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SUBVERSÃO RESPONSÁVEL DE UMA PROFESSORA, PROPICIADA POR
SEU PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL
Celi Espasandin Lopes
Universidade Cruzeiro do Sul
Beatriz Silva D’Ambrosio
Miami University
Resumo
Neste artigo discutem-se as ações de insubordinação criativa, reveladas por uma
professora, ao narrar sua trajetória profissional. A insubordinação criativa ou subversão
responsável relaciona-se a atitudes e decisões tomadas pelo profissional, em ruptura
com o que está posto ou definido por outros – instituições ou superiores –, aos quais ele
está subordinado. O objetivo é discutir o modo como o desenvolvimento profissional
possibilita à professora redimensionar seus saberes, de forma a lhe atribuir segurança
para ousar e inovar sua prática docente. Considera-se o desenvolvimento profissional
como um processo que salienta os aspectos que o professor pode enriquecer, em função
de suas potencialidades, e ocorre com base em certo autodidatismo, em que ele procura,
decide, projeta e executa um plano de formação. Neste estudo a entrevista é um
instrumento para construir os dados por entender que esse recurso nos permite obter
descrições ricas e diferenciadas dos conteúdos manifestos do que é dito, bem como
interpretações mais profundas e mais críticas sobre o que foi expresso. A análise da
conversação examina os detalhes mínimos da fala na interação do entrevistador com o
entrevistado e que a interpretação do significado das declarações supera a estruturação
das manifestações do entrevistado, pois há uma interpretação mais profunda e crítica do
pesquisador no confronto com o referencial teórico. Evidencia-se que o investimento da
professora em seu desenvolvimento profissional e sua participação em diferentes
espaços formativos geraram uma ampliação de seu conhecimento profissional, o que lhe
permitiu atitudes de ousadia em sua prática docente, de forma a possibilitar aos seus
alunos uma aprendizagem matemática mais consistente e com significados.
Palavras-chave: Insubordinação criativa. Desenvolvimento profissional de professores.
Trajetória profissional.
Introdução
O termo “insubordinação criativa”, muitas vezes denominado “subversão
responsável”, refere-se às quebras de regras que profissionais assumem, ao buscar
proteger aqueles a quem prestam serviços e possibilitar-lhes melhores condições de
vida. Nos anos 1990, este conceito emergiu nos estudos de Enfermagem e, em seguida,
as pesquisas da área de Administração Escolar passaram a utilizá-lo para discutir ações
de dirigentes de escolas.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 206350
Nesta pesquisa, buscamos identificar, na trajetória profissional de uma
professora de matemática, ações de insubordinação criativa que ela possa ter tido em
prol da aprendizagem e do desenvolvimento de seus alunos.
O objetivo é discutir o modo como o desenvolvimento profissional possibilita à
professora redimensionar seus saberes, de forma a lhe atribuir segurança para ousar e
inovar sua prática docente. O desenvolvimento profissional é um processo que salienta
os aspectos que o professor pode enriquecer, em função de suas potencialidades,e ocorre
com base em certo autodidatismo, em que ele procura, decide, projeta e executa um
plano de formação. É nessa busca que melhora seu conhecimento, suas competências
e/ou atitudes (LOPES, 2003).
Na época de Platão(428/27 – 347 a.C.), emAtenas, a inovação era
consideradaperigosa, e os profissionais – particularmente aqueles da educação e das
artes – estavam proibidos de inovar. A palavra “inovação”, epistemologicamente,
significa transformar algo em algo novo, o que apresenta uma significativa interface
com a criatividade, esta considerada como a capacidade de construir e elaborar o novo
de forma valiosa para os outros, bem como para si mesmo (POPE, 2005).
Randi e Corno (2000) alertam que os professores têm tido pouco apoio para
inovar, pois o modelo de transmissão hierárquica não estimula esses profissionais ao
exercício da inteligência crítica. A adoção de programas genéricos desenvolvidos por
especialistas externos à escola e o uso persistente de medidas de implementação tomam
os professores como consumidores passivos, pois os levam a concentrar a atenção no
domínio de estratégias específicas, ao invés de auxiliá-los na resolução de problemas
crônicos e complexos; e contribuem para simples aplicações de resultados de pesquisas,
opondo-se à inovação na sala de aula.
D’Ambrosio (2014) alerta que preparamos os professores para que se
conformem e sigam regras, sem considerar as implicações dessa postura para o bem-
estar das crianças. Muitas instituições escolares têm oprimido os professores e os
alunos, pois empregam, para a formação docente, processos que não visam ao
desenvolvimento da criticidade desses profissionais e não os preparam para tomar
decisões, em seu trabalho docente, que levem ao bem dos estudantes. Por vezes,
ensinamos os professores a seguir cegamente as políticas públicas, sem preocupação
com o impacto de seus atos de ensinar sobre a formação das crianças e dos jovens ou
com o impacto desse ensino para os redirecionamentos sociais.
Diante disso, os processos de formação – inicial ou contínua – de professores
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 206351
precisam ser redimensionados. Gutiérrez (2013) afirma que, no ensino da matemática,
as insubordinações criativas dos professores manifestam-se por meio dos seguintes atos:
criar argumentações alternativas para explicar as diferenças de aproveitamento dos
alunos, rompendo com a generalização normalmente presente nos discursos de análise
dos resultados deles; questionar as formas como a matemática é apresentada na escola;
enfatizar a humanidade e a incerteza da disciplina de matemática; posicionar os alunos
como autores da matemática; e desafiar os discursos discriminativos sobre os alunos.
Considerando tais pressupostos, desenvolvemos este estudo.
A pesquisa e a professora Julianai
Utilizamos a entrevista para construir os dados deste estudo, por entender que
esse recurso nos permite obter descrições ricas e diferenciadas dos conteúdos
manifestos do que é dito, bem como interpretações mais profundas e mais críticas sobre
o que foi expresso.
Consideramos que a entrevista é uma interação linguística e se constituiem texto
de linguagem produzido pelo entrevistado. A atenção aos aspectos linguísticos de uma
entrevista pode ajudar a gerar e verificar o significado das declarações (KVALE, 2011,
p. 144).
A análise da conversação examina os detalhes mínimos da fala na interação do
entrevistador com o entrevistado. A interpretação do significado das declarações supera
a estruturação das manifestações do entrevistado, pois há uma interpretação mais
profunda e crítica do pesquisador no confronto com o referencial teórico. Assim, não
utilizamos aqui técnicas analíticas para a leitura da entrevista e optamos por escutar a
voz da professora falando sobre sua formação, trajetória profissional e ações docentes
que consideramos atitudes de insubordinação criativa. Procuramos manter um diálogo
entre diferentes teorias e os dados, sem a intenção de validar uma perspectiva suposta,
mas na busca de compreender os problemas em seu contexto, da forma como a
professora vivenciou e relatou. A seguir, apresentaremos a professora.
Juliana é professora de Matemática efetiva desde 2002 na Secretaria Municipal
de Educação de uma cidade do interior do estado de São Paulo,e desde sua formação
inicial, sempre esteve inserida em grupos de estudos e pesquisas e em processos de
formação continuada. Ela sempre lecionou para os anos finais do Ensino Fundamental e
atualmente, além de lecionar, trabalha com a coordenação da área de Matemática.Sua
jornada de trabalho é de 44 horas, das quais 24 são dedicadas a lecionar e 20 são para a
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
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orientação pedagógica. Ela frequenta três grupos de estudos e pesquisas em Educação
Matemática, vinculados a universidades, dois deles com encontros quinzenais no espaço
físico de uma universidade pública; o terceiro, coordenado por uma pesquisadora de
universidade privada, realiza os encontros quinzenais em um espaço físico da rede
municipal onde Julianaatua, destinado aos encontros de formação continuada de
professores. Sua participação nesses grupos é voluntária e não compõe sua jornada de
trabalho, nem sequer auxilia em sua ascensão profissional.
Juliana já cursou três especializações em Ensino de Matemática em uma
universidade pública da região. Nessa mesma instituição fez especialização em Prática
Pedagógica em Matemática e tornou-se Mestre em Educação.
A narrativa da professora
A professora relata que iniciou a carreira na rede municipal de ensino em uma
cidade do interior de São Paulo, onde lecionou nos primeiros quatro anos em turmas da
EJA. E, ao longo de sua carreira, adquiriu a preferência por ministrar aulas para o 7o.
ano do Ensino Fundamental. Ela declara que tinha como expectativa que seu curso de
licenciatura em Matemática a preparasse para lecionar; no entanto, ao se deparar com o
desafio de promover a aprendizagem de seus alunos, percebeu que todo o conteúdo
matemático que dominava não era suficiente para isso: lacunas em sua formação inicial
remeteram-na à busca por processos de desenvolvimento profissional.
Eu sempre quis ser professora de matemática, quando fui
fazer a faculdade pensei que aprenderia a dar aula, mas
não foi isso que aconteceu. Eu gostava de algumas
disciplinas, como a de fundamentos, geometria analítica,
etc. Logo quando me formei passei no concurso da
prefeitura. Minha primeira sala de aula foi um 6º ano,
como eu não tinha feito magistério tive dificuldade no
começo. Meus alunos não sabiam fazer as quatrooperações,
fiquei desesperada e enchia a lousa de tópico, teorias e
atividades. Comecei dar aula em julho, e em agosto iniciei
um minicurso na IMECC aos sábados. Nesses cursos fui
aprendendo a ensinar os conceitos de divisão. No ano
seguinte eu fiz o MAT 300, em 2004 eu prestei o MAT 100.
Em 2005 iniciei a participação em um grupo de estudos e
pesquisas na Unicamp, o grupo do GDS. No ano seguinte
iniciei o MAT 500. Esses cursos tinham custos acessíveis, e
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EdUECE- Livro 206353
também porque eu sentia falta de alguém para trocar
experiências.ii (Entrevista, 18/03/2014)
No entanto, reconhece que adquiriu habilidades para organizar atividades de
ensino no curso de licenciatura, com a proposta de um professor de que o estágio de
docência fosse feito pelos alunos, por meio do oferecimento de oficinas a outros alunos
e/ou a professores em exercício.
nós tínhamos que dar oficinas para cumprir o estágio.
Organizávamos jogos interessantes, e isso me marcou. Tive
uma professora que era superdidática, que me marcou
também. Todos esses professores tinham postura humana
de professores, e não apenas especialistas, então
conversávamos muito. Os outros professores eram bem
diferentes, eu me desesperava ao estudar os livros didáticos
(6º ao 9º ano), porque via que o que eu aprendia não me
ajudaria na sala de aula. (Entrevista, 18/03/2014)
Esse depoimento evidencia a importância da realização de atividades
relacionadas à prática de ensino, pois essas aproximam os futuros professores de ações
que serão fundamentais no exercício da docência.
Entendemos que a retrospectiva reflexiva da professora sobre sua formação
inicial já revela uma dimensão de sua subversão responsável, ao relatar que esperava
“que aprenderia a dar aula, mas não foi isso que aconteceu” e ao dizer que os
professores de disciplinas relacionadas à prática “tinham postura humana de
professores, e não apenas especialistas”. O questionamento sobre as formas como a
Matemática é abordada no curso de licenciatura evidencia a avaliação do valor de suas
experiências de formação para o seu preparo docente.
A professora Juliana relata que oscursos de Pós-Graduação ajudaram a ampliar o
domínio de conteúdo matemático e também a redimensionar o seu conhecimento
profissional.
Me lembro que, ao ministrar um minicurso no SHIAMiii
, um
professor, que havia estudado comigo, perguntou onde eu
aprendi toda aquela didática, pois na faculdade onde
estudamos juntos não aprendemos isso. A participação no
primeiro curso de especialização que fiz me estimulou a
socializar minhas práticas, o curso possibilitou um outro
olhar, me ajudou a aprofundar matematicamente e
didaticamente. (Entrevista, 18/03/2014)
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A professora se refere ao MAT 300, um curso com processo avaliativo
diferenciado: quando o professor participante era convidado a elaborar atividades para
as suas aulas, de acordo com os temas discutidos na disciplina, deveria apresentar para a
turma como havia sido o desenvolvimento e sua reflexão sobre sua prática nessa
proposta.
Ela também nos conta que buscou grupos de estudos e pesquisa para sair do
isolamento.
Na minha escola só tem eu de professora de matemática (6º
ao 9º ano), então tive dificuldade de fazer o planejamento, e
a prefeitura não oferecia formação. Hoje em dia temos os
grupos, plano de curso único... A participação nos grupos
foi uma busca para ter continuidade do que ocorria no
primeiro curso de especialização, um espaço para
compartilhar as dificuldades de sala de aula. Aprendo
muito com meus colegas de grupo, as leituras, os olhares
são diferentes. A intenção nos grupos é discutir e ir além do
que todos sabem. (Entrevista, 18/03/2014)
A professora revela a importância de ser ouvido e de ouvir, compreender e ser
compreendido pelos pares e, a partir daí e do estudo teórico, redimensionar suas
práticas. Para ela, a participação nos grupos de estudos e pesquisas contribui para oseu
desenvolvimento profissional.
No grupo temos as discussões pedagógicas e os
aprofundamentos teóricos. Formamos, eu e duas colegas,
um subgrupo em um dos grupos da universidade pública,
com foco de estudo sobre o conteúdo de medidas, e tem sido
muito relevante. Então, focar num estudo sobre o tema
ajuda a perceber novas maneiras de trabalhar em sala de
aula. (Entrevista, 18/03/2014)
Apesar de todos os cursos que já fez,Juliana ainda sente necessidade de
aprofundar estudos conceituais e procedimentais sobre temáticas a serem trabalhadas no
ensino fundamental, de forma a ser capaz de criar atividades diferenciadas para suas
aulas.
Os professores precisam possuir conhecimentos sobre a matéria que ensinam;
conhecer o conteúdo em profundidade, para organizá-lo mentalmente, de forma a
estabelecer inúmeras inter-relações; relacionar esse conteúdo ao ensino e à
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aprendizagem, em um processo de interação com os alunos, considerando o
desenvolvimento cognitivo destes; e, também, dominar o contexto, tendo clareza do
local em que ensinam e a quem ensinam.
O elemento central do conhecimento profissional do professor é o conhecimento
didático do conteúdo, que se constitui em uma síntese dos conteúdos a ensinar com os
modos de fazê-lo, incluindo formas de representação das ideias, analogias importantes,
ilustrações e exemplos próximos ao contexto. Está incorporada a esse conhecimento a
habilidade para representar e formular o conteúdo conceitual e/ou procedimental,
tornando-o acessível aos alunos, gerando a compreensão do que torna mais, ou menos,
difícil a aprendizagem de um conceito (LOPES, 2003).
Os encontros realizados em grupos de estudos e pesquisas, que assumem a
perspectiva de trabalho colaborativo, como esses dos quais a professora é membro,
permite debates sobre as reflexões de suas práticas, a fim de aprofundar e redimensionar
os saberes e fazeres docentes dos participantes. O professor é o elemento-chave na
criação do ambiente que se vive na sala de aula: cabe a ele a responsabilidade de propor
e organizar tarefas, bem como de coordenar o desenvolvimento das atividades de ensino
com os alunos.
O professor age como pessoa e suas ações profissionais o
constituem. Esta é uma linha definidora para pensar as ações
como produtos e processo, que correspondem a pessoas
singulares. Atrás da ação está o corpo, a inteligência os
sentimentos, as aspirações, as maneiras de compreender o
mundo, etc. Tudo isso se projeta no que cada um empreende,
construindo a biografia do agente. (SACRISTÁN, 1999, p. 31)
Nesse sentido, cada professor é único, define seu caminho e decide suas ações de
acordo com sua personalidade, seus afetos, crenças e expectativas. Ser membro de um
grupo permite ao professor o estudo e a reflexão, o estar junto com seus pares,
independentemente de seu vínculo profissional; torna a profissão docente menos
solitária; e possibilita um diálogo livre de qualquer censura.
A participação em espaços de desenvolvimento profissional escolhidos pela
professora permite a ela ponderar e superar determinações da instituição à qual está
vinculada.
No começo da carreira eu era muito obediente, hoje
questiono mais, porém estou distante de ser muito política.
Às vezes, concordo na hora em que sou questionada para
não enfrentar um conflito que pode ser desnecessário, mas
depois faço do meu modo. Porque penso que do meu modo
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está correto e, como sempre é uma pessoa superior e tenho
que obedecer, daí eu prefiro concordar. Por exemplo, a
diretora que tenho hoje me cobra que eu trabalhe o jogo
com os alunos o tempo todo, eu proponho jogos, mas na
minha visão não dá para largar tudo e só jogar. Nesse
sentido, vejo que o mínimo de conteúdo que tenho que
passar vou passar independente do que ela fala.
(Entrevista, 18/03/2104).
Nesse momento, a professora revela que, por vezes, tem atitudes de
insubordinação criativa que são intencionais e veladas, mas ocorrem em prol do que
considera um melhor exercício de sua docência. Ela define o currículo no que se refere
ao conteúdo e à metodologia, bem como, à maneira como utiliza o material didático
ofertado pela instituição.
Já faz algum tempo, cerca de seis anos, a rede municipal
fornecia apostilas péssimas. Eu mandava as apostilas
como lição de casa e mostrava os erros que a apostila
continha para os alunos. Nunca falava que não iria usar,
mas dava uma contornada. Veio com muita coisa
copiada da Internet, erros conceituais absurdos. Fui
convidada para fazer uma análise crítica do material, e
apontei os erros, mas no ano seguinte não fizeram a
correção. O material do 6º ano era inquestionável, pois
trazia a reflexão sobre as quatro operações. Eu não
consigo seguir a apostila da escola, prefiro o livro
didático fornecido pelo MEC. Eu tenho em mente o que
trabalhar com os alunos do 6º, 7º e 8º ano, não dá para
ficar presa nas apostilas. (Entrevista, 18/03/2104).
A professora nos conta que já tem sua sequência de trabalho estabelecida e
definida pela sua experiência profissional, e não importam as indicações feitas pela
instituição educacional, pois é ela quem determina a formação matemática de seus
estudantes.
O conflito entre o profissionalismo autônomo, a liberdade de
cátedra e o respeito à livre consciência, por um lado, e, por
outro, o acatamento dos currículos estabelecidos ou o pôr-se ao
serviço do projeto do outro (seja o Estado, o patrão, os pais ou o
grupo colegiado de professores), não é fácil de resolver.
(SACRISTÁN, 1999, p. 41, grifo do autor)
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Na trajetória desta professora,seu investimento em seu desenvolvimento
profissional, com a participação em cursos e grupos de estudos e pesquisas,lhe permitiu
a aquisição de uma autonomia profissional determinada pela mobilização de seus
saberes. Ela estabelece o currículo de matemática em suas aulas, o que se constitui na
manifestação da insubordinação criativa em vários momentos de sua atividade
profissional.
Tornar-se uma profissional subversivamente responsável ao longo de sua
trajetória exigiu da Professora Juliana um confronto com os conflitos que surgiram
desde sua formação inicial até o desempenho de suas atividades docentes. Contreras
(1997) considera que o ensino é uma atividade que sempre se pode melhorar, e o
professor precisaabrir-se ao inesperado, para entender a relação complexa e conflitiva
presente nas aspirações educativas.
A abertura à imprevisibilidade da professora ocorre quando ela se sente segura,
ou seja, ela pauta suas ações em fundamentações teóricas construídas por ela mesma, a
partir da reflexão e da sistematização de sua prática docente. Essas atitudes são
possíveis pelo fato de ela assumir a solução dos conflitos emergentes da complexidade
da sala de aula.
Juliana evidencia, em sua trajetória profissional, um momento ímpar de
redirecionamento de suas ações, no que se refere à sua prática avaliativa.
Minha participação nos grupos de pesquisa também
contribuiu para que eu pudesse rever minha forma de
avaliar. Atualmente, eu procuro ter um olhar avaliativo não
só para a nota da prova. As questões de desafios eu
costumo dar durante as aulas, e para a prova aplico
exercício mais simples para não prejudicar os alunos.
Trabalho com atividades gradativas para observar o
quanto o aluno está avançando. Tem aluno que não irá
fazer a prova ideal que o professor espera (principalmente
os do 6º ano), com isso, aplico atividades que ele dê conta.
A orientação da secretaria seria essa recuperação paralela
e contínua. (Entrevista, 18/03/2014)
A partir disso, ela nos conta que adquiriu novos olhares para a avaliação, ao
colaborar com a realização de uma pesquisa de mestrado, quando desenvolveu um
projeto de avaliação com seus alunos, o qual foi relatado posteriormente, em um
capítulo de livro publicado em 2012.
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A professora reconhece o desenvolvimento desse projeto como uma de suas
ações mais insubordinadas criativamente, por ter assumido os alunos como coautores no
processo avaliativo.
Desenvolvi um projeto de avaliação em que eram
produzidas fichas de registros (notas de trabalhos,
participação, etc.), no qual os alunos somavam a própria
nota e fechavama média (tive cuidado de propor essa
avaliação na escola da manhã, é uma escola maior, a
direção é autoritária e os pais são mais questionadores,
etc.). Essa avaliação é feita durante o processo de
atividades pelo próprio aluno. Aconteceu um fato, em que a
diretora veio questionar a nota de um aluno considerado
ruim que fechou com 7,5 na minha matéria. E esse aluno já
sabia a nota antes do conselho, porque ele mesmo
preencheu a ficha avaliativa. A diretora não gostou, mas a
ficha foi a única coisa que me garantiu não mudar a nota
dele. Existem fatos que não temos como discutir na escola,
a direção tem muita autoridade sobre nós professores.
(Entrevista, 18/03/2014).
Muitas vezes, os gestores escolares consideram que as regras de avaliação têm
que ser definidas por eles e que devem ser comuns para todos os professores,
desconsiderando as diferenças de práticas pedagógicas, as quais requerem articulação
direta com os processos avaliativos.
Essa realidade exige do professor uma tomada de decisão e uma ruptura com o
que está estabelecido. Freire (1997, p. 115) considera que não podemos ser professores,
se não percebermos, cada vez mais, que, por não poder ser neutra, nossa prática exige
de nós uma definição. Exige de nós uma escolha. “Não posso ser professor a favor de
quem quer que seja e a favor de não importa o quê.” Comungamos das ideias freireanas
de que nós, professores, temos que estar “a favor da decência contra o despudor, a favor
da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da
democracia contra a ditadura de direita ou de esquerda” (FREIRE, 1997, p. 115).
Considerações finais
A trajetória da professora Juliana evidencia que as atitudes de insubordinação
criativa passaram a ocorrer após sua inserção em espaços formativos nos quais a
reflexão sobre a prática docente é socializada e pautada em estudos teóricos.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
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As necessidades emergentes no contexto das aulas de Matemática da professora
foram determinantes para o direcionamento de suas ações. O percurso realizado por ela
enlaça as suas intenções e os seus motivos para tentar solucionar problemas de suas
atividades docentes. A sua busca por constantes processos de desenvolvimento
profissional lhe permiteenfrentar os conflitos decorrentes de suas ações sobre a
complexidade da sala de aula.
Podemos evidenciar que a professora supera o conflito das limitações e lacunas
deixadas pelo curso de licenciatura,ao avaliar criticamente sua formação inicial e
perceber a necessidade de ampliar seus conhecimentos para uma prática eficaz.A
ampliação de seus conhecimentos profissionais, decorrente de seu processo de
desenvolvimento profissional, possibilita a ela superar os conflitos em relação ao
currículo de Matemática; à sua concepção e prática de avaliação; aos questionamentos e
às determinações da direção da escola; e às suas práticas, diante das expectativas dos
pais.
Essas habilidades profissionais reveladas pela professora remetem à
insubordinação criativa, na medida em que ela cria movimentos, em suas ações teóricas
e metodológicas, em favor da aprendizagem matemática do aluno.
Tornar-se uma profissional subversivamente responsável exigiu da professora
atitudes complexas e não lineares, determinando um fazer pedagógico que não pode ser
analisado somente do ponto de vista instrumental, sem percepção do envolvimento da
professora e das consequências para sua subjetividade;e que intervirá e se expressará em
suas atitudes ousadas.
Como afirma Sacristán (1999), a intencionalidade é condição necessária para a
ação, e compreender esse elemento dinâmico e motor é fundamental para qualquer
educador, especialmente em um contexto de valores imprecisos e de rotinas
estabelecidas diante de desafios importantes, que exigem respostas comprometidas.
No caso da professora Juliana, o constante investimento feito por ela em seu
desenvolvimento profissional, o autoconhecimento, suas motivações e as reflexões
compartilhadas com seus pares são essenciais para a superação dos desafios da profissão
docente.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 206360
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i Nome fictício escolhido pela professora entrevistada.
ii IMECC – Instituto de Matemática, Estatística e Ciência da Computação da Universidade
EstadualCampinas. O MAT 100 é Curso de Especialização em Matemática para Professores de Ensino
Fundamental e Médio; o MAT 300 é curso de Especialização em Matemática para Professores da
Educação Infantil e do Ensino Fundamental; e o MAT 500 é Curso de Especialização em Matemática
para Professores de quinta a oitava séries do Ensino Fundamental. iii
Seminário Nacional de Histórias e Investigações de/em Aulas de Matemática.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
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