetambém busquei aproveitar, em algumas passagens, em relação aos pares ja-guar-onça e tapir-anta:“seu”jaguar e “dona”onça são onças pintadas, Pantheraonca,“seu”tapir e “dona”anta são Tapirus terrestris. Como as citações de obrasescritas em português foram recuperadas dos originais, algumas passagens daanálise, que falam em jaguares, são entremeadas por citações que falam emonças.Em tempo.Além dos mencionados,são também nomes de origem tupi:capivara, irara, jabuti, jacaré, jacu, mutum, paca, preá, quati. A lista poderiaalongar-se.E nós,em geral,não temos mais consciência do tupi que falamos —

    ou de quanto aprendemos com os Tupi — do que os franceses.

    donos, senhores, mestres — Os primeiros mitos das Mitológicas narrama história da perda do fogo pelo jaguar, que era o “dono do fogo”. Outrosmitos apresentarão personagens que são controladores, geradores, represen-tantes de coisas e seres, sob várias formas.A noção que Lévi-Strauss unificasob a expressão “maître de” é complexa e variável. Há casos em que essasfiguras não são entendidas como “possuidoras”de coisas ou seres, mas ape-nas como representantes, intermediários obrigatórios entre os humanos e as

    tais coisas ou seres. Noutros casos, são “senhores” no sentido de possuíremliderança sobre as tais coisas ou seres, nas quais “mandam”, mas que nem porisso invariavelmente “possuem”. Noutros ainda, trata-se de figuras que pro-duzem,geram,coisas ou seres, em que podem ou não mandar, cuja manuten-ção,distribuição e reprodução podem ou não controlar... Em cada complexomitológico, a melhor tradução será a que mais de perto remeter a essas dis-tinções.Aqui, por se tratar de um esforço comparativo, era necessário utilizarum único termo. O jaguar é, de fato, “dono” do fogo: era ele que possuía ofogo, antes de os humanos o despossuírem, tornando-se então os donos dofogo. Porque começamos por ele, mantive, ao longo da tradução, a expressão“dono de”para traduzir “maître de”.

    enganador — este personagem mitológico, conhecido na literatura antro-pológica de língua inglesa como trickster , figura na obra de Lévi-Strausscomo décepteur . Em traduções anteriores e na primeira tradução de O cru e ocozido, optei por fabricar a palavra “deceptor”, a partir da mesma origemlatina. Proponho aqui a tradução “enganador”, visto que o engano,ao contrá-

    rio da decepção, não remete obrigatoriamente a uma frustração. Noto que,em francês, a déception também é entendida como frustração de expectativa

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    inicial positiva, o que fortalecia a opção anterior. Creio, contudo, que rarosleitores associavam o “deceptor” ao trickster , e que a ressonância negativa dapalavra acabava por obscurecer aspectos fundamentais da noção. Pois osenganadores dos mitos podem surpreender positivamente, ou seja, podemrevelar-se “positivos” quando se desconfiava de que fossem “negativos”; frus-tram expectativas tanto positivas como negativas. Caracterizados pela ambi-güidade, nunca se pode prever se são sinceros ou mentirosos, se seus gestoscorrespondem a suas intenções, se essas intenções são boas ou más... o queeles operam, é justamente a coexistência de sinais contraditórios, o embara-lhamento de distinções, posto que são mediadores, por excelência, entreopostos lógicos.Diante deles,uma única certeza: eles zombam de todos,con-

    fundem a todos, enganam sempre. Enganadores são gozadores, malandros,imprevisíveis, e espertos. Entre nós, o mais conhecido desses enganadores é,sem dúvida, Macunaíma.

    Embarquemos,pois,nessa viagem que nos leva pela “terra redonda da mitolo-gia”,16 do “cru”ao “nu”, de reflexões acerca da matéria do mundo em que vivemos humanos — nas categorias empíricas que abrem O cru e o cozido —, ao

    “nada”, poeira silenciosa de estrelas a que somos lançados no “Final” de Ohomem nu. Da natureza às elaborações da cultura que constitui a condiçãohumana,e de volta à natureza.Ao mesmo tempo grandioso e ínfimo no cursodo universo, o espírito humano expõe, através de Lévi-Strauss, esses impo-nentes monumentos do engenho que são os complexos míticos dos povosindígenas das Américas, não menos refinados ou surpreendentes do queoutras obras a que se costuma associar privilegiadamente a capacidade cria-tiva humana.

    Beatriz Perrone-Moisés

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    Ú . Lévi-Strauss,“Preâmbulo”, in Do mel às cinzas.

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     À Música. Coro para vozes femininas com solo (para inaugurar a casa de

    um amigo). Letra de Edmond Rostand. Música de Emmanuel Chabrier.

     Mè ——————— re du sou-ve- nir — et nour ri —————ce – du

    rê ———— ve, C’est toi ————qu’il nous plait au — jour —

    — d’hui, d’in - vo - quer sous ce toit! —

    à música

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    A B E R T U R A

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    O objetivo deste livro é mostrar de que modo categorias empíricas, como asde cru e de cozido,de fresco e de podre, de molhado e de queimado etc.,defi-níveis com precisão pela mera observação etnográfica, e sempre a partir doponto de vista de uma cultura particular, podem servir como ferramentasconceituais para isolar noções abstratas e encadeá-las em proposições.

    A hipótese inicial requer, pois, que nos situemos de imediato no nívelmais concreto, isto é, no seio de uma população, ou de um grupo de popula-ções suficientemente próximas pelo habitat ,pela história e pela cultura.Con-tudo, essa é uma precaução metodológica, certamente imperativa, mas quede modo algum dissimula ou restringe o nosso projeto. Utilizando algunspoucos mitos tomados de sociedades indígenas que irão servir-nos de labo-ratório, faremos uma experiência que, se bem-sucedida, terá um alcancegeral, já que esperamos que demonstre a existência de uma lógica das quali-dades sensíveis, que elucide seus procedimentos e que manifeste suas leis.

    Partiremos de um mito, proveniente de uma sociedade, e o analisaremosrecorrendo inicialmente ao contexto etnográfico e em seguida a outros mitos

    da mesma sociedade. Ampliando progressivamente o âmbito da investiga-ção, passaremos a mitos provenientes de sociedades vizinhas, situando-os

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    igualmente em seu contexto etnográfico particular. Pouco a pouco, chegare-mos a sociedades mais afastadas, mas sempre com a condição de que ligaçõesreais de ordem histórica ou geográfica possam ser verificadas ou justificada-mente postuladas entre elas.Serão descritas,nesta obra,apenas as etapas ini-ciais dessa longa excursão através das mitologias indígenas do Novo Mundo,que começa no coração da América tropical e — podemos prevê-lo desde já— nos conduzirá até as regiões setentrionais da América do Norte. Mas se,do início ao fim, o fio condutor será fornecido por um mito dos índios Bo-roro do Brasil Central, a razão desse procedimento não deve ser procuradanem na hipótese de que esse mito seja mais arcaico do que outros, que estu-daremos depois dele, nem na suposição de que o consideremos mais simples

    ou mais completo. As causas que o impuseram de início à nossa atenção sãolargamente contingentes. E, se desejamos que a exposição sintética reprodu-zisse tanto quanto possível o procedimento analítico, isso se deveu ao fato deque,desse modo,a estreita ligação que cremos existir nessas questões entre osaspectos empírico e sistemático haveria de ser ainda mais evidenciada se ométodo empregado começasse por atestá-la.

    De fato,o mito bororo,doravante designado pela expressão mito de referên-cia, não é — como tentaremos demonstrar — senão uma transformação maisou menos elaborada de outros mitos,provenientes da mesma sociedade ou de

    sociedades próximas ou afastadas.Teria sido legítimo,portanto,escolher comoponto de partida qualquer representante do grupo. O interesse do mito de refe-rência não reside,nesse sentido,em seu caráter típico,mas,antes,em sua posi-ção irregular no seio de um grupo. Pelos problemas de interpretação quecoloca, ela é, com efeito, especialmente apropriada ao exercício da reflexão.

    É de esperar que nossa empresa, mesmo tendo sido assim definida, esbarreem objeções prejudiciais por parte de mitógrafos e especialistas da Américatropical. De fato, ela não se deixa restringir a limites territoriais ou a classifi-cações.Não importa o modo como a encaremos,ela se desenvolve como umanebulosa,sem jamais reunir de modo durável ou sistemático a soma total doselementos de onde tira cegamente a sua substância, certa de que o real lheservirá de guia e lhe mostrará um caminho mais seguro do que aqueles quepoderia ter inventado.A partir de um mito escolhido, senão arbitrariamente,mas em virtude do sentimento intuitivo de sua riqueza e fecundidade, e em

    seguida analisado de acordo com as regras estabelecidas em trabalhos ante-riores (Lévi-Strauss a, b, , a), configuramos o grupo de

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    transformações de cada seqüência, seja no interior do próprio mito, seja elu-cidando as relações de isomorfismo entre seqüências extraídas de váriosmitos provenientes da mesma população.Assim, já nos elevamos da conside-ração de mitos particulares à de certos esquemas condutores que se ordenamsobre um mesmo eixo. Em cada ponto desse eixo assinalado por um es-quema, traçamos na vertical, digamos assim, outros eixos resultantes damesma operação, mas agora não mais efetuada por meio dos mitos de umaúnica população,aparentemente diferentes, e sim de mitos que, embora per-tencentes a populações vizinhas, apresentam certas analogias com os primei-ros. Desse modo, os esquemas condutores se simplificam, se enriquecem ouse transformam.Cada um deles se torna origem de novos eixos,perpendicu-

    lares aos precedentes em outros planos, aos quais logo irão agarrar-se, porum duplo movimento prospectivo e retrospectivo, seqüências extraídas demitos provenientes de populações mais remotas ou de mitos inicialmentedescartados por parecerem inúteis ou impossíveis de interpretar, emborapertencentes a povos já considerados. À medida que a nebulosa se expande,portanto, seu núcleo se condensa e se organiza. Filamentos esparsos se sol-dam, lacunas se preenchem, conexões se estabelecem, algo que se assemelhaa uma ordem transparece sob o caos. Como numa molécula germinal, se-qüências ordenadas em grupos de transformações vêm agregar-se ao grupo

    inicial, reproduzindo-lhe a estrutura e as determinações. Nasce um corpomultidimensional, cuja organização é revelada nas partes centrais, enquantoem sua periferia reinam ainda a incerteza e a confusão.

    Mas não esperamos observar o estágio em que a matéria mítica, inicial-mente dissolvida pela análise, ficará cristalizada na massa, tendo em todaparte o aspecto de uma estrutura estável e bem determinada.Além do fato dea ciência dos mitos ainda estar engatinhando e de dever dar-se por satisfeitapor obter apenas um esboço de resultado, temos desde já a certeza de queessa etapa final jamais será atingida, pois, ainda que a suponhamos teorica-mente possível,não há,e jamais haverá, uma população ou grupo de popula-ções cujos mitos e a etnografia (sem a qual o estudo dos mitos torna-se im-potente) sejam objeto de um conhecimento exaustivo. Tal ambição chega aser desprovida de sentido, já que se trata de uma realidade instável, perma-nentemente à mercê dos golpes de um passado que a arruína e de um futuroque a modifica. Em relação a cada um dos casos ilustrados pela literatura,estamos sem dúvida longe disso,contentes pelo simples fato de dispormos deamostras e fragmentos.Vimos que o ponto de partida da análise deve, inevi-

    tavelmente, ser escolhido ao acaso, já que os princípios de organização damatéria mítica estão contidos nela e só se revelarão progressivamente. Tam-

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    bém é inevitável que o ponto de chegada se imponha por si só e de impro-viso: quando um certo estado da empresa mostrar que seu objeto idealadquiriu forma e consistência suficientes para que algumas de suas proprie-dades latentes, e sobretudo sua existência enquanto objeto, sejam absoluta-mente inquestionáveis.Assim como o microscópio óptico, que é incapaz derevelar ao observador a estrutura última da matéria, só podemos escolherentre vários graus de aumento: cada um deles torna visível um nível de orga-nização,cuja verdade é apenas relativa, e exclui, enquanto adotado,a percep-ção dos outros níveis.

    Essas considerações explicam, até um certo ponto, as características deum livro que poderia, de outro modo, ser julgado paradoxal. Embora consti-

    tua um volume completo, que desemboca em conclusões que proporcionamao leitor as respostas para as perguntas feitas no início, refere-se freqüente-mente a um segundo volume, por trás do qual talvez já se delineie um ter-ceiro. Mas esses volumes, se um dia vierem à luz, não formarão uma seqüên-cia, e sim uma retomada dos mesmos materiais, um enfoque diferente dosmesmos problemas, na esperança de revelar propriedades que ficaram con-fusas ou passaram despercebidas, recorrendo a novos esclarecimentos e colo-rindo de outro modo os cortes histológicos. Se a investigação transcorrer deacordo com os planos, ela não evoluirá, portanto, sobre um eixo linear, mas,

    sim, em espiral, voltando regularmente a antigos resultados e englobandonovos objetos apenas na medida em que seu conhecimento permita aprofun-dar um conhecimento até então rudimentar.

    Tampouco não deve causar surpresa o fato de este livro, declaradamenteconsagrado à mitologia,recorrer a contos, lendas e tradições pseudo-históri-cas e fazer amplas referências a ritos e cerimônias. Na realidade,rejeitamos asopiniões precipitadas sobre o que é e o que não é mítico e reivindicamos paranosso uso toda e qualquer manifestação da atividade mental ou social daspopulações estudadas que, durante a análise, se revelar capaz de completar omito ou esclarecê-lo, mesmo que não constitua, no sentido que os músicosdão ao termo,um acompanhamento “obrigatório” (cf., sobre esse ponto, Lévi-Strauss a: cap. ). Numa outra ordem de idéias, embora a pesquisa seconcentre em mitos da América tropical, de onde provém a maior parte dosexemplos,são as exigências da análise que,à medida que ela avança,impõema utilização da contribuição de mitos provenientes de regiões mais afastadas,como os organismos primitivos, que, mesmo envoltos numa membrana,mantêm ainda a capacidade de mover seu protoplasma no interior do invó-

    lucro e de distendê-la prodigiosamente para emitir pseudópodes: um com-portamento que não parece tão estranho quando verificamos que seu intuito

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    é capturar e assimilar corpos estranhos. E, finalmente, evitamos qualquerreferência às classificações preconcebidas dos mitos em cosmológicos, sazo-nais, divinos, heróicos, tecnológicos etc. Aqui, mais uma vez, cabe ao mito,submetido à prova da análise, revelar sua própria natureza e se enquadrardentro de um tipo; meta inatingível para o mitógrafo enquanto ele se basearem características externas e arbitrariamente isoladas.

    Em suma, a especificidade deste livro é não ter um tema; restringindo-seinicialmente ao estudo de um mito, ele deve, para fazê-lo de modo incom-pleto, assimilar a matéria de duzentos. A preocupação que o inspira, de selimitar a uma região geográfica e cultural bem demarcada, não evita que detempos em tempos ele tome os ares de um tratado de mitologia geral.Ele não

    tem começo, já que teria se desenvolvido de modo análogo se seu ponto departida houvesse sido determinado em outro local; tampouco tem fim, poistrata de vários problemas de forma apenas sumária, enquanto outros sãosimplesmente apresentados, à espera de melhor sorte. Para preparar o nossomapa, fomos obrigados a fazer elevações “em rosácea”: montando inicial-mente em torno de um mito o seu campo semântico, graças à etnografia epor meio de outros mitos, e repetindo a mesma operação para cada um deles,de modo que a zona central, escolhida aleatoriamente, possa ser recortadapor vários percursos, mas a freqüência das superposições diminua à medida

    que nos distanciamos do centro. Para obter uma varredura constante damesma densidade, seria, portanto, preciso que o procedimento fosse refeitovárias vezes, traçando novos círculos a partir de pontos situados na periferia.Mas,ao mesmo tempo,o território primitivo seria ampliado.A análise míticase afigura, assim, semelhante a uma tarefa de Penélope. Cada progresso trazuma nova esperança, atrelada à solução de uma nova dificuldade. O dossiênunca está concluído.

    Devemos, porém,confessar que, longe de nos assustar, a estranha concep-ção deste livro se nos afigura como o sinal de que talvez tenhamos conse-guido captar, graças a um plano e a um método que mais se impuseram doque foram escolhidos, algumas das propriedades fundamentais de nossoobjeto. Sobre o estudo dos mitos, já dizia Durkheim (: ):“É um pro-blema difícil,que deve ser tratado em si,por si e segundo um método que lheseja específico”. Ele sugeria também a razão desse procedimento, quandoevocava mais adiante os mitos totêmicos, “que, certamente, não explicamnada e apenas deslocam a dificuldade, mas que, ao deslocá-la, parecem pelomenos atenuar-lhe o escândalo lógico” (id. ibid.: ). Uma definição pro-

    funda que poderia, em nossa opinião, ser estendida a todo o campo do pensa-mento mítico, dando-lhe um sentido mais amplo do que pretenderia o autor.

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    O estudo dos mitos efetivamente coloca um problema metodológico, namedida em que não pode adequar-se ao princípio cartesiano de dividir adificuldade em tantas partes quantas forem necessárias para resolvê-lo. Nãoexiste um verdadeiro término na análise mítica, nenhuma unidade secretaque se possa atingir ao final do trabalho de decomposição. Os temas se des-dobram ao infinito. Quando acreditamos tê-los desembaraçado e isoladouns dos outros,verificamos que,na verdade, eles se reagrupam, atraídos porafinidades imprevistas. Conseqüentemente, a unidade do mito é apenas ten-dencial e projetiva, ela nunca reflete um estado ou um momento do mito.Fenômeno imaginário implícito no esforço de interpretação, seu papel é darao mito uma forma sintética e impedir que se dissolva na confusão dos con-

    trários. Poder-se-ia, portanto, dizer que a ciência dos mitos é uma anaclás-tica, tomando esse termo antigo no sentido lato, autorizado pela etimologia,e que admite em sua definição o estudo dos raios refletidos e refratados.Mas, à diferença da reflexão filosófica, que pretende remontar à sua origem,as reflexões de que se trata aqui dizem respeito a raios que não existem senãocomo virtualidade.A divergência das seqüências e dos temas é um atributofundamental do pensamento mítico. Ela se manifesta sob o aspecto de umairradiação que é a única em relação à qual a medida das direções e de seusângulos incita a postular uma origem comum: ponto ideal onde os raios des-

    viados pela estrutura do mito haveriam de se reencontrar se, justamente, nãoproviessem de algures e não tivessem permanecido paralelos ao longo detodo o trajeto. Como mostraremos na conclusão deste livro,essa multiplici-dade oferece algo de essencial, pois está ligada ao duplo caráter do pensa-mento mítico, que coincide com seu objeto, constituindo dele uma imagemhomóloga, mas sem jamais conseguir fundir-se com ele, pois evolui numoutro plano. A recorrência dos temas traduz essa mistura de impotência etenacidade. O pensamento mítico, totalmente alheio à preocupação compontos de partida ou de chegada bem definidos, não efetua percursos com-pletos: sempre lhe resta algo a perfazer. Como os ritos,os mitos são in-termi-náveis. E, querendo imitar o movimento espontâneo do pensamento mítico,nosso empreendimento, igualmente curto demais e longo demais,teve de securvar às suas exigências e respeitar seu ritmo. Assim, este livro sobre osmitos é, a seu modo, um mito. Supondo-se que possua uma unidade, esta sóaparecerá aquém e além do texto.Na melhor das hipóteses,será estabelecidano espírito do leitor.

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    Mas é certamente no plano da crítica etnográfica que atraímos a maior partedas censuras.Apesar da nossa extrema preocupação com a informação, cer-tas fontes foram deixadas de lado, mesmo quando eram acessíveis.1 Nemtodas as fontes utilizadas foram mantidas na redação definitiva. Para nãotornar a exposição demasiadamente pesada, foi preciso fazer a triagem dosmitos, escolher determinadas versões, suprimir motivos de suas variantes.Poderemos ser acusados de ter moldado a matéria da investigação de acordocom nosso projeto. Pois se, de uma massa considerável de mitos, tivésse-mos mantido apenas aqueles mais favoráveis à demonstração, esta perderiamuito de sua força. Conclui-se que, para ousar abordar sua comparação, te-ria sido preciso vasculhar efetivamente a totalidade dos mitos conhecidos da

    América tropical?Tal objeção assume um relevo particular diante das circunstâncias que

    atrasaram a publicação deste livro. Ele estava quase pronto quando se anun-ciou a publicação da Enciclopédia Bororo [eb], e esperamos que a obra che-gasse à França para explorá-la antes de dar ao texto sua forma final. Mas,uti-lizando o mesmo raciocínio, não deveríamos ter esperado pela publicação,em dois ou três anos, do segundo volume, que será consagrado aos mitos, eda parte que tratará dos nomes próprios? Em verdade, o estudo do volumepublicado trazia um outro ensinamento,apesar das riquezas que contém. Os

    salesianos, que registraram suas próprias mudanças de opinião com muitatranqüilidade, quando não deixam simplesmente de mencioná-las, são bas-tante rígidos quanto à coincidência entre uma informação publicada por umautor e outra mais recente, colhida por eles mesmos. Em ambos os casos,cometem o mesmo erro metodológico. O fato de uma informação contradi-zer uma outra coloca um problema, mas não o resolve. Nós temos mais res-peito pelos informantes, tanto os nossos quanto os antigamente utilizadospelos missionários, cujo testemunho tem, por isso, um valor particular. Osméritos dos salesianos são tão notórios, que se pode, sem trair o reconheci-mento que lhes é devido, fazer-lhes uma leve crítica: eles têm a lamentáveltendência a crer que a informação mais recente anula todas as outras.

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    Ú . Assim, por terem sido publicadas recentemente,algumas obras como Die Tacana, deKarin Hissink e Albert Hahn (),só foram exploradas superficialmente,e outras,quechegaram à França após a conclusão deste livro, nem sequer tocadas. É o caso de Jo-hannes Wilbert, Indios de la región Orinoco-Ventuari () e Warao Oral Literature() e de Niels Fock, Wawai, Religion and Society of an Amazonian Tribe (), no

    qual já encontramos,no entanto, um mito de sarigüê que comprova nossas análises dasterceira e quarta partes. Esses novos materiais serão aproveitados num outro volume.

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    Não duvidamos nem por um instante que a consideração de outros docu-mentos,publicados ou a publicar,afetará nossas interpretações.Algumas delas,aventadas prudentemente, talvez recebam uma confirmação; outras serão aban-donadas ou modificadas. Mas não seja por isso: em disciplinas como a nossa,o saber científico avança aos tropeços, fustigado pela contenda e pela dúvida.E deixa à metafísica a impaciência do tudo ou nada. Para que nosso empreendi-mento seja válido, não é necessário, em nossa opinião, que goze durante anos,e até os mínimos detalhes,de uma presunção de verdade.Basta que se lhe reco-nheça o modesto mérito de ter deixado um problema difícil numa situaçãomenos ruim do que aquela em que o encontrou.Não devemos esquecer que naciência não pode haver verdades estabelecidas. O estudioso não é o homem

    que fornece as verdadeiras respostas; é aquele que faz as verdadeiras perguntas.Avancemos um pouco mais.Os críticos que nos censurassem por não ter-

    mos executado um inventário exaustivo dos mitos sul-americanos antes deanalisá-los cometeriam um grave equívoco sobre a natureza e o papel dessesdocumentos. O conjunto de mitos de uma população é da ordem do dis-curso. A menos que a população se extinga física ou moralmente, esse con- junto nunca é fechado. Os lingüistas deveriam, então, ser igualmente censu-rados por escreverem a gramática de uma língua sem terem registrado atotalidade das palavras que foram pronunciadas desde que a língua existe, e

    sem conhecerem as trocas verbais que ocorrerão enquanto ela existir.A expe-riência prova que um número irrisório de frases, em comparação com todasas que um lingüista poderia teoricamente ter coletado (sem mencionar aque-las que ele não pôde conhecer porque foram ditas antes que ele iniciasse o seutrabalho ou na sua ausência, ou porque serão ditas mais tarde), permite-lheelaborar uma gramática da língua que ele estuda. E mesmo uma gramáticaparcial, ou um esboço de gramática representam aquisições preciosas quan-do se trata de línguas desconhecidas.A sintaxe não espera que uma série teo-ricamente ilimitada de eventos tenha sido registrada para se manifestar, poisela consiste no corpo de regras que preside sua geração. Ora, o que pretende-mos esboçar é justamente uma sintaxe da mitologia sul-americana. No mo-mento em que novos textos vierem enriquecer o discurso mítico, ocorrerá ocontrole ou modificação do modo como foram formuladas certas leis grama-ticais, a renúncia a algumas delas e a descoberta de novas leis. Mas, de todomodo,a exigência de um discurso mítico total não poderia ser colocada comoum obstáculo.Pois acabamos de ver que tal exigência não tem sentido.

    Uma outra objeção seria mais grave.Poder-se-ia,efetivamente, contestar-

    nos o direito de escolher nossos mitos aqui e acolá, de explicar um mito doChaco por uma variante guianense, um mito jê por seu análogo colombiano.

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    Porém, por maior que seja seu respeito pela história e seu empenho em apro-veitar todas as suas lições, a análise estrutural não quer se ver confinada aosperímetros já circunscritos pela investigação histórica. Ao contrário, demons-trando que mitos de proveniências muito diferentes formam objetivamenteum grupo, ela coloca um problema para a história, incentivando-a a partirem busca de uma solução. Constituímos um grupo, e esperamos ter dadoprovas de que se trata de um grupo. Cabe aos etnógrafos,aos historiadores eaos arqueólogos dizer como e por quê.

    Mas todos podem ficar tranqüilos. Para explicar o caráter de grupo queapresentam os mitos reunidos pela nossa investigação (e que o foram apenaspor essa razão), não esperamos que a crítica histórica possa, um dia, reduzir

    um sistema de afinidades lógicas à enumeração de uma infinidade de emprés-timos, sucessivos ou simultâneos, que populações contemporâneas ou antigasteriam feito umas às outras, através de distâncias e lapsos de tempo às vezestão consideráveis que qualquer interpretação desse tipo seria pouco plausívelou, em todo caso, impossível de se verificar. Por isso começaremos convi-dando o historiador a ver na América indígena uma Idade Média à qual teriafaltado sua Roma: massa confusa, originária de um velho sincretismo cujatextura foi certamente muito frouxa, no seio da qual subsistiram aqui e acolá,durante vários séculos, focos de alta civilização e povos bárbaros, tendências

    centralizadoras e forças de fragmentação. Embora estas últimas tenham pre-valecido, por força de causas internas e devido à chegada dos conquistadoreseuropeus,é certo que um grupo,como o que constitui o objeto de nossa inves-tigação, deve seu caráter ao fato de se ter, de certo modo, cristalizado nummeio semântico já organizado, cujos elementos tinham servido a todos ostipos de combinações: não tanto, sem dúvida, por vontade de imitar, senãopara permitir que sociedades pequenas, porém numerosas, afirmassem suarespectiva originalidade explorando os recursos de uma dialética de oposi-ções e correlações, no âmbito de uma concepção de mundo comum.

    Tal interpretação, que deixaremos apenas como esboço,baseia-se eviden-temente em conjecturas históricas: alta antigüidade do povoamento da Amé-rica tropical, deslocamentos repetidos em todos os sentidos de várias tribos,fluidez demográfica e fenômenos de fusão criando condições para um sin-cretismo muito antigo, a partir do qual se produziram as diferenças observá-veis entre os grupos, que não refletem nada ou quase nada das condiçõesarcaicas, mas são, em geral, secundárias e derivadas. Apesar da perspectivaformal que adota, a análise estrutural valida, portanto, interpretações etno-

    gráficas e históricas que propusemos há mais de vinte anos e que, considera-das temerárias na época (cf. Lévi-Strauss a: -ss; cap. ), só fizeram

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    ganhar terreno. Se alguma conclusão etnográfica se depreende deste livro, é ade que na verdade os Jê, longe de serem os “marginais”que se imaginava em, durante a redação do volume do Handbook of South American Indians(hipótese contra a qual protestávamos já na época), representam, na Américado Sul, um elemento central, cujo papel é comparável ao desempenhado, naAmérica do Norte, pelas culturas muito antigas e seus sobreviventes estabe-lecidos nas bacias dos rios Fraser e Colúmbia.Quando nossa investigação sedeslocar para as regiões setentrionais da América do Norte, os fundamentosdessa aproximação aparecerão com mais clareza.

    Era necessário evocar pelo menos esses resultados concretos da análise estru-tural (outros resultados, limitados às culturas da América tropical, serão ex-postos neste livro), para alertar os leitores contra a acusação de formalismo,ou mesmo de idealismo,que às vezes nos é dirigida.Mais ainda do que nossasobras anteriores, este livro não estaria desviando a investigação etnológicapara os caminhos — que deveriam continuar sendo proibidos para ele — dapsicologia, da lógica e da filosofia? Não estaríamos assim contribuindo paradesviar a atenção da etnografia de suas verdadeiras tarefas, que consistiriam

    no estudo de sociedades concretas e dos problemas nelas colocados pelas rela-ções entre os indivíduos e os grupos, do triplo ponto de vista, social, políticoe econômico? Essas preocupações,freqüentemente expressas,resultam a nossover de um total desconhecimento da tarefa a que nos propusemos. E colocamem dúvida — o que nos parece mais grave — a continuidade do programaque seguimos metodicamente desde As estruturas elementares do parentesco,quando, pelo menos contra esta obra,não parece que a mesma objeção possaser razoavelmente formulada.

    Se O pensamento selvagem marca uma espécie de pausa em nossa tentativa,é somente porque era preciso recuperar o fôlego entre os dois esforços. Certa-mente,aproveitamos para dar uma olhada no panorama que se estendia diantede nós,valendo-nos da ocasião que se oferecia para medir o trajeto percorrido,estabelecer a seqüência do itinerário e ter uma vaga idéia dos territóriosestrangeiros que teríamos de atravessar, embora não tivéssemos a intenção denos afastar muito de nosso caminho e — a não ser para uma pequena caçadafurtiva — de nos aventurar pelos extremamente bem guardados territórios decaça da filosofia... De qualquer modo, essa parada, que certas pessoas viram

    como uma conclusão, seria apenas temporária,entre a primeira etapa, percor-rida n’ As estruturas, e a segunda, que este livro pretende iniciar.

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    Mais importante, o destino não mudou. Trata-se como sempre de, par-tindo da experiência etnográfica, fazer um inventário dos imperativos men-tais, reduzir dados aparentemente arbitrários a uma ordem, atingir um nívelonde uma necessidade,imanente às ilusões de liberdade,se revela.Por trás dacontingência superficial e da diversidade aparentemente incoerente das regrasde casamento, destacamos, n’ As estruturas, um pequeno número de princí-pios simples, cuja intervenção fazia com que um conjunto muito complexode usos e costumes, à primeira vista absurdos (e assim geralmente considera-dos), fosse redutível a um sistema significativo.Nada garantia,entretanto,quetais imperativos fossem de origem interna. Pode até ser que apenas ecoassem,no espírito dos homens, certas exigências da vida social objetivadas nas ins-

    tituições.Sua ressonância no plano psíquico seria, então, o efeito de mecanis-mos de que só faltava descobrir o modo de operação.

    Portanto, a experiência que iniciamos agora com a mitologia será maisdecisiva.A mitologia não tem função prática evidente; ao contrário dos fenô-menos anteriormente examinados, ela não está diretamente vinculada a umarealidade diferente, dotada de uma objetividade maior do que a sua, cujasordens transmitiria a um espírito que parece ter total liberdade para se entre-gar à própria criatividade espontânea. Conseqüentemente, se se pudesse de-monstrar que, também neste caso, a aparente arbitrariedade, a pretensa liber-

    dade de expansão, a invenção supostamente desenfreada supõem regras queoperam num nível mais profundo,a conclusão inelutável seria de que o espí-rito, deixado a sós consigo mesmo e liberado da obrigação de compor-se comos objetos, fica de certo modo reduzido a imitar-se a si mesmo como objeto;e que,não sendo as leis de suas operações nesse caso fundamentalmente dife-rentes daquelas que ele revela na outra função, o espírito evidencia assim suanatureza de coisa entre as coisas. Sem levar tão longe o raciocínio, basta-nosassimilar a convicção de que, se o espírito humano se mostra determinadoaté mesmo em seus mitos, então a fortiori deve sê-lo em toda parte.2

    Ao deixar-se guiar pela busca dos imperativos mentais, nossa problemá-tica se aproxima da do kantismo, embora caminhemos por outras vias, quenão conduzem às mesmas conclusões. O etnólogo não se sente obrigado,como o filósofo, a tomar como princípio de reflexão as condições de exercí-cio de seu próprio pensamento,ou de uma ciência que é a de sua sociedade ede seu tempo,a fim de estender essas constatações locais a um entendimento

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    Ú . “... Se há leis em algum lugar, deve havê-las por toda parte.”A tal conclusão já chegara

    Tylor, na passagem que,há dezessete anos,colocamos como epígrafe a As estruturas ele-mentares do parentesco.

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    cuja universalidade só pode ser hipotética e virtual. Preocupado com os mes-mos problemas, ele adota um procedimento duplamente inverso. Prefere, àhipótese de um entendimento universal, a observação empírica de entendi-mentos coletivos, cujas propriedades, de certo modo solidificadas, lhe sãoreveladas por inumeráveis sistemas concretos de representações. E visto serele homem de certo meio social, de certa cultura, de certa região e de certoperíodo da história, para quem esses sistemas representam toda a gama dev ariações possíveis no seio de um gênero, escolhe aqueles cuja divergência lheparece mais acentuada, na esperança de que as regras metodológicas que lheserão impostas para traduzir esses sistemas nos termos de seu próprio, e vice-versa, exponham uma rede de imperativos fundamentais e comuns: ginástica

    suprema em que o exercício da reflexão, levado aos seus limites objetivos (jáque estes terão sido antes de tudo localizados e inventariados pela investiga-ção etnográfica), faz saltar cada músculo e as juntas do esqueleto, expondoassim os lineamentos de uma estrutura anatômica geral.

    Reconhecemos perfeitamente esse aspecto de nossa tentativa nas palavrasde Paul Ricoeur, quando a qualifica, com razão,de “kantismo sem sujeito trans-cendental”.3 Mas tal restrição, longe de nos parecer sinal de uma lacuna, senos apresenta como a conseqüência inevitável, no plano filosófico, da escolhaque fizemos de uma perspectiva etnográfica. Como nos pusemos em busca

    das condições para que sistemas de verdades se tornem mutuamente conver-tíveis, podendo, pois, ser simultaneamente admissíveis por vários sujeitos, oconjunto dessas condições adquire o caráter de objeto dotado de uma reali-dade própria, e independente de todo e qualquer sujeito.

    Acreditamos que nada melhor do que a mitologia para ilustrar e demons-trar empiricamente a realidade desse pensamento objetivado. Sem excluirque os sujeitos falantes, que produzem e transmitem os mitos,possam tomarconsciência de sua estrutura e de seu modo de operar,isso não poderia acon-tecer normalmente,mas apenas de modo parcial e intermitente.Ocorre com osmitos o mesmo que com a linguagem: se um sujeito aplicasse conscientementeem seu discurso as leis fonológicas e gramaticais, supondo-se que possuísse o

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    Ú . Ricoeur,“Symbole et temporalité”(:  ). Cf. também p. : “Um inconscientemais kantiano do que freudiano,um inconsciente de categorias, combinatório...”; e p.:“... sistema de categorias sem referência a um sujeito pensante... homólogo à natureza;talvez ele até seja natureza...”. Com sua fineza e argúcia habituais, Roger Bastide (:-) antecipou todo o desenvolvimento precedente.Nossa concordância é ainda mais

    reveladora de sua lucidez pelo fato de eu só ter tomado conhecimento de seu texto,porele comunicado, no momento em que corrigia as provas deste livro.

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    conhecimento e o talento necessários, perderia quase que imediatamente o fiode suas idéias. Do mesmo modo, o exercício e o uso do pensamento míticoexigem que suas propriedades se mantenham ocultas; senão, colocar-nos-íamos na posição do mitólogo, que não pode acreditar nos mitos, pois sededica a desmontá-los. A análise mítica não tem, nem pode ter por objetomostrar como os homens pensam. No caso particular que nos interessaaqui, é no mínimo duvidoso que os indígenas do Brasil Central realmenteconcebam,além dos relatos míticos que os fascinam, os sistemas de relaçõesaos quais os reduzimos. E quando, por meio desses mitos, validamos certasexpressões arcaicas ou figuradas de nossa própria língua popular, a mesmaconstatação se impõe, já que é de fora, e segundo as regras de uma mitologia

    estrangeira, que uma tomada de consciência retroativa se opera de nossaparte. Não pretendemos, portanto, mostrar como os homens pensam nosmitos, mas como os mitos se pensam nos homens, e à sua revelia.

    E, como sugerimos, talvez convenha ir ainda mais longe, abstraindo todosujeito para considerar que, de um certo modo, os mitos se pensam entre si.4

    Pois trata-se, aqui, menos de extrair o que há nos mitos (sem estar, aliás, naconsciência dos homens),do que o sistema dos axiomas e postulados que defi-nem o melhor código possível, capaz de oferecer uma significação comum aelaborações inconscientes,que são próprias de espíritos, sociedades e culturas

    escolhidas entre os que apresentam o maior distanciamento, uns em relaçãoaos outros. Como os mitos se fundam, eles próprios, em códigos de segundaordem (sendo os de primeira ordem aqueles em que consiste a linguagem),este livro forneceria o esboço de um código de terceira ordem, destinado agarantir a tradutibilidade recíproca de vários mitos.Por essa razão, não é equi-vocado considerá-lo como um mito: de certo modo,o mito da mitologia.

    Mas, tanto quanto os outros códigos, este não é inventado ou recebido defora. É imanente à própria mitologia, onde apenas o descobrimos. Um etnó-grafo, trabalhando na América do Sul, espantou-se com o modo como osmitos chegavam a ele:“Cada narrador ou quase conta as histórias a seu mo-do.Mesmo para os detalhes importantes,a margem de variação é enorme...”.E, no entanto, os indígenas não pareciam sensibilizar-se com essa situação:“Um karajá que me acompanhava de aldeia em aldeia ouviu muitas variantesdesse tipo e recebeu-as com uma confiança quase idêntica. Não que ele nãopercebesse as contradições. Mas não tinha o mínimo interesse por elas...”(Lipkind : ). Um comentador ingênuo, procedente de um outro pla-

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    Ú . Os Ojibwa consideram os mitos como “seres dotados de consciência,capazes de pen-sar e de agir”. (William Jones : , n. ).

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    neta, poderia se espantar, com mais razão (já que se trata então de história enão de mito), que, na massa de obras consagradas à Revolução Francesa, osmesmos incidentes não sejam sempre mencionados ou ignorados, e que osrelatados por vários autores apareçam sob ópticas diferentes. E, no entanto,essas variantes se referem ao mesmo país, ao mesmo período, aos mesmosacontecimentos, cuja realidade se espalha por todos os planos de uma estru-tura em camadas. O critério de validade não se prende, portanto,aos elemen-tos da história.Perseguidos isoladamente,cada um deles seria intangível.Masao menos alguns deles adquirem consistência,pelo fato de poderem integrar-se numa série cujos termos recebem mais ou menos credibilidade, depen-dendo de sua coerência global.

    Apesar dos esforços, tão meritórios quanto indispensáveis, para atingiruma outra condição, uma história clarividente deverá confessar que jamaisescapa completamente da natureza do mito. O que se aplica a ela se aplicará,portanto, a fortiori ainda mais a ele. Os esquemas míticos apresentam nomais alto grau o caráter de objetos absolutos, que, se não sofressem influên-cias externas, não perderiam nem ganhariam partes. Segue-se que quando oesquema sofre uma transformação, esta afeta solidariamente todos os seusaspectos. Conseqüentemente, quando um aspecto de um determinado mitoparece ininteligível,um método legítimo consiste em tratá-lo,de modo hipo-

    tético e preliminar, como uma transformação do aspecto homólogo de umoutro mito, ligado para reforço do argumento ao mesmo grupo, e que sepresta melhor à interpretação.Foi o que fizemos diversas vezes: quando resol-vemos o episódio da boca coberta do jaguar em M⁷ pelo episódio inverso daboca escancarada em M⁵⁵; ou o dos urubus realmente prestativos em M¹ apartir dos falsamente prestativos de M⁶⁵. Contrariamente ao que se pode crer,o método não cai num círculo vicioso. Implica somente que cada mito to-mado em particular existe como aplicação restrita de um esquema que asrelações de inteligibilidade recíproca, percebidas entre vários mitos, ajudamprogressivamente a extrair.

    Certamente, devido à nossa aplicação do método, seremos acusados deinterpretar demais e simplificar. Além de não pretendermos que todas assoluções aventadas tenham o mesmo valor, já que insistimos em apontar aprecariedade de algumas delas, seria hipocrisia não levar o nosso pensamen-to até o fim. Responderemos então a nossos eventuais críticos: que importa?Pois,se o objetivo último da antropologia é contribuir para um melhor conhe-cimento do pensamento objetivado e de seus mecanismos, finalmente dá no

    mesmo que, neste livro, o pensamento dos indígenas sul-americanos tomeforma sob a operação do meu pensamento, ou o contrário. O que importa é

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    que o espírito humano, indiferente à identidade de seus mensageiros ocasio-nais, manifesta aí uma estrutura cada vez mais inteligível, à medida queavança o processo duplamente reflexivo de dois pensamentos agindo um so-bre o outro e, nesse processo, ora um, ora outro pode ser a mecha ou a faíscade cuja aproximação resultará a iluminação de ambos.E, se esta vier a revelarum tesouro, não haverá necessidade de árbitro para proceder à partilha, jáque reconhecemos logo de início (Lévi-Strauss a) que a herança é inalie-nável e que deve ser mantida indivisa.

    2

    No início desta introdução, dissemos ter procurado transcender a oposiçãoentre o sensível e o inteligível, colocando-nos imediatamente no nível dos sig-nos. Estes, na verdade, se exprimem um através do outro. Mesmo quando emnúmero reduzido, prestam-se a combinações rigorosamente arranjadas, quepodem traduzir,até em suas mínimas nuanças,toda a diversidade da experiên-cia sensível. Assim, esperamos atingir um plano em que as propriedades lógi-cas se manifestem como atributo das coisas tão diretamente quanto os saboresou os perfumes cuja particularidade, impossibilitando qualquer equívoco, re-mete,no entanto,a uma combinação de elementos que,escolhidos ou dispostos

    de outro modo, teriam suscitado a consciência de um outro perfume. Graças ànoção de signo,trata-se para nós, no plano do inteligível e não mais apenas nodo sensível, de colocar as qualidades secundárias a serviço da verdade.

    Essa busca de uma via intermediária entre o exercício do pensamento ló-gico e a percepção estética devia naturalmente inspirar-se no exemplo damúsica, que sempre a praticou. A comparação não se impunha somente deum ponto de vista genérico. Rapidamente, quase desde o início da redaçãodesta obra, constatamos que era impossível distribuir a matéria deste livro deacordo com um plano conforme às normas tradicionais. O corte em capítu-los não violentava apenas o movimento do pensamento; empobrecia-o emutilava-o, tirava da demonstração sua agudeza. Paradoxalmente, pareciaque, para que ela fosse determinante,era preciso conceder-lhe mais flexibili-dade e liberdade. Percebemos também que a ordem de apresentação dosdocumentos não podia ser linear e que as fases do comentário não se ligavamentre si por uma simples relação de antes e depois. Artifícios de composiçãoeram indispensáveis, para dar às vezes ao leitor a sensação de uma simulta-neidade, certamente ilusória, já que continuávamos atrelados à ordem do

    relato, mas da qual podíamos ao menos procurar o equivalente aproximado,alternando um discurso alongado e um discurso difuso, acelerando o ritmo

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    depois de tê-lo tornado lento, ora acumulando os exemplos, ora mantendo-os separados.Assim, constatamos que nossas análises se situavam em diver-sos eixos. O das sucessões, evidentemente,mas também o das compacidadesrelativas, que exigiam o recurso a formas evocadoras do que são, em música,o solo e o tutti; os das tensões expressivas e dos códigos de substituição, emfunção dos quais apareciam, ao correr da redação, oposições comparáveis àsentre canto e recitativo, conjunto instrumental e ária.

    Dessa liberdade que tomávamos de recorrer a várias dimensões para nelasdispor nossos temas, resultava que um corte em capítulos isométricos deviadar lugar a uma divisão em partes menos numerosas, mas também mais vo-lumosas e complexas, de comprimento desigual,e cada uma delas formando

    um todo em virtude de sua organização interna, à qual presidiria uma certaunidade de inspiração. Pela mesma razão, essas partes não podiam ter umaforma única; cada uma delas obedeceria, antes, às regras de tom, de gênero ede estilo exigidas pela natureza dos materiais utilizados e pela natureza dosmeios técnicos empregados em cada caso.Aqui também, conseqüentemente,as formas musicais nos ofereciam o recurso de uma diversidade já estabele-cida pela experiência,já que a comparação com a sonata, a sinfonia, a cantata,o prelúdio, a fuga etc., permitia verificar facilmente que em música tinhamsido colocados problemas de construção análogos aos que a análise dos mitos

    levantara, e para os quais a música já tinha inventado soluções.Mas, ao mesmo tempo, não podíamos esquivar-nos de um outro pro-

    blema: o das causas profundas da afinidade, à primeira vista surpreendente,entre a música e os mitos (cujas propriedades a análise estrutural se limita aevidenciar,retomando-as simplesmente em seu proveito e transpondo-as paraum outro plano). E, sem dúvida, já era um grande passo no caminho de umaresposta o fato de poder invocar essa invariante de nossa história pessoal quenenhuma peripécia abalou,nem mesmo as fulgurantes revelações que foram,para um adolescente, a audição de Pelléas [e Melisande] e depois d’ As bodas:ou seja, a homenagem, prestada desde a infância, no altar do “deus RichardWagner”. Pois, se devemos reconhecer em Wagner o pai irrecusável da aná-lise estrutural dos mitos (e até dos contos, veja-se Os mestres), é altamenterevelador que essa análise tenha sido inicialmente feita em música.5 Conse-

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    Ú . Proclamando essa paternidade,estaríamos agindo de modo ingrato se não confessás-semos outras dívidas. Primeiramente, para com a obra de Marcel Granet, semeada deintuições geniais; e, em seguida — last but not least —, para com a de Georges Dumézil;

    e o Asklèpios, Apollon Smintheus et Rudra, de Henri Grégoire, in Mémoires de l’Acadé-mie Royale de Belgique, Classe des Lettres..., t. xlv,fasc. i, .

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    qüentemente, quando sugeríamos que a análise dos mitos era comparável àde uma grande partitura (Lévi-Strauss a: ), apenas tirávamos a con-seqüência lógica da descoberta wagneriana de que a estrutura dos mitos serevela por meio de uma partitura.

    Contudo,essa homenagem liminar confirma a existência do problema emvez de resolvê-lo.Acreditamos que a verdadeira resposta se encontra no cará-ter comum do mito e da obra musical,no fato de serem linguagens que trans-cendem, cada uma a seu modo, o plano da linguagem articulada, emborarequeiram,como esta,ao contrário da pintura,uma dimensão temporal parase manifestarem.Mas essa relação com o tempo é de natureza muito particu-lar: tudo se passa como se a música e a mitologia só precisassem do tempo

    para infligir-lhe um desmentido.Ambas são, na verdade, máquinas de supri-mir o tempo.Abaixo dos sons e dos ritmos, a música opera sobre um terrenobruto, que é o tempo fisiológico do ouvinte; tempo irremediavelmente diacrô-nico porque irreversível,do qual ela transmuta,no entanto,o segmento que foiconsagrado a escutá-la numa totalidade sincrônica e fechada sobre si mesma.A audição da obra musical, em razão de sua organização interna, imobiliza,portanto, o tempo que passa; como uma toalha fustigada pelo vento, atinge-oe dobra-o. De modo que ao ouvirmos música, e enquanto a escutamos, atin-gimos uma espécie de imortalidade.

    Vê-se assim como a música se assemelha ao mito, que também supera aantinomia de um tempo histórico e findo, e de uma estrutura permanente.Mas,para justificar plenamente a comparação,é preciso avançá-la mais do quefizemos numa outra obra (Lévi-Strauss a: -). Como a obra musical, omito opera a partir de um duplo contínuo.Um externo, cuja matéria é consti-tuída, num caso, por acontecimentos históricos ou tidos por tais, formandouma série teoricamente ilimitada de onde cada sociedade extrai, para elaborarseus mitos, um número limitado de eventos pertinentes; e, no outro caso,pelasérie igualmente ilimitada dos sons fisicamente realizáveis, onde cada sistemamusical seleciona a sua escala. O segundo contínuo é de ordem interna. Temseu lugar no tempo psicofisiológico do ouvinte, cujos fatores são muito com-plexos: periodicidade das ondas cerebrais e dos ritmos orgânicos, capacidadeda memória e capacidade de atenção. São principalmente os aspectos neuro-psíquicos que a mitologia põe em jogo,pela duração da narração,a recorrênciados temas, as outras formas de retorno e paralelismo que, para serem correta-mente localizadas, exigem que o espírito do ouvinte varra, por assim dizer, ocampo do relato em todos os sentidos à medida que este se desdobra diante

    dele.Tudo isso se aplica igualmente à música.Mas,além do tempo psicológico,a música se dirige ao tempo fisiológico e até visceral, que a mitologia certa-

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    mente não ignora, já que uma história contada pode ser “palpitante”, sem queseu papel seja tão essencial quanto na música: todo contraponto age silencio-samente sobre os ritmos cardíaco e respiratório.

    Limitemo-nos a esse tempo visceral para simplificar o raciocínio. Dire-mos então que a música opera por meio de duas grades. Uma é fisiológica e,portanto, natural; sua existência se deve ao fato de que a música explora osritmos orgânicos, e torna assim pertinentes certas descontinuidades que deoutro modo permaneceriam no estado latente, como que afogadas na dura-ção.A outra é cultural; consiste numa escala de sons musicais,cujos númeroe intervalos variam segundo as culturas. Esse sistema de intervalos fornece àmúsica um primeiro nível de articulação,não em função das alturas relativas

    (que resultam das propriedades sensíveis de cada som),mas das relações quesurgem entre as notas da escala: daí sua distinção em fundamental, tônica,sensível e dominante, exprimindo relações que os sistemas politonal e atonalencavalam, mas não destroem.

    A missão do compositor é alterar essa descontinuidade sem revogar-lhe oprincípio; quer a invenção melódica cave lacunas temporárias na grade, quer,também temporariamente, tape ou reduza os buracos. Ora ela perfura, oraobtura.E o que vale para a melodia vale também para o ritmo,já que,atravésdeste segundo meio,os tempos da grade fisiológica, teoricamente constantes,

    são saltados ou redobrados, antecipados ou retomados com atraso.A emoção musical provém precisamente do fato de que a cada instante o

    compositor retira ou acrescenta mais ou menos do que prevê o ouvinte, nacrença de um projeto que é capaz de adivinhar, mas que realmente é incapazde desvendar devido à sua sujeição a uma dupla periodicidade: a de sua caixatorácica, que está ligada à sua natureza individual, e a da escala, ligada à suaeducação.Se o compositor retira mais,experimentamos uma deliciosa sensa-ção de queda; sentimo-nos arrancados de um ponto estável no solfejo e lan-çados no vazio, mas somente porque o ponto de apoio que nos é oferecidonão se encontra no local previsto. Quando o compositor tira menos, ocorre ocontrário: obriga-nos a uma ginástica mais hábil do que a nossa. Ora somosmovidos, ora obrigados a nos mover, e sempre além daquilo que, sós, nossentiríamos capazes de realizar. O prazer estético é feito dessa infinidade deenlevos e tréguas,esperas inúteis e esperas recompensadas além do esperado,resultado dos desafios trazidos pela obra; e da sensação contraditória queprovoca, de que as provas às quais nos submete são insuperáveis, quando elase prepara para nos fornecer meios maravilhosamente imprevistos que per-

    mitirão vencê-las. Ainda equívoco na partitura, que o revela

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    ... irradiando uma sagração

    Mal calada pela própria tinta em soluços sibilinos,* 

    o desígnio do compositor se atualiza, como o do mito, através do ouvinte epor ele. Em ambos os casos,observa-se com efeito a mesma inversão da rela-ção entre o emissor e o receptor, pois é,afinal,o segundo que se vê significadopela mensagem do primeiro: a música se vive em mim, eu me ouço atravésdela. O mito e a obra musical aparecem, assim, como regentes de orquestracujos ouvintes são os silenciosos executores.

    Se perguntarmos então onde se encontra o verdadeiro núcleo da obra, aresposta necessária será que sua determinação é impossível. A música e a

    mitologia confrontam o homem com objetos virtuais de que apenas a som-bra é atual, com aproximações conscientes (uma partitura musical e um mitonão podendo ser outra coisa) de verdades inelutavelmente inconscientes eque lhes são consecutivas. No caso do mito, intuímos o porquê dessa situaçãoparadoxal: deve-se à relação irracional que prevalece entre as circunstânciasda criação, que são coletivas, e o regime individual do consumo. Os mitosnão têm autor; a partir do momento em que são vistos como mitos, e qual-quer que tenha sido a sua origem real, só existem encarnados numa tradição.Quando um mito é contado, ouvintes individuais recebem uma mensagem

    que não provém, na verdade, de lugar algum; por essa razão se lhe atribuiuma origem sobrenatural. É, pois, compreensível que a unidade do mito sejaprojetada num foco virtual: para além da percepção consciente do ouvinte,que ele apenas atravessa, até um ponto onde a energia que irradia será consu-mida pelo trabalho de reorganização inconsciente, previamente desenca-deado por ele.A música coloca um problema muito mais difícil, já que igno-ramos completamente as condições mentais da criação musical. Em outraspalavras,não sabemos qual é a diferença entre esses espíritos raros que secre-tam música e aqueles,incontáveis, em que o fenômeno não ocorre,embora semostrem geralmente sensíveis a ele.A diferença é, no entanto, tão marcada,manifesta-se tão precocemente,que supomos apenas que implica proprieda-des de uma natureza particular, situadas certamente num nível muito pro-fundo. Mas o fato de a música ser uma linguagem — por meio da qual sãoelaboradas mensagens das quais pelo menos algumas são compreendidaspela imensa maioria, ao passo que apenas uma ínfima minoria é capaz deemiti-las, e de, entre todas as linguagens, ser esta a única que reúne as carac-terísticas contraditórias de ser ao mesmo tempo inteligível e intraduzível —

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    * Versos do poema Hommage, de Mallarmé, dedicado a Wagner. [n.t.]

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    portanto, entidades do mesmo nível, e a comparação só pode ser legitima-mente feita entre as cores e os ruídos, isto é, entre os modos visuais e acústi-cos, ambos da ordem da natureza. Ora, ocorre que justamente em relação aambos o homem mantém a mesma atitude, não lhes permitindo livrar-se deum suporte. Conhecemos certamente ruídos confusos, assim como coresdifusas,mas, logo que seja possível discerni-los e dar-lhes uma forma, surgiráimediatamente a preocupação de identificá-los, ligando-os a uma causa. Taismanchas, diremos, são um monte de flores praticamente escondidas pelavegetação, ao passo que aqueles estalos devem provir de um passo furtivo oude galhos fustigados pelo vento...

    Não existe, portanto, verdadeira paridade entre pintura e música. Uma

    encontra na natureza a sua matéria: as cores são dadas antes de serem utiliza-das e o vocabulário atesta seu caráter derivado até na designação das nuan-ças mais sutis: azul-marinho, azul-pavão ou azul-petróleo; verde-água,verde-esmeralda; amarelo-palha, amarelo-ovo; vermelho-cereja etc. Ou seja, só hácores na pintura porque já existem seres e objetos coloridos, e é apenas porabstração que as cores podem ser descoladas desses substratos naturais e tra-tadas como termos de um sistema separado.

    Objetar-se-á que, se isso vale para as cores, não se aplica às formas. Asgeométricas, e todas as outras que delas derivam, se apresentam ao artista já

    criadas pela cultura; como os sons musicais, elas não provêm da experiência.Mas, se uma arte se limitasse a explorar essas formas, adquiriria, inevitavel-mente,um caráter decorativo.Sem jamais conquistar uma existência própria,ficaria exaurida, a menos que, ao enfeitá-los, não se agarrasse aos objetospara tirar deles a sua substância. Tudo se passa, portanto, como se a pinturanão tivesse outra escolha senão significar os seres e as coisas incorporando-os a seus intentos, ou participar da significação dos seres e das coisas incor-porando-se a eles.

    Parece-nos que essa servidão congênita das artes plásticas em relação aosobjetos se deve ao fato de a organização das formas e das cores no seio daexperiência sensível (que, nem é preciso dizê-lo, já é uma função da atividade

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    Únão afeta a nossa tese,já que,à diferença da cor, que é um modo da matéria, a tonalidademusical — tanto entre os pássaros quanto entre os homens — é um modo da sociedade.O pretenso “canto” dos pássaros situa-se no limiar da linguagem; serve à expressão e àcomunicação. Os sons musicais continuam, portanto, do lado da cultura. É a linha dedemarcação entre a natureza e a cultura que já não segue tão exatamente quanto se acre-

    ditou no passado o traçado de nenhuma das linhas que servem para distinguir a huma-nidade da animalidade.

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    organização sistemática.Nada permite, portanto, identificá-las como formaselementares: trata-se, antes, de criaturas do capricho, graças às quais alguémse dedica a uma paródia de combinatória com unidades que não o são.A artecaligráfica, ao contrário, repousa inteiramente no fato de que as unidades queescolhe, situa e traduz pelas convenções de um grafismo, de uma sensibili-dade, de um movimento e de um estilo, têm uma existência própria na qua-lidade de signos, destinados por um sistema de escritura a desempenharoutras funções. Somente nessas condições a obra pictórica é linguagem, poisresulta do ajustamento contrapontístico de dois níveis de articulação.

    Vê-se, assim, por que a comparação entre a pintura e a música só seria arigor aceitável se fosse limitada à arte caligráfica. Como esta — mas porque

    ela é, de certo modo, uma pintura de segundo grau —, a música remete aoprimeiro nível de articulação criado pela cultura: para uma, o sistema de ideo-gramas, para a outra,o dos sons musicais.Mas,pelo simples fato de ser instau-rada, essa ordem explicita propriedades naturais: assim, os símbolos gráficos,e principalmente os da escrita chinesa, manifestam propriedades estéticasindependentes das significações intelectuais que estão encarregados de vei-cular e que a caligrafia, justamente, se propõe a explorar.

    O ponto é capital, porque o pensamento musical conte