Upload
hatuyen
View
214
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
Copyright by Giovane Santos
Todos os direitos reservados ao Autor. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, video-gráficos, atualmente existentes ou que venham a ser inventados. A viola-ção dos direitos autorais é passível de punição como crime (art. 184 e pa-rágrafos, do Código Penal, Lei n° 6.895, de 17/12/80) com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão, e indenizações diversas (artigos 122 a 124 e 126 da Lei 11° 5.988, de 14/12/73, Lei dos Direitos Autorais). Livro Registrado no Escritório de Direitos Autorais (FBN) sob número 667.760
Revisão: Elias Lacerda da Costa
Ficha Catalográfica
SUMÁRIO
BASTIDORES DE UM ENCONTRO ___________________________________ 7
QUANDO O CHÃO DESAPARECE, OS PÉS VOLITAM _______________________ 15
NEM TODO HERÓI MODERNO TEM A SENSIBILIDADE DE UM PÉ DE VALSA _______ 31
UMA XÍCARA DE CAFÉ E VÁRIAS COLHERES DE BATE-BOCA _________________ 37
MEIO HUMANO, MEIO HOMEM DE LATA: NOSSOS DESEJOS JAMAIS SE OXIDAM ___ 49
A GESTAÇÃO DOS PÉS ALADOS ___________________________________ 53
OS CINCO PASSOS PARA O MERGULHO NO ESPELHO _____________________ 71
DEIXA ACONTECER NATURALMENTE ________________________________ 95
OU TUDO OU NADA ___________________________________________ 99
CONFUSÕES, PREPARATIVOS: O UNIVERSO DANÇA _____________________ 107
UM SÉCULO EM UM SEGUNDO ___________________________________ 127
RITMO ALUCINANTE _________________________________________ 151
PISANDO NO TERRITÓRIO DO INSÓLITO ____________________________ 165
OU ELES DANÇAM, OU EU DANÇO ________________________________ 195
ENTRE ENSAIOS E REGRESSÕES, O INFERNO E O PARAÍSO ________________ 227
NAS BRUMAS DO TEMPO, O FIO DE ARIADNE _________________________ 255
PÉS FRENÉTICOS ___________________________________________ 285
E AÍ! VEM DANÇAR COMIGO? ___________________________________ 299
SUA VIDA PODE SER UM MUSICAL
7
BASTIDORES DE UM ENCONTRO
Fly me to the moon. Let me play among the stars. Let me see what
spring is like on Jupiter and Mars. Estalando os dedos, com enormes fo-
nes cobrindo as orelhas e um gingado frenético na cintura, eu extravasava
toda minha verve dançarina, enquanto gravava no aquário acústico do es-
túdio fonográfico mais uma faixa do cd do musical Rádio Pirata que che-
garia às lojas daqui a três meses, se nenhuma zebra ocorresse com sua
prensagem e finalização na Zona Franca de Manaus.
Eu sentia a respiração quase suspensa das estagiárias, que acom-
panhavam a captação do áudio com o operador da mesa de som. O eriçar
das penugens loiras de suas nucas róseas. Os lábios de batom que agua-
vam só de escutarem meu vibrato. Elas me lanchavam com os olhos.
Ainda mais quando sorria e ressaltava a pequena e sexy mancha marrom
em forma de pitanga do canto da bochecha esquerda. Se não tivessem a
trava do senso moral, eram capazes de me imobilizar e sugar todas as mi-
nhas energias como abelhas-rainhas, sedentas pela perpetuação da espé-
cie. Só que o mais atrevido de todos os olhares era o que a chatinha da
Cássia exibia do outro lado do vidro do aquário. Ela fazia caretas irônicas.
Aquela morena de olhos de jabuticaba e sorriso sapeca, pupila da Midas
da dança contemporânea Débora Colker, com certeza arrancou o ende-
reço do Jarbas.
E o pior é que ela desafiava-me com seu jeito desconstrutor e nada
subserviente. Encarava-me pela lâmina de vidro, como se planejasse
nosso futuro, sem consultar se eu desejava fazer parte dele. E eu fazia o
máximo para fingir que ela em nada me afetava.
Sabia bem a atração que eu provocava nas mulheres. Aliás, usufruí
bastante desse talento instigado pelo cafajeste do Claudio Trovão, meu
parceiro de palco e farras juvenis. Ele sempre se beneficiou do séquito
feminino que me rodeava, para chafurdar em suas aventuras amorosas,
acompanhado de seu violão encantatório. O danado usava bem seu ins-
trumento de cordas.
GIOVANE SANTOS
8
Só que nem todo encontro casual é encarado como uma simples
troca de roupas no camarim coletivo de um teatro. E nem toda mulher
aceita que uma noite de sexo possa ser apenas um ímã irracional entre
peles, bocas e genitais superexcitados. Depois que quase fui emasculado
com uma espátula por Rosana Black, uma das atrizes substitutas do
elenco feminino de Hair, controlei meus ímpetos hormonais. Descobri
que estava na hora de abandonar a tardia adolescência e me tornar um
homem de respeito. A garota psicopata se desligou voluntariamente do
espetáculo. Preferia ver o capeta a ter que dividir um dueto comigo. O
quase escândalo foi abafado. Se odiava as manchetes sensacionalistas,
que meus pais garimpavam nos jornais, para divulgar seus constantes pa-
péis na telona, imagine fazer qualquer referência as minhas partes ínti-
mas nas revistas de fofoca.
Praticamente não tive um arranhão. Só um baita susto que faz até
o pior dos terroristas repensar seu extremismo religioso.
Assumi, então, uma abstinência quase monástica e principalmente
distância de atrizes que tivessem o perfil psicológico da personagem de
Glenn Close em Atração Fatal. Virei quase um santo. Trovão começou a
achar que, no final da temporada, eu entraria para um mosteiro.
Tia Marciana, a bailarina cadeirante mais abusada e enxerida do
planeta, garantia que eu estava em metamorfose para a melhor fase da
minha existência. Mas que para atravessá-la, eu precisava de uma mulher
especial que me ajudasse a emergir da armadilha que a caixa preta de meu
inconsciente preparava-me nos próximos anos. Aquela matrona rabu-
genta sempre foi meio bruxa, meio maga, meio mala com suas profecias
e mania de apontar-me como messias de uma missão grandiosa, que se
revelaria na hora certa e que não estava nada interessado em descobrir
qual era.
Só que titia era persistente. Enchia meu celular de torpedos. Lo-
tava minha caixa eletrônica com mensagens de que um ciclone de saias
mudaria o norte de meu universo. E os polos da Terra quase se inverteram
no dia em que conheci Cássia. A morena ficou presa comigo e Trovão no
elevador do Teatro Montenegro, horas antes da audição para o musical
Rádio Pirata.
SUA VIDA PODE SER UM MUSICAL
9
Foi implicância, faísca, ódio e amor à primeira patada. Cláudio sa-
cou no ato que, naquele cubículo de menos de dois metros quadrados,
ocorria um novo Big Bang, um encontro definitivo entre dois mundos
complementares, duas almas quase siamesas. Eu me recusava a aceitar a
petulância daquela mulher, que botava banca de suprassumo da técnica
corporal e não aceitou meu fora logo que adivinhei sua aproximação re-
pleta de terceiras intenções. Ela praguejava que, em menos de dois minu-
tos, eu consegui me tornar a maior decepção de sua vida, que destruí a
idealização do cara gente fina que a mídia vendia. Caíque Monteiro agora
era um embuste para ela. Valia menos que um tablete de margarina com
prazo de validade expirada nas gôndolas do mercado. A garota amaldiço-
ava o tempo que perdera, corujando minha presença cativa nos quadros
de dança com famosos. Garantia que iria apagar todos meus vídeos, fazer
uma fogueira com minhas fotos, principalmente com a toalha encharcada
de suor que surrupiou do camarim numa de minhas apresentações em um
programa de auditório. Meu Deus! Como ela era porquinha! Guardar um
pano fedido como fetiche, talismã, sei lá o quê, era algo quase patológico.
A morena ainda teve a coragem de dizer que, olhando bem de
perto, eu era um nanico e meus um metro e oitenta eram mágica das pla-
taformas de meus sapatos.
Mas em compensação, ela odiou ouvir que renegava suas raízes
afro com aquela escova progressiva que a fazia lembrar um collie bronze-
ado. Ficou mais furiosa quando a acusei do hábito de repetir 'tipo assim'
dez vezes numa frase e de ser histérica. Num golpe desesperado, ela qua-
lificou meu beijo de medonho.
Aquilo já era delírio. Nos cinco minutos encarcerados naquele ele-
vador, a maior intimidade que tivemos foi xingar a mãe um do outro. E
como ninguém pode julgar algo sem conhecimento de causa, arranquei-
lhe um beijo caprichado para destruir sua tese. Ela ficou bamba. Eu sem
ar. Seus olhos brilhavam estranhamente numa alegria incontida. Eu sen-
tia como se tivessem me conectado numa tomada de 220 volts. Com
aquele ar cínico que trouxe de berço, Trovão lamentou não ter um manto
da invisibilidade para que ficássemos mais à vontade.
GIOVANE SANTOS
10
Depois desse dia, ela não saiu mais da minha cola. Até porque a
criatura passou no teste para o musical e seria eventualmente minha par-
ceira de cena. Os diretores acharam que tínhamos a química perfeita para
um dos casais mais quentes do espetáculo. Lógico, desde que a titular do
papel não pegasse o vírus da gripe aviária ou tivesse um desarranjo intes-
tinal. A chatinha era a regra dois da protagonista, a substituta de plantão.
E encontrou um meio de dividir o mesmo metro quadrado comigo todos
os dias no palco...pelo menos durante os ensaios. Ela praticamente virou
minha sombra. Insistia que seria minha salvação, mesmo se eu voltasse
às noites de farra.
A garota se achava. E Trovão gozava da minha cara, apostando seu
mimo de estimação, o turbinado trailer circense herdado do pai, se em
menos de cinco meses eu não ficasse noivo daquela espoleta cor de jambo
e mergulhasse numa vida marital bem classe média. Caso eu perdesse, ele
teria passe livre para usufruir das delícias da fazenda centenária de meus
falecidos bisavós com suas ficantes, quando e como quisesse.
Porém, eu não me dobrava àquela morena, por mais que ela me
tentasse. E agora a criatura estava cumprindo sua cota diária de voyeu-
rismo, espionando-me na gravação do cd do espetáculo, como quem não
quer nada. Só que ela queria um algo mais. Uma carona. Cássia integrava
o corpo de baile do flashmob que faríamos à tarde no Parque do Ibirapuera
para divulgar o Rádio Pirata. Uma tarde ensolarada onde ciclistas, namo-
rados e famílias inteiras desfrutavam daquela ilha de verde perdida na cin-
zenta metrópole das grandes especulações financeiras. Alguns de nós pas-
saríamos por um grupo de alunos de ioga, tapetes de EVA debaixo do
braço, outros por skatistas, maratonistas e, na hora H, transformaríamos
o espaço num grande palco sob meu comando e da diva Blanca Fischer.
Só não esperava que a estrela principal do espetáculo fosse derru-
bada pelo mosquitinho da dengue e estivesse internada numa clínica na
zona norte paulistana. Era o grande momento de Cássia Sol, que já sabia,
desde as primeiras horas da manhã, do afastamento da colega e só con-
tou-me da novidade minutos antes do evento. Pior que nem tinha como
reclamar. A esperta dava conta do recado. E estaria comigo numa proxi-
midade física invejável. Só que eu era profissional o suficiente para não
sucumbir aos seus encantos. Pelo menos era no que eu acreditava.
SUA VIDA PODE SER UM MUSICAL
11
Quando os acordes de September da banda Earth, Wind & Fire
foram executados pelos músicos disfarçados na multidão, eu puxei o solo
do flashmob. Nossos corpos entraram numa sinergia indescritível. Mais
do que passos sincronizados e o molejo arrebatador, parecíamos entrar
numa sintonia fina, nunca antes experimentada. Seus braços percorrendo
meu pescoço, minhas mãos erguendo-a no ar, as brincadeiras coreográfi-
cas, misturando jazz, charme, rock. Tudo aquilo parecia derrubar as últi-
mas fortalezas que erigi contra Cássia, e nos unir definitivamente. Os fre-
quentadores do parque aplaudiam, filmavam-nos com seus tablets, smar-
tphones... Era um marco na publicidade dos musicais na grande São
Paulo. A mulher que seguraria minha barra, quando a ardilosa fatalidade
me abatesse como um terremoto daqui a alguns meses, ancorava em mim.
Foi tudo muito rápido. Sob as ferragens de um Opel Corsa 2007,
encontrei os corpos mutilados e sem viço de meus pais, após a persegui-
ção que eles viveram com os paparazzi na Região dos Lagos, no balneário
fluminense. Quase apaguei ao reconhecer o que restava deles naqueles
destroços. Se não fosse Cássia, talvez nem estivesse de pé no enterro.
Os velhos tiveram uma discussão séria durante um almoço num
restaurante, após remoerem uma rixa familiar mal resolvida, e, dessa vez,
não queriam público para seus berros. Tentaram fugir dos cliques dos fo-
tógrafos, que se tornaram uma música de fundo em suas rotinas. Mas, a
compulsão por flashes escandalosos não fizeram os paparazzi respeita-
rem aquele inusitado desejo de insulamento. A lâmina de água no asfalto
estava escorregadia. O limite de velocidade excedido. Não tiveram como
desviar do caminhão vindo na contramão.
Um ano depois, abandonei o mundo dos musicais, após cumprir
os compromissos das últimas excursões pelo país. Dizem que o trauma da
morte dos velhos adormeceu o bichinho da dança que corroía meu íntimo,
arrancou meu tesão de riscar os palcos com meus pés frenéticos. Dizem...
toda mentira confortável repetida milhares de vezes se torna uma sagrada
verdade. E olha que fui apelidado de Pinóquio na infância por inventar as
desculpas mais criativas para fugir das chineladas de meus pais. Era o rei
da lorota na época. E bem convincente por sinal.
Só que, por mais dolorida que tenha sido aquela tragédia, eu sabia
que tinha raízes firmes como um jequitibá para não envergar facilmente
GIOVANE SANTOS
12
diante das piores tempestades. Algo maior e inconscientemente inquie-
tante eclodiu em mim como um gatilho de pólvora, depois daquele aci-
dente de meus pais e fez-me cortar absolutamente qualquer laço com a
dança, criar uma muralha que me encastelava num mundo do mais silen-
cioso e completo anonimato.
Casei-me com Cássia em poucas semanas. Mudamo-nos para o Rio
de Janeiro, longe de todos contatos que eu tinha com o universo da dança
e dos musicais, mas sem cortar os elos essenciais que permitissem a mi-
nha morena prosseguir a carreira. E para espanto de todos, depois de me-
ses torrando minha poupança com despesas domésticas e enfiando as
fuças nos livros, passei para o cargo de um disputadíssimo concurso pú-
blico. Era agora analista de seguro social. As malhas de ensaio, os regis-
tros dos anos de fama e os calçados para sapateado foram enterrados
numa enorme caixa de papelão no porão de nosso sobrado no Humaitá.
Mudanças radicais sempre revitalizam o ciclo de nossas relações e,
às vezes, ressuscitam velhos comparsas do limbo. E foi um dos mais en-
capetados dos tempos do ensino médio que reencontrei na repartição
para onde fui alocado. Era o sem noção do Eliezer. Filho de judeus, fora
de todos padrões da sua etnia, o safado escondia dos pais, Seu Yoshua e
Dona Ester, os famosos Bergs, que sua atual noiva, a nutricionista Quézia,
não era exatamente uma judia.
Mais do que ser execrado pela família, seu maior temor era perder
a liberação mensal da mesada herdada dos falecidos avós, com a qual
mantinha seu alto padrão de vida. Seus pais acreditavam que ele se per-
mitia aquela experiência no serviço público, apenas como um hobby pas-
sageiro e que logo assumiria a chefia das funerárias da família. Na ver-
dade, o malandro só pensava em dedicar-se às competições de triátlon
com sua equipe de amigos chilenos e manter-se rodeado de mulheres, por
mais que nunca tenha traído Quézia. Vaidade para gabar-se do título de
pegador e de aventuras amorosas inexistentes, que engrandecem o ego
masculino diante da rapaziada do happy hour.
Encharcado da cultura judaica desde seu Brit Milá, o famoso ritual
de circuncisão dos recém-nascidos, Eli, como os mais íntimos o chama-
vam, encarnava bem o papel do jovem judeu fiel às tradições. Fidelidade
pelo menos epidérmica. Cansei de escutar suas narrativas hilárias do que
SUA VIDA PODE SER UM MUSICAL
13
achava que seus familiares realmente pensavam no retiro do Shabat
quando, na adolescência, espiávamos os ritos de seus familiares.
Por debaixo de seu kipá, ele maquinava armações absurdas, que
ruborizariam os seus antepassados. E odiava a mera hipótese de passar o
resto da vida num ramo comercial que lucrava com a dor alheia, ofertando
o top das linhas de caixões ou serviços de maquilagem que deixasse o de-
funto com sorriso de Miss Universo para a entrada triunfal no cemitério.
Essa tarefa se adequava mais a sua irmã caçula, Rebeca, uma adolescente
mercenária, que às vezes o chantageava para silenciar-se sobre seus se-
gredinhos. Sempre o aconselhei a desvencilhar-se dessa cama de gato e
assumir a namorada nutricionista, mas ele não tinha coragem de largar
seus pequenos luxos, que o salário como funcionário público não poderia
bancar. Enfim, Eli era um armador, mas veio suprir o espaço que obriguei
Trovão a vagar quase que à força, por sua constante insistência em arras-
tar-me de novo aos palcos.
Na verdade, cortei todo e qualquer contato com Cláudio. Junto
com Tia Marciana, ele comandava uma força-tarefa para que eu não jo-
gasse meu gingado de ouro na latrina e apertasse a descarga. Brigamos
feio. Perdi a conta das vezes que bati a porta em sua cara. Quase saímos
no braço por conta de sua persistência. Até que ele deu-me uma trégua.
Sumiu do mapa. O esperto sabia que ainda tinha Cássia para tentar me
dobrar. Só que minha vontade era soberana. Não me incomodava que mi-
nha morena seguisse nos palcos, mas o ponto final que pus naquela minha
novela era definitivo.
A grande questão é que Cássia também sacava que algo maior fu-
gira da caixa preta de meu inconsciente e paralisava meu desejo de reme-
xer as cadeiras. Algo que nem eu saberia nomear, mas que confortavel-
mente chamava de apreço à privacidade, distância das loucuras dos mu-
sicais, a justa segurança de não sucumbir à mosca da vaidade e ao destino
ingrato da superexposição. Lógico que no íntimo, tinha consciência de
que se quisesse poderia dar prosseguimento a minha carreira e usar a
capa da invisibilidade que alguns artistas centrados impõem a sua vida
privada. Mas era algo definitivamente maior, incomensuravelmente su-
perior às minhas forças.
GIOVANE SANTOS
14
Tia Marciana profetizava que precisava me virar ao avesso, mer-
gulhar nos porões onde transitavam meus monstros mais internos, se qui-
sesse voltar a ser o ás da dança. Mas, quem disse que eu queria isso? E o
engraçado é que um ser medonho passou a emergir de meu inconsciente
nesse período, assombrando-me o juízo: um assustador espantalho hu-
mano de olhos sanguinolentos. Uma criatura aterrorizante que passou a
atormentar minhas madrugadas de sono com perseguições homéricas no
milharal da centenária fazenda de meus bisavós. A rabugenta Marciana
dizia que aquele ser horripilante, que parasitava meus pesadelos como
um vírus, era o janotinha esquizofrênico que quase destruiu a vida de uma
de minhas tias-bisas.
Sinceramente, aquelas fofoquinhas sobre meus antepassados em
nada me interessavam. Só queria paz, sossego e uma vida sem berros his-
téricos de fãs cheias de fogo. Por mais que uma comichão me fizesse, vez
por outra, rabiscar tímidos passos na solidão sigilosa do piso branco no
chuveiro, por mais que fosse ainda reconhecido pelos cativos admirado-
res dos musicais na fila de uma confeitaria, eu estava em outra. Precisava
estar. Nem sei dizer bem o porquê. A única certeza era que, sob as empo-
eiradas caixas de guardados do porão, meus pés frenéticos estavam defi-
nitivamente aposentados. Ou pensava que estavam... porque naquela ma-
nhã de sábado, em que um dilúvio caiu sobre a cidade, uma estranha co-
ceira voltou a roçar a epiderme de meus dedões e os ecos do passado e os
clamores do presente se confundiram numa mesma dimensão, convi-
dando-me a ressuscitar talentos que adormeciam sob felpudas meias de
algodão.
SUA VIDA PODE SER UM MUSICAL
15
QUANDO O CHÃO DESAPARECE, OS PÉS VOLITAM
Cada vez que caminhava naquela avenida deserta do centro do Rio,
eu sentia que era sutilmente seguido por uma multidão. Porém, sabia que
isso pouco importaria nos próximos minutos, já que aquilo só ocorria no
território dos sonhos, onde a lógica é um item de luxo. Logo eu desperta-
ria daquela incômoda sensação que se reprisava na minha cabeça há me-
ses. Só que o mais irritante nisso tudo é que este passeio onírico tinha
como trilha musical aquele hit do anos 80.
Descalço, metido em um esgarçado moletom cinza-claro e numa
camiseta branca surrada, eu andava na vazia Presidente Vargas ao som de
Stayin' Alive do Bee Gees. Não... não era um desejo reprimido de ser o
Tony Manero, sacolejando pelas ruas com uma lata de tinta na mão. Há
dez anos gingados de quadril e musicais de sucesso eram vagas memórias
de um cara que já não habitava mais em mim. Eu estava era preso num
irônico pesadelo, enredado por meu inconsciente zoador.
A cada esquina que cruzava, a música aumentava. E eu só queria
encontrar o botão que desligasse aquele treco e me fizesse acordar. O pro-
blema é que meus pés pareciam ganhar vida própria, ousavam passos co-
reográficos. A garganta arranhava numa estranha coceira, que não emitia
tosse, mas sim acordes melódicos, que eu engolia, implacavelmente,
como quem aprisiona um pássaro ensandecido.
Foi quando tive novamente a sensação de que era seguido por cen-
tenas de pessoas: conhecidos que já haviam morrido, amigos que molda-
ram meu caráter, antepassados que inscreveram o nome de meu clã na
história das artes desse país.
Pelo reflexo das vitrines das lojas, flagrei o gigantesco bando que
me acompanhava. E, no meio deles, vi meus falecidos bisavós: Abel, o
exótico bicho do mato (o homem que dançava nu, brincando com mala-
bares em chamas, sob a benção do pôr do sol nas praias desertas) e Isa-
dora, a dançarina ousada dos loucos anos 20 (uma locomotiva que tinha
asas nos pés). Junto aos dois, flagrava também a lendária tia-bisa Juliana,