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A liberdade da empresa jornalística Abandona-se: Wilcock, o etrusco Um convite à leitura de Os Sertões Luiz Costa Lima: Tempo profundo Miragem do excesso A farra do cão Sobre o ódio e a tolerância na política Fotografia: André Feltes #14 revista da editora da ufsc novembro 2014

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Subtrópicos revista

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  • A liberdade da empresa jornalstica

    Abandona-se: Wilcock, o etrusco Um convite leitura de Os Sertes Luiz

    Costa Lima: Tempo profundo Miragem

    do excesso A farra do co Sobre o

    dio e a tolerncia na poltica Fotografia: Andr Feltes

    #14revista da editora da ufsc novembro 2014

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    w Ainda este ms, a EdUFSC coeditar com a Boitempo o livro Pilatos e Jesus, de Giorgio Agamben, na traduo de Patri-cia Peterle e Silvana de Gaspari, com superviso de Selvino Assmann.

    w A parceria ser retomada no incio do ano que vem com o lanamento de O Mistrio do Mal, do mesmo autor.

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINAReitora Roselane NeckelVice-Reitora Lcia Helena Martins Pacheco

    EDITORA DA UFSCDiretor Executivo Fbio Lopes da SilvaConselho EditorialFbio Lopes da Silva (Presidente)Ana Lice Brancher

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    Campus Universitrio TrindadeCaixa Postal 47688010-970 Florianpolis/SCFones: (48) 3721-9408, 3721-9605 e 3721-9686Fax: (48) 3721-9680editora@editora.ufsc.brwww.editora.ufsc.brwww.facebook.com/editora.ufsc

    Andria Guerini Cllia Maria de Mello CampigottoFernando Jacques AlthoffIda Mara FreireLuis Alberto GmezJoo Luiz Dornelles BastosMarilda Aparecida de Oliveira Effting

    Editor Dorva RezendePlanejamento grfico Ayrton CruzFoto da capa Ayrton CruzReviso Aline ValimGrfica RochaTiragem 1,5 mil exemplares

    Acesse a verso eletrnica da Subtrpicos no site da Editora da UFSC www.editora.ufsc.br

    lanamentos da

    edUFsC

    notas Universitrias#14revista da editora da ufsc novembro 2014

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    Injustias: a experincia das

    desigualdades no trabalho

    autor: Franois dubet

    As crticas dirigidas s condies e s relaes

    de trabalho se impem como uma fora parti-

    cular porque o trabalho cristaliza um conjunto

    de mecanismos e de relaes sociais particular-

    mente propcias manifestao do sentimento

    de injustia. O trabalho um estatuto, um valor

    de troca, uma atividade criativa, e cada uma

    dessas naturezas remete a um princpio de

    justia, notadamente igualdade, ao mrito e

    autonomia. Desvelar essa arqueologia do traba-

    lho, nas experincias profissionais, o objetivo

    principal desta obra.

    Neuroanatomia: Atlas Descritivo

    do Sistema Nervoso Central

    autores: rosane porto seleme, Hamilton

    emdio duarte e Milton luiz Horn vieira

    Neste livro, alunos dos cursos de graduao nas

    reas da Sade, Cincias Biolgicas e Humanas

    tm acesso a material didtico com imagens

    reais do Sistema Nervoso Central. Os contedos

    foram apresentados em conformidade com a se-

    quncia didtica da sala de aula e com a din-

    mica dos laboratrios de Anatomia Humana, de

    modo a orientar o estudo morfofuncional, que

    serve de base para o raciocnio crtico emprega-

    do na clnica diria.

    Servio Social: questo social

    e direitos humanos vol. II

    autoras: Helenara silveira Fagundes e

    simone sobral sampaio

    Este livro rene questes pertinentes ao Servio

    Social e reas afins, frutos de distintas pesquisas

    desenvolvidas no Programa de Ps-graduao

    em Servio Social/UFSC, com um vis analtico

    crtico para a compreenso da realidade e dos

    desafios contemporneos, no dilogo com todos

    aqueles que se dispem ao conhecimento das

    complexas relaes sociais para transform-las.

    suas licenas teriam que ser separadas e di-vididas entre outros proponentes. A reinvin-dicao dos movimentos sociais que h mui-to defendem a democratizao e regulao do setor de comunicao no Brasil no a de restringir ou controlar o contedo, mas impedir que um determinado grupo exera semelhante controle sobre o volume de in-formao. O paradoxo que exatamente os grandes conglomerados de comunicao ro-tulam de atentado liberdade de expresso qualquer tentativa de propiciar maior diversi-dade ao setor. Prova de que no se trata ape-nas de defender o direito de informar, mas de manter os sustentculos de poder sem qual-quer tipo de controle e sem qualquer limite aos planos de expanso e concentrao.

    Outra verdade censurada pelo editorial do Dirio Catarinense: a regulamentao dos ar-tigos 220 a 224 da Constituio Federal que, alm do combate formao de monoplio e oligoplio, trata da regionalizao do conte-do da programao, da defesa dos direitos humanos e do combate discriminao na co-municao, por exemplo deve ser realizada por uma proposta de emenda constitucional (PEC), o que demanda um longo processo de discusso no Congresso Nacional, e no pode ser feita arbitrariamente pela presidenta Dil-ma Rousseff. Alm de desinformar e manipu-lar a opinio pblica para que defenda os seus interesses comerciais, o editorial do Dirio Catarinense refora o artigo constitucional que no somente carece de regulamentao, mas que, nos pargrafos, seguintes traz uma medida to importante quanto a citada para a liberdade de expresso: As leis federais para regulamentao do setor devem estabelecer os meios legais que garantam pessoa e famlia a possibilidade de se defenderem de programas ou programaes de rdio e televi-so (art. 220, 3.o, inc. II).

    A CENSURA DISSIMULADA

    Essa tentativa do Dirio Catarinense de debater propostas de polticas de comuni-cao e de regulamentao do setor como se de fato fosse um atentado liberdade de expresso e um cerceamento liberda-de de imprensa no uma exclusividade do jornal catarinense. Tal discurso h tempos rotulado nas assembleias da Sociedade Inte-ramericana de Imprensa (SIP) e comumente defendido pelos monoplios miditicos em todo o mundo. Com esse mesmo argumento, eles manipulam a opinio pblica, defendem seu poder econmico e limitam o acesso informao.

    Em 2009, na apresentao da proposta de regulamentao da radiodifuso na vizi-nha Argentina, os jornais Clarn e La Nacin tentaram manipular a opinio pblica ao afir-mar que a aprovao da lei traria riscos in-dependncia da mdia, liberdade de expres-so e atividade jornalstica. A aprovao da lei argentina atravessou um longo perodo de discusso na Suprema Corte, entre liminares, manifestaes populares e debates acerca de sua constitucionalidade, para, finalmente, ser

    sancionada em 2013. Ainda no possvel as-similar o impacto da aprovao na democra-tizao do setor, j que as licenas esto sen-do revistas e as concesses delimitadas. S o Grupo Clarn, maior do setor de comunicao no pas, responsvel por 58,6% da abran-gncia de TV a cabo, 41,8% da abrangncia das rdios e 38,7% dos canais abertos. Com a nova lei, o Grupo Clarn ter que se adequar a 35% de abrangncia na radiodifuso e a 24 licenas. Hoje, s o grupo detm 237 licenas de TV por assinatura.

    Outro caso argentino, o Papel Prensa, diz muito sobre as palavras de ordem em-pregadas por esses grupos miditicos. Desde 1976, os dirios Clarn e La Nacin que esto entre os preferidos pela direita con-servadora argentina controlam a Papel Prensa, empresa argentina que fabrica e fornece papel para 170 jornais argentinos, abastecendo 75% do mercado. Os dois gru-pos detm 71,5% das aes, sendo 49% do Clarn e 22,5% do La Nacin. Durante oito anos, de 2001 a 2009, Alberto Jorge Mitre (La Nacin) e Jorge Carlos Rendo (Clarn) ocuparam os cargos de diretores da Papel Prensa com o claro propsito de controlar a atividade societria. Tambm naquele pe-rodo, junto com outros 16 pequenos dirios, detinham 80% da composio acionria da agncia DyN, criada em 1982. Em troca do alinhamento editorial da agncia, sobretudo nas notcias de poltica e economia, Clarn e La Nacin subsidiavam parte do valor do papel para os 16 dirios acionistas. O dirio Crnica, na poca com tiragem diria de 700 mil exemplares, precisava do fornecimento de 1,5 mil toneladas de papel e passou a receber apenas 300 toneladas. Por no ser acionista do grupo Papel Prensa, o dirio pa-gava 58% a mais pelo insumo, e logo a tira-gem de 700 mil passou para 70 mil.

    Antes de ser um espao de construo da realidade, as grandes corporaes de comu-nicao so grupos econmicos que defen-dem seus interesses polticos e de mercado. So grupos que querem manter seus monop-lios de edio e distribuio, sem restries. E matam-se uns aos outros por esse fim.

    Em 2006, com a compra do jornal A Not-cia, o Grupo RBS protagonizou nova demons-trao do compromisso da empresa jornals-tica com a liberdade de expresso e com o direito informao. A compra do jornal de Joinville no representa apenas o aumento da abrangncia miditica do Grupo RBS, mas a quase total hegemonia das comunicaes no Estado por um nico grupo econmico. O empastelamento do A Notcia, ou a reprodu-o do jornal tal qual o Dirio Catarinense e o Jornal de Santa Catarina, perpetua uma si-tuao em que alguns mseros grupos tm voz enquanto a maioria da populao permanece sem a possibilidade de exercer sua liberdade de expresso no espao pblico.

    Por trs do discurso de garantir a liber-dade de expresso, reside uma prtica de censura dissimulada, exercida graas omis-so do judicirio e em comum acordo com o poder legislativo.

    O editorial do DC lana luz sobre o mesmo artigo da Constituio que os donos da mdia tentam encobrir: Os meios de comunicao social no podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monoplio ou oligoplio (art. 220, 5.o). Ainda mais elu-cidativo o fato de que o DC mostra apreo por uma lei cuja ausncia de regulamenta-o serviu para a Justia Federal extinguir ao proposta pelo Ministrio Pblico con-tra o prprio grupo miditico.

    A ao, de janeiro de 2009, tinha o objetivo de anular a aquisio do jornal A Notcia, reduzir o nmero de emissoras de televiso do Grupo RBS e estabelecer percentuais de programao local de ra-diodifuso televisiva, com a finalidade de produzir e expressar a cultura de Santa Ca-tarina nos termos do artigo 221 da Consti-tuio Federal. Diante da ausncia de regu-lamentao do Captulo V da Carta Magna, conforme argumentao do juiz, a ao do Ministrio Pblico foi julgada improcedente e ento extinta.

    DESINFORMAR E MANIPULAR

    A RBS a mais antiga afiliada ao Grupo Globo e a maior rede regional da televiso brasileira, atuando somente nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Hoje, o Grupo RBS concentra uma cadeia de 18 emis-soras de TV aberta afiliadas Rede Globo, duas emissoras de TV por assinatura local, 24 rdios, oito jornais e tambm opera uma empresa digital e tem participao em uma variedade de outras empresas (editora, im-veis, carros, eventos, emprego, empresa de logstica, fundao empresarial, grfica, em-presa de educao executiva e gravadora). Para que se tenha uma ideia da liberdade de expresso a que estamos submetidos, a RBS-TV, canal de TV aberta do Grupo RBS, repro-duz 85% da grade de programao da Rede Globo e transmite apenas 15% de produo local.

    Em sntese, se a proposta de regulao da mdia no Brasil sasse do papel, o Grupo RBS deixaria de ser uma afiliada da Rede Globo e teria que produzir sua programao regional. Alis, o Grupo RBS, como hoje est consolidado, deixaria de existir como tal, e

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    Liberdade de expresso no para qualquer um e est venda para poucos. Algumas vezes, essa premissa de uma su-posta liberdade volta pauta em doses homeopticas, para manter o espectador alienado e desinformado , e a grande m-dia, com o fim de garantir seus interesses econmicos e polticos, trata de desvirtuar o tema e a ateno do pblico.

    Eis que no dia 30 de outubro foi a vez de o Dirio Catarinense (DC) defender a manuteno de sua prpria ordem. No edi-torial A liberdade de expresso no pode ser constrangida, na edio daquele dia, o jornal do conglomerado de mdia Grupo RBS, afiliado ao Grupo Globo, busca igualar uma eventual proposta de Dilma Rousseff para a regulao econmica da mdia a ameaas liberdade de imprensa e de ex-presso.

    A prola fica por conta da ilustrao do editorial, que reproduz a capa da Cons-tituio de 1988 e faz referncia ao artigo 220 da Carta Magna: A manifestao do pensamento, a criao, a expresso e a informao, sob qualquer forma, proces-so ou veculo, no sofrero qualquer res-trio, observado o disposto nesta Cons-tituio. 2.o vedada toda e qualquer censura de natureza poltica, ideolgica e artstica.

    os grandes conglomerados de comunicao rotulam de atentado liberdade de expresso qualquer tentativa de propiciar maior diversidade no setor

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    a liberdade da empresa jornalstica

  • continuao, porque estou cansado desse lugar e quero ir para outro. Alis, bom lembrarmos que Wilcock traduziu os Poems in English, de Beckett, em 1964, para a edi-tora Einaudi. No prefcio de sua traduo, Wilcock confronta a otimista negao do sculo 20 em favor da pessimista afirmao do sculo 19, afirmando que, no caso de Be-ckett: A negao mais bvia nos primei-ros romances de Beckett, vcuos, ilegveis: o autor est decidido a no comunicar, no entanto insiste tenazmente, talvez no com total honestidade, na tentativa de comuni-car essa sua vontade de no comunicar (os escritores modernos tendem a viver na in-fncia, e as crianas no so honestas). A tarefa era difcil e requeria uma nova arte, instrumentos novos, os instrumentos que Beckett ir elaborar nas suas comdias. Numa entrevista, Wilcock diz ser poeta per-tencente cultura europeia, e, como escri-tor europeu, ele afirma: Escolhi o italiano para me exprimir porque a lngua que mais se assemelha ao latim (talvez o espa-nhol seja mais semelhante, mas o pblico de lngua espanhola apenas o espectro de um fantasma). H um tempo toda a Europa falava latim, hoje fala dialetos do latim. Mais adiante, refere-se a Beckett: como se a um jogador de xadrez lhe dissessem: aqui se joga ao nosso modo, com um nico cavalo e sem torres. Beckett talvez no se d conta, mas escreve quase em latim; o seu poema Sans, de 1970, volta no tempo, parece sumeriano, alis, pictogrfico. Em ltima anlise, a lngua que Wilcock adota, o italiano, , portanto, uma lngua anacr-nica, ou, ainda, um vestgio sobre a pe-dra de uma gruta, um abandono em que o prprio corpo se insere (um sintoma, nesse

    DAVI PESSOA CARNEIRO

    Em 1961, o argentino Juan Rodolfo Wil-cock (1919-1978) publicou Luoghi comuni (Il Saggiatore), sua primeira seleo de poe-mas publicados na Itlia (ele se transferiu definitivamente para Roma em 1955, cida-de em que viveu at seu falecimento). Na apresentao ao livro, ele escreve: Diante de uma lngua corroda e depravada pelo lugar-co-mum, no s pelo mau costume inextirpvel ironicamente chamado de o belo escrever, o escritor jovem sente, antes de tudo, a necessidade de criar uma nova linguagem. Com o instrumento desgastado que um dado ambiente literrio lhe oferece, ele no pode seno repetir, por causa da pouca idade, aquilo que h pouco foi dito, e com as mes-mas palavras; comportamentos obviamente suprfluos. Mas, uma vez destruda a rede convencional da linguagem fossilizada, re-duzidos os elementos do lugar-comum aos termos singulares do vocabulrio lavados e esclarecidos pela anlise, o jovem poeta capaz de reorden-los com a sua arte e no com a arte alheia; s ento ir se sen-tir seguro. Sem a reconquista sistemtica do dicionrio, provvel, ao invs, que o leitor nunca se torne livre proprietrio da lngua, mas sim condmino, juntamente com os mais desprovidos entre os seus companhei-ros, de uma mera gria. Importante des-tacar aqui que Wilcock traduziu para o ita-liano o Dictionnaire des ides reues (1913), de Flaubert, escritor por quem nutria uma profunda admirao: Como poeta em pro-sa, descendo por vias no complicadas de Flaubert, que gerou Joyce e Kafka, os quais nos geraram (tudo isso para ser entendido alegoricamente...).

    Portanto, Wilcock, em sua apresen-tao, manifesta um procedimento muito caro, por exemplo, a Samuel Beckett: es-quivar-se diante da possibilidade de dizer bem (o belo escrever), de fazer coincidir o dizer com o dito. Ento, o que resta a suspenso para dizer novamente, mas ago-ra com sentidos transladados. Em Molloy, de Beckett, lemos: No deixei cair, no, mas com um empurro convulsivo das duas mos mandei tudo se espatifar no cho, ou contra a parede, to longe de mim quanto minhas foras permitiam. No vou dizer a

    caso, a publicao, em 1973, pela editora Rizzoli, do livro Il tempio etrusco).

    Ou seja, em vez do lugar-comum da co-municao, o desejo de no comunicar o prprio desastre (o fracasso como xito) da linguagem, no poema, dado que neste surge outra linguagem na linguagem. O poema se produz na linguagem e se refere, ao mesmo tempo, linguagem, porm a linguagem do poema produz um corte no referente, e justamente nessa fenda que se l o poema. Assim, o poema realiza desvios capazes de deslocar aquilo que permanecia estvel, e Wilcock parecia estar atento a tal procedi-mento ambivalente. A ambivalncia produz um corte no qual a leitura do poema con-torna uma espcie de vazio, criando o lugar da diferena, ou seja, do outro. Wilcock, em sua apresentao traduo da poesia de Beckett, ainda ressalta: Beckett ama usar palavras com muitos significados, como, por exemplo, quando escreve and no host: o vocbulo host tambm significa multido, exrcito, hspede, hoste, vtima, or-ganismo habitado por um parasita. O po-ema, portanto, ausncia e excesso de linguagem na linguagem, ou esse balbucio produzido por palavras inaudveis que mar-cam sua diferena entre as prprias palavras da linguagem. Wilcock, assim como Beckett, experimentou tal radicalidade, sabendo que o abandono de qualquer lngua um reen-contro com essa mesma lngua, que se volta e se interroga a si mesma, agora, contami-nada por outras. Wilcock sabia que viver, na linguagem, percorrer o mundo, uma mi-ragem, enfim, uma passagem. Abandona-se.

    Viver percorrer o mundoatravessando pontes de fumaa;quando se chega ao outro ladoo que importa se as pontes desabam.Para chegar em qualquer lugar preciso encontrar uma passagem,e no importa se ao descer da carruagemse descobre que esta era uma miragem.

    (traduo Davi Pessoa)

    abandona-se: Wilcock, o etruscoPoeta, escritor e tradutor argentino radicado em roma desde 1955 at sua morte, em 1978, Juan rodolfo Wilcok escolheu o italiano para se exprimir porque buscava a radicalidade do abandono de qualquer lngua

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    DEMTRIO PANAROTTO

    Quem volta da regio assustadoraDe onde eu venho, revendo inda na menteMuitas cenas do drama comoventeDa Guerra despiedada e aterradora(Pgina vazia Euclides da Cunha)

    Euclides da Cunha foi um homem dos li-vros, e o resultado disso, no para menos, est presente em seus textos. Neles pode-mos perceber pitadas das qualidades (enge-nheiro, militar, fsico, naturalista, jornalista, gelogo, gegrafo, botnico, zologo, hidr-grafo, historiador, socilogo, professor, fil-sofo, poeta, romancista, ensasta e escritor brasileiro) a Euclides atribudas em qualquer pesquisa bsica na internet. Mas, talvez, a principal dessas qualidades, que nem sempre lembrada e em que pretendo me deter um pouco mais, tenha sido perceber que toda a DE

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    sua bagagem de leitura e de conhecimento sofre um choque profundo na aventura como escritor convidado pelo jornal O Estado de S.Paulo, em 1897, para cobrir a 4.a expedio do Exrcito brasileiro contra Canudos: a sua biblioteca e, com ela, as suas convices desmorona com aquilo de que os livros no davam conta.

    O contedo de sua biblioteca lhe forne-cia apenas uma parte da construo e da re-lao entre o serto e o sertanejo. O serto do dia a dia era outra coisa. E a partir do entendimento de que as imagens do serto e do sertanejo precisavam ser reconsideradas que Euclides escreve sua obra mais emble-mtica, Os Sertes (lanado em 1902, cinco ano aps o trmino da guerra).

    O livro escrito por meio de um jogo de antteses em que as afirmaes montadas no conforto de seu lar abrem espao para um outro sentido, obtido a partir de sua aven-tura in loco.

    Desse modo, rapidamente, as trs gran-des partes nas quais o livro se divide criam dualidades; se o serto o local em que a rudeza dita as regras, tambm o paraso, isto , no perodo de seca desrtico, ig-noto, rido, mas, quando chega o perodo de chuva, o serto se transforma, ganha vida. O sertanejo, por sua vez, um refle-xo e um amlgama do serto, rude como a terra; educado pela pedra, como diria Joo Cabral de Melo Neto. Assim, se, por um lado, o sertanejo no se enquadra na construo imagtica de uma cultura europeizada e co-lonizadora, ante a proposta evolucionista do sculo 19, e parece franzino e torto para os padres que a alimentam, por outro lado, ele , tambm, antes de tudo um forte, um Hrcules-quasimodo, em nada menor do que aquilo que preconiza o discurso evolu-

    cionista, apenas no se encaixa ao caixo de referncias por ele montado. A luta, terceira parte, em tom romanceado, nada mais do que a denncia de um crime.

    Mesmo que os sertanejos de Canudos que, para a loucura miditica da poca, se opunham Repblica tenham sido exter-minados em uma chacina sem precedentes, no se conseguiu com esse ato acabar com as diferenas que assolavam o Brasil da poca; elas continuam latentes e reaparecem com frequncia em vrios momentos de nossa his-tria. Na ltima eleio, por exemplo, parece que o mesmo discurso, outrora contra Canu-dos, ditava o tom e clamava por uma outra marcha. A grande mdia, aliada das foras conservadoras, alinhada a um discurso que remonta ao pensamento evolucionista do fi-nal do sculo 19, formatou uma ideia sobre o Brasil (de hoje), e quem no se encaixava na proposta era meramente excludo. A ex-cluso vinha, ainda, recheada de adjetivos. Ainda estamos colhendo os frutos desse certo descompasso contemporneo, e onde isso vai dar, ainda no temos bem certeza. A Guerra de Canudos, por sua vez, podemos resumi-la em dois versos (assim sinalizados por Augus-to de Campos no texto TRANSERTES), que abrem e fecham o livro de Euclides: O pla-nalto central do Brasil desce... ... as linha essenciais do crime e da loucura.

    O exemplo deixado pelo escritor de Os Sertes parece nos ajudar a ler a questo que se apresenta mais prxima. necess-rio, diante dos discursos fervorosos de de-fesa de uma ptria chamada Brasil, fazer como Euclides, se deslocar para no apenas corroborar o pensamento que alimenta o nosso conforto; necessrio se deslocar at o ponto de vista em que o outro se encontra para entender por que motivo o pensamento dele to diferente e, em alguns momentos, distante do nosso. Pois acredito que pensar o Brasil, um pas continental, e reduzir a dis-cusso a recortes to pequenos, como o do prprio quintal (em grande parte de amiza-des em pequenas redes sociais), parece ser um problema que j deveria ter sido supera-do no final do sculo 19.

    A internet deveria servir como ferra-menta para desarmar os (pr)conceitos, em parte reforados pela grande mdia, e no como um bunker, para aliment-los. No en-tanto o discurso corrente, em grande medi-da, parece reforar o da excluso: ou o outro concorda com aquilo que tenho para dizer, ou simplesmente o excluo das minhas redes de relaes. Sim, no aconchego do lar, onde se encontram os computadores, laptops, ou mesmo nos celulares que nos mantm co-nectados com o mundo virtual, somos me-ramente uma continuidade e extenso dos nossos pensamentos, que depois colocamos em prtica nas ruas. E o que eles nos reve-lam, diariamente, que o uso das ferramen-tas contemporneas, mais modernas, apenas serve para aposentar uma outra, que se tor-nou obsoleta, e que o modo de pensar das pessoas, claro, de uma parte delas, continua na mesma toada, e isso no de hoje.

    euclides da Cunha ensina no grande livro sobre o Brasil que necessrio se deslocar at o ponto de vista em que o outro se encontra para entender por que motivo o pensamento dele to diferente e, em alguns momentos, distante do nosso

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  • um imaginrio rebelde no feita de maneira frontal caso em que simplesmente censu-rada (isto , proibida de circular) , o poder estabelece limites para sua circulao. Como esses limites funcionam? Por meio de funcio-nrios que, no Renascimento, eram chamados de poetlogos e que, desde o sculo 18, so os crticos e, a partir do sculo 19, os profes-sores de literatura. Sua funo no era de interditar a circulao das obras controladas, porm mostr-las menos interessantes, isto , de qualidade artstica inferior (Trs volumes foram escritos a respeito. Eles se encontram hoje reunidos na Trilogia do controle, 2007). Como so centenas de pginas disposio do interessado, limito-me a dizer que: (a) procuro exemplos na prpria literatura europeia por-que os crticos europeus costumam no os ver; (b) minha bibliografia bsica era o que via suceder na vida brasileira a partir do golpe de 1964. Dou apenas um exemplo: A Idade Mdia considerava suspeitoso o autor que se preocu-pava com coisas pouco teis. Por qu? Porque era algum que no aceitava a viso fechada que encontrava em Deus a chave de tudo. Se esse algum se interessava por questo que no se indagava era ou porque no acreditava que Deus as tinha resolvido, ou porque no cumpria o mandamento divino que as consi-derava fora do interesse humano. As obras de tais autores no eram controladas, mesmo porque eram os autores tratados como her-ticos e, portanto, dignos de fogueira. O ponto dois menos drstico e mais tcnico: desde a Antiguidade, e mais drasticamente a partir da expanso do cartesianismo, considera-se que a linguagem tem um ponto timo e um ponto dbil. O ponto timo alcanado quando ela formula um conceito. Historicamente, esse conceito variar de formato: ser de cunho metafsico, isto , capaz de declarar o que alm do que possui forma sensvel; de cunho teolgico, nos sculos medievais; de cunho cientfico, a partir do sculo 17, mais propria-mente do 18. Se o conceito tem a qualidade de definir algo, como a definio pode ser cor-reta ou incorreta, apresenta o problema de servir de base para todo dogmatismo. Assim, por exemplo, se difunde durante os muitos sculos medievais que o melanclico, porque duvida e hesita, porque no se confunde com um Maria-vai-com-as-outras, definido como dominado por um morbus, o morbus me-lancholicus (estou dando um exemplo sobre o qual ainda no escrevi). Pois bem, trata--se de mostrar que a hierarquia que hoje se pratica diariamente, onde o cientfico ocupa o lugar de excelncia sobretudo se j tiver aplicaes tcnico-lucrativas ao passo que o no cientfico (expresso pelas figuras da lin-guagem, resumveis na metfora) vale como divertimento ou algo em suma secundrio, uma hierarquia idiota, vlida apenas para efeitos mercantis, e no propriamente inte-lectuais. Da a tese que comeava a apontar no Mmesis: desafio ao pensamento. A mme-sis entendida como um desafio ao pensa-mento porquanto este se considera, segundo a expresso popular, o rei da cocada preta, ou seja, no percebe o quanto a sua constru-

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    o contm uma base metafrica, sendo que a metfora tem uma construo semelhante da mmesis. Mas, como sempre sucede com meus livros, o Mmesis: desafio apresenta o problema e no o desenvolve. Esse desenvol-vimento ainda espera que meu livro mais re-cente interesse a um editor.

    Subtrpicos | Qual o lugar de Machado de Assis hoje na cultura letrada, na cultura in-telectual brasileira?Costa Lima | curioso. H menos de um s-culo atrs, no comeo do modernismo, se ns verificarmos como que os modernistas viam Machado, a gente se espanta com o silncio deles a respeito do autor, como se eles no tivessem coragem de ser contra ele. Voc no encontra um texto de Oswald, um texto de Mrio ou um texto daqueles que exerciam a liderana do modernismo e que escreviam ensaios. No se encontra um texto sobre Ma-chado. As primeiras coisas sobre Machado vo ser feitas no comeo do sculo 20. H um autor gacho, Alcides Maia, que escreve alguma coisa interessante sobre Machado, e Augusto Meyer, nos anos 1930, quando, por efeito de alguma comemorao referente a Machado, se publica muito sobre ele. Eu di-ria que ali comea a valorizao efetiva de Machado, que at ento era tomado simples-mente como o fundador da triste Academia Brasileira de Letras. Atualmente, Machado cai na boca das pessoas, daqueles que se cre-em escritores. correto que h um Machado mais conhecido do que aquele que levantava dvidas nos modernistas no seu comeo, mas, ao mesmo tempo, eu verifico como Machado continua desconhecido. Exemplo muito sim-ples, h um texto dele que todo mundo co-nhecer, o Instinto de Nacionalidade. Nele, Machado se ope terminantemente ideia de pensar literatura em termos de naciona-lidade. Ora, at hoje isso uma espcie de chavo, quando no se percebe que literatura alguma pertence a uma histria nacional. Se, ento, o Instinto de Nacionalidade fosse de fato entendido, no se continuaria a repetir essa besteira. Ou teramos que contest-lo. Ao no o fazer nem isso nem aquilo, mostra-mos simplesmente que continuamos a desco-nhecer Machado.

    Subtrpicos | Dos seus textos crticos de poesia podemos derivar que existe uma espcie de eixo determinante que oscila entre Drummond e Cabral e que mobili-zado no sentido de repensar a persistncia do tom memorialista, do apego memria, o carter documental da intelectualidade que se desenvolve no Brasil. O que erradia disso para a tematizao da cultura intelec-tual brasileira?Costa Lima | Pergunta excelente, porque, tomando Drummond e Cabral como dois po-los de um eixo de concentrao, se verifica o seguinte: h um primeiro Drummond que o prprio Cabral diz que foi seu mestre. Esse primeiro Drummond um Drummond desa-taviado, de poema praticamente em prosa. No em forma de prosa, mas em linguagem

    de prosa. Esse Drummond vai progressiva-mente se tornando meldico, se tornando maior poeta, mas se aproximando de uma tradio memorialista. quando eu digo isso, no estou diminuindo esse Drummond. O Drummond de Retratos de famlia um gran-dessssimo Drummond, mas a tradio me-morialista vai em direo contrria quali-dade do poeta, porque essa tradio torna a poesia prxima da histria. Guimares utiliza a separao entre histria e estria, quando ele diz que a estria, isto , o texto ficcional, deve ser contra a histria. O autor memoria-lista um autor que estabelece uma unio entre histria e estria, da minha reao contra a poesia historicizada, ainda que no seja, necessariamente, contra o poema que usa a memria. Em troca, o poema orienta-do pela memria reintegra, retoma, refaz o passado para o presente, como se a memria fosse uma coisa una. Por isso, em suma, na oposio entre Cabral e Drummond, prefiro o primeiro, porque nunca desliza para o po-ema memorialstico. Entenda-se: essa restri-o no diz respeito a Retratos de famlia, um momento glorioso de Drummond, mas sobretudo a seus ltimos livros.

    Subtrpicos | Como voc avalia o mercado editorial hoje e o papel das editoras uni-versitrias?Costa Lima | Eu gostaria que os diretores das editoras universitrias tivessem a cons-cincia que encontramos em Santa Catarina. Isso no nenhum elogio interessado. Basta ver o exemplo dos Estados Unidos. Sem as editoras universitrias americanas, a pro-duo editorial americana seria mesquinha. As editoras universitrias norte-americanas do uma fora de diversificao que no en-contramos nem na Frana, nem na Alema-nha. Vindo ao nosso caso, caso as editoras universitrias no cresam, ante a voracida-de capitalista e como em um pas capi-talista a voracidade lucrativa no cresceria? e nosso ralo pblico letrado, a tendncia seria de cada vez mais nos afastarmos da produo intelectual de qualidade desenvol-vida no Primeiro Mundo.

    Subtrpicos | Luiz, como voc avalia o atual momento de sua trajetria intelectual?Costa Lima | Bom, autoavaliao sempre algo bastante perigoso, porque raramente acertada. Feita a ressalva, eu diria de um ponto de vista estritamente pessoal que o momento em que as reedies aparecem ao lado de obras novas estimulante, porque d a sensao de que, afinal de contas, eu tenho uma carreira a ser mostrada. Porm, o que mais interessa o ponto de vista social. A, eu diria, o importante decorre de que, neste ins-tante, as duas pontas de minha trajetria se sincronizam, mostrando o que permaneceu e o que mudou. Essa sincronicidade torna--se, ademais, interessante pelo seu carter raro, pois o comum, entre ns, que livros de alguma seriedade no passem da primeira edio. por isso um privilgio que tenham aparecido editores interessados em relanar o que, de outra maneira, ficaria reduzido a latir no Lattes ou na memria de quem o fez. Agradeo especialmente, ento, a Universi-dade Federal de Santa Catarina pela possibi-lidade de me conceder a sensao de alguma profundidade temporal. [A EdUFSC acaba de relanar Mmesis: desafio ao pensamento e prepara a edio dos dois volumes de Disper-sa demanda.]

    Subtrpicos | Como seria possvel explo-rar essa profundidade temporal, isto , o que encadeia os ltimos projetos que voc realizou os livros Histria. Fico. Lite-ratura (2006), O controle do imaginrio e a afirmao do romance (2011), A fico e o poema (2012) e o Frestas (2013) e essas reedies que retomam os seus tra-balhos do final dos anos 1970 e da dcada de 1980?Costa Lima | Desde logo, me repugna que, ao comear a escrever, tomava a mmesis como todo mundo, isto , algo imprestvel, pois confundido com a semelhana a um mo-delo j estabelecido. No saberia explicar como, a partir de 1980, sem que tivesse um interlocutor que me estimulasse ao contr-

    rio, comecei a postular o contrrio. O autor que mais lia ento, Lvi-Strauss, ou artigos e obras sobre ele, no tratava da questo. Se Lvi-Strauss exerceu alguma influncia, foi por mostrar que a elaborao dos mitos ou as pinturas corporais no tinham nada a ver com a reproduo, ainda que estilizada, de dados perceptuais, seno com a atuao de um sim-bolismo que operava por um inconsciente ciberntico, isto , extremamente lgico, a funcionar semelhana do binarismo fonol-gico. Na verdade, no sei efetivamente dizer como foi que eu escapei do crculo da mmesis como imitao; o fato que, em 1980, quando eu escrevi Mmesis e modernidade, aquilo j me incomodava. Essa a primeira razo por que que o tpico mmesis to importante para mim. quando, pois, comeava a reava-liao da mmesis, eu me afastava do seu en-tendimento usual entre os autores europeus ou norte-americanos, que eram aqueles que eu lia mais frequentemente. Mas, repito, isso esclarece apenas uma parte do enigma, pois no estou certo se foi por influncia, ainda que indireta, de Lvi-Strauss que me afastei de uma tradio que se imps no Ocidente, desde o incio dos tempos modernos. No pretendo, com isso, insinuar que essa reava-liao me indispusesse com a permanncia dos autores que continuava a ler, ou seja, com a tradio do Primeiro Mundo ocidental. Parece-me ainda importante acrescentar um dado: ao repensar a questo da mmesis, eu no tinha uma teoria da mmesis na cabea! No a tinha e nunca a tive. Por isso, a partir do livro de 1980 e, sobretudo, no Mmesis, de-safio ao pensamento (1986), agora relanado pela Editora da Universidade de Santa Catari-na, a questo voltava a se apresentar, porque, digamos, eu tomava conscincia de mais um aspecto seu. No deixo de lamentar que as-sim tenha sucedido. Para emend-lo, teria de compor um pequeno livro s sobre a mme-sis, a partir do desenvolvimento do que vim a chamar de mmesis zero, at a presena do fenmeno da mmesis fora da fico verbal--pictrica. Por que, ento, no o fao? Porque temo que no teria nada de novo a dizer alm do que, parceladamente, foi aparecendo nos livros seguintes. Do ponto de vista do que eu passei a publicar j neste sculo, a comear por Histria. Fico. Literatura, duas pontas principais se fixavam: a mmesis como produ-o de diferena, a partir de uma base de se-melhana (combinao do que a Potica aris-totlica apresentava, respectivamente, como necessidade e verossimilhana) e a questo das diferenas das formas discursivas. Entre as duas pontas, fixava-se um terceiro ponto: a questo do controle do imaginrio. Explico rapidamente os pontos trs e dois. Por con-trole do imaginrio, entendo: mesmo porque a mmesis no reproduo do perceptvel, ela condensa em imagens verbais e pictricas o imaginrio que est na cabea do criador, o qual, por sua vez, se relaciona com o imagi-nrio do grupo social classe ou estamento por ele frequentado. Ora, esse imaginrio exprime propsitos contrrios aos do grupo ou classe no poder. quando aquela expresso de

    tempo profundo

    a hierarquia que hoje se pratica diariamente, onde o cientfico ocupa o lugar de excelncia sobretudo se j tiver aplicaes tcnico-lucrativas , ao passo que o no cientfico (expresso pelas figuras da linguagem, resumveis na metfora) vale como divertimento ou algo em suma secundrio, uma hierarquia idiota, vlida apenas para efeitos mercantis, e no propriamente intelectuais.

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    ALINE MAGALHES PINTO

    O crtico e terico da Literatura Luiz Costa Lima um autor em plena atividade que, ao mesmo

    tempo, v reeditadas suas primeiras

    publicaes, algumas das quais pela

    EdUFSC. Mantendo como eixo central

    a questo da literatura e a teorizao

    da ficcionalidade, suas reflexes

    abrangem as diferentes conformaes

    discursivas da cultura ocidental.

    Enfatizando que o exerccio da crtica

    a que se dedica desde a dcada

    de 1970 no menos filosfico do

    que histrico, Costa Lima afirma, ao

    longo de sua trajetria, um tratamento

    do objeto literrio que se recusa a

    submergi-lo na abstrao de sua

    historicidade e, tampouco, recorre

    hipostasia da dimenso scio-histrica

    para reconhec-lo como dotado de

    sentido. A crtica caminha sempre ao

    lado da teoria, e, somente juntas, as

    duas tornam-se capazes de tocar o

    trao expansivo-reflexivo que prprio

    do fenmeno literrio. esse trao que

    permite literatura ser uma instncia

    pensante da cultura, como Costa Lima

    avalia na entrevista a seguir.

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    miragem do excessoJavier di Benedictis, em exposio na Fundao Badesc, trabalha com vdeos e fotogramas cujas imagens so alteradas e profanadas num artifcio que perturba a realidade

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    lhado e que, via de regra, se transforma em macabra escravido.

    H quem queira chamar isso de amor, mas claro que no esse, em absoluto, o caso. O que se faz com o animal justa-mente o contrrio do amor, cuja condio o reconhecimento da espessura irredut-vel da alteridade. Ora, nada mais negado do que a outridade dos animais domsticos contemporneos. A entrega do co ou gato a sua devoo fantica ao dono um puro efeito de sua total falta de alternati-vas: o que mais lhe resta se j no pode contar com seus instintos, se o seu mundo foi reduzido ao tamanho de uma caixa de sapatos, se, dia aps dia, foi condicionado a reconhecer no seu dono tudo o que h? No limite, j nem se pode mais falar que esta-mos diante de um animal. Trata-se, antes, de um puro objeto, infinitamente plstico, manipulvel um autmato cuja existncia praticamente se resume a oferecer rplicas perfeitas a seu dono. E a sofrer terrivel-mente nas suas ausncias.

    S falta falar..., repetem, com regu-laridade exasperante, os donos de animais a respeito de suas propriedades, como se o salto para a linguagem (refiro-me aqui, bem entendido, no linguagem das comu-nicaes funcionais, mas da poesia, dos jogos de palavra, da elaborao filosfica

    FBIO LOPES DA SILVA

    Na porta de um minimercado nas pro-ximidades de minha casa, um cozinho de raa preso a uma coleira late e chora desesperadamente enquanto a dona, uma senhora de meia-idade, faz compras. Em sua aparente banalidade, a cena, presumo, expresso de uma das tendncias mais dramticas das sociedades contempor-neas. Explico.

    A angstia daquele animal certamente resulta do modo como ces e gatos doms-ticos vm sendo tratados. Um rgido regi-me de confinamento afasta-os de todas as exigncias instintuais: nada de sexo, nada de caa, nada de vida em bandos. Esse iso-lamento apavorante bem recompensado: o bicho que o suporta cercado de cari-nhos e cuidados extremos. Ou nem to bem recompensado assim: toda essa orgia de beijos, afagos e palavras docemente pro-nunciadas escandida por abandonos pe-ridicos, que desnorteiam completamente o animal. A pobre criatura j no depende apenas materialmente de seu dono ou man-tm com ele relaes usuais de fidelidade. O que esse behaviorismo espontneo mas nada inocente instala , a rigor, uma ra-dical dependncia afetiva, algo para que o co ou gato no est minimamente apare-

    ou da conversa jogada fora por mera frui-o) fosse, para repetir Nietzsche, o passo de uma pomba. Nesse tipo de declarao cada vez mais frequente , escamoteia--se o verdadeiro sentido do tratamento dispensado aos animais: no, como poderia parecer, uma tentativa de equipar-los aos humanos, mas algo muito diverso disso a incapacidade de lidar com o que, em ns mesmos, o especificamente humano.

    Antes que me refutem: esse especifi-camente humano no so os sentimentos e afetos, que muitos animais obviamente manifestam. No tenho em mente nem mesmo (ao menos no principalmente) a racionalidade, uma vez que cada vez mais possvel admitir que diferentes formas de inteligncia prevalecem entre outras esp-cies, inclusive as vegetais. O propriamente humano, para mim, est em outro lugar: na angstia existencial que s os humanos pa-recem capazes de sentir e suportar; nessa dor de existir que cada um de ns carrega e que, mais do que qualquer outro trao, identifica-nos aos nossos semelhantes.

    Cada ser humano para outro ser huma-no um lembrete, um espelho, de sua prpria angstia. isso que amedronta no outro: no exatamente o que ele , mas o que nele descubro ser. A relao contempornea com os animais esse laboratrio em que se tenta destilar um amor perfeito, livre, jus-tamente, de toda angstia existencial o esforo de se livrar desse outro-espelho. A criao de um mundo ps-humano, para alm do humano, isento da dor de ser huma-no: eis o que se deseja. No entanto, tudo o que at agora se conseguiu criar foi o menos do que o animal.

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    ROSNGELA CHEREM

    Os trabalhos de Javier Di Benedictis demandam imaginao e memria, devol-vendo s imagens sua condio de mistrio e distncia. Em Metamrficas, exposio que fica de 27 de novembro a 16 de janeiro, na Fundao Badesc, em Florianpolis, sua obra dada a ver em dois ambientes: num deles, comparecem os vdeos produzidos por Di Benedictis; no outro, destacam-se alguns de seus fotogramas, organizados em quadros de distintos formatos. Os fo-togramas so pequenas unidades flmicas que, aps serem impressos, sofrem uma srie de intervenes plsticas, para em seguida serem digitalizados e recompostos em novas sequncias de vdeo.

    Em termos de fatura, trata-se de pro-jees cujos vdeos remetem fotografia analgica (onde a luz das imagens captu-radas e congeladas no cobre nem desco-bre, apenas vela), enquanto os fotogramas remetem pintura, por meio de um pro-cesso de interveno manual. O gesto de Di Benedictis potencializado pelo uso de pigmentos e solventes que do fosfo-rescncia aos tons de verde, rosa, amare-lo etc. Recusando aquilo que se poderia chamar de cromofobia, sensibilidade que se ampara na brancura e no assptico, o

    Sucessivo simultneoartista reivindica a atualidade multicolo-rida dos nons e das tonalidades digitais, autonomizando, porm, a cor em relao s formas.

    Assim, os ambientes permitem con-siderar algo que foi extraviado e, em se-guida, alterado e profanado, sobrevivendo atravs de algum tipo de metamorfose. Instala-se um artifcio que perturba a rea-lidade atravs de uma espcie de pestane-jar, causando um tipo de ofuscamento ou miragem produzida pelo excesso colorante que faz resplandecer a superfcie numa gloriosa dana de luzes.

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    pudesse existir uma poltica do bem. O comportamento equivale a clamar por justia social numa reunio de banquei-ros. A reduo da poltica ao ritual da disputa eleitoral cada dia mais previs-vel levou o Tribunal Federal Eleitoral proibio da crtica ao adversrio como forma legitima de toda atividade poltica. Nesse contexto, tanto o bem comportado comentarista da TV quanto setores das classes subalternas, sentindo-se despro-tegidos ou vulnerveis, bradam pelo

    princpio da tolerncia, que, segundo a ideologia dominante, deveria reger toda atividade entre os civilizados.

    H certo invlucro moral no apelo ao amor e ao respeito como regra da pol-tica, mas a vitalidade do artifcio deve--se sobretudo operao ideolgica pela qual seria possvel evitar a violncia e o dio numa sociedade organizada a partir do dio e da violncia. No se trata de determinao atvica, mas de um ins-trumento sem o qual a poltica moderna no funcionaria. Em termos vulgares, h certa reivindicao de trato cordial na arena cuja regra fundamental o conflito de interesses, particularmente acentuado nas sociedades dependentes e subdesen-volvidas, que contaram, na esteira da ex-panso do capital comercial europeu do sculo 16, com a necessria violncia e racismo em sua formao, marca indel-vel de nossa evoluo histrica e de nosso presente incerto.

    Nas condies particulares da socie-dade brasileira, preciso reconhecer que, a partir do evanescimento da identidade classista dos sindicatos combativos e dos partidos polticos de esquerda PT e CUT na cabea , as classes subalternas ficaram no somente desarmadas para

    sobre o dio e a tolerncia na polticanas condies brasileiras, o mais provvel que o rechao abstrato ao dio e/ou a evocao igualmente abstrata tolerncia naveguem sem obstculos, ideologia necessria para que tudomude desde que permanea exatamente igual

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    A violncia uma caracterstica cons-titutiva do Estado e, em consequncia, tambm da poltica moderna. No mundo moderno, simplesmente no existe pol-tica sem violncia, razo pela qual tam-pouco existe poltica sem dio. No entan-to, na eleio presidencial brasileira, os dois principais partidos denunciavam a poltica de dio do adversrio, numa ten-tativa de legitimao, como se, de fato,

    Militantes tucanos e petistas entram em confronto nas proximidades do Teatro Municipal do Rio de Janeiro trs dias antes do segundo turno das eleies deste ano

    Policiamento reforado pelo Exrcito no primeiro turno das eleies de 2014 no Complexo da Mar, no Rio de Janeiro

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    LOBOenfrentar o conflito inerente sociedade

    burguesa, mas, sobretudo, permaneceram cativas do discurso liberal especialmen-te forte nos setores da classe mdia , para o qual no possuem outro recurso seno o apelo retrico tolerncia e ao fim do dio, ignorando o carter utpico do discurso. Contudo, no lado da classe dominante, so setores da classe mdia que exibem sem constrangimento, com suas mos delicadas, o dio de classe con-tra os pobres, contra os proletrios, con-tra os camponeses e contra tudo que lhes parece fora da normalidade burguesa ou da sociedade tradicional. Mais grave: no contexto atual, parece que os proletrios e os camponeses j no existem, pois o governo com silncio cmplice dos tu-canos insiste no carter classe mdia da sociedade brasileira, como se Marx no fosse mais do que um retrato na parede, uma reminiscncia histrica talvez lcida, valente e apropriada para os sculos 18 ou 19 europeus, mas completamente sem sentido na atualidade.

    Trata-se da banalizao da poltica como expresso do conflito, para a qual contribuem no somente a renncia pre-coce do PT e da CUT identidade de clas-se levando consigo os comunistas e so-cialistas da base aliada , mas tambm a reduo da poltica moral (vulgarmente tratada como se fosse simples udeniza-o do discurso poltico), cuja bandeira mais importante seria o combate cor-rupo. Nesses termos, a tematizao da corrupo chegou para ficar porque diz respeito real degradao dos partidos e, portanto, do governo. Mas chegou para ficar tambm porque a corrupo cons-titutiva do Estado e, em consequncia, impossvel ocultar seu carter sistmico. Ora, a astcia do monoplio televisivo clara, pois apresenta a estrutura como se fosse apenas evento! O dio corrupo, no entanto, quase residual em relao aos empresrios, pois se destina priorita-riamente ao genrico poltico. Trata-se, sem dvida, de ardil liberal para no en-frentar o vaticnio de um barbudo suspen-so em alguma parede: o Estado mesmo o comit de negcios da burguesia. O po-ltico vulgar, o ex-sindicalista, o empres-rio exitoso, o liberal bem comportado, o acadmico no conforto do campus e tan-tos outros podem merecer o desprezo e ainda o dio da classe mdia: esse luxo da poltica no poder, de maneira alguma, servir seno como libi para a prxima operao de assalto ao Estado, no qual o capital tambm acumula.

    No fcil ranger os dentes no terreno da poltica, reconheo. Mas no haver outra sada para ns. Em termos sociais, ser lenta a reconstruo de um sentido e sentimento classista, a afirmao de uma identidade de classe, aquela mesma que era apresentada como ultrapassada pelo pensamento conser-vador e reacionrio, o que iludiu muita gen-te boa. No entanto, a presso que se exercia

    socialmente nos sindicatos combativos, na defesa partidria do socialismo, era, mesmo quando plida, a nica capaz de tornar mais aceitveis e racionais todas as desavenas pessoais e justificar, em ltima instncia, o dio individual ao vizinho de porta ou de bairro. E agora?

    Agora resta o confinamento parlamen-tar do conflito poltico e o exerccio cnico da cordialidade tpica do cretinismo par-lamentar, enquanto nossos condenados da terra sangram em silncio nas favelas e no sistema carcerrio, no assassinato do lder campons e nos milhares de mortes vio-lentas tipificadas de maneira conveniente como violncia urbana, seja no trnsito, seja no boteco da esquina.

    Claro que a digesto moral da pobre-za ingrediente necessrio da poltica da tolerncia e do amor. Afinal, o que pode o minguado bolsa-famlia num pas em que apenas 5% da populao concentra quase 50% da renda? A esquerda liberal acredita, de fato, que a cidadania est em cons-truo quando o ndice de Gini se move em dcimos? A eliminao de um horizon-te utpico o socialismo , cuja defesa deveria ser feita aqui e agora, alimentou ainda mais o irracionalismo da poltica em curso e exibe suas vtimas luz do dia.

    Em resumo, enquanto o velho dio de classe desaparece do horizonte dos pobres, dissipando a antiga conscincia de direitos, e no momento em que ganha destaque a ideologia da ascenso social nos marcos do capitalismo (seriamos final-mente um pas de classe mdia!), neces-srio acusar como engodo a possibilidade de fascismo entre ns. Ora, o fascismo fenmeno histrico que emerge como arma da classe dominante em momentos de crise de sua dominao, quando esta j no mais possvel unicamente por meios parlamentares. No estamos, portanto, s portas do fascismo. No entanto, essa con-cluso no autoriza a falsificao histrica,

    especialidade do jornalismo. Uma ditadura cordial, ou ditabranda, jamais existiu. A violncia e o dio de classe existentes no Brasil so suficientes para manter as coisas no seu devido lugar, sem a necessidade de recurso ao programa fascista, razo pela qual seguir orientando a ao do Estado e, certamente, contar com a tolerncia, a aceitao dos governos e, no limite, a recusa calibrada dos mecanismos institu-cionalizados da represso.

    Nas condies brasileiras, o mais pro-vvel, no curto prazo, que o rechao abs-trato ao dio e/ou a evocao igualmente abstrata tolerncia naveguem sem obst-culos, ideologia necessria para que tudo mude desde que permanea exatamente igual. Assim, o pressuposto ingnuo de que o Brasil um pas da delicadeza perdida seguir, tambm, gozando de popularida-de, ainda que no passe de tirada literria falsa. A despeito da delicadeza que ainda podemos encontrar em pessoas, a norma poltica nos assuntos pblicos mesmo a violncia. Enquanto a maioria aceitar que um mau acordo sempre melhor do que o bom combate pea do conformismo poltico sempre apresentada como virtu-de e sabedoria poltica , a poltica e a democracia sero sempre lembradas como a arte de engolir sapos. De resto, a de-mocracia liberal admite em seu interior a manifestao e o exerccio da violncia por parte do Estado e de foras sociais comprometidas com a ordem dominante. No h anomalia alguma, muito menos ovo da serpente, quando um liberal desavisado ou grande parte da esquerda domesticada acusa que o dio e a violncia esto saindo dos trilhos. O antdoto real para os ex-cessos produzidos pelo liberalismo no brotar da conscincia social sem dentes para morder implcita na defesa dos po-bres, mas de um projeto de classe o so-cialismo e o correspondente movimento de massas em sua defesa.

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    Atualmente atende os mercados editorial (fotojornalismo, retratos, documental) e corporativo, alm de desenvolver projetos autorais em fotografia e multimdia.

    (Novo Hamburgo, 1966) fotojornalista. Durante 20 anos, trabalhou no Grupo RBS, atuando como reprter fotogrfico (Zero Hora) e editor de fotografia (Dirio Gacho).

    Esta foto foi feita em Monte Belo do Sul, na Serra Gacha, durante o intervalo da gravao de um programa de tev. Estas pessoas so colonos na regio e estavam atuando como figurantes no programa. Era o intervalo, e eles estavam na fila do almoo. Eu fiz a foto pela poesia da imagem, composta pelo belo grafismo e forte cenrio.