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Substancialismo versus procedimentalismo: discussões sobre a legitimidade da jurisdição constitucional Newton de Oliveira Lima Mestre em Direito Constitucional pela UFRN. RESUMO: A legitimidade da jurisdição constitucional passa pela estruturação de uma jurisdição constitucional que possa abrigar elementos das posições substancialista e procedimentalista, a primeira ativista e defensora de uma concretização dos valores constitucionais, a segunda com uma visão democrática no processo de construção dos direitos fundamentais. ABSTRACT: The legitimacy of the constitutional jurisdiction passes for the construction of a constitutional jurisdiction that can shelter elements of the substancialist and procedimentalist positions, the first activist and defender of a concretion of the values constitutional, second with a democratic vision in the process of construction of the basic rights. PALAVRAS-CHAVE: jurisdição constitucional – substancialismo – ativismo judicial – democratização constitucional – legitimação constitucional. KEY-WORDS: constitutional jurisdiction - substancialism - judicial ativism - constitutional democratization - constitutional legitimation. SUMÁRIO: 1. Estrutura e idéia geral de uma jurisdição constitucional. 2. Jurisdição constitucional e legitimidade. 2.1. Posição de Hans Kelsen sobre a jurisdição constitucional. 2.2. Posição de Carl Schmitt sobre a jurisdição constitucional. 3. Fatores de legitimação da jurisdição constitucional. 3.1. Valor constitucional e hermenêutica. 3.2. Processualismo democrático e processo constitucional. 3.3. Propostas de reconstrução da legitimidade da jurisdição constitucional: diálogo com o sistema norte- americano. 4. Conclusão. 5. Referências. 1. Estrutura e idéia geral de uma jurisdição constitucional

Substancialismo versus procedimentalismo: discussões sobre ... · Posição de Hans Kelsen sobre a jurisdição constitucional O tema da legitimidade, enquanto fenômeno jurídico

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Substancialismo versus procedimentalismo: discussões sobre a legitimidade da

jurisdição constitucional

Newton de Oliveira Lima

Mestre em Direito Constitucional pela UFRN.

RESUMO: A legitimidade da jurisdição constitucional passa pela estruturação de uma

jurisdição constitucional que possa abrigar elementos das posições substancialista e

procedimentalista, a primeira ativista e defensora de uma concretização dos valores

constitucionais, a segunda com uma visão democrática no processo de construção dos

direitos fundamentais.

ABSTRACT: The legitimacy of the constitutional jurisdiction passes for the

construction of a constitutional jurisdiction that can shelter elements of the

substancialist and procedimentalist positions, the first activist and defender of a

concretion of the values constitutional, second with a democratic vision in the process

of construction of the basic rights.

PALAVRAS-CHAVE: jurisdição constitucional – substancialismo – ativismo judicial

– democratização constitucional – legitimação constitucional.

KEY-WORDS: constitutional jurisdiction - substancialism - judicial ativism -

constitutional democratization - constitutional legitimation.

SUMÁRIO: 1. Estrutura e idéia geral de uma jurisdição constitucional. 2. Jurisdição

constitucional e legitimidade. 2.1. Posição de Hans Kelsen sobre a jurisdição

constitucional. 2.2. Posição de Carl Schmitt sobre a jurisdição constitucional. 3. Fatores

de legitimação da jurisdição constitucional. 3.1. Valor constitucional e hermenêutica.

3.2. Processualismo democrático e processo constitucional. 3.3. Propostas de

reconstrução da legitimidade da jurisdição constitucional: diálogo com o sistema norte-

americano. 4. Conclusão. 5. Referências.

1. Estrutura e idéia geral de uma jurisdição constitucional

A idéia de uma jurisdição constitucional passa pela articulação de elementos 1)

Estritamente processuais, como ações e procedimentos previstos diretamente na

Constituição ou em leis infra-constitucionais, mas complementares a matéria

constitucionalmente prevista, a ser desenvolvidos por cidadãos como garantias de seus

direitos; 2) Por competências de julgamento de determinados órgãos jurisdicionais,

expostas num quadro de previsão e divisão legal de funções.

A jurisdição constitucional engloba uma série de estruturas de julgamento sobre

matérias previstas na Constituição, e cujo núcleo fundamental seria exatamente os

direitos fundamentais do cidadão – inseridos na parte de direitos e garantias das Cartas

Constitucionais.

Se a jurisdição constitucional está em estrutura de adequação e proteção

concretizadora de direitos e garantias fundamentais, implica reconhecer a cidadania e a

função social da pacificação de conflitos e de implementação do bem comum como sua

meta primacial.

No Brasil, a jurisdição constitucional como função-estatal de judicatura de

máxima precedência sobre as demais julga a matéria constitucional, devendo ser a

guardiã de uma possibilidade processual de ação do cidadão e conter uma pauta de

textualidade normativa capaz de conferir ao cidadão a sua ação positiva (instrumentação

processual) contra desmandos principalmente do próprio Estado.

A estrutura normativa que integra a Constituição expressa-se principalmente em

termos de direitos subjetivos públicos e garantias individuais como corolários destes

últimos. As garantias devem ser concretizadas mediante instrumentos do processo

constitucional.

A estrutura da garantia constitucional implica, pois, uma esfera judicial

constitucional como espaço de processamento das demandas oriundas da

constitucionalidade da causa de pedir.

Uma jurisdição constitucional deve, portanto, assegurar acessabilidade ao

cidadão a partir da construção de direitos fundamentais oriundos da sua possibilidade de

agir.

Deve ainda, a jurisdição constitucional, possibilitar meios de instrumentação e

defesa, bem como respostas judicativas condizentes com o nível de exigência das

demandas sociais, da cidadania e da dignidade humana – assim far-se-à a construção

de uma legitimidade decisória capaz de ser afeita ao reclamo de justiça presente na

sociedade enquanto sentimento difuso de igualdade e de bem-estar das pessoas, ainda

que tal conceito do ‘justo’ seja provisório e mutável para as concepções desenvolvidas

mais adiante no presente artigo.

Claro que essa processualização de direitos e garantias deve ser construída com

fulcro na implantação de formas de participação do cidadão e de democratização em

máxima extensão possível da interpretação constitucional, seguindo a idéia de Häberle

(1997, p.38).

Ora, a questão central que permeia as discussões sobre a legitimidade da

jurisdição constitucional nas democracias modernas é que deve existir uma abertura de

democratização na sua tutela judicial a fim de interligá-la aos processos políticos

dominantes socialmente e responder às exigências de implementação de condições de

igualdade e oportunidade universais.

Daí a perspectiva discursiva esclarecedora que se busca implementar com a

confrontação das concepções substancialista e procedimentalista de jurisdição

constitucional, pois a construção da legitimidade do judiciário implica num diálogo com

dois caminhos de legitimação: a aceitação de valores formais-procedimentais ‘abertos’

na Constituição, com a processualização de seus conteúdos, e a concretização de

direitos fundamentais por uma atividade hermenêutica concretizante da normatividade

constitucional.

Assim, a hermenêutica da jurisdição constitucional vincula-se genericamente

com sua acepção de concreção de valores constitucionais: se democratizante e

processualista, inclina-se mais para uma idéia de jurisdição procedimental, se axiológica

e ativista-concretista, para a idéia de uma jurisdição substancialista.

Dialogando com os paradigmas de ambas as correntes é que se buscará analisar

adiante, com a colocação das visões em conflito e as posições de convergência e

possibilidades aproximativas de ambas, a referência das mesmas ao problema central da

legitimidade da jurisdição constitucional.

2. Jurisdição constitucional e legitimidade

2.1. Posição de Hans Kelsen sobre a jurisdição constitucional

O tema da legitimidade, enquanto fenômeno jurídico de efetividade global do

ordenamento jurídico e o respeito pelo mesmo no contexto de sua incidência social,

insere múltiplas análises de cunho político, sociológico, axiológico etc, porém no

presente trabalho científico será analisada sucintamente de modo introdutório ao tema a

posição de Hans Kelsen e o confronto da mesma com a visão de Carl Schmitt, ambas

matrizes das discussões que serão conduzidas no âmbito da teoria da legitimação da

jurisdição constitucional no decorrer do século XX e prólogos do século XXI.

É longo o processo de desconstrução da legitimidade em termos de vinculação

com fundamentos absolutos – baseado na religião, na ética, no dever, enfim, tudo isso

na torrente de laicização progressiva e radical que gerou a crise da legitimidade política

do Estado Moderno, e a um tempo a gestação de um direito positivo com validade cada

vez mais auto-referente.

O pós-positivismo em geral buscou estudar o direito em vista de suas

fundamentações pós-metafísicas e predominantemente vinculadas com a problemática

de um direito estatal, não se deixando influenciar pela torrente axiologista, sociologista

ou culturalista predominantemente.

Para conhecer as bases do pós-positivismo aplicável ao constitucionalismo é

necessário remontar a Kelsen, que sintetizou e levou ao máximo desenvolvimento a

posição positivista até sua época, admitia a função legitimadora da norma fundamental

quando se apercebia da questão da necessidade da adesão política à ordem jurídica

vigente por parte dos cidadãos, os quais teriam que aderir ao comando normativo para

fazer valer materialmente o conteúdo do Direito.

Assim, o problema da legitimidade da norma jurídica num sentido social, ao

querer-se definir o campo de incidência tal como aqui pretendido, é realmente uma

questão que assume o fator de uma problemática resolvida por Kelsen num sentido de

enquadramento com a normatividade pressuposta ao sistema do ordenamento, que

através da coerção garante sua eficácia e, conseqüentemente, sua legitimidade.

Para Kelsen, como diz Agra (2005, p. 62), a jurisdição constitucional tutelaria a

defesa da normatividade constitucional de um ponto de vista que resguardasse o

pluralismo democrático e a construção de procedimentos de análise e de descrição dos

conflitos no âmbito da autonomia e sistematicidade do ordenamento jurídico.

A situação em que o positivismo encontra o direito no século XX, e a tentativa

de justificá-lo utilizando categorias da análise estrutural do direito kelseniana, esbarra

nos conflitos intestinos da democracia, voltada para a multiplicidade de

posicionamentos e a crítica dos fundamentos “estabilizados”, bem como nas relações de

poder e suas acomodações (ADEODATO, 1989, p.3).

O fato é que a idéia de construção de uma jurisdição constitucional em Kelsen

estruturou o paradigma da formalidade procedimental, da construção de procedimentos

de análise dos conflitos, de apreço pelo relativismo democrático e pela segurança

jurídica do procedimento discursivo, enfim, na vinculação entre positividade da ordem

constitucional e a sua estruturação processual e democrática.

A idéia de jurisdição constitucional em Kelsen, como assentada na legitimidade

de discussão entre juízes e partes mediante um processo foi ampliada e modificada por

Häberle, principalmente por influencia de Karl Popper e sua idéia de “sociedade aberta”

(SILVA, 2005), para uma sociedade aberta de intérpretes com plena confiança numa

cidadania ativa e participativa, capaz de instrumentalizar conquistas democráticas no

espaço público.

Essa corrente desenvolve-se na preocupação da legitimação do direito em

Habermas (BINENBOJM, 2004, p.114) ao expor a tensão entre faticidade e validade e a

busca pelo aprofundamento crítico-discursivo que desconstrói e reconstrói fundamentos,

buscando legitimar-se no seio de uma sociedade plural e internamente contraditória e

plural (capitalismo pós-industrial, HABERMAS, 2002, p.25) – com certeza valoriza os

âmbitos da validade interna e vinculação sócio-psíquica como topoi discursivos

relevantes, porém não exclusivos e finalizantes para o debate em torno da legitimidade

do direito na pós-modernidade.

Assim, a perspectiva da existência e função da jurisdição constitucional aparece

nesse horizonte de dificuldade e carência da legitimidade jurídica nos séculos XX e

XXI. Se a jurisdição constitucional nasceu exatamente contra as maiorias parlamentares,

como mostra Binenbojm (2004, p.24), em Kelsen emerge o esforço de ligação entre

Estado Democrático de Direito e interpretação e proteção da Constituição como

construção de estratégias no campo democrático e cívico.

A jurisdição constitucional procedimentalista em suas linhas de

desenvolvimento as mais diversas irá beber na fonte kelseniana, desde John Hart Ely até

Carlos Santiago Nino, passando pelo importante reforço em Habermas e sua teoria do

agir comunicativo e da comunidade de comunicação, o que incitou perspectivas

processualistas e democratizantes no âmbito do direito.

O fato é que Kelsen travou com Carl Schmitt, o kronjurist (jurista da coroa) do

nazismo, a batalha central acerca da fundamentação e estruturação da legitimação do

sistema de jurisdição constitucional, pois percebe-se que Schmitt desenvolveu um

sistema de proteção para a Constituição despindo-se da tradição do racionalismo

universalista e democrático kantiano, do liberalismo democrático e do positivismo

formalista e metodológico tão caro a Kelsen.

2.2. Posição de Carl Schmitt sobre a jurisdição constitucional

A partir da crítica à metodologia formalista e positivista de Kelsen, e ao sistema

político-democrático parlamentar e liberal dominante desde o início do Século XX na

Europa, Schmitt traça uma novel visão sobre o sistema de proteção das normas e da

interpretação constitucional, o que remete para a situação da doutrina jusfilosófica

alemã no período das primeiras décadas do século XX.

Hegel, pai do idealismo absoluto, com sua doutrina de que o Estado é o

mediador, é a síntese entre o conflito de dois entes opostos que são a família e a

sociedade civil, levou a uma supervalorizacão do estatismo como instrumento de

resolução dos conflitos sociais na Alemanha desde Bismarck e o fortalecimento do

Estado Alemão unificado.

Para o hegelismo o Estado era o próprio Absoluto encarnado na História, a

entidade máxima que os homens deveriam obedecer se quisessem encontrar a paz. Em

decorrência do historismo hegeliano, mas sem o caráter estatolatra desse último,

desenvolveu-se a ‘Escola Histórica Alemã’ de Savigny e Puchta, a qual apregoava que o

ordenamento jurídico deveria formar-se a partir do “espírito do povo’’ (REALE, 1998,

p.50); só assim ele teria uma legitimidade concreta.

Ora, tanto hegelianos como historicistas viam no direito uma continuação da

política como processo público integral, material, voltado para a construção de uma

interpretação francamente social, favorável à efetivação de valores sociais e

comunitários pela juridicidade coordenada por um processo político dominante,

nacionalista e público, fortemente impregnado de uma carga ideológica e axiológica.

A tradição de valorização do papel da política influiu na própria formação do

positivismo alemão, pois marcou a carga estatista o positivismo, com o

neocontratualismo de Bierling, que concebia no estatismo e seu reconhecimento pelo

indivíduo a origem da atividade jurídica (REALE, 1998, p. 16).

Amparados por tão longa tradição de amor e culto ao Estado e à Vontade, não

era muito difícil que membros da escola neo-romântica do Direito como Hoehn e

Dietrich, aderissem à ideologia nazista (REALE, 1998, p.260), a qual apregoava que a

submissão do indivíduo ao poder estatal era o modo peculiar pelo qual a vontade

popular teria de expressar-se.

Unindo vontade e poder, os hitleristas punham em prática idéias do hegelismo e

do historicismo jurídicos. Não foi à toa que um jurista portentoso como Karl Larenz viu

no Estado hitleriano a realização do “Estado Ético” de Hegel; Carl Schmitt, Otto

Kollreutter, e outros, associaram a teoria da “alma rácica” do ideólogo nacional-

socialista Rosemberg, ao Volksgeist de Savigny, e ao Geinschaft (Comunidade racial)

do sociólogo Ferdinannd Tönnies, formando então a teoria da Volksgemeinschaft

(Vontade da comunidade racial), expressão sócio-política da criação intelectual

adesionista ao nazismo (REALE, 1998, p.261-263).

A tradição axiologista da filosofia alemã deve também possuir um papel

importante nesse sentido, e o reforço que na década de XX a filosofia dos valores

essencialista e fenomenologia de Max Scheler concedeu à teoria axiológica em diversos

campos afetou também o direito gerando uma série de acepções substancialistas e

essencialistas para o Direito, com influências sobre o Tribunal Constitucional alemão,

como mostra Habermas (2003, p.315).

Se para o hegelismo o ser humano é apenas um momento do Absoluto, e para o

historicismo romântico ele é tão-somente o realizador da vontade da comunidade, não

existe idéia de relativismo axiológico democrático nem formalismo legal que resista à

materialidade de tal acepção de direito constitucional. A fenomenologia da norma

revelaria uma essência a ser revelada pelo processo de interpretação (LARENZ, 1997).

Ora, uma concepção de constitucionalidade fica dependente da noção de uma

Constituição material e política, já propalada por Lassalle (1988, p.11) e deve, pois,

fazer-se a proteção da Constituição em função de uma acepção político-material em

consonância com a carga axiológica dominante socialmente.

Oriundo e vinculado a esse contexto jusfilosófico, Carl Schmitt só poderia

contrapor-se a Kelsen em defesa de um pensamento jurídico “autenticamente alemão”, e

não ao positivismo neokantiano de clara ascendência francesa do judeu Hans Kelsen.

Ora, Kelsen defendera uma democracia pluralista e parlamentar, e um órgão

formal em defesa da constitucionalidade. Schmitt, contrariamente, apregoava a noção de

uma “política total”, desconfiava e criticava a capacidade de legitimidade da democracia

parlamentar (SCHMITT, 2007, p.65), daí concebendo que somente um processo

político forte e axiológico seria capaz de implementar uma defesa integral, eficaz e,

conseqüentemente, legítima da constitucionalidade.

O problema da legitimidade parece mais sensível a Schmitt, tanto, que defende

que a guarda da Constituição seja realizada como processo político dominado pelo

Führer (líder) enquanto representante da nação alemã. Quem tem o poder deve decidir;

quem tem a força possui a legitimidade segundo Schmitt (MACÊDO, 2001, p.66).

Assim, somente o homem forte do Estado, guardião da ordem axiológica material e

repositário da legitimidade política, pode ser o protetor da Carta Constitucional

(MACÊDO, 2001, p.67).

Na senda traçada por Schmitt, a força da concepção política, material, social e

axiológica da jurisdição constitucional, por assim dizer substancial, desbastaria a ilusão

da formalidade do individualismo e da relatividade das concepções políticas

democratizantes liberais defendidas por Kelsen (SCHMITT, 2007, p. 62).

Para Schmitt, a jurisdição constitucional é um processo político, porque a

constituição do Estado é da mesma natureza. Ora, a própria noção de substância1

assoma aqui com toda a força, pois ela é substancia de valores resguardados na textura

da lei, mas de modo algum formalista, por outro lado, é material e axiológica, e objetiva

enquanto realidade social e politicamente efetivável. O Estado para Schmitt teria de ser

‘total’ e, conseguintemente, impor valores totalizantes para a sociedade.

Totalmente legítima em suas bases políticas reais e materiais, a jurisdição

constitucional assim concebida seria a efetividade de um processo político de defesa e

implementação de valores substanciais (SCHMITT, 2007, p. 62).

Dürig foi outro jurista alemão que defendeu a jurisdição constitucional

substancialista com base numa ordem de valores que teria por núcleo a dignidade

humana, o que influenciou demasiadamente o Tribunal Constitucional Federal.

Quem defendeu com primor uma jurisdição substancialista refletindo valores

absolutos foi Rudolf Smend, um jusfilósofo vitalista e fenomenólogo, para quem a

Constituição é essencialmente ordem de valores dentro de um Estado como um super-

homem capaz de assegurar a integridade da ordem social (KELSEN, 2003, p.33).

A concepção de Smend foi também atacada por Kelsen em função de sua visão

essencialista e metafísica, sendo Kelsen (2000, p.166) um relativista democrático que

fundamentou a jurisdição constitucional na legitimação democrática e na legalidade

(KELSEN, 2003, p.110).

1 Substância, filosoficamente expondo, é categoria da metafísica da tradição aristotélico-tomista para definir propriedades de algo que é constante, determinado, em–si. Assim, o homem é substância racional, possui a determinação de substancialidade intelectiva (Aristóteles-Tomás de Aquino). Na teologia cristã, Cristo é consubstancial (consubstancialem patris, está no Credo) ao Pai, então, é substância e não acidente, assim, substantivo é aquilo que linguisticamente é próprio, definido. A vinculação do conceito de substância com o conceito de essência é também patente: a essência de algo é substantiva, tem por propriedade a constância, a imutabilidade, isso também na tradição platônica a essência ideal do mundo é substancial num sentido de fundamento transcendente. Não é por acaso que a concepção de essência de valores desenvolvida por Scheler é ideativa-essencialista, porque são substâncias e não acidentes os valores ideais. Para quem aplica isso ao direito, os valores jurídicos são essenciais como uma concepção de valores materiais do justo, da dignidade humana, da moralidade, como no Radbruch da segunda fase fenomenologista e metafísica, especificada em sua Filosofia do Direito. Trad. Luis Cabral de Moncada. Coimbra: Armênio Amado, 1974, p.214.

O fato é que a tradição de encarar a Constituição de maneira substancialista

perdurou na visão dos chamados juristas concretistas e a vitória do constitucionalismo

como movimento ideativo do direito na década de 70 do século passado perfez um

itinerário de construção de teorias concretistas e estruturantes da norma constitucional,

levando em conta o sistema de valores por ela propugnado, principalmente na

concepção de densificação de princípios como vontade de concretização constitucional

em Konrad Hesse (1991, p. 19).

O que ficou como conseqüência do debate entre Kelsen e Schmitt ? Essa é

pergunta que deve nortear o estudo daqui em diante. Ora, se do debate perdura a posição

que uma construção de direitos fundamentais com fulcro na interpretação da

constitucionalidade, numa clara hermenêutica de concreção de normatividade, então,

quem defende a concretização antes do debate e da problematização hermenêutica e

democrática (por assim dizer constantemente reconstrutiva do texto constitucional),

pode ser considerado um substancialista, pois entende que o texto da norma

constitucional ‘porta’ valores – isso continua a tradição hegeliana-scheleriana da norma

jurídica como realidade que possui wertränger (portar, conter valores).

Concebendo-se a norma constitucional como portando valores, possuindo

valores intrínsecos, ela então constituiria, à luz da tradição filosófico-metafísica, algo

substancial.

Nesse sentido, enquanto Kelsen defendia uma jurisdição “aberta” a sínteses

hermenêuticas na estrutura da pluralidade democrática, mas tutelados e protegidos

através de um processo constitucional estruturado perante e através de uma jurisdição

constitucional, Schmitt apregoava uma jurisdição “substancial”, portadora de valores a

ser defendidos e concretizados pelo processo político.

Ora, assim concebendo a questão é importante o debate entre a tópica de

Viehweg e o sistematicismo de Canaris, pois enquanto o primeiro problematiza os

valores constitucionais (CANARIS, 1996, p.252), o que deu origem ao método de

pluralidade hermenêutica em Häberle, o segundo sistematizada e constrói o sistema

constitucional em uma hermenêutica unificadora da estrutura de sentido

(fenomenologia) dos valores, interpretando-os em consonância com a globalidade do

sistema jurídico (CANARIS, 1996, p.86).

Essa hermenêutica estruturante de valores influencia o debate sobre a

concretização constitucional, e reforça a filosofia de uma Constituição “portadora de

valores”. Quem concretiza, concretiza algo, então, algo há de pré-decidido na

normatividade constitucional, cabendo à jurisdição substancialista, por vezes aclamada

de socialmente ‘protetora’ sob o influxo do Welfare State, concretizar valores

constitucionais num processo que, assim como nos regimes políticos autoritários,

continua ser de mão única: de cima para baixo, do judiciário constitucional ético-

axiológico para a desprotegida e injustiçada sociedade.

Pergunta-se : e o papel de co-construção desses direitos que essa última deve

exercer através da cidadania participativa e interpretativa-construtiva dos direitos

fundamentais e sociais, onde situa-se ?

No Brasil, as correntes concretistas deixam-se seduzir pela ideologia do poder ao

apregoarem uma jurisdição constitucional substancialista, axiologista, com um

judiciário constitucional atuante, ético, valorativo. Pergunta-se com Bruce Ackerman

(1998, p.4): E nós, o povo ?

Na verdade, como assevera Mônia Leal (2007, p.143) continuamos a tradição da

jurisdição constitucional alemã, seguida pela maioria das jurisdições constitucionais do

Ocidente no pós-II Guerra, de preconizar uma constitucionalidade valorativa e

“material”, à exceção da jurisdição constitucional norte-americana, do tipo democrático-

liberal-organizatória2.

O fato, assim, sinteticamente, é que o fundamento último das concepções sobre

jurisdição constitucional que possuem o viés substancialista é serem “racionalmente

fortes” como diz John Rawls (2000, p.35), ou axiologicamente ‘materiais’, como

expressa Habermas (1997, p. 315).

Numa sociedade multicultural e pós-metafísica, conceber-se valores absolutos e

substanciais, é uma posição difícil de ser defendida à luz de uma racionalidade

procedural e crítica, exatamente porque não existem mais fundamentos gnoseológicos

2 O que, segundo a autora, não impediu a Suprema Corte de atuar com poder normativo e construtivo da legislação, citando para isso o caso Allgeyer v. Louisiana, 165 U. S. 578, 589 (1987). Cf: LEAL, Mônia Clarissa Henning. Jurisdição Constitucional Aberta: Reflexões sobre a legitimidade e os limites da Jurisdição Constitucional na Ordem Democrática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.143.

que garantam tal posicionamento. Não é possível falar de fundamentações num sentido

rigoroso filosoficamente, mas apenas de argumentações, como diz o maior

neopragmático norte-americano, Rorty (2001, p.32), só existem justificações e fatos.

Então, nessa senda, seguida por Alexy, Nino entre outros, somente pode fazer-se

de uma filosofia jurídica procedimentalista e racionalista-argumentativa, assim como no

constitucionalismo o paradigma racional-discursivo predomina, devendo

institucionalizar-se o direito constitucional como discursivo (ALEXY, 2007, p.12).

A razão em uma jurisdição constitucional deve ser procedimental, aberta a sínteses

construtivas de valores, pois o conteúdo não é de modo algum dado previamente por

uma pauta político-axiológico determinante, mas é re-construído a cada momento como

fator de recuperação racionalista dos sentidos de aplicação da norma constitucional pelo

processo de argumentação, seja na comunidade ideal de comunicação (Habermas) seja

no auditório universal (Perelman), conforme mostra ATIENZA (2000, p. 110).

Como fator de legitimação da jurisdição aberta não é mais valores ou ideologia

política dominante, é assaz relevante discutir o paradigma de legitimação na visão

procedimentalista ou ‘aberta” da jurisdição constitucional.

3. Fatores de legitimação da jurisdição constitucional

3.1. Valor constitucional e hermenêutica

O fator de legitimação jurídica pelo procedimento (Luhmann) ou pelo processo

de racionalidade comunicativa (Habermas) implica no reconhecimento de

institucionalização da racionalidade jurídica. Ora, a concepção de se construir um

direito pela racionalidade procedimental implica necessariamente uma abertura no

sentido argumentativo a todos os partícipes do processo democrático, à totalidade dos

cidadãos, o que para alguns autores, implicaria na própria supressão da idéia de

jurisdição constitucional (LEAL, 2002, p.98) e sua substituição por constantes

procedimentos lingüístico-argumentativos de institucionalização da linguagem jurídica.

É de se colocar que, efetivamente, os ideais de democratização e de

racionalização do direito e da política, bem como de universalismo dos direitos

humanos e de racionalidade ética universal com o respeito inconteste à dignidade da

pessoa humana são idéias-força de fundo kantiano que inspiraram e fundamentaram

sistemas de cunho racional como o de Habermas e sua ideal de uma comunidade ideal

de comunicação na pragmática universal, e de Perelman, com a idéia do auditório

universal.

A radicalização da democracia, o aprofundamento da razão e do poder social

sobre as instituições, é meta mor de todo racionalismo pós-metafísico aberto e

procedimental, até como condição-limite do desenvolvimento de um humanismo

democrático e de um republicanismo de caráter laico e politicamente sustentável.

Todavia, não se pode esquecer que o poder e suas estratégias e ideologias de

legitimação são bastante fortes (FOUCAULT, 2002, p.120), e as simbologias

dominantes não são facilmente desbastadas, pois são estratégias de legitimação do poder

soberano (MARSHALL, 2008, p.35).

O próprio Habermas admite que o discurso não se aparta do poder (2003, p.126).

Assim, a idéia de institucionalizar procedimentos argumentativos por uma

democratização radical com a supressão da garantia da jurisdição constitucional, revela-

se perigosa para a própria democracia, pois pensando nas hipóteses de domínio das

elites sobre o poder, dificilmente a implementação da democratização pode dar-se sem

possuir tal movimento democrático, ele próprio, um instrumento de poder.

A jurisdição constitucional é um meio de poder da sociedade aberta. Como

asserta Rawls (2000, p.288), constitui o foro da razão pública, seu lócus de

processualização. Assim, não se pode fazer a racionalidade processual “aberta” aparecer

por meio de uma supressão da jurisdição constitucional predominantemente

substancialista. Pelo contrário, é na transformação da jurisdição constitucional em local

da democracia e da racionalidade argumentativa que pode vencer a sociedade “aberta”.

Se o inimigo da ‘sociedade aberta’, para usar um termo popperiano, é ausência

de democratização do poder, o entrave da racionalidade procedimental é a falta de um

local de discussão. Reformas na lei no sentido de desconcentrar poderes na cúpula da

Corte Constitucional, vontade política do parlamento de produzir uma legislação que

garanta autonomia para a cidadania, enfim, as reformas institucionais num sentido lato

são um caminho para a descentralização de poder do Tribunal Constitucional e

aprimoramento da cidadania participativa. Acima de tudo, a questão é a epistemologia

jurídica que deve ser construída sob um enfoque processualista e crítico.

Longe de suprimir, reformular gnoseológica e epistemologicamente em termos

hermenêuticos e processuais a jurisdição constitucional é o que deve ser feito a fim de

democratizar sua estrutura e efetivar valores constitucionais, ampliando sua legitimação

democrática.

O diálogo entre os dois modelos de jurisdição, longe de ser infrutífero, aponta a

diversas soluções e transformações de paradigmas. Como asserta Stamato (2005, p.

237): “enquanto a teoria procedimentalista é cética quanto à reflexão moral individual, a

teoria substancialista desconfia da reflexão coletiva.”

Ora, deve haver um equilíbrio entre a dignidade humana e as posições do

individualismo de um lado, e a teoria moral de auto-determinação coletivista e aos

processos de construção da racionalidade pela argumentação inter-subjetiva na outra

vertente.

Defende-se uma jurisdição constitucional calcada em defesa de valores, não

fechados hermeneuticamente, mas abertos a sínteses de compreensão, o que passa pelos

topos argumentativos e axiológicos da dignidade humana, liberdade, propriedade

individual, democracia, moralidade pública etc. Tais valores são idéias-símbolos

institucionalizadas nas Cartas Constitucionais exatamente para se funcionalizarem como

garantias do cidadão.

Valores são idéias-símbolo que devem ser efetivados (RESWEBER, 2002, p.51)

e não essências metafísicas a ser descortinadas em processos de concretização

dominados pela mente de indivíduos privilegiados (paradigma da filosofia da

consciência aplicado ao direito). Como diz Streck (2006, p.165), segundo as lições da

hermenêutica existencialista gadameriana-heideggeriana, desmistificar e des-coisificar

os valores é cumprir a missão de superação a filosofia da consciência e sua estrita visão

hermenêutica.

Um paradigma deve ser estabelecido: não existem valores substanciais. Há tão-

somente valores procedimentais, simbólicos, construíveis dentro de uma racionalidade

processual, principalmente a noção de justiça e, outrossim, a de justiça constitucional.

Tem-se que ‘relativizar direitos’ como apregoa West (2003, p.71), fugindo da

matriz cristã axiológica jusnaturalista, como também do jusnaturalismo do liberalismo

clássico, que ainda serve para justificar posições conservadoras na jurisprudência

constitucional norte-americana. A idéia de lei, conforme West (2003, p.165), deve ser

entendida progressivamente, e não conservadora e estaticamente como no pensamento

metafísico e jusnaturalista.

3.2. Processualismo democrático e processo constitucional

Para a construção da racionalidade procedimental do direito faz-se necessária a

institucionalização de procedimentos jurisdicionais que assegurem ao cidadão a

construção pela iniciativa própria, cidadã, de direitos fundamentais, a partir da

interpretação dos conceitos ínsitos e dos valores abertos estatuídos na Carta

Constitucional.

Alexy (2007, p.12) defende um constitucionalismo democrático, mas toma

como critérios de efetividade o manuseio direto pelo juiz constitucional de

procedimentos argumentativos calcados no princípio da proporcionalidade e na

razoabilidade e ponderação.

A crítica de Habermas (1997, p.318) ao procedimento de argumentação

alexyano demonstra que não se pode adotar a proporcionalidade diretamente como

poder judicial de sopesamento de princípios como valores (afinal, há uma vinculação

com os demais princípios e com o sistema constitucional globalmente considerado) e re-

construtor da normatividade, apesar dela ser o principio fundamental da discursividade

constitucional contemporânea, ainda que não escrito, na maioria das Constituições,

diretamente na argumentação jurídica.

Um critério de razoabilidade pautado em valores como defendido por Alexy

(2007) implica no sopesamento dos mesmos por outros elementos axiológicos,

debilitando a normatividade e favorecendo a manipulação da normatividade

constitucional, fugindo a critérios de análise em termos de falibilidade da construção

argumentativa (LEAL, 2002, p.121), relativizando e enfraquecendo a aplicação do

direito constitucional enquanto principiologia normativa com certeza de aplicação

enquanto garantia democrática.

O fato é que o elastecimento de interpretações axiológicas leva a usurpação do

respeito ao poder legislativo e sua legitimidade democrática e função estatal. A

construção de direitos deve dar-se mediante não opção de valores ou sopesamento

destes, mas dentro da estruturação de procedimentos de discussão dos casos complexos,

como o STF no Brasil fez ao admitir ampla discursividade democratizante e técnica da

ADIN 35103, que versou sobre a constitucionalidade das pesquisas com células-tronco,

ao admitir vários amicis curiae na lide.

Pode-se até dizer que o excesso de ponderação do direito é um instrumento de

uma interpretação substancialista da jurisdição constitucional que conjuga mais poder à

interpretação do juiz do que à auto-determinação da sociedade na hermenêutica

constitucional.

O fato é que a criação de direito no ativismo e a interpretação política da

Constituição devem ser estruturadas com assaz cautela, e de modo suplementar ao

processo constitucional como uma visão hermenêutica e gnoseológica da norma

constitucional estruturada como uma hermenêutica participativa, uma endo-

processualidade constitucional democrática, que, aliada a um número de crescente de

possibilidades objetivas em termos de instrumentos e ações constitucionais (exo-

processualidade constitucional democrática) capazes de garantir o acesso ao cidadão à

criação de direitos e ao processo de construção da decisão judicial (LEAL, 2002, p. 56).

Não se pode reduzir a complexidade de certas matérias e considerar que a

processualidade democrática da Constituição possa resolver todas as questões e

principalmente os casos difíceis, como coloca Dworkin (2003), os casos constitucionais

são assaz complexos para se confiar apenas na capacidade de auto-tutela da sociedade,

exigindo-se a presença de um corpo técnico não apenas de juristas constitucionais, mas

de diversos campos do saber que versem sobre aspectos técnicos inerentes aos fatos das

demandas constitucionais. Entende-se que o processo constitucional deva ser

concretizado com base na conjugação entre técnica e participação popular sempre que

possível.

3Disponível em: http://www.stf.gov.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=3510&classe=ADI&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M. Acesso : 03 jul. 2008.

Nesse ponto, a complexidade do processo constitucional demonstra a própria

necessidade de vinculação da jurisdição a um paradigma calcado na segurança jurídica,

na impessoalidade, no devido processo constitucional e também na proporcionalidade e

razoabilidade, o que indica que deve haver uma presença de concretização de princípios

e de garantias pelo juiz constitucional. Ora, essa é uma bandeira da visão substancialista

(numa linha concretista e garantista) da jurisdição constitucional que deve ser levada em

conta.

Não adianta impingir o ideal de constitucionalismo democrático sem respeito

aos problemas técnicos da demanda constitucional – a segurança jurídica, a própria

racionalidade procedimental e o contraditório e ampla defesa inerentes ao processo

constitucional estariam em perigo. Como dizia Abraham Lincoln em proverbial frase,

‘nada ameaça mais a democracia que o excesso dela’.

As teses pós-metafísicas e pós-modernas do direito por vezes olvidam a

complexidade técnica e as peculiaridades hermenêuticas do direito e pensam poder

processualizar democraticamente todas as matérias da jurisdição constitucional

(HABERMAS, 1997).

Todavia, é de colocar que Streck (2006, p.165) faz pertinente crítica contra a

redução da hermenêutica à procedimentos lingüísticos, pois o problema do Ser e a

historicidade da estrutura de pensamento epocal, bem como a questão do sentido

histórico da cultura e da existência humana objetivada historicamente se impõem ao

âmbito do direito, mormente no jus constitucional, daí porque não se poder reduzir a

gnoseologia jurídica à “procedimentalização e processualização absolutas e totais da

juridicidade”, criando contraditoriamente, à luz do próprio pensamento pós-metafísico

racionalista processual, um novo paradigma açambarcador do fenômeno jurídico.

Existe um espaço próprio para uma hermenêutica histórico-existencialista

(Gadamer), construtiva (Dworkin), estruturante (Friedrich Müller) que assegure uma

interpretação concretista (Bonavides) para a norma constitucional, na impossibilidade

gnoseológica (pela própria especificidade técnica da matéria constitucional tratada) e

política, pela ausência de condições político-democráticas mais ou menos transponíveis

de democratização da jurisdição constitucional, como acontece no elitista cenário social

e no Estado brasileiros, conjugados ao espaço público carente de discursividade, com

cidadania e participação política debilitadas.

Uma jurisdição concretista e ativista é necessária e possível, até como garantia

do processo democrático. Vê-se que a oposição entre substancialismo e

procedimentalismo da jurisdição não pode assumir feições maniqueístas, devendo haver

uma conjunção de métodos de trabalho hermenêutico-científicos e democráticos na

construção da justiça constitucional, essa sim, processualmente construída na tensão

fático-validativa (HABERMAS, 1997, p.23) e, nos termos aqui propostos, técnico-

democráticos.

3.3. Propostas de reconstrução da legitimidade da jurisdição constitucional: diálogo

com o sistema norte-americano.

As correntes de hermenêutica da Constituição operam, em geral, por dois

caminhos: o procedimentalista-democrático, na matriz pós-positivista geralmente

alinhados com a idéia kelseniana e habermasiana de uma normatividade constitucional

construída dentro da positividade e através de uma racionalidade processual ou de uma

democratização processual progressiva, e o caminho substancialista, com a preocupação

premente de reconstruir a norma sob a concretização de valores constitucionais. Os

substancialistas indicam mais simpatia, em geral, pela apreensão ou intuição de um

direito comunitário associado aos valores consagrados constitucionalmente.

Identificamos em Carl Schmitt e Konrad Hesse a matriz dessa visão

substancialista quanto à herança das idéias de um juiz hermeneuta, de uma norma

constitucional carregada de valores e de uma ordem de valores a ser desenvolvida in

concreto, materialmente.

Adentrando na tradição do constitucionalismo estadunidense, observamos que

desde a fixação da competência da jurisdição em rever atos do poder Executivo no caso

Marbury v. Madison, que o judicial review, o poder de revisão de atos administrativos e

legais pelo judiciário constitucional foi-se assentando na constitucionalidade norte-

americana.

Com base nesse poder de reavaliação, concretização e interpretação

constitucionais a Suprema Corte, tanto em controle difuso como concentrado, atuou no

sentido de estender direitos fundamentais a determinados grupos e de concretizar

direitos sociais universais, como também em momentos considerados, analisando como

base em um viés esquerdista, politicamente mais conservador, restringiu direitos em

casos concretos, tal como o leading case Dred Scott, 1857 (LEAL, 2007).

Procedimentalistas como John Hart Ely (2002, p.73) apregoam que mediante

uma teoria da democratização da interpretação constitucional, pode haver uma

reavaliação dos valores jurídicos insertos na Constituição, como fizeram a “Corte

Warren” e a “Corte Burger” nos EUA nas década de 50 a 80 do século XX.

Por isso Ely (2002, p.73) não considera a Suprema Corte no período em que foi

presidida por Earl Warren (1954-1964) e por Warren Burger (1964-1986) ativista ou

substancialista, mas democrática, mesmo porque ouviu os reclamos sociais e tendeu a

ser procedimentalista, pois funciona como árbitra dos conflitos provenientes da

representação política, devendo ouvir as minorias e suas reivindicações de direitos

(ELY, 2002, p.135).

Como assevera Ackerman (1998, p. 345), o dilema sobre o originalismo e o

criacionismo, correntes dominantes dentro da visão ‘substancialista’ da jurisdição

constitucional, implica na pergunta : valores constitucionais são redescobertos (a partir

de uma cabedal axiológico objetivo e implícito na Constituição) ou criados (com base

em procedimentos construtivos e democrático-participativos) ?

Na verdade, o ativismo na Suprema Corte parece transcender o

“substancialismo” constitucional e aproximar-se de uma jurisdição democrática, pois

correspondeu a iminente exigência de concretização de políticas públicas reclamadas

socialmente, o povo se mobilizou e debateu o momento político e econômico da crise de

1929 e apoiou o New Deal (ACKERMAN, 1998, p.384), o que implicou transformações

nas interpretações formalistas da Constituição pela Suprema Corte, ainda que o

presidente Roosevelt tivesse que ameaçar até cassar ministros intransigentes para

modificarem visões interpretativas conservadoras (GODOY, 2007).

Claro que posições controversas podem advir da Suprema Corte, como no case

Bush v. Gore, que gerou o protesto de 700 professores de direito no país (WEST, 2003,

p.14). Isso indica que, segundo os ativistas o judiciário deve ser forte e não

simplesmente procedimental, pois ele pode manter o judicial review devido exatamente

à sua função incitadora de pluralismo democrático e de resolver conflitos políticos, e

não de compromissos com ideologias políticas.

Segundo Leal (2007, p.182), o ‘substancialista’ Lawrence Tribe considera

improvável a institucionalização de processos de decisão democratizados na jurisdição

constitucional sem que haja referência a valores objetivos. Tribe defende um ativismo

com base na identificação de valores objetivos na Constituição, e diz que quem

considera como Ely, que a Constituição prevê apenas procedimentos e não substância,

não está em seu juízo perfeito (LEAL, 2007, p.183).

O fato é que os defensores do judicial review e de uma jurisdição substancialista,

geralmente republicanos como Frank Michelman, Cass Sustein e Philip Petit, em

oposição aos procedimentalistas geralmente ligados ao Partido Democrata, separam

direito e política e encaram o Tribunal Constitucional com a função de proteger a

democracia deliberativa (SILVA, 2005).

Habermas (2003, p. 312) assevera que Sustein adere ainda a uma busca de

reconstrução política do consenso sobre os valores constitucionais na era do Estado

regulatório, e que Michelman trabalha com a idéia de um judiciário procedimentalista,

mas construtivo de valores implícitos na sociedade prosseguindo a tradição republicana

de civismo participativo, mas de valores conservadores (HABERMAS, 1997, p.338).

Cass Sustein (1987, p.19) em artigo que analisa a posição de Mangabeira Unger

acerca da democracia deliberativa e o poder das minorias, assevera que:

Institutional arrangements that can be taken for granted

help to facilitate democracy; they need not undermine it.

The task for the future is not to ensure that everything is

constantly up for grabs, but to design mechanisms to limit

factional power and self-interested representation, to

facilitate deliberative approaches to democracy, and to

promote participation in government in an era in which the

traditional constitutional goal of "limited government" has

lost some of its appeal4.

4. Conclusão

Na verdade, o que está no fundo da discussão entre democratização

procedimentalista versus substancialismo concretista, e ativismo progressista versus

conservadorismo originalista, como se observa no debate dos constitucionalistas norte-

americanos entre si, é que a jurisdição constitucional implica em campo de discussão

entre as posições conflitantes sobre : 1) Como uma atividade crítica da legalidade estrita

ou da normatividade enrijecida em seu conteúdo por ideologias políticas ou valores

absolutos pode ser exercida e 2) Como pode-se institucionalizar a democratização do

poder e as conquistas de direitos sociais. Isto é: a crítica da norma e as construções de

direitos sociais são arena de debates políticos e não apenas especificamente jurídicos.

É assente o caráter político da interpretação constitucional. As dimensões

políticas das decisões do Supremo Tribunal Federal no Brasil, por exemplo, são

analisadas por Vilanova (1997, p.38), no sentido de entender a presença de um elemento

político na decisão constitucional.

Ronald Dworkin (2000, p. 103) também considera um caráter político inerente à

matéria constitucional, ainda que em caráter genérico de responsabilidade social acerca

da decisão. Metodologicamente, é de considerar que deve existir uma distinção entre a

pretensão política e a apreciação técnica da demanda pelo órgão jurisdicional

constitucional (VILANOVA, 1997, p.43).

Todavia, é de se considerar que as pressões políticas de grupos sociais sobre as

questões controvertidas postas à apreciação da jurisdição constitucional não podem ser

olvidadas, nem muito menos o sentido histórico da realizabilidade da efetivação da

norma constitucional pela Corte jurisdicional.

4 Tradução livre: “Arranjos institucionais podem ser tomados para que a ajuda concedida facilite a democracia; não precisam miná-la. A tarefa para o futuro não é assegurar-se de que tudo seja constantemente posto para ser ‘agarrado’, mas projetar mecanismos de limitar o poder factual e a representação interesseira, facilitar aproximações deliberativas à democracia, e promover a participação no governo em uma época em que o objetivo constitucional tradicional era o "government" limitado; isso perdeu algo de sue apelo.”

Assim sendo, a estrutura de julgamento deve ser democratizada para adequar-se

à transformação histórica das demandas sociais. Deve-se ainda observar que uma visão

relativizadora da normatividade com o enfraquecimento hermenêutico da mesma (como

faz Alexy e sua metodologia de ponderação de valores), ou a ‘prisão’ da interpretação

da norma calcada em uma percepção essencialista de axiologia fundamentativa do

sentido da norma (visão do positivismo em geral, da axiologia ‘material’ de valores, do

‘originalismo’).

Assim, uma concepção ‘conservadora’ ou essencialista de valores

constitucionais possui uma ideologia política igualmente conservadora ou elitista por

trás de sua estruturação, haja vista que perde o foco da visão do processo histórico

efetivo que acomete a cultura e, dentro dela, o direito.

Assim, ou a jurisdição constitucional assume a função de democratizar seu

sistema de decisão e de ampliar as técnicas hermenêuticas da concretização da

normatividade constitucional, ou a legitimidade de sua posição política ficará abalada.

A dosagem entre democratização da construção da norma constitucional e as

técnicas e processos hermenêuticos concretizadores desenvolta no âmbito da jurisdição

constitucional é processo dialético-discursivo no qual deve participar toda a sociedade

idealmente ou os grupos da sociedade que possam fazê-lo com eficácia, buscando o bem

comum, entendido este, principalmente, na construção de direitos sociais, ainda mais no

Brasil, onde a fase de implementação do bem-estar social pelo Estado ainda nem se

completou (STRECK, 2006, p.165).

Na verdade, a questão hermenêutica e a questão política se impõem sobre a

legitimidade da jurisdição constitucional. Além do maniqueísmo entre substancialismo

e procedimentalismo, mesmo porque ambas as posições, se aprioristicamente

identificadas com um ‘progressismo construtivo’ ou ‘conservantismo originalista’,

podem ser mutáveis (DWORKIN, 2003, p.449).

Deve existir um compromisso político (e as Cortes Constitucionais assim podem

atuar) com posições hermenêuticas concretas e históricas que percebam a necessidade

de conservar certas estruturas e modificar outras, a bem do interesse público e tendo em

vista o horizonte e o sentido histórico da concretização normativa.

Vontade e responsabilidade política de modificar estruturas de poder dominantes

e espoliadoras, e discussão incessante da estruturação hermenêutica constitucional e de

procedimentos discursivos, participativos e democráticos de estruturação do processo

constitucional, são balizas de atuação e meios de aprimoramento da legitimidade da

jurisdição constitucional.

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