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CENTRO UNIVERSITÁRIO ASSUNÇÃO PONTIFÍCIA FACULDADE DE TEOLOGIA NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO LUIZ GONZAGA FECHIO SUICÍDIO E ÉTICA Uma apreciação em nossos dias à luz da Gaudium et Spes São Paulo 2008

SUICIDIO E ETICA uma apreciação na GAUDIUM ET SPES TESE

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CENTRO UNIVERSITÁRIO ASSUNÇÃO PONTIFÍCIA FACULDADE DE TEOLOGIA

NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO

LUIZ GONZAGA FECHIO

SUICÍDIO E ÉTICA Uma apreciação em nossos dias

à luz da Gaudium et Spes

São Paulo 2008

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CENTRO UNIVERSITÁRIO ASSUNÇÃO PONTIFÍCIA FACULDADE DE TEOLOGIA

NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO

LUIZ GONZAGA FECHIO

SUICÍDIO E ÉTICA Uma apreciação em nossos dias

à luz da Gaudium et Spes

Dissertação apresentada como exigência para obtenção do título de mestre em Teologia Prática, com concentração no núcleo de Moral, à comissão julgadora da Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, sob a orientação do Prof. Dr. Côn. José Adriano.

São Paulo 2008

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DEDICATÓRIA

“Não foi sem motivo que um amigo sussurrou-me, um dia, diante de um suicídio: ‘Hoje, todos fracassamos’. No fundo, ‘ninguém se suicida sozinho’ (A. Artaud)”1.

Em primeiro lugar, dedico este trabalho em memória de todos os que terminaram o

percurso de sua vida neste mundo através da tragédia do suicídio, descrendo totalmente do

valor desta vida, junto aos seus, principalmente aqueles e aquelas que somente Deus sabe o

quanto lhes foi difícil tomar tal decisão, após, talvez, uma longa trajetória de complicações,

em meio, às vezes, de grandes injustiças e incompreensões, diante das quais não enxergaram

outra saída a não ser atentar contra a sua própria vida.

De um modo particular, ofereço cada minuto do meu esforço nesta dissertação aos

que, como familiares e amigos, carregam com grande sofrimento o fardo escuro desse

comportamento com segredos tão insondáveis a nós, comportamento esse a respeito do qual

sentem muita dificuldade de partilhar com alguém as conseqüências dele, diante do tabu, da

vergonha, do escândalo que, ainda, ele pode ocasionar ou significar, embora, numa incidência

menor que num passado remoto e, talvez, recente.

____________________ 1 BAUTISTA, Mateo; CORREA, Marcelo. Ajuda perante o suicídio. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 6 (Coleção: Pastoral da saúde). Antonin Marie-Joseph Artaud, poeta, ator, roteirista e dramaturgo francês, nasceu em 4 de setembro de 1896 e faleceu em 4 de março de 1948.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao bom Deus que, sendo Fonte da Vida, por excelência, é Aquele que

capacitou-me para que este projeto se concretizasse.

Com gratidão, reconheço, também, o incentivo daqueles que possibilitaram-me este

estudo, pastoral e economicamente, no decorrer desses dois anos, em especial os meus

superiores, o bispo anterior, Dom Joviano de Lima Júnior, SSS, atual arcebispo metropolitano

de Ribeirão Preto, e o bispo atual de São Carlos, Dom Paulo Sérgio Machado, como também

a Ação Episcopal alemã Adveniat, pelo patrocínio da bolsa de estudo para a metade do curso.

Expresso meu sincero obrigado à Congregação dos Missionários Scalabrinianos (ou

Carlistas) – padres, seminaristas e funcionárias – que hospedaram-me fraternalmente no

período das aulas, em 2007.

Sou muito grato à direção, ao corpo docente e aos funcionários da Pontifícia

Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, por tudo que pude aprender e receber de

cada pessoa que proporcionou-me algo valioso neste estudo. De maneira muito particular,

manifesto meu reconhecimento ao acompanhamento do Prof. Dr. Côn. José Adriano que

acreditou em meu projeto, desde o início, e impulsionou-me para dedicar-me nele com afinco,

na certeza de que merecia ser levado adiante, conforme o que lhe expus, tendo dele um voto

de confiança motivador. Este reconhecimento torna-se mais especial ainda pelo fato do

orientador estar deixando a Faculdade, após 28 anos de exercício do magistério, e eu ser seu

último orientando.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.........................................................................................................................7

1. O FENÔMENO DO SUICÍDIO EM SI MESMO

1.1. INTRODUÇÃO.................................................................................................................10

1.2. UMA MELHOR COMPREENSÃO DA SAÚDE COMO BEM-ESTAR........................11

1.2.1. O conceito de saúde na era da técnica e da eficiência.....................................................12

1.2.2. Pressuposições da saúde como bem-estar.......................................................................13

1.2.3. Uma crítica ao conceito moderno de saúde....................................................................16

1.2.4. O conceito de saúde na Teologia....................................................................................17

1.2.5. Saúde, sofrimento e finitude...........................................................................................19

1.2.6. O conceito de saúde a partir da busca de um novo ethos................................................22

1.3. O SUICÍDIO EM DADOS ESTATÍSTICOS....................................................................24

1.4. CONFUSÃO DA LINGUAGEM EM TORNO DO SUICÍDIO.......................................26

1.5. FORMAS DE SUICÍDIO..................................................................................................29

1.6. INFLUÊNCIAS EM NOSSA VISÃO DE SUICÍDIO......................................................31

1.6.1. A linguagem médica, em relação ao suicídio.................................................................31

1.6.2. O efeito emocional na linguagem sobre o suicídio.........................................................33

1.6.3. O peso da expressão “cometer suicídio”.........................................................................35

1.7. “SUICÍDIO” E “TENTATIVAS DE SUICÍDIO”.............................................................37

1.7.1. Suicídio...........................................................................................................................38

1.7.2. Tentativa de suicídio.......................................................................................................38

1.8. RELAÇÃO ENTRE SUICÍDIO E INTENÇÃO...............................................................40

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1.8.1. Um novo modo de ver o suicídio....................................................................................41

1.8.2. A dificuldade da incerteza quanto à intenção.................................................................42

1.8.3. Qual é a situação real de um suicídio?............................................................................43

1.9. BUSCA DE UMA DEFINIÇÃO DE SUICÍDIO..............................................................45

1.9.1. A relação entre racionalidade, entendimento e suicídio.................................................46

1.9.2. Apresentando uma definição...........................................................................................48

1.10. DIFERENCIAÇÃO ENTRE SUICÍDIO E OUTRAS ATIVIDADES HUMANAS......49

1.10.1. Situações de envolvimento em atividades de alto risco................................................49

1.10.2. Situações de envolvimento em ações heróicas.............................................................52

2. A REFLEXÃO ÉTICO-MORAL TRADICIONAL E ATUAL EM TORNO DO

SUICÍDIO

2.1. INTRODUÇÃO.................................................................................................................53

2.2. O PROBLEMA DA EXISTÊNCIA...................................................................................54

2.3. ABORDAGEM TRADICIONAL......................................................................................57

2.3.1. O suicídio para o estoicismo...........................................................................................57

2.3.2. A visão negativa do ato suicida em Platão e Aristóteles.................................................58

2.3.3. O suicídio e o neoplatonismo..........................................................................................60

2.3.4. A moral agostiniana sobre o suicídio..............................................................................62

2.3.5. O suicídio conforme Santo Tomás de Aquino................................................................67

2.3.6. Disciplina canônica a respeito do suicídio......................................................................69

2.3.7. O suicídio segundo o Magistério atual............................................................................72

2.4. CONSIDERAÇÕES ÉTICAS ATUAIS............................................................................75

2.4.1. A problemática do suicídio.............................................................................................75

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2.4.2. O suicídio dentro da nova problemática sobre o direito de viver ou de morrer..............77

3. À LUZ DA GAUDIUM ET SPES

3.1. INTRODUÇÃO.................................................................................................................80

3.2. NO ESPÍRITO DO VATICANO II...................................................................................82

3.3. A COISIFICAÇÃO DA PESSOA.....................................................................................86

3.4. AS ANGÚSTIAS E AS ESPERANÇAS DO SER HUMANO EM NOSSOS DIAS.......90

3.5. A BUSCA DA FRATERNIDADE....................................................................................95

3.6. A IMPORTÂNCIA DA COMPAIXÃO............................................................................98

3.6.1. A compaixão como um processo..................................................................................104

3.6.2. A compaixão como princípio........................................................................................106

3.7. A PRÁTICA DA MISERICÓRDIA................................................................................107

CONCLUSÃO.......................................................................................................................115

ANEXO..................................................................................................................................119

GLOSSÁRIO.........................................................................................................................123

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................133

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INTRODUÇÃO

“... no meio do caminho da nossa vida encontrei-me dentro de uma floresta escura onde a trilha se perdia. Ah, como é difícil falar dessa floresta, selvagem e áspera e densa, que só de pensar o meu medo se renova! Tão amarga é, que dificilmente a morte pode ser mais...”.

Dante Alighieri2

Percebe-se, cada vez mais, uma mudança na experiência que se tem da morte. É uma

mudança com muitas causas, dentre as quais, a mais importante se deve aos progressos da

medicina, da higiene alimentar... que mudaram radicalmente a longevidade humana. No

entanto, o problema que se põe hoje, com crescente atualidade, não é mais tanto como

retardar a morte, mas, antes, perguntar pelos motivos que se tem para prolongar a própria

vida.

Sem dúvida, as modificações da significação da morte e de seu contexto repercutem

sobre um problema sempre antigo e, infelizmente, sempre atual: o suicídio. Trata-se, pois, de

um problema bastante complexo.

É comum, para muitos, inclusive autoridades pastorais, reafirmar doutrinas simples e

coerentes, a fim de inspirar comportamentos bem precisos. Mas isto não é difícil de fazer. O

desafio está em que, diante de situações novas na abordagem de determinados problemas, é

importante e necessário ter prudência, sem se deixar levar pelo reflexo do medo, desejando,

incorretamente, resolvê-los antes mesmo de tê-los colocado e de ter tomado certo tempo para

observá-los mais atentamente.

Até cerca de um século atrás, a questão do motivo para alguém tomar a decisão de

tirar a própria vida ficou entregue, quase exclusivamente, aos teólogos, filósofos e juristas.

Não se punha dúvida da responsabilidade moral da pessoa que praticava tal ato.

Foi o sociólogo Durkheim, em 1897, que teve o mérito de ser o primeiro a levantar

____________________ 2 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia, apud CORRÊA, Humberto; BARRERO, Sérgio Perez. (ed.). Suicídio: uma morte evitável. São Paulo: Atheneu, 2006, p. 103.

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dúvida quanto à liberdade do suicídio3. Empiricamente, ele mostrou que, em condições sociais

adversas, crescem os casos de auto-extermínio. Depois de oito anos, o psiquiatra Robert

Gaupp, chamou a atenção para a existência, nos suicidas, de situações anormais da

personalidade e para a necessidade de se distinguirem criteriosamente motivos relacionados

com a situação e causas patológicas4.

Se sempre se considerar o ato de suicídio como expressão de uma doença, pode-se

desprezar os motivos provocadores do mesmo. A medicina teve, há muito tempo, que desistir

de traçar separações claras entre saúde e doença e, mesmo no caso de uma problemática

predominantemente psíquica, é necessário examinar, em cada caso, as condições biológicas e

sociais, ou melhor, as condições psicossociais em que aconteceu o suicídio, e como nele se

misturam motivos conscientes (passíveis de responsabilidade) e motivos inconscientes (não

imputáveis à responsabilidade).

Sem desconsiderar eventuais cargas biológicas ou sociológicas, são os fatores e forças

psíquicas os responsáveis pela realização de sérios propósitos de suicídio, por impulsos e

tentativas de suicídio, ou por suicídios.

A presente dissertação procura justificar a complexidade cada vez maior de fatores

presentes no decorrer de todo um processo que desencadeia, muitas vezes, num final trágico.

O que tem a ver a “Gaudium et Spes” com esta questão? Num primeiro momento,

nada, mesmo porque a Igreja não poderia aprovar um ato suicida. Porém, diante de um quadro

de profundas modificações que vêm afetando fortemente a sociedade, o acontecimento do

____________________ 3 Fundador da Sociologia, David Émile Durkheim combinou a pesquisa empírica com a teoria sociológica. Sua contribuição tornou-se ponto de partida do estudo de fenômenos sociológicos, como a natureza das relações de trabalho, os aspectos sociais do suicídio e as religiões primitivas. Foi um dos primeiros a estudar mais profundamente o suicídio, o qual, segundo ele, é praticado na maioria das vezes em virtude da desilusão do indivíduo com relação ao seu meio social. Em Le Suicide tentou mostrar que as causas do auto-extermínio têm fundamento social e não individual. Descreveu três tipos de suicídio: o egoísta, em que o indivíduo se afasta dos seres humanos; o anômico, originário, por parte do suicida, da crença de que todo um mundo social, com seus valores, normas e regras, desmorona-se em torno de si; e o altruísta, por lealdade a uma causa. Durkheim faleceu em Paris, em 15 de novembro de 1917. Embora Durkheim esteja sendo citado aqui, seu nome não aparecerá mais em nenhum outro lugar desta dissertação, pois, não é objetivo dar a este trabalho um enfoque sociológico. 4 Robert Gaupp (1870-1953) foi um dos mais proeminentes psiquiatras e neurologistas alemães.

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Concílio Vaticano II, mediante a aproximação entre a Igreja e o mundo favoreceu um diálogo

maior dela com o homem contemporâneo, desejando compreendê-lo mais intensamente em

todos os seus problemas e iluminá-lo para dar mais sentido à sua existência. Esta aproximação

ou abertura foi possível, principalmente, graças à “Gaudium et Spes”.

Se, por um lado, objetivamente, podemos atribuir ao suicídio um adjetivo de

abominável, temos de admitir, por outro, que é preciso avaliar cada caso. Não se pode negar,

de certa forma, que o suicídio é uma recusa ao cumprimento de um dever, mas, também, que

ele representa profundo questionamento, em relação à nossa qualidade de vida, considerando

que se condena um número cada vez maior de pessoas ao isolamento, à solidão, ou, de

qualquer maneira, à incapacidade de perceber o próprio sentido da vida.

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1. O FENÔMENO DO SUICÍDIO EM SI MESMO

1.1. INTRODUÇÃO

A abordagem do tema “suicídio” remete à possibilidade e à importância de trabalhar a

questão da saúde em todas as dimensões humanas: física, psíquica e social. É cada vez mais

perceptível que não basta ter uma doença física para afirmar que alguém goza de uma boa

saúde. O ser humano necessita ser uma pessoa integrada, na qual os fatores físico, psíquico e

espiritual estejam em harmonia.

Os tempos atuais trouxeram condições de vida provenientes de um progresso

tecnológico que nem sempre significa um progresso de bem-estar, de integração. O que se

percebe são situações de neurose oriundas de uma síndrome de falta de sentido para viver. E o

que podemos constatar como prejuízo aos enfermos em geral, podemos, igualmente, atribuir

aos que têm tendência ao suicídio, ainda que este não acabe acontecendo.

José Carlos Bermejo, discorrendo a respeito da humanização da saúde, tece afirmações

a respeito do tratamento à pessoa enferma que têm sua aplicação no fenômeno do suicídio:

“Adquirimos a consciência de que a pessoa enferma nem sempre é tratada com a dignidade que lhe é de direito nas seguintes situações: sempre que, nas relações, são produzidos processos de despersonalização; sempre que as necessidades não são satisfeitas à medida do homem; sempre que a tecnologia anula ou toma o lugar do fundamental e insubstituível encontro interpessoal [...]”5.

O fenômeno do suicídio está inserido num contexto no qual há um anseio universal

por uma maior humanização, isto é, a garantia

“que tudo que envolva a saúde e a doença das pessoas seja digno da condição humana. [...] Não será essa, talvez, a tarefa fundamental da humanidade, garantir que seus membros sejam realmente pessoas? Pessoas vivendo em sociedade, capazes de se encontrarem com as demais na vulnerabilidade e de se acompanharem mutuamente para conseguirem, também, ser pessoas no ‘lado escuro da vida’”6.

____________________ 5BERMEJO, José Carlos. Humanizar a saúde: cuidado, relações e valores. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 9. 6Ib. p. 9-10.

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Abordando a problemática em torno da saúde e dando ênfase ao suicídio,

experimentamos, com mais força, a urgência de uma humanização. A doença, em qualquer

uma de suas dimensões na vida humana, sempre foi e será uma miséria. Diante do ser humano

nessa situação somos profundamente interpelados quanto à solidariedade que necessitamos

expressar.

1.2. UMA MELHOR COMPREENSÃO DA SAÚDE COMO BEM-ESTAR

A Organização Mundial da Saúde define a saúde como um estado de completo bem-

estar físico, psíquico e social, não bastando a ausência de doença ou de enfermidade7. A partir

deste ponto, teríamos uma primeira possibilidade para orientar o caminho deste trabalho que

consistiria em alargar o máximo possível o conteúdo da definição. E seria necessário dizer

que o conteúdo do “bem-estar”, além dos setores que são elencados, devia também ser um

bem-estar espiritual, com óbvia referência ao transcendente. Indo mais além, é preciso

prolongar o conteúdo da saúde ao aspecto social e familiar, bem como a um grande número de

outros fatores de atualidade, entre os quais devemos ressaltar os fatores ambientais, a

salubridade das habitações, o urbanismo, o estilo de vida moderno, o trabalho ou a

desocupação e assim por diante. Ao invés de tomar este caminho mais extensivo, pode ser

mais interessante um outro mais intensivo e voltado para a qualidade, que parece mais

adaptado a iluminar o conteúdo humano do conceito de saúde e mais de acordo com o ponto

de vista teológico sobre a matéria. Em vista disso, vamos proceder por etapas. Em primeiro

lugar, tentaremos descodificar, ou seja, converter em linguagem comum, alguns pressupostos

desta definição corrente de saúde, apresentada acima. Em seguida, entraremos no seu

____________________ 7A Organização Mundial da Saúde (OMS) foi criada como uma agência específica das Organizações das Nações Unidas (ONU) em 1948. Sua existência oficial foi declarada em 7 de abril daquele ano, depois de mais da metade dos membros da ONU ter assinado sua constituição. Atualmente, esta data é comemorada como o Dia Mundial da Saúde.

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conteúdo propriamente antropológico e ético, sem evitar o seu relacionamento com um

aspecto impopular e incômodo, que é o sofrimento. Finalmente, vamos alinhar algumas

componentes a privilegiar num ethos8 da saúde bem à medida do homem.

1.2.1. O conceito de saúde na era da técnica e da eficiência

Na cultura em que estamos, a idéia de saúde como bem-estar relaciona-se fortemente

com as conquistas da tecnologia. Ao contrário, a ausência de saúde e a morte são sempre

vistas como uma falência técnica de qualquer órgão do corpo humano e como um fracasso da

medicina. Trata-se de um modo de ver próprio da nossa civilização, assentada no

conhecimento e na conquista. Primeiramente, temos o domínio humano sobre a natureza.

Numa primeira fase, este domínio restringia-se mais ao domínio sobre o cosmos. Porém,

numa fase mais recente, a medicina e a biologia expandiram este domínio para o próprio

corpo humano, de tal maneira que a pessoa se tornou não apenas sujeito, mas também objeto

da própria conquista do cosmos pelo saber e poder técnico.

Não somente o elemento bioquímico do ser humano, mas também o seu mundo mental

e psicológico tem sido objeto desta conquista progressiva. A descoberta, desde Freud, do

mundo psíquico do ser humano possibilitou criar bem-estar a muitas pessoas acometidas por

grande número de padecimentos. O fato influenciou a mentalidade em geral. Ao descobrir um

número cada vez maior de mecanismos da vida psíquica, a ciência transferiu para o domínio

da saúde muitos dos fatores que eram tradicionalmente atribuídos às forças sobre-humanas e

tratados no campo da magia ou do religioso. Aumentaram as possibilidades de uma vida

melhor, mas, ao mesmo tempo, o conceito de saúde integrou novas vertentes, ou seja, novos

____________________ 8Aqui, o termo ethos deve ser entendido como a fundamentação dos princípios morais, posteriormente transformados em convicções e em regras de comportamento (cf. PRIVITERA, Salvatore. Ethos. In: Dicionário de Bioética. Vila Nova de Gaia (Portugal): Perpétuo Socorro; Aparecida: Santuário, 2001, p. 420).

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direcionamentos.

Um outro fator que deve ser considerado na questão da saúde é a complexidade da

vida social. De fato, observamos que a sociedade, que em estágios anteriores se ocupava de

forma mínima com a vida dos indivíduos, ampliou recentemente a sua intervenção. É assim

que o Estado assume sobre si próprio a responsabilidade pela saúde, principalmente pela

saúde pública, mas também pela saúde privada. O efeito disso foi alargar o conceito de saúde

a dimensões insuspeitadas e tornar a sua efetivação, enquanto direito e dever dos indivíduos e

das instituições, a um nível de complexidade que torna esse setor um dos mais polêmicos e

conflitivos das sociedades atuais.

A preocupação pela higiene e saúde estendeu-se, pois, a quase todos os setores da vida

humana. Durante séculos, a saúde tinha a ver apenas com a ausência de enfermidades físicas,

enquanto que a saúde psíquica, espiritual, as condições de vida e o meio ambiente ou eram de

foro mágico-religioso ou não constituíam ainda problema, como é o caso do meio ambiente.

Certamente, o bem-estar a que se refere o estado de saúde perfeita possui um grande número

de vertentes. Por outro lado, a saúde também se secundariza, no sentido de não ser

propriedade e responsabilidade do indivíduo, mas de terceiros, médicos e diversos técnicos de

um sistema público.

1.2.2. Pressuposições da saúde como bem-estar

Diante do que foi apontado acima, a Organização Mundial de Saúde define a vida

saudável como um “completo bem-estar” e não apenas como “ausência de doenças ou

enfermidades”. Aprofundemo-nos um pouco no que significa esta definição.

Num estudo sobre “o ethos do progresso bioquímico”, Jürgen Moltmann identifica

quatro visões do mundo que podemos utilizar como pressuposições do conceito de saúde. Em

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primeiro lugar, o desenvolvimento tem como ponto de mira um mundo asséptico, isto é,

extremamente limpo. Isso significa que a vitória sobre as bactérias e os vírus levará ao

domínio das doenças infecciosas e à criação de um universo quimicamente puro. Em segundo

lugar, o desenvolvimento dos psico-fármacos persegue a utopia de uma vida sem dor. Em

seguida, o domínio das técnicas de transplante de órgãos gera a idéia da possível substituição

das partes do corpo como se fossem peças de um mecanismo, gerando, então, a miragem de

uma vida sem fim temporal. Finalmente, a nova genética, conhecendo o programa dos seres

humanos, levará à eliminação das doenças hereditárias e, como conseqüência, a uma melhoria

da espécie humana e a uma hipotética aceleração da evolução natural9.

Cabe, agora, perguntarmo-nos: será que tal programa corresponde, de fato, a um

completo bem-estar da pessoa? A relativa vitória sobre as doenças infecciosas correspondeu a

um avanço inegável da qualidade da saúde e da vida. Aumentou bastante a expectativa de

vida, reduziu a mortalidade infantil, garantiu a imunidade sobre um grande número de

doenças. Os países considerados desenvolvidos possuem uma assistência sanitária que

abrange grande parte da população. Mas esta vitória sobre a natureza hostil é apenas fonte de

bem-estar para as pessoas? Não dará este fato origem a novas formas de mal-estar? O

desenvolvimento da biomedicina favoreceu a explosão demográfica; por sua vez, o domínio

sobre parte da seleção natural provocou uma degeneração do patrimônio genético. Este

incremento das populações fez aparecer novas formas de competição entre as pessoas,

competição na escola e no emprego, que, por sua vez, estão na origem de diversas formas de

doenças, principalmente do foro psíquico, mas também, eventualmente, novas formas de

vulnerabilidade às infecções de vírus e bactérias. Além das conseqüências sobre o meio

ambiente causadas pelos meios químicos de combate aos parasitas, podemos assinalar,

____________________ 9MOLTMANN, Jürgen. Etica e progresso biomedico. In: Futuro della creazione: Brescia (Itália), 1980, apud CUNHA, Jorge Teixeira da. Bioética Breve. Apelação (Portugal): Paulus, 2002, p.12.

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sobretudo, novas formas de mal-estar decorrentes da ruptura do equilíbrio entre gerações, este

último conseqüência do envelhecimento das sociedades. O mesmo podemos dizer dos novos

conflitos surgidos entre pobres e ricos dentro da mesma sociedade e dos mesmos entre povos

de continentes ricos e pobres.

Sem dúvida, não podemos deixar de considerar que o uso dos psico-fármacos tem uma

vantagem evidente na superação da dor e, portanto, na criação de um bem-estar para as

pessoas. Mas, aqui também o fenômeno é ambíguo e podemos visualizar o aparecimento de

posteriores formas de mal-estar. Um grande exemplo, aqui, é o problema do consumo de

drogas e alucinógenos que assume proporções mundiais neste momento. Mas,

independentemente disso, podemos perguntar se uma vida sem dor é uma vida saudável, ou,

antes, ao contrário, não corresponde a uma evidente desumanização do ser humano. De certa

forma, uma vida sem dor não seria uma vida sem afeto e sem amor?

Infelizmente, as possibilidades atuais no transplante de órgãos não são ainda

satisfatórias, embora correspondam a um avanço inegável na conquista da saúde. Mesmo

assim, a sua realização será, certamente, fonte de novos desequilíbrios para a pessoa, vista na

sua totalidade. Sem olhar para o mito de uma vida sem fim, monótona, vazia e entediante,

percebemos que esta possibilidade é fonte de novos mal-estares na pessoa e na sua unidade de

corpo-espírito. Que será feito da dimensão corporal do ser humano numa situação de

substituição freqüente de partes do organismo como se tratasse de peças de um mecanismo?

Será isto uma situação de saúde perfeita?

De que maneira se pode conceber uma melhora da espécie humana, tal como oferecem

perspectivas as novas possibilidades da genética, mediante a eliminação de doenças? Não

criaremos novas formas de mal-estar e de conflito entre elites robustas e multidões de seres

comuns, não modificados?

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1.2.3. Uma crítica ao conceito moderno de saúde

Quando analisamos a visão da saúde humana própria da modernidade com as suas

idéias de desenvolvimento, e colocamo-nos na perspectiva de um autêntico bem-estar da

pessoa, precisamos reconhecer que corresponde a um real avanço da humanidade em

qualidade de vida, porém não deixa de se revelar ambíguo e cheio de deficiências.

A situação descrita acima faz coincidir o conceito de saúde com o avanço da

medicalização e com o correspondente acréscimo de prestígio e de poder por parte da classe

médica. Realmente, entende-se por saúde a ausência de enfermidades e uma grande

preocupação preventiva referente a possíveis infecções. No entanto, para além disso,

assistimos a uma medicalização de quase todas as fases da vida humana, sobretudo da

gestação, nascimento e infância, da fase terminal da vida que precede a morte. Porém, esta

expansão do âmbito médico cresce, também , em direção a outros aspectos da vida, como a

vida sexual, a nutrição, a educação física, o esporte, o trabalho. Tal aspecto “tem sido objeto

de crítica por parte de alguns observadores e fala-se até de uma febre higienista que é difícil

identificar com o conceito de saúde”10.

Outro ponto a ser considerado é que é justo reconhecer que a medicina moderna se

preocupa com o bem-estar do indivíduo na sua integralidade, não deixando de ter em conta as

interações entre vida física, psíquica e espiritual. Porém, o modo como lida com o corpo

humano ocasiona uma nova forma de objetivização do corpo que impossibilita a integração da

totalidade das dimensões do ser humano.

Apesar de certo acréscimo de derrota das epidemias e acréscimo de bem-estar,

assistimos, atualmente, ao aparecimento de novas formas de patologia tanto físicas como

___________________ 10 CUNHA, Jorge Teixeira da. Bioética Breve. Apelação (Portugal): Paulus, 2002, p. 16.

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psíquicas. Aqui, queremos realçar sobretudo estas últimas, por serem mais significativas para

o nosso propósito. A obra de Viktor E. Frankl é inequívoca: as sociedades modernas originam

novas formas de neurose provenientes das condições de vida que ele agrupa sob a designação

de síndrome da falta de sentido11. Trata-se de uma nova fonte de mal-estar que mostra como o

conceito moderno de saúde é gravemente imperfeito, visto desde a perspectiva do bem-estar

da pessoa como tal.

Numa palavra, podemos dizer que o conceito moderno de saúde privilegia

excessivamente os fatores da eficiência e da capacidade de fruição, ou seja, do gozo, da posse,

do desfrute, a capacidade de participar no processo produtivo das sociedades como condição

de ter acesso a fruir dos bens produzidos. Porém, reprime outras dimensões que fazem parte

do autêntico bem-estar da pessoa.

1.2.4. O conceito de saúde na Teologia

De um ponto de vista teológico, podemos apontar algumas dimensões que não

deveriam ser esquecidas pela cultura moderna, para que se possa avançar num programa de

autêntico bem-estar da pessoa.

Na busca da definição do que seja o bem-estar da pessoa, um ponto crucial é saber o

significado que se dá ao sofrimento. De acordo com o seu espírito muito próprio, o

pensamento ocidental evitou esta questão, tendo sempre colocado a sua atenção na parte ativa

do ser, isto é, na ação e não na paixão, no poder e não no padecer.

A teologia participa desse espírito, privilegiando, em geral os atributos de Deus

____________________ 11 Segundo Viktor Emil Frankl (Viena, 26 de março de 1905 – 2 de setembro de 1997), existe no ser humano um desejo de “sentido”. Percebeu que seus pacientes não sofriam exclusivamente de frustrações sexuais ou de complexos como o de inferioridade, mas também do que considerava ser o vazio existencial. A exigência fundamental da pessoa é a “plenitude de sentido”. Sua filosofia é fundamentalmente otimista e baseada na crença – fruto de sua experiência pessoal – de que o fim último da existência humana tem uma meta fora da própria pessoa, fim este que lhe dá o sentido da própria existência.

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18

enquanto poder e ação, deixando na sombra os aspectos de passividade12 e de abaixamento.

Durante muitos séculos, a cristologia e a soteriologia lidaram com visível desconforto com os

sofrimentos que acompanham a morte violenta de Cristo. Tal desconforto está visível nas

explicações elaboradas para esses sofrimentos. O sentido do sofrimento era tratado como

alheio à pessoa de Jesus e à sua relação com Deus. Por sua vez, a imagem de Deus que

aceitava ou tolerava o sofrimento do Filho era completamente inaceitável teologicamente. E,

no entanto, é necessário dizê-lo, o sofrimento e a morte de Jesus, além de serem conseqüência

da injustiça humana, são algo que tem a ver com a relação de Jesus com Deus e, por

conseguinte, têm um sentido para a condição humana.

Esta dissertação não tem como objetivo levar longe as implicações da afirmação

acima, porém, é importante justificá-la brevemente, tanto quanto baste para mostrarmos como

a integração do sofrimento na vida pessoal é um dado fundamental para quem deseja iluminar

o conceito de saúde como bem-estar da pessoa.

Sem cair num qualquer racionalismo para explicar o sofrimento da cruz de Cristo, o

teólogo François-Xavier Durrwell15 faz uma incursão profunda neste mistério. Aproveitando

da conhecida distinção da filosofia personalista entre as realidades que pertencem à ordem do

“ser” e as que pertencem à ordem do “ter", ele percebe como o sofrimento em geral pertence

ao “ter" e não pode de modo sadio ser amado pela pessoa. No entanto, aceite livremente, este

sofrimento pode sinalizar o autêntico altruísmo e o amor ao semelhante. Vivendo uma

condenação injustificada e absurda, no contexto de um processo injusto, Jesus abriu a sua

humanidade à plenitude de Deus e realizou humanamente a sua filiação divina. Porém,

continua o autor, existe na morte de Jesus um sofrimento que não é da ordem do “ter", e sim,

do “ser”: aquele a que se refere o grito “Meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 14,34).

___________________ 14Este termo, aqui, não deve ser entendido num sentido pejorativo, e sim, enquanto, aceitação do sofrimento, atribuindo-lhe um valor próprio, dentro de uma determinada realidade. 15DURRWELL, François-Xavier. Le Père. Dieu en son mystère. Paris, 1987, p. 62-74, apud CUNHA, Jorge Teixeira da. Bioética Breve. Apelação (Portugal): Paulus, 2002, p. 18-19. Durrwell é sacerdote redentorista.

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19

Este sofrimento pertence ao próprio âmbito da relação Pai e Filho. De acordo com a

cristologia personalista de Durrwell, o mistério da filiação divina de Jesus realiza-se numa

proximidade-distanciamento: Jesus é o Filho de Deus numa intimidade com o Pai, intimidade

esta que coincide com a distância existencial mais extrema que é a sua encarnação na

semelhança com a “carne pecadora”. Os psicanalistas lembram justamente que existe um

vestígio nas relações humanas deste mistério profundo: “o ser humano chega à

individualidade e à capacidade de relacionar-se mediante a condição de ser destacado,

primeiramente do corpo da sua mãe, posteriormente, separado da intimidade da sua família e,

finalmente, do seu corpo, na morte”16.

A partir destas breves observações teológicas, suficientes para afirmar um sentido

ontológico para a passividade e o sofrimento, podemos concluir que uma compreensão do

conceito de saúde apenas como eficiência e como capacidade de desfrutar prazerosamente

será necessariamente incompleto. Portanto, para chegarmos a um conceito englobante, temos

de incluir algo impopular mas imprescindível, que tem a ver com uma aceitação e certa

capacidade para o sofrimento.

1.2.5. Saúde, sofrimento e finitude

O famoso psicoterapeuta Viktor E. Frankl notou como a profissão do médico

confrontava-o com pessoas que sofriam, algumas das quais eram pessoas completamente

incuráveis e para as quais a condição sofredora tornou-se um destino inevitável. Desde já,

podemos nos perguntar se tal condição sofredora não pertence, mais cedo ou mais tarde, a

todos os seres humanos. Nestas circunstâncias, continua Frankl, será que o papel do médico

___________________ 16 CUNHA, Jorge Teixeira da. Bioética Breve. Apelação (Portugal): Paulus, 2002, p. 19.

Page 21: SUICIDIO E ETICA  uma  apreciação na GAUDIUM ET SPES TESE

20

reduz-se apenas à tarefa que tradicionalmente lhe é atribuída, ou seja, devolver ao enfermo a

sua capacidade de trabalho e de fruição, ou não será mais ampla, quer dizer, não significará

também dar ao enfermo capacidade de sofrimento?

O que entende Frankl por capacidade de sofrimento? Eis as suas palavras:

A capacidade de sofrimento não é, em definitivo, outra coisa do que a capacidade para realizar o que chamo valores de atitude. Com efeito, não é só a criação (correspondente à capacidade de trabalho) o que pode dar sentido à existência (caso este em que falo da realização de valores criadores), nem é só a vivência, o encontro e o amor (correspondentes à capacidade de prazer ou bem-estar) o que pode fazer com que a vida tenha sentido, mas também o sofrimento. E sublinhe-se que, neste último caso, não se trata apenas de uma possibilidade entre outras, mas da possibilidade de realizar o valor supremo, da ocasião de cumprir o mais profundo dos sentidos17.

Completando o seu ponto de vista, Frankl mostrou como esta dimensão de “homo

patiens” é independente enquanto à possibilidade de realização, em relação ao “homo faber”.

Enquanto este último refere-se à pessoa triunfante, dentro das coordenadas de uma ética

horizontal do êxito ou do fracasso, o primeiro move-se numa linha vertical cujas categorias

são o cumprimento ou o desespero. São dimensões com ordens diferentes e que funcionam

como variáveis independentes. Isso significa, como ensina a experiência, que é possível ao

“homo patiens” chegar ao cumprimento de si mesmo, ainda que no contexto do mais

contundente fracasso, ou seja, do extremo sofrimento. Sem dúvida, não tem sentido a pessoa

procurar ou consentir num sofrimento desnecessário, o qual não é serviço, mas petulância.

Diante de uma enfermidade, toda pessoa tem de fazer tudo para eliminar, antes de concluir

que é uma situação sem remédio. O mesmo se diga de uma situação de dor intensa causada

por uma enfermidade: quem não tiver força suficiente para enfrentar a dor, deve ser humilde

para aceitar ou pedir os meios analgésicos.

Podemos dizer que os dados acima apontados enriquecem a compreensão da saúde

como completo bem-estar da pessoa. O critério do bem-estar não pode ser apenas o da

____________________ 17FRANKL Viktor E. Ante el vacío existencial. Hacia una humanización de la psicoterapia. Barcelona, p. 93s., apud CUNHA, Jorge Teixeira da. Bioética Breve. Apelação (Portugal): Paulus, 2002, p. 21.

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21

eficiência criadora (“homo faber”), nem apenas o da integração emocional, afetiva e social

(“homo amans”), mas inclui também o do cumprimento ou do desespero, de acordo com a

capacidade de integrar o sofrimento e a finitude (“homo patiens”).

Além de Viktor Frankl, podemos ainda recorrer aos estudos de uma psicanalista

famosa – Françoise Dolto –, a qual nos oferece preciosas indicações sobre o papel da correta

focalização do desejo humano no bem-estar geral da pessoa e mesmo na investigação das

causas de muitas patologias de ordem física e psíquica18. O segredo da vida, da saúde e da

cura está na humildade do desejo, à força do qual, nestas condições, muito do que parece

impossível, na verdade, não é. Ela vê o ser humano envolvido nas suas diversas dimensões:

física, psíquica, social, espiritual. Esta última é como o ponto de chegada das outras e a chave

da sua correta orientação. Para Dolto, existe uma grande afinidade entre a saúde e aquilo que

a fé cristã chama salvação. Jesus Cristo é o Salvador enquanto viveu até ao fim uma vida com

desejo de perfeição e a comunica a todos através da fé. Mais do que ensinar uma moral, na

perspectiva de Dolto, Jesus iniciou a humanidade no desejo humilde, como forma de acesso à

palavra, à saúde, ao amor, a Deus, ou seja, à verdadeira vida na sua plenitude. A partir da

iniciação num desejo corretamente fixado diante de Deus e dos outros, dependem os milagres

de restituição à vida, de cura e os próprios exorcismos que Jesus fez em relação a algumas

pessoas do seu tempo e que a história da fé nunca mais deixou de registrar nas suas complexas

narrativas de serviço ao ser humano. Para ela, o fator espiritual e religioso, neste caso, do

fator cristão propriamente dito, fazer parte integrante do bem-estar completo da pessoa, bem-

estar que chamamos saúde.

____________________ 18DOLTO, Françoise. L’Évangile au risque de la psychanalyse. Paria, 1977, tome I et II; DOLTO, Françoise; SÉVERIN, G. La foi au risque de la psychanalyse. Paris, 1981, apud CUNHA, Jorge Teixeira da. Bioética Breve. (Apelação (Portugal): Paulus, 2002, p. 22-23).

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22

1.2.6. O conceito de saúde a partir da busca de um novo ethos

Conforme J. Moltmann, uma das possibilidades proporcionadas pelo desenvolvimento

técnico seria a substituição de um ethos de luta pela sobrevivência por um ethos de paz na

existência19. Trata-se de duas fases da evolução psicossocial, tanto das sociedades como dos

indivíduos. O primeiro é próprio dos estágios de afirmação da humanidade diante de uma

natureza cósmica e biológica adversa; o segundo é próprio da situação atual de um relativo

domínio do homem sobre a natureza. No primeiro caso, o homem vive preocupado com a sua

sobrevivência e a auto-conservação, agindo com egoísmo e competição; no segundo, pode

privilegiar a cooperação, a solidariedade. Enquanto que na primeira situação prevalecem os

indivíduos agressivos e neuróticos, na segunda pode-se viver uma existência mais desafogada

e capaz da alegria, do amor.

O conceito de saúde como completo bem-estar pode ser explicitado mediante esta

terminologia. Sem dúvida, temos de admitir que a humanidade está longe de chegar a um

completo domínio sobre uma natureza desfavorável, mas esse domínio é um objetivo a ser

projetado dentro de critérios que não vêm ao caso neste momento e que tocam com o respeito

pela finitude humana. O fato é que a civilização técnica chegou a um domínio suficiente para

poder respirar com alívio, como em nenhuma outra fase da história conhecida. Podemos, pois,

afirmar que o conceito de saúde depende essencialmente da transformação da atitude do

homem moderno relativamente aos seguintes pontos que parecem importantes: a atitude

perante a sua integração no cosmos e a sua constituição biológica; a sua integração na

sociedade; a sua atitude diante do sofrimento e da finitude. No que diz respeito ao primeiro

ponto, dizemos que a saúde depende da continuação da luta sem tréguas contra as infecções,

mas também do reforço da imunidade humana contra elas. O último aspecto faz referência ao

____________________ 19MOLTMANN, Jürgen. Etica e progresso biomedico. [s.l.: s.n.], p. 153-163, apud CUNHA, Jorge Teixeira da. Bioética Breve. Apelação (Portugal): Paulus, 2002, p. 23-24.

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23

fato de que a vulnerabilidade às infecções parece cada vez mais ligado com a atitude global da

pessoa diante da existência. Em relação a este ponto, podemos afirmar que uma vida pessoal

plenamente aceite é a definição de uma vida saudável. No que se refere ao segundo ponto,

dizemos que a saúde é um conceito-meta que tem a ver com a pertença a uma sociedade: uma

sociedade segregacionista e elitista é uma sociedade doente mesmo que tenha o melhor

sistema de saúde; à medida que aumenta a solidariedade, aumenta a saúde20.

Finalizando, dizemos que uma vida saudável é uma vida que integra o sofrimento, não

de uma maneira dolorista, e sim, como efeito da injustiça humana e como ponto escuro de

uma existência finita que, em último caso, faz sofrer por não poder ser de outro modo.

___________________ 20A valorização atual da solidariedade, cada vez mais qualificada e difundida, constitui um sinal dos tempos. De uns tempos para cá, percebemos a afirmação de uma nova consciência social sobre os laços de cada um de nós com categorias necessitadas. Constituíram-se espontaneamente comunidades e grupos que visam a atingir metas comuns de caráter social, econômico, político e religioso, e a fazer o que podem para que se percebam mais eficazmente os protestos contra o males sociais com vistas a obterem uma mudança. A palavra solidariedade suscita em muitos o desejo de contribuir para o acolhimento e a promoção do próximo necessitado de ajuda. Pode-se dizer que a solidariedade lembra sobretudo a idéia da unidade ativa em compartilhar as situações dos outros, em as pessoas se sentirem responsáveis por tudo o que de penoso, doloroso, ocorre com os irmãos, em projetarem e realizarem um eficaz socorro. O último número da Gaudium et Spes (93) inicia afirmando: “Lembrados da palavra do Senhor: ‘Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes una aos outros’(Jo 13,35), os cristãos nada podem desejar mais ardentemente do que prestar serviço aos homens do mundo de hoje, com generosidade sempre maior e mais eficaz”. Tomando a acepção de solidariedade numa perspectiva mais antropológica, percebemos que quando se falava de solidariedade no passado, pretendia-se recordar os deveres que uma pessoa era eventualmente chamada a cumprir em virtude de exigências de justiça comutativa e social. Agora, põe-se em evidência que é a própria constituição da pessoa que dela exige relações de solidariedade com os outros. Numa filosofia mais antiga, salientava-se a individualidade incomunicável da pessoa. Cada um era considerado responsável por seus atos; não podia nem devia dar conta ou responder pelo que não dependia do seu agir. O que ocorria fora de seu âmbito no máximo podia estimulá-lo a um gesto de caridade, mas isto não supunha responsabilidade direta. Na ética atual, certamente permanece a atenção à individualidade incomunicável da pessoa, porém esta se põe em estreita relação com sua configuração relacional fundamental. A pessoa é um ser autônomo, que vive essencialmente de relações interpessoais, ou seja, que se acha em constante diálogo com o próximo. A pessoa está em contato perene e irrenunciável com Deus, com o próximo e com as realidades mundanas. O eu não pode chegar à vida e alcançar seu estado adulto sem ser relação com o outro. O eu só se conhece bem olhando para o tu; só se promove sacrificando-se por alguém; não desenvolve cultura ou força operante sem estabelecer cooperação. Uma vida segregada no individualismo não é vida humana. A palavra com que se apresenta a pessoa conscientemente adulta não é “eu”, porém “eu-tu”. Dentro desta perspectiva, a solidariedade exerce função existencial fundamental. Ela faz perceber que o outro, seja quem for, é a metade da própria alma; por isso, a pessoa humana solidária não concede a si paz frente a alguém que sofre, principalmente injustamente. O ser humano de hoje, consciente, não atribui a Deus a responsabilidade pela existência de gente miserável (que, aqui, não se refere apenas ao aspecto material) na terra, pois sabe que Deus nos confiou a tarefa de prover o irmão necessitado, não só dando-nos um preceito explícito particular, mas pelo fato de nos haver criado como pessoas necessitadas de uma integração recíproca.

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24

1.3. O SUICÍDIO EM DADOS ESTATÍSTICOS

Não é fácil informar com precisão o número de pessoas que se matam ou tentam se

matar. Na verdade, praticamente é impossível. A quantidade de suicídios que consta das

estatísticas oficiais é extraída das causas de morte apontadas nos atestados de óbitos. Porém,

não é possível confiar sempre em tais atestados, pois é comum o fato de que a família e a

própria sociedade geralmente pressionam para uma falsificação. Isso acontece também em

países desenvolvidos.

Outra questão que serve para sustentar a afirmação da dificuldade na precisão dos

dados é a confusão de uma grande proporção de suicídios com acidentes. É bem possível que

“um quarto dos acidentes automobilísticos teria alguma intenção de suicídio (e já se propôs o

tema ‘autocídio’ para esses casos), e em torno de 50% dos suicídios reais seriam rotulados

como acidentes”21. Além disso, envenenamentos acidentais, de um modo especial em

crianças, e acidentes com produtos que causam intoxicação comumente são suicídios. Há,

ainda, situações nas quais os homicídios precipitados pela vítima podem, com freqüência, ser

considerados suicídios, mas não entram nas estatísticas.

Uma outra situação que complica também para uma maior exatidão estatística é a falta

de meios para identificar os suicídios inconscientes na comunidade. É aqui que se encaixa

uma grande parte, certamente, de acidentes e doenças. Mesmo que sejam fortes os indícios de

um comportamento suicida, o caso não aparece nos dados, como, por exemplo, uma pessoa

diabética que não aceita tomar medicamentos ou se esquece deles, ou, ainda, toma errado, por

“engano”. Quando acontece um falecimento, como o exemplo acima, é praticamente

impossível que conste como causa de morte o suicídio.

____________________ 21 CASSORLA, Roosevelt M. S. O que é suicídio. 5ª. Ed. São Paulo: Brasiliense, 2005, p. 91.

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25

Apesar dessas considerações críticas às estatísticas oficiais, há uma tendência, em cada

país ou região, de as taxas permanecerem mais ou menos constantes ao longo do tempo. Isso

significa que é impossível diferenciar grupos de países com taxas de suicídio altas, médias e

baixas. Os motivos que levam um país a pertencer a um ou outro grupo devem ser buscados

dentro de complexos fatores sócio-culturais, os quais, não é o caso analisar aqui.

Embora não seja objetivo deste trabalho estudar com pormenores um determinado

lugar, especificamente, é útil apontar aqui as taxas de suicídio de alguns países, conforme a

graduação classificada em altas, médias e baixas. Os países com maiores taxas se encontram

no leste da Europa (Lituânia: 51,6 suicídios por 100 mil habitantes; Federação Russa: 43,1) e

os que têm menores estão localizados mais na Europa Mediterrânea, América Latina e

sudoeste da Ásia (Grécia: 4,2; Portugal: 5,4; Colômbia: 4,5; Paraguai: 4,2; Filipinas: 2,1;

Tailândia: 5,6)22.

Apesar de o Brasil estar incluído entre os países de taxas pequenas, em torno de 6

óbitos por 100 mil habitantes, estas taxas estão subestimadas23.

No que diz respeito às tentativas de suicídio, as estatísticas são ainda mais falhas. Será

que é verdade o ditado “cão que ladra não morde”?

É senso comum que a pessoa que ameaça se suicidar não tem coragem de completar o ato suicida. Infelizmente, os dados revelam que essa afirmação não é verdadeira. Embora não existam estatísticas padronizadas oficiais sobre tentativas de suicídio como há para os óbitos, estudos comunitários revelam que nada menos que 1% a 5% das pessoas poderão tentar suicídio em algum momento da vida. Entre adolescentes e jovens, as taxas de prevalência em alguns estudos variaram de 3% a 20%, demonstrando que os atos suicidas são muito freqüentes [...].

As tentativas de suicídio são muitas vezes recorrentes: 14% a 50% das pessoas repetem a tentativa. Ao mesmo tempo, a história de uma tentativa prévia é possivelmente o mais importante preditor de suicídio completo. Na verdade, 10% a 14% dos que já fizeram alguma tentativa acabaram morrendo por suicídio. Ainda, 30% a 60% dos suicídios são cometidos após uma série de tentativas24.

Os dados oficiais das tentativas têm pouco valor, pois são registrados apenas alguns

____________________ 22Ib., p. 92-93. 23Ib., p. 93. 24 VOLPE, Fernando Madalena; CORRÊA, Humberto; BARRERO, Sérgio Perez. Epidemiologia do Suicídio. In: CORRÊA; BARRERO, Sérgio Perez. (ed.). Suicídio: uma morte evitável. São Paulo: Atheneu, 2006, p. 25.

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26

casos que demandam inquérito policial e precisam de socorro em hospitais públicos de

grandes cidades. Considerando esses dados, por exemplo, no Brasil, a taxa de tentativa de

suicídio chega a 10, e na cidade de Campinas – que fica a uma hora da capital paulista – 30

por 100 mil habitantes. No entanto, conforme uma pesquisa em hospitais que socorreram os

casos e visitas aos indivíduos em suas residências, nessa grande cidade do interior de São

Paulo, chegou-se a taxas de 150 a 160 por 100 mil habitantes, o que significa 1,5 tentativa por

mil habitantes, ou 1500 tentativas ao ano. Se tomarmos a cidade de São Paulo, considerando

uma população de 10 milhões de habitantes, assemelhando-se às taxas acima citadas, teríamos

cerca de 15 mil tentativas, ou seja, 42 por dia. Trata-se de taxas altíssimas, indicando um

problema de saúde pública e evidenciando uma situação similar à dos países desenvolvidos

com taxas mais fidedignas.

No mundo, cerca de 1.000.000 de mortes todos os anos são devidas ao suicídio, 10.000 são no Brasil. Se considerarmos que as tentativas de suicídio são aproximadamente dez vezes mais freqüentes do que os suicídios completos, temos então uma idéia dos custos sociais e econômicos desse problema, fora, naturalmente, o seu impacto e o sofrimento individual e familiar. O suicídio mata, no mundo, o mesmo número de pessoas que as guerras e os acidentes automobilísticos combinados, mas as políticas públicas têm uma preocupação infinitamente menor quando o assunto é o suicídio. No nosso país, a situação não é diferente e muito pouco, praticamente nada, existe em termos de políticas públicas de prevenção do comportamento suicida ou apoio aos familiares de suicidas25.

1.4. CONFUSÃO DA LINGUAGEM EM TORNO DO SUICÍDIO

O homem que mata outro homem, mata um homem. O homem que se mata a si mesmo, mata todos os homens; em relação a si próprio, ele elimina de si mesmo o

mundo inteiro. (G.K. Chesterton, citado em Holland, 1969, p. 82)26

A cada duas horas alguém, na Inglaterra, comete suicídio. Traduzindo em escala global, cerca de mil pessoas por dia tiram a própria vida, ou seja, em torno de uma a cada minuto. (Wetheimer, 1991, p. 1)27

____________________ 25 Ib. 26 FAIRBAIN, Gavin J. Reflexões em torno do suicídio: a linguagem e a ética do dano pessoal. São Paulo: Paulus, 1999, p. 13. 27 Ib.

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27

Há muitas razões e maneiras pelas quais as pessoas podem causar mal a si mesmas.

Algumas vezes, o resultado da ação é a morte. Naturalmente, nem todo tipo de prejuízo que as

pessoas causam a si mesmas é deliberado. Podemos exemplificar isso no excesso de comida

ou no hábito de fumar; são situações nas quais a pessoa não tem a intenção de prejudicar-se,

embora acabe fazendo-o.

Nem todo dano pessoal intencional que poderia levar à morte visa a própria morte.

Contudo, quando a morte acontece, na maioria das vezes, o fato é visto como um suicídio, um

ato de destruição pessoal intencional, pretendida e desejada. Quando a pessoa continua viva,

após ter agido dessa forma, geralmente usa-se a expressão tentativa de suicídio, mesmo

quando há pouca prova de que a sua intenção era, realmente, a morte.

Geralmente, tem-se uma visão de suicídio dando ênfase aos fatos externos, ou seja, a

presença de um cadáver, juntamente com a prova de que a pessoa tencionava assim proceder.

Na verdade, analisando bem, é conveniente concentrar-se mais nos fatos interiores do que nos

exteriores. Diferente do assassínio, por exemplo, que pode ser definido com critérios

principais nos fatos externos, o suicídio precisa ser definido mais em referência a fatos

internos, isto é, relacionados às intenções do indivíduo em questão. A natureza de um ato

depende não só do contexto em que é praticado, como também das intenções com as quais as

ações ou a seqüência de ações que as envolvem são praticadas. O ato de prometer, os atos de

devoção religiosa e o ato do suicídio dependem de algo que acontece com determinada

intenção da mente. Como se costuma dizer: “cada caso é um caso”. Em cada caso, a intenção

da pessoa no momento de agir torna o seu ato diferente daquilo que teria sido, se ela tivesse se

comportado da mesma forma, porém com uma intenção diferente.

Podemos exemplificar: um sacerdote pode recitar as palavras da oração eucarística e

distribuir o pão e o vinho consagrados enquanto pensa em outra coisa totalmente diferente.

Uma pessoa que presta um juramento de fidelidade pelo qual jamais irá revelar um segredo

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28

compartilhado com um amigo não está prometendo (mesmo dizendo o contrário), a não ser

que sua intenção seja sempre a de guardar segredo. Então, considerando um suicídio, há que

se afirmar que ele não o é por causa daquilo que a pessoa faz, ou por causa do lugar onde ele

acontece ou ainda o modo como se dá; é um suicídio conforme a intenção de quem o comete.

A incumbência

de decidir que tipo de ato representa um ‘suicídio’ aparente, como o que é realizado numa situação legal pelos investigadores no caso de morte suspeita, e em situações de atendimento prático por profissionais como médicos, enfermeiros ou agentes sociais, envolve um trabalho de detetive de caráter complexo, que coleta informações do passado do indivíduo, dos seus amigos, parentes, companheiros, testemunhas das suas últimas ações, se houver alguma, e toda prova empírica proveniente da cena que pode estar disponível28.

Fazendo uma análise a partir de um ponto de vista prático, uma pessoa que praticou

um dano pessoal intencionalmente, mas acabou não morrendo, pode realmente ter tido a

intenção de se matar. Portanto, é importante esclarecer quais as intenções físicas de quem

praticou um dano pessoal suicida, de modo que sejam tomadas decisões a respeito de como a

pessoa precisa ser tratada, do que será mais útil para ela, do que pode diminuir as

possibilidades dessa ação voltar a acontecer no futuro.

Certamente, podemos dizer que o método empregado não é um indício seguro da

intenção do suicídio. Exemplificando: a pessoa poderá morrer em conseqüência de um

acidente ao ameaçar ou simular um suicídio. A pessoa poderia cair acidentalmente de um

prédio de muitos andares ao ameaçar fazê-lo, embora não tivesse a intenção de realizar esta

ameaça; ou pode intencionalmente apertar o gatilho de uma arma carregada que julgava estar

descarregada, ou apertar o gatilho de uma arma que sabia estar carregada, mas sem a intenção

de usá-la. Num ato deliberado, mas espontâneo, a pessoa poderia fazer algo que pusesse fim à

sua vida, sem ter pensado nesta conseqüência, porque estava tão acabrunhada pelo pesar ou

pela frustração em relação à outra pessoa, que, por certo tempo, não conseguia controlar o seu

____________________ 28 FAIRBAIRN, Gavin J. Op cit., p. 20.

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29

próprio raciocínio.

Concluindo, podemos afirmar que por causa das dificuldades de saber o que o

indivíduo pretende com aquilo que faz, o suicídio e outras variedades de dano pessoal suicida

muitas vezes são mal interpretadas. Uma das razões por que ocorrem erros na determinação

da natureza dos atos suicidas que as pessoas praticam é que na maioria das vezes é difícil

saber qual era a intenção da pessoa naquele ato. Outra razão é que o modelo de dano pessoal

suicida adotado por muitas pessoas é restrito e relativamente não-elaborado. Como

conseqüência, há uma tendência para chegar a conclusões sem dar a devida atenção à

complexidade das pessoas cuja vida estão avaliando e em relação às quais irão agir.

Dentro dessas dificuldades ou da complexidade em torno do suicídio podemos

considerar as diferentes variedades do ato, quando se trama contra a própria vida. Algumas

considerações gerais sobre isto estão no próximo item.

1.5. FORMAS DE SUICÍDIO

Há várias maneiras de alguém suicidar-se. Evidentemente, o indivíduo pode suicidar-

se mediante uma ação ou ações pessoais, ou seja, pode causar ativamente um dano a si

próprio. Entretanto, o suicídio pode também acontecer pela ação direta de uma outra pessoa,

ou por omissões de ação do próprio suicida ou de outro, ou, ainda, por predisposição pessoal

do próprio suicida na forma de acontecimentos que ele pretende que vão matá-lo.

A primeira maneira – de uma ação da própria pessoa – é, com certeza, a mais

conhecida. Menos óbvio, porém, é a pessoa suicidar-se com a ajuda de outrem, como, por

exemplo, pedindo, implorando, forçando ou ordenando a alguém que a mate. Poderíamos

pensar que esta outra pessoa seria o agente de destruição do suicida, num ato de suicídio

assistido, mas já que o suicida a incumbiu de praticar o ato fatal, o suicida ainda seria o agente

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30

da própria morte, embora pela mão de uma segunda pessoa. Poderia ainda o suicida usar outra

pessoa para se matar, sem que esta segunda pessoa tivesse consciência do que estava

acontecendo. Exemplificando: poderia atirar-se na frente de um veículo que a pessoa estivesse

dirigindo.

Já o suicídio por omissão pode ser concretizado por meio da abstenção de uma ação ou

mediante uma ação. Desse modo, algumas mortes por causa de omissões, seja do próprio

protagonista ou de outra pessoa, devem ser considerados suicídios.

No caso da omissão do próprio suicida há duas possibilidades: deixando de praticar

alguma coisa que deve ser feita para seu próprio benefício, no bem-estar do seu corpo, ou

deixando de agir no intuito de evitar um dano que acabará sendo fatal.

Quando a omissão é da outra pessoa, há também duas possibilidades: um primeiro

exemplo seria o indivíduo pedir, implorar ou forçar outra pessoa que se abstenha de lhe

aplicar um medicamento que lhe preservaria a vida ou uma transfusão de sangue. Embora a

omissão seja de uma segunda pessoa, o suicida incumbiu-a disso, ao recusar um tratamento. É

uma situação que pode estar relacionada com a eutanásia voluntária e solicitada. Fazendo uma

análise do custo-benefício (por mais incompleta e hipotética que possa ser) em relação ao

próprio tratamento e ao prognóstico provável, a pessoa chegará à conclusão de que o custo

não justifica o benefício. Um segundo caso, na situação de omissão do outro, é mais raro, ou

seja, trata-se de exemplos mais difíceis de serem considerados. Caberia aqui um exemplo

como este: um soldado horrivelmente ferido e aterrorizado com a vida que iria enfrentar no

futuro, diante das lesões sofridas, pede aos seus companheiros que o deixem morrer no campo

de batalha, em lugar de levarem-no. A pessoa se suicida fazendo com que outras pessoas

deixem de evitar que ela se lese por uma fonte externa. Reforçando o que foi afirmado logo

acima, é uma situação que, apesar de possível, é difícil de acontecer.

Page 32: SUICIDIO E ETICA  uma  apreciação na GAUDIUM ET SPES TESE

31

Sem nos alongarmos nas considerações sobre as diferentes variedades do ato que pode

ser usado por suicidas, na tentativa de tramarem contra a própria vida, é importante nos

determos um pouco nos fatores que interferem na nossa maneira de pensar a respeito dessa

problemática, que é o nosso próximo assunto.

1.6. INFLUÊNCIAS EM NOSSA VISÃO DE SUICÍDIO

Quais são as influências que podemos ter em nossa visão a respeito do suicídio ou do

dano pessoal? Podemos considerar duas mais importantes: a medicina e a emotividade dentro

da linguagem em torno do suicídio.

1.6.1. A linguagem médica, em relação ao suicídio

Em nossa cultura ocidental, a medicina tem um grande destaque. Não podemos

desconsiderar que, não só antigamente, e, sim, ainda agora, os médicos gozam de autoridade

diante de seus pacientes. A linguagem médica está em tudo; ela permeia não apenas os

serviços humanos mais intimamente ligados à medicina, como a fisioterapia, a terapia

ocupacional e a psicologia clínica, como também outros serviços que têm um relacionamento

com a medicina mais distante, como é o caso do trabalho social e a educação especial. Aqui,

por exemplo, os professores de crianças com dificuldades de aprendizagem falam do “teste de

diagnóstico” sobre a habilidade da criança na leitura e na matemática.

Diante dessa rápida consideração da influência generalizada da medicina, podemos

afirmar que ela é responsável pela crença mais comum em relação ao suicídio. Qual crença?

Todo aquele que se suicida ou tenta o suicídio deve ser louco, já que ninguém que esteja são

Page 33: SUICIDIO E ETICA  uma  apreciação na GAUDIUM ET SPES TESE

32

poderia querer pôr fim à própria vida. Tal pessoa é considerada deprimida, no sentido de estar

mentalmente doente, e não apenas miseravelmente infeliz.

Quem acredita numa visão médica mais fechada do suicídio compartilha a convicção

de que, em razão da enfermidade ou da doença, aquele que danifica de forma suicida a sua

vida, é incapaz de um pensamento racional. Acredita, muitas vezes, que a sua doença o impele

a querer suicidar-se. Conseqüentemente, acredita que a medicina deveria intervir para tratar a

doença e prevenir a sua autodestruição. Até a psiquiatria, embora talvez tenha evoluído um

pouco no entendimento mais rico a respeito da variedade dos atos humanos que podem ser

caracterizados como “suicídio”, é ainda dominada por uma visão médica mais ortodoxa, de

modo que muitos psiquiatras acreditam que o comportamento suicida é sempre, ou quase

sempre, resultado de atitudes desajustadas, baseadas na doença mental, que precisam de ajuda

terapêutica29.

Há autores que parecem evidenciar que a abordagem do suicídio, como um problema

médico, assim considerado sempre, deve ser questionada. Por exemplo, Ringel escreve:

“Todo aquele que deu uma séria consideração científica ao problema do suicídio sabe que a

morte – o estado do não-ser – é em grande parte escolhida sob circunstâncias patológicas ou

sob a influência de sentimentos doentios”30.

Porém, o próprio Ringel parece ser favorável à idéia de que muitas pessoas que se

comportam de forma suicida não pretendem estar mortas, mas agir com a esperança de que,

de certa forma, serão salvas. Ele acredita que: “A força humana mais propulsora é a da auto-

preservação”31, dando a entender que o ato suicida acontece sempre em conseqüência da

angústia que faz com que a pessoa que quer suicidar-se cometa erros.

____________________ 29 FAIRBAIRN, Gavin J. Op. Cit., p. 47. 30 RINGEL, E. Suicide Prevention and the Value of Human Life. In: BATTIN M. P. and MAYO, D. J. (eds.). Suicide: The Philosophical Issues. London: Peter Owen, 1981, p. 206, apud FAIRBAIRN, Gavin J. Op. Cit., p. 47. 31 Ib., p. 48.

Page 34: SUICIDIO E ETICA  uma  apreciação na GAUDIUM ET SPES TESE

33

Devemos estar conscientes do conceito de ‘crise mental’ durante a qual existe um intenso conflito psíquico e, muitas vezes, como resultado direto disto, uma falsa avaliação da situação. A história trágica de Romeu e Julieta mostra como esta falsa interpretação pode levar ao suicídio32.

Se Ringel tem razão ao afirmar que a maioria das pessoas que buscam o suicídio não

pretende pôr fim à própria vida, isto dá a entender que a maioria dos que são considerados

suicidas talvez não o são, já que podemos conceber que apenas aqueles cujos atos visam

inequivocamente pôr fim à própria vida é que são suicidas.

Clare afirma que, “na prática, muitos psiquiatras... aceitam que existem casos de

autodestruição que não são consequência de doença mental”33.

Embora há uma aceitação comum da visão médica ortodoxa a respeito do suicídio,

existem os que discordam dela, até mesmo no interior da comunidade psiquiátrica. Para

Mitchell, a hipótese, geralmente defendida, de que todo indivíduo que apresenta uma

tendência suicida está, por este motivo, mentalmente doente, não é uma realidade necessária,

visto que o comportamento suicida “pode ser mais uma medida de angústia e de desespero do

que de distúrbio mental”34.

Para Curran e seus colaboradores, o suicídio ou a tentativa para o suicídio tem uma

relação com a depressão: “Muitas pessoas que cometem suicídio não têm uma verdadeira

doença psiquiátrica, mas estão em estado de sofrimento crônico, de solidão, não veem

nenhuma esperança de melhora, e decidem que, no cômputo geral, podem também morrer”35.

1.6.2. O efeito emocional na linguagem sobre o suicídio

____________________ 32 Ib., p. 210 (do original) e 48 (da tradução). 33 CLARE, A. Psychiatry in Dissent. London: Tavistock, 1975, p. 347. apud Ib., p. 48. 34 MITCHELL, A. R. K. Psychological Medicine in Family Practice. London: Baillière Tindall, 1971, p. 145, apud Ib., p. 48. 35 CURRAN, D. et al. Psychological Medicine: An Introduction to Psychiatry. Ninth edition, Edinburgh: Churchill Livingstone, 1980, p. 201, apud Ib., p. 49.

Page 35: SUICIDIO E ETICA  uma  apreciação na GAUDIUM ET SPES TESE

34

Além da medicina, uma outra influência importante em nossa visão a respeito do dano

pessoal pode ser apontada em relação a conotações emotivas ligadas à linguagem que usamos

para tratar do suicídio.

Podemos perguntar a nós mesmos: até onde a linguagem do suicídio nos dá

possibilidade de falar claramente a respeito dele? Será que as definições de suicídio não estão

muito dependentes de julgamentos prévios, em vista de justificações? É possível, com clareza,

afirmar de alguém que se sacrifica simplesmente em prol dos outros, que se trata de um

suicídio? E se considerarmos que, apesar de a pessoa poder voluntariamente ir ao encontro da

morte, este não era o fim que ela tinha em mira? Como pensar a situação de um pai que corre

para o interior da casa em chamas, com o intuito de salvar os seus filhos pequenos? Ele não

estaria fazendo aquilo que esperaríamos que fizesse um pai responsável pela vida dos filhos,

mesmo que percebesse estar sujeito a morrer? A questão fundamental a ser colocada é esta: a

morte era o alvo, em determinada atitude, e, se realmente era, por que era desejada? Se o

objetivo era morrer por morrer, pode-se falar de suicídio, caso contrário, não.

Beauchamp e Childress afirmam que “um sentido emotivo de desaprovação foi...

incorporado ao nosso uso do termo ‘suicídio’”36. Isto se justifica no fato de que a morte que

alguém se causa a si mesmo é, muitas vezes, inexplicável. Eles sustentam que, quando uma

pessoa que está morrendo de uma doença terminal consente intencionalmente na própria

morte, é difícil vermos esse ato como suicídio, mas se o paciente com doença terminal tira a

própria vida, através de um meio efetivo, por exemplo, o uso de um revólver, geralmente

concluiríamos esse ato como suicídio.

Qual é o motivo que leva as pessoas a pensar como suicídio a situação daqueles que

provocam a própria morte, pegando uma arma e disparando-a contra si mesmos, e relutar em

considerar um ato de alguém que provoca a própria morte, consentindo que ela ocorra, como

____________________ 36 BEAUCHAMP, T. and CHILDRESS, J. Princuples of Biomedical Ethics. New York: Oxford University Press, 1983, apud Ib., p. 52.

Page 36: SUICIDIO E ETICA  uma  apreciação na GAUDIUM ET SPES TESE

35

um suicídio? Uma razão plausível poderia estar na tendência de fazer a distinção entre causar

efetivamente a própria morte e, simplesmente, consentir que ela ocorra. Isto tem gerado um

debate interminável. Muitos acreditam que, enquanto consentir que os pacientes morram é, às

vezes, justificável, matá-los nunca o é. Certamente, podemos dizer que não é nada fácil, se é

que podemos considerar possível, estabelecer, essencialmente, a distinção moral entre matar

alguém e consentir que ele morra; na condição de atos, cada um deles é exatamente tão mortal

quanto o outro, e deve ser julgado de acordo com a intenção do agente.

1.6.3. O peso da expressão “cometer suicídio”

É comum referir-se ao suicídio como um “cometimento”. Porém, tal prática lingüística

formula o nosso raciocínio, fazendo uma ligação entre o suicídio e a área da vida humana em

que com mais freqüência falamos de atos que são cometidos, como de um crime. Sem dúvida,

não podemos desconsiderar a importância que a linguagem pode assumir na formulação de

atitudes relacionadas ao suicídio. Por isso, Barrington escreve:

Em si, a expressão tendenciosa ‘cometer suicídio’ destina-se a envenenar a mente insuspeita, com as suas falsas implicações românticas, pois, além da prática perigosa de se comprometer com uma opinião, muitas outras coisas cometidas são, como era outrora o suicídio, ofensas criminais37.

Nem sempre a nossa linguagem cotidiana é a mais correta ou precisa para a clareza

ética. O hábito de se referir ao suicídio como a um ato cometido está tão fortemente presente

em nossa linguagem, que se torna difícil encontrar meios alternativos de se expressar que não

sejam enganosos.

Observando certas expressões alternativas a “cometer suicídio”, percebemos que não

___________________ 37 BARRINGTON, M. R. The Case for Rational Suicide, in DOWING, A. B. and SMOKER, B. (eds.). Voluntary Euthanasia: Experts Debate the Right to Die. London: Peter Owen, 1986, apud Ib., p. 55.

Page 37: SUICIDIO E ETICA  uma  apreciação na GAUDIUM ET SPES TESE

36

convencem, enquanto substituição. Se tomarmos como exemplo a expressão “matar-se”, no lugar de “cometer suicídio”, pensando que a ressonância pode ser mais neutra, temos de

admitir que não se encaixa com precisão, porque a pessoa pode matar-se sem que a sua morte

seja, obrigatoriamente, o resultado de um suicídio. Alguém pode tomar um veneno,

acidentalmente, sem estar em sã consciência, sem a intenção de morrer. Mudar o verbo

“cometer” por “praticar”, “atuar” ou “fazer” também não deixará de ser inadequado.

A palavra mais adequada pode ser o próprio verbo “suicidar-se”, apesar de que, em si

mesmo, talvez seja difícil remover a idéia, inserida ao longo do tempo, com o uso da

expressão “cometer suicídio”, de que o suicídio se assemelha a um crime, mesmo que não o

seja. O benefício de suprimir a expressão “cometer” é deixar aberta a questão de decidir como

deve ser julgado o ato particular do suicídio. Nesse sentido, quando se afirma que alguém

“suicidou-se”, faz-se, simplesmente, uma descrição daquilo que aconteceu, da intenção de

agir de tal forma a pôr fim à própria vida porque desejava morrer; nada diz sobre as razões

que a pessoa tinha para agir desse modo; e isso não implica nenhum julgamento a respeito do

seu ato ter sido criminoso.

Quando se coloca o interesse na intenção do suicida, e não se ele tem ou não êxito no

seu intento, percebe-se que “suicidar-se” tem mais a ver com “amar” ou “escutar”, “pensar”,

“apreciar”, “concordar”, “consentir”, do que com os verbos como “competir”, “correr”,

“lutar”. Embora possa parecer um tanto quanto trivial, poderíamos afirmar que o suicídio tem

mais a ver com “tomar parte” no jogo de matar-se intencionalmente do que a “ganhar” o jogo.

Quando pensamos nestes verbos “competir”, “correr”, “lutar” e “tentar”, geralmente estamos

pondo mais acento no mundo exterior, enquanto que “amar”, “escutar”, “pensar”, “consentir”

são exemplos que parecem mais próximos de “suicidar-se” e dizem respeito mais a situações

interiores. Do mesmo modo que ouvir, pensar, consentir e amar, suicidar-se é uma atitude que

é fruto de acontecimentos diversos que se dão no interior da pessoa, e não, simplesmente,

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37

como algo que ele faz no mundo exterior, isto é, um ato “para fora”. Sem dúvida, há,

logicamente, uma repercussão externa, porém, o que representa o ato suicida é determinado

não por aquilo que a pessoa faz, mas por aquilo que ela tem intenção de fazer com aquilo que

faz, e, certamente, não há como não admitir que isto seja algo mais interior do que exterior.

1.7. “SUICÍDIO” E “TENTATIVAS DE SUICÍDIO”

Há que se considerar que a linguagem usada para analisar o suicídio e outras

variedades de dano pessoal é uma linguagem dispersa, vaga. Seja entre os profissionais, seja

entre o povo, tem-se o costume de agrupar sob o conceito de “suicídio” e de outras variantes

toda a série de danos pessoais que podem levar à morte. Tal situação é reflexo de um modelo

um tanto limitado de dano pessoal suicida, no qual faltam distinções mais claras.

Nossa linguagem e nossos conceitos influenciam-nos em relação às formas como

pensamos e podem também influenciar a nossa ação.

Observamos, anteriormente, que nossa visão das ações de dano pessoal suicida e

daqueles que se envolvem nelas pode ser influenciada pelas insinuações emotivas e moralistas

que acompanham tipicamente a “conversa em torno do suicídio”. Certamente, tal influência é

muito significativa, muito mais ainda sobre a forma como agimos em relação àqueles que se

comportam de forma suicida, já que o aparato conceitual e a linguagem de que dispomos são

muito pobres.

É interessante, aqui, neste item, revisarmos alguns termos, geralmente disponíveis,

para analisarmos e para nos referirmos aos atos suicidas e aos indivíduos que praticam ações

de dano pessoal suicida, bem como focalizar alguns problemas relacionados com os mesmos.

Especificamente, vamos nos ater mais no termo “suicídio” e sua variante “tentativa de

suicídio”.

Page 39: SUICIDIO E ETICA  uma  apreciação na GAUDIUM ET SPES TESE

38

1.7.1. Suicídio

Não é fácil definir suicídio, por isso, logo mais, vamos tratar mais

pormenorizadamente das dificuldades encontradas na tentativa de defini-lo e procurar

desenvolver uma definição. No momento, podemos dizer que a maioria das pessoas usa a

palavra “suicídio” para referir-se ao ato deliberado de se matar, feito por alguém que sabia o

que estava fazendo quando agiu. Conseqüentemente, no seu uso comum, a palavra “suicídio”

envolve uma pessoa que não só concretiza a própria morte, mas o faz intencionalmente.

1.7.2. Tentativa de suicídio

Trata-se de um termo inadequado e muitas vezes impreciso. Interpretado literalmente,

sugere que a morte era visada, apesar do agente não ter atingido o seu objetivo. No entanto,

muitas pessoas, cujas ações são classificadas como “tentativas de suicídio”, não tiveram a

intenção de morrer. Tal expressão é usada para se referir a uma grande variedade de situações

em que as pessoas se ferem, mas não chegam a morrer. Exemplificando, ela é usada em

relação a suicídios que falharam, considerando três situações: a) ocasiões em que a pessoa

feriu-se intencionalmente, de forma que poderia tê-la levado à morte, mas não se sabe ao certo

se desejava realmente morrer; b) ocasiões em que o indivíduo tencionava criar a ilusão de que

pretendia morrer, mas, na realidade, pretendia viver, e, c) ocasiões em que o encontro da

pessoa com a morte foi acidental.

Nesta última categoria, podemos citar duas variedades: o primeiro caso, quando,

apesar de ter agido intencionalmente para se ferir, a pessoa que se feriu não queria morrer; e o

segundo caso, quando nem sequer houve a intenção de se ferir, e a colisão com a morte,

embora proveniente de um ato intencional, foi o resultado de um erro de cálculo. Como

Page 40: SUICIDIO E ETICA  uma  apreciação na GAUDIUM ET SPES TESE

39

exemplo do primeiro caso, consideremos a pessoa que, ao tentar ferir-se superficialmente nos

próprios pulsos com um caco de vidro, corta-os, acidentalmente, longitudinalmente, em vez

de transversalmente, de forma que se causa feridas mais graves do que aquelas que pretendia

provocar. No segundo caso, podemos citar o exemplo do indivíduo dependente da heroína

que, em estado de drogado, injeta em si mesmo uma superdose; mesmo que tal ato seja

intencional, não significa que ele pretende morrer, ou, até mesmo, danificar-se.

Quando se dá pouca atenção à intenção da pessoa que age de forma a danificar-se,

tanto a má interpretação (e, portanto, a classificação errônea), como a classificação errônea (e,

portanto, a má interpretação) do ato de dano pessoal podem levar a um tratamento inadequado

e inútil da parte dos outros. Para dar um exemplo: se a expressão “tentativa de suicídio” é

levada ao pé da letra, as pessoas que são classificadas erroneamente desta forma podem ser

tratadas como se realmente quisessem morrer, e isto poderia levar, talvez, a serem

“particularizadas” numa repartição hospitalar psiquiátrica (isto é, sendo observadas

constantemente), como uma precaução contra nova tentativa que poderiam fazer. Esta

situação poderia levar tais pessoas a serem submetidas a uma pressão inútil; na pior das

hipóteses, esta pressão, por sua vez, poderia levá-las à prática de atos suicidas.

Na questão de saber se as pessoas que foram classificadas como aquelas que tentaram

o suicídio realmente desejavam tal tentativa, existem dois extremos. Num extremo, está a

visão de que, uma vez que a pessoa que realmente quer morrer acaba se matando, todos os

que praticam atos suicidas, mas não morrem, devem ser histéricos e querem atrair uma

atenção muito dramática. No outro extremo, existe a concepção de que todo aquele que

comete algo que poderia ser um suicídio, mas sobrevive, era ou deve ser tratado como se

estivesse realmente tentando se matar. Estes dois extremos podem levar a um tratamento

inútil, pelo menos para alguns daqueles que se danificam, mas não morrem. Entre tais

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40

extremos, existe a visão beneficente de que todo aquele que “tenta o suicídio” está dando um

grito de socorro.

Finalizando, podemos dizer que se a expressão “tentativa de suicídio” tende a ser

usada para abranger todos os atos de dano pessoal que poderiam levar à morte, mas acabaram

com a pessoa ainda com vida, o seu uso não oferece condições para uma distinção entre atos

de dano pessoal não-fatais de tipos diferentes. Assim, muitas vezes, é enganoso falar de

“tentativa de suicídio”, já que apenas alguns atos classificados desta forma é que realmente o

são.

1.8. RELAÇÃO ENTRE SUICÍDIO E INTENÇÃO

Para analisar a natureza moral dos atos pessoalmente danosos e também para

determinar se a pessoa foi realmente suicida é fundamentalmente importante um exame da

intenção, do desejo, da expectativa que a pessoa alimenta. Geralmente, quando se discute o

suicídio, a ênfase é dada mais ao estado em que a pessoa acaba chegando, e não o que ela

pretendia, quando agiu daquele modo. Certamente, a intenção das pessoas que se danificam

de forma suicida tem um papel importante na análise a respeito da natureza da sua atuação.

Embora se aceite que a questão de saber se um ato foi suicídio depende da intenção da

pessoa que o cometeu, nas decisões práticas, contudo, o que geralmente é levado em conta

não é a intenção real da pessoa, mas, antes, a intenção que os outros acreditam que ela teve no

ato. Ora, tais decisões podem basear-se numa consideração muito superficial das intenções

das pessoas que se prejudicaram e concentram-se, principalmente, na prova empírica da cena

do ato suicida. Por causa disso, pode-se fazer hipóteses a respeito daquilo que pretendia a

pessoa que se danificou de forma suicida, sem se refletir mais profundamente sobre a gama de

Page 42: SUICIDIO E ETICA  uma  apreciação na GAUDIUM ET SPES TESE

41

intenções que poderiam justificar esse ato naquelas circunstâncias38.

1.8.1. Um novo modo de ver o suicídio

Quando refletimos sobre o suicídio e sobre o dano pessoal suicida, convém ater-nos

aos acontecimentos íntimos que sustentam as ações suicidas, mais do que deter-nos nas

conseqüências dessas ações. Na visão comum, a morte é necessária para o suicídio, porém,

pode-se sugerir que todas as pessoas que querem morrer e que procuram intencionalmente a

concretização da própria morte deveriam ser consideradas suicidas, quer continuem vivas,

quer acabem morrendo. Enfatiza-se, pois, aqui, a importância da intenção da pessoa no seu

ato e o significado que tal ato possui para ela. Mais do que, portanto, um modelo de suicídio

consequencial, pretende-se observar o modelo intencional. Ao invés de se olhar apenas o

estado a que o indivíduo acaba chegando, observa-se mais o futuro, como foi planejado por

essa pessoa. Conseqüentemente, prima-se mais o que a pessoa faz do que com aquilo que ela

atinge, propriamente dito. Considera-se, então, primeiramente, o que a pessoa tem em mente

com a sua atitude, porque, os atos de quem acaba intencionalmente com a própria vida e de

quem tenta acabar, mas fracassa no seu intento, são atos do mesmo tipo.

Existe o argumento de que há diferença de intenções entre aqueles que se matam e os

que agem de modo semelhante, mas não morrem. Defende-se, nesta argumentação, que a

pessoa que deseja morrer pode assegurar que o faz, escolhendo um método de suicídio que

tem a probabilidade de ser bem-sucedido e, em seguida, dá os passos necessários para ter

certeza que não será salva. Mas, aqui, não se considera a probabilidade de que, mesmo

desejando firmemente a morte, a pessoa não a concretiza. Os passos podem até ser dados para

assegurar a morte, mas o intento sai fracassado. Aqui, pois, a pessoa deve ser considerada

____________________ 38 FAIRBAIRN, Gavin J. Op. Cit., p. 84.

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42

suicida ou não? Sim, certamente, se considerarmos que o suicídio depende mais daquilo que

se faz do que o fato concretizado como resultado final39.

Podemos dizer, pois, que para determinado ato ser um suicídio depende não do fato de

o indivíduo continuar vivo ou acabar morrendo, mas de saber se, ao agir daquela forma, o

objetivo que pretendia concretizar era realmente a morte. Isto significa aceitar que a pessoa

que, através de um ato de dano pessoal, acaba morrendo, não seria um suicida, a não ser que a

morte fosse aquilo que ela pretendia alcançar. Outra consequência, embora rara, que se pode

tirar do que foi exposto, é que uma pessoa que tem o desejo de morrer será considerada

alguém que se suicidou, se concretizar a sua intenção, mesmo que não acabe morrendo,

porém, não voltando atrás na intenção. Assim sendo, aqui, pode haver um suicídio bem-

sucedido quando existe a intenção e o resultado é a morte, e um suicídio mal-sucedido ou

fracassado, quando não há morte. Porém, tanto num caso como noutro, a pessoa será um

suicida.

1.8.2. A dificuldade da incerteza quanto à intenção

Não é fácil enfatizar a intenção de alguém, uma vez que ela nunca fica exposta ao

público. Assim como os desejos, as esperanças e os receios, as intenções são muito íntimas da

pessoa. Da mesma forma que é difícil saber a qualidade de vida que a pessoa tem ou os seus

sentimentos, é praticamente impossível precisar as intenções. Certamente, podemos fazer

conjeturas ou suposições em relação a elas e, observando o comportamento, levantar indícios.

Entretanto, podemos ser ludibriados e induzidos a acreditar que as intenções da pessoa sejam

diferentes daquelas que, realmente, são.

Diante desta constatação, podemos afirmar que as dificuldades em determinar as reais

____________________ 39 FAIRBAIRN, Gavin J. Op. Cit., p. 85.

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43

intenções do que se danificaram, quando agiram assim, nos levam à conclusão de que, muitas

vezes ou quase sempre, será impossível ter certeza se a pessoa que morre em consequência do

dano pessoal foi, de fato, um suicida. Conseqüentemente, o primeiro problema com a ênfase

da intenção é que as decisões a respeito das intenções dos que provocam a própria morte

sempre serão incertas. Na verdade, tais decisões serão mais hipóteses, baseadas em qualquer

tipo de conhecimento que podemos colher a respeito do estilo de vida da pessoa, de suas

crenças, do seu relacionamento com os outros e de qualquer outra prova física e social que ela

nos oferece.

Uma outra dificuldade, talvez ainda mais significativa, quando se põe ênfase na

intenção, é decidir em que momento a pessoa deve ter a intenção de morrer para que o seu ato

seja considerado um suicídio, uma vez que a pessoa pode mudar de intenção, mesmo depois

de tomar a iniciativa que irá provocar a sua morte. Assim como alguém pode ser um suicida

sem morrer, porque aquilo que pretende com seu ato é realmente morrer, assim também, a

pessoa pode morrer em conseqüência de um ato suicida que, num primeiro momento,

significa querer pôr fim à própria vida, porém, tal pessoa pode não ser um suicida se, pouco

antes de morrer, não deseja que isso aconteça, ou seja, lamenta o que acabou de fazer. Se, no

ponto em que a pessoa tomou a sua ação suicida intencional, ela deveria ser considerada um

suicida, não poderia, no entanto, deixar de sê-lo, num segundo momento, em que cessasse de

desejar a morte? O que faz da morte um suicídio é o fato da pessoa ter a intenção de acabar

morta. A definição de suicídio concentra-se em fatos íntimos.

1.8.3. Qual é a situação real de um suicídio?

Diante do que foi exposto acima, podemos responder a esta pergunta afirmando que:

Alguém que morre em conseqüência de um dano pessoal que visa a própria morte é um suicida se, e somente se, alimentou o desejo e a intenção de morrer até o momento em que cessou de ser capaz de alimentar as intenções e os desejos; em

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44

outras palavras, deve ter sido o seu desejo irrevogável ter que morrer. De modo inverso, alguém que pretende morrer por suas próprias mãos e pratica ações destinadas a concretizar a própria morte, mas não morre, é um suicida no momento em que dá o passo suicida, e continuará sendo enquanto a sua intenção e o seu desejo de morrer estiverem em andamento e enquanto ele esperar morrer em conseqüência deste seu ato40.

Portanto, uma pessoa pode morrer em conseqüência de um ato de suicídio, visto que o

ato praticado, quando praticado, foi um suicídio. Entretanto, no momento em que morrer,

pode não ser um suicídio. Dizendo de outra forma: a natureza do ato é transformada pela

mudança de intenção e de desejo que ocorre nela enquanto se aproxima da morte. Uma vez

que o suicídio se relaciona com o que a pessoa pretende com sua ação e que as intenções

podem mudar, mesmo após ela ter agido, a mudança de idéia e de intenção muda o ato

praticado. Apesar de alguém já ter começado com um ato suicida, o fato de ter mudado de

idéia modifica igualmente a natureza do seu ato, mesmo quando não seja possível modificar o

resultado. Concluindo, aquele que quer suicidar-se e muda de idéia não é mais suicida quando

morre, porque morre desejando continuar vivo.

1.9. BUSCA DE UMA DEFINIÇÃO DE SUICÍDIO

Será que é tão fácil responder a pergunta se o suicídio é correto ou não, quanto

responder, por exemplo, se o arsênico é venenoso?

Holland, num célebre artigo sobre o suicídio faz uma distinção entre as duas

perguntas, considerando que, enquanto a questão a respeito do arsênico é mais suscetível de

uma resposta, a pergunta em relação ao suicídio não parece tão simples de ser respondida.

Discorrendo sobre o arsênico, Holland afirma: “A pergunta de saber o que é venenoso

e a pergunta de saber se é venenoso são separáveis: pode-se saber que o arsênico é venenoso

____________________ 40 FAIRBAIRN, Gavin J. Op Cit., p. 97.

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45

sem ter analisado a sua natureza”41. Quanto ao suicídio, ele escreve: “Saber ou acreditar que o

suicídio é questionável é ter analisado a sua natureza ou ter interpretado o seu significado de

uma forma em lugar de outra forma”42.

Quando refletimos sobre alguns dos problemas que surgem, na busca de uma

definição formal do suicídio, notamos que não é possível chegar a uma norma prática que nos

ofereça condições de afirmar sem equívocos se determinado ato humano foi suicídio, já que

em grande parte isso depende do que não podemos afirmar, ou seja, o que havia na mente da

pessoa quando teve a iniciativa que a levou ou podia tê-la levado à morte, e o que havia em

sua mente após ter tomado aquela iniciativa. Apesar dessa dificuldade, é possível dizer algo

que possibilite decidir em relação a qualquer ato que, se foi um ato deste tipo, foi suicídio, e

se não foi, não se trata de suicídio.

Sabemos que, de um modo geral, a definição do suicídio está mais concentrada na

prova a respeito do estado da pessoa, depois de ter feito aquilo que realiza, ao suicidar-se, e

não enquanto está no processo de agir. Trata-se, pois, de uma definição baseada numa

maneira a qual chamamos retrospectiva. Porém, outra maneira de abordar é a prospectiva, ou

seja, o modo de definir o suicídio pondo o acento naquilo que o suicida pretendia com o seu

ato. Esta visão não considera aquilo que se concretizou, mas o que a pessoa esperava

concretizar, com o seu ato.

Como podemos saber que uma pessoa pretendia se matar? Levando em conta que as

intenções da pessoa são tão privativas, nunca podemos ter certeza daquilo que

verdadeiramente são; o máximo que podemos fazer é estabelecer opiniões sem certeza sobre

aquilo que a pessoa pretendia. Não podemos nos esquecer que, juntamente com o problema de

chegar a saber ou entender as intenções de alguém, existe igualmente o problema de decidir

se, ao agir, a pessoa está sendo racional, verdadeiramente.

____________________ 41 HOLLAND, R. Suicide. In: VESEY, G. (ed.). Talk of God, London: Macmillan, 1960, p. 32, apud Ib., p. 99. 42 Ib. p. 99.

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46

1.9.1. A relação entre racionalidade, entendimento e suicídio

Às vezes, argumenta-se que, para uma automorte ser considerada um suicídio, é

necessário que a pessoa que morreu tenha sido racional em sua intenção de concretizar a

própria morte. Se aqueles que defendem isso entendem que a pessoa não pode suicidar-se se

não for racional, podemos admitir que tal afirmação tem sentido, sim. A pessoa que não age

racionalmente não pode ser considerada autônoma. Sendo assim, podemos perguntar: embora

alguém que não seja autônomo possa tirar a própria vida, a sua morte seria um suicídio?

Porém, cabe aqui, mais uma observação e um outro questionamento: é possível que

alguém possa suicidar-se, agindo irracionalmente? Se considerarmos o que foi afirmado até o

momento, a resposta é não, mas ainda é preciso observar bem a ligação entre racionalidade e

autonomia. A pessoa pode ser tão irracional que se torna não-autônoma, mas pode também

agir irracionalmente e ao mesmo tempo conservar a sua autonomia. Isto é uma verdade,

quando consideramos que a racionalidade é uma questão de graduação. Ninguém de nós age

plenamente racional durante o tempo todo.

Podemos, pois, afirmar que há uma relação íntima entre a questão da racionalidade e a

do entendimento. Uma concepção mínima do que a morte pode significar e a consciência do

fato de que – além da convicção religiosa – trata-se de uma situação irreversível, são

necessárias antes que alguém possa desejar e pretender chegar a este estado e, assim, estar

capacitado para o suicídio. Parece, então, muito importante, que ao decidir sobre a natureza

do seu ato, deveríamos calcular o grau de entendimento da pessoa que pratica uma ação de

dano pessoal grave e o seu grau de consciência em relação àquilo que estava fazendo.

Vamos pensar em alguém que não compreende a natureza do suicídio e diz, seja para

si mesmo, seja para outra(s) pessoa(s), que pretende matar-se, mas, quando faz tal afirmação

não tem noção daquilo que representa estar morto. Pode ser que não compreenda que a morte

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47

é irreversível, que não será capaz de mudar de idéia (se é que tem alguma idéia) e reverter a

própria situação, seja ela qual for. Será que esta pessoa estaria se suicidando? Mesmo

matando-se ou embora pudesse afirmar que pretendia e poderia pretender concretizar uma

ação suicida, podemos dizer, realmente, que ela poderia pretender morrer, se não pudesse

imaginar o que representa a morte? Não é, pois, tão fácil afirmar uma situação real de suicídio

em um caso no qual a pessoa tem uma habilidade limitada de entender ou de imaginar um

estado de não-ser.

Não temos condição de pretender ser aquilo que não podemos compreender e isso vale

também para a questão de querer ser um morto. Então, se é necessário pretender morrer, para

o caso de um suicídio, a pessoa que é incapaz (em qualquer sentido) de saber o que é a morte

não poderia ser um suicida.

Alguém poderia, contudo, argumentar que, uma vez que não podemos ter a

experiência de morrer e de voltar à vida novamente, ninguém pode saber o que é a morte.

Todavia, aqueles entre nós que têm a capacidade de um pensamento racional e são capazes de

refletir a respeito da natureza da vida e da morte podem, ao menos, conceber o que pode ser a

morte.

Sendo assim, podemos considerar que, para acontecer verdadeiramente um suicídio, a

pessoa precisa pelo menos ser capaz de imaginar o que pode significar estar morta. Se ela não

tem um entendimento suficiente da vida e da morte para poder fazer isso, poderá até matar-se,

mas isso não significa suicidar-se. Também não é possível suicidar-se, dentro do que já foi

afirmado anteriormente, se a racionalidade da pessoa, por certo período de tempo, ficar tão

enfraquecida por fatores como uma angústia psicológica, uma dor muito grande, a insônia, os

efeitos das drogas ou uma série de situações caracterizadas como “doenças mentais”, a ponto

de ser incapaz do nível de reflexão.

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48

É importante, porém, considerar aqui que o que foi afirmado acima não significa

presumir que toda pessoa que age de forma suicida deve ter sido tão irracional a ponto de

torná-la não-autônoma, apenas devido ao modo como agiu. Proceder assim supõe que nunca é

possível desejar racionalmente estar morto (a) em vez de estar vivo (a). Enfim, o fato da

racionalidade da pessoa poder ser prejudicada em conseqüência de um distúrbio mental ou de

uma angústia não quer dizer que ela seja incapaz de suicidar-se.

1.9.2. Apresentando uma definição

Usando o vocábulo “suicídio” para fazer referência tanto a atos de dano pessoal

suicida de um tipo particular como àqueles que os põem em prática, podemos apresentar uma

definição tanto para os atos como para as pessoas, afirmando que:

O suicídio é um ato, tanto de cometimento como de omissão, realizado pela própria pessoa ou por terceiros, por meio do qual um indivíduo autonomamente pretende e deseja concretizar a própria morte, porque quer ser morto ou quer morrer uma morte que ele mesmo concretiza. Uma pessoa é suicida se inicia um ato, tanto de cometimento como de omissão, executado pessoalmente ou por terceiros, por meio do qual, autonomamente, pretende e deseja perpetrar a própria morte, porque quer ser morta ou quer morrer pela morte que ela mesma concretiza, contanto que alimente este desejo e esta intenção43.

Pode-se considerar que tais definições abrangem todos os casos de suicídio. Uma

pessoa é suicida se deseja intensamente concretizar a própria morte e toma a iniciativa para

pô-la em prática, mesmo que não acabe morrendo, contanto que não volte atrás no seu desejo

de morrer.

Das definições apresentadas acima, pode-se tirar três constatações: 1) a morte pode ser

concretizada tanto por omissão como por cometimento da parte do suicida ou de uma outra

pessoa; 2) a pessoa pode agir da forma que prevê ou pretende que irá concretizar a sua morte,

____________________ 43 FAIRBAIN, Gavin J. Op. Cit., p. 117.

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49

sem ser um suicida, visto que ela pode realizar o ato sem desejar a morte; e 3) existe uma área

nebulosa que envolve o suicídio, na qual acontecem atos realizados por pessoas que não

refletiram suficientemente bem naquilo que estão fazendo para ser verdadeiro afirmar que

aquilo que tencionavam era para ser feito em relação à vida. Pode-se, pois, considerar que tais

casos não sejam suicídios, já que algumas pessoas que pretendem matar-se, sempre ou quando

agem, não são autônomas.

Concluindo, podemos falar de um suicídio bem-sucedido, quando a pessoa morre em

conseqüência de um ato suicida, assim como há o suicídio mal-sucedido ou fracassado, se a

pessoa não vem a falecer. Se a pessoa age enquanto ainda é capaz de alimentar desejos, e

muda de idéia a respeito do desejo de morrer, não será mais um suicida, independentemente

de continuar vivo ou morrer, mesmo que tenha morrido em conseqüência de um ato de

suicídio.

1.10. DIFERENCIAÇÃO ENTRE SUICÍDIO E OUTRAS ATIVIDADES HUMANAS

1.10.1. Situações de envolvimento em atividades de alto risco

É importante diferenciar o suicídio de uma série de outras atividades de alto risco,

incluindo o consumo de tabaco, o uso de drogas que induzem ao prazer, como, por exemplo, o

álcool e outras drogas chamadas “pesadas”, o excesso de velocidade ao dirigir perigosamente

um veículo, escalar montanhas e saltar dependurando num cabo elástico. Apesar das pessoas

envolvidas nessas situações poderem ter consciência da possibilidade de que aquilo que estão

fazendo os levará à morte e aceitem o risco, não significa necessariamente que pretendem

morrer. Entretanto, em casos como esses, se a morte acontecer, será verdadeiro afirmar de

alguém que fuma ou que bebe demais, que ingere drogas, dirige em alta velocidade ou se

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50

envolve em esportes perigosos, que aquilo que está fazendo é “suicídio”, numa tentativa de

convencer a pessoa a mudar o seu comportamento, para que se torne menos perigoso. Sem

dúvida, envolver-se em atividades arriscadas é uma ameaça clara contra a vida. Porém,

afirmar “a priori” de alguém que se envolve em algumas dessas atividades, que aquilo que

está fazendo é suicídio, muitas vezes é usar o conceito de uma forma metafórica, figurada.

Há possibilidade, no entanto, de que ao menos algumas dessas atividades podem ser

acompanhadas da intenção de morrer e da expectativa de que a morte pode ser assim

concretizada. Há duas maneiras de a pessoa praticar tais atividades de forma suicida:

1ª) A escolha de atividades perigosas pode ser pelo desejo de morrer, prevendo que,

com o aumento das possibilidades de morte, a pessoa acabará morrendo em conseqüência do

que faz;

2ª) Quando mais diretamente concretizar a morte, a pessoa pode assumir um ritmo

particular de comportamento que ameaça a vida, com a esperança que, em curto prazo, a

morte aconteça, conforme o seu desejo.

A pessoa que opta por um desses comportamentos, esforçando-se para tramar a

própria morte, pode fazê-lo, porque, embora querendo morrer, considera-se incapaz de se

matar de forma mais direta. É possível que toda vez que a pessoa tente, venha a considerar-se

culpada, já que foi educada dentro do princípio de que o crime é errado. Pode ser ainda que,

simplesmente, falte coragem à pessoa, se não consegue imaginar que possa chegar tão perto

da confusão envolvida em alguns métodos de suicídio (aqueles que envolvem o

derramamento de sangue), nem consegue assumir o risco próprio de outros métodos

(principalmente, talvez, a ingestão de drogas e outros venenos), que, em vez de acabar na

morte, ela possa continuar viva, mesmo que horrivelmente inválida. Então, diante das

possibilidades apresentadas, a pessoa pode considerar mais fácil envolver-se numa atividade

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51

que acredita ter um alto risco de morte, imaginando ser inevitável que acabará sendo vítima

do destino e do estilo de vida perigoso que adotou.

Poderíamos citar vários exemplos do que foi exposto acima, mas vamos nos limitar a

dois, que são suficientes para ilustrar o que foi apresentado.

Uma pessoa pode adquirir o hábito de dirigir em alta velocidade, na esperança e na

expectativa de que acabará encontrando a morte; se ela dirigir o veículo em alta velocidade na

contramão, na hora do rush, pode virtualmente ter certeza de que irá encontrar a morte.

Um alpinista muito perspicaz poderia buscar o seu interesse, ao escalar montanhas em

detrimento de outros interesses mais seguros, com o intuito de se colocar em grande risco

tantas vezes quanto possível. A pessoa poderia até decidir tornar-se um alpinista porque

acredita que esta seria uma forma de assegurar a própria morte. Um exemplo bem claro de

ação suicida neste contexto seria quando uma pessoa, acostumado a escalar penhascos, se põe

a escalar além da própria capacidade, sozinha e sem qualquer proteção, em condições

precárias, com a intenção de se colocar numa situação em que a morte é muito provável.

Em cada um desses exemplos, bem como em outros, a pessoa que busca uma vida

arriscada, com a intenção de acabar na morte, será um suicida. Porém, quando esta pessoa não

pretende morrer, mas apenas aceita o risco da morte como uma conseqüência prevista mas

não intencional da sua atividade, de qualquer forma não será um suicida. Na verdade, muitos

alpinistas têm o desejo somente de chegar ao topo da montanha; muitos dos que se entregam a

excessos de álcool nada mais pretendem senão saborear o máximo possível o gosto de um

uísque; muitos viciados em drogas desejam simplesmente gozar das sensações que o uso que

fazem das drogas provoca neles, e, embora possa parecer muita insensibilidade, egocentrismo

e negligência, muitos daqueles que dirigem um veículo de forma aparentemente suicida

gostam apenas de dirigir em alta velocidade.

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52

1.10.2. Situações de envolvimento em ações heróicas

É necessário diferenciar o suicídio de ações heróicas em que a pessoa reconhece que

pode morrer ou irá acabar morrendo, mas não tem este desejo. Muitas mortes heróicas não são

suicídios, mesmo que a pessoa tinha a certeza de que iria morrer; não são suicídios, porque a

pessoa não pretendia morrer, mas apenas salvar aqueles que se propôs a isso. Podemos até

citar o exemplo de um soldado que se atira sobre uma granada para salvar a vida dos outros; a

intenção não é morrer e sim salvar. O caso seria diferente se houvesse uma escolha entre dois

métodos pelos quais ele poderia salvar os seus amigos, um dos quais acabaria em sua morte, e

o outro, com ele ainda vivo, e a opção fosse pela morte. Desde que ele conhecesse e

entendesse as opções, tal caso seria nitidamente um suicídio, já que a única razão que poderia

ter para fazer aquela opção seria que ele pretendia não apenas salvar os amigos, mas também

concretizar a própria morte.

Uma pessoa poderia suicidar-se através de ações que concretizam a sua morte, quando

salva ou tenta salvar outras pessoas de forma heróica. Podemos citar, aqui, o exemplo de um

pai que corre para dentro de um prédio em chamas numa tentativa de salvar os próprios

filhinhos. Certamente, muitos pais que fizessem isso não estariam fazendo outra coisa senão

aquilo que esperaríamos que todo pai comprometido faria; em outras palavras, eles agiriam

sem pensar em si mesmos, com o objetivo de salvar os próprios filhos. Caso acontecesse a sua

morte, ela seria aceita, e não abraçada alegremente. Porém, um pai nessa situação poderia agir

com a intenção não apenas de salvar, mas de pôr fim à própria vida. Por exemplo, ao perceber

que o filho iria morrer, e sentindo-se culpado pelo fato de tê-lo deixado sozinho dentro do

prédio, ele poderia precipitar-se para o interior do mesmo, numa tentativa inútil de lhe salvar a

vida, porque não conseguiria viver, caso o filho viesse a morrer, e, assim, optou pelo fim da

própria vida.

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53

2. A REFLEXÃO ÉTICO-MORAL TRADICIONAL E ATUAL EM TORNO DO

SUICÍDIO

2.1. INTRODUÇÃO

Quando observamos a realidade social, percebemos que ela deixou de ser um todo

mais uniforme e tornou-se um cenário plural de comunidades com reflexões ético-morais

diferentes. Dentro desse pluralismo, a reflexão ético-moral em torno do suicídio é o enfoque

desta segunda parte do trabalho. Observando essa reflexão ao longo da história da Igreja,

notamos que houve um interesse crescente em tomar conhecimento das condições humanas de

vida num mundo em crescente evolução e com transformações que interferem muito na

qualidade de vida.

Com um campo de visão mais aberto, proporcionado também pelo auxílio das ciências

humanas, notadamente o desenvolvimento da psicologia, a reflexão ético-moral a respeito do

suicídio tem procurado considerar cada vez mais a fragilidade da pessoa, fragilidade que é

conseqüência da desumanização em todos os âmbitos em que o ser humano se realiza ou atua.

Tal fragilidade nos interpela e necessita de nós. O suicídio é conseqüência de um processo de

dilaceramento profundo do eu da pessoa e que causa um número cada vez maior de vítimas.

No decorrer da história da filosofia e da teologia, podemos ver − como o texto a seguir

mostra − posturas em relação ao suicídio que se alternam entre uma posição de até

condenação da pessoa suicida e o esforço de uma compreensão mais profunda do emaranhado

de situações complexas que a envolvem.

Tendo em vista uma reflexão ético-moral que oferece uma visão mais ampla,

reconhecendo o verdadeiro impacto das emoções na saúde das pessoas, deve-se considerar

que

“Razão e coração precisam dialogar sabiamente com uma inteligência ética integrada, que supere o racionalismo e o emotivismo para humanizar a vida, pois

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54

não é a mesma coisa ser humano e viver humanamente, e justo esta última é a tarefa que nos foi confiada − a todos nos que vivemos”44.

2.2. O PROBLEMA DA EXISTÊNCIA

Quando temos conhecimento de que uma pessoa conhecida tirou a própria vida, tal

notícia gera uma inquietante pergunta, principalmente se se tratar de alguém querido ou uma

pessoa próxima a nós. Qual é o sentido desse gesto? O que motivou aquela pessoa a agir

assim? Qual é a mensagem que está por trás? Não é incomum que a pessoa suicida consiga

fazer aparecer um sentimento de profunda inquietação e de culpa, e, às vezes, um sentimento

difícil de sair da mente dos que o trazem consigo, porque reapresenta de um modo dramático

o problema da existência.

As filosofias contemporâneas têm sido unânimes na concepção de que a existência é o

traço distintivo específico do sujeito pessoal, e insistem no valor absoluto da pessoa, que não

é nem res (coisa), nem objeto, nem simplesmente parte da natureza ou um momento na

evolução cósmica, mas é algo existente em si, com valor próprio e liberdade, mas situada, ou

seja, encarnada num corpo e manifesta ao mundo.

Mounier45 transcreveu, quase literalmente, a tese marceliana46:

____________________ 44BERMEJO, José Carlos. Humanizar a saúde: cuidado, relações e valores. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 13. 45Emmanuel Mounier (Grenoble, 12 de abril de 1905 – Châtenay-Malabry (França), 22 de março de 1950) foi um filósofo francês, fundador da revista Esprit e raiz do personalismo. As obras desse filósofo influenciaram a ideologia da democracia cristã. Na sua obra O Personalismo, Mounier apresenta-nos uma filosofia que escapa a todas as sistematizações, justamente porque assente na pessoa que é livre e sempre imprevisível. As reflexões de Mounier tiveram a pessoa no centro, constituindo um novo modo de pensar que se veio a designar por “personalismo”. O personalismo foi um movimento com a intenção de identificar a verdade em toda a circunstância, acreditando que o problema das estruturas sociais era econômica e moral e a saída para isso estava na teorização e na construção de uma “comunidade de pessoas”. A idéia central do pensamento personalista é a idéia de pessoa na sua inobjetibilidade (o homem não consiste num simples conjunto de matéria), inviolabilidade, liberdade, criatividade e responsabilidade, de pessoa com alma encarnada em um corpo, situada na história e constitutivamente comunitária. 46Gabriel Marcel (1889-1973) foi filósofo e escritor francês. A sua reflexão profunda sobre a existência concreta situa-o na corrente filosófica existencialista, isto é, uma filosofia fundada sobre a descrição das situações e dos sentimentos humanos. Marcel imprimiu a esta corrente do pensamento um caráter cristão. A sua reflexão funda-se sobretudo nas relações humanas (onde a noção fundamental é a de “fidelidade”) e sobre a noção de outro, que conduz à noção de Deus. Marcel faz parte de uma geração de filósofos cuja especulação filosófica tem como ponto de partida a sua própria experiência pessoal. Ele recusou conceber a vida enquadrada num sistema, porque, segundo ele, não existem sistemas de vida, mas unicamente sistemas de pensamento. Com efeito, não é sensato

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Eu sou pessoa desde a minha existência mais elementar; longe de me despersonalizar, a minha existência encarnada é um fator essencial do meu ser pessoal. O meu corpo não é um objeto entre os objetos, nem sequer o mais próximo dos objetos. Se fosse objeto, como se uniria à minha experiência de sujeito? De fato, as duas experiências não se dão separadas. Eu existo subjetivamente e eu existo corporalmente são uma e a mesma experiência. Não posso pensar sem ser, nem ser sem o meu corpo. Por ele estou exposto a mim mesmo, ao mundo e aos outros. Pelo corpo, escapo à solidão de um pensamento, que se reduziria a pensamento do meu pensamento. O corpo me projeta sem cessar para fora de mim. O corpo é o mediador onipresente da vida do espírito47.

Para E. Mounier, nós existimos enquanto nos relacionamos com os outros. Além de

ser um acontecimento, a existência é um encontro. O outro se dá a mim como um tu, como

presença não objetual. A pessoa vive relacionada com outras, em comunhão com os outros.

No encontro, a presença do outro se oferece a mim de forma imediata. Não capto a idéia dele,

e sim, a pessoa mesma que se revela a mim em resposta pessoal. O teólogo e pastor luterano

Paul Tillich48 afirmou bem: “Somente no encontro com outras pessoas a pessoa chega a ser e

___________________ pretender enquadrar o ser humano, com todas as suas fraquezas, vícios e virtudes, vontades e particularidades, em sistemas pré-determinados. Marcel estava plenamente convencido de que só no quadro de uma filosofia concreta é possível pensar e compreender o homem, mas o homem das vivências reais, aquelas que cada um vive. A metodologia marceliana consiste em irmos ao encontro “do nosso próprio eu” e aprender o que há de mais original e pessoal em nós, no sentido de compreendermos o ser que somos enquanto estamos em situação, enquanto vivemos cada situação. É este percurso reflexivo que permite descobrir o sentido da vida. Apesar de todos os obstáculos, o homem tem uma enorme capacidade de renovação da esperança. Com efeito, esta é, ao mesmo tempo, uma atitude espiritual perante o conhecimento das situações dramáticas e uma resposta a essas mesmas situações. É uma atitude espiritual, na medida em que o homem de esperança vive em estado de disponibilidade e de crença na possibilidade da superação daquelas situações. É uma resposta, porque não se deixa inebriar pelo quadro desesperador em que está envolvido. Desesperar parece ser uma condição da situação humana. Porquanto, só tem sentido falar de esperança se admitimos a possibilidade de estar sujeitos a estados de desespero. Tanto aquela quanto este têm um lugar permanente em nossa vida. No entanto, a esperança é como que uma força interior classificadora que se manifesta nas horas mais difíceis, enquanto que o desespero obscurece a nossa capacidade de discernimento. Para Marcel, o único caminho para superar o desespero é, de fato, a união convivencial e o amor. Seguro dessa realidade, ele aconselhou a multiplicação das relações humanas e a lutar, com todas as forças, contra o anonimato descaracterizador da pessoa humana, que vigora no tempo atual. A relação entre aquele que espera e a realidade esperada toma a forma de uma relação entre eu-tu, em que o tu é assumido como um Tu absoluto. Relação que constitui a essência profunda da esperança, uma vez que é nela que, em última análise, nos confiamos. Deus é o Tu supremo e transcendente que eu conheço pela fé, cuja invocação, a oração, permite a recuperação do meu ser, quando me encontro em situação de perdição, prestes a me desesperar. 47MOUNIER, E. Obras completas III. Salamanca: Sígueme, 1990, apud CARMONA, Feliciano Blásquez. Existência. In: Dicionário do Pensamento Contemporâneo. São Paulo: Paulus, 2000, p. 302. 48Nascido na Prússia Oriental, Paul Tillich (1886-1965) teve, como objetivo principal da sua obra, reconciliar religião e cultura, desvelando notadamente um divino presente no fundamento mesmo de toda a realidade. Para chegar a tal meta, Tillich pôs em ação primeiramente um método chamado de “correlação”. A teologia dele, como sua vida, situa-se na fronteira de dois mundos ou de duas realidades. Não se trata tanto de uma fronteira como traço de separação, e sim como elemento de articulação de duas realidades que convém fazer entrar em correlação recíproca. Assim, os dois mundos representados pela fé cristã, de um lado, e pela cultura, do outro, longe de se opor, são chamados a se esclarecer mutuamente e a revelar todas as suas potencialidades recíprocas. As verdades da fé vêm responder às perguntas existenciais que caracterizam a condição humana. Deus aparece como a profundidade mesma do ser, de todo ser. Ele se apresenta como a realidade última da qual cada um se

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continua a ser” 49. Podemos dizer que enquanto o indivíduo é dispersão e avareza, a pessoa é

comunhão, comunicação, conversão, liberdade e compromisso. O indivíduo é a metafísica da

solidão, enquanto que a pessoa é a metafísica da comunidade. A pessoa é um dentro que tem

necessidade de um fora e este fora é a comunidade. Tal comunidade não significa um

coletivismo, nem uma sociedade anônima, mas uma pessoa que une as pessoas pelo coração

delas. As verdadeiras comunidades são realmente, e não metaforicamente, pessoas de pessoas.

Ora, diante dos questionamentos em torno do suicídio, buscam-se respostas, que, em

parte, procuram sondar a misteriosa intimidade da vítima e, em parte, encaminham-se para

possibilitar que cada um tranqüilize a si mesmo. A filosofia e a reflexão ética expressaram

tradicionalmente uma avaliação abstrata do fenômeno, considerando-o do ponto de vista

objetivo como algo moralmente ilícito. A abordagem do fenômeno, por meio dos

instrumentos da psicologia e da sociologia, de algum tempo para cá, tem alterado as respostas

imediatas, como também as reflexões abstratas. Apesar disso, o aspecto que torna hoje mais

atual o problema do suicídio está estreitamente ligado às transformações culturais relativas ao

significado da vida e da morte.

Enquanto “re-flexão”, a pesquisa moral necessita voltar-se sobre a realidade, sem

separar-se dos fenômenos sociais e das interpretações culturais de nosso tempo, visto que tais

fenômenos mudam a imagem que a pessoa tem de si, de seus direitos e deveres. Isto significa

que só podemos refletir de modo válido do ponto de vista ético, partindo da base de adequado

conhecimento do fenômeno por meio dos dados da ciência positiva.

____________________ sente dependente, que nos aborda incondicionalmente, e à qual todos aspiram. A vida nova, revelada em Cristo e manifestada por seu espírito, se revela conjuntamente na fé e na potência de reconciliação que a anima. No nível individual, esta reconciliação se contrapõe à angústia e permite à coragem de ser afirmar-se como fé e desdobrar-se como amor. 49TILLICH, Paul. El coraje de existir. Barcelona: Laia, 1973, apud CARMONA, Feliciano Blásquez. Existência. In: Dicionário do Pensamento Contemporâneo. São Paulo: Paulus, 2000, p. 302.

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57

2.3. ABORDAGEM TRADICIONAL

A moral tradicional se ocupou com o suicídio “direto”, entendido como o ato pelo

qual a pessoa se dá diretamente a morte, com liberdade e conhecimento de causa. Não é

interesse nosso, aqui, ocuparmo-nos com aquele suicídio que os moralistas chamam indireto,

nem das pessoas que tiram a própria vida em estado de alienação mental.

A moral e a disciplina canônica da Igreja estão inspiradas fundamentalmente na

revelação bíblica, segundo a qual toda vida humana, sem exceção, é um dom de Deus Criador

e objeto de especial predileção de Jesus Cristo. Isso significa que o homem jamais é

proprietário radical de sua vida, e sim, apenas fiel e zeloso administrador, sendo que deverá

prestar contas a Deus.

Quando os cristãos entraram na história da humanidade, fizeram-no dentro de uma

cultura que idealizava o suicídio, chegando ao ponto até mesmo de aconselhá-lo como um ato

de heroísmo. Tal situação se explicava considerando que, por um lado, o homem não era

considerado vinculado radicalmente a Deus, e sim, ao Estado. Por outro, o suicídio era

recomendado em vista de uma afirmação da autonomia absoluta do homem, seja diante das

misérias da vida, seja como manifestação orgulhosa da auto-suficiência humana. Essa era a

mentalidade de muitos e importantes filósofos e pensadores da Grécia e de Roma, quando os

cristãos irromperam formalmente na história. Alguns daqueles veremos a seguir.

2.3.1. O suicídio para o estoicismo

Quando observamos a história, encontramos uma dupla avaliação a respeito do

suicídio. Assim, os estóicos formulavam em certos casos um juízo positivo50. Sêneca, por

____________________ 50 O estoicismo pregava o cosmopolitismo, considerando que o homem devia ser um cidadão do mundo. A filosofia estóica estava presente em todas as classes sociais e conseguiu vigorar por muito tempo, porque, em

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exemplo, condenava o suicídio cometido somente pelo desejo de morrer, ao passo que

aprovava quando se tratava de uma atitude de dignidade e coragem51. É dele o trecho abaixo,

do fim da carta “Sobre a Providência Divina), em que ele dá voz a um deus que se dirige aos

seres humanos, ensinando-os e aconselhando-os:

Mas acontecem muitos sobressaltos tristes, horríveis, duros de se agüentar. Como não podia afastar-vos deles, armei vossos espíritos contra todos: suportai bravamente. Nisto vós estais à frente de um deus: ele está à margem do sofrimento dos males; vós, acima do sofrimento. Desprezai a pobreza: ninguém vive tão pobre quanto nasceu. Desprezai a dor: ou ela terá um fim ou vos dará um. Desprezai a morte: a qual vos finda ou vos transfere. Desprezai o destino: não dei a ele nenhuma lança com que ferisse o espírito. Antes de tudo, tomei precauções para que ninguém vos retivesse contra a vontade; a porta está aberta: se não quiserdes lutar, é lícito fugir. Por isso, de todas as coisas que desejei que fossem inevitáveis para vós, nenhuma fiz mais fácil do que morrer. Coloquei a vida num declive: basta um empurrãozinho. Prestai um pouco de atenção e vereis como é breve e ligeiro o caminho que leva à liberdade. [...] A isso que se chama morrer, esse instante em que a alma se separa do corpo é breve demais para que se possa perceber tão grande velocidade: ou o nó apertou a garganta, ou a água impediu a respiração, ou a dureza do chão arrebentou os que caíram de cabeça, ou a sucção de fogo interrompeu o respirar; seja o que for, voa. Por acaso enrubesceis? Passa rápido o que temestes tanto tempo!52.

2.3.2. A visão negativa do ato suicida em Platão e Aristóteles

Em contrapartida a Sêneca e aos estóicos, foram contrários ao suicídio na antiguidade

Platão, que via nele um ato de insubordinação contra a divindade (Fédon, 6)53 e Aristóteles,

____________________ primeiro lugar, considerava que a ética e as questões morais, ou seja, “a arte de bem viver”, eram mais importantes do que as questões teóricas. Nesse sentido, era uma filosofia prática. Mas esse “bem viver” dos estóicos não significava uma busca insaciável de prazer. Para o estóico, enquanto o animal é guiado pelo instinto, o ser humano é orientado pela razão. O mundo que a razão apresenta ao homem é a natureza e não existe nada superior a ela. Deus, portanto, não está fora da natureza, mas impregnado nela. Uma vez que a natureza é governada pela razão divina, tudo tem um motivo para ser e nós não podemos mudar isso. Conseqüentemente, nossa atitude frente às adversidades e à própria morte deve ser de serena resignação. Assim, o ideal do estoicismo é atingir a ataraxia ou apatia, ou seja, a indiferença em relação a todas as emoções. Isso é possível pela prática da virtude. Os estóicos suportavam as adversidades com calma e dignidade, mas também acreditavam que as circunstâncias da vida de uma pessoa podiam se degradar a tal ponto (seja devido a uma tragédia pessoal, à ruína e a subseqüente miséria, seja devido a uma doença dolorosa e terminal), que um suicídio indolor se tornava a coisa mais racional a fazer. 51 Sêneca (cerca de 2 a.C. – 65 d.C.) foi um dos grandes expoentes da escola filosófica do estoicismo. Muitos estóicos se suicidaram, entre eles o próprio Sêneca. 52 OLIVIERI, Antonio Carlos. Indiferença, renúncia e apatia estóica. Disponível em: <http://educacao.uol.com.br/filosofia/ult3323u17.jhtm>. 53 PELLIZZARO, Giuseppe. Suicídio. In: Dicionário de Teologia Moral. São Paulo: Paulus, 1997, p. 1188. (Dicionários).

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59

que o considerava ato vil, contrário ao bem social (Ética a Nicômaco).

Discorrendo sobre o suicídio na Grécia Antiga, Fábio Henrique Lopes54 afirma que

Aristóteles aborda tal fenômeno de modo mais categórico. Para ele, o suicídio é um ato

qualificado como uma injustiça não apenas contra a própria pessoa, mas também contra a

cidade. Dessa forma, o sujeito que se matava era visto por Aristóteles como alguém fraco.

Consequentemente, o ato suicida significava uma fraqueza diante das nossas

responsabilidades. Aristóteles chegava a comparar um sujeito que se mata a um soldado

desertor. Para Aristóteles, o homem que é verdadeiramente bom e sábio deve suportar com

dignidade todas as contingências da vida, procurando tirar sempre o maior proveito das

circunstâncias, como um general que faz o melhor uso possível do exército sob o seu

comando ou um bom sapateiro que faz os melhores calçados com o couro que lhe oferecem.

Conforme a compreensão de Aristóteles, o homem deveria ser formado para suportar

as contingências da vida e aguardar sua morte, não produzi-la. A maneira de viver, aqui

proposta, não permitiria um tipo de liberdade e uma tomada de si que pudesse produzir a

____________________ A pretexto de narrar os últimos momentos da vida de Sócrates, seu mestre e que marcou o seu pensamento, Platão apresentou pela primeira vez, de modo sistemático, uma tese sobre a natureza imortal da alma humana e a teoria das idéias ou formas. Na obra “Fédon”, Platão introduz o tema da imortalidade da alma, refletindo primeiro sobre o que é ou deve ser o verdadeiro filósofo, apresentando dois pontos essenciais: “o que é morrer?” e o “suicídio”. Fédon, nome de um discípulo de Sócrates, que intitula essa obra, começa em casa de Equécrates, onde ele mesmo se dispõe a contar o sucedido a Sócrates no cárcere, pouco tempo antes de ser executado. Assim, inicia o seu relato, expondo a razão que levou Sócrates a esperar algum tempo pela morte. Durante o tempo de espera pela morte, Sócrates fala com os seus discípulos sobre os temas já acima referidos. Mas não só. Dedicou-se também à literatura, pondo em verso fábulas de Esopo e escrevendo um hino a Apolo. E foram estes seus trabalhos que possibilitaram a introdução ao tema que, por sua vez, inicia todo o resto da obra: “como o filósofo encara a morte?”. Isso sucede quando, no prólogo, Cebes, discípulo de Sócrates, dá a conhecer ao seu mestre que muitos se admiravam com a sua súbita e estranha dedicação à escrita, inclusive Eveno, poeta e sofista de Paros. Sócrates mandou que lhe respondesse que não tinha sido para rivalizar com ele que escrevera, mas por causa de certos sonhos que tivera, e que, se era realmente sábio, que o seguisse (“...me siga o mais breve possível”). Neste ponto e à primeira vista Sócrates dá a entender que Eveno deveria morrer, mesmo que para isso tivesse que recorrer ao suicídio. No entanto, ele não encara a morte como um fim, mas como “katharsis”, ou seja, purificação. Pela boca do seu mestre Sócrates, Platão começa, então, por apresentar o suicídio como uma impiedade para com aquele que põe fim à própria vida. Assim, que se suicidar estará a procurar beneficiar-se. Aliás, não estaria a beneficiar-se, mas a iludir-se neste aspecto, porque a morte é um lento processo de libertação e conseqüente purificação que, culminando com a morte corporal, não significa que o suicídio antecipe o último estágio da catarse. Platão defende que somos pertença dos deuses e que eles velam por nós; são eles que decidem quando partimos para junto deles e não nós que não nos pertencemos. 54 Cf. LOPES, Fábio Henrique. A morte voluntária na Grécia antiga: uma tematização possível. Disponível em: <http://www.fafibe.br/down/revista/historia.pdf>. O texto é um artigo de uma revista de História, porém sem data.

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morte do próprio homem. O ato de se matar não deveria ser conseqüência nem resultado do

estilo de vida proposto por Aristóteles.

2.3.3. O suicídio e o neoplatonismo

Também os neoplatônicos tinham uma visão do suicídio como impedimento para a

plena libertação da alma e para o cumprimento na vida terrena da plena explicitação das

possibilidades do ser humano55.

A figura mais importante do movimento neoplatônico foi Plotino (205–270). Ele

possuía um carisma especial e gozou de enorme prestígio em sua época. Seu fascínio era tal

que chegou a exercer uma profunda influência sobre a própria teologia cristã. Reinholdo A.

Ullmann, escrevendo a respeito de Plotino e os gnósticos, afirma que, no plano moral,

Plotino, orientando-se pelo pensamento estóico, defendeu o suicídio, porém um suicídio

racional, em caso específico. Num primeiro momento, a alma não deve ser separada com

violência do corpo. O suicídio pode ser realizado, quando se pressente a iminência da insânia,

porque, então, “o suicídio deverá ser posto entre os acontecimentos necessários, que se

aceitam devido às circunstâncias; o uso de venenos não é, por certo, vantajoso para a alma. O

tempo dado a cada um foi fixado pelo destino; é danoso antecipá-lo [...]; enquanto se pode

progredir, não é preciso fazer sair do corpo a alma”56. A argumentação de Plotino é que “o

suicídio não chega a separar a alma do corpo” e “quando se faz força para separar o corpo da

alma não é o corpo que deixa sair a alma, mas a paixão que resolveu, isto é, o tédio, a dor, a

ira”57.

____________________ 55 PELLIZZARO, Giuseppe. Suicídio. In: Dicionário de Teologia Moral. São Paulo: Paulus, 1997, p. 1188. (Dicionários). 56 Enéada I, 9, (16), 11-19. apud ULLMANN, Reinholdo Aloysio. Plotino e os Gnósticos. Disponível em: <http://www.ufpel.tche.br/ich/depfil/filesdis/dissertatio4.pdf>. 57 CANHADAS, Enéas Martim. Suicídio: escolha, afirmação ou rejeição à vida? Disponível em: <http://www.terraespiritual.locaweb.com.br/espiritismo/artigo1761.html>.

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Foi com o cristianismo que a condenação do suicídio veio de uma forma mais clara.

Para os Santos Padres, a afirmação de que a vida é um dom de Deus e a pessoa é somente uma

administradora conduz à conclusão de que não se pode dispor livremente dela; o suicídio

nunca deixa de ser um “auto-homicídio”. Por outro lado, os Padres fazem referência a

diversos casos de suicídios realizados em momentos difíceis da Igreja, com o intuito de

esquivar-se da maldade dos ímpios. O caso da anciã Apolônia e de outros cristãos, relatados

por Eusébio, são típicos a propósito.

O martírio de Santa Apolônia deu-se a 9 de fevereiro de 248 ou 249. Conta a sua

história que existia na cidade de Alexandria um célebre feiticeiro, que profetizava uma grande

desgraça de que a cidade seria vítima, caso os adoradores dos deuses não decidissem

exterminar os cristãos, seus maiores inimigos. O povo deu crédito às predições e abriu forte

campanha contra os discípulos de Cristo. Uma das vítimas da cruel e estúpida perseguição foi

Apolônia, conhecida na cidade e estimada pelas suas virtudes. Quando foi levada ao templo

pagão e intimada a prestar homenagens às divindades, resolutamente se negou. Os algozes,

pois, armaram-se de pedras e quebraram os seus dentes. Apesar de muito machucada e com

fortíssimas dores, ela levantou os olhos ao céu e não pronunciou nenhuma palavra nem soltou

um só gemido. Por causa dessa firmeza, os pagãos ameaçaram-na com a fogueira. Apolônia

teria respondido: “Como poderia trair aquele que meu coração escolheu, o meu Esposo, de

quem é todo o meu amor? Não o farei. Antes sofrer morte crudelíssima e morrer mil vezes,

que abandonar a meu Jesus”. Fizeram, então, uma grande fogueira e puseram Apolônia diante

da seguinte alternativa: “Ou agora mesmo sacrificas aos deuses, ou te lançamos viva ao fogo”.

Sem responder, ela deteve-se por um momento, como que querendo deliberar alguma coisa, e,

de repente, com um movimento brusco, soltando-se das mãos dos algozes, lançou-se ao fogo.

Seu corpo foi inteiramente consumido. Os cristãos procuraram depois os ossos da mártir e

guardaram-nos com muito respeito58.

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O juízo positivo expresso em tais situações, como a relatada acima, tem levado alguns

a pensarem que a Igreja primitiva equiparou o suicídio religioso com o martírio. Na realidade,

tal juízo está ligado ao fato de que aqui não se trata de uma decisão orgulhosa em relação à

própria vida, mas é antes um gesto realizado como resposta heróica a uma inspiração divina

em situação dramática.

2.3.4. A moral agostiniana sobre o suicídio

A questão do suicídio foi tratada por Santo Agostinho com uma fina ironia e, ao

mesmo tempo, com mau humor. Os donatistas59 tinham práticas suicidas para as quais eles se

inspiravam em motivos religiosos mesquinhos. Tal situação constituía uma provocação,

diante da qual Agostinho perdia a paciência.

Santo Agostinho procurou abordar o tema do suicídio mais extensamente, partindo da

idéia de que matar-se é rechaçar o domínio de Deus sobre nossa existência, e, portanto, em

____________________ 58 Santa Apolônia, Virgem e Mátir. Disponível em: <http://www.paginaoriente.com/santosdaigreja/fev/apolonia0902.htm>. 59 O donatismo foi uma doutrina religiosa cristã, considerada herética pelo catolicismo. Persistiu na África romanizada nos séculos IV e V. O seu nome advém de dois bispos com o mesmo nome: Donato de Casa Nigra, bispo da Numídia e Donato, o Grande, bispo de Cartago. Os donatistas defendiam que os sacramentos só eram válidos se quem os ministrava era digno. O donatismo radicalizou-se também espiritualmente e rompeu com o mundo temporal. Seus adeptos julgavam-se soldados de Cristo, organizados em milícias contra o mal. A veneração inflamada aos mártires, bem como a franca apologia do martírio, levaram os donatistas a aceitar a morte com alegria e a procurá-la em nome de Cristo. Nas lutas contra as autoridades ou os cristãos, houve mesmo casos de suicídio coletivo, quando grupos de “mártires” se lançaram de precipícios ou se atiraram em fogueiras. Nos primórdios do século V, o Estado romano privou os donatistas de direitos civis e proibiu suas reuniões sob pena de morte. O ponto máximo do radicalismo donatista foi o surgimento dos agonistas ou circunceliões, bandos de briguentos que circulavam sem rumo pelo norte da África fazendo violências. O primeiro nome é o que eles davam a si mesmos (de Agon = luta), e o segundo era o que seus inimigos lhe conferiram (de circum cellas euntes, porque sempre estavam em torno dos camponeses. Não tinham ocupação. Atacavam gritando Deo Laudes! (louvai ao Senhor!). Os circunceliões freqüentemente buscavam a morte. O suicídio contava como martírio. Um circuncelião que anunciava que desejava ser mártir era bem tratado pelos outros, que davam a ele muita comida. Seu meio preferido era se jogar de precipícios. Era um método particularmente popular entre as mulheres. Também se jogavam na água para se afogar e no fogo. Outras maneiras eram provocar juízes e induzí-los a condená-los à morte, e comparecer a cerimônias pagãs para serem martirizados. Presumivelmente, quando tudo isso falhava, pagavam um homem para matá-los. Ou capturavam alguém numa estrada e ofereciam a ele a alternativa de matá-los ou morrer. Santo Agostinho realizou campanhas contra essa crença e foi principalmente graças aos seus esforços que a Igreja católica acabou por vencer a controvérsia.

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todos os casos, um ato mau. Objetivamente, todo suicídio é um homicídio. Agostinho estava a

par das exceções famosas honradas pela Igreja; porém, embora nós não possamos conhecer o

desígnio de Deus, que pode haver chamado algumas pessoas com vocação particular, seu

comportamento não constituirá jamais norma para a Igreja. Os casos de suicídio aos quais o

Antigo Testamento faz referência não têm nenhum valor moral no Novo Testamento. Apesar

dos episódios suicidas na Bíblia serem narrados como fatos históricos consumados, são, em si

mesmos, condenáveis. Agostinho chega a chamar de loucos os que trabalhavam com a

possibilidade do suicídio com fins de salvaguardar a virgindade e outras virtudes éticas60. O

suicídio não pode ser considerado um ato de fortaleza cristã, e sim, na verdade, um defeito da

mesma. Quando uma pessoa se suicida é porque justamente falta-lhe a base moral da

fortaleza61.

Quando toca na questão do suicídio, Agostinho de Hipona faz referência ao mesmo no

primeiro livro da “De Civitate Dei” (I:26):

Mas, dizem eles, durante o tempo da perseguição, certas mulheres santas jogavam-se às águas com a intenção de serem arrastadas pelas ondas e afogarem-se, e, assim, preservar sua castidade ameaçada. Apesar delas abrirem mão de suas vidas conscientemente, mesmo assim elas receberam uma grande distinção como mártires da Igreja Católica e seus festejos são celebrados com grande cerimônia. Este é um tema sobre o qual eu não ouso emitir um julgamento esclarecedor. Pois eu sei sem objeção que a Igreja era divinamente autorizada através de revelações confiáveis a honrar desta forma a memória destes cristãos. Pode ser que seja este o caso. Mas pode também ser que não, que elas agiram desta maneira, não por um capricho humano, mas sob o comando de Deus, não erroneamente, mas através da obediência, da mesma forma que supomos ocorreu com Sansão? Quando, entretanto, Deus dá um comando e o faz de forma clara, quem atribuiria a esta obediência o título de crime ou condenaria esta piedosa devoção e serviço de boa vontade?62.

Paulo de Goes, numa tese de doutorado pela UNICAMP (Universidade Estadual de

Campinas), intitulada “O problema do suicídio em Santo Agostinho à luz do ‘De Civitate Dei’

(I)”, aborda o tema a partir de dois ângulos, considerando que o livro I da referida obra é uma

____________________ 60 Cf. De Civitate Dei, I, 27: PL 41,40; Epist. 204, 5: PL 33, 940. apud BLÁZQUEZ, Niceto. A moral tradicional da Igreja sobre o suicídio. In: Suicídio e direito de morrer. Concilium, Petrópolis: Vozes, n. 199, p. 77 [323], 1985/3. 61 Cf. De Civitate Dei XIX, 4,5: PL 41, 630-631. apud Ib. 62 <http://pt.wikipedia.org/wiki/Santa_Apol%C3%B4nia>.

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primeira exposição bem articulada que se conhece no Ocidente a respeito do suicídio. Num

primeiro momento, é apresentada a sólida argumentação condenatória de Santo Agostinho.

Tal argumentação tem respaldo, sem dúvida, na herança cristã, quanto ao que concerne à

valorização da vida e à consideração desta como dádiva divina. Porém, num segundo

momento, pode-se constatar que a mesma lógica não é utilizada em casos determinados. Ou

seja, há uma absolvição a personagens bíblicos que provocaram o suicídio e uma suspensão

de juízo quando trata-se desse ato em mulheres virtuosas, veneradas pela Tradição. Por outro

lado, quando se trata de pessoas pagãs, a condenação é clara, mesmo que os motivos que as

teriam levado ao ato suicida fossem nobres. O que se nota, então, é uma aversão às práticas

não-cristãs, ainda que estas apresentem motivos justificáveis, tais como a defesa da honra,

dentro da cultura daquele tempo. Percebe-se, pois, em Santo Agostinho, uma inserção na

perspectiva da apologética de seu tempo, isto é, a exaltação da morte heróica (principalmente

numa época em que o martírio era uma situação até comum) e, por outro lado, a condenação

de atos pagãos, mesmo que estes se apresentassem revestidos de heroísmo, porém, despojados

da caridade. Conforme o autor dessa tese, o tratamento diferenciado surgiu no momento em

que o rigor da lógica condenatória ao suicídio, por Santo Agostinho, foi insuficiente para

apresentar um enfoque novo aos casos já louvados pela Tradição.

São palavras de Paulo de Goes, nas “Considerações Introdutórias” da sua tese:

As considerações de S. Agostinho sobre o suicídio, expostas no livro I do De civitate Dei, formam uma pequena dissertação que, dada a ausência de interpretações de tal natureza, nesse período, constituem-se numa primeira exposição bem-articulada, que se conhece no Ocidente, sobre o tema. Até porque, na Idade Média, depois da Escritura, o De civitate Dei era obra cuja leitura era de fundamental importância, superando as Confissões (embora a leitura desta última fosse muito mais atraente pelos aspectos narrativos com que o autor reveste seu texto, além das passagens autobiográficas). [...] Justifica-se, pois, a idéia de que o discurso agostiniano é essencialmente teológico no que se refere ao fundamento principal. O ser humano, destacando-se como o mais importante da criação, é considerado uma unidade que, desfeita sua existência terrena, sem ser isso resultante da manifestação da vontade divina, configura-se grave atentado que fere a própria criação. Além disso, pela perspectiva do saber filosófico, não é possível deixar de se considerar a vida como um campo privilegiado de reflexão, razão pela qual tudo o que nela se insere é objeto de estudo, avaliação, conceituação, revisão, etc.

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[...] na interpretação de fatos complexos das Escrituras e da Tradição, nos quais aparece a morte voluntária, prefere o Mestre de Hipona absolver os implicados ou suspender o juízo, transportando tudo para a zona de ‘mistério’, a proferir um julgamento categórico sobre o assunto, como fizera claramente e sem relutância nos outros casos. Esse procedimento é igualmente usado de outro modo: diante de exemplos que dizem respeito a não-cristãos, não obstante o heroísmo da morte buscada voluntariamente por tais pagãos – isso como medida para manter a integridade moral – o ilustre pensador não aceita a justificativa de tal ato. Logo, o tratamento apresenta-se através de uma dupla face: no caso de atos praticados pelos cristãos e diante de passagens bíblicas nas quais se configura a busca voluntária da morte, suspende o juízo ou absolve; no caso de atos praticados por pagãos, mesmo considerando as mediações, não hesita em proferir sentença condenatória63.

Quando Agostinho foi perguntado a respeito das mulheres que, em tempo de

perseguição, para não serem ultrajadas por seus carrascos, punham fim à própria vida, ele

admitiu que a Igreja as venerava, porém mostrou-se cauteloso e reservado a respeito disso.

Para ele, se a Tradição estava certa em relação a essas mulheres como que, de certa forma,

aprovando o ato, o reconhecimento por parte da Igreja se justificaria por alguma razão

extraordinária, como, por exemplo, a mediação de alguma inspiração extraordinária da parte

de Deus, inspiração esta pela qual tais suicídios poderiam ser julgados moralmente como atos

heróicos de obediência ao Senhor.

Quando faz a conclusão de um capítulo da tese, a respeito da forma diferenciada da

argumentação agostiniana, Góes assim se expressa:

[...] o certo é que o bispo de Hipona procura, antes de emitir juízo sobre o suicídio, descobrir os personagens envolvidos. Esse procedimento é norteado por um tom prudencial, a fim de que não se antecipe ou se substitua o juízo daquele por quem todos serão julgados, ou seja, o Juiz Supremo. Acrescente-se a isso o princípio da caritas, elemento que sempre norteou o pensamento do Mestre do Ocidente. Em outras palavras, embora não se possa inferir estar, antes de mais nada, em julgamento quem pratica o ato e não a prática propriamente dita, não se pode negar que os atenuantes ou os agravantes são interpostos conforme o caso. A questão não é julgada do ponto de vista formal e, sim, levando-se em consideração as mediações históricas e considerações subjetivas. Desse modo, não se trata do julgamento destituído dos anteparos circunstanciais; há tendências previamente estabelecidas. Para encarar a comportamento escandaloso de personagens bíblicos ou de pessoas que adquiriram a veneratio da Igreja, S. Agostinho não despreza o princípio de se considerar a liberdade da cultura própria da aristocracia. Essa postura leva-o a uma análise dos motivos do suicídio, manifestando aprovação, reprovação ou admiração. Também não despreza a moral dos simples, própria da camada mais humilde da população, razão pela qual manifesta juízo condescendente ao ato, fossem quais fossem os motivos. Isso, não apenas em relação ao suicídio.[...].

____________________ 63 GÓES, Paulo de. O problema do suicídio em Santo Agostinho à luz do “De civ. Dei”,I. Campinas (SP): [s.n.], 2004, p. 9-11.

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Pode-se dizer que S. Agostinho mostrou-se benévolo no momento de julgar os motivos subjetivos desses cristãos, cuja sinceridade não oferecia fundamentos para dúvida, embora o ato em si fosse discutível. E, como a vida cotidiana, naqueles dias, estava condicionada pelo terror da perseguição e a defesa da fé implicava, igualmente, a atitude respeitosa para com os heróis da resistência, ou seja, aquelas pessoas que enfrentaram a perseguição com atitudes elevadas, houve benevolência no juízo, considerando as circunstâncias em que o fato se deu. Da atitude complacente não se deve inferir, porém, que S. Agostinho e o pensamento tradicional aprovaram uma espécie de prática de ‘suicídio religioso’ que pudesse ser equiparado ao martírio cristão. A regra geral era a de que os fiéis deviam saber que não são, de forma alguma, donos de sua própria vida e, por isso mesmo, não lhes era dada a liberdade de tirá-la. Daí a razão da violação do sexto mandamento ser sempre evocada, tendo, como pano de fundo, a idéia central do discurso cristão, a saber, de que o homem é a imagem de Deus, e nisso se radica sua dignidade. Do exposto, resulta ter havido no cristianismo, através dos tempos – e, em S. Agostinho isso não seria uma exceção – uma espécie de instabilidade nas formas de julgamento do suicídio. Não se pode negar a existência de certas ambigüidades que acompanharam tal julgamento. Afinal, de um lado, temos a perspectiva pastoral, o cuidado e o desvelo para com os excluídos, uma vez que tal atitude não se espera dos aparatos institucionais da sociedade atual. De outro, o direito que se pretende preservar a fim de que as pessoas façam o seu respectivo uso e, nisso, sejam respeitadas nas suas decisões. Em outras palavras, quer-se poupar o indivíduo das circunstâncias dramáticas que podem desencadear o suicídio e, ao mesmo tempo, conservar a autonomia na decisão de tudo aquilo que concerne à sua vida pessoal. Como unir esses dois pontos, sem os traços de ambigüidade? Como evitar a pronta condenação ou a suspensão do juízo? Como evitar as justificativas para determinados casos em que densamente se concentram os elementos não só dramáticos como imponderáveis? A prática do suicídio, ressalvadas as variáveis históricas próprias de seu tempo, teria sido o dilema em que se viu envolvido S. Agostinho. Daí sua argumentação não se pautar exclusivamente pela lógica, servindo-se, em determinados casos, da argumentação diferenciada64.

Para encerrar esta abordagem do suicídio na moral agostiniana, vale lembrar uma

citação da própria “De Civitate Dei”, quando, prevendo toda sorte de degenerações mentais e

de falsa religiosidade como desculpa para colocar em prática o ato suicida, Agostinho insiste

com ênfase:

O que dizemos, o que afirmamos, o que de mil maneiras demonstramos, é que ninguém deve tirar voluntariamente a própria vida para escapar aos sofrimentos temporais, pois cairia nos eternos; nem para evitar os pecados alheios, porque então ele mesmo – a quem o pecado alheio não manchava – comete gravíssimo pecado pessoal; nem por causa de seus próprios pecados passados, pois para poder expiá-los com a penitência necessitamos de modo todo especial desta vida; nem por desejo da vida melhor que esperamos depois da morte, porque aos suicidas não aguarda outra vida melhor65.

____________________ 64 Ib., p. 118-120. 65 De Civitate Dei I, 26: PL 41, 39-40. apud BLÁZQUEZ, Niceto. A moral tradicional da Igreja sobre o suicídio. In: Suicídio e direito de morrer. Concilium, Petrópolis: Vozes, n. 199, p. 78 [324], 1985/3.

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2.3.5. O suicídio conforme Santo Tomás de Aquino

Apesar da importância relevante do pensamento agostiniano, não podemos negar que

ele foi, sem dúvida, enriquecido e sistematizado, posteriormente, por Santo Tomás de Aquino

(1225-1274), com certeza, ainda hoje, uma referência obrigatória aos moralistas,

principalmente católicos.

Tomás de Aquino trata de modo mais técnico e sistemático a tese de Santo Agostinho

reforçada por Aristóteles, deixando bem claro que o quinto mandamento do Decálogo vale

para todas as pessoas, sem exceção. É esta a exegese agostiniana que Santo Tomás faz sua.

Na sua obra clássica – a Suma Teológica –, Santo Tomás fundamenta a iliceidade do

suicídio em três motivos. Primeiramente, ele afirma que o ato suicida contraria a lei natural

da autoconservação e do amor de si. “[...] quem se mata vai contra a tendência da natureza e

contra a caridade, pela qual deve amar-se a si mesmo”66. Depois, levando em consideração

Aristóteles, o qual afirmou que todo homem é parte de um todo representado pela comunidade

em que se acha concretamente enxertado – conseqüentemente, a vida humana tem, pois,

perene significado e valor para os outros –, Tomás conclui que o suicídio é contra a

comunidade: “Ora, cada homem é parte da comunidade; o que ele é pertence à

comunidade”67. Por fim, a iliceidade está fundamentada no fato de que o homem não é dono

de sua vida, razão pela qual não lhe compete decidir sobre seu fim. Trata-se, aqui, então da

razão mais forte, que é a teológica. A vida humana é um dom de Deus concedido ao homem e

que depende absolutamente d’Aquele que, conforme o livro de Deuteronômio (32,39), faz

viver e morrer68. A pessoa suicida, com consciência e liberdade, ao destruir a própria vida,

____________________ 66 TOMÁS DE AQUINO. Summa Theologica II-II, 64, 5, C. apud CAMPOS, Sávio Laet de Barros. Do Homicídio segundo Santo Tomás de Aquino. Disponível em: <http://www.impactnew.com/filosofante/pdf/homicidio_tomas.pdf>. 67 Ib. 68 Dt 32,39: “E agora, vede bem: eu, sou eu, e fora de mim não há outro Deus! Sou eu que mato e faço viver, sou eu que firo e torno a curar (e da minha mão ninguém se livra)”.

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usurpa o poder de Deus, dando-se o direito de julgar numa causa que lhe é estranha.

Nenhum motivo justifica o suicídio, para Santo Tomás, como, por exemplo, suicidar-

se para compensar algum delito cometido. Menos ainda por medo de cometer um pecado

grave no futuro. Ora, a pessoa pecadora precisa de penitência. Se alguém se suicida, o que

acontece é que comete outro pecado mais grave ainda e faz desaparecer a própria

possibilidade de penitência e conversão. Apelar para o medo de pecados futuros é ter um

pensamento muito pobre. São Paulo, na carta aos Romanos (3,5), deixa claro que não tem

sentido cometer o mal para obter o bem. O suicídio é um mal imenso e certo, enquanto que os

possíveis pecados futuros serão sempre males menores e incertos. Além do mais, não se pode

esquecer que Deus é poderoso e misericordioso para ajudar-nos a não cair nas tentações e para

perdoar-nos, se chegamos a cair.

Em relação aos suicídios narrados na Bíblia e aos casos de cristãos perseguidos que se

mataram para salvar a própria honra, Tomás adota a mesma posição reservada de Agostinho.

Embora não se possa negar a possibilidade metafísica de que tivessem agido movidos por

alguma inspiração divina, tal situação não invalida absolutamente os argumentos aduzidos

contra o suicídio.

Diante desses três motivos, Tomás afirma que o suicídio significa três deserções: 1ª)

individual, das tarefas que nos esperam e que Deus nos ajuda a cumprir; 2ª) social, diante dos

serviços que somos chamados a prestar aos outros, e 3ª) religiosa, considerando a tarefa que

Deus estabeleceu para nós. Conclusão final: trata-se de um pecado gravíssimo contra Deus,

contra a sociedade e contra nós mesmos. “A vida é um dom de Deus ao homem [...] Quem se

priva da vida, peca, portanto contra Deus [...]”69.

Daniela Galvão de Araújo, num artigo intitulado “A Eutanásia através dos tempos”,

____________________ 69Ib.

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afirma que, para Tomás de Aquino, a prática da eutanásia se configura como um atentado ao

poder divino e é tomando esta postura que a doutrina católica se fundamentou para condenar,

também, o suicídio. Conforme citação dela, Santo Tomás escreveu que:

O homem é constituído senhor de si mesmo pelo livre arbítrio. E, portanto, pode dispor livremente de si mesmo, no que respeita aos bens desta vida, governada pelo livre arbítrio humano. Mas desse livre arbítrio não depende o trânsito desta vida para outra mais feliz. Do mesmo modo, nem para fugir a quaisquer misérias da vida presente. Porque, como claro está no Filósofo, o último dos males desta vida e o mais terrível é a morte. Logo, dar-se a si mesmo a morte para fugir às misérias desta vida é praticar um mal maior para evitar um menor70.

A partir de Santo Tomás e da Escolástica, da qual ele foi o principal organizador,

sendo o suicídio considerado como um crime contra a religião, institucionalizou-se a

proibição ao suicidas de receberem uma sepultura em cemitérios cristãos.

Conta-nos a história que os suicidas eram enterrados nas encruzilhadas das estradas, pois se tratavam de pessoas que não tinham conseguido superar alguma encruzilhada da existência ou ainda porque a encruzilhada lembrava uma cruz que supostamente deveria redimir o suicida de seu tão grave pecado71.

Esta exposição ficou substancialmente imutável nas sucessivas apresentações dos manuais. O

modo da Igreja se expressar sempre foi severo neste campo e, constantemente, considerou o

ato suicida como pecado particularmente grave, como “contra-sinal da ausência da fé ou da

esperança cristã”72.

De acordo com o que foi exposto acima, podemos entender a severidade das

disposições canônicas para com os suicidas, considerados pecadores públicos e privados de

pedir perdão a Deus, em vista do próprio gesto suicida.

2.3.6. Disciplina canônica a respeito do suicídio

____________________ 70 ARAÚJO, Daniela Galvão de. A Eutanásia através dos tempos. Disponível em: <http://www.unilago.com.br/publicacoes/pensar_direito01.pdf>. p. 11. 71 PRETO, Rodolfo. Notas melancólicas parte 8. Disponível em: <http://porquenaotecala.blogspot.com/2008/02/notas-melanclicas-parte-8.html>. 72 Pio XII, Discorsi e radiomessaggi. Ed. Pol. Vat., Roma, 1958, XIX, 774 apud PELLIZZARO, Giuseppe. Suicídio. In: Dicionário de Teologia Moral. São Paulo: Paulus, 1997, p. 1188. (Dicionários).

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70

A moral cristã em relação ao suicídio sempre se refletiu na disciplina canônica.

Conforme os cânones dos Apóstolos, os leigos que se mutilassem deviam ser excluídos da

recepção às ordens sagradas. Se eram clérigos, deviam ser depostos de seus ofícios. Sob o

ponto de vista moral, a mutilação significava uma agressão homicida contra a vida, que é obra

de Deus por excelência. A partir desta condenação explícita à mutilação, deduz-se a

condenação implícita ao suicídio73. Existe uma admoestação interessante, feita no Concílio de

Guadix (305), pela qual exclui-se do número dos mártires todos aqueles que por diversos

motivos tiram diretamente a própria vida74. Posteriormente, o Concílio de Cartago (348)

pronunciou-se contra os falsos mártires que tiravam deliberadamente a própria vida, alegando

vários motivos pessoais75. Quando foi consultado se se devia celebrar a liturgia pelos que se

suicidavam em estado de alienação mental, o bispo Timóteo de Alexandria respondeu que os

que costumavam exigir a celebração litúrgica às vezes mentiam, afirmando que aqueles

suicidas tiraram a própria vida sem saber o que faziam. Sendo assim, recomendava aos que

consultavam que fossem cautelosos nesta questão e que, sempre que constasse que o ato

suicida tinha sido um ato deliberado, a celebração dos ofícios litúrgicos próprios dos defuntos

deveria ser omitida76. O Concílio de Braga (563) foi mais explícito e taxativo. As pessoas que

se suicidavam, nas mais diversas formas, deveriam ser excluídas dos sufrágios litúrgicos e

sepultadas sem a solenidade do canto dos salmos77. No ano 806, quando o papa Nicolau I foi

consultado pelos búlgaros, a respeito do suicídio, afirmou que os suicidas deveriam ser

sepultados sem o cerimonial litúrgico que se costuma fazer nas exéquias dos defuntos.

Deveria se omitir principalmente o sacrifício da Missa, já que não só pecaram até a morte,

____________________ 73 Cf. Canones Apostlorum 21-23: MANSI, vol. 1, col. 34. apud BLÁZQUEZ, Niceto. A moral tradicional da Igreja sobre o suicídio. In: Suicídio e direito de morrer. Concilium, Petrópolis: Vozes, n. 199, p. 81 [327], 1985/3. 74 Cf. Concilium Eliberitanum 60: MANSI, vol. 2, col. 15. apud Ib. p. 82 [328]. 75 Cf. Concilium Carthaginense, c. 2: MANSI, vol. 3, col. 153-154. apud Ib. 76 Cf. Responsa canonica Timothei, Alexandrini episcopi 13: MANSI, vol. 3, col. 1251-1254. apud Ib. 77 Cf. Concilium Bracarense II, c. 16: MANSI, vol. 9, col. 779. apud ib. O Concílio de Braga foi um concílio que teve lugar na cidade homônima do norte de Portugal (então capital do reino dos Suevos) tendo sido presidido por Martinho da Panônia (atual Hungria), bispo titular de Braga e de Dume.

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71

mas inclusive provocaram a própria morte. A fim de realçar a gravidade moral do suicídio e

justificar a pena canônica imposta contra o mesmo, o papa aludia ao suicídio de Judas. Apesar

dessa severidade, Nicolau I não excluía os gestos humanitários que eventualmente poderiam

ocorrer durante o sepultamento dos suicidas78.

O Código de Direito Canônico de 1917 impunha sanções contra o suicídio,

entendendo que quem atentasse contra a própria vida, consciente e deliberadamente, estaria

atentando contra o direito divino expresso no quinto mandamento do Decálogo e outros

lugares da revelação cristã. De acordo com os cânones 1240,1,3 e 2350,2, estavam privados

da sepultura eclesiástica todos os que em liberdade e domínio de suas faculdades atentassem

contra a própria vida. “Os suicidas eram explicitamente arrolados nos cânones entre aqueles

aos quais se negava sepultamento eclesiástico. Eram associados aos apóstatas, hereges,

cismáticos, maçons, excomungados, os mortos em duelo e os que pediam que seus corpos

fossem cremados”79. Esta sanção, porém, não era para os que provocavam a morte sob o

impulso de alguma deficiência de suas faculdades humanas. Caso houvesse dúvida sobre os

verdadeiros motivos pessoais do ato suicida, devia-se proceder à sepultura eclesiástica,

evitando o possível escândalo entre os fiéis e o caráter solene da cerimônia (cânon 1240,2). A

recusa da sepultura eclesiástica implicava suprimir a missa de exéquias e a de aniversário

(cânon 1241). No entanto, era permitido celebrar missas privadas pelos suicidas. A aplicação

da sanção descrita acima estava relacionada à suposição de que o defunto não tinha dado

nenhum sinal de arrependimento antes de morrer. Caso contrário, devia-se proceder à

sepultura eclesiástica, conforme a forma litúrgica normal para todos os fiéis defuntos80.

As pessoas que tentavam o suicídio, mas não obtinham êxito não eram merecedoras de

____________________ 78 Cf. Responsa Nicolai ad consulta Bulgarorum 98: PL 119, 1013. apud Ib. 79 POWER, David. Ritual de exéquias para suicidas e evolução litúrgica. In: Suicídio e direito de morrer. Concilium, Petrópolis: Vozes, n. 199, p. 82 [332], 1985/3. 80 BLÁZQUEZ, Niceto. A moral tradicional da Igreja sobre o suicídio. In: Suicídio e direito de morrer. Concilium, Petrópolis: Vozes, n. 199, p. 82-83 [328-329], 1985/3.

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72

uma maior complacência no Código de 1917. Caso fossem leigos, era-lhes vedado receber, a

não ser em caso de dispensa oficial, as ordens sagradas (cânon 985,5). Não podiam também

exercer as funções de padrinhos de batismo (cânones 762,2; 766,2; 795,2; 2256,2). No caso

dos clérigos, ficavam suspensos por todo o tempo que o Ordinário determinasse81.

De acordo com o Ritual de Exéquias, confirmado pela Sagrada Congregação para o

Culto Divino, em 23 de setembro de 1971, nº. 64, para negar a sepultura eclesiástica, nos

casos previstos pelo direito vigente, é preciso consultar sempre o Ordinário do lugar, o qual

determinará aquilo que a prudência pastoral lhe aconselhe como mais conveniente82. O

Código de 1983 estabelece que as pessoas que tentaram o suicídio são declaradas irregulares

para receber ordens sacras e para exercê-las (cânones 1041 e 1044). Com relação à tradicional

recusa de proporcionar sepultura eclesiástica aos suicidas, o texto expressa apenas de uma

forma geral, com estas palavras: “pecadores manifestos aos quais não se podem conceder as

exéquias eclesiásticas sem escândalo público dos fiéis”. Deduz-se, pois, daí, que, conforme o

espírito da nova disciplina canônica, a questão de eventual negação da sepultura eclesiástica

aos suicidas fica confiada inteiramente à prudência pastoral dos bispos, os quais decidirão o

que melhor convém em cada caso particular83.

2.3.7. O suicídio segundo o Magistério atual

A questão moral do suicídio está, atualmente, muito relacionada com o problema da

eutanásia. Não é objetivo nosso, nesta dissertação, discorrer a respeito da eutanásia, cujo

assunto já seria, com certeza, outro trabalho bem específico. Porém, numa declaração da

Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, documento que veio a público em 5 de julho de

____________________ 81 Ib., p. 83 [329]. 82 Ib. 83 Ib.

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73

1980, destacamos trechos com os quais percebemos com clareza a posição da Igreja Católica,

em relação ao suicídio:

Todos os homens têm o dever de conformar a sua vida com a vontade do Criador. A vida é-lhes confiada como um bem que devem fazer frutificar já neste mundo, mas só encontrará perfeição plena na vida eterna. A morte voluntária ou suicídio, portanto, é tão inaceitável como o homicídio: porque tal ato da parte do homem constitui uma recusa da soberania de Deus e do seu desígnio de amor. Além disto, o suicídio é, muitas vezes, rejeição do amor para consigo mesmo, negação da aspiração natural à vida, abdicação frente às obrigações de justiça e caridade para com o próximo, para com as várias comunidades e para com todo o corpo social – se bem que por vezes, como se sabe, intervenham condições psicológicas que podem atenuar ou mesmo suprimir por completo a responsabilidade. É preciso no entanto distinguir bem entre suicídio e aquele sacrifício pelo qual, por uma causa superior – como a honra de Deus, a salvação das almas ou o serviço dos irmãos – alguém dá ou expõe a própria vida84.

Em seguida, o documento faz referência expressa à eutanásia. Cabe, também, este

parágrafo no sentido de que, como é possível notar, a eutanásia direta é equiparada ao suicídio

direto, que é, objetivamente, um auto-homicídio.

Por eutanásia entendemos uma ação ou omissão que, por sua natureza ou nas intenções, provoca a morte a fim de eliminar toda a dor. [...] É necessário declarar uma vez mais, com toda a firmeza, que nada ou ninguém pode autorizar a que se dê a morte a um ser humano inocente seja ele feto ou embrião, criança ou adulto, velho, doente incurável ou agonizante. E também a ninguém é permitido requerer este gesto homicida para si ou para outro confiado à sua responsabilidade, nem sequer consenti-lo explícita ou implicitamente. Não há autoridade alguma que o possa legitimamente impor ou permitir. Trata-se, com efeito, de uma violação da lei divina, de uma ofensa à dignidade da pessoa humana, de um crime contra a vida e de um atentado contra a humanidade85.

Na encíclica “Evangelium Vitae”, citando a “Gaudium et Spes”, o papa João Paulo II

enfatizou com veemência o valor incomparável da pessoa humana:

[...] Mesmo por entre dificuldades e incertezas, todo homem sinceramente aberto à verdade e ao bem pode, pela luz da razão e com o secreto influxo da graça, chegar a reconhecer, na lei natural inscrita no coração (cf. Rm 2,14-15), o valor sagrado da vida humana desde o seu início até seu termo [...] De modo particular, devem defender e promover esse direito os crentes em Cristo, conscientes da verdade maravilhosa, recordada pelo Concílio Vaticano II: ‘Pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-se decerto modo a cada homem’ (Gaudium et Spes, 22) [...]. [...] qualquer ameaça à dignidade e à vida do homem não pode deixar de repercutir no próprio coração da Igreja, é impossível que não a toque no centro da

____________________ 84 SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Declaração sobre a eutanásia. Sedoc XIII, 1980-1981, col. 172; Acta Apostolicae Sedis 72, p. 544-545, 1980. apud BLÁZQUEZ, Niceto. A moral tradicional da Igreja sobre o suicídio. In: Suicídio e direito de morrer. Concilium, Petrópolis: Vozes, n. 199, p. 80-81 [326-327], 1985/3. 85 Ib., col. 173; AAS 72, p. 546, 1980. apud Ib.

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74

sua fé na encarnação redentora do Filho de Deus, não pode passar sem interpelá-la em sua missão de anunciar o Evangelho da vida pelo mundo inteiro a toda criatura (cf. Mc 16,15). Hoje, esse anúncio torna-se particularmente urgente pela impressionante multiplicação e agravamento das ameaças à vida das pessoas e dos povos, sobretudo quando ela é débil e indefesa. Às antigas e dolorosas chagas da miséria, da fome, das epidemias, da violência e das guerras, vêm-se juntar outras com modalidades inéditas e dimensões inquietantes. Já o Concílio Vaticano II, numa página de dramática atualidade, deplorou fortemente os múltiplos crimes e atentados contra a vida humana. À distância de trinta anos e fazendo minhas as palavras da Assembléia Conciliar, uma vez mais e com idêntica força os deploro em nome da Igreja inteira, com a certeza de interpretar o sentimento autêntico de toda consciência reta: ‘Tudo quanto se opõe à vida, como seja toda espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho, em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis. Todas essas coisas e outras semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo em que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador’ (Gaudium et Spes, 27). Ora, o suicídio é sempre moralmente inaceitável, tal como o homicídio. A tradição da Igreja sempre o recusou, como opção gravemente má. Embora certos condicionamentos psicológicos, culturais e sociais possam levar a realizar um gesto que tão radicalmente contradiz a inclinação natural de cada um à vida, atenuando ou anulando a responsabilidade subjetiva, o suicídio, sob o perfil objetivo, é um ato gravemente imoral, porque comporta a recusa do amor por si mesmo e a renúncia aos deveres de justiça e caridade para com o próximo, com as várias comunidades de que se faz parte, e com a sociedade no seu conjunto. No seu núcleo mais profundo, o suicídio constitui uma rejeição da soberania absoluta de Deus sobre a vida e sobre a morte, deste modo proclamada na oração do antigo sábio de Israel: ‘Vós, Senhor, tendes o poder da vida e da morte, e conduzis os fortes à porta do Hades e de lá o tirais’(Sb 16,13; cf. Tb 13,20)86.

O Catecismo da Igreja Católica, na terceira parte, intitulada “A vida em Cristo”

(segunda seção – Os dez mandamentos, capítulo II – “Amarás o próximo como a ti mesmo”),

quando trata a respeito do quinto mandamento, no tópico que concerne ao suicídio, enfatiza:

Cada um é responsável por sua vida diante de Deus que lha deu e que dela é sempre o único e soberano Senhor. Devemos receber a vida com reconhecimento e preservá-la para honra dele e salvação de nossas almas. Somos os administradores e não os proprietários da vida que Deus nos confiou. Não podemos dispor dela. O suicídio contradiz a inclinação natural do ser humano a conservar e perpetuar a própria vida. É gravemente contrário ao justo amor de si mesmo. Ofende igualmente ao amor do próximo, porque rompe injustamente os vínculos de solidariedade com as sociedades familiar, nacional e humana, às quais nos ligam muitas obrigações. O suicídio é contrário ao amor do Deus vivo. Se for cometido com a intenção de servir de exemplo, principalmente para os

____________________ 86 JOÃO PAULO II. Evangelium Vitae. Carta Encíclica, 1995. In: Encíclicas de João Paulo II. São Paulo: Paulus, 1997, p. 886-889 e 980. (Documentos da Igreja).

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75

jovens, o suicídio adquire ainda a gravidade de um escândalo. A cooperação voluntária ao suicídio é contrária à lei moral87.

Não obstante essas palavras tão claras quanto ao mal do suicídio, continua o texto:

Distúrbios psíquicos graves, a angústia ou o medo grave da provação, do sofrimento ou da tortura podem diminuir a responsabilidade do suicida. Não se deve desesperar da salvação das pessoas que se mataram. Deus pode, por caminhos que só Ele conhece, dar-lhes ocasião de um arrependimento salutar. A Igreja ora pelas pessoas que atentaram contra a própria vida88.

2.4. CONSIDERAÇÕES ÉTICAS ATUAIS

2.4.1. A problemática do suicídio

Cada vez mais torna-se evidente que, numa avaliação ética, é necessário distinguir

cuidadosamente, mais do que no passado, o projeto de avaliação abstrata e o aspecto

existencial concreto. Quando se trata da problemática em torno do suicídio, os argumentos

expostos a favor ou contra permanecem frequentemente abstratos e incompletos, quando não

são ampliados com os conhecimentos ou as informações mais precisas das dimensões

patológicas e trágicas do fenômeno do suicídio. A responsabilidade de uma pessoa é

proporcional à sua efetiva liberdade. Porém, como podemos perceber, o valor subjetivo do

fenômeno do suicídio não permite à pessoa o direito e o dever de refletir, abstraindo, ou seja,

desconsiderando situações imediatas, para questionar sobre o modo como é possível defender

e realizar determinado valor.

O argumento ou a prova que a ética cristã sempre levou em consideração como

fundamental para negar a liceidade moral do suicídio desde o princípio foi constituído pela

soberania de Deus, como Criador e Senhor da vida e da morte. Isso significa, então, que a

pessoa é administradora de sua existência, jamais sua proprietária para dar-lhe um fim

____________________ 87 Catecismo da Igreja Católica, §2280-2282a. 88 Ib., §2282b-2283.

Page 77: SUICIDIO E ETICA  uma  apreciação na GAUDIUM ET SPES TESE

76

conforme o seu bel-prazer. Podemos notar que a Bíblia faz referência a alguns suicídios sem

particular condenação e, às vezes, até tece elogios. Citamos alguns exemplos: Saul e seu

escudeiro se transpassaram com sua própria espada para não cair em mãos dos inimigos89;

Aquítofel se enforca depois do fracasso de sua intriga política90; Sansão fez com que o templo

desmoronasse sobre ele e os filisteus91; o sacerdote Razias é até elogiado por haver

generosamente decidido morrer em vez de cair nas mãos criminosas e de sofrer ultrajes

indignos de seu berço92. Apesar desses exemplos citados acima, a tradição judaico-cristã

condenou sempre o suicídio como gesto em que a pessoa atribui a si, de forma unilateral, um

poder absoluto, esquivando-se ao diálogo com Deus.

Embora o argumento da soberania de Deus possa parecer tão convincente e definitivo,

quando analisado mais profundamente, dá a impressão de ser problemático para fundamentar

um juízo convincentemente negativo sobre o suicídio. Conforme Bruno Schüller93, quando se

argumenta que Deus é o dono da vida e da morte, portanto, não o homem, fala-se de Deus e

do homem de maneira unívoca, ou seja, com termos que se aplicam a realidades distintas,

com o mesmo sentido, admitindo só uma interpretação, e não de forma análoga. Isso significa

que, como conseqüência, sem se dar conta, concebe-se Deus como soberano humano. Entre os

direitos de um soberano humano e os direitos dos súditos existe uma relação de concorrência:

tomando como ponto de partida os direitos do soberano, pode-se deduzir imediatamente que

direitos não têm os que estão submissos. Porém, a teologia não permite tirar de qualquer

atributo de Deus conclusões diretas sobre o comportamento humano. Se falamos do amor de

Deus e da necessidade de viver conforme esse amor, precisamos traduzir este compromisso

servindo-nos de categorias humanas de solidariedade, benevolência e qualidades semelhantes.

____________________ 89 1Sm 31,3-5 90 2Sm 17,23 91 Jz 16, 23-31 92 2Mc 14,37-46 93 SCHÜLLER, Bruno. La Fondazione dei giudizi morali. Assis (Itália): Cittadella, 1975, p. 171ss. apud PELLIZZARO, Giuseppe. Suicídio. In: Dicionário de Teologia Moral. São Paulo: Paulus, 1997, p. 1189. (Dicionários).

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Consequentemente, a soberania de Deus é apenas uma instância dirigida à responsabilidade

do homem. Portanto, será necessário concluir que o problema ético não consiste em definir o

suicídio como um “mal em si mesmo”, mas, antes, em tomar consciência do fato de que a

pessoa humana, criada por Deus com liberdade, deve administrar com responsabilidade o bem

chamado “vida” que foi colocado em suas mãos.

Se considerarmos a relação com Deus como fundamento da dignidade humana, tirando

daí a conclusão da contradição à moral no ato de dispor da própria vida, perceberemos que tal

situação reapresenta, por sua vez, o questionamento para saber se é possível deduzir

imediatamente de uma afirmação telógico-salvífica princípios normativos. Esclarecendo:

levanta-se, aqui, a questão de querer saber se do “sim” doador de sentido que Deus dirige à

pessoa, é possível deduzir a proibição de tirar a própria vida, ou se não se pode atribuir ao

próprio homem a tarefa de descobrir por si o que é justo e tem sentido.

O teólogo moralista Adrian Holderegger, numa de suas obras, afirma:

Poder-se-á dizer ... que o suicídio se torna transgressão culpável na medida em que é rebeldia voluntária e negação arbitrária do sentido que é fundamento da liberdade humana, embora depois reste o problema de saber se, em situações críticas extremas, não se pode devolver a vida ao Criador94.

Em outras palavras, podemos dizer a mesma afirmação elaborando uma pergunta: é

possível que a morte seja uma desgraça, mas que continuar vivendo em algumas

circunstâncias seja uma desgraça maior ainda? Trata-se de uma pergunta que a cultura atual

torna cada vez mais dramática.

2.4.2. O suicídio dentro da nova problemática sobre o direito de viver ou de morrer

Podemos constatar, sem sombra de dúvida, que a partir da Idade Moderna, a realidade

____________________ 94 HOLDEREGGER, Adrian. Si há diritto di scegliersi liberamente la propria morte? [s.l.: s.n.], p. 139. apud PELLIZZARO, Giuseppe. Suicídio. In: Dicionário de Teologia Moral. São Paulo: Paulus, 1997, p. 1189. (Dicionários).

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78

da vida tornou-se cada vez mais subtraída da consideração apenas biológica, sendo, pois,

experimentada como realidade confiada à responsabilidade humana e, consequentemente, à

liberdade da pessoa. É notável que o progresso científico e técnico, ao demitizar a idéia da

absoluta intangibilidade da vida humana e de sua fatalidade mediante a possibilidade dela ser

manipulada e de deslocar seus limites naturais, realçou a disponibilidade da mesma ao visar a

sua qualidade, mas também a qualidade da morte. Isso significa que, em princípio, a vida

parece ser algo de que se pode dispor. Nesta situação,

a antiga questão ética do direito ao suicídio se emancipou da problemática dos casos extremos, e se ligou muito mais imperiosamente do que antes ao problema de saber se e até que ponto é sensato, caso se limite a capacidade de fazer frente às necessidades fundamentais, continuar com uma vida diminuída ou que se vai extinguindo95.

Podemos perceber que o suicídio não deve ser mais tratado como problema abstrato

formulado pelo iluminismo, que o considerava como “pedra de toque da autonomia da

liberdade”, como possibilidade de “morrer livres em face da morte”96. Trata-se, aqui, de

enfocá-lo diante do contraste entre uma promessa de vida e uma não-vida, realmente. Quantos

se sentem, verdadeiramente, à vontade em sua pele?

Nossa sociedade goza de tantas possibilidades de condicionamento e de manipulação

que a pessoa, frequentemente, sente-se na impossibilidade de viver sem ser deixando de viver,

isto é, renunciando a ser ela mesma e a apresentar-se como originalidade. Diante de uma tal

situação, na qual a pessoa se encontra sem o cultivo da relação com o Absoluto, na presença

de quem toda a vida adquire sentido, a alternativa dramática pode consistir em ver como única

possibilidade agir na originalidade do gesto suicida. Tal ato transforma-se, pois, de modo

dramático, em rejeição do caráter imperioso do condicionamento. Talvez seja esta a intuição

de que, por freqüentes vezes, a pessoa suicida não se acha errada, visto que revela de modo

____________________ 95 Ib., p. 130. apud. Ib. 96 PELLIZZARO, Giuseppe. Suicídio. In: Dicionário de Teologia Moral. São Paulo: Paulus, 1997, p. 1189. (Dicionários).

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79

cruel nossa desordem social, o que cria profunda sensação de perturbação. Frente à essa

realidade, a cultura atual torna cada vez mais dramático o questionamento a respeito do

suicídio, suscitando, de um ponto de vista teórico, o problema do direito ao mesmo, e, de um

ponto de vista prático, toda uma série de movimentos que o defendem.

Pode-se solicitar a uma pessoa que não vê mais o sentido da vida, que continue

vivendo? É possível tirar como conseqüência do fato de existir o dever de fazê-lo? Frente à

invocação do direito à morte, a consciência cristã experimenta, sem dúvida, uma sensação de

embaraço e de inquietação. Embora não existe direito à morte no sentido de que em outros

existiria o dever correspondente de procurá-la, a pergunta a seguir é cada vez mais intrigante:

como negar que, para as pessoas que não conseguem ver em sua vida possibilidade de sentido,

o suicídio possa parecer o caminho mais lógico para expressar a própria autonomia diante da

falta de sentido e do condicionamento social, apesar desta opção ser feita por meio do

procedimento trágico da renúncia e da fuga?

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80

3. À LUZ DA GAUDIUM ET SPES

3.1. INTRODUÇÃO

A Constituição Pastoral “Gaudium et Spes” é um documento do Concílio Vaticano II

que apresenta a existência humana, procurando levantar a enorme problemática que a

envolve, num mundo de constantes e rápidas mudanças. Tal situação leva o ser humano a

fazer a experiência da vida como algo muitas vezes dramático, que lhe causa grande

inquietação. É nesta realidade de contínuas transformações e que causam tantas perturbações

que levantamos muitas interrogações diante do ato suicida.

O problema do suicídio parece expor, de modo dramático, a questão da existência e do

sentido que ela possui, dentro das coordenadas de possibilidades e de condicionamentos de

determinada sociedade.

Pensando naquela pergunta de Caim, falsa e tendenciosa: “Porventura, sou eu guarda

de meu irmão?”, podemos dizer que ela parece tornar-se, cada vez mais, aceitável e legítima,

nos lábios do cidadão de uma sociedade impessoal e anônima. Vivemos numa sociedade na

qual o outro é o consumidor, o rival, o termo de confronto, termo de aproximação

insignificante e sem verdadeiro intercâmbio ou diálogo. Estabeleceu-se um tão grande

distância entre as pessoas que torna difícil perceber o significado de proximidade.

Na verdade, já se observou que a rejeição da vida ou o desejo de morrer encobrem, de

fato, uma outra pergunta: a que deseja saber se se deve viver, ou, pelo menos, se não se deve

deixar alguém morrer, isto é, ser abandonado a uma morte vista como agressão por parte de

um poder hostil e estranho, contra o qual parece ser difícil lutar.

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81

De certa forma, podemos, sim, pensar que essa indagação é muita trágica, porém, se

não queremos consentir nela, precisamos nos empenhar em testemunhar ao outro a

permanência da nossa presença, a promessa de vida que tal presença tenta expressar.

Sem dúvida, não podemos negar a normalidade de uma possível distância objetiva que

as relações sociais introduzem entre as pessoas, no entanto, essa distância não pode ser

entendida como algo que suspendesse a urgência do imperativo de amar o próximo e, mais

que isso, tornar-se próximo do próximo, buscando o bem dele como se fosse o bem da própria

pessoa.

Quando apreciamos toda a problemática em torno do suicídio à luz da “Gaudium et

Spes”, percebemos que, se por um lado não podemos ser favoráveis a ele, como o texto

explicita claramente, por outro, o mesmo texto nos ilumina a observar todo um contexto que

está por trás, contexto este que nos sugere afirmar que não se trata de dizer simplesmente

“não” ao suicídio, demonstrando, categoricamente, sua grave negatividade moral. É

necessário, sim, − e a constituição nos dá um bom fundamento para isso − assentar as bases

para uma superação deste cansaço generalizado da vida, que chega à negação de si,

principalmente por meio da recuperação da proximidade, que tem que encarnar-se em formas

concretas de exercício, seja em nível estrutural, seja interpessoal.

A abordagem a respeito da sociedade leva-nos a uma interrogação mais séria ainda:

qual é a imagem de realização de si e de felicidade que nossa sociedade propõe? De uma

forma geral, podemos afirmar que o estilo de vida se caracteriza por um hedonismo

individualista, em que todos os valores são instrumentalizados e mercantilizados. Temos,

pois, que admitir: neste ambiente nada possui sentido. Ora, um mundo sem significado só

pode ser vivido por um homem sem significado. Quando se pensa que a vida só tem sentido

se não há sofrimentos nela, pode parecer irracional que se continue a viver na presença do

sofrimento, da humilhação e do fracasso. Somente a percepção dos valores fundamentais para

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o sentido da vida pode oferecer à pessoa a força de suportar também as provas mais

dramáticas. É possível, então, afirmar, com um embasamento oferecido pela “Gaudium et

Spes”, que a prevenção mais eficaz para o suicídio é de ordem moral e religiosa. Mas,

partindo da tese de que nossa vida provém de Deus, que lhe dá sentido, é possível,

igualmente, nos perguntar: como vê tudo isto a pessoa no cotidiano de sua existência? Por

toda a problemática em torno da realidade atual que a “Gaudium et Spes” levanta, ela mesma

deixa subentendido um espírito pelo qual somos chamados a nos manifestar com

condescendência, compreensão, compaixão, misericórdia.

Se, por um lado, é verdade que o suicídio é uma quebra do quinto mandamento, muitas

vezes sem o devido tempo para a reflexão e ao arrependimento, e também é verdade que o

suicida fecha a porta da esperança com as próprias mãos ao ser suplantado pela dor

esmagadora, a ponto de descer que em Deus há uma saída para as suas angústias, a “Gaudium

et Spes”, descrevendo a realidade da vida humana e a missão da Igreja nessa realidade, nos

oferece condições para afirmar que não podemos nos arbitrar como juízes e condenar todos

aqueles que entram por essa porta. Há fatores que não conhecemos nem alcançamos. Há

implicações que escapam ao nosso limitado conhecimento.

3.2. NO ESPÍRITO DO VATICANO II

Quanto mais nos aprofundamos no estudo do comportamento humano, mais

percebemos o quanto ele tem segredos que são insondáveis. Tal constatação fica evidente

quando nos defrontamos com o “fardo escuro” da vida de muitas pessoas que é o suicídio,

como uma patologia do espírito, em vista de acentuada descrença na vida. Esse fardo pesa,

sobretudo, para a família, mas também para a sociedade.

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Por muito tempo, o suicídio foi tabu, motivo de vergonha, razão de escândalo. Devido

a um certo ou total desconhecimento dos muitos fatores que interferem no suicídio, exagerou-

se a responsabilidade social do suicida97. Atualmente, com a contribuição das ciências

médicas e antropológicas, temos uma visão diferente, com certeza, mais humana, do

complexo fenômeno do suicídio98. Apesar dessa visão, sentimo-nos, ao mesmo tempo,

incapazes para conter esse impulso que quebra o anseio de vida de tantas pessoas, muitas,

ainda no seu amanhecer.

Não será que os que atentam contra a sua própria vida estão gritando contra esta

sociedade privada de solidariedade, que cultiva relacionamentos individualistas, impessoais e

materializados, que faz uma confusão entre o urgente e o importante? O ato suicida não será

um alerta para uma sociedade que tem dificuldade em dar tempo e escuta, que procura apenas

resultados imediatos e acaba amando as coisas e servindo-se das pessoas?

Com certeza, o suicídio é resultado de uma saúde cada vez mais fragilizada por um

ambiente altamente alienante. Compreende-se, pois, que se pense em analisar como epidemia

o fenômeno do suicídio.

Como abordar tal situação na ótica do Concílio Vaticano II?

Como sabemos, o Vaticano II foi o acontecimento eclesial mais relevante do século

passado, tendo contribuído para uma mudança profunda de cosmovisão cristã, ou seja, de uma

nova concepção cristã de mundo, já que foi o reconhecimento dos valores da modernidade e o

redescobrimento de uma nova consciência de Igreja.

Um dos quatro objetivos conciliares foi estabelecer um diálogo com o mundo

contemporâneo99. Percebemos no Vaticano II um concílio preferentemente pastoral, que

apresenta a fé tendo em conta o homem concreto.

____________________ 97 BAUTISTA, Mateo; CORREA, Marcelo. Ajuda perante o suicídio. São Paulo: Paulinas, 2000, p.5. 98 Ib. 99 Os outros três objetivos foram estes: aprofundar o que é a Igreja; renová-la interiormente e favorecer a união dos cristãos.

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Diferentemente dos outros concílios, o Vaticano II não foi convocado para rejeitar

uma heresia ou para superar uma crise profunda. Conforme o pensamento expresso de João

XXIII, o Vaticano II tinha como primeiro propósito não fazer condenações. Embora o papa

convocante não houvesse desenhado o programa do concílio, o seu objetivo mais evidente era

o aggiornamento da Igreja, expressão que substituía o termo “reforma”, impronunciável na

convocação conciliar pela sua apropriação protestante100.

O anúncio do Vaticano II, na festa da conversão do apóstolo Paulo, dia 25 de janeiro de 1959, na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, tem um profundo significado simbólico. Data, lugar e pessoa escolhidos pelo Papa João XXIII apontam para o propósito de reconstruir uma Igreja com atitude de conversão; apontam para uma Igreja apostólica, cuja atividade missionária se torna responsabilidade redentora para com toda a humanidade, e para uma Igreja cuja identidade não é assegurada por muros, mas que se encontra a si mesma, exatamente, “fora dos muros”. Como colocar a Igreja em dia com o mundo e com uma nova consciência histórica e inseri-la na realidade de hoje? Inserção na realidade, consciência histórica, contemporaneidade, sem concessões aos modismos, e visão utópica delineiam o campo semântico do aggiornamento. Com a eleição de João XXIII, em 1958, veio um papa que disse que a Igreja não precisava de uma operação dogmática ou de mais severidade para com o mundo, mas de uma oxigenização pela vida cotidiana, pela realidade histórica e pelos sinais de Deus no mundo. A ‘substância da antiga doutrina do depositum fidei’ está revestida de formulações sem chance de mediação pastoral para o mundo de hoje, dizia o Papa em seu discurso de abertura do Concílio, no dia 11 de outubro de 1962 (KLOPENBURG, 1963, P. 310). Prefiro, dizia o Papa, o ‘remédio da misericórdia’ ao da ‘severidade’. A Igreja precisa estar pronta para dar a razão de sua esperança, mas sempre com ‘mansidão e respeito’ (1Pd 3,14). (...) O Papa João XXIII não é o criador solitário do aggiornamento, mas a sua expressão corajosa. Muitas experiências proféticas de aggiornamento passaram, antes de João XXIII, por momentos de suspeita, de proibições e desqualificações eclesiais. Ele tem o mérito de ter esperado na porta aberta da Igreja o retorno de muitos profetas silenciados. A coragem profética, que não é própria das instituições, fez João XXIII convocar um concílio com seu olhar voltado para ‘fora dos muros’101.

Nas alocuções e discursos de João XXIII, anteriores ao Vaticano II, pode-se deduzir,

conforme Gustavo Gutiérrez, três objetivos conciliares: a) a abertura da Igreja ao mundo

moderno e à sociedade, percebendo os “sinais dos tempos”, com o objetivo de tornar

____________________ 100 A finalidade mais importante do Vaticano II foi direcionada no sentido de reformar a Igreja em vista de provocá-la a uma conversão que a tornasse instrumento pastoral mais eficaz em relação ao mundo contemporâneo. Este reajuste se denominou aggiornamento. João XXIII, quando inaugurou o concílio, em 11 de outubro de 1962, expressou a necessidade de introduzir “oportunas correções” na Igreja, conforme as “exigências atuais e com as necessidades dos diversos povos”. 101 SUESS, Paulo. Aggiornamento. In: A missão no canteiro de obras do Vaticano II – Contexto e texto do Decreto “Ad Gentes” revisitado 40 anos depois de sua promulgação. Disponível em: <http://www.cimi.org.br/?system=news&action=read&id=1682&eid=370>.

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inteligível o anúncio do Evangelho; b) a unidade dos cristãos ou presença ativa da Igreja no

ecumenismo; e c) a Igreja dos pobres em estrita fidelidade ao Evangelho102.

O discurso inaugural do Vaticano II, pelo papa João XXIII, causou viva impressão ao

sugerir vários pontos importantes: a) o caráter pastoral do concílio, no sentido de levar ao

mundo a mensagem cristã de modo eficaz, considerando as circunstâncias da sociedade; b) o

propósito de não condenar erros através de anátemas, e sim penetrar na força da mensagem; c)

a denúncia dos “profetas de calamidades” e d) a busca de unidade entre os cristãos e entre os

homens. O papa Paulo VI afirmou que este discurso foi “profecia para o nosso tempo”.

O que caracteriza um concílio é, definitivamente, a sua mensagem. O Vaticano II procurou renovar a mensagem cristã em tríplice exigência: retorno às fontes da palavra de Deus e da liturgia, proximidade à realidade social do mundo e revisão profunda da Igreja como povo de Deus. Em síntese, trouxe nova vivência de igreja no Espírito de Cristo e do Evangelho, para o serviço do mundo, em aras do reino de Deus. O propósito do concílio foi pôr a Igreja Sub Verbo Dei ou como ‘ouvinte da palavra de Deus’ e em diálogo com o mundo. Para realizar esta missão, o Vaticano II passou do ‘bastão à misericórdia’ (justo ao invés de Gregório XVI em 1830), dos ‘profetas de calamidades’ que condenam o mundo aos servidores utópicos na sociedade e da formulação inalterável das verdades a uma remodelação da mensagem cristã ‘preferencialmente pastoral’ (João XXIII)103.

O Vaticano II não teve, pois, como programa, fazer novas declarações dogmáticas,

mas tecer uma reflexão global, seguindo uma linha mais pastoral, da missão da Igreja e de

suas formas de ação frente à situação concreta do homem e da sociedade mundial do nosso

tempo.

No discurso de abertura da segunda sessão (29.9.1963), Paulo VI afirmou que o concílio ‘tratará de lançar uma ponte para o mundo contemporâneo... Que o mundo saiba: a Igreja o olha com profunda compreensão, com sincera admiração e com sincero propósito, não de conquistá-lo, mas de servi-lo; não de desprezá-lo, mas de valorizá-lo; não de condená-lo, mas de confortá-lo e salvá-lo’. Recordemos que o mundo era, nos catecismos pré-conciliares, um dos inimigos da alma. No último discurso de Paulo VI para encerrar o concílio

____________________ 102 GUTIÉRREZ, G. La recepción del Vaticano II en Latinoamérica. In: ALBERIGO, G.; JOSSUA, J.-P. (orgs.). La recepción del Vaticano II. Madrid: [s.n.], 1987, p. 217-218. apud. SAMANES, Cassiano Floristán. Vaticano II. In: SAMANES, Cassiano Floristán; TAMAYO-ACOSTA, Juan-José (dir.). Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo. São Paulo: Paulus, 1999, p. 874-880. (Dicionários). 103Cf. FAUS, J.I. Gonzáles. “Iglesia, a dónde vas?”. In: ALEGRE, X. e outros. Iglesia, de dónde vienes y a dónde vás? Barcelona: [s.n.], 1989, p. 73-94. apud. SAMANES, Cassiano Floristán. Vaticano II. In: SAMANES, Cassiano Floristán; TAMAYO-ACOSTA, Juan-José (dir.). Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo. São Paulo: Paulus, 1999, p. 877. (Dicionários). O negrito é nosso.

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(7.12.1965), o papa afirmou que o Vaticano II ‘teve vivo interesse pelo estudo do mundo moderno’. Junto à palavra ‘mundo’, o concílio pronunciou repetidas vezes os termos “sociedade” e “história”. ‘Talvez jamais, como nesta ocasião – Paulo VI disse no referido discurso – a Igreja sentiu a necessidade de conhecer, aproximar-se, compreender, penetrar, servir e evangelizar a sociedade que a rodeia e de segui-la; dizendo assim, para alcançá-la em sua rápida e contínua mudança’. Efetivamente, pela primeira vez, um concílio levou em consideração a

realidade concreta da história na sociedade e no mundo104.

3.3. A COISIFICAÇÃO DA PESSOA

Como sabemos, a história recebeu do cristianismo a introdução de uma experiência da

realidade marcada pelo encontro do homem com Deus, não um Deus neutro, mas, antes,

Alguém que se interessa pelo ser humano, por sua história, a ponto de chegar a tomar sua

própria condição humana. Podemos afirmar que, com o advento do cristianismo, a categoria

de encontro e a de pessoa se implicaram mutuamente. Isso significa que a pessoa,

caracterizando-se pela relação, realiza-se plenamente à medida que se produz sua abertura.

Com a chegada da modernidade, iniciou-se também a dúvida metódica cartesiana que,

aliás, foi o fundamento para o aparecimento daquela, levando a afirmar: posso estar seguro

unicamente de que eu sou, e sou substância pensante. Afirmou Descartes105:

‘De maneira que, após ter pensado bem e examinado tudo cuidadosamente, resulta que é preciso concluir e dar como coisa certa que esta proposição eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira, quantas vezes a pronuncio, ou a concebo em meu espírito’. E acrescenta um pouco mais adiante: ‘O que sou então? Uma coisa que pensa. E o que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que entende, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também, e que sente’106.

____________________ 104 SAMANES, Cassiano Floristán. Vaticano II. In: SAMANES, Cassiano Floristán; TAMAYO-ACOSTA, Juan-José (dir.). Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo. São Paulo: Paulus, 1999, p. 878. (Dicionários). O negrito é nosso. 105 René Descartes foi o primeiro a levantar a doutrina do dualismo corpo/mente e a propor uma maneira de como a mente se interrelaciona com o corpo. Portanto, ele discutiu temas importantes para as neurociências, temas esses que dominaram os quatro séculos seguintes, tais como a ação voluntária e involuntária, os reflexos, a consciência, o pensamento, as emoções, e assim por diante. 106 DESCARTES, R. Meditaciones cartesianas, 24 y 26. apud. LORDA, Andrés Simón. Coisificação da pessoa. In: VILLA, Mariano Moreno (dir.). Dicionário do Pensamento Contemporâneo. São Paulo: Paulus, 2000, p. 107. (Dicionários).

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Quais os perigos que isto trouxe? A perda de relação, a entronização do solipsismo107.

Foi com o personalismo comunitário, no século passado, que se tornou possível oferecer um

saber primeiro sobre a pessoa, permitindo-nos, desse modo, afirmar absolutamente a sua

dignidade e, consequentemente, evitando sua coisificação.

O ponto de partida do personalismo comunitário pode ser situado nos inícios dos anos

20, com a publicação das obras de Rosenzweig108, Ebner109, Buber110 e Marcel. Tal filosofia

recuperou a relação como característica fundamental da pessoa, aspecto que estava

obscurecido desde a época medieval, em vista da substância racional, posteriormente, cogito.

____________________ 107 O solipsismo é uma teoria filosófica idealista que afirma nada existir fora do pensamento individual e que tudo aquilo que se percebe não passa de um espécie de sonho que se tem. Podemos dizer, também, que está relacionado a uma vida ou costumes de quem vive na solidão. 108 Franz Rosenzweig foi um dos mais importantes filósofos e teólogos do século XX, tendo influenciado importantes pensadores. A obra prima de Rosenzweig é “A estrela da Redenção”, na qual ele analisa como a unicidade de cada ser humano, a realidade do mundo e a transcendência de Deus põem em xeque a idéia de totalidade, mostrando como essas três singularidades encontram sentido uma em relação à outra. A criação religa o mundo a Deus, a revelação permite que o ser humano seja orientado pela Palavra divina e a Redenção lhe dá como tarefa de salvar o mundo, essencialmente pelo amor. Em parceria com Buber, Rosenzweig traduziu parte da Bíblia hebraica para o alemão. 109Ferdinand Ebner foi contemporâneo de Buber e junto com este teve uma repercussão na teologia e na filosofia da linguagem. Foi um grande antropólogo. Voltado para o tema da relação, Ebner, destacava que a existência é uma relação vivida entre pessoas, portanto, não se realiza no homem de maneira isolada, mas apenas na vida entre o eu e o tu. E o que proporciona o ser humano vivenciar a relação é sua dimensão espiritual, chamada por Ebner de “pneuma”. O pneuma é o espírito vivente que se afirma a si mesmo na abertura ativa do eu ao tu. O pneuma é a “existência” vista como a relação real mesma, que não é apenas uma vinculação, e, sim, o concreto e o ativo colocar-se em relação. Ebner pensava que a pessoa não está dada de uma vez para sempre em um tipo de existência rígido, inalterável. Ela se auto-afirma, positivamente, na medida em que faz emergir, de dentro para fora, suas possibilidades internas. Daí a importância da relação eu e tu, manifestada nas palavras e nas atitudes expressivas. 110 Martin Buber (1878-1965) viveu numa época cujo contexto foi marcado pelo desencanto geral dos europeus ante o individualismo burguês e a esperança de uma vida social mais pessoal e comunitária. Sua antropologia é esclarecedora, pois responde à indagação “quem é o homem?”. Toda sua reflexão a respeito da categoria da relação está calcada em uma concepção de homem. Tal concepção foi sendo construída mediante a busca incessante da relação entre reflexão e ação. Enquanto os filósofos respondem a uma questão por meio de posições teóricas e apelam para a experiência existencial, para o plano empírico, somente como ilustração para a retidão das teorias, Buber, buscando o sentido profundo da práxis, age ao contrário, isto é, radica a gênese e o desenvolvimento de sua reflexão na riqueza e na força vital de sua experiência concreta. Nele, reflexão e ação foram intimamente relacionadas. Buber desenvolveu uma filosofia do diálogo que é obra-prima de um verdadeiro profeta da relação, do encontro. O diálogo, na atitude existencial do face-a-face, é considerado o fato primordial do pensamento de Buber. Para ele, a categoria do diálogo não foi uma descoberta pelas vias do raciocínio, e sim, a partir de uma experiência humana que brotou de uma fonte profundamente vivencial, existencial. A categoria da “relação” foi-se constituindo, ao longo de suas obras, como um elemento fundamental para a compreensão do sentido da existência humana. Para Buber, a palavra é dialógica. Ele atribui a ela, como palavra falante, o sentido de portadora de ser. Quando se refere ao homem como ser situado no mundo com o outro, Buber aprofunda ao destacar duas atitudes distintas do homem ante o mundo ou diante do ser. As atitudes se traduzem pela palavra-princípio Eu-Tu e pela palavra-princípio Eu-Isso. Enquanto a primeira é um ato essencial do homem, atitude de encontro entre dois parceiros na reciprocidade e na confirmação mútua, a segunda é a experiência e a utilização. As duas palavras-princípio instauram dois modos de existência. Ambas estabelecem dois modos de ser-no-mundo e imprimem uma diferença no estatuto ontológico do outro. Em outras

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Para descrever a contribuição fundamental de Buber, Lévinas111 assim se expressou:

‘A nova filosofia do diálogo ensina que invocar ou interpelar o outro homem como tu, e lhe falar, não depende de uma experiência prévia do outro, o qual, em todo o caso, não obtém da dita experiência o significado de tu. A sociabilidade do diálogo não é um conhecimento da sociabilidade; o diálogo não é a experiência da conjunção entre homens que se falam. O diálogo viria a ser um acontecimento do espírito, tão irredutível e tão antigo, ao menos, quanto o cogito’112.

Em que se baseia a análise de Buber? Eis, pois, a intuição fundamental:

‘Para o ser humano, o mundo é duplo, segundo sua própria atitude dupla diante dele. A atitude do ser humano é dupla de acordo com a duplicidade das palavras básicas que ele pode pronunciar. As palavras básicas não são palavras isoladas, mas antes pares de palavras. Uma palavra básica é o par Eu-Tu. A outra palavra é o par Eu-Ele. As palavras básicas não expressam algo que estivesse fora delas, mas antes, quando pronunciadas, fundam um modo de existência’113.

A partir dessa afirmação de Buber, percebe-se que podemos tomar diante do mundo

uma atitude dupla e o mundo será para nós conforme a atitude tomada ou escolhida. Assim

sendo, ao pronunciar a palavra Eu-Ele, entramos no mundo da experiência. O que isso

significa? O Eu passa a ser o ponto central de referência para tudo o mais, incluindo-se as

pessoas, que passam a ser objeto para o meu desfrute, o meu uso, o meu saber. Dito de outra

forma: tudo o que aparece à minha frente converte-se em apenas algo para mim. Numa

situação como essa, eu só sei dizer: “‘Eu percebo algo. Eu sou atingido por algo. Eu me

____________________ palavras: o “ser” do Tu é profundamente diferente do “ser” do Isso. De acordo com Buber, o Tu se apresenta ao Eu como sua condição de existência, já que não há Eu em si, independente. O Eu se torna Eu em virtude do Tu. Isso não significa que eu deva a ele o meu lugar. Eu devo a minha relação a ele. Ele é meu Tu somente na relação, pois fora dela, ele não existe, assim como o Eu não existe a não ser na relação. Concluindo: o Eu não é uma realidade em si, mas relacional. Buber é claro: torno-me Eu na relação com o Tu. 111Emmanuel Lévinas, filósofo, nasceu em Kaunas, na Lituânia, em 1906. Desde sua mais tenra idade, a bíblia hebraica inspirou sua vida e seu pensar. A Revolução Russa de 1917 forçou sua migração para a Ucrânia e, mais tarde, fixou residência na França, onde se naturalizou. Em 1939, nos horrores da Segunda Guerra Mundial, passou cinco anos de prisão nos campos de concentração nazistas na Bretanha (Alemanha). Aí, conviveu de perto com as conseqüências de uma ontologia que coloca o eu imperialista na determinação de seu agir ético. Concluiu que uma tal filosofia é capaz de gerar crueldades que dilaceram tudo o que poderia vislumbrar-se de humano. Seu pensamento filosófico, que antepõe a Ética à Ontologia, invade cada vez mais pensadores e estudiosos em todas as áreas de pesquisa. O pensamento dele parte da idéia de que a Ética, e não a Ontologia, é a filosofia primeira. É no face-a-face humano que se irrompe todo sentido. Diante do rosto do Outro, o sujeito se descobre responsável e lhe vem à idéia o Infinito. Lévinas completou sua carreira acadêmica como professor da Universidade de Sorbone. Apesar de uma experiência de vida itinerante e, de certa forma, marcada pelo traumatismo, revelou-se um homem de intensa atividade, cujo vigor e seriedade com que encarou a vida acadêmica e sua produção teórica dispensam comentários. Na manhã de 25 de dezembro de 1995, Lévinas veio a falecer em Paris, aos 89 anos de idade. O seu legado filosófico vem despertando cada vez mais interesse no mundo inteiro. 112 LÉVINAS, E. De Dios que viene a la idea, 233. apud. Ib., p. 108. 113 BUBER, M. Yo y tú, 9. apud. Ib.

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represento algo. Eu quero algo. Eu sinto algo. Eu penso algo’”114. Para ilustrar melhor tal

realidade, Buber usou o pronome neutro da terceira pessoa do singular – isso –, querendo,

assim, designar aquilo que minha vida possui quando está situada nessa palavra. Com a

filosofia do Eu-Isso, se tentarmos alcançar a outra pessoa naquilo que ela tem distinta do

mundo e que lhe dá uma especial dignidade, não o conseguiremos, porque, no fundo, tudo se

torna objeto. Nessa expressão Eu-Isso, eu significa o homem como indivíduo ou sujeito, e não

como pessoa. Indivíduo porque procurará o seu contraste diante dos outros; vai afirmar-se

negando os outros. Conseqüentemente, ele se torna impossibilitado de realizar aquilo que o

constitui como pessoa, ou seja, a relação.

Realidade totalmente oposta é a de quando pronunciamos a expressão Eu-Tu.

‘Quem diz Tu não tem por objeto algo. Pois onde houver algo, haverá outro algo; cada Isso faz limite com outro Isso; o Isso não está sozinho, porque faz limite com outro. Mas onde se diz Tu não se está falando de alguma coisa. O Tu não estabelece confins. Quem diz Tu não tem algo, ou antes nada tem. Mas se situa na relação’115.

Enquanto no mundo do Isso existe a experiência, no mundo do Tu o verbo

fundamental é encontrar-se, relacionar-se. As características fundamentais no Eu-Tu são a

exclusividade, a imediaticidade e a reciprocidade. O Eu propriamente dito só pode constituir-

se quando está em correspondência com o Tu, entrando numa relação. É um Eu que se torna

pessoa. É somente na relação que Eu e Tu chegam a ser tais e quais. A imediaticidade

acontece porque a presença do rosto do outro torna-se um mandato imediato para mim, ou

seja, querendo ou não, preciso responder. Não posso adiar a minha responsabilidade pelo

outro. Não posso me comportar apenas como um espectador que descreve o seu objeto,

extraindo dele um conhecimento. A relação Eu-Tu amplia-se para o nós comunitário, para a

presença do terceiro. Minha responsabilidade pelo próximo diz respeito a todos os homens.

Relação e ética são as duas faces da moeda.

____________________ 114 Ib. 10. apud. Ib. 115 Ib. 10-11. apud. Ib.

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3.4. AS ANGÚSTIAS E AS ESPERANÇAS DO SER HUMANO EM NOSSOS DIAS

Não podemos negar que a vida humana tem sido marcada por uma realidade de

grandes mudanças que nos afetam profundamente. Somos desafiados a discernir os “sinais

dos tempos”. Tais mudanças têm uma novidade em relação a outras épocas: hoje, o alcance

delas é global, ou seja, com diferenças e matizes, todo o mundo é afetado. Habitualmente,

essas mudanças são caracterizadas como o fenômeno da globalização116. Essa nova escala

mundial do fenômeno humano gera conseqüências em todos os campos de atividade da vida

social, causando impacto na cultura, na economia, na política, nas ciências, na educação, no

esporte, nas artes e também, sem dúvida, na religião.

Nesse novo contexto social, a realidade para o ser humano passou a ser cada vez

menos brilhante e mais complexa.

Isso nos tem ensinado a olhar a realidade com mais humildade, sabendo que ela é maior e mais complexa que as simplificações com que costumávamos vê-la em passado ainda não muito distante e que, em muitos casos, introduziram conflitos na sociedade, deixando muitas feridas que ainda não chegaram a cicatrizar117.

Diante de um mundo tão fragmentado e limitado, percebemos cada vez mais as

pessoas frustradas, ansiosas ou angustiadas. Muitos estudiosos de hoje são da opinião que a

____________________ 116 A respeito deste fato tão presente e debatido em nossos dias, o Documento de Aparecida aponta que: A globalização é um fenômeno complexo que possui diversas dimensões (econômicas, políticas, culturais, comunicacionais etc). Para sua justa valorização, é necessária uma compreensão analítica e diferenciada que permita detectar tanto seus aspectos positivos quanto os negativos. Lamentavelmente, a face mais difundida e de êxito da globalização é sua dimensão econômica, que se sobrepõe e condiciona as outras dimensões da vida humana. Na globalização, a dinâmica do mercado absolutiza com facilidade a eficácia e a produtividade como valores reguladores de todas as relações humanas. Esse caráter peculiar faz da globalização um processo promotor de iniqüidades e injustiças múltiplas. A globalização, tal como está configurada atualmente, não é capaz de interpretar e reagir em função de valores objetivos que se encontram além do mercado e que constituem o mais importante da vida humana: a verdade, a justiça, o amor, e muito especialmente a dignidade e os direitos de todos, inclusive daqueles que vivem à margem do próprio mercado. Conduzida por uma tendência que privilegia o lucro e estimula a concorrência, a globalização segue uma dinâmica de concentração de poder e de riqueza em mãos de poucos. Concentração não só dos recursos físicos e monetários, mas sobretudo da informação e dos recursos humanos, o que produz a exclusão de todos aqueles não suficientemente capacitados e informados, aumentando as desigualdades que marcam tristemente nosso continente e que mantêm na pobreza uma multidão de pessoas. [...] (n. 61-62). 117 CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Documento de Aparecida – Texto Conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. Brasília: CNBB; São Paulo: Paulus; Paulinas, 2007, nº. 36, p. 28.

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realidade traz inseparavelmente uma crise de sentido. Não se trata dos múltiplos sentidos

parciais que cada pessoa pode encontrar nas ações que faz no dia-a-dia, mas do sentido que dá

unidade a tudo o que existe e nos sucede na experiência, sentido este que para os cristãos tem

o nome de sentido religioso. Infelizmente, de modo geral, ao invés de preencher o vazio

produzido em nossa consciência pela falta de um sentido unitário da vida, em muitas situações

a informação transmitida pelos meios só nos distrai. Percebemos estar num mundo que cada

vez é mais opaco e menos compreensível.

Descrevendo sobre o desafio da realidade atual, o Documento de Aparecida traz em

seu texto:

A sociedade que coordena suas atividades só mediante múltiplas informações, acredita que pode agir de fato como se Deus não existisse. Mas a eficácia dos procedimentos conseguida mediante a informação, ainda que com as tecnologias mais desenvolvidas, não consegue satisfazer o desejo de dignidade inscrito no mais profundo da vocação humana. Por isso, não basta supor que a mera diversidade de pontos de vista, de opções e, finalmente, de informações, que costuma receber o nome de pluri ou multiculturalidade, resolverá a ausência de um significado unitário para tudo o que existe. A pessoa humana é, em sua própria essência, o lugar da natureza para onde converge a variedade dos significados em uma única vocação de sentido. As pessoas não se assustam com a diversidade. O que de fato as assusta é não conseguirem reunir o conjunto de todos esses significados da realidade em uma compreensão unitária que lhes permita exercer sua liberdade com discernimento e responsabilidade. A pessoa sempre procura a verdade de seu ser, visto que é esta verdade que ilumina a realidade de tal modo que possa nela se desenvolver com liberdade e alegria, com prazer e esperança118.

O que nós podemos constatar, atualmente, é, na verdade, uma mudança de época, e

seu nível mais profundo é o cultural. A concepção integral do ser humano, sua relação com o

mundo e com Deus está dissolvida, e aparece, com grande força, uma sobrevalorização da

subjetividade individual. O individualismo vai enfraquecendo os vínculos comunitários. A

preocupação pelo bem comum vai ficando de lado para dar lugar à realização imediata dos

desejos dos indivíduos, à criação de novos e muitas vezes arbitrários direitos individuais.

Percebe-se a imposição de uma cultura caracterizada pela auto-referência do indivíduo, que

____________________ 118 Ib., nº. 42, p. 31.

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92

leva à indiferença pelo outro, de quem não necessita e por quem não se sente responsável. O

dia-a-dia vai sendo vivido sem programas a longo prazo, nem apegos pessoais, familiares e

comunitários. As relações humanas acabam se tornando objetos de consumo, resultando

relações afetivas sem compromisso responsável e definitivo.

Quando tratam dos destinatários das palavras do Concílio, os padres conciliares

afirmam que o mundo que a Igreja “tem diante dos olhos é o dos homens, e toda a família

humana com a totalidade das coisas entre as quais vive; este mundo, teatro da história do

gênero humano e marcado por sua atividade: derrotas e vitórias [...]”119.

Logo em seguida, continuam os padres:

Em nossos dias, arrebatado pela admiração das próprias descobertas e do próprio poder, o gênero humano freqüentemente debate os problemas angustiantes sobre a evolução moderna do mundo, sobre o lugar e a função do homem no universo inteiro, sobre o sentido de seu esforço individual e coletivo e, em conclusão, sobre o fim último das coisas e do homem. Por isso o Concílio, testemunhando e expondo a fé de todo o povo de Deus congregado por Cristo, não pode demonstrar com maior eloqüência sua solidariedade, respeito e amor para com toda a família humana, à qual esse povo pertence, senão estabelecendo com ela um diálogo sobre aqueles vários problemas, iluminando-os à luz tirada do Evangelho e fornecendo ao gênero humano os recursos de salvação que a própria Igreja, conduzida pelo Espírito Santo, recebe de seu Fundador.[...]. Para desempenhar tal missão, a Igreja, a todo momento, tem o dever de perscrutar os sinais dos tempos e interpreta-los à luz do Evangelho, de tal modo que possa responder, de maneira adaptada a cada geração, às interrogações eternas sobre o significado da vida presente e futura e de suas relações mútuas. É necessário, por conseguinte, conhecer e entender o mundo no qual vivemos, suas esperanças, suas aspirações e sua índole freqüentemente dramática. Algumas das características principais do mundo moderno podem ser delineadas da seguinte maneira: O gênero humano encontra-se hoje em uma fase nova de sua história, na qual mudanças profundas e rápidas estendem-se progressivamente ao universo inteiro. Elas são provocadas pela inteligência do homem e por sua atividade criadora e atingem o próprio homem, seus juízos, seus desejos individuais e coletivos, seu modo de pensar e agir tanto em relação às coisas quanto em relação aos homens. Já podemos falar então de uma verdadeira transformação social e cultural, que repercute na própria vida religiosa. Como acontece em qualquer crise de crescimento, esta transformação acarreta sérias dificuldades. Assim, enquanto o homem estende tão amplamente o seu poder, contudo nem sempre consegue submete-lo a seu serviço. Esforçando-se por penetrar mais profundamente na intimidade da própria mente, aparece com freqüência mais incerto de si mesmo. Descobrindo pouco a pouco mais claramente as leis da vida social, hesita sobre a direção a lhe imprimir. [...] Os homens nunca tiveram um sentido de liberdade tão agudo como hoje, mas ao mesmo tempo aparecem novas formas de escravidão social e psíquica.[...]. Marcados por uma situação tão complexa, muitos dos nossos contemporâneos são impedidos de discernir verdadeiramente os valores perenes, harmonizando-os de modo adequado com as descobertas recentes. Assim,

____________________ 119 Gaudium et Spes 2 (202).

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93

inquietos, eles se interrogam, num misto de esperança e angústia, sobre a evolução social do mundo.[...]120.

Tais palavras do Concílio nos ajudam, certamente, a entender que, embora a moral

cristã seja decisiva e unânime na matéria do suicídio, não podemos analisar o fenômeno

apenas sob um prisma. Como é sabido, a tradição religiosa do povo de Israel, continuada na

Igreja, sempre viu no suicídio a negação da tarefa humana de reconhecer seu criador como

Senhor da vida e de aperfeiçoar-se de acordo com a imagem de Deus. São Paulo, na epístola

aos Romanos, afirmou: “Nenhum de nós vive para si, e ninguém morre para si. Se vivemos,

vivemos para o Senhor; se morremos, morremos para o Senhor. Quer vivamos, quer

morramos, pertencemos ao Senhor. Para isso é que morreu Cristo e retomou a vida, para ser

Senhor tanto dos mortos como dos vivos”121.

Olhando apenas do ponto de vista religioso, o suicídio representa a mais ousada

expressão de presunção, de revolta e de desespero. Porém, na realidade, a vontade de suicidar-

se não implica geralmente a consciência de ousadia, e sim, está cercada de desassossego,

esgotamento, angústia, desânimo, desespero, em que a pessoa, na frustração e desilusão, não

encontra mais outro caminho que o de querer acabar com a vida. São diversos os casos nos

quais a idéia impulsiva de suicídio costuma estar mais condicionada pela situação especial

com que a pessoa se vê confrontada do que pelo caráter psicopatológico presente previamente

na pessoa.

O texto conciliar faz-nos perceber que não convém abordar uma pessoa que está com

vontade de suicidar-se com as armas ameaçadoras de pecado e inferno. Trata-se de uma tática

que não só costuma ser ineficiente, podendo provocar reação contrária do “Deus terá dó de

mim”, mas intensifica a angústia em que a pessoa está imersa. O estado mental dessa pessoa

se caracteriza pela perturbação e ansiedade que tendem a trancar o indivíduo incomunicável

____________________ 120 Op. cit. 3-4 (203-209). 121 Rm 14, 7-9.

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em sua solidão e estreitam-lhe o horizonte das possibilidades. Na verdade, a imagem do

fracasso, da desonra, da calamidade, da frustração se torna tão prepotente que o mundo vira

uma cadeia sem luz nem ventilação, cuja única saída é o suicídio. Fechado deste modo dentro

do seu problema, o indivíduo encontrará um primeiro meio de quebrar seu isolamento na

receptividade calma e na aceitação tranqüila de alguém que não se irrita nem condena nem

fica amedrontado, mas, mediante sua atenção e perguntas estimuladoras, cria o ambiente em

que o outro se sente à vontade de contar a história toda. O simples fato de encontrar alguém

de ouvidos e coração atentos, ao qual é possível explicar tudo o que lhe está martirizando o

espírito, já proporciona, muitas vezes, sentimentos de alívio e libertação em que a angústia

obcecante recua e as realidades da vida se mostram com maior clareza e em suas justas

proporções. Um diálogo no qual quem escuta – principalmente se for uma representante da

Igreja – não toma a posição de juiz ou diretor, de antemão, pronto com um estoque de

conselhos, e sim, favorecendo com que o outro fale e formule seus problemas, auxilia a

pessoa angustiada a esclarecer sua posição diante de si mesma e do mundo concreto em que

está vivendo. Mediante um bom colóquio, a pessoa toma distância para ver tudo melhor: o

que está perdido e o que ainda está em pé; as possibilidades que estão excluídas e as que estão

abertas.

É importante considerar que o suicídio facilmente funciona como uma idéia fixa que

paralisa as energias da pessoa. A questão não é apenas que a pessoa já não vê outra saída, mas

também que é incapaz de enfrentar e realizar outra solução para o impasse que está vivendo.

Sente-se presa e imobilizada como o coelho da noite no farol do automóvel. Concentrando a

atenção e a energia, o suicídio dá, às vezes, a impressão de a pessoa estar sendo puxada pela

força aliciante de acabar com tudo e encontrar paz e tranqüilidade na morte. A imagem do

suicídio, alimentada e concretizada por exemplos do próprio ambiente, pelos meios de

comunicação, fixa-se na mente e monopoliza a visão da pessoa. A disposição de enfrentar

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95

realisticamente a vida concreta, tal como se lhe apresenta de verdade, está tão reduzida, que o

próprio “instinto” de conservação parece temporariamente desvanecido.

Dessa forma, o contato com tais pessoas há de levá-las a extenuar o caráter obsessivo

da imagem formada do suicídio, estimulando-as a descobrir outros caminhos e a agir de

acordo com as demais possibilidades que lhes restaram realisticamente. Mais do que uma

exposição sobre o sentido da vida para o ser humano ou para o cristão em geral, é importante

dirigir-se à ordem concreta da vida da pessoa que está com o problema angustiante, na sua

situação particular e condicionamento pessoal. Conforme a direção que o diálogo toma, a

pessoa começa a ver não só os aspectos construtivos de sua vida, mas tarefas e serviços aos

outros que dão sentido à sua continuação. Quanto mais estas tarefas e serviços começam a

elucidar-se concretamente, tanto mais tende a diminuir a atração do suicídio.

3.5. A BUSCA DA FRATERNIDADE

Logo no proêmio, a “Gaudium et Spes” afirma que “proclamando a vocação altíssima

do homem e afirmando existir nele uma semente divina, o Sacrossanto Concílio oferece ao

gênero humano a colaboração sincera da Igreja para o estabelecimento de uma fraternidade

universal que corresponda a esta vocação”122.

Quando falamos de fraternidade, precisamos admitir que se trata de uma crença: ela é

uma sábia mistura de conhecimento e fé na qual se implica o homem inteiro. Só é possível

conhecer a fraternidade à medida que se crê nela. Considerando que a fé tem dois movimentos

– o do consentimento ou aprovação e o da adesão – somente é possível saber o que é a

fraternidade se vivemos fraternalmente com a outra pessoa. Podemos dizer, pois, que a

fraternidade é a afirmação e o compromisso decidido de fazer da história do ser humano uma

____________________ 122 Gaudium et Spes 3 (203).

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história de amor. Se concordamos que o ser humano vai se descobrindo como pessoa,

podemos afirmar que a fraternidade é a história de amor que o homem vai fazendo ao viver:

um processo de personalização. “A fraternidade é a opção e o esforço infindável de construir

entre todos os homens uma relação de profunda amizade, na alegria de se sentir queridos

prévia e incondicionalmente, e na esperança e na fé de que o amor tem a última palavra da

existência, como teve a primeira”123.

A fraternidade é o reconhecimento absoluto da dignidade do outro. Esse

reconhecimento depende do comportamento da pessoa para comigo, da exigência que eu

tenho de me relacionar com ela como alguém de valor único e irrepetível. Não é possível o ser

humano viver como pessoa sem viver com liberdade.

Sim, trata-se de uma história de amor, e assim o cremos, não pode ser de outra forma a não ser aderindo a vivê-la livremente. Mas o amor, ou é produto da liberdade, ou não é amor. E é um amor que compreende a fé e a esperança, já que somente podemos acolher e nos entregar – o amor é fundamentalmente isto: acolhida e entrega – àquele em quem confiamos e somente podemos crer em quem esperamos. A esperança em si mesmo é o primeiro ponto de apoio de nossa vida; a esperança, essa fé voltada para o futuro, é o ponto de apoio básico para amar ao outro. Fé, esperança e amor se necessitam e se dão mutuamente na fraternidade se ela é o que diz ser124.

Quando procuramos o fundamento da fraternidade, percebemos que não é possível

fundamentar a absoluta dignidade da pessoa, se não houver uma abertura à existência de Deus

que valoriza infinitamente cada um dos seres humanos: os que existem, existiram e existirão.

A absoluta dignidade humana, o ser pessoal e a incondicionalidade do amor e do dever não

são evidentes por si mesmos. Apenas a existência de Deus, como Pai de todos, Criador por

amor, e, portanto, Criador de pessoas livres, explica de modo suficiente a exigência do amor e

do dever, da esperança e da fé que nos faz mover, existir e ser. É a partir da divina história de

amor que se torna possível observar o mistério da criação, da história, da pessoa, e explicar a

____________________ 123 ORCAL, Antonio Calvo. Fraternidade. In: VILLA, Mariano Moreno. (dir.). Dicionário do Pensamento Contemporâneo. São Paulo: Paulus, 2000, p. 360. (Dicionários). 124 Ib. p. 361.

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esperança que sempre alimenta a vida humana, apesar da dor permanente e do sofrimento que

encurralam a sua frágil existência.

Somente uma história de amor divina pode acolher no seu seio e tirar do seu cruel anonimato, tantos homens e tantas crianças, tantos miseráveis sem nome próprio, tantos seres humanos que na história foram privados da possibilidade de ser plenamente pessoas. Em última análise, somente a história de amor de Deus pode explicar plenamente a história de amor do homem. Acolher na fé, na esperança e no amor esta história é compreender-nos como filhos de Deus e extrair as conclusões de que a dor e a morte não são a última palavra da história; a criação e a filiação nos põem no mundo como imagem e semelhança de Deus, num tempo que é história (de salvação), num mundo que é todo ele profano ou todo ele sagrado, pois não há dois mundos. Somos pessoas: tu de Deus e do homem, co-criadores do universo. A iniciativa é de Deus, a gestão é do homem125.

Com certeza, podemos afirmar que a história da liberdade é, em grande parte, a que

construímos. Não podemos separar pensamento e ação. Se é correto afirmar que a linha do

futuro do ser homem passa pela fraternidade, deve-se dizer que está dentro da linha de

humanização apenas aquilo que constrói a fraternidade no mundo. Se não a construímos,

abdicamos de ser homem ou, em outras palavras, matamos. Tanto pela ação quanto pela

omissão, a relação que não é de amor com a outra pessoa é homicídio e suicídio, fazendo com

que a vida seja negada de muitas formas.

Olhando com as lentes de uma antropologia mais personalista, pode-se dizer que é

impossível realizar-se como pessoa se não se reconhece no outro um tu digno de amor.

Perseverar até o fim para se salvar (Mc 13,13), levantar a cabeça e perceber que a

libertação está próxima (Lc 21,28b) e crer no Cristo sempre vivo (Heb 13,8) são

admoestações que devem acompanhar-nos na busca da fraternidade. A civilização atual corre

o risco de colocar o ser humano nos arquipélagos da solidão, que, por sua vez, é,

praticamente, sempre pavorosa.

A fraternidade é dado fundamental no componente ontológico do ser humano: o

homem é irmão. Não há como falar em fraternidade sem um imediato pensamento de uma

____________________ 125 Ib.

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presença que garanta o término da segregação e do isolamento. Necessariamente, a

fraternidade evoca relação de solidariedade que, podemos dizer, significa companhia

inteligente, presença ativa, estar em comunhão. Sem dúvida alguma, a base da fraternidade é a

pessoa. Como ser existente, a pessoa abriga em si um princípio vital comum individualizado

na identidade irrepetível de cada um. Redescobrindo continuamente a imagem e semelhança

com Deus em si e em seus semelhantes, o homem dá um passo decisivo para Deus, tornando-

se filho. Este dado cristão aplaina o caminho da fraternidade porque resgata a pessoa: nem

medo, nem receio, nem fuga, nem segregação, nem escravidão em relação a ela; isto sim:

empenho no respeito, na valorização e na promoção da mesma. A fraternidade não se

confunde com a crítica, com a condenação, com a imposição de pena; só é possível a nível de

amor desarmado e construtivo, que tenta prevenir o perigo de culpa, que ajuda o irmão ou a

irmã em dificuldade, que foge da tentação de marginalizar, que evita o juízo moral.

A construção da fraternidade é obra fascinante, mas laboriosa e difícil; o individualismo é mais fácil. Malogros, decepções e cansaço tentam relegar a fraternidade ao mundo das utopias, induzir a construir em pequenos espaços imunizados, diminuir esforços. Na realidade, o objetivo é importante. O cristão, ao caminhar por caminhos do Espírito, é realista, com tendência ao otimismo, inclusive no que se refere à fraternidade126.

3.6. A IMPORTÂNCIA DA COMPAIXÃO

Só é possível termos uma idéia do que é a compaixão e explicá-la de modo mais

inteligível e convincente, quando, antes de tudo, procuramos conhecer e ter a experiência do

sofrimento.

Fundamentando-nos na etimologia latina, com freqüência tomamos o termo compassio

no sentido de sofrer com. Porém, a riqueza do significado dele aumenta ainda mais se o

____________________ 126 CANDIDO, Luigi de. Fraternidade. In: FIORES, Stefano de; GOFFI, Tullo. (org.). Dicionário de Espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 473. (Dicionários).

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traduzíssemos como experimentar com.

A compaixão remete para a experiência do sofrimento com a outra pessoa e isto nos

leva a dizer que não é possível conhecer o que este sofrimento implica, enquanto não fizermos

a mesma experiência de quem sofre.

Quando experimentamos o sofrimento de alguém e oferecemos uma certa assistência a

pessoas que sofrem, estamos experimentando não apenas um momento isolado do seu sofrer,

mas também o próprio processo do seu sofrimento.

Etimologicamente, no vocábulo compaixão, encontramos dupla origem semântica. Por um lado, procede do latim cum-passio e faria alusão ao sofrimento compartilhado com outrem. Ao mesmo tempo, o verbo latino passio procede do termo grego pathos que faz referência ao sentimento entendido como drama interior. Deste modo, cum-passio seria acompanhar o outro em seu drama interior; dever-se-ia completar esta definição inicial frisando que a compaixão é a participação no sofrimento do outro, enquanto diferente desse mesmo sofrimento já que a compaixão não é sinônimo de identificação anímica com o dolorido, mas antes implica a mobilização ativa de todos os recursos, com a finalidade de transformar tanto quanto possível essa situação de dor127.

Sendo assim, podemos, pois, afirmar que a compaixão torna-se a virtude pela qual

temos uma forma de participação consciente no sofrimento concreto da outra pessoa, estando

nós, por isso, em condições e dispostos a oferecer-lhe assistência para que a dor seja aliviada

ou, então, apesar dessa dor, ela continue querendo e lutando para viver.

Certamente, em nosso vocabulário cotidiano, os termos “sofrimento” e “dor” são a

mesma coisa, ou seja, usamo-los como sinônimos. Será que isto está correto?

Na verdade, analisando bem, notamos que é possível e, ao menos algumas vezes,

necessário, distinguir um do outro. À dor, está mais relacionada uma angústia física, mental

ou emotiva, associada a qualquer distúrbio, ferida ou doença, podendo, igualmente, ser um

estímulo desagradável, caracterizado por certo desconforto.

Quando nos referimos ao sofrimento, devemos visualizar uma angústia que sentimos

____________________ 127 GONZALO, Luis Alfonso Aranguren. Compaixão. In: VILLA, Mariano Moreno (dir.). Dicionário do Pensamento Contemporâneo. São Paulo: Paulus, 2000, p. 113. (Dicionários).

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como ameaça à nossa serenidade, à nossa integridade, à realização das nossas intenções ou

dos nossos objetivos e, aprofundando-nos mais, podemos afirmar que tal angústia é como

uma frustração em relação ao significado existencial concreto que estava em nossa mente.

A angústia do sofrimento pode depender de múltiplas causas que não correspondem,

necessariamente, à dor que pode constituir o mais claro objeto da compaixão.

Para uma ética da compaixão, pode-se marcar o ponto de partida numa série de

perguntas a respeito do sentido a dar ao “sofrimento sem sentido” e, ainda antes, conforme a

sugestão de Viktor Frankl128, a respeito do significado da própria vida.

A falta de comunicação com meus pais, pelo mau relacionamento que existe entre eles – minha mãe depressiva e meu pai alcoólatra – fizeram com que os problemas que surgiram em minha vida, no trabalho e no relacionamento humano, não fossem devidamente trabalhados. Por outro lado, como sou pouco comunicativo – sempre tive dificuldades para falar de meus problemas – e com poucos amigos, abateu-se a escuridão e apagaram-se em mim os poucos raios de luz que dão serenidade e perspectiva à vida. Acabei caindo numa forte depressão. Nem mesmo as lágrimas eram suficientes para aliviar minha angústia. Sonhava com uma válvula libertadora. Infelizmente, também minha fé estava no meio de um inverno frio. Não consegui apoiar-me em Deus, que sempre está perto de nós com amor. Considerava utopia recorrer a um diálogo com meus pais! Sentia-me confuso e impotente. A discussão com um supervisor no trabalho foi o estopim. Considerei isso uma grande agressão e injustiça. Cheguei num momento em que já não se pensa muito e tomei a decisão: um frasco de comprimidos. Pensava acabar com meus sofrimentos... Tinha 22 anos. Assim, uma nova história começou após a lavagem estomacal. Ao acordar, conheci psicólogos, psiquiatras e sacerdotes. Alguns deles me ajudaram, outros, nem tanto. As coisas iam de mal a pior. Continuava com meus velhos problemas, acrescidos da culpa social e a minha interior. Voltei ao trabalho, mas inutilmente. Não conseguia concentrar-me. A idéia de nova tentativa de suicídio – mas de outra forma – era persistente. Continuava num beco sem saída, com a alma como um esqueleto tremendo de frio e com a fé presa por um ou dois alfinetes. Os amigos foram sumindo. Apenas continuaram fiéis e constantes aqueles que não se assustaram diante do sofrimento, entre eles minha irmã. Acontece como com o garimpeiro à cata de ouro: a areia escorre com a água e aparecem as poucas pepitas, os amigos de verdade. Tranquei-me em minha casa. O mundo, as pessoas, a rua pareciam-me adversos. Fui meu próprio carcereiro. A falta de projetos entristecia minha existência. Forçaram-me a uma internação psiquiátrica, o que me causou forte impacto. Uma tia deu-me de presente alguns escritos de santa Teresa de Jesus. Detive-me nos versos que consegui guardar de cor: ‘Nada te perturbe, nada te espante...’. O relacionamento entre meus pais – e o meu com eles – continuava pouco sadio. Com o passar do tempo, apareceu um agente de pastoral da paróquia. Nos

____________________ 128 A respeito de Viktor Emil Frankl já discorremos na página 17 e nota de rodapé 11 desta trabalho.

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primeiros encontros, escutava-me com muita atenção. Eu desabafava. Essa pessoa, com muita energia, não começou a me falar da Bíblia, o que é pouco comum. Falava-me da vida, que agora compreendo que é a melhor maneira para começar a falar de Deus. Quando ia embora, perguntava se eu queria que voltasse. Minha indiferença não o assustava. Insistia e voltava, como um Quixote que procurava derrubar os grandes moinhos de meu isolamento. Até que um dia, leu-me a narração de Jesus no Monte das Oliveiras, onde diz: ‘Seu suor se tornou como gotas de sangue, que caíam no chão’ (Lc 22,44). Não me perguntem como, mas estas palavras tocaram fundo meu coração. Surpreendeu-me a humanidade de Jesus. Naquele momento era muito freqüente que, antes de qualquer encontro com uma pessoa, eu mesmo suava muito. Admirei a força de Jesus diante de seus adversários. E eu, pelo contrário, não suportava minha humanidade sofredora. Um dia, ‘meu bom samaritano’ propôs-me estudar, e assim me preparasse para um trabalho que estavam conseguindo para mim. Ao mesmo tempo, afastava-se sadiamente de meu meio familiar. Começava a entrever o caminho com um ou dois véus a menos. Como foi difícil aceitar. Mas já estava cansado de sofrer. Às vezes, tenho medo que o suicídio seja como um desses vírus incuráveis que aguardam o momento para acordar. Mas nesta vida contraditória de claro-escuro, tenho muita vontade de viver, com meus pequenos e grandes projetos129.

Podemos elencar três fases do sofrimento. Uma primeira fase do sofrimento podemos

chamá-la de sofrimento silencioso, naquela experiência que faz com que fiquemos sem

palavra, diante da pessoa que sofre. Não se trata bem do “sofrer em silêncio” e sim,

principalmente, do conhecimento daquele modo de sofrer, pelo qual se é reduzido ao silêncio.

Pode até ser que o silêncio não tenha perdido a sua voz; ao contrário, pode até estar gritando,

porém , o grito da dor continua a ser sempre expressão silenciosa que não consegue exprimir-

se.

Uma característica do sofrimento é, também, a perda de autonomia, entendida como

capacidade de livre autodeterminação. Em relação ao sofrimento silencioso, quem sofre tende

a fechar-se naquilo que não é essencial, destruindo a sua capacidade de comunicação.

Numa segunda fase do sofrimento, podemos visualizá-lo como sofrimento expressivo.

Aqui, nesta fase, quem sofre, quando tenta compreender o seu sofrimento, procura um modo

de exprimi-lo linguisticamente. A linguagem da pessoa que sofre, acompanhada de uma ou

mais pessoas ao seu lado, entra em diálogo com o próprio sofrimento silencioso. Essa

linguagem pode ser uma espécie de lamentação, narração ou interpretação. No primeiro caso,

____________________ 129 BAUTISTA, Mateo; CORREA, Marcelo. Ajuda perante o suicídio. São Paulo: Paulinas, 2000. (Pastoral da saúde), p. 51-53.

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vemos a pessoa reivindicando sua inocência e seu desejo de ser escutada, apoiada e ajudada.

Quando a linguagem é narrativa, esta visa dois objetivos: um referente ao passado,

outro, relacionado com o futuro. O primeiro é para reconstruir a experiência silenciosa do

sofrimento, o outro, para levar pra frente a busca de uma nova identidade pessoal. Num

primeiro momento, conta-se a história pessoal com a esperança de poder afastar-se do próprio

passado, e depois, ou ao mesmo tempo, procura-se a dimensão narrativa de uma existência na

qual se crê130.

No caso da linguagem da interpretação, quem sofre pode usar a linguagem da vítima

no altar da dor, imaginando-se, talvez, uma pessoa torturada ou aniquilada por forças

estranhas. Sendo assim, esta terceira fase identifica-se com a nova identidade que se alcança

no sofrimento: tocada pela solidariedade e pela compaixão dos outros, a pessoa que sofre

identifica-se com a imagem que brota de si mesma mediante o sofrimento131.

Diante das três fases do sofrimento, podemos observar três fases da compaixão. Essas

fases adquirem significado à medida que a pessoa interessada procura questionar-se: o que é

que este sofrimento exige de mim? De que forma posso responder ao sofrimento de alguém

que está confiado (a) aos meus cuidados?

A primeira fase é a da empatia e da compaixão silenciosa. O início da compaixão

acontece na empatia e ambas se iniciam no silêncio, o qual, pode ser mais do que um vazio

inicial. No primeiro encontro com a pessoa que sofre, o silêncio pode ser a melhor resposta

possível. Um silêncio construtivo projeta a pessoa que sofre para a frente de si mesma,

ajudando-a a descobrir a linguagem do seu sofrimento, em diálogo com a sua experiência

existencial132.

A segunda fase é a da compaixão expressiva, na qual entram os gestos de

____________________ 130 Cf. REICH, Warren Thomas. Compaixão. In: LEONE, Salvino; PRIVITERA, Salvatore; CUNHA, Jorge Teixeira da. Dicionário de Bioética. Aparecida: Santuário, 2001, p. 175-178. (Dicionários, 7) 131 Ib. 132 Ib.

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comunicação. Um destes é a linguagem do próprio diagnóstico. Apesar da dor, por causa de

um diagnóstico pouco agradável, o fato de conhecer a doença ou o problema ajuda a libertar a

pessoa de um mistério. Outra forma dessa compaixão expressiva é a da narração. O

significado e o valor da vida diante de quem sofre implicam a capacidade ou incapacidade,

por parte da pessoa que sofre, de inventar uma nova história para si mesma133.

A terceira fase da compaixão é a que dá voz à sua nova identidade. Num primeiro

momento, podemos pensar que a compaixão atinge a sua plenitude máxima na experiência do

silêncio ou da empatia comprovada e no pronunciar da palavra que dá significado ao

sofrimento alheio. Porém, se não existir a terceira fase na compaixão, semelhante à do

sofrimento, também não haverá uma transformação, por pequena que seja, na pessoa que

exerce a compaixão. Não dá pra pensar que essa pessoa não sofra mudanças benéficas, depois

de ela própria se ter tornado vulnerável, sofrendo com o outro e tornando-se, ao mesmo

tempo, uma espécie de salvador (a).

Quem exerce a medicina apresenta, de um modo geral, dificuldades especiais na

prática da compaixão. A exagerada tendência da medicina para a objetividade torna difícil a

percepção do valor de se entrar em contato com a subjetividade sofredora do paciente.

Enfim, a identificação com a própria voz compassível permite a elaboração de uma

série de histórias. A pessoa que sofre elabora narrativamente muitas recordações de dor e de

sofrimentos que dirige a quem respondeu com compaixão.

José Augusto Gaiarsa, médico psiquiatra, conferencista, jornalista e psicoterapeuta,

num artigo sobre o suicídio, afirma que, se não tomarmos cuidado, no esforço aparente de

compreender o suicídio, na verdade, saímos da situação. Ora, tal atitude piora muito a

situação do suicida, porque uma das coisas muito importantes que se poderia fazer com essa

pessoa é discutir com a máxima tranqüilidade possível o suicídio dela.

____________________ 133 Ib.

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Se eu tiver a naturalidade de falar em suicídio com ele, eu diria que ele não se mata mais. Nem me sinto muito capaz de justificar isto, mas naturalidade não é pose, não é fazer de conta; é aceitar a idéia de quem diz: ‘Olha aqui, eu também já pensei nisso algumas vezes, vamos conversar? Vamos trocar idéias?... Você pensou assim, eu pensei assim, você achou assim, eu acho assim...’ Mas bem assim: ‘Eu já pensei, eu já passei por aí’. [...] Eu não acredito que nenhum ser humano no mundo possa ter vivido 5, 50 ou 80 anos sem ter pensado algumas vezes em se matar. Quem disser que: ‘Eu nunca pensei nisso!’ eu digo: ‘Olha, vamos começar de outro ângulo, porque senão, não dá pé!’. E eu tenho então que usar toda a minha experiência de suicídio para falar com o suicida. E aí é que eu consigo ser útil, às vezes, ou não consigo ser útil. Este dado tem um reflexo muito curioso: eu não acredito muito que se possa ser útil a um suicida através do telefone. Hoje em dia, multiplicam-se estes auxílios por telefone que, em princípio, eu acho ótimos, admiro demais o empenho das pessoas e tudo o mais, mas com o suicida, esta conversa é, particularmente, inútil. Porque, o importante na naturalidade não são as palavras que eu digo, mas é o tom de voz com que eu falo e que passa pelo telefone. Mas é também fundamental o olhar com que eu olho. E isto não passa pelo telefone. Para eu convencer o outro de que eu sei do que eu estou falando, isto é, de que eu estou falando de um suicídio pessoal com tranqüilidade, ele tem que me ver inteiro. Ele tem que ouvir minha voz sossegada e tem que ver meu olhar tranqüilo. [...] Se nós estabelecermos um contato de verdade, eu diria que alguma coisa muito importante já foi feita para impedir esse suicídio134.

3.6.1. A compaixão como um processo

Entendendo a compaixão como um ethos compassivo, mais do que como sentimento

de simpatia, Luis Alfonso Aranguren Gonzalo propõe uma descrição da compaixão como um

processo que se desenvolve em três momentos consecutivos e complementares135.

O primeiro momento é o do reconhecimento da pessoa sofredora. A este momento,

ele chama de momento do ir e do ver.

Tomando o exemplo da parábola do Bom Samaritano5, tanto o sacerdote quanto o

levita passam direto pelo ferido, visto que não querem afastar-se de seu próprio caminho. O

samaritano, ao contrário, vai ao encontro daquele que estava caído, assumindo-o como o seu

____________________ 134 GAIARSA, José Ângelo. Suicídio. In: D’ASSUMPÇÃO, Evaldo Alves; D’ASSUMPÇÃO, Gislaine Maria; BESSA, Halley Alves (Coord.). Morte e Suicídio – uma abordagem multidisciplinar. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 171-172. 135 GONZALO, Luis Alfonso Aranguren. Compaixão. In: VILLA, Mariano Moreno (dir.). Dicionário do pensamento contemporâneo. São Paulo: Paulus, 2000, p. 113-115. (Dicionários). 5 Cf. Lc 10,25-35.

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próximo. Com essa atitude, ele mostra que o conceito de próximo não é aquele que se coloca

no nosso caminho, e sim, aquele em cujo caminho nós nos colocamos. O gesto de dirigir-se

ao encontro do próximo caído só é possível mediante o cultivo da sensibilidade, entendida

como um movimento necessário para ver, sem autocensuras nem preconceitos, a verdade das

coisas. Podemos, pois, afirmar que a sensibilidade supera a simpatia; ela supõe uma

disposição pessoal para ver com olhos limpos a verdade da pessoa que está sofrendo. É

mediante a sensibilidade que, com facilidade, reconhecemos o outro em sua verdadeira

situação de dor ou de sofrimento.

O segundo momento é o da responsabilidade diante da pessoa sofredora. Este é o

momento chamado do ficar. Depois do ir vem o ficar, entendido, aqui, com duplo sentido.

Primeiramente, quem experimenta o encontro com aquele que sofre, fica comovido e

emocionalmente sob um impacto. Porém, tal experiência do encontro não pára no impacto, ou

seja, em segundo lugar, a comoção move a pessoa a ficar de uma maneira responsável,

acompanhando aquele que sofre. Entendendo assim, podemos dizer que a compaixão significa

ir ao encontro daquelas pessoas e situações onde o sofrimento se faz presente e estabelecer ali

a própria morada. Podemos resumir este segundo momento nesta frase: ao ficar como

comoção (encontro que causa impacto), segue-se o ficar como conversão (encontro que

provoca um vínculo). Lévinas, citado por Aranguren Gonzalo, afirma que o momento do ficar

traz consigo o assumir lucidamente o fato de que a responsabilidade é fundamentalmente uma

responsabilidade para com a outra pessoa. A primeira resposta não é o fazer, e sim, o dizer

eis-me aqui, isto é, dar-se ficando. A responsabilidade é gerada a partir da convicção de que a

minha resposta é insubstituível e, conseqüentemente, tal responsabilidade me compromete de

um modo incondicional. Ficar é fruto da decisão pessoal tomada com liberdade; encontramo-

nos frente a uma determinação que aponta para uma solidariedade efetiva e querida136.

____________________ 136 GONZALO, Luis Alfonso Aranguren. Compaixão. In: VILLA, Mariano Moreno (dir.). Dicionário do pensamento contemporâneo. São Paulo: Paulus, 2000, p. 113-115. (Dicionários).

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Enfim, o terceiro momento é o assumir a realidade da pessoa sofredora. Este

momento recebe o nome de momento do sair. O ficar não é o final do processo; é um ficar

para sair, tanto quanto possível, dessa situação dolorosa. É um sair como êxodo em direção a

uma nova morada, realmente habitável. Assumir a realidade do outro significa acompanhá-lo

em seu caminho, tomando-o como o meu próprio caminho; é efetivar a descentralização

iniciada no momento do ir e situar-se não mais no caminho da pessoa que sofre – enquanto

situação dolorosa – e, sim, antes, no itinerário de libertação empreendido137.

3.6.2. A compaixão como princípio

O processo de compaixão descrito no item anterior leva-nos a entender que ela se

configura como um impulso ético que promove a ação das pessoas ou grupos que desejam

levar a sério a dor alheia. Esta situação é chamada por Aranguren Gonzalo, citando Jon

Sobrino, de princípio-compaixão138. Como definição, podemos dizer que o princípio-

compaixão é a reação interiorizada diante do sofrimento do outro. Isto significa que a

compaixão leva a pessoa a assumir um modelo de comportamento moral que dá forma a todas

as suas dimensões.

Mediante o princípio-compaixão, sinaliza-se a credibilidade de que o mal não tem a

última palavra na história humana. Sendo assim, a compaixão alimenta-se da esperança na

possibilidade da mudança. Conforme Gabriel Marcel, citado por Aranguren Gonzalo139,

esperar significa levar dentro de si a segurança de que a situação insuportável não pode ser

definitiva e, consequentemente, supõe uma saída.

Finalmente, é muito importante frisar que a compaixão nos convida a ir além da

____________________ 137 Ib. 138 Ib. 139 Ib.

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cultura da estatística, ou seja, dos dados e das porcentagens oferecidos pelos meios de

comunicação social que, muitas vezes, encobrem a verdade da situação real da pessoa que

sofre. Este ir além deve conduzir a uma experiência concreta de encontro com quem está

sofrendo, pedindo a minha resposta e provocando-me ao processo da compaixão. Isto não tem

nada a ver com o modelo de compaixão centralizado no espetáculo da dor, apresentado pelos

mass-media, apenas provocador de fortes emoções, gerando, frequentemente, agressividade,

impotência e insensibilidade. A verdadeira compaixão leva a uma coesão de grupo; supõe

uma atitude que tende a ser compartilhada com os olhos direcionados para a ação comum.

3.7. A PRÁTICA DA MISERICÓRDIA

Pedimos tua misericórdia para os que se mataram. Não conhecemos seus temores e tememos que tenham morrido sozinhos. São teus agora: nisso nos consolamos. Consola a todos os que os amavam e sentirão sua falta. (STANLEY HAUERWAS, oração por ocasião do suicídio de um estudante da Divinity School)140.

Encontramo-nos vivendo numa realidade na qual o modo de pensar parece fazer

oposição à misericórdia divina e, ainda, separar da vida e tirar do nosso coração a própria

idéia da misericórdia. De uma certa forma, podemos afirmar que tem-se a impressão de que a

palavra “misericórdia” e o conceito que as pessoas têm dela geram uma mal-estar no ser

humano. Isto tem a ver, ao menos em parte, com o enorme desenvolvimento da ciência e da

técnica, nunca antes verificado na história, com o qual o homem foi e vai tornando-se senhor

da terra, subjugando-a e dominando-a, conforme o mandato do próprio Criador. Como

podemos conferir no início da Bíblia, a humanidade foi o ponto mais alto da criação. O

homem e a mulher, ambos criados à imagem e semelhança de Deus, foram e são chamados a

____________________ 140 HSU, Albert Y. Superando a dor do suicídio: como encontrar respostas e conforto quando alguém a quem amamos tira a própria vida. São Paulo: Vida, 2003. p. 115.

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dominar e a transformar o universo, participando da obra criadora141.

O problema é que este domínio nem sempre aconteceu como se deve. Entendido

muitas vezes de maneira unilateral e superficialmente, parece não deixar espaço para a

misericórdia.

Tratando da condição do homem no mundo contemporâneo, a Constituição “Gaudium

et Spes”, traz, no seu início, esta citação:

Assim, o mundo atual apresenta-se, ao mesmo tempo, poderoso e débil, capaz do melhor e do pior; abre-se na sua frente o caminho da liberdade ou da escravidão, do progresso ou da regressão, da fraternidade ou do ódio. Além disso, o homem toma consciência de que depende dele a boa orientação das forças que suscitou, as quais tanto o podem esmagar como servir142.

Aliás, na conclusão de um artigo escrito sobre o verbete “progresso”, num dicionário

originalmente publicado na Espanha, em 1997, Fernando Velasco, diretor do Departamento

de Ética e Deontologia da Universidade Européia de Madri, assim se expressou, intitulando

esta conclusão “o mito do progresso”:

...estamos conscientes de que um novo deus fez sua aparição: o progresso; ao progresso se deve sacrificar tudo; diante de seus ditames, tudo deve calar e submeter-se. Diante de tal panorama, urge desmistificar e dessacralizar o conceito; o que não significa negá-lo ou anatemizá-lo. A humanidade atual crê no progresso e quer o progresso, mas também se pergunta: ‘progresso para quê?’. Além do mais, as catástrofes do meio ambiente contribuíram para fazer esmorecer o otimismo ilimitado do progresso, do crescimento meramente quantitativo da economia. O homem não pode continuar se dedicando a bater recordes sem se importar com as conseqüências. Em suma, o progresso científico e o técnico não vieram acompanhados por um progresso do bem-estar social (progresso moral) para todos os homens e seu habitat. A incerteza constitui hoje uma de nossas características, juntamente com o reconhecimento responsável de que os modelos de estilo de vida atualmente mais extensos, serão insustentáveis em futuro próximo. Devemos, pois, nos perguntar: ‘progresso para quê?’. A resposta não pode ser outra: ‘tendo em vista conseguir uma vida mais digna’143.

Com o seu estilo de vida e suas ações, Jesus revelou, isto é, tornou presente um amor

operante, que se dirige à pessoa humana e abraça tudo o que forma sua humanidade. Este

____________________ 141 Gn 1,28: “E Deus os abençoou e lhes disse: ‘Sejam fecundos, multipliquem-se, encham e submetam a terra; dominem os peixes do mar, as aves do céu e todos os seres vivos que rastejam sobre a terra’”. 142 Gaudium et Spes 9 (229) 143 VELASCO, Fernando. Progresso. In: VILLA, Mariano Moreno (dir.). Dicionário do Pensamento Contemporâneo. São Paulo: Paulus, 2000, p. 619. (Dicionários).

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amor é mais ainda notado no contato com o sofrimento, a injustiça, a pobreza, enfim, com

toda a situação humana histórica, que manifesta as limitações e a fragilidade, sejam físicas ou

morais. “Precisamente o modo e o âmbito em que se manifesta o amor são chamados na

linguagem bíblica ‘misericórdia’”144.

Escrevendo a respeito da misericórdia, João Paulo II fez questão de apontar que o Pai

revelado por Jesus é o Deus misericordiosamente rico.

Cristo, enquanto é o cumprimento das profecias messiânicas, ao tornar-se encarnação do amor que se manifesta com particular intensidade em relação aos que sofrem, aos infelizes e aos pecadores, torna presente e, desse modo, revela mais plenamente o Pai, que é Deus ‘rico em misericórdia’. Ao mesmo tempo, tornando-se para os homens modelo do amor misericordioso para com os outros, Cristo proclama com as obras, mais ainda do que com as palavras, aquele apelo à misericórdia, que é uma das componentes essenciais do ethos do Evangelho. Neste caso não se trata somente de cumprir um mandamento ou uma exigência de natureza ética, mas também de satisfazer a uma condição de capital importância, a fim de Deus se poder revelar na sua misericórdia para com o homem: ‘Os misericordiosos... alcançarão misericórdia’145.

Quando compara a misericórdia com a justiça, o papa assim se expressa:

... a misericórdia contrapõe-se, em certo sentido, à justiça divina; e revela-se, em muitos casos, não só mais potente, mas também mais profunda do que ela. Já no Antigo Testamento se ensina que, embora a justiça no homem seja autêntica virtude e em Deus signifique a perfeição transcendente, contudo o amor é ‘maior’ do que a mesma justiça, e é maior no sentido de que, relativamente a ela, é primário e fundamental. O amor condiciona, por assim dizer, a justiça; e, em última análise, a justiça serve a caridade. O primado e a superioridade do amor em relação à justiça – e isso é algo característico de toda a Revelação – manifestam-se precisamente através da misericórdia146.

Quando nos aprofundamos na questão da moralidade do suicídio e do perdão a ele

relacionado, notamos que praticamente todas as religiões consideram há muito tempo o

suicídio como um ato imoral. No islamismo, por exemplo, os suicidas recebem a condenação

eterna. “Maomé declarou que o paraíso é negado às pessoas que cometem suicídio e

acrescenta que estas pessoas passarão toda a eternidade no inferno, repetindo o ato com o qual

____________________ 144 JOÃO PAULO II. A misericórdia divina – carta encíclica “Dives in Misericórdia”. 4ª. ed. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 13. 145 Ib., p. 15. 146 Ib., p. 22-23.

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deram fim à sua vida”147. Um texto rabínico judaico afirma: “Quem destrói sua vida

conscientemente (la-daat), não receberá nossa participação em seu funeral de forma alguma.

Não rasgaremos nossas roupas por ele e não balançaremos os ombros em sinal de luto,

tampouco diremos coisas boas a seu respeito”148.

Como já vimos, a postura cristã contra o suicídio foi bastante influenciada pela

teologia agostiniana. Nos séculos VI e VII, a Igreja já dogmatizava oficialmente sua oposição

ao suicídio. Quem morria por suas próprias mãos não podia ser enterrado em solo sagrado. Na

Idade Média, os cadáveres dos suicidas eram publicamente violados por autoridades civis,

como uma maneira de intimidar as pessoas. Na França, os corpos dos suicidas eram arrastados

pela rua. Na Alemanha, os suicidas eram colocados em barris, os quais flutuavam rio abaixo

para que nunca mais voltassem à sua terra natal. Na Noruega, os suicidas eram enterrados na

floresta, junto com os criminosos149.

Ao longo da história, os cristãos consideraram o suicídio um pecado imperdoável,

visto que não há possibilidade de arrependimento. Porém, observando bem, é de se notar que

praticamente todas as mortes ocorrem sem a purificação da consciência. Se, por exemplo,

uma pessoa morre de ataque cardíaco, são mínimas as chances de que ela tenha conseguido

pedir perdão.

Dietrich Bonhoeffer não acredita que seja possível um arrependimento total no

momento da morte, observando que um grande número de “cristãos morrem subitamente sem

arrepender-se de todos os seus pecados”150.

Um teólogo e estudioso de ética, Gilbert Meilaender, escreve:

Ao contrário do que os cristãos sempre acreditaram, o suicídio racional não demonstra necessariamente condenação. O suicida morre, por assim dizer, no

____________________ 147 MARCUS, Eric. Why suicide? San Francisco: HaperSanFrancisco, 1996, p. 9. apud. HSU, Albert Y. Superando a dor do suicídio: como encontrar respostas e conforto quando alguém a quem amamos tira a própria vida. São Paulo: Vida, 2003, p. 115. 148 JAMISON, Kay Redfield. Night falls fast. New York: Alfred A. Knopf, 1999, p. 14. apud. Ib. 149 HSU, Albert Y. Op. cit. p. 117. 150 Ethics, New York: Macmillan, 1995, p. 169. apud. Ib.

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momento em que está pecando, sem oportunidade de arrepender-se. Entretanto, eu posso morrer instantaneamente em um acidente de carro enquanto maquino vingar-me de meu inimigo. Deus julga as pessoas, não as atitudes isoladas; e o destino das pessoas não é determinado por um momento específico na vida de alguém, quando um ato pecaminoso é praticado151.

Com certeza, não é nada fácil para os cristãos, principalmente sacerdotes e pastores,

oferecer consolo a uma família enlutada por alguém que se suicidou.

Muitas tradições cristãs crêem que a pessoa não será julgada pela natureza de sua morte, mas pela natureza de sua vida. Um ato único não invalidará a vida inteira da pessoa, especialmente se for um ato de desespero nada característico da identidade moral demonstrada pela pessoa em vida. [...]. A disposição básica de uma pessoa define mais precisamente seu caráter do que um ato isolado. Em outras palavras, o ato do suicídio isoladamente não nega a integridade moral do indivíduo. Se uma pessoa amada almejava viver uma vida de discipulado cristão, de fé, de esperança e de amor, então podemos ver que esse ato foi uma aberração. Nesses casos, podemos compreender que o suicídio foi distorção trágica que afetou o que outrora era uma vida boa, mas não foi o fim inevitável de uma vida auto-destrutiva. O suicídio também levanta a questão da intenção. Se o suicida está arrasado devido à agonia de seu desespero, será que ele pode ser considerado moralmente responsável por sua escolha? Será que Deus derrama sua graça sobre os que não sabem bem o que estão fazendo? [...] [...] Deus considerará o estado de alma do suicida, não só sua mente, que poderia estar confusa e perdida na hora do suicídio. Deus é justo e perfeito em sabedoria, e ele pode dizer quais atos e crenças foram verdadeiramente intencionais e quais não foram. [...]. A Bíblia oferece esperança até para a pessoa que viveu uma vida inteira longe de Deus. [...] [...] A maior parte dos suicidas não deixa bilhete, gravação ou indicação do seu estado mental derradeiro. Quem pode afirmar se os suicidas fizeram ou não, em seus momentos finais, as pazes com Deus e fizeram a coisa certa? O milagre da salvação é que Deus perdoa até o mais hediondo pecador. Ninguém fica sem esperança152.

Certa vez, perguntaram ao teólogo evangélico Lewis Smedes153 se o suicídio é

imperdoável e se há alguma esperança bíblica aos amigos e parentes das vítimas do suicídio.

Smedes respondeu:

Será que Jesus dará as boas vindas a alguém que morre por suas próprias mãos? Creio que sim, gentil e amavelmente. Qual é a base bíblica para minha afirmação? Está na promessa dada em Rm 8.38,39 (sic): ‘nem morte nem vida [...] será capaz de nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus, nosso Senhor’. Jesus morreu por todos os nossos pecados, inclusive o suicídio154.

____________________ 151Bioethics, Grand Rapids: Eerdmans, 1996, p. 59. apud. HSU, Albert Y. Op. cit., p. 119-120. 152 HSU, Albert Y. Op. cit., p. 122-123; 125-126. 153 Lewis Smedes (1921-2002) foi professor de teologia e ética em Fulness Seminary, na Califórnia, EUA, e autor de vários livros, como Forgive and Forget (Perdoe e Esqueça), The Art of Forgiving (A Arte de Perdoar) e Dimensions of Forgiveness (As Dimensões do Perdão). 154 HSU, Albert Y. Op. cit., p. 127.

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Para Smedes, a maioria dos que se suicidam não desejam pecar contra Deus. A morte

suicida não é uma escolha, mas uma situação na qual a pessoa acaba tropeçando na árdua

subida do desespero. Na opinião de Smedes, os verdadeiros assassinos são o desespero, a

depressão, a falta de esperança e a auto-rejeição. São estes os problemas mais urgentes e não

as questões da moralidade do suicídio.

Quando nos manifestamos a respeito do suicídio, podemos, facilmente, colocarmo-nos

numa posição que de duas maneiras ou duas formas de abordagem estaria errada. Na verdade,

são dois erros iguais, porém opostos. Podemos pensar no suicídio como um pecado

imperdoável, como podemos, também, simplesmente, não considerá-lo pecado algum. Em

ambas as posições pode haver um certo exagero, seja de dureza, seja de suavidade.

Talvez, uma posição mais equilibrada pode estar na consideração do suicídio como

uma tragédia. Nessa situação, avaliada como tragédia, as fraquezas humanas de uma pessoa

boa e seus fracassos levam-na à autodestruição.

Em si mesmo, o suicídio é, de certa forma, sempre trágico. Porém, as diversas

circunstâncias e razões para cometê-lo levam-nos a uma interpretação diferente, conforme

cada caso. Suponhamos uma jovem mãe, cujo bebê morreu em um acidente e que, por isso,

venha a querer se matar devido à tristeza e ao desejo de estar com o filho. Com certeza, a

decisão dela é motivo de lamento nosso, porém, somos muito mais compreensivos neste caso,

se comparamos com o suicídio de Hitler, no seu abrigo subterrâneo, no final da Segunda

Guerra. Enquanto ele teve uma vida dedicada a fazer o mal, ela teve uma morte que foi

expressão trágica de amor materno.

Tais exemplos levam-nos a sentir a necessidade de entender o ato da pessoa,

contextualizado na história de sua vida inteira. Na tragédia do suicídio, a pessoa lutou contra

um inimigo interior, mas foi derrotada na batalha contra si mesma. Se podemos dizer que uma

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parte dos suicidas é, com mais certeza, merecedora do julgamento de Deus, devemos admitir

que uma outra parte pode muito bem receber sua misericórdia.

Um médico psiquiatra, chamado John White155 escreveu:

Suponhamos que o suicídio não seja apenas trágico, seja também pecaminoso. Devemos aceitar o pressuposto de que a vida é um dom precioso dado por Deus e que os assuntos de vida e morte pertencem ao seu autor. Porém, devemos olhar para os que tiram suas vidas com a mesma compaixão que Jesus sempre olhou os pecadores. Na verdade, se alguma pessoa necessita de compaixão, as vítimas de suicídio são as que certamente precisam mais dela do que qualquer outro pecador156.

Conforme tomamos conhecimento das experiências e dos sofrimentos das pessoas,

principalmente as mais próximas, percebemos cada vez mais a necessidade de se dar

testemunho da misericórdia de Deus. A Igreja tem como uma particular missão procurar

introduzir e encarnar a misericórdia divina na vida dos fiéis e, na medida do possível, na de

todas as pessoas de boa vontade. Ela tem o direito e o dever de apelar para a misericórdia

divina, implorando-a diante de todos os fenômenos do mal físico ou moral, frente a todo tipo

de ameaça que torna carregado o horizonte da nossa vida.

A Igreja vive uma vida autêntica quando professa e proclama a misericórdia, o mais admirável atributo do Criador e do Redentor, e quando aproxima os homens das fontes da misericórdia do Salvador, das quais ela é depositária e dispensadora. [...] A Igreja contemporânea está profundamente consciente de que, só apoiada na misericórdia de Deus, poderá realizar as tarefas que derivam da doutrina do Concílio Vaticano II [...]. Jesus Cristo ensinou que o homem não só recebe e experimenta a misericórdia de Deus, mas é também chamado a ter misericórdia” para com os demais. ‘Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia’. A Igreja vê nestas palavras um apelo à ação e esforça-se por praticar a misericórdia. Se todas as bem-aventuranças do Sermão da Montanha indicam o caminho da conversão e da mudança de vida, a que se refere aos misericordiosos é particularmente eloqüente a tal respeito. O homem alcança amor misericordioso de Deus, a sua misericórdia, na medida em que ele próprio se transforma interiormente, segundo o espírito de tal amor para com o próximo157.

____________________ 155 John White é livre docente de Psiquiatria na Universidade de Manitoba, em Winnipeg, no Canadá. É autor de vários livros, entre os quais: “A Luta”, “Ousadia em Oração”, “Mais que uma Obsessão”, “Máscaras da Melancolia” e “Eros e Sexualidade”. 156 WHITE, John. The masks of melancholy. Downers Grove: InterVarsity, 1982, p. 147. [publicado em português com o título As máscaras da melancolia. São Paulo: ABU, 1987. apud. HSU, Albert Y. Op. cit., p. 130. 157 JOÃO PAULO II. Op. cit., p. 59 e 62.

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Ao terminar a sua carta encíclica, o papa escreve:

Prosseguindo na grande tarefa de atuar o Concílio Vaticano II, em que podemos ver justamente uma nova fase da auto-realização da Igreja – na medida adaptada à época em que nos coube viver – a própria Igreja deve ser constantemente guiada pela plena consciência de que não lhe é permitido, em hipótese alguma, esmorecer nesta tarefa e fechar-se sobre si mesma. A sua razão de ser, efetivamente, é revelar Deus, isto é, o Pai, que nos permite ‘vê-lo’, em Cristo. Por mais forte que possa ser a resistência da história humana, por mais marcante que se apresente a heterogeneidade da civilização contemporânea e, enfim, por maior que possa ser a negação de Deus no mundo humano, ainda maior deve ser, apesar de tudo, a nossa proximidade a tal mistério que, oculto desde todos os séculos em Deus, foi depois realmente comunicado ao homem no tempo, mediante Jesus Cristo158.

____________________ 158 Ib., p. 75.

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CONCLUSÃO

Há limites no quanto de paixão ou dor uma pessoa pode suportar antes de ser destruída... Culpar alguém que comete suicídio é igual a castigar um doente quando este morre de febre.

Do Werther, de Goethe159

De certa forma, podemos afirmar que viver significa arriscar-se. Não é difícil

encontrar-se em uma situação de risco. A vida, por si mesma, possibilita situações inesperadas

ou imprevisíveis a tal ponto que a qualquer momento pode acontecer algo que nos coloque em

risco.

Pensando nas situações que envolvem tais riscos, existem aquelas nas quais o risco é

assumido como tal, na esperança de se conseguir algo que valha a pena, e existem outras nas

quais ele é assumido apenas em vista de experimentar uma sensação de perigo, como é o caso

de certos esportes tidos como perigosos.

O problema do suicídio pode ser abordado dentro deste contexto. Aparentemente, tal

fenômeno significa geralmente uma fuga das responsabilidades ou também consequência de

uma grande ilusão. Porém, analisando melhor, essa afirmação não pode ser feita com tanta

certeza. O que se percebe, pois, é que o suicídio está mais na linha de riscos, nos quais ou a

morte é desejada ou ao menos é assumida como uma possibilidade real.

Tratando da questão do suicídio, encontramo-nos diante de um fenômeno que sempre

esteve presente na história da humanidade. Com maior ou menor intensidade ou

dramaticidade sempre existiram pessoas que deram um fim à sua vida. Não se trata, então, de

um problema novo.

O presente trabalho procurou apontar que não é fácil tecer um juízo ético do suicídio, à

medida que se percebe novas situações que, por sua vez, exigem uma distinção entre vários

____________________ 159 CORRÊA, Humberto; BARRERO, Sérgio Perez. (ed.). Suicídio: uma morte evitável. São Paulo: Atheneu, 2006, p. 177.

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tipos de suicídios, com tônicas ou acentuações diferentes.

Esta dissertação mostrou que por trás do suicídio há um sentido tanto negativo como

positivo. Procuramos, aqui neste texto, trabalhar mais o primeiro, ou seja, aquele no qual se

encaixam os casos de pessoas que desejam sair de uma situação difícil, buscando um término

para seus sofrimentos. O sentido que pode, de certo modo, ser considerado positivo pode ser

ilustrado nas situações que dão ao suicídio um significado de coragem e sabedoria, como foi o

caso dos filósofos Sócrates e Sêneca. Outro exemplo que segue esta linha é das pessoas que

tiraram sua vida numa atitude considerada como de inspiração divina, tais como Santa Pelágia

e Santa Apolônia160.

Para uma análise propriamente ética do fenômeno do suicídio é importante contar com

a colaboração de algumas abordagens a partir das ciências humanas, entre as quais a

psicologia. Há uma série de fatores e circunstâncias que podem fazer com que as pessoas

busquem a morte.

Não podemos, sem dúvida, deixar de considerar que a interdição divina do assassínio e

a obrigação de preservar a própria saúde nos levam às razões pelas quais a tradição cristã

condena o suicídio. De fato, considerado em si mesmo, o suicídio representa uma tripla

injustiça: injustiça para consigo mesmo, injustiça para com outrem e injustiça para com o

Criador. A partir da perspectiva teológica, que visa a afirmação da profunda ligação existente

entre a morte e a vida, nenhum mal poderia justificar o suicídio.

Esta pesquisa não teve a intenção de privilegiar a abordagem psicológica em vista de

um tratamento liberal da norma a respeito do suicídio. A partir, porém, do significado que o

____________________ 160 Há quatro santas com o nome Pelágia nos anais da Igreja, duas delas com história marcada na literatura cristã. A Pelágia a que se refere o texto é a mártir que viveu sob o império de Diocleciano. Tinha ela quinze anos quando soldados foram à sua casa para levá-la ao tribunal. Consciente de que sua prisão se dava por causa da religião e sabendo que seu corpo seria maculado e humilhado pelos pagãos, enganou os militares, pedindo para trocar de roupa no andar superior. Atirou-se pela janela para não cair nas mãos dos inimigos de Deus. Uma outra versão diz que Pelágia era um discípulo de São Luciano e quando os soldados chegaram para prendê-los, sentiu que seria estuprada ao descobrirem seu sexo e pediu para trocar suas roupas. Ela foi para cima com esse pretexto e de lá saltou para fugir, mas calculou mal a queda e acabou morrendo. A história de Santa Apolônia está na p. 61 desta dissertação.

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Concílio Vaticano II, especialmente a Constituição Pastoral “Gaudium et Spes”, deu à missão

da Igreja no mundo, favorecendo uma melhor compreensão da lastimável realidade na qual se

encontram muitos seres humanos, conclui-se, com muita precisão, que quando uma pessoa

atinge os limites e pensa que nunca mais conseguirá suportar as terríveis tentações internas e

externas, faz-se necessário prestar atenção à tragédia humana, procurando compreender quem

é vítima dessa situação.

Penso que esta pesquisa ajuda-nos a perceber mais claramente que o suicídio levanta

mais questões do que respostas. Quer tentemos interpretá-lo sob o ângulo pessoal, quer do

ponto de vista social, suas razões mais profundas sempre nos escapam. Sendo assim, é

necessário grande cautela, tanto sob o aspecto ético quanto pastoral, caso contrário podemos

cometer graves erros de avaliação. Geralmente, o suicídio vem precedido por uma trajetória

mais ou menos longa, portanto, é imprudente fixar-se somente nos últimos momentos. Se,

normalmente, o suicídio pode ser considerado apenas o último capítulo de longa trajetória,

então a responsabilidade ética pode estar mais no percurso do que no capítulo final.

Como observa Bonhöeffer, o direito ao suicídio só desaparece na presença do Deus vivo. [...] Nós nos encontramos diante de um horizonte que ultrapassa a compreensão humana. De qualquer forma, a complexidade que se esconde por trás dos vários tipos de suicídio, bem como a análise das causas nos alertam para as responsabilidades, tanto pessoais quanto sociais, de se construir relações humanas profundas que permitam a todos e a cada um encontrar razões para viver161.

Aproximando-me do tema do suicídio pelas leituras que fiz, pude compreender que

este fenômeno não merece uma consideração simplista e óbvia, no sentido de que não

significa apenas um “desejo pela morte”. Caminhando em busca do seu significado, é possível

entender que ele pode emergir de uma série de envolvimentos inerentes a uma pessoa e o seu

contexto de vida em determinado momento, podendo manifestar-se não apenas em um ato

suicida, mas em tentativas de suicídio e em comportamentos autodestrutivos.

____________________ 161 MOSER, Antônio; SOARES, André Marcelo M. Bioética: do consenso ao bom senso. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 155. (Iniciação à Teologia).

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O Concílio Ecumênico Vaticano II e, de modo especial, a sua Constituição Pastoral

“Gaudium et Spes” significaram uma virada para os problemas que afligem os seres humanos,

num contexto de transformações aceleradas. A “Gaudium et Spes” manifesta uma atitude

nova da Igreja nas suas relações com o mundo que anteriormente e noutro contexto tinha sido

rejeitada. Como metodologia para a abordagem e resolução de “tantos e tão complexos

problemas” que “afetam profundamente a humanidade”, a Constituição Pastoral aponta a

utilização concertada da “luz do Evangelho e da experiência humana”, ou seja, a revelação

cristã e os saberes humanos162. A Igreja tem na Palavra de Deus os princípios, mas não as

respostas prontas; por isso é necessário encontrá-las; para tal, une o que é próprio seu, ou seja,

a luz da revelação, à competência de todos os homens, para que o caminho da humanidade

receba luz163. Neste contexto, se compreende a referência que a “Gaudium et Spes” faz à

necessidade de usar as ciências humanas na teologia e na pastoral164. A verdade do ser

humana aparece não tanto como uma realidade já alcançada e a propor para ser aceite, mas a

buscar.

__________________ 162 Cf. Gaudium et Spes nº. 46. 163 Id. cf. nº. 33. 164 Id. cf. nº. 44 e 62.

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ANEXO

ALGUNS DOS PRINCIPAIS MARCOS RELACIONADOS AO SUICÍDIO AO LONGO DA HISTÓRIA165

Datas Evento Conceito Antes de 2000 a.C. Suicídios relatados no

Egito Suicídios existem desde a pré-história

1000 a 500 a.C. Suicídios bíblicos Suicídio visto de forma neutra, às vezes até gloriosa

400 a.C. Hipócrates166 atribuiu o suicídio à melancolia

Suicídio como conseqüência da depressão

240 d.C. Ptolomeu II167 proíbe os escritos de Hegesias168

Repressão de escritos que possam estimular o suicídio

354 a 430 d.C. Escritos de Santo Agostinho169

O suicídio é o grande pecado

452 Concílio de Arles170 proclama que o suicídio é um crime, resultado de uma fúria demoníaca

O suicídio precisa ser punido

563 Concílio de Praga171 recusa ritos cristãos aos suicidas

Punição para as almas dos sobreviventes

593 Concílio de Toledo172 Excomunhão da vítima de suicídio

967 Rei Edgar da Inglaterra aplica a lei civil173

O suicídio se torna um crime

1300s Felo de se174; as leis permitem a confiscação de propriedades e a execração do corpo de suicidas

Punições públicas e seculares para a vítima e para os familiares

1632 a 1677 Spinoza175 atribui o suicídio às dificuldades, físicas ou psicológicas

Motivo não natural

1628 Burton176 publica Anatomy of Melancholia

Atitude clínica é introduzida

1644 Biothanatos de Donne177 é publicado

A vitima de suicídio é defendida

1827 Esquirol178 publica Sur la Monomanie

O suicídio é um problema psiquiátrico

1850 Leis de confiscação e de execração são combatidas

Estigmatização aberta do suicídio torna-se difícil. Abrem-se as discussões sobre a alienação

1897 Durkheim179 publica Le Suicide, 1897

Suicídio visto por um viés social

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1920 Freud publica Além do princípio do prazer180

Abordagem psicológica do suicídio

976 Asberg181 e colegas publicam estudo sobre serotonina e suicídio

Abordagem biológica do suicídio

A partir da década de 1980 do século XX

Surgem movimentos públicos e organizados em defesa da eutanásia, do suicídio assistido e do suicídio

Morte voluntária como liberdade individual

____________________ 165 CORRÊA, Humberto; BARRERO, Sérgio Perez. (ed.). Suicídio: uma morte evitável. São Paulo: Atheneu, 2006, p. 9-10. As notas de rodapé seguintes não pertencem ao anexo, e sim, são do autor desta dissertação. 166 Hipócrates foi o maior médico da Antigüidade. Nasceu na ilha de Cós, cerca de 460 a.C. e faleceu em Larissa, Tessália, cerca de 377 a.C. Cognominado o pai da medicina, foi o iniciador da observação clínica; deixou uma obra notável, a coleção hipocrática, ou Corpus Hippocraticum. Mas muitos tratados tidos como seus provavelmente foram escritos por outros. Para Hipócrates, as doenças resultavam das alterações dos humores do organismo; a cura viria da reação natural do organismo, bastando ao médico ajudar a natureza. 167 Ptolomeu é a denominação de alguns soberanos da dinastia ptolomaica, também conhecida como dinastia dos lágidas, que reinou sobre o Egito entre 304 a.C. e 30 a.C. Ptolomeu II, chamado Filadelfo (“amigo do irmão”), nasceu em 309/308 a.C. e faleceu em 246 a.C. Foi rei do Egito entre 283 e 246 a.C. Soube manter o prestígio do poderio lágida no Mediterrâneo oriental e foi ele quem fez construir o farol de Alexandria. 168 Hegesias foi um filósofo grego convicto de que a vida era um engano trágico e que todos os homens o melhor que tinham a fazer era morrer. Em conseqüência, dedicou toda a sua vida à pregação do ideal da morte. Organizou clubes de suicidas e induziu muitas pessoas ao suicídio. Quanto a ele mesmo, viveu até bem madura idade de oitenta anos. Quando lhe perguntavam por que ele próprio não fazia o que pregava, tinha uma resposta bem lógica: “Sou a única pessoa na Grécia que pode induzir os homens ao suicídio. Se eu morrer, não haverá ninguém que me tome o lugar. É, pois, meu dever e penoso viver, a fim de poder ensinar aos outros o prazer delicioso da morte. Afinal é o único prazer dado aos vivos mortos de realmente conduzir-se a sua real condição de mortos” (disponível em: <http://www.stratusscorpion.com.br/filosofo_da_morte.htm>). 169 Para maior esclarecimento sobre o pensamento de Santo Agostinho a respeito do suicídio, pode-se ver o item 2.2.4. “A moral agostiniana sobre o suicídio”, nesta dissertação, a partir da p. 62. 170 Geraldo Ribeiro de Sá, em “O crime e a pena: um diálogo com É. Durkheim” (disponível em <http://www.unincor.br/unin-iuris/artigos/0101005.pdf>), coloca uma citação atribuída a Durkheim, que diz: “Mal as sociedades cristãs apareceram, logo o suicídio foi formalmente proibido. Em 452, o Concílio de Arles proclamou que o suicídio era um crime e que só podia ser a conseqüência de uma fúria demoníaca. Mas no séc. seguinte, em 563, no Concílio de Praga, é que esta prescrição recebe uma sanção penal” (p. 12). O autor do artigo (sem data) é doutor em Ciências Sociais pela PUC/SP, professor aposentado pela UFJF e professor titular dos cursos de mestrado em Direito e em Educação, oferecidos pela UNINCOR-Universidade Vale do Rio Verde de Três Corações (MG). Marcimedes Martins da Silva, em sua dissertação de mestrado em Psicologia Social, pela PUC de São Paulo, intitulada “Suicídio – trama da comunicação” (disponível em <http://www.avesso.net/suicidio.htm#Suicidio:_aspectos_psicossociais>) assim se exprime: “Se quatro séculos antes e quatro séculos depois de Cristo o suicídio é ora tolerado ora reprimido, sua reprova,ao vais se reforçando durante os primeiros séculos da era cristã até que seja totalmente condenado no século V por Santo Agostinho e pelo Concílio de Arles (452 d.C.), seguido depois pelos de Orleans, Braga, Toledo, Auxerre, Troyes, nimes, e culminando com a condenação expressa de todas as formas de suicídio no “Decret de Gratien”, um compêndio de direito canônico do século XIII”. 171 Ver informação sobre esse Concílio em nota acima. 172 Rosimeire Lopes de Souza, num artigo intitulado “Suicídio: de quem é a vida, afinal?” (disponível em <http://www.altocaminho.com/2008/05/13/suicidio>) assim se expressa: “Em 533 d.C., o Concílio de Orleans proibiu que se prestasse honra fúnebre a todo aquele que se matasse. Em 562, o Concílio de Braga abraça a mesma decisão, proibindo as honras fúnebres a todo e qualquer suicida, independente de sua posição social. O passo final foi tomado, no ano 693, pelo Concílio de Toledo, que decidiu que aqueles que não obtivessem sucesso em suas tentativas de suicídios deveriam ser excomungados. 173 Geraldo Ribeiro de Sá, no artigo intitulado acima (nota de rodapé 159) afirma: “Como se pode constatar, nas sociedades, sob a influência do cristianismo e sob pressão deste, com amparo na legislação religiosa e de efeito

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civil, pois o civil e o religioso constituíam uma única unidade, o fato social tipificado como suicídio foi proibido e tornou-se punível. Mas, como penalizar o suicídio? Conforme o lugar, onde acontecia o suicídio, as penas recaiam sobre o cadáver e, conforme as circunstâncias, sobre seus bens. A título de ilustração, pode-se citar o fragmento seguinte, extraído de É. Durkheim (1977, p.387): ‘Encontra-se uma legislação semelhante em todos os povos cristãos que, aliás, conserva a severidade inicial durante muito mais tempo do que a francesa. Em Inglaterra, logo no século X, o rei Edgar assemelha, num dos Cânones que publicou, os suicidas aos ladrões, aos assassinos de toda espécie. Até 1823, houve o hábito de arrastar o corpo do suicida pelas ruas com um pau atravessado e enterrá-lo no campo sem nenhuma cerimônia. Ainda hoje o enterro se faz à parte. O suicida era declarado e os bens passavam para a coroa. Só em 1870 é que esta disposição é abolida assim como todas as confiscações tendo por motivo a rebelião’” (p. 12-13). 174 Expressão latina que significa assassino de si mesmo; suicida. 175 Baruch Spinoza (1632-1677) foi um filósofo holandês, nascido em Amsterdam. Dotado de extraordinária vivacidade, logo aprendeu o hebraico, o que lhe permitiu depois analisar e interpretar os textos do Antigo Testamento e do Talmude. Antes mesmo dos 20 anos entrou em conflito com as idéias do pensamento religioso judeu, sendo por isso excomungado pela Sinagoga. Por outro lado, a ampliação de seus conhecimentos de latim conduziu-o aos campos científicos e filosóficos do século, além de possibilitar-lhe íntimo contato com as idéias de Descartes. A filosofia de Spinoza, embora racionalista, define uma doutrina de sentido dinâmico, que se resolve num monismo panteísta. Inspirado no modelo matemático (geométrico), seu método filosófico tenta eliminar do pensamento qualquer vestígio sobrenatural, unificando a realidade pela tríade Substância, Deus e Natureza. A Substância é o ser em si, concebido por si, que se identifica com Deus – tudo em tudo, ser perfeito e infinito, que se expressa como natureza: Deus Sive Natura. Como Deus, esta é a Natura Naturans; como Universo, a Natura Naturata. Mas, em resumo, toda a realidade está contida em um único ser, Deus, que é dotado de uma infinidade de atributos, dois deles cognoscíveis: a extensão e o pensamento. O panteísmo determinista de Spinoza, contrário a uma imensa tradição teísta, desenvolve-se em termos semelhantes aos da ciência moderna, pois a natureza divina possui um número infinito de leis a que tudo obedece. Assim, “o modo pelo qual cada coisa produz seus efeitos está condicionado a leis de um mesmo encadeamento inexorável”. Os demais aspectos de seu pensamento conservam esse sentido, mesmo quando o filósofo considera a natureza humana e suas paixões, as quais procura entender, em vez de louvar ou desprezar, através da interpretação dos textos bíblicos, que estudou metódica e historicamente, e da análise da atividade política, onde se esforça para reunir a liberdade de pensamento e o poder da multidão à autoridade do Estado, entendido por ele como órgão a que todos deveriam obedecer. Suas principais obras são: Princípios da Filosofia de Descartes e Meditações Metafísicas (1663), Tractatus Theologico-Politicus (1670), Ethica e Tractatus Politicus. 176 Robert Burton, escritor inglês, nasceu em Lindley, Leicestershire, em 1577 e faleceu em Oxford, em 1640. É autor de Anatomia da Melancolia (1621-1651), compila,ao de autores gregos e latinos, em que analisa a melancolia como condição da criação. 177 John Donne, nasceu em Londres, em 1572 e faleceu em 31/03/1631. Foi o mais proeminente dos poetas metafísicos ingleses e um teólogo famoso por seus encantadores sermões. Nasceu no seio de uma próspera família católica, algo raro naquela época, pois o sentimento anti-catolicismo tomava conta da Inglaterra, em virtude do rompimento de Henrique VIII com o papa e as posteriores guerras religiosas internas que ocorreram com os sucessores do rei. Seu primeiro livro de poemas, “Sátiras”, é considerado uma das amostras mais importantes da qualidade do texto literário de Donne. “Canções e Sonetos”, seu segundo livro, foi escrito durante o mesmo período da produção de “Sátiras” Escreveu também “Poemas Divinos” e o texto “Biathanatos”, famoso por argumentar que o suicídio não é necessariamente um pecado. Devido à aproxima,ao com as idéias anti-católicas, Donne publicou dois poemas sob esse tema, “Pseudo-Mártir” e “O Conclave de Ignatius”, que foram a afirmação final e pública sobre a renúncia da fidelidade ao papa por parte de Donne. “Pseudo-Mártir” exaltava os católicos ingleses que faziam voto de obediência e louvor ao rei Jaime I, sem compromisso com a fidelidade ao papa, ou seja, os anglicanos. Em 1607, Donne se converteu ao anglicanismo, mais por insistência do rei Jaime I que alegou que Donne não receberia nenhum título nobre, senão através da Igreja Anglicana. Em 1615, o relutante Donne entrou para o ministério, se tornando capelão real no mesmo ano. Em 1616, ele alçou o cargo de teólogo em Divindade, em Lincoln’s Inn. O estilo de Donne, cheio de metáforas elaboradas e simbolismos religiosos, sua aptidão para o drama e seu grande conhecimento logo o transformaram em um dos maiores oradores da época. Em 1617, abatido pela morte prematura de sua esposa, Donne escreveu dezessete sonetos sagrados, e desde então, segundo seu amigo e biógrafo, Izaak Walton, Donne foi “crucificado para o mundo”. Continuou a escrever poesias, notavelmente seus “Sonetos Sagrados”, mas o período de versos românticos estava acabado. Em 1618, foi designado capelão junto à delegação do visconde Doncaster em sua embaixada junto aos príncipes alemães. Antes da viagem, Donne escreveu “Hino a Cristo durante a Jornada do Autor à Alemanha”, texto carregado de uma essência mórbida. Donne retornou a Londres em 1620, e em 1621, foi nomeado Deão da Catedral de São Paulo, título que manteve até sua morte. Donne se destacou nesse cargo, se estabilizando financeiramente. Escreveu algumas de suas reflexões, sob a alcunha de “Devoções para Ocasiões Emergentes”. Elas foram redigidas enquanto Donne estava gravemente doente, e foram publicadas em 1624. No

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____________________ mesmo ano, Donne foi intitulado vigário de “St Dunstan’s-in-the-West”. Em 27 de março de 1625, Jaime I morreu, e Donne declamou um sermão diante de Carlos I. Obcecado pela idéia da morte, declamou o que foi chamado de seu próprio sermão funerário, “Duelo da Morte”, algumas semanas antes de morrer em Londres, no dia 31 de março de 1631. O último texto que Donne escreveu foi “Hino a Deus, meu Deus, em minha enfermidade”. No texto do anexo, a expressão “Biathanatos” está como “Biothanatos”. 178 Jean Étienne Dominique Esquirol, médico francês, nasceu em Toulouse, em 1772, e faleceu em Paris, em 1840. Atribuiu papel preponderante, mas não exclusivo, às causas psíquicas na origem das doenças mentais. 179Informações sobre Durkheim estão na nota de rodapé 3, na Introdução desta dissertação, à p.8. 180 “Além do princípio do prazer” é um trabalho, publicado em 1920, no qual Freud desenvolveu suas idéias sobre pulsão de vida, pulsão de morte e compulsão à repetição. Outras informações sobre Freud estão na nota de rodapé 7, no início do primeiro capítulo desta dissertação, à p. 12. 181 Marie Asberg é um psiquiatra que, no final da década de 70, analisou separadamente indivíduos deprimidos que nunca cometeram nenhuma tentativa de suicídio de indivíduos que tentaram se suicidar um vez com medicamentos e de indivíduos depressivos que fizeram tentativas múltiplas apresentando características impulsivas e violentas. Asberg encontrou taxas próximas das normais de serotonina nos primeiros, moderamente inferiores nos segundos e muito diminutas nos últimos. Foi então possível estabelecer uma correlação direta entre a serotonina existente no cérebro e alterações da personalidade, com especial destaque para a modificação de noções como agressividade, que se traduzem por um comportamento impulsivo, uma conduta antissocial, a procura de sensações fortes ou a tomada de atitudes hostis. Este e outros estudos permitiram colocar em evidência que um abaixamento do metabolismo da serotonina acarreta uma série de comportamentos em que a característica essencial reside numa perda de controle das ações, das emoções e dos instintos. Assim como a falta de adrenalina provocaria sérias dificuldades em reagirmos ao perigo ou excitação, de forma semelhante, a falta de serotonina induz dificuldades em reagir com certa normalidade à tristeza, ansiedade ou tensão.

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GLOSSÁRIO DE TERMOS SUICIDOLÓGICOS182

A

Atitudes em relação ao suicídio. Conjunto de opiniões, critérios, sentimentos e condutas em relação ao suicídio como forma de morrer, bem como a quem o executa, tenta ou pensa. Tais atitudes estão estreitamente relacionadas com a cultura e didaticamente podemos dividi-las em dois grupos: as atitudes punitivas, que consideram a morte por suicídio um sinal de covardia, um pecado, algo que deve ser castigado, e as atitudes permissivas, que consideram o suicídio um direito do indivíduo, um ato de valor, de liberdade pessoal, um ato heróico e eticamente aceitável. Ato suicida. Inclui a tentativa de suicídio e o suicídio completo. Ameaça suicida. Expressões verbais ou escritas de desejo de se matar. Tem a particularidade de comunicar algo que está para acontecer (ato suicida) a pessoas estreitamente vinculadas com o indivíduo que realiza a ameaça. Antecedentes suicidas. Inclui, principalmente, os atos suicidas prévios que o indivíduo tenha realizado. Pode ser usado também para se referir à pessoa com familiares que tenham cometido atos suicidas. Associação Internacional de Prevenção do Suicídio. Uma das associações encarregadas do estudo e da prevenção do suicídio, conhecida pela sigla IASP do inglês (International Association for Suicide Prevention). Associação Internacional de Tanatologia e Suicídio. Uma das associações encarregadas do estudo sobre a morte, o morrer e o luto, assim como do estudo sobre a prevenção do suicídio. Automutilação. Ato mediante o qual um indivíduo corta uma parte qualquer de seu corpo, não necessariamente com propósitos suicidas. Autópsia psicológica. Investigação sobre o suicídio consumado, realizada mediante entrevistas estruturadas e semi-estruturadas, com os familiares do falecido, amigos, colegas, médico, entre outros. Tem como objetivo determinar se o suicídio foi a causa da morte, assim como os eventos anteriores ao ocorrido, inclusive se o falecido tinha uma doença psiquiátrica e qual. [...]. B

Befrienders International. Nome da maior organização de voluntários na prevenção do suicídio. Conhecida como BI.

____________________ 182 CORRÊA, Humberto; BARRERO, Sérgio Perez. (ed.). Suicídio: uma morte evitável. São Paulo: Atheneu, 2006, p. 233-240.

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C

Centro de prevenção do suicídio. Instituição destinada ao tratamento das pessoas em crise aguda, na qual se oferecem diversas modalidades terapêuticas das quais participam profissionais de saúde mental e voluntários. Cibersuicídio. Influência de informação sobre suicídio aparecida na Internet na incidência dos suicídios naqueles que navegam na rede. Podem ser encontrados jogos suicidas, piadas suicidas e música para suicidas, muitas vezes rock metálico. Um dos grupos mais ativos é o site alt.suicide.Holiday (ash) surgido na década de 1980, para aqueles que querem discutir as opções suicidas e para aqueles que consideram o suicídio uma possibilidade aberta a todos. Descrevem-se os métodos suicidas, desde os mais conhecidos até os mais exóticos. Circunstâncias suicidas. São aquelas particularidades que acompanham o ato suicida, entre elas localização ou local onde ocorreu (familiar, não familiar, distante, próximo), possibilidade de ser descoberto (elevada, incerta, improvável, provável, acidental), acessibilidade para o resgate (pedir ajuda, deixar notas ou outros indícios que facilitem ser encontrado ou, pelo contrário, tomas as precauções necessárias para não ser descoberto), tempo necessário para ser descoberto, probabilidade de receber atenção médica etc. Comunicação suicida. São as manifestações conscientes ou inconscientes da tendência suicida. Essas devem aparecer em determinado contexto para serem interpretadas como tais. A comunicação suicida se classifica da seguinte maneira: Comunicação suicida direta verbal. É aquela na qual se expressam explicitamente os desejos do indivíduo de pôr fim a sua vida, como, por exemplo, “Vou me matar”, “Vou me suicidar”, “O que tenho que fazer é acabar de uma vez por todas”. Comunicação suicida direta não verbal. É aquela na qual se realizam determinados atos que indicam a possibilidade de que se realize brevemente um ato suicida como: procurar acesso aos métodos, deixar notas de despedida, distribuir bens etc. Comunicação suicida indireta verbal. É aquela na qual se expressam frases que não manifestam as intenções suicidas explicitamente mas que estão implícitas em sua mensagem com frases como as seguintes: “Quem sabe não nos veremos novamente”, “Quero ser recordado como uma pessoa que, apesar de tudo, não foi má”. Comunicação suicida indireta não verbal. Consiste na realização de atos que, mesmo não indicando a possibilidade suicida iminente, estão relacionados com uma morte prematura: fazer testamento, planificar os funerais, ter predileção por temas relacionados ao suicídio etc. Conduta suicida. Também chamada comportamento suicida, é um termo coletivo que inclui os pensamentos suicidas, a intenção suicida, as tentativas de suicídio e o próprio suicídio. Contexto suicida. Conjunto de elementos básicos necessários para a autodestruição. Contrato não suicida. É um pacto que o terapeuta realiza com um indivíduo com risco de suicídio e que tem como objetivo principal comprometê-lo para que não se mate, responsabilizando-o por sua própria vida. O contrato não garante que o indivíduo não cometa suicídio, por isso nunca deve ser usado com aqueles indivíduos que não se encontrem em condições evidentes de cumpri-lo. Crise suicida. É aquela crise em que, uma vez esgotados os mecanismos reativo-adaptativos criativos e compensatórios do indivíduo, emergem as intenções suicidas, existindo a

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possibilidade de que o indivíduo resolva ou tente resolver a situação problemática mediante a auto-agressão. Esse tipo de crise requer um manejo adequado, tendo como seu primeiro objetivo tratar de manter a pessoa com vida. Sua duração é variável, de horas a dias, raramente semanas, e a resolução pode ser o crescimento pessoal com uma melhor adaptação em relação ao viver, ou um funcionamento anômalo que aumenta as possibilidades de uma nova crise e a realização de um ato suicida. E

Efeito Werther. Termo proposto por Phillips em 1974 para descrever o efeito da sugestão no comportamento suicida. Johan Wolfang von Goethe, em1774, publicou seu livro As amarguras do jovem Werther, no qual se conta a história de um jovem que se suicida com um tiro na cabeça. Sua venda teve que ser proibida em diversos lugares da Europa porque desencadeou numerosos suicídios em jovens que usavam o mesmo método. Estratégias de prevenção do suicídio. Maneira de dirigir a prevenção do suicídio. Existem estratégias nacionais e locais. Entre as nacionais, são alguns exemplos de países que desenvolveram estratégias de prevenção: Finlândia, Inglaterra, Japão, Suécia, Noruega, Cuba e Dinamarca. A Organização Mundial de Saúde sugeriu seis medidas principais para diminuir as mortes por suicídio: tratamento da enfermidade mental, controle da posse de armas de fogo, destoxificação do gás doméstico e dos gases de veículos automotores, controle da disponibilidade de substâncias tóxicas, diminuição de notícias sensacionalistas nos meios de difusão de massa. Estressores agudos. São os fatores precipitantes de um ato suicida comum para todos os seres humanos, mas que, em determinados indivíduos, podem desencadear o dito ato. Podem ser citados entre os mais freqüentes os conflitos amorosos, os castigos ou as reprimendas dos pais nos adolescentes, perda de uma relação valiosa etc. Podem ser considerados fatores precipitantes ou desencadeantes. Estressores crônicos. São fatores que predispõem alguns indivíduos e não outros à realização de um ato suicida, entre os quais se incluem a perda precoce dos progenitores por morte, separação ou divórcio, dificuldades na comunicação familiar, abuso de substâncias, promiscuidade sexual, dificuldades escolares, inadaptação no trabalho, desemprego, enfermidade física dolorosa e incapacitante etc. Podem ser considerados como aqueles eventos que ocorrem na vida dos indivíduos e preparam as condições para que um estressor agudo leve a um ato suicida (a palha que quebra ou rompe a coluna vertebral do camelo que vinha carregado ou a gota de água que transborda o copo). F

Fator de risco. Atributos que conferem a um indivíduo um grau variável de susceptibilidade para contrair determinada enfermidade ou alteração da saúde. Têm as seguintes características: são individuais, pois o que para alguns é um risco, para outros não representa risco algum; são geracionais, já que os fatores de risco na infância podem não o ser na idade adulta ou na velhice; são genéricos, uma vez que os fatores de risco na mulher não são similares aos no homem etc.

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Fatores protetores do suicídio. Fatores que, para uma pessoa em particular, reduzem o risco de realização de um ato suicida, como o apoio que se receba em situações de crise, o tratamento da dor em uma doença terminal, o tratamento das doenças psiquiátricas etc. G

Gesto suicida. Ameaça suicida tomando os meios necessários para sua realização, mas sem levá-la a cabo. Também se inclui aí a tentativa de suicídio sem dano físico de importância. Grande repetidor. É o indivíduo que realizou três ou mais tentativas de suicídio. Grupos de Auto-ajuda. Conjunto de pacientes que têm um problema de saúde comum e que decidem trabalhar juntos para o bem-estar de todos, como, por exemplo, grupos de pessoas com tentativas de suicídio ou grupos de sobreviventes. Grupo de risco suicida. Conjunto de pessoas que apresentam algum fator de risco para a realização de um ato suicida, como os deprimidos, os que têm idéias suicidas ou ameaçam o suicídio, os que tentaram suicídio e os sobreviventes. H

Harakiri. Forma tradicional de suicídio no Japão antigo, que consiste na penetração no abdome de uma espada ou outro objeto cortante até a própria morte. I

Idéia suicida. Engloba um amplo campo de pensamento que pode adquirir as seguintes formas de apresentação:

1. o desejo de morrer, primeiro sinal a indicar a desconformidade do indivíduo com sua maneira de viver e porta de entrada para a ideação suicida. São comuns expressões como: “A vida não merece a pena ser vivida”, “Para viver assim é preferível estar morto”;

2. a representação suicida, que consiste em fantasias passivas do suicídio, como por exemplo imaginar-se enforcado;

3. a idéia suicida sem um método determinado, quando o indivíduo deseja suicidar-se e, ao ser perguntado sobre como vai fazê-lo, responde que não sabe como;

4. a idéia suicida sem um método determinado, quando o indivíduo deseja suicidar-se e, ao ser perguntado sobre como vai fazer isso, responde, por exemplo, que de qualquer forma, sem mostrar preferência por algum método;

5. a idéia suicida com um método determinado, mas sem planificação, quando o indivíduo expressa suas intenções suicidas mediante um ato específico mas sem ter elaborado uma adequada planificação;

6. a idéia suicida planificada ou plano suicida, quando o indivíduo sabe como, quando, onde e por que vai realizar o seu ato suicida e toma, geralmente, medidas para não ser descoberto.

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Incitação ao suicídio. Atitude de estimular o outro a realizar um ato suicida. Essa atitude é passível de penalização pelas leis de diversos países, inclusive do Brasil. Intenção suicida. Desejo deliberado de realizar um ato suicida. L

Letalidade. Atributo de alguns métodos para provocar a morte. É a conseqüência de diversos fatores, como susceptibilidade individual, possibilidade de receber atenção especializada imediata e condições do próprio método. Lógica suicida. Características comuns que apresentam os indivíduos suicidas, como uma urgente pressa para acabar com a vivência insuportável de dor psíquica que padecem devido à frustração de algumas necessidades psicológicas, à angústia, desesperança, impotência e desamparo, à restrição da capacidade de encontrar alternativas não suicidas, a fantasias de resgate etc. Compartilha muitas características da chamada síndrome pré-suicida. M

Métodos. Recursos, meios, elementos mediante os quais um indivíduo põe fim à sua vida. Podem ser naturais ou criados pelo homem. Entre os primeiros, citam-se os vulcões, os lagos, os rios, os mares, as plantas etc. Entre os segundos, mencionam-se as armas de fogo, os fármacos, os venenos agrícolas, os gases de veículos automotores, as armas brancas, as cordas de diversos materiais etc. Geralmente, são escolhidos os meios que estão disponíveis e que são culturalmente aceitos. Entre os romanos antigos, era comum o corte dos pulsos; entre os japoneses, o harakiri; entre as jovens norueguesas, afogar-se em um lago; entre as adolescentes mestiças de Cuba que sofriam um desengano amoroso, o fogo. As mulheres, na maioria das vezes, tendem a escolher métodos que não deformem seu corpo, ao passo que os homens escolhem aqueles mais violentos. Motivo. Razão apontada por quem tenta suicídio para explicá-lo. No caso de consumar o suicídio, são os familiares que levantam as possíveis razões ou o próprio falecido, através de notas suicidas. Não necessariamente o suposto motivo é a causa do ato suicida, mas os motivos mais comumente apontados são conflitos de casais, perda de uma relação valiosa por morte, separação, divórcio etc. N

Notas suicidas. São também chamadas notas de despedidas. São escritos deixados pelos suicidas que podem expressar estados de ânimo, opiniões, desejos de morte, relações com pessoas significativas, possíveis motivos etc. O

Oblativo. Tipo de suicídio com características altruístas.

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P

Pacto suicida. É o acordo mútuo entre duas ou mais pessoas para morrerem juntas, ao mesmo tempo, no mesmo lugar, usualmente utilizando o mesmo método. Em geral, trata-se de pessoas muito vinculadas afetivamente, como cônjuges, familiares ou membros de uma mesma organização política ou seita religiosa. Parassuicídio. Termo usado principalmente na Europa para referir-se à tentativa de suicídio. Perfil suicida. Características psicológicas que poderiam distinguir um suicida potencial, como a impulsividade, a pobreza das relações interpessoais e a hostilidade, que, apesar de freqüentes, não são exclusivas dos suicidas. Plano suicida. Pensamentos ou idéias suicidas com uma adequada estruturação, sumamente grave para quem os apresenta, pois significa que deseja suicidar-se utilizando um método específico e não outro, em determinado momento, por um motivo concreto, para deixar de viver e tomando as devidas providências para não ser descoberto. Posvenção. Termo criado por Shneidman, em 1971, para referir-se ao apoio que necessita quem tenta o suicídio e os familiares de quem se suicidou. É uma das formas de prevenir danos. Potencial suicida. Conjunto de fatores de risco de suicídio em um indivíduo que em determinado momento podem predispor, precipitar ou perpetuar a conduta autodestrutiva. Processo suicida. Lapso de tempo transcorrido desde que o indivíduo teve o primeiro pensamento suicida até a realização da tentativa ou do suicídio. O termo enfatiza o desenvolvimento através do tempo, sugerindo que o suicídio não seja um ato que ocorre por impulso de quem o comete, mas um fato que tem história prévia. Projeto suicida. Termo usado para referir-se à planificação do suicídio. R

Repetidor. Indivíduo que tenta suicídio e que já havia realizado uma tentativa de suicídio anterior. Representação suicida. São as fantasias suicidas ou imagens mentais nas quais o indivíduo se percebe levando a vias de fato seus propósitos autodestrutivos. Risco suicida. Termo usado para referir-se aos indivíduos com risco de cometer suicídio em um futuro imediato ou àqueles que possam vir a cometê-lo ao longo de suas vidas. S

Samaritanos. Organização de prevenção do suicídio formada por voluntários treinados na arte de escutar e que realizam suas intervenções pessoalmente ou por telefone.

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Seppuku. Forma tradicional de suicídio no Japão antigo, assim como o harakiri. Síndrome pré-suicida. Estado psíquico imediatamente anterior ao ato suicida, descrito por E. Ringel em 1949, e que consiste em constrição de afeto e do intelecto, inibição da agressividade e fantasias suicidas, as quais se reforçam entre si. A síndrome pré-suicida não é parte de um transtorno psiquiátrico particular, e sim o denominador comum dos transtornos que têm maior risco suicida. Situação suicida. Uma situação que apresenta alto risco de que um suicídio venha ser cometido, como o caso de um indivíduo que tenha realizado uma tentativa de suicídio e que atualmente se apresenta deprimido e com idéias e/ou planos suicidas. Sobreviventes. São assim denominados os familiares de um suicida, embora para alguns autores os amigos, médicos, tratadores etc. também sejam considerados sobreviventes. Suicidologia. É o estudo científico do comportamento suicida em seus aspectos preventivos, de intervenção e reabilitação. Compreende o estudo dos pensamentos suicidas, das tentativas de suicídio, do suicídio e de sua prevenção. Suicídio acidental. É o suicídio de indivíduos que não desejavam morrer mas que realizaram, normalmente por ignorância, uma tentativa com um método de elevada letalidade. Suicídio altruísta. Um dos tipos básicos de suicídio proposto pelo sociólogo francês E. Durkheim no seu livro O suicídio, publicado em 1897, e que ocorre naquelas sociedades em que existe uma excessiva integração entre o indivíduo e seu grupo social. Não se suicidar, em determinadas situações, seria uma desonra. O harakiri no Japão antigo é um exemplo, pois seguir vivendo era pouco menos do eu uma ignomínia. A viúva hindu que morria na pira ardente de seu esposo falecido é um outro exemplo. Suicídio ampliado. O suicida priva da vida outros que não desejam morrer. Pode ocorrer, por exemplo, quando o indivíduo induz ao suicídio um grupo de pessoas ou causa a morte de vários familiares. Suicídio anômico. Outro dos tipos básicos de suicídio proposto por Durkheim, que ocorre quando a interação entre o sujeito e o grupo social ao qual ele pertence se rompe, deixando o indivíduo sem normas alternativas. Suicídio aparente. Morte cuja causa provavelmente é o suicídio. Suicídio assistido. O termo se refere ao suicídio no qual a morte do indivíduo, mesmo que provocada por ele mesmo, teve a intervenção de outros indivíduos, aconselhando-o sobre a maneira de levá-la a cabo, colocando os meios à sua disposição e o modo de empregá-los. Suicídio coletivo. Termo usado para referir-se ao suicídio de grupos de pessoas, principalmente por motivações religiosas ou políticas. Mesmo que não tenha necessariamente que realizar um pacto suicida explícito, existe, por trás de todo suicídio coletivo, uma acordo implícito de morrer por suicídio entre os membros do grupo em questão. Suicídio consumado. Suicídio.

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Suicídios crônicos. Condutas que levam à autodestruição do indivíduo, não de forma imediata, nem com plena consciência ou intencionalidade, realizadas em longo prazo, com diversos graus de destruição física ou social. Entre os suicídios crônicos, citam-se o alcoolismo, a drogação, a conduta anti-social etc. O termo foi proposto por K. Menninger. Suicídio duplo. Suicídio de pessoas relacionadas entre si, que podem ou não haver realizado um pacto suicida. Podem ser pai, ou mãe, e filho, bem como irmãos, cônjuges, amigos, namorados etc. Suicídio egoísta. Um dos tipos de suicídio descritos por Durkheim, que ocorre quando o indivíduo não tem por que seguir vivendo, pois não possui vínculos sociais ou grupos aos quais pertença, faltando-lhe a integração social. Suicídio fatalista. Outro tipo de suicídio proposto por Durkheim, cuja causa é a regulação social excessiva e o controle insuportável que exerce a sociedade sobre os indivíduos, na maioria de seus atos. Suicídio frustrado. É aquele ato suicida que só não leva à morte devido a situações fortuitas, inesperadas, imprevistas. Suicídio intencional. É o ato suicida realizado pelo indivíduo com o propósito deliberado de morrer. Suicídios localizados. Termo proposto por Menninger em seu livro O homem contra si mesmo, para referir-se a um conjunto de comportamentos agressivos, como a automutilação, a policirurgia, a onicofagia (vício de roer as unhas) etc. Suicídio palmo a palmo. São aquelas condutas autodestrutivas indiretas, consideradas por Durkheim como espécies embrionárias de suicídio ou equivalentes suicidas. Menninger o considerava também como suicídio crônico. Suicídio racional. Termo usado para definir aqueles suicídios que ocorrem na ausência de uma patologia psiquiátrica, como suposta expressão de liberdade do indivíduo para escolher sua própria morte. Alguns autores consideram que o termo é ambíguo, pouco realista, pois é muito raro que ocorra um suicídio na ausência de uma doença mental, como mostram os vários estudos de autópsia psicológica. T

Taxas de suicídio. É o número de suicídios que ocorre em uma localidade, normalmente medido como número de suicídios para cada 100.000 habitantes por ano. Tendências suicidas. Atitude caracterizada pela intenção, planificação, possível decisão ou impulsos de cometer suicídio. Tipologias suicidas. Classificação dos suicidas segundo as características que lhes são comuns. Para Durkheim, são quatro os tipos suicidas, segundo a maior ou menor integração social ou regulações sociais: egoísta, altruísta, anômico e fatalista. Menninger distingue três tipos, segundo o motivo predominante do ato: desejo de matar, desejo de morrer e desejo de

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ser morto. Baechler descreve quatro categorias baseadas na lógica do indivíduo suicida: escapista, agressivo, oblativo e lúdico. Mintz os classifica segundo diferentes motivações existentes nos suicidas: hostilidade contra o objeto previamente introjetado, agressão dirigida contra si mesmo, gratificação narcisista ou masoquista, redução da culpabilidade, destruição de sentimentos intoleráveis, como ato de renascimento, como reunião, para escapar da dor, resposta contrafóbica ao medo da morte etc. Shneidman os classifica segundo a necessidade psicológica insatisfeita que predomine, tomando as necessidades citadas por Henry A. Murray em seu livro Exploração da Personalidade, e enuncia um total de 100: agredir, defender-se, dominar, exibir-se, julgar, evitar uma humilhação, ser independente, entre outras tantas. Sérgio Perez Barrero os qualifica segundo a capacidade que tenham de responsabilizar-se por sua própria vida, dividindo-os em totalmente responsáveis, parcialmente responsáveis e não responsáveis, com os quais tem que estabelecer uma relação terapêutica específica durante a crise suicida (participação mútua, cooperação guiada e ativo-passiva, respectivamente). Outras tipologias são as de Wold, Henderson e Williams, Leonhard, Berman etc. Teoria biológica do suicídio. São aquelas teorias que partem do princípio de que o comportamento suicida e outros fenômenos associados, como a impulsividade e a agressividade, teriam como substrato alterações biológicas. A teoria mais amplamente aceita postula que um distúrbio serotoninérgico estaria associado ao comportamento suicida. Outra teoria biológica é a teoria genética, segundo a qual o suicídio seria, pelo menos parcialmente, determinado geneticamente, o que foi demonstrado por estudos de genética epidemiológica. Várias outras hipóteses biológicas existem, como aquelas que associam o comportamento suicida com baixas de colesterol ou com o tipo sangüíneo, mas são menos aceitas pela comunidade científica. Teoria psicológica. As principais formulações psicológicas do comportamento suicida se iniciam com Freud e seguidores, que consideram o suicídio como um assassinato ao qual se deu um giro de 180 graus, descrevem a ambivalência amor e ódio presente em todo suicida, a incapacidade pouco comum de amar aos outros, assim como a associação do suicídio como forma de agressividade com o instinto de morte. Menninger considera que o suicídio se faz efetivo quando se combinam muitas circunstâncias e fatores, existindo três elementos essenciais em todo comportamento suicida: o desejo de matar, o desejo de morrer e o desejo de ser morto. Teoria psiquiátrica. É a teoria que considera o suicídio como uma manifestação de uma patologia psiquiátrica. Sua origem remonta às primeiras décadas do século XIX. Para Esquirol, “todo suicídio é o efeito de um enfermidade ou um delírio agudo”. Considerava o suicídio como um sintoma de transtorno mental, embora podendo também resultar de paixões humanas. Essa teoria mantém pleno vigor e, através dos estudos de autópsia psicológica, sabemos que mais de 90% dos suicidas tinham alguma doença psiquiátrica, diagnosticada ou não no momento do suicídio. Teoria sociológica de suicídio. Entre elas, temos a de Durkheim, que apresenta a hipótese de o suicídio ser resultante de uma perturbação existente entre a sociedade e o indivíduo, segundo esteja comprometida sua integração social ou segundo estejam comprometidas as regulações impostas pela sociedade ao indivíduo. Esse autor classifica os suicídios em altruístas ou egoístas, de acordo com o grau de integração social, e em anômicos ou fatalistas, dependendo do nível de regulação. Várias outras teorias sociológicas existem, como a teoria da subcultura, a da mudança de status e a da integração de status.

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U

Unidade de Suicidologia. Serviço destinado à hospitalização de indivíduos que tenham tentado suicídio, que apresentem idéias suicidas ou planos suicidas com risco elevado de realizá-los. Pode encontrar-se em um hospital geral ou como parte de uma unidade de intervenção de crises. V

Voluntários. Termo pelo qual se conhece os membros do Befrienders International ou os Samaritanos, por tratar-se de organizações de prevenção do suicídio regidas por pessoas interessadas no tema, com formação para isso e que baseiam seu trabalho na terapia de escuta e em um contato num nível afetivo profundo. Esse movimento foi iniciado por Chad Varah como o nome de Samaritanos em 1953, em Londres. Em novembro de 1974, cria-se Befrienders International a partir daquele movimento original. Na atualidade, é uma potente organização de voluntários na prevenção do suicídio com centros em todos os continentes e em mais de 40 países. Sua utilidade é inquestionável se se tem em consideração um princípio suicidológico que atribui a prevenção do suicídio a quem está mais próximo do suicida e saiba reconhecer precocemente sintomas pré-suicidas.

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