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SÚMULAS VINCULANTES: DEBATE SOBRE O INSTITUTO E IMBRICAÇÃO DO TEMA COM O CONTROLE DE Dario Fava Corsatto

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SÚMULAS VINCULANTES: DEBATE SOBRE O INSTITUTO E IMBRICAÇÃO

DO TEMA COM O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

Dario Fava Corsatto

Dario Fava Corsatto

Mestre em Direito Público e Políticas Públicas pelo UniCeub, professor e autor de Direito Consti-tucional, Auditor Federal de Controle Externo do Tribunal de Contas da União e diretor adminis-

trativo e financeiro do Sindicato dos Servidores do Poder Legislativo e do TCU (Sindilegis).

SÚMULAS VINCULANTES: DEBATE SOBRE O INSTITUTO E IMBRICAÇÃO

DO TEMA COM O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

BrasíliaCentro Universitário de Brasília

2013

CORSATTO, Dario Fava.

Súmulas Vinculantes: Debate sobre o Instituto e Imbricação do Tema com o Controle de Constitucio-nalidade. Dario Fava Corsatto. Brasília, 2013.

96 p.

ISBN 978-85-61990-24-4

Dissertação de Mestrado (Programa de Mestrado em Direito e Políticas Públicas) - Centro Universitário de Brasília, Brasília, 2012.

1. Políticas públicas. 2. Direito Constitucional. 3. Súmulas vinculantes. 4. Controle de constitucionalidade.

CDD 340

Para a minha família e todos aqueles que também são a minha família. Em especial, para Andressa.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 9

CAPÍTULO 1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES ............................................................................... 11

1.1 A Reforma do Poder Judiciário ....................................................................................111.2 Súmulas Tradicionais ou Persuasivas e Súmulas Vinculantes ................................. 141.3 O que Significa a Adoção, entre Nós, das Súmulas Vinculantes? ..........................161.4 Evolução do Instituto no Brasil .....................................................................................191.5 O Instituto e seus Similares no Direito Comparado ................................................211.6 Efeito Vinculante e Súmulas Vinculantes ..................................................................23

CAPÍTULO 2 REGIME JURÍDICO DAS SÚMULAS VINCULANTES ................................................. 25

2.1 Natureza Jurídica .............................................................................................................252.2 Objetivos ...........................................................................................................................262.3 Requisitos ..........................................................................................................................272.4 Tribunal Competente ......................................................................................................282.5 Legitimados ......................................................................................................................292.6 Trâmite Processual...........................................................................................................302.7 Decisão .............................................................................................................................312.8 Efeitos ...............................................................................................................................312.9 Destinatários ...................................................................................................................322.10 Descumprimento ............................................................................................................33

CAPÍTULO 3 O DEBATE SOBRE AS SÚMULAS VINCULANTES ...................................................... 37

3.1 Tratamento Isonômico aos Jurisdicionados ...............................................................373.2 Maior Segurança Jurídica .............................................................................................403.3 Agilização, Desafogamento e Barateamento da Justiça .............................................413.4 Esmaecimento do Limite entre as Funções Jurisdicional e Legiferante ...............453.5 Empobrecimento da Argumentação Jurídica .............................................................493.6 Ofensa à Liberdade de Convicção dos Magistrados .................................................503.7 Exarcebamento do Poder Conferido ao Supremo Tribunal Federal ......................523.8 Problemas com a Exegese de uma Nova Súmula ......................................................533.9 Ofensa ao Princípio do Duplo Grau de Jurisdição ...................................................57

CAPÍTULO 4 A EVOLUÇÃO DO COMPORTAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA APROVAÇÃO DAS SÚMULAS VINCULANTES .............................................................. 59

CAPÍTULO 5 O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL ..................................... 67

5.1 Regramento Básico .........................................................................................................675.2 Controle Difuso ..............................................................................................................735.3 Controle Concentrado ...................................................................................................77

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CAPÍTULO 6 AS SÚMULAS VINCULANTES E O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE 88

6.1 Colocação do Problema ................................................................................................886.2 Análise da Questão .......................................................................................................88

CONCLUSÕES ...............................................................................................................................90

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 93

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INTRODUÇÃO

O Poder Judiciário sofreu importantes alterações com a edição da Emenda Constitucional 45, de 08/12/2004 (EC 45/04), conhecida como Reforma do Poder Judiciário. Foi criado o Conselho Nacional de Justiça, para fiscalizar o cumprimento dos deveres funcionais dos juízes. Procurou-se dificultar a promoção do juiz que, injustificadamente, retenha autos em seu poder, além de se ter determinado que a distribuição de processos seja imediata. Vários mecanismos foram criados para incentivar o aperfeiçoamento da Magistratura. Foi decidido o fim das férias forenses nos Tribunais de segundo grau, de modo a tornar a atividade jurisdicional ininterrupta. Criou-se a possibilidade de se instituir a justiça itinerante, a fim de facilitar o acesso ao Poder Judiciário.

Contudo, uma das maiores inovações trazidas pela EC 45/2004 diz respeito às súmulas vinculantes. Inspirada nos países que adotam o common law, especialmente os Estados Unidos, no qual as decisões preferidas pela Suprema Corte obrigam os demais órgãos do Poder Judiciário, a sistemática de súmulas vinculantes apoia-se na teoria dos precedentes ou das decisões sedimentadas, derivadas do brocardo “mantenha-se a decisão e não se perturbe o que foi decidido” (stare decisis et quieta non movere).

A EC 45/2004 incluiu na Constituição Federal a determinação de que o Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de 2/3 dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei (art. 103-A, caput).

A grande questão que se coloca é: afinal, a introdução de um instituto tão estranho à nossa realidade jurídica trouxe benefícios para o exercício da jurisdição? E, em caso afirmativo, a referida inovação teria preservado os princípios constitucionais emanados do constituinte originário, especialmente no que se refere ao princípio da separação de Poderes? Nosso objetivo é esmiuçar essas questões, analisando as principais vantagens e vantagens declinadas pela doutrina referentes à adoção do instituto no Brasil, bem como enfrentando a questão referente à pretensa inconstitucionalidade da emenda constitucional que inovou a ordem jurídica nacional.

Muitas foram as vozes contrárias que vieram à tona com o surgimento, entre nós, dessa espécie de súmulas, críticas essas que ainda subsistem com grande força. Há aqueles que defendem que as súmulas vinculantes engessarão o Poder Judiciário, impedindo que os juízes das instâncias inferiores e as partes que nelas atuam oxigenem o pensamento jurídico ao impossibilitar que novas teses jurídicas se desenvolvam, atuando como uma espécie de cerceamento da capacidade criadora de todos quantos atuam nessas instâncias. A essa crítica, soma-se a sensação de que se atribuiu, ao final de contas, um poder exagerado ao Supremo Tribunal Federal, o que pode resultar em um indesejável desequilíbrio de forças, até mesmo porque não haveria como controlar um eventual abuso de poder por parte desse órgão, o qual acabaria atuando como verdadeiro legislador. Há, ainda, a visão de que as súmulas vinculantes seriam uma resposta burocrática e pobre ao fenômeno que ficou conhecido como crise da Justiça, que vem a ser a incapacidade de o Poder Judiciário responder dentro de prazo razoável às demandas por uma boa prestação jurisdicional por parte da sociedade.

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A essas críticas somam-se outras. Muitos entendem que haveria um esmaecimento ainda mais acentuado no já tênue limite entre a função jurisdicional e a função legiferante, que, em função do princípio da separação dos Poderes, deveria ser exercido por órgãos distintos. Outros, por sua vez, se mostram irresignados com a ofensa ao princípio do duplo grau de jurisdição que o novo regime acarretaria ao sistema jurídico.

Os defensores das súmulas vinculantes, entre os quais nos filiamos, rebatem cada uma dessas ideias. Nosso propósito com o presente trabalho é demonstrar que tal instrumento, se aplicado dentro da previsão constitucional, não compromete o bom desenvolvimento da doutrina jurídica e nem municia o Supremo Tribunal Federal com um poder desmedido, até porque, dentro do engenhoso sistema de freios e contrapesos que foi sabiamente preservado na arquitetura das súmulas vinculantes, cabe a um outro Poder, o Legislativo, exercer o necessário controle sobre elas, bastando para isso a simples edição de uma lei em sentido contrário.

Não queremos com isso dizer que as súmulas vinculantes sejam à prova de abusos – não o são, assim como não é isenta de falha qualquer invenção humana; demonstraremos, contudo, que, da mesma forma que outros bons institutos, as súmulas vinculantes contêm eficaz antídoto contra seu mau uso.

A adoção entre nós da súmula vinculante não apenas preservou o delicado sistema de freios e contrapesos entre os Poderes como, também, trouxe grandes vantagens à administração da justiça. Por um lado, o instituto tem a capacidade de desafogar o Poder Judiciário de milhares de processos que, no final das contas, teriam o mesmo fim, ainda que sigam caminhos diferentes, dependendo da opção processual escolhida, permitindo que se torne realidade a prática de uma justiça mais célere. Por outro lado, o novo instrumento tem o condão de assegurar maior isonomia do jurisdicionado frente às decisões judiciais, tendo em vista a uniformização da jurisprudência que pode ser percebida como consequência da nova concepção.

O trabalho se escora em minudente análise do novo instituto. O regime jurídico das súmulas vinculantes é, dessa forma, estudado detalhadamente, desde sua natureza jurídica, passando pelo trâmite processual e seguindo até as consequências que podem advir de seu descumprimento. Analisamos, também, os debates que ocorreram no STF, quando da aprovação de algumas das súmulas vinculantes, de modo a captar a evolução do comportamento daquela Corte no que se refere ao aperfeiçoamento da sistemática processual.

Outra questão abordada é a estreita relação que entendemos existir entre as súmulas vinculantes e o controle abstrato de constitucionalidade de normas adotado no Brasil. A edição de súmulas vinculantes é uma forma complementar de exercer o controle de constitucionalidade, robustecendo esse exercício. No âmbito do controle difuso, as súmulas vinculantes aproximam os efeitos do controle difuso aos efeitos do controle concentrado, dotando aquele de importantes características deste. No âmbito do controle concentrado, elas permitem que a inconstitucionalidade de diversas leis seja estendida a leis semelhantes, sem necessidade de nova provocação ao STF. Para melhor esmiuçar esse ponto, traçados, previamente, um breve estudo sobre o sistema de controle de constitucionalidade brasileiro.

Em síntese, defendemos, no presente trabalho, duas hipóteses: a primeira, no sentido de que a adoção das súmulas vinculantes tem o potencial de trazer grandes benefícios para o sistema jurídico brasileiro, superando em larga escala os problemas que possam advir dessa inovação; e a segunda, de que as súmulas vinculantes também se prestam a complementar o exercício do controle de constitucionalidade de normas, alargando as possibilidades até então previstas na Constituição Federal.

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CAPÍTULO 1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

1.1 A Reforma do Poder Judiciário

A EC 45/04, conhecida como Reforma do Poder Judiciário, foi concedida para tornar a atividade jurisdicional mais célere, por meio da modernização da administração da justiça brasileira. Com esse intuito, vários dispositivos foram modificados, o que resultou em alteração, em larga escala, da Constituição Federal de 1988. Nesta seção, a título de introito ao presente trabalho, e para melhor nos situarmos quanto ao tema de nosso interesse central – as súmulas vinculantes –, pretendemos analisar as principais mudanças promovidas por essa emenda constitucional.

Foi acrescentado dispositivo à Constituição Federal segundo o qual a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação (art. 5º, LXXVIII). É claro que a razoável duração do processo é decorrência natural do princípio da razoabilidade, que, ao lado do princípio da proporcionalidade, norteia a atividade de administrar a justiça. Como princípio que é, não necessitaria estar positivado, mas assim preferiu o constituinte derivado, como forma de externar sua preocupação com o lento desenrolar dos processos judiciais e administrativos. Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco exemplificam algumas aplicações do novo postulado (2007, p.486):

O direito à razoável duração do processo, a despeito de sua complexa implementação, pode ter efeitos imediatos sobre situações individuais, impondo o relaxamento da prisão cautelar que tenha ultrapassado determinado prazo, legitimando a adoção de medidas antecipatórias ou até o reconhecimento da consolidação de uma dada situação com fundamento na segurança jurídica.

A EC 45/04 trouxe, também, uma importante inovação no regramento dos tratados internacionais. Agora, nem todos os tratados, como era regra, passam a figurar em nosso ordenamento jurídico com status de legislação infraconstitucional. Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em 2 turnos, por 3/5 dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais (art. 5º, § 3º), passando, portanto, a ter igual hierarquia de norma constitucional – são os decretos legislativos com força de emenda constitucional1.

Mas as inovações não pararam por aí. O STF passou a entender que os tratados internacionais sobre recursos humanos, independentemente do quórum qualificado previsto pela EC 45/04, teriam status supralegal, isto é, deteriam hierarquia superior à das leis ordinárias e complementares, mas sem força para derrogar as normas constitucionais com as quais conflitem, pois se encontram abaixo da Constituição Federal (RE 466.343/SP, rel. Min. Cezar Peluso, 03/12/2008). Passamos a ter, portanto, o que se segue: a) tratados internacionais que tratem sobre direitos humanos: terão status constitucional se forem aprovados, em cada Casa

1 O primeiro promulgado com tal força foi o Decreto Legislativo 186/2008, que aprovou o texto da Con-venção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007.

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do Congresso Nacional, em 2 turnos, por 3/5 dos votos dos respectivos membros; ou status supralegal, abaixo da Constituição, mas acima das leis, nos demais casos; e b) demais tratados internacionais: terão status de lei ordinária.

Cabe observar que a Constituição de 1988 não adotou a doutrina da recepção automática das normas de direito internacional, como o fez a Constituição portuguesa, por exemplo. Por essa doutrina, as normas decorrentes dos tratados internacionais “são diretamente aplicáveis pelos tribunais e outras autoridades encarregadas de aplicar o direito”, no dizer de J. J. Gomes Canotilho. Assim explica o consagrado constitucionalista (1997, p. 722):

Não necessitando de qualquer transformação em lei ou outro ato de direito interno para poderem ser consideradas incorporadas ao ordenamento interno, as normas de direito internacional comum entram em vigor no direito interno ao mesmo tempo que adquirem vigência na ordem internacional.

Não é o caso brasileiro, frise-se. A doutrina da recepção automática das normas de direito internacional é conhecida como monista, teoria segundo a qual haveria unidade entre os ordenamentos nacional e internacional. Dessa forma, ao contrair obrigações no plano internacional, o Estado estaria, na verdade, exercendo normalmente a sua soberania. Contrapõe-se a esse pensamento a teoria dualista, que entende haver uma nítida separação entre os ordenamentos nacional e internacional, com prevalência daquele, uma vez que a vontade do Chefe do Estado (expressa em um acordo internacional) não poderia se sobrepor à vontade do povo (expressa no ordenamento interno). A teoria da recepção automática (monista) subdivide-se, ainda, em quatro correntes, quanto ao posicionamento no ordenamento jurídico dos tratados internacionais que versem sobre direitos humanos: a) os tratados situam-se em posição de prevalência quanto à própria Constituição Federal; b) equiparam-se à Constituição; c) encontram-se abaixo da Constituição, mas acima da legislação ordinária; e d) situam-se no mesmo nível hierárquico da legislação ordinária. Seja como for, é nítida a tendência mundial para a internacionalização de parte das normas constitucionais, especialmente as referentes aos direitos humanos.

A emenda constitucional trouxe, também, regra segundo a qual o Brasil submete-se à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão (art. 5º, § 4º). Temos que o Brasil aderiu ao Tribunal Penal Internacional criado por meio do Estatuto de Roma (Decreto 4.388/02), no qual se prevê que o referido Tribunal será uma instituição permanente, com jurisdição sobre as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional, sendo complementar2 às jurisdições penais nacionais. Trata-se de uma mitigação voluntária de nossa soberania em prol da universalização dos direitos da pessoa humana. Significa que o País aceita se submeter ao referido Tribunal, numa excelente demonstração, perante o Mundo, de que desejamos ver respeitados todos os direitos da pessoa humana. Já na promulgação da Constituição de 1988 previa-se que o Brasil deveria propugnar pela formação de um Tribunal internacional dos direitos humanos (ADCT, art. 7º). Cabe observar que a submissão do Brasil a esse Tribunal implica que suas sentenças se integrarão automaticamente na jurisdição brasileira, sendo dispensável que haja homologação.

2 Complementar no sentido de cobrir ausência de persecução penal do Estado-membro ou aplicação simulada da mesma, na forma de farsa.

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Foram várias as alterações no dispositivo constitucional que serve de fundamento para o Estatuto da Magistratura (o art. 93), todas no sentido de privilegiar uma melhor formação do juiz, de adotar a produtividade como parâmetro para o desenvolvimento na carreira e de conferir maior celeridade ao trâmite processual. Vejamos as principais: a) passou-se a exigir, para o ingresso na carreira, que o candidato tenha, no mínimo, 3 anos de atividade jurídica (inc. I), aí compreendido o tempo despendido no magistério superior e em cursos de pós-graduação, segundo alguns critérios (Resolução CNJ 11/06); b) proibição de se promover o juiz que, injustificadamente, retiver autos em seu poder além do prazo legal, não podendo devolvê-los ao cartório sem o devido despacho ou decisão (inc. II); c) passou a constituir etapa obrigatória do processo de vitaliciamento do juiz a participação em curso oficial ou reconhecido por Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (inc. IV); d) ficou decidido que a atividade jurisdicional será ininterrupta, sendo vedado férias coletivas nos juízos e Tribunais de segundo grau, funcionando, nos dias em que não houver expediente forense normal, juízes em plantão permanente3 (inc. XII); e) o número de juízes na unidade jurisdicional deverá ser proporcional à efetiva demanda judicial e à respectiva população (inc. XII); f) os servidores da justiça poderão receber delegação para a prática de atos de administração e atos de mero expediente sem caráter decisório (inc. XIV), desafogando, assim, os juízes dessas tarefas rotineiras; e g) a distribuição de processos será imediata, em todos os graus de jurisdição (inc. XV), de modo a evitar que os processos fiquem parados e atribuindo aos juízes a responsabilidade da carga pelos mesmos.

Com a Reforma do Poder Judiciário, algumas competências foram remanejadas entre o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça. Passou a ser competência do STF julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida julgar válida lei local contestada em face de lei federal (art. 102, III, “d”). Até então, tal competência pertencia ao STJ, em sede de recurso especial. A alteração se justifica: eventual conflito de competência entre lei federal e lei local (estadual ou municipal) é, no fundo, uma questão constitucional, pois é a Constituição Federal quem distribui as competências legislativas entre os entes federados. Por outro lado, passou a ser competência do STJ processar e julgar originariamente a homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias, competência anteriormente do STF.

Uma grande inovação trazida pela Reforma do Poder Judiciário refere-se ao requisito da repercussão geral, necessário para a admissibilidade de recurso extraordinário frente ao STF. Agora, no recurso extraordinário, o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de 2/3 de seus membros (art. 102, § 3º). Vale acrescentar que a Lei 11.418/06 introduziu no Código de Processo Civil o disciplinamento referente à questão da repercussão geral necessária à admissibilidade do recurso extraordinário, eis que o Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá desse recurso quando a questão constitucional nele versada não oferecer referido requisito (CPC, art. 543-A, caput). Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa (§ 1º). O recorrente deverá demonstrar, em preliminar do recurso, para apreciação exclusiva do Supremo Tribunal Federal, a existência da repercussão geral (§ 2º), não havendo se falar em demonstração implícita do requisito.

3 O STF já decidiu que esse dispositivo é auto-aplicável, não cabendo regulamentação restritiva por parte do CNJ ou de qualquer Tribunal (ADI 3.823/DF, Info STF 451, dez/2006).

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Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão geral será processada nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (CPC, art. 543-B, caput). Caberá ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal, sobrestando os demais até o pronunciamento definitivo da Corte (§ 1º). Negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente não admitidos (§ 2º). Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se (§ 3º). Mantida a decisão e admitido o recurso, poderá o Supremo Tribunal Federal, nos termos do Regimento Interno, cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada (§ 4º).

A EC 45/04 trouxe duas novidades visando aproximar a justiça dos jurisdicionados, de modo a atingir aquelas regiões mais desassistidas. Em primeiro lugar, definiu que os Tribunais Regionais Federais instalarão a justiça itinerante, com a realização de audiências e demais funções da atividade jurisdicional, nos limites territoriais da respectiva jurisdição, servindo-se de equipamentos públicos e comunitários (CF, art. 107, § 2º). Em segundo lugar, dispôs que os Tribunais Regionais Federais poderão funcionar descentralizadamente, constituindo Câmaras regionais, a fim de assegurar o pleno acesso do jurisdicionado à justiça em todas as fases do processo (§ 3º). Os Tribunais Regionais do Trabalho e os Tribunais de Justiça, a exemplo dos TRFs, também poderão instalar a justiça itinerante (art. 115, § 1º e art. 125, § 7º) e funcionar descentralizadamente (art. 115, § 2º e art. 125, § 6º).

Outra grande inovação trazida pela EC 45/04 refere-se à criação do Conselho Nacional de Justiça, com a competência precípua de exercer o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes (art. 103-B, § 4º). O STF já firmou o entendimento de que o CNJ é órgão próprio do Poder Judiciário (CF, art. 92, I-A), composto, em sua maioria, por membros desse mesmo Poder (CF, art. 103-B), nomeados sem interferência direta dos outros Poderes, dos quais o Legislativo apenas indica, fora de seus quadros e, assim, sem vestígios de representação orgânica, 2 dos 15 membros, não podendo essa indicação se equiparar a nenhuma forma de intromissão incompatível com a ideia política e o perfil constitucional da separação e independência dos Poderes (ADIN 3.367-DF, Info STF 383, abr/2005). Trata-se de órgão interno de controle administrativo, financeiro e disciplinar da magistratura, ou seja, não constitui órgão externo à estrutura do Poder Judiciário, em virtude da vedação constitucional a interferências externas que possam, de alguma forma, afetar negativamente a independência da Magistratura (ADI 1578/AL, rel. Min. Cármen Lúcia, 04/03/2009).

A EC 45/04 foi também responsável pelo maior detalhamento das competências cabíveis à Justiça do Trabalho (art. 114), pela possibilidade de criação de varas especializadas em conflitos fundiários no âmbito do Tribunal de Justiça (art. 126) e por importantes modificações no Ministério Público (art. 127).

1.2 Súmulas Tradicionais ou Persuasivas e Súmulas Vinculantes

Entende-se por súmula (do latim summula, sumário, resumo) um enunciado simples e direto – normalmente elaborado em uma única frase – que traduz a interpretação dominante adotada por um colegiado qualquer sobre determinado tema, em certa época. A súmula tem a função, portanto, de traduzir, da forma mais clara possível, o entendimento que

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predomina em um Tribunal. Tem também a função de poupar os próprios membros daquele Tribunal de citar todos os precedentes que escoram suas decisões, bastando que citem a súmula para se fazerem bem entendidos. As súmulas, assim, nasceram com o objetivo de tornar mais transparente o pensamento dos Tribunais, conferindo, por via de consequência, maior segurança jurídica aos jurisdicionados. Pertinente citar conceito de direito sumular adotado em acórdão do STJ (AgRg no Ag 8703/ CE, DJ 02/09/1991):

O direito sumular traduz o resumo da jurisprudência sedimentada em incontáveis e uniformes decisões das Cortes superiores do País, que visam à “rapidificação” de causas no Judiciário.

Existe um caminho lógico que é percorrido entre uma primeira decisão e a transformação de sua ratio decidendi em um entendimento sumulado. Por vezes, uma decisão torna-se tão importante, tão marcante que passa a funcionar como parâmetro para as decisões seguintes – torna-se um leading case. Noutras vezes, decisões convergentes vão emergindo de diversos julgados, havidas em juízos distantes ou pouco conexos uns com os outros. Em ambas as hipóteses, surge, então, o que se denomina como jurisprudência dominante. Quando esta jurisprudência assume o monopólio intelectual a ponto de ser entendida como pacífica, consolidada, dá azo a que o juízo interessado atribua-lhe o estado especial de entendimento sumulado, ou simplesmente súmula. Marcelo Lamy e Luiz Guilherme Arcaro Conci enunciam uma interessante lição sobre a evolução dos precedentes judiciais em direção à sua sumulação (2005, p.304-8):

Em nosso sistema codicista, a tese jurídica que fundamenta uma decisão judicial produz efeito diante do caso sob análise, mas não deixa de servir de exemplo, ‘precedente’ para decisões subseqüentes. Se esta tese jurídica perfilhada vê-se reiterada de modo uniforme e constante (permanência lógica e temporal) em casos semelhantes, identificamos o que intitulamos ‘jurisprudência’. Quando esta tese conquista terreno significativamente majoritário em determinado órgão judicial colegiado, soe acontecer a edição de súmula ou enunciado que positive, desvele pontualmente o entendimento sedimentado.

As súmulas podem ser de dois tipos. Há as súmulas tradicionais, também chamadas de persuasivas, e as súmulas vinculantes. As súmulas tradicionais, aquelas existentes até a promulgação da EC 45/2004, não vinculam, isto é, não obrigam quem quer que seja, nem mesmo as instâncias inferiores, que têm plena liberdade de afastar sua incidência no caso concreto. Na verdade, têm efeito meramente persuasivo, daí a qualificação pela qual são também conhecidas. A súmula vinculante, diferentemente, a todos obriga, paralisando qualquer atividade em sentido contrário, exceto a atividade legiferante, a qual funcionará como uma das possíveis formas de controle do novo instituto.

A não obrigatoriedade de observância das súmulas tradicionais não lhe esvazia a finalidade, assim como a não vinculação aos precedentes jurisprudenciais não afasta a importância de uma pesquisa ou fundamentação nesse sentido. Quando se pensa em decisões que se sobrepõem no mesmo sentido, fácil ver que um Tribunal só muito excepcionalmente se afastará da direção que gradativamente se consolidou. É por isso que se fala em perfil indiretamente obrigatório dessa espécie de súmula, como o dizem Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Augusto Gonet Branco (2007, p. 915). Pode-se inferir que os casos futuros observarão, via de regra, aquele mesmo raciocínio. Natural, portanto, que as partes e os julgadores se orientem por essa diretriz, aquelas evitando demandas sem

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chance de prosperar, e os magistrados, por outro lado, adotando a lei do menor esforço em simplesmente indicar a matéria sumulada ou evitando que suas decisões venham a ser reformadas. As súmulas constituem, assim, verdadeiros modelos, que são seguidos espontaneamente pela comunidade jurídica.

Dessa forma, ainda que não haja vinculação na observância das súmulas tradicionais ou da jurisprudência não sumulada, tais são importantes instrumentos de norteamento para o trabalho da comunidade jurídica. É dizer, apesar de lhes falecer impositividade, revestem-se, na verdade, de grande força prática, canalizando o pensamento jurídico em determinado sentido. Dessa forma, podem também ser entendidas como instrumento de autodisciplina dos Tribunais que a exteriorizam, que somente se afastam de forma fundamentada e excepcional da orientação fixada. Na verdade, mesmo uma única decisão judicial pode cumprir esse papel, quando se converte em um leading case, tornando-se um paradigma ou um “divisor de águas” para as decisões de um determinado Tribunal.

Interessante conhecer alguns detalhes processuais referentes à adoção de súmulas tradicionais em nossas principais Cortes (das súmulas vinculantes cuidaremos de forma detalhada depois). No âmbito do Supremo Tribunal Federal, a inclusão de tais súmulas, bem como sua alteração ou cancelamento, serão deliberados em Plenário, por maioria absoluta (RISTF, art. 102, § 1º). Qualquer dos ministros daquela Corte poderá propor a revisão da jurisprudência compendiada na forma de súmula, procedendo-se ao sobrestamento do feito, se necessário (art. 103).

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, temos que será objeto de súmula o julgamento tomado pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram a Corte Especial ou cada uma das Seções, em incidente de uniformização de jurisprudência; também poderão ser inscritos na súmula os enunciados correspondentes às decisões firmadas por unanimidade dos membros componentes da Corte Especial ou da Seção, em um caso, ou por maioria absoluta em pelo menos dois julgamentos concordantes (RISTJ, art. 122, § 1º). A inclusão da matéria objeto de julgamento na súmula da jurisprudência do Tribunal será deliberada pela Corte Especial ou pela Seção, por maioria absoluta dos seus membros (§ 2º). Se a Seção entender que a matéria a ser sumulada é comum às Seções, remeterá o feito à Corte Especial (§ 3º). Qualquer dos Ministros poderá propor, em novos feitos, a revisão da jurisprudência compendiada na súmula, sobrestando-se o julgamento, se necessário (art. 125, § 1º).

1.3 OqueSignificaaAdoção,entreNós,dasSúmulasVinculantes?

A introdução entre nós das súmulas vinculantes aproximou o sistema aqui adotado (bem como nos países de tradição romanística), conhecido como civil law, ou romano-germânico, fortemente lastreado na legislação positiva, do sistema denominado common law, de matriz anglo-americana, em que os juízes muitas vezes decidem sem apoio de uma lei positivada, baseando-se especialmente nos precedentes que informam o caso concreto.

Os dois sistemas resolvem as questões jurídicas de modo bastante diverso. No civil law, a solução dos conflitos se dá ao método dedutivo, partindo sempre do geral (as normas) para o particular (o caso concreto). Já no sistema americano, o método é o indutivo, eis que a solução é pensada apenas para o caso concreto (pragmatismo exacerbado), a partir do qual emana o edifício jurídico (André Ramos Tavares, 2008, p. 383).

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Osmar Mendes Paixão Côrtes apresenta uma diferenciação entre os dois sistemas que vale a pena ser transcrita (2008, p. 119):

Em síntese, pode-se afirmar que a regra do direito na Inglaterra tem um caráter diverso da do sistema romano-germânico. Neste, a regra é marcada pela generalidade, é elaborada em cima de princípios desenvolvidos pela doutrina, e objetiva regular as condutas na sociedade. No direito inglês, a regra deve ser apta a dar, de forma imediata, a solução de um litígio. Os juízes têm a preocupação de resolver determinado caso concreto e, quando várias decisões já foram tomadas em um mesmo sentido, podem utilizá-las como precedentes ou até reconhecer um princípio.

O autor interpreta que a diferenciação entre os dois sistemas (o inglês e o romano-germânico) pode ser atribuída, ainda que parcialmente, à existência de um forte poder real, no caso da Inglaterra, o que levou à despreocupação de se produzir leis genéricas que pudessem ser utilizadas pelos julgadores (2008, p. 119). É dizer, havia sempre a possibilidade da intervenção real para decidir as questões que discrepassem dos casos anteriores.

Allan Farnsworth apresenta uma consiste e bastante citada fundamentação para a credibilidade que o precedente assumiu no sistema anglo-americano (1963, p. 61-8):

A confiança no precedente se desenvolveu primeiramente no direito inglês e foi adotada nos Estados Unidos como parte da tradição no direito inglês. Como tradição, não foi transformada em regra escrita e não é encontrada na Constituição ou nas leis (...). A justificação comumente dada a essa doutrina pode ser resumida em quatro palavras: igualdade, previsibilidade, economia e respeito. O primeiro argumento é que a aplicação da mesma regra em casos análogos sucessivos resulta em igualdade de tratamento para todos que se apresentem à justiça. O segundo é que uma sucessão consistente de precedentes contribui para tornar previsível a solução de futuros litígios. O terceiro é que o uso de um critério estabelecido para solução de novos casos poupa tempo e energia. O quarto é que a adesão a decisões anteriores mostra o devido respeito à sabedoria e experiência das gerações passadas de juízes.

Uma observação muito importante que Allan Farnsworth faz é o alerta de que a doutrina do precedente não exige uma adesão absoluta, irrestrita, ao passado. Ao contrário, a referência ao passado é flexível, sendo na verdade uma benesse, na medida em que permite, ao juiz mais capaz, a possibilidade de aproveitar a sabedoria e a experiência de seus antecessores, bem como atentar para os erros e desatinos do passado, rejeitando-os no caso concreto que se apresenta. Na aplicação da doutrina do precedente, o juiz não se defronta com apenas um caso concreto, mas com vários: o atual, a decidir, e todos os anteriores, o que contribui para enriquecer sobremaneira sua decisão (1963, p. 61-8).

Inexiste no mundo prático a aplicação pura de qualquer dos dois sistemas. O que há é a predominância de um sistema sobre o outro, com a utilização de institutos híbridos. Aliás, esse hibridismo vem se acentuando com o tempo, em uma tentativa de atenuar as imperfeições de ambos. Essa aproximação nada mais é do que a tentativa de síntese entre uma tese e sua antítese, movimento que vem acompanhando a humanidade desde que nós nos destacamos dos outros seres vivos pela capacidade de raciocinar.

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O civil law apresenta como principal inconveniente a tentativa de regular todas as possibilidades do mundo dos fatos em uma norma, como se todas as variáveis pudessem ser efetivamente previstas. Já o common law apresenta a desvantagem de, frequentemente, inviabilizar uma visão mais ampla das instituições, por excessivo apego ao caso concreto. A adoção pura de qualquer dos sistemas traria ainda a possibilidade palpável de perpetuação do injusto, quando, por um lado, uma lei flagrantemente injusta ou defasada não puder ser corrigida pela atividade judicial, ou, por outro lado, o apego aos precedentes jurisprudenciais seja de tal monta que leve à perpetuação de erros judiciais.

Mônica Sifuentes aponta que a aproximação entre os dois sistemas operou também a aproximação dos paradigmas de juiz existentes no mundo ocidental (2005, p. 75):

A estrutura que se vê, na atualidade, corresponde a essa junção: o juiz dos países de civil law construindo o direito, pela jurisprudência; os juízes do common law utilizando-se da lei (statute law) para fundamentar a suas decisões.

Nesse ponto, vale destacar a crescente influência que o statute law (edição de normas pelo Parlamento) vem adquirindo no direito inglês, aproximando-o gradativamente do civil law. O statute law sempre foi considerado um direito meramente complementar, o qual, muito timidamente, supria o sistema inglês da normatização nas áreas em que o common law acusava alguma deficiência. Márcia Regina Lusa Cadore enumera alguns fatos que representam uma significativa mudança nesse quadro (2007, p. 66):

No século XX, o parlamento editou novas regras em vários campos do direito, em especial no direito privado: no direito de propriedade houve modificações relevantes, no direito de família e no direito do trabalho. Por último, destaca-se a reforma do processo civil inglês com a edição do Civil Procedure Rules em 1998. A reforma objetivou alcançar um processo mais rápido e menos custoso, mediante medidas que conferiram às Cortes um papel mais ativo.

Ainda mais recentemente, o crescimento do direito legislado no Reino Unido tem tido muito a ver com a sua inserção na Comunidade Européia. O direito comunitário, prioritariamente legislado, vem ampliando progressivamente sua participação nos países participantes dessa comunidade de nações, de modo que as legislações internas vêm sendo progressivamente derrogadas naquilo que contrariem os interesses comuns.

O crescimento desse direito legislado, no sistema inglês, não se tem dado, contudo, de forma indolor, assim como a aplicação de institutos típicos do common law costuma causar, via de regra, alguma perplexidade entre nós. É claro que a possibilidade de choque entre uma lei e um precedente aumenta à medida em que o statute law vai ganhando força, e os desafios advindos da mistura de corpos normativos com características tão díspares são fáceis de imaginar, podendo destacar-se a possível perda de integridade e previsibilidade do sistema jurídico, resultando em uma certa insegurança jurídica.

No Brasil, as súmulas vinculantes vêm em socorro contra a indesejável adoção pura do civil law, muito marcada até então, de forma a agregar a principal vantagem proporcionada pelo common law: a possibilidade de que o Direito se abebere com mais ênfase da sabedoria do passado, conjugando racionalidade e experiência, resultando num justo que vai sendo gradual e lentamente descoberto. É claro que as súmulas vinculantes são um instituto estranho aos nossos costumes jurídicos, e os nossos desafios são a outra

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face da moeda que os países europeus que adotam o common law vêm enfrentando para se adaptar à Comunidade Européia. O instituto deverá ainda passar por inúmeras adaptações, abrasileirando-se gradativamente.

1.4 EvoluçãodoInstitutonoBrasil

O Decreto imperial 6.142/1876 pode ser apontado como o embrião das súmulas vinculantes no Brasil. Essa norma tratou dos assentos de jurisprudência, que permitiam ao então Supremo Tribunal de Justiça manifestar-se sobre dúvidas (divergências) na aplicação da lei por parte dos juízes e tribunais inferiores. Essas manifestações tinham força de lei, vinculando, portanto, toda a atividade legiferante das instâncias inferiores. Os assentos de jurisprudência tiveram vida curta, já que pouco tempo depois, em 15/11/1889, viria a ser proclamada a República, fato que tornou obsoleta a maior parte do sistema normativo do Império.

A adoção das súmulas tradicionais, meramente persuasivas, pode ser também considerado um passo em direção às súmulas vinculantes. Elas foram instituídas por emenda ao Regimento Interno do STF, alteração essa aprovada em 13/12/1963. As súmulas tradicionais sempre se apresentaram “meramente como indícios de solução racional e socialmente adequada, como instrumentos de persuasão”, no dizer de Marcelo Lamy e Luiz Guilherme Arcaro Conci (2005, p. 305). Não vinculam, por outras palavras.

O nascimento das súmulas ditas persuasivas têm muito a ver com a necessidade de racionalização dos trabalhos judiciários. Vivemos na era da informática, onde uma pesquisa jurisprudencial em geral leva pouco tempo. Contudo, imagine-se os juízes tendo que decidir acerca de inúmeros casos. Decerto, a pesquisa sobre as decisões pretéritas nas várias instâncias judiciárias poderia tomar um excesso de tempo de energia. A esse respeito, vale a pena ler o interessante depoimento do então Ministro do STF Victor Nunes Leal, tido como o grande idealizador da súmula da jurisprudência predominante daquela Corte (in Glauco Salomão Leite, 2007, p. 50):

Juiz calouro, com a agravante da falta de memória, tive que tomar, nos primeiros anos, numerosas notas, e bem assim sistematizá-las, para pronta consulta durante as sessões de julgamento. (...) Por isso, mais de uma vez, em conversas particulares, tenho mencionado que a Súmula é subproduto da minha falta de memória, pois fui eu afinal o relator, não só da respectiva emenda regimental, como de seus 370 enunciados.

Posteriormente, a Emenda Constitucional 7, de 13/04/1977, aposta à Constituição de 19694, passou a prever o cabimento de representação do Procurador-Geral da República por inconstitucionalidade ou para interpretação de lei ou ato normativo federal ou estadual, a ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal (art. 119, I, l ). O que se tinha era uma representação interpretativa, a qual conferia ao Supremo “o poder de impor, em processo de natureza abstrata, a interpretação a ser adotada em face de determinado texto normativo”, na lição de Roger Stiefelmann Leal, que prossegue (2006, p. 136):

A vinculação decorrente da representação interpretativa obrigava erga omnes, especialmente os demais juízes e tribunais. Suas decisões assemelhavam-se, dessa forma, às leis interpretativas. Eventual divergência

4 Formalmente denominada “Emenda Constitucional 1, de 1969”, mas, do ponto de vista material, uma verdadeira Constituição, tanto que foi objeto de várias emendas, em um esquizofrênico processo de emendas a uma emenda.

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interpretativa deflagrada por outro órgão judicial após a decisão interpretativa do Supremo Tribunal Federal incorria em violação a literal disposição de lei, para efeito de ação rescisória (art. 485, V, do CPC), e negativa de vigência de lei, hipótese suficiente para interposição, à época, de recurso extraordinário (art. 119, III, a, da Emenda Constitucional nº 1/69).

O instituto da representação interpretativa foi mais um passo evolutivo em direção à futura adoção das súmulas vinculantes, na medida em que impunha uma determinada interpretação aos tribunais inferiores. O passo seguinte foi a expedição da Emenda Constitucional 3/1993, que criou a ação declaratória de constitucionalidade e atribuiu-lhe expressamente esse efeito. Em seguida, o Supremo Tribunal Federal passou a atribuí-lo a alguns julgados havidos em sede de ação direta de inconstitucionalidade, de modo a garantir simetria entre a ação que garante a constitucionalidade (ação declaratória de constitucionalidade) e a que nega tal atributo (ação direta de inconstitucionalidade).

Posteriormente, a Lei 9.868/1999 estendeu esse efeito expressamente à ação direta de inconstitucionalidade. O passo seguinte foi a edição da Lei 9.882, de 03/12/1999, dispondo sobre o processo e julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental, atribuindo também a esse instituto o mesmo efeito. Por fim, a própria EC 45/2004 atribuiu efeito vinculante a ambas as ações, de molde a espancar qualquer dúvida que ainda restasse a esse respeito. Após a publicação da EC 45/2004, a Lei 11.417/2006 veio disciplinar a edição, a revisão e o cancelamento de enunciado de súmula vinculante pelo Supremo Tribunal Federal.

O próprio caráter simplesmente persuasivo das súmulas tem evoluído para características progressivamente vinculativas, pelo menos na esfera processual. Esse papel cada vez menos persuasivo e cada vez mais obrigacional das súmulas tradicionais pode ser percebido em algumas modificações recentes efetuadas na legislação. Vejamos5.

Passou a ser permitido que o relator, no Supremo Tribunal Federal ou no Superior Tribunal de Justiça, decida o pedido ou o recurso que haja perdido seu objeto, bem como negue seguimento a pedido ou recurso manifestamente intempestivo, incabível ou, improcedente ou ainda, que contrarie, nas questões predominantemente de direito, Súmula do respectivo Tribunal (Lei 8.038/90, art. 38).

Posteriormente, A Lei 9.528/97 alterou a Lei do Plano de Benefícios da Assistência Social (Lei 8.213/91) no sentido de permitir que o Ministro da Previdência e Assistência Social autorize o INSS a formalizar a desistência ou abster-se de propor ações e recursos em processos judiciais sempre que a ação versar matéria sobre a qual haja declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal, súmula ou jurisprudência consolidada do STF ou dos tribunais superiores (art. 131).

O Código de Processo Civil passou a prever permissão para que o relator do processo, se o acórdão recorrido estiver em confronto com a súmula ou jurisprudência dominante do STJ, conheça de agravo para dar provimento a recurso especial, o mesmo valendo para o recurso extraordinário quanto ao STF (art. 544, § 3º, na redação dada pela Lei 9.758/98, e § 4º, incluído pela Lei 8.950/94). Da mesma forma, o relator negará� seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo Tribunal, do Supremo Tribunal

5 Evolução legislativa apontada por Glauco Salomão Leite (2007, p. 54-6).

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Federal, ou de Tribunal Superior; por outro lado, se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso (art. 557, caput e § 1º-A, na redação dada pela Lei 9.756/98).

Posteriormente, a Lei 10.352/2001 modificou referido código para dispor que não se aplica o duplo grau de jurisdição quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário ou em súmula do Supremo Tribunal Federal ou em súmula do Tribunal Superior competente (art. 475, § 3º). A Lei 11.276/2006, por sua vez, introduziu regra segundo a qual o juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal (art. 518, § 1º). Em ambos os casos, temos que todas as súmulas tradicionais dos tribunais relacionados se transformam automaticamente em súmulas impeditivas de recurso, paralisando a lide ainda na primeira instância.

Cabe citar, também, alteração no âmbito do processo do trabalho, segundo a qual cabe recurso de revista para turma do Tribunal Superior do Trabalho das decisões proferidas em grau de recurso ordinário, em dissídio individual, pelos Tribunais Regionais do Trabalho, quando derem ao mesmo dispositivo de lei federal interpretação diversa da que lhe houver dado outro Tribunal Regional, no seu Pleno ou Turma, ou a Seção de Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho, ou a Súmula de Jurisprudência Uniforme dessa Corte (CLT, art. 896, “a”, alterado pela Lei 9.756/98).

Por fim, a EC 45/2004 trouxe a possibilidade de atribuir efeito vinculante a essas súmulas, desde que tal efeito seja confirmado por 2/3 dos integrantes do STF e após a publicação na imprensa oficial (art. 8º). Podem também continuar a ser editadas, embora seja improvável que o STF o faça.

Ante todo o exposto, fácil constatar que as súmulas vinculantes não constituíram um elemento de inovação radical ou de grande ruptura no sistema jurídico brasileiro. Afinal, não podemos deixar de olvidar que, via de regra, a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal sempre funcionou como um importante paradigma para a ação da administração pública e para a resolução judicial de casos futuros, de modo que já faz parte de nossa cultura jurídica, bem ou mal, atentar para o pensamento de nossa Corte maior.

1.5 O Instituto e seus Similares no Direito Comparado

O regime obrigacional das súmulas vinculante inspira-se no sistema de common law, especialmente o adotado pelos Estados Unidos, no qual as decisões preferidas pela Suprema Corte obrigam os demais órgãos do Poder Judiciário (mas não a própria Suprema Corte, tal como ocorre no Brasil). É dizer que a sistemática de súmulas vinculantes apoia-se na teoria dos precedentes vinculantes (binding precedents) ou das decisões sedimentadas, derivadas do brocardo “mantenha-se a decisão e não se perturbe o que foi decidido” (stare decisis et quieta non movere).

A existência de similitudes entre a súmula vinculante brasileira e o stare decisis norte-americano não afasta o fato de existirem diferenças significativas entre esses institutos. Roger Stiefelmann Leal aponta pelo menos três dessas diferenças: a) enquanto o efeito vinculante surgiu no âmbito do controle de constitucionalidade europeu, tendo por fim garantir máxima força normativa à Constituição, o stare decisis surgiu como resposta à escassa

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produção legislativa dos primórdios do common law, ou seja, como instrumento de estabilização social substituto da ausência de normas; b) enquanto o efeito vinculante obriga inclusive as instâncias não jurisdicionais, o stare decisis vincula apenas o Poder Judiciário, constituindo, dessa forma, “instrumento de coerência interna” desse poder; e c) por fim, enquanto o efeito vinculante tem uma caráter impositivo inafastável, no stare decisis são reconhecidos, excepcionalmente, certos mecanismos de “insubordinada superação” (overruling), de modo que “cabe aos demais órgãos do Poder Judiciário, mediante técnicas decisórias específicas – tais como a superação antecipada (antecipatory overruling) ou a superação implícita –, desgarrarem-se dos precedentes da Suprema Corte e decidirem casos de maneira diversa” (2006, p. 127).

Nesse ponto, importante esclarecer alguns termos utilizados no direito anglo-saxônico. De início, vale destacar que ao lado dos binding precedents há os persuasive precedents, que, ao contrário dos primeiros, não têm caráter vinculativo. Pela técnica do prospective overruling, a nova regra não se aplica ao caso concreto sob análise – ou seja, entende-se que há a necessidade de superação do precedente, mas a inovação do entendimento resguarda o caso em tela. Esse método apresenta um custo: fácil ver que o caso concreto estará sendo julgado por um direito superado, e o litigante perdedor pode sair com a compreensível sensação de que não lhe foi feito justiça. Já pela técnica do antecipatory overruling, a superação do precedente é realizada com base em novo entendimento exarado pelas instâncias superiores, mas ainda não materializado em uma decisão concreta. Ou seja: a aplicação do método do prospective overruling por parte das instâncias mais altas autoriza desde logo a aplicação da técnica do antecipatory overruling por parte das instâncias inferiores, já no caso concreto sob análise, em uma espécie de “delegação de poder de overruling”, no dizer de Márcia Regina Lusa Cadore (2007, p. 77).

Osmar Mendes Paixão Côrtes ressalta a possibilidade de nem sempre os precedentes serem vinculativos (2008, p. 116):

Isso porque as decisões das Cortes Superiores, como a House of Lords e a Corte de Apelação, vinculam as das inferiores, mas estas não necessariamente terão suas decisões consideradas por aquelas.

A possibilidade de overruling, ou seja, de desconsideração do precedente, é muito mais aceita nos Estados Unidos que na Inglaterra. Pode-se dizer que o apego inglês aos precedentes – o que por vezes acaba atraindo a pecha de vetusto e anacrônico ao direito praticado naquele país – contrasta com a flexibilidade do sistema americano, o qual permite que o precedente seja avaliado e modificado com muito mais tranquilidade6. Quando se trata de Cortes de mesma hierarquia (de nível estadual, por exemplo), temos que o precedente chega a ter autoridade meramente persuasiva. Em ambos os países, contudo, “a referência a precedentes continua a ser ponto de partida obrigatório, passagem típica do iter decisório, e os casos de overruling são limitados, se consideramos o número de julgamentos” Márcia Regina Lusa Cadore (2007, p. 246).

Maria Regina Lusa Cadore apresenta uma interessante justificativa para a maior inflexibilidade do sistema inglês (2007, p. 60):

6 “O critério do stare decisis é visto nos EUA como uma concretização do princípio geral da certeza e previsibilidade do direito e como tal deve ser harmonizado com outros princípios que direcionam o sistema para a justiça e coerência completas”, leciona Márcia Regina Lusa Cadore. E complementa a autora: “Por isso, o respeito ao precedente não é mais uma operação mecânica, mas o resultado de um fino balanceamento entre exigências opostas, entre as quais o peso atribuído ao valor certeza varia conforme o ramo do Direito (2007, p. 77).

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Referida teoria [do precedente judicial] parte do pressuposto de que o common law não é um direito produzido pelos juízes, vale dizer, um direito jurisprudencial, mas é, ao invés disso, um conjunto de costumes jurídicos existentes na Inglaterra desde época imemoriável. Estes costumes são regras não escritas conhecidas por cada bom inglês. A tarefa de verbalizar precisamente tais regras compete aos juízes apenas na apreciação dos casos concretos que lhes são submetidos. Nesse sentido, os juízes são o “oráculo” do direito enquanto expressam o mesmo (to find the law), mas não é correto afirmar-se que criam o direito (to make the law).

É dizer, o juiz, no sistema inglês, descobre o direito, não o cria. Uma vez trazida a lume a regra de direito, uma vez verbalizada, esta deixa de existir abstratamente, tornando-se palpável. O juiz que apreciar o caso seguinte pouco mais deverá fazer do que simplesmente aplicar o direito. Se ousar discordar do precedente, ou estará incorrendo em erro, podendo ser objeto de censura, ou estará corrigindo seu antecessor, descobrindo o verdadeiro direito, anunciando que a descoberta anterior era falha – nesse caso, necessitará esmerar-se em apresentar uma fundamentação muito bem construída.

Fato é que as colônias inglesas na América não importaram in totem o modelo inglês, como seria de se esperar. O que vigorou foi uma combinação de esparsos atos legislativos com costumes locais formados nos primórdios da colonização. Houve, nos Estados Unidos, uma acentuada releitura do sistema de common law inglês. E não poderia ser diferente, até mesmo em função do contraste existente entre as duas situações: na Inglaterra, vicejava uma aristocracia centralizada e etnicamente homogênea; nos Estados Unidos, nascia uma democracia descentralizada e multirracial.

Maria Regina Lusa Cadore aponta, ainda, outras duas importantes diferenças entre as realidades inglesa e americana: a) o processo judicial americano foi construído em bases mais racionais, em contraste com o direito inglês, que refletia a estratificação da sociedade (aristocracia) e era baseado em costumes imemoriáveis (2007, p. 71-2); e b) enquanto na Inglaterra a nomeação dos juízes ocorria somente entre advogados cultos e já consagrados, nos Estados Unidos isso não ocorria, sendo possível a ascensão de jovens advogados à Magistratura, de forma que os debates jurídicos eram mais acirrados e mais influenciáveis pela doutrina.

1.6 Efeito Vinculante e Súmulas Vinculantes

A Constituição Federal prevê que funcionará: a) junto ao Superior Tribunal de Justiça, o Conselho da Justiça Federal (CJF), cabendo-lhe exercer, na forma da lei, a supervisão administrativa e orçamentária da Justiça Federal de primeiro e segundo graus, como órgão central do sistema e com poderes correcionais, cujas decisões terão caráter vinculante (art. 105, parágrafo único, II); e b) junto ao Tribunal Superior do Trabalho, o Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT), cabendo-lhe exercer, na forma da lei, a supervisão administrativa, orçamentária, financeira e patrimonial da Justiça do Trabalho de primeiro e segundo graus, como órgão central do sistema, cujas decisões terão efeito vinculante (art. 111-A, § 2º, II).

Importante notar que esses órgãos expedem meros atos administrativos, não exercendo qualquer função jurisdicional. Vinculam as instâncias de primeiro e segundo graus na medida em que supervisionam a gestão da coisa pública. Nada têm a ver com a

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força obrigacional de assentos de jurisprudência, fugindo, portanto, ao escopo do presente trabalho.

Efeito vinculante não se confunde com súmula vinculante. Roger Stiefelmann Leal explica bem essa diferenciação (2006, p. 175):

Seria a súmula vinculante resultado da reiteração de decisões num mesmo sentido, emitida após diversos pronunciamentos da Corte sumulante, sintetizados num enunciado propositivo. Por sua vez, o efeito vinculante prescinde, segundo sua formulação original, de decisões reiteradas, constituindo eficácia derivada do próprio julgado, ainda que único. Ademais, o efeito vinculante não implica qualquer sumarização ou estratificação jurisprudencial. A vinculação decorrente do instituto alcança todos os fundamentos determinantes do julgado, sem o perigo das imperfeições que, não raro, recaem sobre a simplificação em verbetes ou enunciados condensadores da jurisprudência dominante.

O efeito vinculante é marca característica das súmulas vinculantes, mas não exclusividade. Ora, detém efeito vinculante tudo aquilo que tem força obrigacional. Assim, uma lei tem efeito vinculante; uma decisão judicial, também, quanto às partes; e da mesma forma uma decisão de mérito em ação direta de constitucionalidade, desta feita com eficácia erga omnes. Assim, vinculante é uma qualificativo que se dá à súmula, querendo-se com isso dizer que ela obriga alguns.

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CAPÍTULO 2

REGIME JURÍDICO DAS SÚMULAS VINCULANTES

2.1 Natureza Jurídica

Que é, afinal, a súmula vinculante? Jurisprudência com força de lei? Norma com roupagem de jurisprudência? Há aqueles que defendem que a súmula vinculante tem a mesma natureza jurídica da norma, eis que aquela, assim como esta, projeta-se no mundo jurídico com os atributos de generalidade e abstração. Outros, contudo, entendem que o papel da súmula vinculante seria meramente o de estabilizar uma das interpretações possíveis da norma, não podendo ir além dela, de modo que não seria possível admitir súmulas contra legem ou extra legem. Nessa linha, Manoel Gonçalves Ferreira Filho entende que as súmulas vinculantes são verdadeiras leis de interpretação, exercendo o STF, no caso, uma função paralegislativa (2008, p. 268).

A elaboração de uma norma envolve uma opção política. Significa dizer que seus idealizadores têm amplo campo de discricionariedade. Diferentemente, ao elaborar uma súmula, o juízo está adstrito a um quadro limitado de opções válidas, e obrigado a fundamentá-las e justificá-las de forma convincente. Limitam-se, é claro, pela norma em que se fundam. Podem até transbordá-la e mesmo contrariá-la, baseando-se, por exemplo, em princípios do Direito – provocando a ira dos positivistas –, mas devem fazê-lo fundamentadamente, como já se disse. Enquanto a norma envolve uma opção política norteada por alguma técnica, a decisão judicial é justamente o contrário: trata-se de uma técnica balanceada por algum colorido político – note-se que os pesos se invertem. Assim, entendemos que a súmula vinculante norma não é.

Se não é norma, mera jurisprudência a súmula vinculante certamente também não o é. Seu caráter obrigacional afasta essa possibilidade: ela obriga, isto é, impõe uma conduta. A jurisprudência, ao menos em nosso sistema, é um mero paradigma, um possível caminho, do qual é possível se afastar com certa tranquilidade. No universo da jurisprudência, a administração pública pode deixar de aplicar o entendimento dominante, bem como qualquer juiz pode seguir inovando o mundo jurídico com suas teses.

Assim, sendo menos do que norma, certamente a súmula vinculante é mais do que jurisprudência. É algo entre esses dois universos: é uma jurisprudência obrigatória, como quer Glauco Salomão Leite, ou uma norma-jurisprudência – a essa última designação adere Márcia Regina Lusa Cadore, expressando-se de forma bastante elegante (2007, p. 248):

Em que pese se possa reconhecer que a possibilidade conferida ao Supremo Tribunal Federal de atribuir efeito vinculante à súmula implica atribuir-lhe parcela de poder normativo, a súmula não pode ser equiparada à lei. Resulta, isso sim, da interpretação dessa. A súmula é ato jurisdicional, ao qual a Lei Maior atribuiu a capacidade de extrapolar as fronteiras da lide: é mais do que a jurisprudência e menos do que a lei. Por isso a adequação da designação cunhada por Tesheiner: norma-jurisprudência.

De nossa parte, entendemos que as súmula vinculantes se aproximam muito mais da natureza da jurisprudência do que da norma. Assim, qualificá-las como jurisprudência obrigatória parece-nos mais adequado e mais próximo da realidade do que denominá-las de norma-jurisprudência. A atividade interpretativa fica mais ressaltada, parece-nos, em detrimento da função normativa, que é secundária.

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2.2 Objetivos

A súmula vinculante tem por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica (CF, art. 103-A, § 1º, e Lei 11.417/2006, art. 2º, § 2º).

Na lição de Uadi Lammêgo Bulos, a súmula vinculante tem como objetivo permitir ao Supremo Tribunal Federal “padronizar a exegese de uma norma jurídica controvertida, evitando insegurança e disparidades de entendimento em questões idênticas” (2007, p.1.085). Essa padronização é obtida por meio da construção de enunciados simples e diretos capazes de sintetizar o pensamento da Corte Constitucional. Osmar Mendes Paixão Côrtes vê três funções principais para as súmulas vinculantes (2008, p. 200):

A primeira, da mesma forma que as súmulas em geral, é tornar conhecida a jurisprudência consolidada no âmbito do STF, facilitando a sua observância. A segunda, evitar que sejam tomadas decisões discrepantes da sumulada, por economia, celeridade processual e política judiciária. A terceira, dar segurança jurídica ao sistema e às relações sociais.

A análise cuidadosa da letra da Constituição nos permite abstrair que a súmula vinculante visa clarificar controvérsias no que concerne a três aspectos: a) quanto à validade da norma, vale dizer, com relação à constitucionalidade ou legalidade desta; b) quanto à sua interpretação, isto é, no que se refere ao significado mais pertinente ao sistema jurídico vigente; e c) quanto à eficácia da norma, ou seja, no que se refere à sua real coercibilidade, inclusive tomando-a em sua dimensão social7.

A primeira hipótese refere-se à validade da norma. Nessa situação, poderemos ter uma situação curiosa. Veja-se, por exemplo, a súmula vinculante 2, que prevê ser inconstitucional a lei ou ato normativo estadual ou distrital que disponha sobre sistemas de consórcios e sorteios, inclusive bingos e loterias. É claro que qualquer lei futura em desconformidade com essa súmula será inconstitucional, mas essa inconstitucionalidade não será declarada de plano, pois a lei, ao nascer, vigora normalmente, tendo plena presunção de validade, pelo menos até que seja fulminada por uma declaração de inconstitucionalidade expressa. Assim, poderemos ter a inusitada situação de uma lei estadual sobre consórcios e sorteios chegar a vigorar, apesar da disposição expressa da súmula vinculante, até que seja declarada sua inconstitucionalidade.

A segunda hipótese refere-se a problemas de interpretação da norma. A súmula vinculante 5, por exemplo, dispõe que a falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição. Trata-se de um caso de clareamento da interpretação. A dúvida era a seguinte: a) A CF preceitua que o advogado é indispensável à administração da justiça (art. 133); b) o Estatuto dos servidores públicos (Lei 8.112/1990), ao tratar do processo administrativo disciplinar, não fazia qualquer referência à necessidade de defesa técnica, mediante advogado regularmente constituído; c) afinal, qual seria a melhor 7 Estamos assumindo a perspectiva majoritária daqueles que entendem que validade e eficácia são atributos distintos.

Kelsen aborda bem esse ponto: “Um dos extremos é representado pela tese de que, entre validade como um dever-ser e eficácia como um ser, não existe conexão de espécie alguma, que a validade do Direito é completamente indepen-dente da sua eficácia. O outro extremo é a tese de que a validade do Direito se identifica com a sua eficácia”. A par de rejeitar esses extremos, Kelsen coloca que “ a eficácia é uma condição da validade, mas não é esta mesma validade” (2006, p. 235).

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interpretação para a norma infraconstitucional, face ao disposto na Constituição? Como se vê, o STF decidiu interpretando pela desnecessidade do advogado nessa espécie processual.

A terceira hipótese refere-se à eficácia da norma, quando houver dúvidas a respeito. Qual o início de sua vigência, afinal? Onde e a quem se aplica, exatamente? É razoável sua exigibilidade, tendo em vista o contexto em que ocorreu? São todas questões que podem ser respondidas por essa dimensão. A súmula vinculante 7, v.g., preceitua que a norma constitucional que limitava a taxa de juros reais a 12% ao ano (art. 192, § 3º, atualmente revogado) tinha sua aplicação condicionada a edição complementar. Tratava-se, portanto, não de uma norma de eficácia plena, mas de norma dotada de eficácia limitada, na consagrada classificação de José Afonso da Silva. Eis aí um caso em que o STF julgou por bem intervir para esclarecer a exata eficácia de uma norma constitucional, sendo inclusive notório que a Corte o tenha feito para tratar de dispositivo já revogado – certamente para liquidar quaisquer pretensões ainda insepultas.

2.3 Requisitos

Conforme já visto, a súmula vinculante tem por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica (CF, art. 103-A, § 1º, e Lei 11.417/2006, art. 2º, § 2º). Portanto, temos que somente certas normas podem ser objeto de súmula vinculante, precisamente aquelas que gerem as controvérsias mencionadas, mas – de novo – somente quanto àquelas que deem origem a inseguranças jurídicas ou à prolixidade processual.

Note-se que a controvérsia deve ser atual. A atualidade da controvérsia indica apenas que não haveria sentido editar súmula vinculante acerca de questão já pacificada, eis que o instrumento serve justamente para encerrar as discussões que estejam ainda sendo objeto de atenção pelos juízes e tribunais do país.

Também, a controvérsia deve envolver órgãos judiciários, necessariamente – apenas entre estes ou envolvendo também a administração pública. Esses órgãos podem estar divergindo sobre a constitucionalidade ou não de determinada norma (validade), sobre sua melhor interpretação ou sobre sua real eficácia, eis que dirimir tais questões representa o objetivo das súmulas.

Temos também que a controvérsia deve ser significativa, ou seja, deve ser capaz de acarretar grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. Matérias de reduzida relevância ou que se refiram a uns poucos casos não devem ser objeto de súmula vinculante. Aqui, implicitamente, o constituinte derivado acrescentou o requisito da repercussão geral, previsto explicitamente para o recurso extraordinário por obra da EC 45/2004. Por esse requisito, no recurso extraordinário, o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de 2/3 de seus membros (CF, art. 102, § 3º). Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa (CPC, art. 543-A, § 1º, acrescentado pela Lei 11.418/2006).

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Há ainda outro requisito. As súmulas vinculantes só podem vir à tona após reiteradas decisões sobre matéria constitucional (CF, art. 103-A, caput). Assim, é imprescindível a existência de tal jurisprudência. Note-se que a exigência é que a matéria seja de âmbito constitucional – embora se ressalve, com muita razão, que “nosso extenso texto da Lei Maior possa praticamente alcançar qualquer campo da atividade humana”, como o faz Nagib Slaibi Filho (2005, p. 271) – e tenha sido alvo de repetidas decisões. A relação com a Constituição Federal deve ser direta e frontal, e não uma simples hipótese de ofensa reflexa ou indireta. E é de grande importância observar que há a necessidade de que haja jurisprudência pacífica sobre o tema, no âmbito do Supremo Tribunal Federal. A questão deve ter sido suficientemente debatida e discutida, não sendo cabível a edição de súmula vinculante baseada em decisão judicial isolada. É que a ideia de súmula traz em seu bojo a noção de tese firmada, com bem lembram Marcelo Lamy e Luiz Guilherme Arcaro Conci (2005, p.304-8):

A preexistência de reiteradas decisões, embora não haja um número determinado que configure a reiteração, prenuncia a necessidade de que a questão jurídica já se encontre maturada, debatida, suficientemente decantada, sedimentada na Corte. Também nos parece óbvio que o enunciado da súmula deva ser o corolário da evolução do entendimento exarado nas decisões anteriores e não mera criação de regra nova que solucione eventual divergência existente.

Contudo, a pacificação de uma tese, por outro lado, pode exigir um tempo que a sociedade, muitas vezes, não dispõe. Nesse sentido, a observação de Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Augusto Gonet Branco (2007, p. 919):

A súmula vinculante somente será eficaz para reduzir a crise do Supremo Tribunal Federal e das instâncias ordinárias se puder ser adotada em tempo social e politicamente adequado. Em outras palavras, não pode haver um espaço muito largo entre o surgimento da controvérsia com ampla repercussão e a tomada de decisão com efeito vinculante. Do contrário, a súmula vinculante perderá seu conteúdo pedagógico-institucional, não cumprindo a função de orientação das instâncias ordinárias e da Administração Pública em geral. Nesse caso, sua eficácia ficará restrita aos processos ainda em tramitação.

Importante acrescentar que, desde que atendidos todos os requisitos analisados, qualquer norma pode ser objeto de súmula vinculante, seja ela de direito material ou processual, seja ela editada em qualquer das esferas da Federação – União, Estados, DF e Municípios –, seja ela constitucional, legal ou infralegal, mas desde que impactem diretamente a interpretação da Constituição Federal, eis que, conforme vimos, exige-se que a matéria seja de âmbito constitucional. Ainda, é possível “que a questão envolva tão-somente interpretação da Constituição e não de seu eventual contraste com a outras normas infraconstitucionais” (Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Augusto Gonet Branco, 2007, p. 916).

2.4 Tribunal Competente

A competência para editar súmulas vinculantes ficou restrita ao Supremo Tribunal Federal. A proposta de emenda constitucional originalmente previa que também o Superior Tribunal de Justiça e os tribunais superiores teriam competência para editá-las,

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mas o Congresso Nacional, de forma cautelosa, decidiu que a implantação das súmulas vinculantes no âmbito do STF já seria, por si só, uma modificação de grande monta no sistema jurídico brasileiro.

Os representantes dos tribunais superiores, de quando em quando, se manifestam a favor da adoção das súmulas vinculantes em seus respectivos âmbitos. Recentemente, o Ministro Luiz Fux, Presidente da 1ª Seção do STJ, declarou, a favor da adoção das súmulas vinculantes no âmbito do STJ, o que se segue: “Trabalhamos com 12 mil leis. Haja conhecimento enciclopédico para tanta matéria-prima”. Cada ministro do Tribunal julga cerca de 1.500 processos por mês e, ainda assim, há um passivo de mais de 300 mil processos repetitivos tramitando8.

2.5 Legitimados

As propostas referentes às súmulas vinculantes – vale dizer, quanto à sua edição, revisão ou cancelamento – podem partir do próprio STF ou de outros órgãos – de ofício ou por provocação, como especifica a CF (art. 103-A, caput). Esses outros órgãos são os mesmos que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e ainda outros que a legislação infraconstitucional especificar ou vier a fazê-lo (art. 103-A, § 2º).

A Lei 11.417/2006 definiu que são legitimados para tal propositura (art. 3º, caput): o Presidente da República (inc. I); a Mesa do Senado Federal (inc. II); a Mesa da Câmara dos Deputados (inc. III); o Procurador-Geral da República (inc. IV); o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (inc. V); o Defensor Público-Geral da União (inc. VI); partido político com representação no Congresso Nacional (inc. VII); confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional (inc. VIII); a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal (inc. IX); o Governador de Estado ou do Distrito Federal (inc. X); e os Tribunais Superiores, os Tribunais de Justiça de Estados ou do Distrito Federal e Territórios, os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais Regionais do Trabalho, os Tribunais Regionais Eleitorais e os Tribunais Militares (inc. XI). Cotejando com aqueles que podem propor ação direta de inconstitucionalidade (art. 103, caput), fácil ver que a lei acrescentou os seguintes legitimados: o Defensor Público-Geral da União e os tribunais.

Recentemente, o Supremo aprovou a primeira súmula proposta por um dos legitimados, a Súmula vinculante 14. Até então, todas as súmulas haviam partido do próprio STF. Assim, o Tribunal, por maioria, acolheu proposta de súmula vinculante formulada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, aprovando-a nos seguintes termos: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”. A proposta tinha a seguinte redação original: “O advogado constituído pelo investigado, ressalvadas as diligências em andamento, tem o direito de examinar os autos de inquérito policial, ainda que estes tramitem sob sigilo” (PSV 1/DF, rel. Min. Menezes Direito, 02/02/2009). De se notar, portanto, que o STF não se vincula à redação apresentada pelo legitimado, podendo fazer as adaptações que julgar necessárias.

Questão importante é saber se, da mesma forma que ocorre no caso das ações diretas de inconstitucionalidade, também alguns dos legitimados para propor súmulas 8 Disponível em http://www.boletimjuridico.com.br/noticias/materia.asp?conteudo=2276, acesso em 17/04/2009,

12:48.

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vinculantes sujeitam-se à verificação de pertinência temática. É que o Supremo Tribunal Federal exige relação de pertinência com o objeto da ação no caso dos seguintes legitimados: a) Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa; b) Governador de Estado ou do Distrito Federal9 (ADI 2.747-DF); e c) confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional (ver ADI 1.873-MG). Uadi Lammêgo Bulos (2007, p.1.087) e José Marcelo Menezes Vigliar (2005, p. 291) entendem que o requisito adicional da pertinência temática também se estende a tais legitimados, no que se refere à propositura de súmulas vinculantes.

Temos ainda que o Município poderá propor, incidentalmente ao curso de processo em que seja parte, a edição, a revisão ou o cancelamento de enunciado de súmula vinculante, o que não autoriza a suspensão do processo (Lei 11.417/2006, art. 3º, § 1º). A propositura de súmula vinculante por parte de Município somente é possível no caso concreto, portanto. E não poderia ser diferente. Se fosse dado ao Município propor súmulas de forma autônoma, teríamos que o número de legitimados seria alargado a tal ponto que provavelmente inviabilizaria o instituto, em vista da quantidade de súmulas que poderiam ser propostas. Permitindo que os Municípios se tornem legitimados apenas quanto aos processos em que atuam junto ao Supremo, criou-se um engenhoso filtro que, a par de não sobrecarregar o STF, eximiu-se de alijar os Municípios desse processo.

Importante acrescentar que a proposta de edição, revisão ou cancelamento de enunciado de súmula vinculante não autoriza a suspensão dos processos em que se discute a mesma questão (Lei 11.417/2006, art. 6º). Ou seja, propostas referentes às súmulas vinculantes não tem efeito suspensivo sobre processos que tratem da mesma temática. Nada impede, portanto, que um determinado caso seja julgado contrariamente a entendimento do STF que esteja prestes a ser sumulado. Nesse caso, a irresignação da parte pode ser sanada por meio de recurso extraordinário.

2.6 Trâmite Processual

O trâmite processual para propostas (edição, revisão ou cancelamento) de súmulas vinculantes é bastante simples, tendo sido publicada resolução específica a respeito (Resolução 388, de 05/12/2008). Recebendo proposta de edição, revisão ou cancelamento de súmula, vinculante ou não, a Secretaria Judiciária deverá registrá-la e autuá-la, publicando edital no sítio do Tribunal e no Diário da Justiça Eletrônico, para ciência e manifestação de interessados no prazo de 5 dias, encaminhando a seguir os autos à Comissão de Jurisprudência, para apreciação dos integrantes, no prazo sucessivo de 5 dias, quanto à adequação formal da proposta (art. 1º). Devolvidos os autos com a manifestação da Comissão de Jurisprudência, a Secretaria Judiciária encaminhará cópias desta manifestação e da proposta de edição, revisão ou cancelamento de súmula aos demais Ministros e ao Procurador-Geral da República, e fará os autos conclusos ao Ministro Presidente, que submeterá a proposta à deliberação do Tribunal Pleno, mediante inclusão em pauta (art. 2º). A manifestação de eventuais interessados e do Procurador-Geral da República dar-se-á em sessão plenária, quando for o caso (art. 3º). A proposta de edição, revisão ou cancelamento de súmula tramitará sob a forma eletrônica e as informações correspondentes ficarão disponíveis aos interessados no sítio do STF (art. 4º).

9 Interessante observar que o Governador de um Estado pode impetrar ADI para impugnar lei ou ato normativo de outro Estado, desde que comprovada a devida relação de pertinência. Esta poderá existir quando o ato de um Estado afetar diretamente o outro – no caso, por exemplo, de normatização de im-posto estadual que prejudique o Estado vizinho.

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Quando a proposta partir do relator de um determinado processo em tramitação no STF, o procedimento é ainda mais simples. Neste caso, o relator pode, em plenário, simplesmente propor que o assunto pertinente seja sumulado. Foi dessa forma que, na sessão plenária de 30/05/2007, por exemplo, transcorreram os debates e a aprovação das três primeiras súmulas vinculantes do STF (ata publicada no DJ de 14.06.2007), Na verdade, exige-se apenas que o Procurador-Geral da República manifeste-se previamente à votação (Lei 11.417/06, art. 2º, § 2º).

Poderá o relator, adicionalmente, admitir, por decisão irrecorrível, a manifestação de terceiros na questão, nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (art. 3º, § 2º) – o que significa dizer que desempenharão o papel de meros amicus curiae, que não se confunde com a intervenção de terceiros stricto senso.

Já houve caso em que o Tribunal, sentindo a necessidade de estabelecer súmula vinculante sobre determinado assunto, preferiu submeter a matéria à Comissão de Jurisprudência, antes de adotar a súmula (RE 597154 QO/PB, rel. Min. Gilmar Mendes, 19/02/2009).

2.7 Decisão

A aprovação da súmula vinculante exige o voto de 2/3 dos membros do Supremo Tribunal Federal (CF, art. 103-A, caput). A revisão e o cancelamento da súmula obedecem ao mesmo quórum (Lei 11.417/2006, art. 2º, § 3º). Como são 11 os membros do STF, é preciso que haja 8 votos favoráveis à proposta. Trata-se de uma quase unanimidade, como se vê. “Nada mais lógico. Se o Tribunal busca dar à sociedade segurança jurídica, deve ter posição consolidada sobre o assunto, com a concordância da maioria dos seus integrantes”, pondera Osmar Mendes Paixão Côrtes (2008, p. 193). A exigência de quórum tão alto está a demonstrar claramente que a súmula somente nascerá ou morrerá por intermédio de uma convicção firme do Tribunal.

Importa adicionalmente ressaltar, como o faz Márcia Regina Lusa Cadore, que “a fração relativa ao quórum deve ser calculada sobre o número de juízes investidos, abstraindo-se eventuais vagas abertas” (2007, p. 138).

2.8 Efeitos

A súmula vinculante terá efeito a partir de sua publicação na imprensa oficial (CF, art. 103-A). Em função desse dispositivo constitucional, a lei prevê que, no prazo de 10 dias após a sessão que editar, rever ou cancelar enunciado de súmula com efeito vinculante, o Supremo Tribunal Federal deverá publicar, em seção especial do Diário da Justiça e do Diário Oficial da União, o enunciado respectivo (Lei 11.417/2006, art. 2º, § 4º).

A lei fala em publicação do enunciado respectivo, ou seja, somente se fará publicar o enunciado da súmula – no caso, a parte dispositiva da decisão. Roger Stiefelmann Leal critica que a publicação se restrinja somente a essa parte. Entende o autor que seria necessário dar publicidade também à ratio decidendi que fundamenta a ação (2006, p. 171):

Pela mesma razão por que se impõe a publicação da parte dispositiva dos julgados do Supremo Tribunal Federal, acompanhada ou não de suas

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ementas, seria indispensável veicular no Diário Oficial a íntegra dos seus fundamentos, a exemplo do que ocorre na prática constitucional espanhola, com a finalidade de dar pleno conhecimento aos órgãos públicos situados em todas as regiões do País sobre as interpretações e princípios que estão obrigados a observar.

Assim como ocorre na ação direta de inconstitucionalidade, o STF tem a prerrogativa de modular os efeitos da súmula vinculante. A Lei 11.417/2006 determinou que, embora a súmula com efeito vinculante tenha, via de regra, eficácia imediata, o Supremo Tribunal Federal, por decisão de 2/3 dos seus membros, poderá restringir os efeitos vinculantes ou decidir que só tenha eficácia a partir de outro momento, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse público (art. 4º).

O que significa restringir os efeitos vinculantes? A súmula “pode alcançar apenas os Municípios”, exemplifica Márcia Regina Lusa Cadore (2007, p. 141). E o que seria excepcional interesse público? Um bom exemplo é novamente apresentado por Márcia Regina Lusa Cadore (2007, p. 141):

A aplicação de determinada súmula pode estar referida ao pagamento de determinado benefício previdenciário, por exemplo, o que demanda previsão orçamentária, impossível de ser estabelecida a qualquer tempo, sendo essa uma razão para a modulação temporal da eficácia da súmula.

Ocorre que a lei não trouxe definição para o que sejam razões de segurança jurídica ou fatos de excepcional interesse social. Trata-se, portanto, de conceito subjetivo, que deverá ser construído pelo Supremo Tribunal Federal, conforme as situações que se lhe apresentem, dentro dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

2.9 Destinatários

O efeito vinculante da súmula se dá em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (CF, art. 103-A, caput). Note-se que o efeito vinculativo não atinge o STF (eis que se destina apenas aos demais órgãos do Poder Judiciário, na dicção constitucional) e nem o Poder Legislativo. Assim, o STF pode simplesmente afastar a aplicação da súmula conforme o caso concreto, sem necessidade de propugnar pelo seu cancelamento. Por outro lado, o Poder Legislativo pode editar lei em sentido totalmente contrário ao da súmula vigente, tornando-a sem efeito.

Roger Stiefelmann Leal entende que o constituinte derivado andou bem em excluir alguns destinatários do alcance obrigacional da súmula vinculante (2006, p. 116):

A destinação do efeito vinculante a todos os órgãos e poderes do Estado resultaria no congelamento ou na petrificação da interpretação da Constituição. A evolução e o desenvolvimento da jurisprudência constitucional, sobretudo no sentido de adaptar o texto constitucional às novas realidades sociais e políticas, dependem necessariamente da abertura da jurisdição constitucional a vias interpretativas diversas, ou melhor, de que seja permitido a ela se afastar motivadamente de fundamentos adotados anteriormente, de modo a formar novos convencimentos.

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Há autores que entendem que a afirmação de que inexiste uma autovinculação do STF à súmula deve ser entendida com reservas – no dizer de Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Augusto Gonet Branco (2007, p. 918):

Talvez seja mais preciso afirmar que o Tribunal estará vinculado ao entendimento fixado na súmula enquanto considerá-lo expressão adequada da Constituição e das leis interpretadas. A desvinculação há de ser formal, explicitando-se que determinada orientação vinculante não mais deve subsistir. Aqui, como em toda mudança de orientação, o órgão julgador ficará duplamente onerado pelo dever de argumentar.

Cabe registrar que a não vinculação do STF à Súmula Vinculante encontra paralelo na não vinculação da Suprema Corte americana aos seus próprios precedentes. Esse fenômeno também pode ser verificado nas cortes americanas das instâncias inferiores, que observam com o devido rigor os precedentes da Suprema Corte, mas se sentem à vontade para descumprir seus próprios precedentes.

Se há vinculação no que se refere à administração pública, mas tal não existe quanto à atividade legiferante, cabe a pergunta: é ou não possível ao Presidente da República a edição de medidas provisórias que contrariem a ratio decidendi de uma súmula vinculante? Entendemos que sim. A vinculação cinge-se unicamente ao exercício da função administrativa, função típica do Poder Executivo, e não à função legiferante exercida por esse poder, função atípica. Do contrário, o Presidente da República ver-se-ia obrigado a vetar qualquer projeto de lei incompatível com súmula vinculante vigente, o que, na prática, representaria verdadeira vinculação do Poder Legislativo.

2.10 Descumprimento

Da decisão judicial ou do ato administrativo que contrariar enunciado de súmula vinculante, negar-lhe vigência ou aplicá-lo indevidamente caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal, sem prejuízo dos recursos ou outros meios admissíveis de impugnação (CF, art. 103-A, § 3º, c/c Lei 11.417/2006, art. 7º, caput). Fácil ver que a reclamação visa combater não apenas o desrespeito flagrante (contrariedade) ou velado (negativa de vigência) à súmula, mas também sua aplicação inadequada, o que normalmente ocorre por problemas de interpretação. Nesse sentido, importante trazer à baila as considerações de André Ramos Tavares (2008, p. 407):

A reclamação não é apenas uma forma de assegurar respeitabilidade à súmula vinculante, mas também um instrumento adequado para dirimir qualquer dúvida que possa existir acerca (i) do conteúdo da súmula e, conseqüentemente, (ii) de sua correta aplicação a determinado caso concreto (operação de verificação), na exata medida em que (...) a súmula, porquanto vertida em linguagem, pressupõe interpretação (atividade esta a que não se nega o seu potencial criativo), a qual nem sempre coincidirá com a finalidade pretendida pelo órgão criador da súmula. Com efeito, a reclamação vem a assegurar que eventual arroubo interpretativo, diverso da mens constante da súmula, seja corrigido.

Cabe alertar que o STF tem entendimento sumulado segundo o qual não cabe reclamação quando já houver transitado em julgado o ato judicial que se alega tenha

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desrespeitado decisão do Supremo Tribunal Federal (Súmula 734). Assim, é importante que o prejudicado por decisão judicial confrontante com súmula vinculante maneje o remédio da reclamação em tempo hábil, evitando o trânsito em julgado da decisão.

O processamento da reclamação insere-se entre as competências originárias do STF, estando prevista na CF, que atribuiu a ela a finalidade de preservar a competência e garantir a autoridade das decisões do STF (art. 102, I, “l”). É prevista também na Lei 8.038/90, que pouco a detalha, eis que tal norma trata de diversos outros procedimentos. Vejamos os detalhamentos pertinentes: a) a reclamação pode ser impetrada pela parte interessada (qualquer um que seja atingido pela inobservância da súmula, no caso) ou pelo Ministério Público, devendo ser dirigida ao Presidente do Tribunal, instruída com prova documental, sendo autuada e distribuída ao relator da causa principal, sempre que possível (art. 13); b) ao despachar a reclamação, o relator deverá requisitar informações da autoridade a quem for imputada a prática do ato impugnado, que terá o prazo de 10 dias para fazê-lo, e poderá ordenar, se necessário, para evitar dano irreparável, a suspensão do processo ou do ato impugnado10 (art. 14); c) qualquer interessado poderá impugnar o pedido do reclamante (art. 15); e d) o Ministério Público, nas reclamações que não houver formulado, terá vista do processo, por 5 dias, após o decurso do prazo para informações (art. 16).

Importante observar que, contra omissão ou ato da administração pública, o uso da reclamação só será admitido após esgotamento das vias administrativas (Lei 11.417/06, art. 7º, § 1º). Isso não impede que outras medidas judiciais sejam intentadas, como a ação ordinária ou mesmo o mandado de segurança. A necessidade de esgotamento do contencioso administrativo restringe-se, portanto, à reclamação. É claro que a demora na resposta a pedido administrativo sempre poderá ser interpretada como recusa da Administração.

A necessidade de esgotamento da via administrativa para que se intente a reclamação é bem defendida por André Ramos Tavares (2008, p. 409):

Com mais de 5.500 Municípios, além dos Estados-membros e da União, produzindo, diariamente, uma grande quantidade de atos administrativos na inércia de sua burocracia, não seria um pensamento cerebrino imaginar-se uma catástrofe aproximando-se rapidamente. Daí a lei ter operado, neste ponto, uma contenção, que é a exigência do esgotamento das vias administrativas. Isto será essencial para a sobrevivência da reclamação como instituto a adquirir certa utilidade, presumindo-se que muitas das disputas serão resolvidas administrativamente (ou que muitos interessados desistirão de percorrer a via administrativa). Um manejo despropositado, amplo e irrestrito, teria custado a própria sobrevivência da reclamação constitucional (...).

O processo administrativo transcorrerá como segue, em linhas gerais. Se o recorrente alegar que a decisão administrativa contraria enunciado de súmula vinculante, caberá à autoridade prolatora da decisão impugnada, se não a reconsiderar, explicitar, antes de encaminhar o recurso à autoridade superior, as razões da aplicabilidade ou inaplicabilidade da súmula, conforme o caso (Lei 9.784/99, art. 56, § 3º). Se o recorrente alegar violação de enunciado da súmula vinculante, o órgão competente para decidir o recurso explicitará as razões da aplicabilidade ou inaplicabilidade da súmula, conforme o caso (art. 64-A). No primeiro caso, a norma é endereçada ao próprio prolator da decisão impugnada, para que

10 A suspensão do processo ou do ato impugnado podem ser entendidas como medidas exemplificativas, podendo o relator lançar mão de outras medidas que entender pertinentes para evitar dano irreparável.

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este a torne adequada à súmula; no segundo caso, a autoridade destinatária é a autoridade a quem se recorre. Acolhida pelo Supremo Tribunal Federal a reclamação fundada em violação de enunciado da súmula vinculante, dar-se-á ciência à autoridade prolatora e ao órgão competente para o julgamento do recurso, que deverão adequar as futuras decisões administrativas em casos semelhantes, sob pena de responsabilização pessoal nas esferas cível, administrativa e penal (art. 64-B).

Julgando a reclamação procedente, o que será feito pelo plenário, eis que esse é o órgão responsável pela sua edição e revogação, o STF anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, determinando que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso (CF, art. 103-A, § 3º). Portanto, há duas situações:

1. No caso de ato administrativo, há a simples anulação do ato, ficando a critério do administrador editar outro ato, em conformidade com a súmula, ou simplesmente desistir de editar qualquer ato. Certo é que “não é dado ao Poder Judiciário substituir-se ao administrador na prática de novo ato em conformidade com a súmula”, alerta Márcia Regina Lusa Cadore (2007, p. 143).

2. No caso de ato jurisdicional, este será cassado – tornando sem efeito, portanto –, determinando o STF que outro seja proferido: a) com a aplicação da súmula, quando esta, submissível ao caso concreto, deixou de ser adotada; ou b) sem a aplicação da súmula, quando esta foi equivocadamente aplicada, quando não deveria sê-lo, por não se enquadrar na hipótese nela prevista.

A reclamação não faz subir o caso à apreciação do Supremo Tribunal Federal, como se poderia pensar. O que ocorre é a apreciação do STF meramente quanto ao descumprimento da súmula vinculante, ou quanto a problemas referentes à sua aplicação. “Assim, o Supremo Tribunal Federal não terá elementos para substituir a autoridade impugnada, apenas para ordenar seu redirecionamento”, observam Marcelo Lamy e Luiz Guilherme Arcaro Conci (2005, p. 313-4):

Note-se que não há qualquer previsão de punibilidade do administrador ou julgador que descumpre súmula vinculante11. Uadi Lammêgo Bulos defende que não deve mesmo haver qualquer sanção para o descumprimento de súmula vinculante (2007, p. 1.088):

Na realidade, a reforma do Judiciário acertou em não punir o Magistrado, ou até mesmo a autoridade administrativa, que deixar de aplicar súmula vinculante. Desse modo, garantiu a liberdade de pensamento, o direito de opinião, assegurados pela Carta de 1988, a todo cidadão. Embora haja, nos Estados Unidos, a possibilidade de se declarar o juiz culpado por desacatar as decisões da Suprema Corte, isso nunca chegou a ser aplicado, porque o livre pensamento judicial é corolário das instituições estadunidenses.

Roger Stiefelmann Leal, em sentido contrário, propugna que a inobservância do efeito vinculante “caracteriza grave violação do dever funcional das autoridades públicas infratoras”. Acrescenta o autor (2006, p. 164-8):

As conseqüências sancionatórias decorrentes da violação do efeito vinculante podem incidir (a) sobre o ato que consubstancia a repetição indevida e (b) sobre a autoridade pública que o produziu. (...) A efetividade prática do efeito vinculante depende (...) de ambos os tipos de sanção (...).

11 Exceto no que se refere a julgamento de recurso administrativo, caso em que a autoridade competente deverá obser-var o teor de súmula vinculante (Lei 9.784/1999, art. 64-B).

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Conclui, então, Roger Stiefelmann Leal (2006, p. 190):

A mera cassação do ato ou decisão não é (...) garantia de inibição da recalcitrância. Nada impede que a autoridade rebelde volte a praticar, por infinitas vezes, atos que desafiem a autoridade da ratio decidendi dos julgados do Supremo Tribunal Federal. É, portanto, necessário que, ao lado da cassação do ato por meio da via reclamatória, se imponha a responsabilização da autoridade renitente. Embora seja possível especular sobre a incidência de algumas normas sancionatórias em âmbito civil, penal, administrativo e constitucional, seria conveniente que à questão fosse dispensado tratamento normativo específico, definindo as responsabilidades e eventuais penalidades cabíveis em virtude da rebeldia das autoridades públicas.

Nesse ponto, discordamos das sempre lúcidas lições do autor, um dos pioneiros no tema, entre nós. Os legisladores procuram criar soluções para os problemas que vão sendo sentidos pela sociedade. Ora, embora seja ainda curta a vivência brasileira em termos de precedentes vinculantes para traçar um vaticínio mais definitivo sobre a questão, não nos parece que haja qualquer indício por parte dos obrigados quanto ao desrespeito à súmulas vinculantes já editadas. Parece-nos que vai-se formando um consenso no sentido de que infringir uma súmula vinculante não traz qualquer consequência prática a favor de quem assim age. Ao contrário, só traz o desconforto de ter que se ver com o STF, em sede de reclamação. Dispensável, portanto, ao menos por ora, qualquer legislação sancionadora nesse sentido.

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CAPÍTULO 3

O DEBATE SOBRE AS SÚMULAS VINCULANTES

Entre as principais vantagens do instituto, apontadas pela doutrina em geral, podemos relacionar as seguintes: a) possibilidade de conferir um tratamento isonômico aos jurisdicionados, o que pode ser especialmente facilitado pela uniformização da jurisprudência; b) possibilidade de conferir maior previsibilidade aos julgados, conferindo maior segurança jurídica à sociedade; e c) agilização e desafogamento da atividade judicante, com o consequente barateamento da justiça. Essas vantagens são exteriorizadas de forma reversa por André Ramos Tavares (2008, p.395), conforme segue:

Que juízes isolados ou tribunais continuem a ter o direito de divergir, no exercício de suas funções, da decisão de última instância (STF), apenas gera: (i) falência generalizada da capacidade pacificadora do Direito; (ii) descrédito do STF enquanto Corte máxima; e (iii) aumento do volume de processos e do tempo necessário para alcançar a decisão, mesmo sabendo-se estar previamente determinada pelo STF. É um cenário que beneficia especialmente aqueles que pretendem fazer da Justiça um mecanismo de contenção da parte contrária no exercício legítimo de seu direito pleiteado.

A doutrina enumera também diversas desvantagens ou problemas que a adoção, entre nós, das súmulas vinculantes poderiam ocasionar: a) esmaecimento do já tênue limite entre a função jurisdicional e a função legiferante; b) empobrecimento da argumentação jurídica; c) ofensa à liberdade de convicção dos magistrados; d) exarcebamento do poder conferido ao Supremo Tribunal Federal; e) problemas com a exegese da nova súmula; e f) ofensa ao princípio do duplo grau de jurisdição.

3.1 Tratamento Isonômico aos Jurisdicionados

Não é fácil para o cidadão comum e até mesmo para a comunidade especializada aceitar que uma determinada lide seja objeto de julgados completamente díspares, especialmente para aqueles que se encontram no polo perdedor da relação processual. Se os casos são idênticos ou pelo menos semelhantes, espera-se que as decisões se resolvam no mesmo sentido. A desigualdade da resposta judiciária, frente a lides similares, conduz, inevitavelmente, a um sentimento de injustiça, ameaçando a credibilidade do Direito.

A divergência jurisprudencial não é maléfica, na verdade. É claro que é perfeitamente aceitável que os magistrados decidam os casos que se apresentam de forma diferenciada, frequentemente de forma até mesmo antagônica. É muitas vezes com base nessa divergência que a ciência jurídica evolui. Ademais, julgamentos díspares não ferem imediatamente o princípio da isonomia, ao contrário do que supõe o senso comum. É que o princípio da isonomia, no âmbito jurisdicional, manifesta-se “como interdição ao juiz de fazer distinção entre situações iguais, ao aplicar a lei”, conforme leciona José Afonso da Silva (2203, p. 217). Assim, o princípio da isonomia restará observado se dois juízes diferentes, embora decidindo de forma antagônica casos semelhantes, manifestarem cada qual coerência diante dos diversos casos que se lhes apresentem. Ou seja, a coerência deve existir em relação a cada juiz individualmente. Significa que um mesmo juiz não pode decidir dois casos idênticos de forma diferenciada, mas dois juízes diferentes podem fazê-lo, sem ofensa ao princípio da isonomia.

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Contudo, entendemos que haverá malferimento do princípio da isonomia se casos semelhantes se consolidarem com soluções diferentes, e tanto maior será a ofensa a esse princípio informador de toda a ordem jurídica quanto mais díspares forem as decisões. Indubitável que em alguma instância superior deve haver a pacificação do entendimento. Portanto, um certo nível de uniformidade dos julgados em última instância é uma meta que deve ser perseguida, eis que traz em seu bojo sentimentos como administração por igual da justiça e equidade. “O critério do sorteio na distribuição de recursos perante um Tribunal não se apresenta como adequado a justificar decisões diversas para casos idênticos”, assevera com muita razão Márcia Regina Lusa Cadore (2007, p. 243). A loteria processual deve ser de alguma forma controlada ou compensada.

Ora, é claro que resultados frequentemente díspares em processos em tudo semelhantes podem trazer como consequência uma crise de confiança do cidadão comum na Justiça. Embora qualquer um possa compreender que nem sempre haja uma única resposta jurídica correta, e que algum grau de divergência nos julgados possa ser aceito como normal, graves e constantes discrepâncias podem não ser objeto do mesmo sentimento. Veja-se a interessante observação proferida por José Maria Rosa Tesheiner a título de prefácio à obra de Márcia Regina Lusa Cadore (2007, p. 243):

Casos idênticos, sentenças diferentes. Inexplicável para os leigos. Deveria escandalizar os profissionais do Direito, não fora uma deformação própria de sua formação. O tratamento igual de situações iguais constitui princípio elementar de justiça. O princípio da isonomia, expresso na Constituição Federal, é desmentido cada vez que, em identidade de situações, uma sentença discrepa de outra, fenômeno corriqueiro, aceito como “normalidade”. A injustiça transparece de modo especial no Direito Público: um contribuinte é condenado a pagar imposto, o concorrente recebe sentença absolutória; trabalhando lado a lado, exercendo as mesmas funções, a um servidor é reconhecido direito ao adicional de insalubridade; ao colega é negado. Esse resultado decorre, em parte, da liberdade de convencimento atribuída aos juízes. Cada um faz “justiça” no seu processo, e a soma dessas decisões justas produz injustiça.

Seria drástico associar a coerência de julgados do Poder Judiciário com sua própria sobrevivência, como se chega a afirmar, em tom alarmista. Contudo, indubitável que as súmulas vinculantes são uma boa oportunidade para impedir maiores máculas à imagem do Judiciário – ao contrário, tais súmulas contribuem mesmo para desenvolver no cidadão comum uma maior sensação de coerência, de confiabilidade, de certeza, de segurança jurídica quanto ao sistema judiciário. No mesmo sentido, muito lúcido o posicionamento de André Ramos Tavares (2008, p. 387):

Justamente por se tratar de um sistema pautado pela isonomia e identidade das fontes de comando (os textos normativos são os mesmos) é que o direito precisa eliminar as contradições internas que eventualmente ocorram (em seus órgãos oficias de execução do Direito). O sistema jurídico não está isento, pois, de conter elementos contrários dentro de si. Esse é um dado não só possível como admitido pela própria Constituição (ao criar, v.g., a ação direta de inconstitucionalidade). O que se faz imperioso é eliminar os já existentes e prevenir o surgimento de outros. A preocupação com eventuais incongruências internas é de alta relevância,

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pois as incompatibilidades normativas intra-sistêmicas podem custar ao ordenamento jurídico sua própria existência.

O próprio Superior Tribunal de Justiça costuma fazer constar em seus ementários um pequeno texto sempre que pretende infirmar que a sua jurisprudência seja observada e respeitada, inclusive pelos seus próprios membros. Trata-se de um quase apelo para que a jurisprudência produzida pela Casa seja respeitada em suas próprias hostes, um verdadeiro chamamento para que os membros daquela Corte deixem eventuais vaidades e convicções intelectuais de lado sempre que a jurisprudência se vê ameaçada:

O Superior Tribunal de Justiça foi concebido para um escopo especial: orientar a aplicação da lei federal e unificar-lhe a interpretação, em todo o Brasil. Se assim ocorre, é necessário que sua jurisprudência seja observada, para se manter firme e coerente. Assim sempre ocorreu em relação ao Supremo Tribunal Federal, de quem o STJ é sucessor, nesse mister. Em verdade, o Poder Judiciário mantém sagrado compromisso com a justiça e a segurança. Se deixarmos que nossa jurisprudência varie ao sabor das convicções pessoais, estaremos prestando um desserviço a nossas instituições. Se nós – os integrantes da Corte – não observarmos as decisões que ajudamos a formar, estaremos dando sinal, para que os demais órgãos judiciários façam o mesmo. Estou certo de que, em acontecendo isso, perde sentido a existência de nossa Corte. Melhor será extingui-la (AE REsp 228.432/Corte Especial).

Sabemos que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça são guardiões da Constituição da República e da legislação federal, respectivamente. Mas o que significa ser guardião de um sistema normativo, senão zelar pela unidade e pela coerência de tal sistema? Atribuir mera função recursal a essas Cortes, como se fossem apenas uma terceira instância, seria insuficiente para tão importante missão. É preciso que seus julgados se imponham de fato e de direito, eis que gerados em uma instância especial, formada a partir de critérios políticos e técnicos. Calmon de Passos chega a defender que todos os Tribunais Superiores sejam dotados de força vinculante (1997, p. 632):

Falar-se em decisão de tribunal superior sem força vinculante é incidir-se em contradição manifesta. Seriam eles meros tribunais de apelação, uma cansativa via crucis imposta aos litigantes para nada, salvo o interesse particular do envolvido no caso concreto, muito nobre, porém muito pouco para justificar o investimento público que representam os tribunais superiores.

Convém que ao menos o Supremo Tribunal Federal, nossa máxima instância, disponha de instrumento mais firme do que a mera sedimentação de julgados para firmar entendimento inarredável. As súmulas vinculantes, embora não sejam o único e nem mesmo o mais importante instrumento de uniformização de jurisprudência, têm uma importante contribuição a dar no que se refere a conferir um tratamento mais isonômico aos jurisdicionados. No mínimo, pode-se dizer que “elas constituem um relevante instrumento de padronização da interpretação jurídico-constitucional”, no dizer de Glauco Salomão Leite (2007, p. 6).

Por meio das súmulas vinculantes, o STF firma determinado posicionamento sobre matéria constitucional que deverá ser observado por toda a administração pública, bem como por todas as instâncias inferiores, conforme já vimos. Passa a existir não só a

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igualdade de todos perante a norma, mas também a igualdade de todos perante os julgados. O princípio da igualdade, expressamente propugnado pela Constituição Federal (art. 5º, caput), resulta enobrecido e fortalecido.

3.2 MaiorSegurançaJurídica

Dizer segurança jurídica é dizer previsibilidade: das regras que informam o jogo legislativo, da margem de ação que se atribui à administração e, também, da atividade jurisdicional que emana dos julgados. Previsibilidade não significa certeza, mas margem de certeza. Assim, temos segurança jurídica quando podemos dizer, com boa margem de acerto, que determinada conduta não será recriminada se questionada judicialmente. Não é por outro motivo, se não o de conferir segurança jurídica à população, que a Constituição Federal prevê que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, II). Ora, se determina conduta não for proibida por lei, então o particular pode presumir com tranquilidade que aquela conduta lhe é facultada.

A previsibilidade é fundamental para que as relações sociais fluam com tranquilidade. Os cidadãos não podem ser surpreendidos por violações de direitos, ou por atos normativos espúrios, ou por julgados arbitrários. Da mesma forma, os cidadãos devem saber de antemão de que forma seus atos repercutirão no ordenamento jurídico – serão aceitos como normais? Ou serão objeto de sanção? Se não houver tal previsibilidade, não há como haver segurança jurídica.

As súmulas vinculantes cumprem mais esta função: aumentar o grau de previsibilidade e, consequentemente, de segurança jurídica da sociedade. Roger Stiefelmann Leal manifesta-se de forma bastante feliz a respeito (2006, p. 115):

É finalidade própria do estado moderno tornar previsível ou presumível, com antecipação, a atuação do Poder Público. Nessa linha, observa o princípio da segurança jurídica a instituição de mecanismos, como o efeito vinculante, que obstem a perpetuação de controvérsias interpretativas sobre a Constituição, induzindo à unificação da prática e da interpretação constitucional. A realização de atos baseada em exegese constitucional divergente da firmada pelo intérprete máximo do texto constitucional apenas contribui para a instabilidade e insegurança da ordem político-constitucional. No fundo, importa fazer valer a ideia esboçada por Montesquieu de que não se pode viver em sociedade sem saber precisamente os compromissos ali assumidos.

Em qualquer Estado Democrático de Direito, a segurança jurídica emana da satisfação de três vetores fundamentais a) existência de limites à atuação estatal, que não pode invadir o espaço das liberdades individuais; b) procedimento legislativo hígido, livre de autoritarismo, baseado em normas que não emanem de uma única autoridade, e sim de representantes escolhidos pelo povo; e c) julgamentos imparciais e livres de pressões e interesses espúrios. Concentrando-nos na esfera da atividade judicante, tema de nosso trabalho, é dizer: a segurança jurídica emana da previsibilidade dos julgados, eis que julgamentos viciados costumam surpreender, ao passo que o processo judicial limpo não costuma trazer maiores surpresas.

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No sistema de common law, a previsibilidade judicial é extraída das regras e princípios embutidos nos casos concretos, ou seja, nos precedentes. Esse o ensinamento de Konrad Zweigert e Hein Kötz (1998, p. 269)12:

Estas regras e princípios gerais, que os juízes do common law extraem da massa de casos concretos por um processo indutivo e um método comparativo, dá ao sistema um considerável grau de ordem interna e, portanto, de previsibilidade.

No nosso sistema do civil law, a previsibilidade encontra-se ameaçada toda vez que um julgador afasta-se da jurisprudência dominante, e isso ocorre especialmente quando a fundamentação desenvolvida não é muito consistente. Torna-se, por vezes, até mesmo difícil aferir a higidez da conduta do juiz. Em última análise, o jurisdicionado corre o risco de perder o parâmetro necessário para direcionar suas condutas futuras.

Nesse sentido, as súmulas vinculantes são um instrumento bastante apropriado para conferir maior segurança jurídica ao cidadão. Afinal, uma vez expedidas, fica-se sabendo que toda a administração pública, bem como todos os juízes ficam atrelados às suas razões de decidir, sem possibilidade de surpresas, com grau máximo de previsibilidade, sob pena de correção pela via da reclamação diretamente ao Supremo. Há, com isso, indubitavelmente, um expressivo fortalecimento do princípio da segurança jurídica.

De se notar que o princípio da segurança jurídica se dá em função de firmar um entendimento para a norma, estabilizando sua interpretação, assim como suas partes literais – ou seja, aquelas que praticamente não demandam interpretação – já apresentam de plano essa estabilidade. Ou seja, se todos esperam que a norma pacifique as relações jurídicas, não é aceitável que partes da norma, por divergências interpretativas, tragam incerteza jurídica. Assim, as súmulas vinculantes têm o potencial de cumprir esse papel de estabilizador da norma, aumentando a segurança jurídica da sociedade, e mesmo, reflexamente, assegurando isonomia aos jurisdicionados com tal estabilização.

3.3 Agilização,DesafogamentoeBarateamentodaJustiça

A Constituição Federal dispõe que a todos, no âmbito judicial ou administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade processual (art. 5º, LXXVIII). Uma prestação jurisdicional ágil, que transcorra em tempo aceitável ao senso comum, passou a constituir expressa garantia ao exercício dos direitos fundamentais, a partir da EC 45/2004. No dizer de André Ramos Tavares, “é impossível e insuportável optar pela eternização das discussões judiciais”, ou seja, as demandas têm que encontrar um fim, e que esse fim seja o quão breve quanto possível (2008, p. 387).

Não é difícil imaginar que a agilização da justiça esteja diretamente associada com o desafogamento do Poder Judiciário. Muito se fala que o Poder Judiciário brasileiro esteja sobrecarregado de processos, e que seria preciso fazer algo para resolver essa situação. A análise de alguns dados comprova esse quadro, como veremos em seguida.

12 Tradução nossa do original: “These general rules and principles, which common law judges have drawn out of the mass of case material by an inductive and comparative method, give the case-law a considerable degree of inner systematic order and hence of community and predictability”.

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Comecemos pela quantidade de ações ajuizadas por juiz, tomando por base relatório publicado pelo Banco Mundial em 2006. No Brasil, há, anualmente, 1.367 ações por juiz, considerando apenas a justiça estadual, federal e trabalhista (excluiu-se da análise a justiça eleitoral e a militar, bem como a de pequenas causas). Esse número é bem superior do que aquele verificado em muitos países: México13 (650), Argentina (875), Inglaterra e País de Gales (891), França (477), Itália (700) e Alemanha14 (678).

Nas instâncias superiores os números são ainda mais impressionantes. O Supremo Tribunal Federal recebeu 127.537 processos em 2006, e julgou 110.284 deles. Ou seja, cada Ministro julgou, em média, mais de 10 mil processos ao longo do ano! No Superior Tribunal de Justiça o quadro foi semelhante. Foram recebidos 251.020 processos, tendo sido julgados 262.343 processos (houve redução de estoque, portanto). Para cada Ministro coube o julgamento de quase 8 mil processos, tomando-se pela média.

Na sessão de abertura do ano judiciário de 2009, o Presidente do STF, Min. Gilmar Mendes, proferiu discurso no qual saudava que “pela primeira vez o Supremo experimentou significativa diminuição, cerca de 41% no total de processos distribuídos, obtida principalmente com a aplicação do instituto da Repercussão Geral”. De fato, o gráfico abaixo acusa a redução do quantitativo de processos distribuídos de 2007 para 2008, se bem que não foi a primeira vez que isso ocorreu. Já havia ocorrido em 2004, conforme pode-se constatar facilmente pelo gráfico.

Apesar da fala do Presidente do STF, dando destaque unicamente ao instituto da repercussão geral para a queda na distribuição de processos no âmbito do STF, acreditamos que as súmulas vinculantes também contribuíram para esse cenário. É que o modus operandi do requisito da repercussão geral permite verificar com maior clareza o quantitativo de recursos que deixaram de ser analisados pelo Supremo em virtude dessa inovação. Vejamos. Interposto um recurso extraordinário, o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das

13 Considerando apenas o Distrito Federal.14 Exceto por México e Argentina, nos noutros países a pesquisa levou em consideração o número de sentenças por

juiz, ao invés de número de ações ajuizadas.

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questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de 2/3 de seus membros15 (CF, art. 102, § 3º). Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão geral será processada nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (art. 543-B, caput). Caberá ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal, sobrestando os demais até o pronunciamento definitivo da Corte (§ 1º). Negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente não admitidos (§ 2º). Ora, fácil ver que, com essa sistemática, a estatística de quantos processos tenham deixado de subir ao STF por força da repercussão geral é de aferição simples, bastando que os tribunais inferiores informem esses dados a uma central, como já é feito.

Já com relação às súmulas vinculantes, a apuração de processos que deixaram de ser movimentados precisa ser bem mais sofisticada. Sabemos que grande parte do congestionamento processual se deve ao obrigatório duplo grau de jurisdição que, via de regra, a Administração Pública precisa observar. Quando perde uma lide, o administrador tem o dever funcional de recorrer da decisão. Havendo súmula vinculante em desfavor dos interesses da Administração, nem mesmo uma lide chega a se formar, pois o administrador não vai tomar um caminho que vai resultar em reclamação no STF. A renúncia da procura ao Judiciário é de difícil apuração pelos métodos quantitativos, por motivos óbvios.

Mesmo assim, cabe destacar que, na ocasião da aprovação da Súmula vinculante 4, ocorrida em 30.04.2008, assim se pronunciou o Presidente do STF:

O SR. MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) – Senhores Ministros, registro que esta decisão repercute sobre quinhentos e oitenta processos no Supremo Tribunal Federal e, no âmbito do TST, pelas informações provisórias, algo em torno de dois mil, quatrocentos e cinco processos. Vejam, portanto, o alcance dessa decisão e desse novo procedimento que estamos a declarar.

Uma justiça morosa é, necessariamente, uma justiça cara, eis que maior é a infraestrutura necessária para suportar um trâmite lento, especialmente no que se refere a recursos humanos. Uma justiça onerosa é especialmente inaceitável no caso brasileiro, um país repleto de necessidades sociais a serem atendidas. Não é novidade para ninguém que o Brasil é um país com dramáticos problemas sociais, e, cabe ressaltar, em todas as áreas relacionadas às necessidades mais básicas do ser humano: habitação, emprego, segurança, saúde, educação etc. Assim, baratear a Justiça brasileira é quase que um dever moral que temos para com os menos assistidos dessa nossa tão desigual sociedade.

Cabe registrar, contudo, que apesar de entendermos que a adoção das súmulas vinculantes pode ser decisiva para desestimular demandas judiciais inúteis, desafogando e barateando o Judiciário, há autores que alertam para um possível efeito contrário. Roger Stiefelmann Leal, a título de contribuir para que esse efeito seja evitado, ressalta que foi justamente isso o que ocorreu na Alemanha e na Espanha (2006, p. 180):

A adoção do efeito vinculante na Alemanha, apesar do menor índice populacional e extensão territorial, não impediu que o número de processos submetidos ao juízo do Tribunal Constitucional Federal praticamente

15 Para efeito de repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa (CPC, art. 543-A, § 1º).

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dobrasse entre os anos de 1990 e 1995. (...) Por seu turno, o Tribunal Constitucional da Espanha, cujas decisões também produzem efeito vinculante, teve aumentada em aproximadamente 700% a quantidade de processos distribuídos entre os anos de 1985 e 2003.

Após apontar que o único dado que se pode atribuir diretamente ao efeito vinculante até 2004 tenha sido o referente ao número de reclamações propostas perante o STF, o autor ressalva que o possível efeito indesejado no aumento do movimento processual naquela Corte não invalida nem diminui a importância do instituto, eis que sua principal finalidade reside em coibir a recalcitrância dos demais agentes estatais em se render às decisões do Supremo Tribunal Federal.

O perigo relacionado a um possível aumento de processos no STF por conta das súmulas vinculantes teria maior razão de ser quando nos deparamos com o inédito regime de vinculação que a administração pública passa a sofrer diante das decisões jurisprudenciais com força obrigacional. Imagine-se milhares, talvez milhões de demandantes insatisfeitos com as decisões da administração pública, por enxergarem infração a súmula vinculante, e que decidam impetrar reclamação junto ao Supremo. Essa a preocupação externada por Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Augusto Gonet Branco, os quais alertam para o que se segue (2007, p. 919):

A adoção da súmula vinculante para a Administração Pública vai exigir a promulgação de normas de organização e procedimentos que permitam assegurar a observância por parte desta dos ditames contidos na súmula sem que se verifique uma nova e adicional sobrecarga de processos – agora de reclamações – para o Supremo Tribunal Federal.

Contudo, bem cuidou a lei em atenuar ou ao menos adiar o problema, ao dispor que, contra omissão ou ato da administração pública, o uso da reclamação só será admitido após o esgotamento das vias administrativas (Lei 11.417/06, art. 7º, § 1º). Assim, deve-se, primeiramente, tentar resolver a questão no âmbito administrativo, o que deverá esmaecer sobremaneira o ânimo de impetrar reclamação junto ao STF. De qualquer forma, estamos com os eminentes autores, no sentido de que normas específicas ainda deverão ser gestadas, pois nada impede que um caso com grande massa de demandantes, após tramitar no âmbito administrativo, siga irresignada em direção ao Supremo, em sede de reclamação.

Cabe finalizar esse tópico com a interessante observação de Marcelo Lamy e Luiz Guilherme Arcaro Conci (2005, p.306-16):

Os grandes perdedores, com a súmula, são os litigantes que buscam, no Poder Judiciário, a postergação do cumprimento de obrigações suas que, muitas das vezes, sabendo devidas e, com a existência de um Judiciário abarrotado, vêem neste um locus de redução dos danos para o cumprimento da obrigação, uma vez que a realidade brasileira atual é a de um país que paga muito bem ao capital financeiro investido. Dentre estes que lucram com as mazelas do Judiciário encontram-se os grandes “clientes” do Poder Judiciário, grandes grupos privados e o próprio Estado, nossos maiores litigantes.

De fato, todo aquele que sabe não ser detentor do bom direito e tenta se valer de brechas processuais para fugir de suas obrigações – sejam elas cíveis ou criminais – estes sempre serão os únicos prejudicados por um processo judicial mais simples e ágil.

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3.4 Esmaecimento do Limite entre as Funções Jurisdicional eLegiferante

É bastante antigo o debate doutrinário acerca da fixação dos limites entre a função legiferante e a função jurisdicional, no sentido de que esta última, muitas vezes, invade o espaço de competência da primeira – quando o juiz se arvora na posição de poder criar o direito, extrapolando sua pretensa função original de apenas aplicar a lei.

A discussão de fundo refere-se princípio da separação dos poderes. A CF preceitua que são poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário (art. 2º). Aristóteles já identificara, ainda que precariamente, uma especialização dos poderes. Mas diz-se frequentemente que devemos a Montesquieu a divisão dos Poderes entre Executivo, Legislativo e Judiciário, tal como a conhecemos hoje. Isso porque Montesquieu, a certa altura, afirma o que se segue16 (1995, p. 168):

Há, em cada Estado, três espécies de poderes: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e o executivo das que dependem do direito civil. Pelo primeiro, o príncipe ou magistrado faz leis por certo tempo ou para sempre e corrige ou ab-roga as que estão feitas. Pelo segundo, faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece a segurança, previne as invasões. Pelo terceiro, pune os crimes ou julga as querelas dos indivíduos. Chamaremos este último o poder de julgar e, o outro, simplesmente o poder executivo do Estado.

Seja como for, na verdade, não há que se falar em divisão de poderes, pois o poder é uno e indivisível, embora multifacetado em sua manifestação. Assim, uma decisão judicial, por exemplo, nada mais é que a manifestação do poder do Estado em decidir uma lide entre seus jurisdicionados; e na promulgação de uma lei temos, novamente, a manifestação do poder estatal de editar normas cogentes, que a todos obrigam. É sempre o mesmo poder que fundamenta esses atos, apenas temos que este poder se manifesta de várias formas diferentes. O que realmente existe é uma repartição de funções estatais entre órgãos especializados. Podemos fazer uma analogia com o poder do proprietário de uma grande empresa, que se manifesta pelos atos de seus diretores. Ora, a empresa é dividida em diversos departamentos especializados, que agem com independência, mas que, no fundo, manifestam a vontade de um único centro de poder, de onde emana toda a autoridade. Assim, são três as funções estatais básicas tradicionais – a função legislativa, a função judiciária e a função administrativa – às quais vem-se acrescendo, hodiernamente, uma quarta função, a fiscalizatória – todas manifestações do poder estatal.

Por tudo quanto vimos, podemos dizer que o poder é organicamente exercido por três divisões (Executivo, Legislativo e Judiciário), mas se manifesta funcionalmente de quatro formas diferentes (executiva, legislativa, judiciária e fiscalizatória). É por isso que se diz que o princípio da separação de poderes não é absoluto, o que significa dizer

16 Contudo, apesar dessa passagem, os estudiosos da obra montesquiana afirmam que, na realidade, esse pensador não considerava o Judiciário como um autêntico poder, pois tal seria neutro. A passagem seguinte da obra de Montes-quieu comprovaria esse entendimento: “Eis, assim, a constituição fundamental do governo que falamos. O corpo legislativo, sendo composto de duas partes, uma paralisará a outra por sua mútua faculdade de impedir. Todas as duas serão paralisadas pelo poder executivo que o será, por sua vez, pelo poder legislativo. Esses três poderes deveriam formar uma pausa ou uma inação. Mas como, pelo movimento necessário das coisas, eles serão obrigados a caminhar, serão forçados a caminhar de acordo” (1995, p. 198). Seriam, portanto, os seguintes os três poderes preconizados por Montesquieu: o Poder Executivo e cada uma das Câmaras do Poder Legislativo.

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que há a possibilidade, desde que expressamente previsto no texto constitucional, de que uma das divisões orgânicas do poder venha a exercer funções próprias de outra divisão. É que cada poder exerce uma função precípua, predominante, mas também arvora-se em funções dos outros poderes para viabilizar certas atividades. Ou seja, cada poder exerce funções típicas, especializadas, e atípicas, próprias dos outros poderes.

O Poder Executivo, por exemplo, tem a função típica de administrar o Estado17, e as funções atípicas de legislar (editando medidas provisórias), julgar (administrativamente) e fiscalizar (por meio do controle interno e de suas corregedorias). O Poder Legislativo, por sua vez, tem as funções típicas de elaborar leis e de fiscalizar a coisa pública, exercendo, portanto, dupla função, e as funções atípicas de administrar (poder de autogoverno) e julgar (possibilidade de julgar o Presidente da República por crime de responsabilidade). O Poder Judiciário, por fim, exerce a função típica de aplicar o Direito, e as funções atípicas de administrar (poder de autogoverno), legislar (possibilidade de editar seus próprios regimentos) e fiscalizar (por meio do controle interno e de suas corregedorias).

Assim, o conflito entre o exercício das atividades legiferante e judicante pode ser, na verdade, um conflito referente à separação dos poderes, se entendermos que um Poder estaria invadindo o espaço de outro. Mas, por outro lado, pode não sê-lo, se entendermos que as formas de exercício do poder na verdade se distribuem naturalmente entre os Poderes organicamente dispostos. No caso das súmulas vinculantes, contudo, esse conflito sempre existirá, dadas as peculiaridades do instituto.

Embora alguns autores neguem a possibilidade de conflito entre a atividade judicante e a atividade legiferante – para estes, a súmula enquadra-se obrigatoriamente em comando normativo preexistente, não sendo possível a extrapolação desse comando18 – entendemos que o conflito de fato existe, eis que os enunciados de súmula guardam grande semelhança com as disposições normativas. Em ambos os casos temos enunciados simples, diretos, lacônicos, e, o que é mais importante, com praticamente a mesma força obrigacional (apenas os destinatários das súmulas vinculantes são em menor número que o das leis). Assim, se o problema já existia quando o juiz decidia apenas o caso concreto, é de se imaginar o quanto pode restar ampliado em função da adoção das súmulas vinculantes.

Não é por outro motivo que Hans Kelsen prefere um sistema menos flexível, mas fundamentado em maior segurança jurídica, a outro em que os juízes tenham maior liberdade para criar (2006, p. 279):

Como o processo legislativo, especialmente nas democracias parlamentares, tem de vencer numerosas resistências para funcionar, o direito só dificilmente se pode adaptar, num tal sistema, às circunstâncias

17 Entendemos não ser exatamente correto dizer, como às vezes se vê, que o Poder Executivo executa as leis. É que o Poder Judiciário também executa a lei, tanto que, outrora, esses poderes eram entendidos como integrantes de um único bloco. A diferença está em que, enquanto o Poder Executivo executa a lei em abstrato, aplicando-a em todas as situações que a ela se moldem, agindo de ofício, o Poder Judiciário a executa em concreto, aplicando-a a um caso a este levado, ou seja, agindo mediante provocação.

18 Nesse sentido, Marcelo Lamy e Luiz Guilherme Arcaro Conci (2005, p.314-5) e Osmar Mendes Paixão Côrtes (2008, p. 197). Kelsen tem uma perspectiva interessante sobre a questão: “A teoria, nascida no terreno da common law anglo--americana, segundo a qual somente os tribunais criam Direito, é tão unilateral como a teoria, nascida no terreno do Direito legislado da Europa continental, segundo a qual os tribunais não criam de forma alguma Direito mas apenas aplicam Direito já criado. Essa teoria implica a ideia de que só há normas jurídicas gerais, aquela implica a ideia de que só há normas jurídicas individuais. A verdade está no meio. Os tribunais criam Direito, a saber – em regra – Direito individual; mas, dentro de uma ordem jurídica que institui um órgão legislativo ou reconhece o costume como fato produtor de Direito, fazem-no aplicando o Direito geral já de antemão criado pela lei ou pelo costume. A decisão judicial é a continuação, não o começo, do processo de criação jurídica” (2006, p. 283).

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da vida em constante mutação. Este sistema tem a desvantagem da falta de flexibilidade. Tem, em contrapartida, a vantagem da segurança jurídica, que consiste no fato de a decisão dos tribunais ser até certo ponto previsível e calculável, em os indivíduos submetidos ao direito se poderem orientar na conduta pelas previsíveis decisões dos tribunais. O princípio que se traduz em vincular a decisão dos casos concretos a normas gerais, que hão de ser criadas de antemão por um órgão legislativo central, também pode ser estendido, por modo conseqüente, à função dos órgãos administrativos. Ele traduz, neste seu aspecto geral, o princípio do Estado de Direito que, no essencial, é o princípio da segurança jurídica.

Ultimamente, tem ganhado força na Magistratura, e em certos setores da sociedade, um movimento no sentido de que o juiz deve amoldar suas decisões à realidade socioeconômica em que está inserido o litígio, de forma a “humanizar” suas decisões, ainda que isso implique em afastá-las do Direito posto. Cândido Rangel Dinamarco tem um posicionamento bastante crítico a respeito (2003, v. 1, p. 135):

Nos últimos tempos, vem ganhando força a convicção do poder que o juiz tem de adaptar seus julgamentos às realidades sociais, políticas e econômicas que circundam os litígios postos em juízo – e cresce com isso a impressão de que a sentença criasse o direito do direito concreto ao inovar em relação aos julgados anteriores e aos próprios textos legais. Mera ilusão. Se isso fosse verdade, aberto estaria o caminho para o arbítrio, numa verdadeira ditadura judiciária em que cada juiz teria a liberdade de instituir normas segundo suas preferências pessoais. Tal seria de absoluta incompatibilidade com as premissas do due process of law e do estado de direito, em que a legalidade racional e bem compreendida vale como penhor das liberdades e da segurança das pessoas.

É notório que toda lei tem que ser interpretada, eis que qualquer aplicação de uma regra nascida do engenho humano a um caso concreto – subsunção de uma tese a uma situação fática – demanda por si só, ainda que em diminuta escala, um ato interpretativo. Chega-se a dizer que a regra é, em última análise, a sua interpretação, como o faz Miguel Reale (2002, p. 168). Mas a concretização da Constituição Federal demanda uma atividade interpretativa bem maior do que aquela que normalmente ocorre quando da aplicação da legislação infraconstitucional. É que os dispositivos constitucionais apresentam uma maior elasticidade semântica – no dizer de Glauco Salomão Leite (2007, p. 42) – pois é próprio das Constituições exteriorizarem princípios e diretrizes gerais, vagos e imprecisos por natureza. O Direito Constitucional, mais do que qualquer outro ramo do direito, só consegue materializar-se plenamente nos julgados, sendo um direito jurisprudencial por excelência. O juiz constitucional é forçado a ser livre19, no sentido de que precisa buscar a solução para o caso concreto fora do texto constitucional, em função de este ser, em regra, insuficiente para dar a melhor resposta. É por isso que se diz que é constitucional tudo aquilo que o Supremo Tribunal Federal diz que o é, querendo esse brocardo significar que a completude do Direito Constitucional só será encontrada na jurisprudência construída pelos magistrados daquela Corte.

Sendo inevitável a atividade interpretativa, a ciência jurídica cuidou de criar alguns métodos para tal (literal, lógico, sistemático, histórico), os quais têm a função de

19 A expressão é de Mauro Cappelletti (in Glauco Salomão Leite, 2007, p. 42).

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diminuir a margem de arbítrio do julgador. Contudo, ainda assim, temos que, inevitavelmente, “toda interpretação judiciária é criativa, assim como toda atividade interpretativa o é: na literatura, na música, no teatro ou na pintura, ainda que sem a consciência do intérprete”, como bem lembra Mônica Sifuentes (2005, p. 123). Ou, no dizer de André Ramos Tavares, “toda aplicação de lei pressupõe um ato interpretativo, e a interpretação constitui um ato de criação do agente” (2008, p. 385). Inescapavelmente, portanto, interpretar é, também, criar.

Se toda atividade interpretativa é criativa – e isso só não é verdade para certa corrente doutrinária, com a qual não nos filiamos20 –, então a edição de súmulas vinculantes também o será, necessariamente. E até que ponto é legítimo que os julgadores criem o direito em um nível obrigacional tão extenso? Afinal, eles não detêm um mandato obtido nas urnas, embora se possa ressalvar que os Ministros do STF submetem-se a um rito político de nomeação – são nomeados pelo Presidente da República, após aprovação pelo Senado Federal (CF, art. 84, XIV). Seja como for, se antes o problema da criatividade dos juízes se limitava ao caso concreto, agora o problema que se embute nessa criatividade pode ocorrer em larguíssima escala.

A questão da abrangência que assume uma interpretação do STF é bem abordada por Glauco Salomão Leite, para quem, embora se veja com certa naturalidade o fato de os juízes criarem direito ao interpretar as leis, na concretização destas, muitas vezes não se aceita com a mesma tranquilidade esse nível de criatividade no âmbito constitucional, quando produzida por uma Corte constitucional com poder de dar definitividade a esta ou aquela interpretação constitucional. O autor assim complementa seu raciocínio (2007, p. 44):

É que, nesse caso, estar-se-ia gerando direito do mais elevado patamar hieráquico-normativo por uma instância judicial hierarquicamente superior, criando-se um dilema: de um lado, considerar-se que todos os poderes estão vinculados à Constituição e, de outro, que compete ao tribunal constitucional estabelecer a última palavra sobre mesma Constituição, incluindo a interpretação de suas próprias competências.

Mas o problema não pára na maior abrangência do Direito Constitucional. Agora, as questões que se seguem passam a ter um alcance muito maior: a) É possível decidir um caso contra legem, buscando fundamentação nos princípios de direito? Se sim, então podemos ter uma súmula vinculante que contradiga frontalmente a Constituição Federal; b) Pode o julgador construir uma solução jurídica para o caso concreto, quando a Constituição for lacunosa? Se sim, então a súmula vinculante pode ela própria, na prática, criar uma norma com status constitucional, capaz de colocar por terra a legislação infraconstitucional. Fácil perceber, portanto, que o regime das súmulas vinculantes pode funcionar como uma caixa de ressonância para essas delicadas questões, que, com as devidas adaptações, já eram enfrentadas na relação entre decisões judiciais versus sistema normativo.

Não temos resposta para questionamentos tão complexos, até porque refogem ao âmbito do presente trabalho. Nosso objetivo aqui é apenas deixar registrado que as súmulas vinculantes agravam toda essa problemática, que, se não encontravam uma solução fácil no regime até então vigente, certamente demandarão muito maior reflexão da comunidade jurídica para serem solucionadas.

20 Estamos com os realistas, que admitem que a vontade do juiz é influenciada por fatores externos, extralegais, vale dizer. Em contraposição a essa corrente, situam-se os dogmáticos, que não admitem qualquer possibilidade de ação criativa por parte dos juízes, os quais devem tirar da lei a solução de todos os litígios, ignorando quaisquer influências extraordinárias.

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3.5 EmpobrecimentodaArgumentaçãoJurídica

Possivelmente a maior crítica que se faz em relação à adoção das súmulas vinculantes reside no alegado empobrecimento da argumentação jurídica, impedindo que os juízes das instâncias inferiores e as partes que nelas atuam oxigenem o pensamento jurídico ao impossibilitar que novas teses se desenvolvam, atuando como uma espécie de cerceamento da capacidade criadora de todos quantos atuam nessas instâncias.

Alguns críticos falam até mesmo em engessamento da ciência jurídica – ou seja, haveria mais do que um simples empobrecimento argumentativo. Essa visão mais radical não tem como se sustentar nem mesmo sob uma análise perfunctória, daí porque pretendemos descartá-la de plano, com dois rápidos argumentos. Em primeiro lugar, temos que a EC 45/2004 prevê a possibilidade de revisão e cancelamento da súmula, e são vários os legitimados para apresentar tais propostas. Note-se que superar um entendimento por meio da revogação de um súmula é muito mais rápido, simples e eficaz do que superá-lo por meio do sistema tradicional de recursos em massa. Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Augusto Gonet Branco citam interessante observação nesse sentido do Min. Sepúlveda Pertence, do STF, em pronunciamento ocorrido na Câmara dos Deputados (2007, p. 915):

É muito mais fácil prestar atenção a um argumento novo, num mecanismo de revisão de súmula, do que num dos 5 ou 6 mil processos a respeito que subam num determinado ano ao Supremo Tribunal Federal, até porque a sentença que contém o argumento novo tem de ser sorteada.

É claro que argumentar contra uma súmula vinculante exigirá um esforço muito maior de tantos quanto postulem nesse sentido – o que demandará, certamente, uma sólida pesquisa em busca de aspectos ainda inexplorados ou maior esforço para demonstrar as alterações ocorridas na realidade econômica e social –, o que é muito altamente desejável, vale dizer. De qualquer forma, é inegável que o procedimento como um todo se torna mais racional.

Em segundo lugar, embora o STF seja o único a julgar tais propostas, a composição da Corte varia ao longo do tempo, de forma que seu pensamento se renova de tempos em tempos, ainda que essa renovação se dê em maior ou menor velocidade, a depender da idade dos Ministros. Como se sabe, os Ministros exercem cargo vitalício até os 70 anos, quando são aposentados compulsoriamente. Portanto, a própria renovação da Corte pode provocar uma reformulação no entendimento sumulado.

Cabe acrescentar também a importante observação de Márcia Regina Lusa Cadore, vazada nos seguintes termos (2007, p. 106):

Sem dúvida uma das mais importantes virtudes da jurisprudência sempre foi a capacidade de adaptar-se às mudanças socioeconômicas do país e esta constatação, decorrência mesmo das características da função jurisdicional, não parece ficar afastada pela atribuição de caráter vinculante às súmulas.

Descartada a hipótese mais drástica de engessamento do saber jurídico, agora podemos verificar se há o empobrecimento da ciência do direito. Ocorre que, ainda que no âmbito do Poder Judiciário a questão não mais seja formalmente discutida, existem muitos outros canais de exteriorização para uma nova argumentação, quais sejam as discussões doutrinárias que podem ocorrer em livros, revistas jurídicas, seminários, congressos, debates,

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aulas etc. Esse debate envolve também os juízes, os quais, ainda que se vejam obrigados a se curvar às súmulas vinculantes aprovadas pelo STF, podem manifestar irresignação em todos os veículos citados. Toda essa argumentação pode, ainda que de forma reflexa, acabar reverberando junto ao STF, até mesmo porque a doutrina é importante fonte de fundamentação das decisões dos magistrados, como se pode constatar facilmente em qualquer pesquisa jurisprudencial.

O que queremos demonstrar é que a necessária evolução do pensamento jurídico não pode ser utilizada como argumento para que se instale um quadro de permanente litigiosidade na sociedade, especialmente quando a nossa maior Corte toma um posicionamento qualificado e inconteste. Bastante lúcido o posicionamento de Roger Stiefelmann Leal, nesse sentido (2006, p. 111-2):

A instituição de canais de diálogo entre a jurisdição constitucional e os demais órgãos e poderes estatais, de modo a permitir a necessária oxigenação da jurisprudência constitucional, não é justificativa plausível para que se dê lugar a um estado de controvérsia política permanente, mitigando o prestígio da jurisdição constitucional e da Constituição, bem como a segurança e a estabilidade indispensáveis às relações interpessoais e, principalmente, interpoderes.

O debate jurídico não deve se dar às custas da morosidade judicial ou da segurança jurídica da sociedade, ou em sacrifício do princípio da isonomia. Processos judiciais não são os meios mais adequados para suportar grandes embates jurídicos – o ideal, na verdade, é que o Judiciário se preocupe com as questões de fato, não com questões de direito, que devem estar o mais clarificadas possível para as partes envolvidas.

3.6 OfensaàLiberdadedeConvicçãodosMagistrados

O princípio do livre convencimento dos magistrados norteia o nosso sistema jurídico. Dispõe o Código de Processo Civil que o juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento (art. 131). Temos, dessa forma, que o juiz tem ampla liberdade para decidir o litígio, dando a ele a solução que lhe pareça mais apropriada, segundo seu próprio convencimento, desde que dentro dos parâmetros legais e desde que o faça de forma fundamentada.

Contudo, como soe acontecer com todo princípio, a liberdade de convicção dos juízes não deve ser considerada de forma absoluta, devendo, ao contrário, ceder a outros princípios igualmente importantes, adotados pelo nosso ordenamento jurídico. A independência funcional que se atribui ao magistrado não deve ser compreendida como um fim em si mesma, mas como um instrumental para preservar a imparcialidade do julgador, um terceiro imparcial, tertius super partes. Luiz Flávio Gomes esclarece (1997, p. 42):

Concebemos a independência judicial desse modo, não como um fim em si mesmo, senão como um meio, um conceito instrumental em relação à imparcialidade, a serviço da ideia de que o juiz deve sempre atuar como terceiro na composição dos interesses em conflito, com a lei como ponto de referência indiscutível.

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Deve-se pesar se a possibilidade de conferir um tratamento mais isonômico aos jurisdicionados, aliada à maior previsibilidade dos julgados (maior segurança jurídica) e à agilização da atividade judicante, com o consequente barateamento da justiça, são valores que valem mais ou menos que a mitigação do princípio do livre convencimento dos magistrados.

Pensamos que os primeiros valores, somados, têm muito maior peso que a mitigação do último, até porque se trata justamente de uma mera mitigação (bastante aceitável, por sinal, eis que se trata de uma capitulação frente a uma Corte Suprema, em assuntos específicos), não de uma supressão. Vejamos o interessante posicionamento de Marcelo Lamy e Luiz Guilherme Arcaro Conci (2005, p.316):

A figura das súmulas vinculantes não retira, de nenhuma forma, a liberdade de julgar dos magistrados de instâncias inferiores. Estes continuarão a participar da interpretação da Constituição até o momento em que, em processo no qual a quaestio juris seja a mesma, crie o Supremo Tribunal Federal súmula sobre o assunto.

Não se pretende reduzir o magistrado a um mero autômato, simples aplicador do que diz a lei. O juiz é um agente político do Estado, não um mero burocrata. Mas as súmulas vinculantes dizem respeito a um pequeno universo de matérias, necessariamente de índole constitucional. É natural que se atribua a um órgão de cúpula o poder de dizer definitivamente a jurisdição constitucional. Nas demais questões, que aliás são maioria, os juízes seguem com o seu poder de livre convencimento intacto. Portanto, embora de fato os juízes tenham sofrido alguma restrição nesse poder, tal limitação é compatível com princípios maiores, de interesse de toda a sociedade, atinentes às vantagens trazidas pelas súmulas vinculantes, já relacionadas.

Vale finalizar esse tópico com a interessantíssima e algo filosófica lição de Calmon de Passos21:

Talvez só porque, infelizmente, no Brasil pós 88 se adquiriu a urticária do “autonomismo”, e todo mundo é comandante e ninguém é soldado, todo mundo é malho e ninguém é bigorna, talvez por isso se tenha tornando passional o problema da súmula vinculante. E isso eu percebi muito cedo quando, falando para juízes federais sobre a irrecusabilidade da força vinculante de algumas decisões de tribunais superiores, um deles, jovem, inteligente, vibrante, me interpelou: Prof. Calmon, onde fica minha liberdade de consciência e meu senso de justiça? Respondi-lhe, na oportunidade, o que aqui consigno. Esta mesma pergunta não seria formulável, validamente, pelos que, vencidos, sofrem os efeitos da decisão que lhes repugna o senso moral e lhes retira a liberdade? Por que os juízes poderiam nos torturar e estariam livres de serem torturados por um sistema jurídico capaz de oferecer alguma segurança jurídica aos jurisdicionados?

O princípio da segurança jurídica é um eficaz remédio contra o autoritarismo, e deve ser ministrado a todos: não apenas aos do povo, mas especialmente aos que governam o povo, e os magistrados devem ser os aplicadores imparciais desse remédio.

21 In Márcia Regina Lusa Cadore (207, p. 104).

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3.7 Exarcebamento do Poder Conferido ao Supremo Tribunal Federal

São muitas as vozes que se levantam contra um possível exarcebamento do poder conferido ao Supremo Tribunal Federal que se abre com a possibilidade de este órgão aprovar súmulas que vinculam todas as instâncias inferiores e toda a administração pública, de todas as esferas. Marcelo Lamy e Luiz Guilherme Arcaro Conci veem com naturalidade esse fenômeno, na medida em que tal exarcebamento constitui, na verdade, uma resposta à hipertrofia do Poder Executivo (2005, p.317):

Havendo um poder hipertrofiado, de duas uma: ou se diminui a gama de competências deste Poder, o que não se viu em toda a história republicana brasileira no que toca ao Poder Executivo, ou se aumenta a participação de outro Poder no sentido de lhe caber, efetivamente, cooperar, por um lado, mas também controlar os ímpetos inconstitucionais de qualquer ente estatal.

De qualquer forma, indubitável que o STF saiu com uma musculatura bastante fortalecida da EC 45/2004, a ponto de ser possível a este órgão expedir súmulas vinculantes que se mostrem inconstitucionais. Curiosa essa possibilidade: em função de o STF ser o último a dizer sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do sistema normativo, é claro que, afinal de contas, se torna impraticável contestar uma súmula aprovada por ele, ainda que a comunidade jurídica tenha a convicção de se tratar de uma afronta à Constituição.

O dilema se manifesta também quando o Supremo julga uma ação direta de constitucionalidade: ora, pode ser que a decisão do STF da mesma forma não agrade à maior parte da doutrina, de modo que se entenda que tenha havido violação ao espírito da Constituição mesmo no controle de constitucionalidade. O problema não encontra solução dentro do sistema judiciário, pois sempre será necessário que um órgão se pronuncie em última instância sobre a questão da constitucionalidade, sem possibilidade de recurso, ainda que haja consenso na comunidade de que a decisão tenha causado ofensa à Lei Maior.

A questão só pode ser resolvida com a participação do Poder Legislativo. O descontentamento causado com uma eventual inconstitucionalidade acerca de certa decisão do Supremo Tribunal Federal, que obrigatoriamente se baseia em uma opção política prévia manifestada em um diploma normativo, pode ser resolvido simplesmente pela supressão ou modificação desse diploma por parte do Poder Legislativo. Ora, sabe-se que esse poder abriga, simultaneamente, tanto o corpo de legislativos ordinários quanto o poder constituinte derivado, de modo que é possível aos legisladores alterar tanto o parâmetro de aferição da constitucionalidade – a Constituição – quanto o objeto do controle de constitucionalidade – a legislação infraconstitucional. Assim, os males ocasionados por um controle de constitucionalidade deficiente, que reverbere negativamente na comunidade jurídica, podem facilmente ser corrigidos pela atuação parlamentar.

O mesmo raciocínio se aplica às súmulas vinculantes. Ora, entendendo a comunidade jurídica ser uma súmula aprovada pelo STF inconstitucional, e não encontrando nessa Corte eco para uma sólida argumentação nesse sentido, é dado aos parlamentares alterar a legislação (inclusive em nível constitucional) em que se funda a súmula, de modo a torná-la insubsistente. A Lei 11.417/2006, que regulamenta o instituto, dispõe que revogada ou modificada a lei em que se fundou a edição de enunciado de súmula vinculante, o Supremo Tribunal Federal, de ofício ou por provocação, procederá à sua revisão ou cancelamento, conforme o caso (art. 5º). Resta saber se o Poder Legislativo se disporá a fazê-lo, mas esse

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já é outro problema – estamos nos atendo aqui à possibilidade de limitação do poder ora conferido ao Supremo Tribunal Federal, possível da forma exposta.

Então, temos o que se segue: o Supremo Tribunal Federal experimentou, de fato, um exarcebamento em seu poder, com a criação do instituto das súmulas vinculantes. Eventuais abusos no exercício desse poder podem, contudo, ser podados pela atuação do Poder Legislativo, na medida em que compete a este poder alterar o sistema normativo que dá sustentação às súmulas vinculantes.

3.8 Problemas com a Exegese de uma Nova Súmula

Já vimos que da decisão judicial ou do ato administrativo que contrariar enunciado de súmula vinculante, negar-lhe vigência ou aplicá-lo indevidamente caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal, sem prejuízo dos recursos ou outros meios admissíveis de impugnação (CF, art. 103-A, § 3º, c/c Lei 11.417/2006, art. 7º, caput). Ou seja, a reclamação será cabível para combater não apenas o desrespeito flagrante (contrariedade) ou velado (negativa de vigência) à súmula, mas também sua aplicação inadequada, hipótese que normalmente ocorrerá por problemas de interpretação. É dizer, “a contrariedade perante a súmula vinculante, de ato administrativo ou decisão judicial, poderá ser patente ou simplesmente um erro de interpretação da mesma”, lecionam Marcelo Lamy e Luiz Guilherme Arcaro Conci (2005, p. 312).

Contrariedades flagrantes e a negativa pura e simples de vigência são questões que se resolvem pela interposição de uma reclamação junto ao STF. Mas saber se o caso concreto se amolda à súmula vinculante é problema que provavelmente será fonte de inúmeras controvérsias. Uadi Lammêgo Bulos informa que, nos Estados Unidos, vigora o distinguishing, “instrumento que permite ao magistrado distinguir o caso concreto do precedente judicial, avaliando a pertinência de se aplicar, ou não, a exegese conferida pela Suprema Corte ao problema deduzido em juízo” (2007, p. 1.088). Essa prática deverá ser adotada no caso brasileiro, também. Para que se dê a desvinculação, ao menos um elemento fático relevante deve distinguir o caso concreto dos analisados no precedente. É claro que não é necessário que os fatos se repitam de forma idêntica para que haja a vinculação ao precedente, assim como certas diferenciações não essenciais devem ser relevadas.

René David explana bem a crucial importância que a técnica do distinguishing tem para o direito inglês (1997, p. 14):

A técnica das distinções é, no direito inglês, direito jurisprudencial, a técnica fundamental. É por ela que o direito inglês evolui, apesar da regra do precedente que, tal como é formulada hoje em dia, parece lhe conferir uma extrema rigidez. Para apreciar com realismo a situação, não esqueçamos que, logo após a codificação francesa, certos autores viram nessa codificação o perigo de um estancamento imposto à evolução de nosso direito. Doutrina e jurisprudência souberam evitar esse perigo, recorrendo a fórmulas variadas, flexíveis, de interpretação dos textos. Graças à técnica das distinções que lhes é própria, os juristas ingleses podem conviver coma regra do precedente rígida em tese.

A interpretação da súmula parece esconder os mesmos desafios que estamos habituados a enfrentar com a interpretação da norma. A atividade de interpretar a lei tem

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causado profunda reflexão e perplexidade nos pensadores modernos. Não é, por óbvio, nossa pretensão nos alongar nessa intrincada questão no presente trabalho. Contudo, pedimos licença para citar uma passagem de Dworkin pela qual temos especial predileção, por demonstrar o quão polêmica pode ser a atividade interpretativa (2003, p. 94):

Até aqui, minha exposição da interpretação foi subjetiva em um dos sentidos dessa palavra problemática. Descrevi como os intérpretes vêem a interpretação criativa, o que alguém deve pensar para aderir a uma interpretação e não a outra. Mas a atitude interpretativa que descrevi, a atitude que, em minha opinião, os intérpretes adotam, parece ser mais objetiva. Eles acham que as interpretações que adotam são melhores – e não apenas diferentes – daquelas que rejeitam. Essa atitude faz sentido? Quando duas pessoas divergem sobre a correta interpretação de alguma coisa – um poema, uma peça, uma prática social como a cortesia ou a justiça –, é razoável pensar que uma delas está certa e outra errada? Precisamos ser cautelosos ao distinguir essa questão de uma outra, diferente, que diz respeito à complexidade da interpretação. Parece dogmático, e em geral é um erro, supor que uma obra de arte complexa – Hamlet, por exemplo – é “sobre” uma certa coisa e mais nada, de tal modo que uma produção dessa peça seria a única correta, e qualquer outra produção que enfatizasse outro aspecto ou dimensão seria errada. Pretendo colocar uma questão sobre o desafio, não sobre a complexidade. Pode um ponto de vista interpretativo ser objetivamente melhor que outro quando são não apenas diferentes, pondo em relevo aspectos diferentes e complementares de uma obra complexa, mas contraditórios; quando o conteúdo de um inclui a afirmação de que o outro é errado?22

Voltando à questão nuclear referente à interpretação da súmula, entendemos que a principal tarefa é descobrir os critérios interpretativos que possam nortear essa missão. Marcelo Lamy e Luiz Guilherme Arcaro Conci entendem que é nos debates que informam a edição de uma súmula que encontraremos os parâmetros para essa atividade interpretativa (2005, p. 308):

A súmula, como consolidação de uma jurisprudência dominante, não se desatrela dos debates que a originaram. Aqui nos deparamos com aspecto diverso dos dispositivos legais ou constitucionais, em que a evolução hermenêutica diferencia a intenção da lei da intenção do legislador. A intenção da súmula e a intenção dos julgadores necessariamente se referenciam, são experiências reversíveis, uma reverte na outra.

Dizer vinculação aos debates que originaram a súmula não quer dizer vinculação com os precedentes judiciais que levaram à súmula. A maioria dos autores entende que a vinculação deve se dar com os precedentes judiciais, não com os debates que deram origem ao entendimento sumulado. Mas antes de dar voz a esses autores, vale a pena citar a opinião isolada de André Ramos Tavares, para quem as súmulas podem ser interpretadas em desconformidade com seus precedentes judiciais, uma vez que a vinculação se restringiria unicamente ao enunciado da súmula (2008, p. 389):

22 Mais adiante, Dworkin apresenta toda uma argumentação, a despeito dos céticos, “sobre aquilo que torna uma in-terpretação de uma prática social melhor que outra, e sobre a exposição do direito que oferece a interpretação mais satisfatória dessa prática complexa e crucial” (2003, p. 107).

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O modelo introduzido no Brasil difere – como não poderia deixar de ser – do clássico stare decisis, pois a súmula não incorpora os casos concretos que formaram a ‘base’ para sua edição, e sendo a vinculação apenas ao enunciado desta, os magistra-dos terão de proceder a uma operação mental de verificação do cabimento da súmula ao caso concreto que tenham perante si, bem como as normas aplicáveis a ele.

No modelo brasileiro, a súmula vinculante procura transpor o mundo fático, o universo da experimentação concreta, para o mundo do dever-ser, para o abstrato. Assim, as particularidades que marcam os diversos casos concretos não têm outro caminho que não o sacrifício em prol da generalização. Isso tem um risco. É que os precedentes permanecem, para eventuais consultas, mas o paradoxal é que se verifica, frequentemente, que a aplicação das súmulas – e falamos aqui das persuasivas – muitas vezes se dá em casos concretos que gradativamente se vão afastando dos precedentes que a deflagraram.

Roger Stiefelmann Leal entende que a solução para o paradoxo apontado é que os fundamentos determinantes das súmulas sejam, necessariamente, os fundamentos determinantes dos precedentes que lhe deram origem (2006, p. 176):

Prefere-se, assim, via interpretativa que privilegie a unidade conceitual do instituto. Nesse sentido, a atribuição de efeito vinculante às súmulas, a exemplo do que sucede em relação às decisões do Supremo Tribunal Federal em controle abstrato de normas, tem como resultado prático a imposição de seus fundamentos determinantes aos órgãos e poderes especificados na norma constitucional. A ratio decidendi do verbete sumular – objeto da vinculação – alcança, na hipótese, os princípios e interpretações asseverados na motivação dos reiterados julgados que embasaram a sua edição. Em outras palavras: os fundamentos determinantes das súmulas são os fundamentos determinantes dos precedentes que lhe deram origem.

Tal solução, além de preservar íntegros os elementos concei-tuais do instituto, minimiza o perigo das imperfeições que, não raro, recaem sobre a simplificação de complexas questões jurí-dicas em verbetes condensadores da jurisprudência dominante. Desse modo, cumprirá aos destinatários do efeito vinculante ob-servar não só o enunciado da súmula, mas também as condi-ções e circunstâncias em que tem aplicação.

Qualquer decisão judicial pode ser dividida em duas partes: a) a ratio decidendi, ou razão de decidir, que são os fundamentos determinantes e indispensáveis para a decisão proferida – também chamada de holding nos Estados Unidos; e b) a obter dicta, a parte da decisão considerada acessória, os argumentos utilizados para fortalecer a linha principal de argumentação, não sendo imprescindíveis para o comando da decisão. Roger Stiefelmann Leal explica bem essa distinção (2006, p. 168):

Em tese, os fundamentos determinantes limitam-se às razões que são relevantes para a decisão proferida, isto é, aos motivos sem os quais o decisum constante da parte dispositiva não teria sentido ou consistência. Os demais comentários e afirmações que integrem a motivação da decisão, mas não se enquadrem na definição de ratio decidendi, designam-se por obiter dictum.

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Descobrir quais considerações contidas na motivação da decisão proferida se enquadram na categoria de ratio decidendi e quais são obiter dictum constitui uma das principais dificuldades enfrentadas na aplicação prática do efeito vinculante, especialmente no Brasil. O processo decisório do Supremo Tribunal Federal possibilita que cada Ministro, em seu voto, levante questões particulares sobre a questão, ilumine aspectos sequer abordados, comente decisões similares – enfim, opine sem propriamente divergir. Nos Estados Unidos, diferentemente, há, em regra, uma única manifestação da Suprema Corte. Roger Stiefelmann Leal ilustra o que estamos tentando demonstrar (2006, p. 190):

Imagine-se, a título hipotético, que determinado diploma legal foi julgado inconstitucional por seis ministros da Corte, sendo que três deles se manifestaram pela inconstitucionalidade formal do instrumento, enquanto outros três rejeitaram o argumento da inconstitucionalidade formal e limitaram-se a julgá-lo inconstitucional em face da incompetência legislativa do respectivo ente federativo. A definição sobre qual fundamentação magistrados e autoridades administrativas deveriam observar seria tarefa por demais intrincada.

Descobrir a ratio decidendi de uma decisão judicial pode portanto, por vezes, tornar-se uma tarefa complexa. Em maior ou menor escala, como já dito acima, o problema pode ser percebido em qualquer sistema jurídico que faça uso da doutrina dos binding precedents, conforme aponta Maria Regina Lusa Cadore (2007, p. 61):

A ratio decidendi constitui a essência da tese jurídica suficiente para decidir o caso concreto. É essa regra de direito que vincula os julgamentos futuros. Mas nem sempre é fácil identificá-la, sendo controverso o melhor método a tanto. Um dado, contudo, é incontroverso: a ratio decidendi deve consistir num elemento determinante para a decisão, a matriz de sua fundamentação. Não se trata de confundi-la com as “razões de decidir”, fundadas, de regra, em elementos de fato e de direito. A ratio identificada pelos ingleses não se constitui apenas no elemento de direito ou no elemento de fato. Trata-se de resultado de um e de outro, em uma complexa interação entre os princípios de direito e aspectos da controvérsia que os juízes qualificam como essencial. Contudo, nem o parlamento e nem as cortes superiores inglesas definiram seus elementos essenciais. A ratio decidendi não é uma regra verbal fixa, pelo que os juízes não estão obrigados a utilizar os mesmos vocábulos utilizados no precedente. A ratio pode ser identificada na regra jurídica posta ao final da sentença, na justificação expressa na decisão, no princípio jurídico presente no processo de justificação que cabe ao juiz ou no conceito normativo no qual se sustenta a sentença.

De qualquer forma, fácil ver que a problemática da melhor exegese aplicável a determinada súmula pode acabar simplesmente deslocando o foco de um problema que, em princípio, a súmula teria a finalidade de solucionar. No dizer de Luiz Eduardo de Lacerda Abreu (2006, p. 159):

No campo jurídico, a divergência é incentivada e acalentada. Percebe-se um grande consenso a respeito das suas categorias doutrinárias mais centrais; e um dissenso generalizado sobre a aplicação delas em questões mais específicas. A hierarquia institucionalizada dos nossos tribunais revê e, portanto, controla a aplicação da lei nos casos particulares e, no limite,

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decide a divergência ou, utilizando a expressão do próprio meio jurídico, ‘pacifica a questão’. Mas isso acontece em casos muitos particulares e, mesmo nestes, muitas vezes a divergência apenas muda de lugar, como, por exemplo, se a Súmula Vinculante se aplica ou não naquele caso específico.

Inegável, portanto, que o novo instituto pode trazer problemas interpretativos. Os juízes e tribunais deverão tomar o máximo cuidado na aplicação das súmulas vinculantes ao caso concreto, para não acabar inundando o STF de reclamações advindas de todo o País. De qualquer forma, entendemos que eventuais problemas interpretativos podem ser compensados em larga escala pelos benefícios trazidos pelas súmulas vinculantes e já discutidos nos tópicos anteriores, em uma excelente relação custo-benefício.

3.9 OfensaaoPrincípiodoDuploGraudeJurisdição

Uma das críticas que se faz às súmulas vinculantes refere-se à possível ofensa ao duplo grau de jurisdição, o qual, embora não seja uma garantia absoluta, como já é pacífico na doutrina, deve ser observado na maior parte das vezes.

Embora seja cediço que o duplo grau de constitucional não seja uma garantia absoluta, é indubitável que a maioria dos processos submetidos ao Poder Judiciário submete-se a um duplo grau de jurisdição necessário, inafastável. Basta consultar a Constituição Federal e constatar as inúmeras competências recursais previstas para os diversos tribunais. Impedir que um processo seja reapreciado pela instância superior, quando há expressa previsão constitucional nesse sentido, é, por óbvio, flagrantemente inconstitucional.

O que dizer, então, das súmulas vinculantes e das súmulas impeditivas de recurso? Vamos a estas, primeiramente. A Lei 10.352/2001 modificou o Código de Processo Civil para dispor que não se aplica o duplo grau de jurisdição quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário ou em súmula do Supremo Tribunal Federal ou em súmula do Tribunal Superior competente (art. 475, § 3º). A Lei 11.276/2006, por sua vez, introduziu regra segundo a qual o juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal (art. 518, § 1º). Em ambos os casos, temos que as súmulas do STJ e do STF são tidas como impeditivas de recurso, paralisando o processo na primeira instância, sem possibilidade de que se recorra à instância superior. Seriam tais dispositivos inconstitucionais?

Acreditamos que sim, pois não poderia a legislação infraconstitucional paralisar uma possibilidade recursal prevista expressamente na Constituição Federal. Por exemplo, temos que compete aos Tribunais Regionais Federais julgar, em grau de recurso, as causas decididas pelos juízes federais e estaduais no exercício da competência federal da área de sua jurisdição (CF, art. 108, II). Ora, sabemos que as súmulas tradicionais não vinculam quem quer que seja, podendo as instâncias inferiores julgar de forma diversa. Assim, pode ser interessante para a parte inconformada recorrer à instância superior, mesmo sabendo que perderá caso a lide seja, posteriormente, objeto de recurso especial ou extraordinário. Esse interesse pode residir em diversos fatores: a) possibilidade de desencorajamento da parte adversa em seguir na disputa, podendo mesmo esta não vir a interpor os recursos excepcionais citados; b) possibilidade de a parte adversa incorrer em desídia, sendo vítima de preclusão do direito de recorrer; c) possibilidade de ganhar tempo; d) possibilidade de que as instâncias especiais venham a mudar o entendimento. Assim, brecar uma possibilidade

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recursal constitucionalmente assegurada com base em uma lei infraconstitucional parece-nos inconstitucional.

Tudo muda quando se fala em súmulas vinculantes. Entendemos que, nesse caso, não se pode vislumbrar qualquer inconstitucionalidade. Primeiro, porque estamos falando de um instrumento com expressa previsão constitucional, que se harmoniza à perfeição com o sistema recursal previsto pelo constituinte originário. Este pensou o sistema judiciário como um todo harmônico, colocando no ápice o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição Federal. Assim, nada mais natural que, posteriormente, por meio de aperfeiçoamentos a esse sistema, viesse a se inserir o regime das súmulas vinculantes, de forma a conferir maior coerência ao todo.

Dessa forma, embora qualquer emenda constitucional possa estar eivada de inconstitucionalidade material ou formal, não é este, em absoluto, o caso das súmulas vinculantes. É incorreta a visão de que a parte não teve direito ao duplo grau de jurisdição – ao contrário, a questão foi submetida à instância máxima do Poder Judiciário, tendo inclusive merecido luzes especiais por parte de nossa Corte maior. E, diferentemente do que acontece com as súmulas impeditivas de recurso, recebeu uma chancela especial de caráter vinculativo, em um ambiente com inquestionável guarida constitucional. Não há, portanto, na verdade, malferimento do duplo grau de jurisdição no caso das súmulas vinculantes.

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CAPÍTULO 4 A EVOLUÇÃO DO COMPORTAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL

FEDERAL NA APROVAÇÃO DAS SÚMULAS VINCULANTES

Pretendemos, neste capítulo, analisar os debates que ocorreram no STF quando da aprovação de algumas das súmulas vinculantes. A ideia é estudar a aprovação de súmulas salteadas, de modo a perceber a evolução do comportamento do Supremo no curto espaço de tempo em que o instituto começou a vigorar no País. Assim, definimos como critério analisar a primeira súmula de cada grupo de entendimentos aprovados. É que as súmulas foram analisadas aos blocos pelo STF: súmulas 1 a 3, depois 4 a 6, em seguida 7 a 10, depois 11 a 13 e, finalmente, já observando uma nova sistemática, a súmula 14. Pretendemos, portanto, verificar como se deram os debates das seguintes súmulas: 1, 4, 7, 11 e 14.

A primeira súmula vinculante foi discutida e aprovada na sessão plenária de 30 de maio de 2007. A Min. Ellen Gracie assim iniciou os trabalhos:

DEBATES E APROVAÇÃO DE ENUNCIADOS DE SÚMULAS VINCULANTES PROFERIDOS NA SESSÃO PLENÁRIA DE 30 DE MAIO DE 2007, QUE INTEGRAM A ATA DE JULGAMENTOS DA 15ª (DÉCIMA QUINTA) SESSÃO ORDINÁRIA PUBLICADA NO DIÁRIO DA JUSTIÇA DE 14 DE JUNHO DE 2007.

A SRA. MINISTRA ELLEN GRACIE (PRESIDENTE E RELATORA) – Senhores Ministros, na seqüência da nossa sessão, vamos colocar em deliberação plenária as propostas, que temos sobre a mesa, de edição de súmulas vinculantes. Estas matérias, como bem recordam, tiveram uma tramitação bastante alongada na Casa, uma consulta informal em que todos os Colegas se manifestaram. Eu trago, portanto, à apreciação, cabendo-me fazer o relatório muito simplificado da matéria, que já é do conhecimento de todos.

Em seguida, passou-se à discussão e aprovação da Súmula 1. A Ministra relatora, Ellen Gracie, esclareceu, inicialmente, que o procedimento tivera origem em recurso extraordinário julgado em 30/03/2005 e, que, naquela ocasião, já havia propugnado por edição de orientação vinculante sobre o tema, em função do efeito multiplicador da matéria (correção das contas vinculadas do FGTS). A questão foi autuada e submetida à Comissão de Jurisprudência, tendo sido submetida à análise de outros Ministros. Foram então citados outros recursos extraordinários de igual teor. Nos debates, pode-se verificar que os Ministros apenas sugeriram pequenas alterações para alterar a redação da súmula (o inteiro teor dos debates desta e das demais súmulas comentadas neste trabalho pode ser acessado no site do próprio Supremo). Mas não se pode perder de vista a fala inicial da Min. Ellen Gracie: “Estas matérias, como bem recordam, tiveram uma tramitação bastante alongada na Casa, uma consulta informal em que todos os Colegas se manifestaram”. Pode-se abstrair daí que trata-se de uma decisão longamente debatida e amadurecida pelos Ministros.

O procedimento adotado na sessão seguinte, realizada quase 1 ano depois, o qual aprovou mais 3 súmulas (as de nº 4 a 6), foi muito semelhante. Analisando os debates da Súmula vinculante 4, cabe destacar o pronunciamento do procurador-geral da República, no sentido de que o texto em debate conteria exatamente o que já decidira o STF, na precisa abrangência dos casos submetidos àquele Tribunal, colocando-se, portanto, o Ministério

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Público de pleno acordo com a proposta. Isso demonstra que a matéria que estava sendo sumulada era oriunda de reiteradas decisões, conforme exige o texto constitucional. O Min. Marco Aurélio chega a brincar com o grau de consenso atingido pelos Ministros, chamando-o de “consenso unânime”, cunhando de forma proposital um pleonasmo. Registre-se que o texto aprovado foi exatamente aquele com o qual se iniciaram os debates. Cabe também registro a fala do Min. Gilmar Mendes no sentido de que a súmula vinculante repercutiria sobre 580 processos no âmbito do STF e sobre 2.405 processos no âmbito do TST, segundo dados preliminares. Abaixo, alguns breves excertos dos debates referentes a essa súmula:

DEBATES PARA A APROVAÇÃO DA SÚMULA VINCULANTE Nº4,DOSUPREMOTRIBUNALFEDERAL,QUEINTEGRAMAATADA10ª(DÉCIMA)SESSÃOORDINÁRIA,DOPLENÁRIO,REALIZADA EM 30 DE ABRIL DE 2008.

O SR. MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) – Senhores Ministros, creio que o Ministro Cezar Peluso chegou a um texto quanto à formula da súmula referente à questão do salário mínimo usado como indexador. Lerei o texto e gostaria de ouvir a manifestação do Senhor Procurador-Geral da República: Salvos os casos previstos na Constituição, o salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado nem ser substituído por decisão judicial. Essa é a redação básica proposta.

(...)

O SR. MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) – Ouço o eminente Procurador-Geral da República.

O DR. ANTÔNIO FERNANDO BARROS E SILVA DE SOUZA (PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA) - Senhor Presidente, Senhores Ministros, o texto proposto que acaba de ser lido pelo Presidente contém exatamente o que decidiu esta Corte e na precisa abrangência dos casos que têm sido submetidos a este Tribunal, daí por que o Ministério Público está de pleno acordo com a proposta da súmula vinculante.

(...)

O SR. MINISTRO MARCO AURÉLIO – Uma observação, Senhor Presidente: tivemos discussões sobre as matérias trazidas pelos dois Relatores, a Ministra Cármen Lúcia e o Ministro Ricardo Lewandowski, e chegamos a um consenso que, talvez, na visão do nosso saudoso Nelson Rodrigues, poderia parecer não muito perfeito, um consenso unânime sobre os temas versados. E friso que esse é o real papel do Supremo Tribunal Federal, ou seja, de definir o alcance do direito posto, considerados os ditames constitucionais. Daí apostar muito no instituto da repercussão geral. No meu gabinete, darei preferência absoluta aos processos que conduzam matéria de repercussão.

O SR. MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) – Senhores Ministros, registro que esta decisão repercute sobre quinhentos e oitenta processos no Supremo Tribunal Federal e, no âmbito do TST, pelas informações provisórias, algo em torno de dois mil, quatrocentos e

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cinco processos. Vejam, portanto, o alcance dessa decisão e desse novo procedimento que estamos a declarar.

O SR. MINISTRO MARCO AURÉLIO – E levará o Tribunal Superior do Trabalho, meu ex-Tribunal, à revisão de um verbete de súmula que admite o cálculo a partir do salário mínimo.

O SR. MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) – Creio que tivemos, realmente, hoje, um dia histórico e, na próxima sessão, poderemos nos debruçar, então, sobre o verbete. O Ministro Ricardo Lewandowski já fica incumbido de propor uma redação.

Os debates sobre a Súmula vinculante 7, realizados pouco mais de 1 mês depois, trouxeram o primeiro caso de conversão de uma súmula tradicional (Súmula 648) em súmula com efeito vinculante. A proposta encontrou a resistência do Min. Marco Aurélio, em virtude de a referida súmula tratar de matéria já residual no cenário jurídico – a superada inaplicabilidade da taxa de juros de 12% ao ano prevista pelo constituinte originário (CF, art. 192, em sua redação original). O Ministro entendeu que utilizar o instrumento da súmula vinculante em questão de tão pouca relevância seria “baratear o verbete vinculante”. De fato, fica difícil entender o que teria levado o STF a dar efeito vinculante a questão já tão remansosa. Provavelmente alguma atividade em sentido contrário da magistratura de primeira instância.

Outra questão que chama a atenção é o novo posicionamento do Min. Marco Aurélio, que seria adotado reiteradamente por ele daí por diante: o Ministro passou a entender que, em vista de encarar a responsabilidade de engessar cada tema com maior segurança, deveria haver a submissão prévia dos futuros verbetes a estudos mais aprofundados por parte da Comissão de Jurisprudência do STF23. O Min. Ricardo Lewandowski contudo, conseguiu demover os demais integrantes do Plenário dessa ideia, sob o argumento de que os integrantes da Comissão de Jurisprudência, composta, por óbvio, pelos próprios Ministros do STF, estavam todos no Plenário, e que constituiria medida de economia processual avaliar a questão desde logo. Não considerou, contudo, que as comissões poderiam oportunizar debates mais aprofundados e refletidos, ao invés do assunto ser abordado por apenas um relator. Vejamos os principais momentos dos debates que levaram à nova súmula:

DEBATESQUEINTEGRAMAATADA15ª(DÉCIMAQUINTA)SESSÃOORDINÁRIA,DOPLENÁRIO,REALIZADAEM11DEJUNHO DE 2008. DEBATES PARA A APROVAÇÃO DA SÚMULA VINCULANTE Nº 7.

O SR. MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) – Senhores Ministros, talvez em relação a esses dois casos, a Súmula nº 648, e em relação também à reserva de Plenário, nós pudéssemos elaborar uma Súmula, ouvido o Procurador-Geral, e depois poderíamos chegar a um texto, porque parece que são matérias pacíficas. Em relação à Súmula nº 648, claro, já se trata de entendimento sumulado. (...)

23 Posteriormente, a Resolução 388, de 05/12/2008, passou a prever que, recebendo a Secretaria Judiciária proposta de edição, revisão ou cancelamento de súmula, vinculante ou não, deverá aquela registrá-la e autuá-la, publicando edital no sítio do Tribunal e no Diário da Justiça Eletrônico, para ciência e manifestação de interessados no prazo de 5 dias, encaminhando a seguir os autos à Comissão de Jurisprudência, para apreciação dos integrantes, no prazo sucessivo de 5 dias, quanto à adequação formal da proposta (art. 1º).

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O SR. MINISTRO MENEZES DIREITO – Com relação à 648 é só dar efeito vinculante.

(...)O SR. MINISTRO MARCO AURÉLIO – Senhor Presidente, temos na Corte comissões. E há a Comissão de Jurisprudência. Devemos marchar, porque estaremos praticamente – perdoem-me o vocábulo – engessando o tema –, com segurança. O que proponho é que se submeta à Comissão a edição, em si, de verbetes, que passarão a integrar a súmula da jurisprudência do Tribunal. E tenho certeza que a Comissão trará o teor do verbete, elaborado com o devido cuidado, em um espaço de tempo razoável.

O SR. MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI – Senhor Presidente, eu me permitiria observar o seguinte: as últimas súmulas vinculantes que ditamos foram propostas e ditadas aqui, em Plenário, e aprovadas de viva voz pelo eminente Procurador da República. A meu ver, data venia, seria uma medida até de economia processual, no sentido amplo da palavra, que nós já procedêssemos imediatamente a essa aprovação. Até porque os integrantes da Comissão de Jurisprudência – e hoje tive a honra de ser cientificado por Vossa Excelência que eu integro essa Comissão – estão todos aqui e que, se tiverem alguma objeção, já se manifestarão desde logo. Portanto, eu encaminharia, com todo o respeito, uma proposta no sentido de que nós já, desde logo, dentro da medida do possível, propuséssemos a redação desta súmula.

A SRA. MINISTRA ELLEN GRACIE – Senhor Presidente, creio que é oportuna a proposta do Ministro Ricardo Lewandowski com relação à súmula que já temos, e que apenas transformaríamos, se assim o Procurador-Geral desde logo se manifestar, numa vinculante. (...)

O SR. MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) – Senhores Ministros, vamos ouvir o Procurador-Geral.

O DR. ANTÔNIO FERNANDO BARROS E SILVA DE SOUZA (PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA) – Estou de pleno acordo. O tema já é objeto de súmula e nada impede que se dê efeito vinculante a essa súmula. E tem a concordância de todos os Ministros.

(...)

O SR. MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) – Portanto, esta é a 648 com a mesma redação – a não ser que haja proposta em outro sentido. Passaria a ser a súmula de nº 7.

(...)

O SR. MINISTRO MARCO AURÉLIO – Senhor Presidente, considerada a razão de ser do verbete vinculante, peço vênia aos colegas para não transformar o hoje verbete 648 da Súmula em verbete vinculante. Por que peço vênia? Porque diz respeito à interpretação de um artigo que não figura mais no cenário jurídico. Ou seja, o artigo 192 da Constituição Federal no que impunha a taxa de 12% quanto aos juros reais foi alvo de uma emenda constitucional, a Emenda nº 40, que suprimiu essa disposição. Indaga-

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se: qual seria o objetivo de transformar-se esse verbete em vinculante, se apenas temos – se é que temos – casos residuais? Peço vênia para não baratear o verbete vinculante e, portanto, votar contra a transformação.

O SR. MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) – Ouço os demais colegas. Portanto, encaminho todos os votos na linha da conversão da Súmula 648 em súmula vinculante. Desse modo, ela assumirá o nº 7. Está aprovada a Súmula Vinculante nº 7, com o teor da antiga Súmula 648, que não era vinculante, mas uma súmula da jurisprudência.

Os debates que culminaram com a Súmula vinculante 11 foram bastante extensos. Como pode-se verificar pela leitura do início e do fim do debate, a redação proposta pelo Min. Marco Aurélio foi completamente modificada, em prol de uma redação a qual o Min. Gilmar Mendes se referiu como “verdadeiramente colegiada”. Os debates não se concentraram apenas em questões de estilo, mas detiveram-se especialmente em se achar o termo mais apropriado para retratar com fidelidade as diversas figuras jurídicas abordadas na súmula. De se notar que, a partir desta súmula, em função de proposta do Min. Menezes Direito, o STF passou a reconhecer que as súmulas vinculantes seriam dotadas também dos efeitos característicos das súmulas impeditivas de recurso. Isso significa que inclusive os agravos contra os despachos denegatórios de recursos, quando tais denegações se basearem em entendimento vinculante, deixarão de ser apreciados. Cabe registrar que a proposta do Min. Menezes Direito não recebeu qualquer comentário por parte dos demais Ministros, exceto quanto ao Min. Gilmar Mendes, que a ela se referiu como uma importante ressalva:

DEBATES QUE INTEGRAM A ATA DA 20ª (VIGÉSIMA)SESSÃO ORDINÁRIA, DO PLENÁRIO, REALIZADA EM 13DE AGOSTO DE 2008. DEBATES E APROVAÇÃO DA SÚMULA VINCULANTE Nº 11.

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) – Ministro Marco Aurélio, ficamos, a partir da sessão passada, de discutir o tema do novo verbete vinculante sobre o uso de algemas.

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Senhor Presidente, os Colegas estão lembrados que julgamos, na última assentada, o Habeas Corpus nº 91.952, e o Plenário, sem divergência, teve a oportunidade de assentar, naquele julgamento, na análise da matéria, que a utilização de algemas é sempre excepcional, sendo o último recurso diante da possibilidade real de fuga e da periculosidade do agente. No habeas a que me referi, o pronunciamento do Tribunal foi adiante, alcançando o afastamento do cenário jurídico de um decreto condenatório, de uma decisão do Tribunal do Júri que implicara a condenação do acusado. Encaminhei a Vossa Excelência um simples esboço de verbete vinculante para constar da súmula da jurisprudência predominante do Supremo. Evidentemente, esse esboço há de contar com a colaboração dos Colegas no sentido de aperfeiçoá-lo, de tornar realmente extremo de dúvidas que a utilização de algemas é exceção. (...) E, então, esbocei a seguinte proposta de verbete: Preso. Uso de algemas. A utilização de algemas, sempre excepcional, pressupõe o real risco de fuga ou a periculosidade do conduzido, cabendo evitá-la ante a dignidade do cidadão.É o esboço que está em Mesa para apreciação pelo

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Colegiado. Apenas consigno que busquei ser, ao máximo, fiel à dicção, à doutrina da própria Corte.

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – Senhor Presidente, Vossa Excelência e o Ministro-Relator me permitem? Também concordo plenamente com todas as ponderações, o raciocínio e os argumentos do eminente Relator, mas está parecendo-me que, talvez, a Corte devesse ser um pouco mais explícita. Proponho outra redação: Só é lícito o uso de algemas – Ministro Eros Grau, não estou pondo na negativa, só estou começando com a expressão “é lícito”. Não estou dizendo que é ilícito, mas que Só é lícito ... em caso de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia por parte do custodiado. Parece-me que, assim, cobriríamos todas as hipóteses possíveis de necessidade, como diz o eminente Ministro-Relator, “do uso excepcional das algemas”.

(...)

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO MENEZES DIREITO - Ministro Celso, Vossa Excelência me permite? Tenho a sensação de que o Ministro Marco Aurélio pôs a questão com absoluta correção, como de hábito, mostrando a importância da decisão do Supremo. Pouca gente se lembra, nessas horas, de decisões similares em países que têm estratificada a sua Corte Suprema, como foi o Case Miranda, nos Estados Unidos, que anulou todo um processo exclusivamente porque faltou a identificação explícita dos direitos do réu quanto à sua defesa. Penso que a nossa Corte Suprema, concretamente, deu um passo extremamente avantajado quando reconheceu essa excepcionalidade, como disse o Ministro Marco Aurélio, do uso de algemas. Mas nós precisamos talvez aqui deixar o subterfúgio. O que estarrece é que realmente, diante de uma decisão tomada à unanimidade da Corte Suprema do país, um delegado da Polícia Federal, pura e simplesmente, desqualifique essa decisão do Supremo, entendendo que é normal o uso de algemas, que depende do uso de algemas em uma situação de fato.

(...)

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO - Entendo também que a proposta do Ministro Cezar Peluso tem o mérito de obrigar que juiz, que determine o uso das algemas em qualquer dos presos, fundamente a sua decisão, fora do flagrante, portanto, para assegurar a ordem de uma audiência, ainda que processada perante o Tribunal do Júri. E, para concluir, Ministro Cezar Peluso, eu sugiro, apenas, que devamos substituir “custodiado” por “preso”, porque a Constituição menciona preso em diversas passagens, não usa “custodiado”, “preso”, só isso.

(...)

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – É na mão deles que está o cumprimento de uma súmula que resguarda normas de caráter constitucional. De modo que, Senhor Presidente, também estou de acordo com os adendos e faço, finalmente, a seguinte proposta de nova redação, em que incluo a sugestão da Ministra Ellen

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Gracie, para deixar peremptória a hipótese de resistência... (...) Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia por parte do preso, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente e da autoridade, bem como de nulidade da prisão ou do ato processual.

(...)

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO - Senhor Presidente, o teor, em si, é extraído do ordenamento jurídico. Apenas estava conversando com o Ministro Peluso sobre o afastamento de um possível pretexto da autoridade policial para pôr as algemas – preservar a integridade física – o que é excepcionalíssimo – do próprio custodiado, do próprio preso, porque, nesse campo, o subjetivismo é que vai grassar, e continuaremos tendo a generalização do uso das algemas. Não sei se deixaríamos, porque Vossa Excelência, Ministro Cezar Peluso, se refere à integridade...

(...)

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO - Vamos ouvir o Procurador-Geral, então?

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) - Primeiro, vamos ter o texto digitado e, depois, vamos ouvi-lo. Primeiramente vamos chegar ao texto básico. Portanto, essa é a deliberação prévia, e prosseguiremos em seguida.

(...)

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) - Agora, Senhores Ministros, eu proporia que nós retomássemos, então, a discussão a partir dessa nova proposta, a questão das algemas, a partir dessa nova proposta submetida pelo Ministro Peluso. Diz o texto: Só é lícito o uso de algemas em caso devidamente justificado por escrito de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente da autoridade, bem como de nulidade da prisão ou do ato processual. Esta é a proposta.

(...)

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO MENEZES DIREITO – Ministro Celso de Mello, aproveitando a oportunidade, não sei se é oportuno ou não, o Ministro Presidente me corrigirá certamente, Vossa Excelência fez referência ao efeito vinculante. Creio oportuno, até, compreendermos que as súmulas vinculantes, de uma maneira geral, abrangem também o efeito impeditivo de recurso, porque ela é o mais abrangendo o menos. Isso alcançaria até os recursos de agravo para evitar que subisse quando houvesse a súmula vinculante. É importante deixar claro porque as pessoas podem dar essa interpretação equívoca e, assim, paramos lá embaixo os recursos. Não há sentido termos uma súmula de efeito vinculante e deixarmos os recursos continuarem a subir, inclusive os

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agravos contra os despachos denegatórios de recursos. Fica bem assentada essa formulação.

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) – É importante essa ressalva.

(...)

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) - Então é este o texto: Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado. É isto? Portanto, posso considerar aprovada com este teor, Senhores Ministros. Será a Súmula Vinculante 11, do Supremo Tribunal Federal. Farei constar da ata as observações do Ministro Carlos Alberto Direito, ressaltando que passamos a reconhecer que as súmulas vinculantes agora passam a ser dotadas também, ou passamos a reconhecer, das características das súmulas impeditivas de recurso.

A partir da Súmula 14, a forma de aprovação das súmulas vinculantes mudou significativamente, assumindo o mesmo formato referente aos demais processos submetidos ao Supremo: ementa, acórdão, relatório e voto de cada Ministro. É que a partir de 05/12/2008 passou a vigorar a Resolução 388 do STF, regulamentando a tramitação das propostas de súmulas vinculantes – PSV. A Súmula vinculante 14 originou-se, portanto, da primeira dessas PSVs, que tratava de um pedido da Ordem dos Advogados do Brasil quanto à possibilidade de exame, por parte do representante legal do investigado, dos autos do inquérito policial sigiloso (PSV 1, portanto). Com a nova sistemática, os votos e intervenções dos Ministros passam a ser mais consistentes, obedecendo a uma ritualística maior, com cada Ministro se manifestando a seu tempo, de acordo com uma ordem pré-estabelecida. A impressão que se tem é que o debate ganhou em profundidade, sendo o tema discutido à exaustão – só para se ter uma ideia, o acórdão em que se consignou o processo de aprovação da súmula se espalha por 82 páginas. Só o voto do Min. Celso de Mello tomou 19 páginas.

Nosso objetivo nesta seção foi o de retratar, ainda que de forma um tanto quanto perfunctória, como evoluiu a sistemática dos debates que envolvem a aprovação de uma súmula vinculante. A impressão que fica é que o Supremo Tribunal Federal, depois de ter passado uma certa ideia de pressa e precipitação no que se refere a tais debates, impressão essa captada e discutida no meio jurídico, se deu conta do risco de desmoralizar o instituto das súmulas vinculantes e aperfeiçoou a sistemática para a aprovação de tais súmulas. Nota-se essa tendência já a partir da edição da Súmula vinculante 11, quando ainda inexiste o rito específico para o procedimento. Ora, se é comum que certos processos que afetam apenas o caso concreto se alonguem em intensos debates, no âmbito do STF, nada mais lógico que a súmulas vinculantes, pela grande repercussão que produzem na sociedade, se submetam a um ritual mais elaborado, ou no mínimo de mesma dignidade.

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CAPÍTULO 5

O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL

5.1 Regramento Básico

A Constituição Federal figura no ápice de nosso ordenamento jurídico, configurando “a mais alta expressão jurídica da soberania”, no dizer de Paulo Bonavides (2003, p. 296), subordinando todas as demais disposições normativas, produzidas ou a produzir. A Constituição, como coloca Pinto Ferreira, “é uma superlei com uma força valorativa acima das leis ordinárias” (1993, p. 487). Mas “não basta o simples reconhecimento teórico da supremacia constitucional”, coloca Raul Machado Horta. É também preciso reconhecer as consequências que defluem dessa supremacia, sendo a principal delas a “repulsa a toda lei contrária à Constituição”, completa o autor (2003, p.126). Assim, visando garantir a supremacia da Constituição Federal, toda norma que com esta se chocar deverá ser declarada inconstitucional, devendo ser retirada do ordenamento jurídico.

O controle de constitucionalidade compreende a aferição, por órgãos próprios, da adequação de uma lei ou ato normativo infraconstitucional face à Constituição, visando garantir a supremacia desta no ordenamento jurídico. Veja-se a elegante lição de Raul Machado Horta (2003, p. 132):

[O controle de constitucionalidade é] o corolário lógico da supremacia constitucional, seu instrumento necessário, o requisito para que a superioridade constitucional não se transforme em preceito moralmente platônico e a Constituição em simples programa político, moralmente obrigatório, um repositório de bons conselhos, para uso esporádico ou intermitente do legislador, que lhe pode vibrar, impunemente, golpes que a retalham e desfiguram.

Completa o autor (2003, p. 130):

A ideia difusa e inorgânica de defesa de uma lei ou de instituições do Estado tem suas raízes nos mais distantes períodos históricos24. Mas, a ideia de defesa da Constituição, tal como a entendemos, vai surgir acanhada e imprecisa, no constitucionalismo do século XVIII, para corporificar-se e expandir-se, mais tarde, em virtude dos elementos nele hauridos. A partir dessa quadra, procura-se confiar a defesa a uma técnica adequada, cuja revelação, nos fundamentos doutrinários e processos dinamizadores, é criação original do período constitucional. Nele nasceu o controle de constitucionalidade das leis, técnica moderna de defesa da Constituição, exprimindo, na própria abrangência das palavras, sua enérgica amplitude e notável dimensão.

Portanto, toda lei ou ato normativo infraconstitucional que se chocar com a Constituição Federal – com suas normas expressas ou seus princípios implícitos25 – haverão

24 O autor faz um interessante registro, ao esposar que a defesa da Constituição francesa de 1791 “foi confiada pelo constituinte da época à fidelidade do corpo legislativo, do Soberano e dos Juízes, à vigilância dos pais de família, esposas e mães, à estima dos jovens cidadãos, à coragem de todos os franceses (art. 8, Título VII)” (2003, p.131).

25 “É bem de ver que a violação à Constituição tanto pode ser ao seu espírito como à sua letra” (Pinto Ferreira, 1993, p.489). “Uma Constituição não é apenas a sua letra, o seu texto literal, mas também os princípios que a informaram e

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de ser declarados como inconstitucionais, sendo retirados do ordenamento jurídico. Ou, conforme coloca José Afonso da Silva (2003, p. 47):

Do princípio da supremacia da constituição resulta o da compatibilidade vertical das normas da ordenação jurídica de um país, no sentido de que as normas de grau inferior valerão somente se forem compatíveis com as normas de grau superior, que é a constituição.

Pinto Ferreira pondera que “somente deve ser declarada a inconstitucionalidade quando esta se revela acima de qualquer dúvida (beyond a reasnoable doubt), segundo ensinam os melhores doutrinadores norte-americanos” (1993, p. 489). Vale observar que, até que seja declarada sua inconstitucionalidade pelo órgão competente para tanto, toda lei presume-se como constitucional, a todos obrigando, ainda que alguns possam entender que esteja eivada de flagrante inconstitucionalidade.

Vale observar que o controle de constitucionalidade também visa, em última análise, evitar o arbítrio do ente estatal, forçando a atividade legiferante a que se submeta à supremacia dos direitos individuais e coletivos, que jamais poderão ser suprimidos da Constituição vigente. “Garantir direitos individuais foi sempre a nota suprema ou a razão maior do controle de constitucionalidade”, pondera Paulo Bonavides, e complementa (2003, p. 322):

A alçada judicial, ao conhecer dos atos legislativos que importam ofensa à Constituição em matéria de direitos individuais, traça limites eficazes à onipotência do Estado, desarmando-o, nos sistemas constitucionais, daquele poder soberano de impor aos governados uma vontade sem freios. O direito que nos tribunais limita a ação política do legislador em verdade tolhe os poderes absolutos do Estado.

Admite-se que o controle de constitucionalidade seja incompatível com Constituições flexíveis. Recordemos que tais são as Constituições alteráveis por procedimento legislativo ordinário, sem qualquer previsão de procedimento especial. Contrapõem-se à ideia de Constituições rígidas, aquelas só alteráveis mediante processo legislativo especial, mais dificultoso que o procedimento ordinário, podendo inclusive conter partes imutáveis, como as cláusulas pétreas (caso brasileiro). É que é incompatível preocupar-se com controle de constitucionalidade se a Constituição é flexível, pois se a edição de uma lei e uma alteração constitucional exigem o mesmo grau de consenso parlamentar, é de se presumir que o grupo que aprova uma lei que seria inconstitucional tem a mesma força para torná-la constitucional, pela via da reforma constitucional. É por esse motivo que Raul Machado Horta observa que “a supremacia, que é noção inerente à ideia de Constituição, adquiriu impulso sistemático e ordenado na técnica da rigidez” (2003, p. 126).

O controle de constitucionalidade, em sua modalidade difusa, foi implementado pela primeira vez na Constituição de 1891, segunda de nossa história, eis que a Constituição de 1824 nada trouxe a respeito. A Constituição de 1934, por sua vez, trouxe duas grandes inovações, vigentes até hoje: a) cláusula da reserva de plenário, prevendo que só por maioria absoluta de votos da totalidade dos seus juízes poderiam os Tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato do Poder Público; b) e a competência do Senado Federal para suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou

que, sob certa forma, permanecem no seu corpo. É inconstitucional a lei violadora da Constituição, quer ela disponha contrariamente à letra, quer ela fira o espírito constitucional, presente nos princípios deduzíveis da expressão de seus dispositivos” (Ronaldo Poletti, 2001, p.181).

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regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário. A Constituição de 1937, por sua vez, introduziu uma regra que não foi reproduzida nos textos constitucionais posteriores, ao prever que, quando fosse declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República, fosse necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderia o Presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento; se este a confirmasse por 2/3 de votos em cada uma das Casas, ficaria sem efeito a decisão do Tribunal. A Constituição de 1946 foi a primeira a prever a ação direta de inconstitucionalidade, com legitimidade restrita ao Procurador-Geral da República, além de ter previsto a possibilidade de controle concentrado nos Estados-membros. As Constituições seguintes (1967 e 1969) nada inovaram a respeito.

A aferição da adequação constitucional pode se dar quanto ao aspecto formal, mediante o exame da observância do devido processo legislativo, ou material, na análise da adequação do conteúdo das leis e atos normativos com a Constituição Federal. Ou, conforme coloca Canotilho (2003, p. 890):

Os actos normativos só estarão conformes com a constituição quando não violem o sistema formal, constitucionalmente estabelecido, da produção desses actos, e quando não contrariem, positiva ou negativamente, os parâmetros materiais plasmados nas regras ou princípios constitucionais.

Dessa forma, vícios de iniciativa na propositura de leis, por exemplo, estarão eivados de inconstitucionalidade formal. Por outro lado, toda vez que o conteúdo de uma norma for incompatível com o texto constitucional, teremos uma inconstitucionalidade material. Temos, na visão de Clèmerson Merlin Clève (1995, p. 30), o que se segue:

A inconstitucionalidade (situação decorrente de um ou de vários vícios) pode ser conceituada como a desconformidade do ato normativo (inconstitucionalidade material) ou do seu processo de elaboração (inconstitucionalidade formal) com algum preceito ou princípio constitucional.

Voltando a Canotilho, o mestre português leciona (2003, p. 240):

A vinculação do legislador à constituição sugere a indispensabilidade de as leis serem feitas pelo órgão, terem a forma e seguirem o procedimento constitucionalmente fixado para se considerarem, sob o ponto de vista orgânico formal e procedimental, conformes com o princípio da constitucionalidade. A constituição é, além disso, um parâmetro material intrínseco dos actos legislativos, motivo pelo qual só serão válidas as leis materialmente conformes com a constituição.

O controle de constitucionalidade das leis pode ser exercido, fundamentalmente, em dois momentos distintos: antes ou depois da promulgação da lei – preventiva ou repressivamente, portanto. No sistema brasileiro, o controle preventivo pode ser exercido em vários momentos. Pode ser posto em ação, por exemplo, por meio do poder de veto do Presidente da República a projeto de lei que considere inconstitucional. Se o Chefe do Poder Executivo considerar o projeto de lei, no todo ou em parte, inconstitucional (ou contrário ao interesse público, hipótese que não nos interessa), poderá vetá-lo total ou parcialmente (art. 66, § 1º). Pode ser exercido, também, pelo Poder Legislativo, nas comissões técnicas encarregadas de analisar a constitucionalidade das espécies normativas submetidas ao processo legislativo. Se pensarmos bem, o controle preventivo se manifesta em todos as

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etapas do processo legislativo, desde a propositura da lei, quando o proponente toma as devidas cautelas com sua assessoria jurídica para não propor nenhuma inconstitucionalidade, passando pela discussão do projeto, quando um parlamentar pode alertar seus pares sobre eventuais inconstitucionais, chegando ao poder de veto do Presidente da República.

Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior observam que a fase preventiva do controle de constitucionalidade é, em princípio, não jurisdicional, para alertar, logo em seguida que o Supremo Tribunal Federal “tem entendido que o controle preventivo pode ocorrer pela via jurisdicional quando existe vedação na própria Constituição ao trâmite da espécie legislativa” (1998, p.25). Nesse caso, cabível mandado de segurança26. Ocorre que o parlamentar dispõe de legitimação ativa para suscitar o controle incidental de constitucionalidade pertinente à observância, pelas Casas do Congresso Nacional, dos requisitos (formais e/ou materiais) que condicionam a válida elaboração das proposições normativas, enquanto estas se acharem em curso na Casa legislativa a que pertence o congressista interessado27.

O controle repressivo de constitucionalidade, também chamado de sucessivo, pode também ser exercido em vários momentos. O Poder Legislativo poderá exercitá-lo por meio da suspensão da execução de lei declarada inconstitucional em decisão definitiva do STF tomada no caso concreto – veremos de forma minudente essa hipótese. Também, há aqueles que entendem que o Chefe do Poder Executivo pode determinar a seus órgãos subordinados que deixem de aplicar administrativamente as leis ou os atos normativos que considerem inconstitucionais, até que o Poder Judiciário venha a se pronunciar sobre o assunto – essa seria uma prerrogativa exclusiva do Presidente da República, dos governadores e dos prefeitos, não sendo extensível aos demais agentes políticos ou aos servidores públicos28. A esse respeito, Ronaldo Poletti ressalva que, “recusando cumprimento à lei havida como inconstitucional, o Chefe do Poder Executivo se coloca na posição do particular que se recusa, a seu risco, a obedecer à lei, aguardando as ações e medidas de quem tiver interesse no cumprimento dela” (2001, p.135). O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, poderá apreciar a constitucionalidade das leis e atos do Poder Público (STF, Súmula 347). E o Poder Judiciário exercerá o controle de constitucionalidade quando for demandado para se pronunciar acerca da adequação constitucional de leis e normas.

O controle de constitucionalidade pode ser político, jurisdicional ou misto, conforme o órgão a que a Constituição Federal atribua a competência para aferir a constitucionalidade das leis. Somente os órgãos expressamente determinados pela Constituição Federal podem exercer esse controle. Ele é político quando realizado pelo Poder Legislativo ou por outro órgão de cúpula criado precipuamente para esse fim, a exemplo do Conselho Constitucional francês. No dizer de Paulo Bonavides (2003, p. 299):

Determinados sistemas constitucionais, reconhecendo que o controle de constitucionalidade das leis tem efeitos políticos e confere ao órgão

26 Ver MS 20.257, DJ 08.10.97.27 MS 26712 ED-MC/DF, rel. Min. Celso de Mello, set/2007)28 Essa não é uma posição que se encontra pacificada na doutrina ou na jurisprudência, contudo. Antes da Constituição

de 1988, o STF havia adotado essa solução, mas cabe lembrar que, à época, o controle de constitucionalidade era exer-cido unicamente pelo Procurador-Geral da República. Hodiernamente, com a possibilidade de o próprio Presidente propor uma ação direta, inclusive com efeitos cautelares, questiona-se se vigora esse entendimento. Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco ressalvam que há “consenso no sentido de que, em determinados casos limites, o agente pode deixar de cumprir a lei, por entendê-la inconstitucional – em especial quando o direito fundamental agredido o for francamente e puser em imediato risco a vida ou a integridade pessoal de alguém, resultando da aplicação da lei inválida o cometimento de fato definido como crime” (2007, p.239).

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exercitante uma posição de preeminência do Estado, cuidam mais adequado e aconselhável cometê-lo a um corpo político, normalmente distinto do Legislativo, do Executivo e do Judiciário.

O controle é jurisdicional (americano ou austríaco, conforme29) – conhecido como judicial review, no direito americano – quando realizado exclusivamente por órgãos do Poder Judiciário. Já o sistema misto, conforme ensina José Afonso da Silva, é aquele em que a Constituição “submete certas categorias de leis ao controle político e outras ao controle jurisdicional, como ocorre na Suíça, onde as leis federais ficam sob controle político da Assembléia Nacional, e as leis locais sob o controle jurisdicional” (2003, p. 49).

A doutrina constitucional tem entendido que o Brasil adota o sistema jurisdicional de controle da constitucionalidade, o que significa que somente ao Poder Judiciário é dado declarar a inconstitucionalidade das leis e normas. Mas como isso é possível, se já vimos que o controle de constitucionalidade também pode ser exercido por órgãos alheios ao Poder Judiciário? Esse é um ponto que acarreta muita confusão, e não apenas ao neófito, vale dizer. Ocorre que podemos nos referir ao controle de constitucionalidade tanto em sentido amplo quanto em sentido estrito. Em sentido amplo, todos os órgãos citados exercem controle de constitucionalidade. Em sentido estrito, entende-se como controle de constitucionalidade o poder de declarar a inconstitucionalidade de uma determinada norma jurídica, e não apenas o poder de deixar de aplicá-la. No Brasil, só quem detém essa competência é o Poder Judiciário. Por isso é que se diz que o nosso sistema é jurisdicional, mas isso só será válido se tivermos em mente o conceito estrito de controle de constitucionalidade.

Ainda sobre o sistema jurisdicional, Canotilho professa que tal pode adotar dois modelos distintos: a) modelo unitário, em que todos os órgãos do Poder Judiciário podem exercer o controle de constitucionalidade, eis que “a jurisdição constitucional não se distingue substancialmente das outras formas de jurisdição” – é o caso brasileiro; e b) modelo de separação, em que a justiça constitucional é “confiada a um Tribunal especificamente competente para as ‘questões constitucionais’ e institucionalmente separado dos outros Tribunais” (2003, p. 896).

O controle repressivo de constitucionalidade, entendido este de forma estrita, é exercitado, como vimos, pelo Poder Judiciário, que avalia a constitucionalidade da lei em um único momento: a partir da vigência da lei. Não existe a possibilidade de uma lei vir a ser declarada inconstitucional por ter-se tornado incompatível com uma nova Constituição ou com uma emenda constitucional. O sistema brasileiro não adota, portanto, a tese da inconstitucionalidade superveniente, pela qual uma lei pode ser tida como constitucional até uma certa data, deixando de sê-lo em função de uma Constituição novel ou em virtude de uma alteração na Constituição vigente. A solução para a incompatibilidade entre uma lei e uma nova Constituição reside no instituto da não recepção daquela. Já a solução para a incompatibilidade entre uma lei e uma emenda constitucional reside no instituto da revogação – a lei incompatível fica revogada pela emenda constitucional.

Cabe aos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir a um único órgão (art. 125, § 2º). Isso significa que os Estados-membros poderão adotar sistemática própria de controle de constitucionalidade das leis estaduais ou municipais, desde que compatível com o modelo emanado da Constituição

29 O controle jurisdicional, como veremos, pode ser dar de dois modos: difuso (sistema americano) ou concentrado (sistema austríaco).

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Federal. A vedação referente à atribuição da legitimação para agir quer dizer que não é possível que a Constituição estadual a conceda a um único órgão ou autoridade – deve haver multiplicidade de legitimados.

Note-se que a Constituição Federal submete também as leis ou atos normativos municipais ao controle de constitucionalidade de âmbito estadual. A Constituição estadual (no que se inclui a Lei Orgânica do Distrito Federal, conforme já decidiu o STF), portanto, será o único parâmetro para a aferição do controle de constitucionalidade no que se refere aos entes subnacionais. Assim, não há se falar em análise de constitucionalidade entre lei municipal e Lei Orgânica municipal, mas apenas entre aquela e a Constituição estadual.

Contudo, um eventual conflito entre uma lei estadual ou municipal com a Constituição estadual nem sempre se resolve pela via do controle de constitucionalidade de âmbito estadual. Ocorre que se a lei subnacional estiver em conformidade com a Constituição Federal e a Constituição estadual, esta sim, estiver incompatível com a Constituição Federal, logicamente teremos a inconstitucionalidade desta e a perfeita adequação constitucional daquela. Também, se a Constituição Federal silenciar a respeito de determinado assunto, por não se tratar de tema constitucional, e houver conflito entre uma lei municipal e a Constituição estadual, poderemos, ainda assim, ter inconstitucionalidade desta e não daquela, como no caso de Constituição estadual que venha a regular assunto de interesse local – ora, se a Constituição Federal preceitua que compete aos Municípios legislar sobre assunto de interesse local (art. 30, I), a Constituição estadual estará incorrendo em inconstitucionalidade se pretender fazê-lo.

Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior alertam para a problemática da norma repetida, isto é, da norma constante da Constituição estadual que apenas reproduz dispositivo da Constituição Federal (1998, p. 45):

Durante muito tempo entendeu-se que haveria usurpação à competência do Supremo Tribunal Federal caso se admitisse o julgamento pelo Tribunal de Justiça de uma norma reproduzida da Constituição Federal, pois, em última análise, esta, cuja guarda foi outorgada ao Supremo Tribunal Federal, é que estaria sendo violada. Tal entendimento, todavia, veio por terra ante o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da Reclamação 383-3/SP, que assentou a pertinência do controle estadual, com base em norma repetida, ressalvando, porém, a possibilidade de interposição de recurso extraordinário.

Os autores ressalvam que o recurso extraordinário “só é cabível em caso de norma repetida; nas demais hipóteses a decisão é irrecorrível” (1998, p. 45). A interposição de recurso extraordinário nessa hipótese dá origem ao que a doutrina denomina de controle abstrato na via difusa, assunto sobre o qual nos debruçaremos mais adiante.

Como vimos, o controle de constitucionalidade, estrito senso, é atribuição exclusiva do Poder Judiciário. Este pode exercê-lo de duas formas: pelo modo difuso (sistema americano), também conhecido como controle concreto ou por via de exceção, em que a inconstitucionalidade é acidentalmente levantada em um processo judicial qualquer; ou pelo modo concentrado (sistema austríaco30), também chamado de controle abstrato ou por via de ação direta, em que a questão da inconstitucionalidade é levada ao Poder Judiciário de forma

30 “À ideia de um controlo concentrado está ligado o nome de Hans Kelsen, que o concebeu para ser consagrado na constituição austríaca de 1920”, observa Canotilho (2003, p.898).

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autônoma. Enquanto o controle difuso compete a todos os juízes e Tribunais brasileiros, o controle concentrado é atribuição exclusiva do STF.

Outra importante distinção é que o controle difuso apresenta efeito declarativo, enquanto o controle concentrado tem efeito constitutivo. “Fala-se em efeito declarativo quando a entidade controlante se limita a declarar a nulidade pré-existente do acto normativo”, ensina Canotilho. Já pelo efeito constitutivo, “o órgão que decide sobre a inconstitucionalidade anula um acto normativo que até ao momento da decisão é considerado válido e eficaz”, complementa o mestre (2003, p.204).

5.2 Controle Difuso

O controle difuso, também conhecido como controle incidental, por via de exceção ou por via de defesa31, assim chamado porque a constitucionalidade é analisada no caso concreto, em questão prévia, alheia à discussão da constitucionalidade, caracteriza-se pela possibilidade de qualquer juiz ou Tribunal analisar a adequação de lei ou ato normativo frente a Constituição Federal. Nesse sistema, temos que qualquer órgão do Poder Judiciário poderá deixar de aplicar a norma jurídica que entender inconstitucional. A constitucionalidade da lei ou norma discutida não constitui o objeto principal da lide, mas discussão acessória, embora indispensável para sua solução. “Com efeito, a argüição manifestar-se-á, sempre, no curso de um processo, daí porque não há ataque direto à lei inquinada de vício. Ataca-se, sim, o ato, o fato ou a conduta que se pretende praticar com base na lei”, ensina Clèmerson Merlin Clève (1995, p.73).

O controle difuso de constitucionalidade ganhou notoriedade a partir da histórica e amplamente citada pela doutrina decisão do juiz Marshall32, da Suprema Corte americana, no caso “Marbury vs. Madison” (1803). O citado magistrado foi um dos primeiros a perceber que compete ao juiz, no caso concreto, defender a supremacia da Constituição Federal sobre as demais espécies normativas33, arguindo que todo ato normativo contrário à Constituição deveria ser considerado nulo, inválido e ineficaz (null and void and of no effect). Sempre vale a pena citar a principal parte dessa importante decisão (in Ronaldo Poletti, 2001, p.33-4):

Ou havemos de admitir que a Constituição anula qualquer medida legislativa, que a contrarie, ou anuir em que a legislatura possa alterar por medidas ordinárias a Constituição. Não há contestar o dilema. Entre as duas alternativas não se descobre meio-termo. Ou a Constituição é uma

31 Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior bem observam que “o interessado que pede a prestação jurisdicional não precisa estar no pólo passivo da lide, podendo ser o autor da ação. Por tal razão, a expressão ‘via de defesa’ significa que o interessado está defendendo-se de uma norma inconstitucional e não, obrigatoriamente, ocupando o pólo passivo da ação” (1998, p.26).

32 Há vários e importantes precedentes ao caso Marshall, daí porque preferimos utilizar a expressão “ganhou notorie-dade” à expressão, utilizada por alguns, “originou-se”. Pinto Ferreira lembra que “já o jurista inglês Coke admitia, em 1628, que tanto os atos do Parlamento como os do rei deveriam estar de acordo com o Common Law. De outro lado, durante cerca de um século, de 1680 a 1775, o Conselho Privado do rei da Inglaterra anulou atos das colônias que eram contrários às respectivas cartas das ditas colônias. Depois da independência norte-americana, vários tribunais dos States também declararam a inconstitucionalidade das leis diante das Constituições Estaduais” (1993, p. 488).

33 Ronaldo Poletti registra que “a grande criação americana (...) não proveio do texto expresso da Constituição, sim da jurisprudência. (...) No Brasil, a judicial review (...) está, com todas as letras, descrita no texto constitucional. Nos Esta-dos Unidos da América, todavia, os elaboradores da Constituição discutiram o assunto, sem, contudo, formalizá-lo no texto pactuado que faria nascer o novo Estado” (2001, p. 24).

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lei superior, soberana, irreformável por meios comuns; ou se nivela com os atos da legislação usual, e, como estes, é reformável ao sabor da legislatura. Se a primeira proposição é verdadeira, então o ato legislativo, contrário à Constituição, não será lei; se é verdadeira a segunda, então as constituições escritas são absurdos esforços do povo, por limitar um poder de sua natureza ilimitável. Ora, com certeza todos os que têm formulado constituições escritas, sempre o fizeram com o intuito de assentar a lei fundamental e suprema da nação; e, conseguintemente, a teoria de tais governos deve ser que qualquer ato da legislatura, ofensivo da Constituição, é nulo. Esta doutrina está essencialmente ligada às constituições escritas, e portanto, deve-se observar como um dos princípios fundamentais de nossa sociedade.

Note-se que a questão da inconstitucionalidade poderá ser suscitada em todo e qualquer processo, em todos os níveis judiciários, pela partes ou pelo Ministério Público. Também, o próprio juiz pode, de ofício, sem provocação das partes, afastar a aplicação da norma jurídica que considerar eivada de inconstitucionalidade. A lógica desse sistema reside no dilema do juiz que tem que resolver um caso em que tanto a Constituição como a lei são aplicáveis, mas há conflito entre ambas. Ora, se a Constituição reside no ápice do ordenamento jurídico, é claro que esta deverá ser aplicada, em detrimento da lei que lhe é desconforme. Ao juiz só não é dado receber recurso de apelação referente a sentença conforme com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal (CPC, art. 508, § 1º) – este dispositivo é uma novidade introduzida pela Lei 11.27606, com vistas a dar maior celeridade à prestação jurisdicional.

Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros, ou dos membros do respectivo órgão especial, poderão os Tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público (art. 97). Nos Tribunais com número superior a 25 julgadores, poderá ser constituído órgão especial, com o mínimo de 11 e o máximo de 25 membros, para o exercício das atribuições administrativas e jurisdicionais delegadas da competência do Tribunal pleno (art. 93, XI). Ou seja, ao invés de a questão ser submetida a todos os integrantes do Tribunal, esta é submetida somente a seu órgão especial, que, assim, por uma questão de praticidade, substitui o Pleno em Tribunais com muitos membros.

Portanto, temos que, se um juiz pode, por si mesmo, deixar de aplicar uma determinada norma jurídica ao caso concreto por considerá-la inconstitucional, a declaração de inconstitucionalidade, no 2º grau, depende que o Tribunal assim se posicione pelo voto da maioria de seus membros (ou dos membros do órgão especial). Arguida a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do poder público, o relator, ouvido o Ministério Público, submeterá a questão à turma ou câmara, a que tocar o conhecimento do processo (CPC, art. 480). Se a alegação for rejeitada, prosseguirá o julgamento; se for acolhida, será lavrado o acórdão, a fim de ser submetida a questão ao Tribunal pleno (art. 481, caput). É a chamada cláusula de reserva de plenário, pela qual descabe aos órgãos fracionários (câmaras ou turmas) declarar a inconstitucionalidade das leis. Importante acrescentar que viola a cláusula de reserva de plenário a decisão de órgão fracionário de Tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência no todo ou em parte (STF, Súmula vinculante 10).

Há, contudo, uma hipótese em que os órgãos fracionários, em homenagem aos princípios da racionalidade, da celeridade e da economia processual, podem declarar a inconstitucionalidade das leis. Assim, os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a arguição de inconstitucionalidade, quando já houver

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pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão (CPC, art. 481, parágrafo único).

Interessante tomar conhecimento de como se processa o incidente de inconstitucionalidade no pleno (ou no órgão especial). Remetida a cópia do acórdão a todos os juízes, o presidente do Tribunal designará a sessão de julgamento (CPC, art. 482, caput). O Ministério Público e as pessoas jurídicas de direito público responsáveis pela edição do ato questionado, se assim o requererem, poderão manifestar-se no incidente de inconstitucionalidade, observados os prazos e condições fixados no regimento interno do Tribunal (§ 1º). Os titulares do direito de propositura das ações abstratas de constitucionalidade poderão manifestar-se, por escrito, sobre a questão constitucional objeto de apreciação pelo órgão especial ou pelo pleno do Tribunal, no prazo fixado em regimento, sendo-lhes assegurado o direito de apresentar memoriais ou de pedir a juntada de documentos (§ 2º). O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá admitir, por despacho irrecorrível, a manifestação de outros órgãos ou entidades (§ 3º).

A declaração de inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo, no caso concreto, tem eficácia apenas inter partes (para as partes), ou seja, a declaração de inconstitucionalidade não alcança a terceiros, que continuam obrigados ao cumprimento da lei ou ato normativo impugnado incidentalmente. “A sentença que liquida a controvérsia constitucional não conduz à anulação da lei, mas tão-somente à sua não-aplicação ao caso particular, objeto da demanda”, leciona Paulo Bonavides (2003, p.302). E conforme explica José Afonso da Silva, “a argüição da inconstitucionalidade é questão prejudicial e gera um procedimento incidenter tantum, que busca a simples verificação da existência ou não do vício alegado”, sendo que a sentença declaratória faz coisa julgada apenas entre as partes, mas não no que se refere à lei tida como inconstitucional (2003, p.53-4). Tem também efeitos ex tunc (retroativos) para as partes, isto é, fulmina a relação jurídica a partir do nascimento da lei.

Antes de finalizar esse ponto, há uma questão que merece ser debatida com mais vagar. Dissemos que a questão da inconstitucionalidade pode ser suscitada incidentalmente em todo e qualquer processo. Isso é mesmo verdade, mas no caso da ação civil pública há que se tomar um cuidado adicional. É que essa espécie de ação visa proteger o patrimônio público e social, o meio ambiente e outros interesses difusos e coletivos (CF, art. 129, III). Por envolver tal espécie de interesses, é comum que as decisões nesses processos tenham eficácia erga omnes, e não apenas inter partes. Quando isso ocorrer, não será admitido controle difuso de constitucionalidade em sede de ação civil pública, pois, nesse caso, tais ações estariam funcionando como verdadeiro sucedâneo da ação direta de inconstitucionalidade, que tem, como veremos, referida eficácia. Desse modo, haveria usurpação, por parte da justiça comum e dos demais tribunais, de atribuição exclusiva do STF, qual seja, declarar, com eficácia erga omnes, a inconstitucionalidade de leis. Apenas se admite o controle difuso de constitucionalidade em sede de ação civil pública quando esta envolver partes contratantes que visam a persecução de bens jurídicos concretos, definidos e, o mais importante, perfeitamente individualizáveis.

Temos que compete ao Supremo Tribunal Federal julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal (CF, art. 102, III, “b”). Assim, declarada a inconstitucionalidade da norma jurídica, em única ou última instância, a parte inconformada poderá recorrer ao STF para discutir a questão. O STF poderá atribuir efeito ex tunc ou ex nunc a essa decisão, mas tal necessariamente permanecerá inter partes. Conforme ensinamento magistral de Paulo Bonavides (2003, p. 311):

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As vias recursais se exaurem no aresto final da Suprema Corte. Exerce ela função unificadora da jurisprudência, pondo termo assim às vacilações interpretativas do mesmo passo que remove o estado de incerteza e apreensão acerca da validade da lei, oriunda de decisões contraditórias dos órgãos de jurisdição inferior.

Se o STF confirmar a inconstitucionalidade, surge para o Senado Federal a possibilidade de retirar a eficácia da lei contestada, passando a declaração de inconstitucionalidade a ter, enfim, eficácia erga omnes. É que a Constituição Federal prevê que compete privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal (art. 52, X), em controle difuso de constitucionalidade.

Assim, se o STF declarar, em sede de caso concreto, a inconstitucionalidade de determinada lei ou ato normativo, tal decisão terá apenas eficácia inter partes, conforme já vimos, ou seja, valerá apenas para as partes diretamente interessadas, nada afetando quanto a terceiros. Entretanto, o Senado Federal pode entender que aquela lei ou ato normativo – federal, estadual ou municipal, vale ressaltar –, que já teve sua constitucionalidade arguida, deve passar a ter eficácia erga omnes, para todos.

Dado esse entendimento, caberá ao Senado Federal, se assim o desejar, editar uma resolução suspendendo a lei tida por inconstitucional pelo STF. Conforme alerta José Afonso da Silva, a manifestação do Senado Federal “não revoga nem anula a lei, mas simplesmente lhe retira a eficácia” (2003, p.54). O papel do Senado Federal consiste em estender erga omnes os efeitos de uma decisão judicial proferida em um caso específico.

Vamos ilustrar com um caso concreto para facilitar o entendimento. Imaginemos que determinado contribuinte impetra mandado de segurança para não pagamento de imposto por considerá-lo inconstitucional. A causa será, na primeira instância, julgada por juiz federal, eis que a União figura no pólo passivo. Em qualquer caso, caberá recurso da parte vencida para o TRF. Em seguida, a parte vencida nesse juízo poderá oferecer recurso extraordinário ao STF, para que essa Corte se pronuncie a respeito da constitucionalidade ou não da cobrança em questão. Caso o contribuinte vença, a decisão operará efeito apenas inter partes, ou seja, o autor será o único contribuinte que estará desobrigado de pagar o imposto. Entretanto, os demais contribuintes, sabedores dessa decisão do STF, impetrarão a mesma ação em todo o Brasil. Mas pode ser que o Senado Federal, por uma questão de praticidade, julgue por bem suspender, por resolução, a eficácia dessa lei, dessa vez com eficácia erga omnes. Os contribuintes de modo geral ficariam, assim, desobrigados de pagar o tributo dali por diante.

A atribuição de idêntica eficácia para as decisões resultantes do controle abstrato para aquelas decorrentes do controle concreto, sem necessidade de que se fique na dependência de uma resolução do Senado Federal para que uma decisão incidentalmente proferida pelo STF tenha eficácia erga omnes é algo propugnado por parte da doutrina. Nesse sentido, André Ramos Tavares (2001, p. 285):

Esse vestuto mecanismo [necessidade de resolução do Senado Federal] fez sentido na época em que surgiu, com a Constituição de 1934, momento no qual seria de todo indesejável que o próprio Supremo Tribunal pudesse contar com efeitos erga omnes em suas decisões, já que a evolução doutrinária da época considerava isso uma verdadeira interferência de um dos poderes em outro. (...) Não há qualquer diferença ontológica, de fundo,

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entre a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal que reconhece a inconstitucionalidade pela via incidental daquela outra, que a reconhece no seio de um processo no qual ela emerge como questão principal.

Fato é que a mais moderna doutrina constitucional começa a apontar para uma nova interpretação do dispositivo constitucional em tela (art. 52, X). A tendência que vem se firmando é a de que a declaração de inconstitucionalidade em sede de controle difuso pode transcender, em algumas situações, o caso concreto, e adquirir eficácia erga omnes, sem necessidade da prévia manifestação senatorial, a qual passaria a ter simples efeito de publicidade34.

Ao declarar a inconstitucionalidade de uma lei pela via incidental, o STF deve comunicar o fato ao Senado Federal, para que este decida se retira ou não a eficácia dessa lei – note-se que o Senado Federal tem a faculdade de fazê-lo, não estando, portanto, obrigado a suspender a eficácia da norma declarada inconstitucional. A esse respeito, vale citar Paulo Napoleão Nogueira da Silva, que pondera ser essa posição consentânea com a doutrina constitucional da tripartição do poder, na medida em que reafirma a exclusividade da competência do Judiciário para exercitar a jurisdição, mas sem exorbitar, “ao ponto de deixar de considerar a competência constitucional atribuída a um outro Poder para apreciar a oportunidade e conveniência de suspender a execução da lei” (2000, p. 102) 35.

A suspensão da execução deve alcançar exatamente as partes da lei declaradas inconstitucionais pelo STF, não podendo o Senado Federal pretender restringir a suspensão a apenas parte da lei que tenha sido toda ela declarada inconstitucional, ou elastecer essa suspensão a partes não atingidas pela declaração de inconstitucionalidade. Esse esclarecimento se faz necessário em virtude da redação dúbia da Constituição Federal, que faz referência à suspensão da execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional. A locução em destaque quer dizer que a suspensão deverá se dar nos exatos termos do decidido pelo STF.

Ao analisarmos a questão do controle de constitucionalidade dos entes subnacionais, vimos a problemática da norma constante da Constituição estadual que apenas reproduz dispositivo da Constituição Federal. Cabível, nesse caso, o controle estadual, sem perigo de usurpação da competência do STF, sendo aceito, contudo, recurso extraordinário ao Supremo. Excepcionalmente, o recurso extraordinário havido nessas circunstâncias terá efeito erga omnes, não havendo, portanto, necessidade de qualquer comunicação ao Senado Federal.

5.3 Controle Concentrado

O controle concentrado, também conhecido como controle por via de ação direta ou controle abstrato de constitucionalidade, assim chamado porque a constitucionalidade é analisada em tese, diretamente, abstratamente, em ação própria, desvinculada de qualquer caso em concreto, é sempre julgado pelo STF (CF, art. 102, I, “a” e § 1º) e tem por finalidade: a) apreciar a adequação constitucional de lei ou ato normativo, por meio de ação direta de inconstitucionalidade ou ação declaratória de constitucionalidade; b) conceder eficácia às normas constitucionais que dependam de complementação infraconstitucional, por meio

34 Ver voto nesse sentido do Min. Gilmar Mendes, Recl. 4.335/AC, 01/02/2007. 35 Cabe observar que há importantes vozes que entendem não ser esta uma faculdade do Senado Federal, mas uma

atribuição vinculada. Entre elas, destacamos Alfredo Buzaid, Celso Bastos, Manoel Gonçalves Ferreira Filho e Michel Temer. O STF e o Senado Federal, contudo, entendem ser esta uma faculdade deste.

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de ação direta de inconstitucionalidade por omissão; e c) evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, por meio de arguição de descumprimento de preceito fundamental36.

A ação direta (genérica, interventiva ou por omissão), o pedido de arguição de descumprimento de preceito fundamental e a ação declaratória são processos especiais de natureza objetiva, vez que não há legitimado passivo37.

A ação direta de inconstitucionalidade pode ser interposta contra lei ou ato normativo federal, estadual ou distrital com conteúdo de estadual (art. 102, I, “a”). A ação declaratória de constitucionalidade, por sua vez, somente pode ser interposta contra lei ou ato normativo federal (art. 102, I, “a”), que esteja sendo sistematicamente questionado nos Tribunais. Deve haver, como pressuposto para conhecimento da ação, divergência jurisprudencial relevante sobre a constitucionalidade da norma objeto da ação (Lei 9.868/99, art. 14, III), na forma de decisões contraditórias dos Tribunais. Por fim, a arguição de descumprimento de preceito fundamental pode ser interposta contra lei ou ato normativo federal, estadual, distrital ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição (Lei 9.882/99, art. 1º), que não seja possível questionar mediante ação direta de inconstitucionalidade. Cabe acrescentar que não será admitida arguição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade (Lei 9.882/99, art. 4º, § 1º).

Assim, não podem ser objeto de controle concentrado de constitucionalidade: a) atos não normativos do poder público, isto é, aqueles não dotados de generalidade, que se limitem a disciplinar situações concretas; b) leis ou atos normativos municipais ou distritais com conteúdo de municipal38, exceto no caso de arguição de descumprimento de preceito fundamental – fora dessa hipótese, só é possível questionar a compatibilidade de lei ou ato normativo municipal frente à Constituição Federal em sede de controle difuso, no caso concreto; c) leis ou atos normativos estaduais em sede de ação declaratória de constitucionalidade; d) lei ou ato normativo editados anteriormente à Constituição Federal, exceto no caso de arguição de descumprimento de preceito fundamental – fora dessa hipótese, a compatibilidade de lei ou ato normativo pretérito à Constituição é resolvida pelo fenômeno da recepção; e) lei ou ato normativo já revogado ou cuja eficácia já tenha se exaurido; se a lei é revogada ainda no curso de processamento de ação de controle constitucional no STF, ocorre a perda de objeto da ação, sendo esta arquivada39.

A ação direta de inconstitucionalidade por omissão, uma novidade introduzida pela Constituição Federal de 1988, pode ser ajuizada quando o legislador ou o administrador público se omitem em editar lei ou ato que teria o condão de tornar plenamente eficaz uma norma constitucional que dependa justamente dessa ulterior ação normativa. É que há normas constitucionais que só desenvolvem aplicabilidade depois que uma norma infraconstitucional lhes desenvolva tal atributo – são as chamadas normas constitucionais de eficácia limitada, na consagrada classificação de José Afonso da Silva. Assim, contra a inércia

36 “Nascendo a Constituição pela vontade dos representantes do povo, o descumprimento de qualquer preceito cons-titucional constitui atividade contrária à vontade popular, infração que necessita de correção imediata, pela gravidade de que se reveste”, observa José Cretella Júnior (1992, p.3.105).

37 José Afonso da Silva diverge desse posicionamento quanto a ação declaratória. Segundo o constitucionalista, a ação declaratória de constitucionalidade “terá como pressuposto fático a existência de decisões de constitucionalidade, em processos concretos, contrárias à posição governamental”. Assim, “a rigor não se trata de processo sem partes e só aparentemente é processo objetivo, porque, no fundo, no substrato da realidade jurídica em causa, estão as relações materiais controvertidas que servem de pressupostos de fato da ação” (2003, p.56-7).

38 A propósito, o STF já decidiu que não cabe ação direta de inconstitucionalidade de lei do Distrito Federal derivada da sua competência legislativa municipal (Súmula 642).

39 Ver, por exemplo, ADI 3.339/PE.

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do Poder Público em atribuir plena eficácia às normas constitucionais de eficácia limitada, utiliza-se o remédio da ação direta de inconstitucionalidade por omissão.

Paulo Bonavides comenta que essa ação dirige-se “aos comportamentos omissivos do legislador como uma garantia destinada a resolver o problema da eficácia das normas constitucionais programáticas, principalmente em matéria de direitos sociais”. E complementa o autor (2003, p.333):

O silêncio legislativo ulterior em muitos preceitos que demandam ação complementar ou regulamentadora do dispositivo constitucional tolheu ou invalidou alguns avanços básicos do Estado social brasileiro.

Como bem coloca Luís Roberto Barroso, “vulnera-se a imperatividade de uma norma de direito quer quando se faz aquilo que ela proíbe, quer quando se deixa de fazer o que ela determina” (2000, p.157). Clèmerson Merlin Clève anota que “um longo caminho foi percorrido pela teoria constitucional para possibilitar a construção dessa categoria operacional: a inconstitucionalidade por omissão”, anota. Complementa o autor (1995, p.210-11):

A problemática emerge ao cabo de um processo histórico determinante da mudança nas relações entre o Estado e a sociedade e, portanto, da concepção que preside a construção da ordem estatal. Muda o papel do Estado, muda o modo de organizar o Estado e mudam os critérios de distribuição das funções entre os Poderes estatais, com reflexo na “liberdade de conformação do legislador”. A Constituição, nesse contexto, também renasce. A heterovinculação da Constituição alcança todos os poderes públicos40. Mais do que isso, cuida-se (i) de estudar e potencializar as suas (da Constituição) “virtualidades dirigentes”, aceitando que a totalidade das normas constitucionais são atuais, produzindo, pelo menos, uma eficácia mínima; e (ii) de buscar mecanismos eficazes para o provimento de integração e da plena realização das normas não exeqüíveis por si mesmas.

A ação de inconstitucionalidade por omissão não pode ser confundida com o mandado de injunção, instituto com o qual guarda grande semelhança41. O que distingue os dois institutos é a legitimidade e o alcance destes – enquanto o mandado de injunção pode ser impetrado por qualquer pessoa, e só pode se referir à ausência de normas que tornem inviáveis o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, a ação de inconstitucionalidade por omissão somente pode ser impetrado por uns poucos legitimados (art. 103, I a IX) e pode se referir à ausência de medidas que tornem inviáveis o exercício de qualquer norma constitucional. Contudo, conforme enumera Ronaldo Poletti (2001, p. 221):

Inobstante as diferenças, há pontos em comum evidentes entre o mandado de injunção e a inconstitucionalidade por omissão: a ausência de norma

40 O autor se refere à vinculação de todas as “coletividades políticas” – União, Estados, DF e Municípios – quanto ao dever de zelar pela Constituição (a teor do art. 23, I, da Constituição Federal).

41 As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm, via de regra, aplicação imediata (art. 5º, § 1º), mas há aquelas que dependem de regulamentação ulterior para terem plena efetividade. Assim, conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades cons-titucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania (CF, art. 5º, LXXI). Novidade in-troduzida pela Constituição Federal de 1988, consiste em uma ação constitucional de rito especial, que, sendo julgada procedente, tem o alcance de dar conhecimento da omissão ao órgão competente, a fim de que este estabeleça norma que resolva o caso concreto.

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regulamentadora na Lei Maior; a preocupação em tornar efetiva a Carta Constitucional; o esforço em fazer dela uma Carta viva de direitos, com plena eficácia, e não mera letra retórica e incapaz de tornar realidade algumas de suas determinações.

Há que se comentar, ainda, a respeito da ação direta de inconstitucionalidade interventiva. Caso algum Estado da Federação deixe de observar certos princípios relacionados na Constituição Federal – forma republicana, sistema representativo e regime democrático; direitos da pessoa humana; autonomia municipal; prestação de contas da administração pública, direta e indireta; e aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde (art. 34, VII) – ou recusar-se a executar lei federal, o procurador-geral da República poderá propor ação direta interventiva junto ao STF (art. 36, III). Sendo provida referida ação, o Presidente da República fica obrigado a decretar a intervenção. O decreto limitar-se-á a suspender a execução do ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade (art. 36, § 3º). Sobre essa ação, Marcelo Lamy e Luiz Guilherme Arcaro Conci ressalvam que “se trata de controle concentrado de caso concreto, ou se quisermos, ‘concentrado-concreto’” (2005, p. 297).

Quanto ao objeto da arguição de descumprimento de preceito fundamental, cabe tecer alguns esclarecimentos adicionais. Ela será cabível para evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público, e também quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo de todas as esferas, incluídos, como já ressaltamos, os anteriores à Constituição (Lei 9.882/99, art. 1º). Uma vez que a lei não especificou que dispositivos constitucionais podem ser tidos como preceitos fundamentais, caberá ao STF construir, à medida em que for demandado, a definição do que sejam tais preceitos. Tem-se como certo, apenas, que as regras referentes aos direitos e garantias fundamentais e as cláusulas pétreas integram essa definição42. Outra questão é que a arguição de descumprimento de preceito fundamental pode ter caráter preventivo, pois, como pode-se ver, é cabível também para evitar a lesão, o que é novidade no universo das ações de controle abstrato, sendo tal característica uma exclusividade dessa ação.

No que respeita ao objeto, cabe tratar de uma última questão: a hipótese excepcional do controle concentrado na via difusa. Quando analisamos o controle de constitucionalidade nos entes subnacionais, nos deparamos com uma situação em que é possível interpor uma ação direta de inconstitucionalidade junto ao Tribunal de Justiça contra norma constante da Constituição estadual que apenas reproduz dispositivo da Constituição Federal. Nesse caso, é possível o controle estadual, sendo ressalvada, porém, a possibilidade de interposição de recurso extraordinário para o STF. Se a questão efetivamente subir ao Supremo, teremos um controle concentrado – eis que a propositura se deu em processo objetivo, em sede de ação direta de inconstitucionalidade – realizado, excepcionalmente, pela via difusa, qual seja, pelo caminho recursal.

Podem propor ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade (CF, art. 103) e arguição de descumprimento de preceito fundamental

42 André Ramos Tavares propõe que “sempre se identificará um conjunto de regras que se apresentam como essenciais para o Direito e que, ultimamente, ganharam assento em quase todas as constituições. Trata-se da declaração ou reconhecimento positivo de alguns direitos concretos que se reputam fundamentais. Ao seu lado, pode-se considerar ainda outra categoria de regras também essenciais: aquelas que procedem à repartição de funções estatais, como a repartição de certas competências, elencando, ainda, as tarefas do Estado”. Conclui o autor: “assim, tem-se que as regras referentes aos direitos fundamentais e as regras de estruturação do poder político fazem parte desse núcleo essencial da Cartilha Constitucional” (2001, p. 147-50).

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(Lei 9.882/99, art. 2º, I): a) o Presidente da República; b) a Mesa do Senado Federal; c) a Mesa da Câmara dos Deputados; d) a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; e) o Governador de Estado ou do Distrito Federal; f) o Procurador-geral da República; g) o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; h) partido político com representação no Congresso Nacional; e i) confederação sindical43 ou entidade de classe de âmbito nacional44, 45. O universo de legitimados a propor ação declaratória de constitucionalidade foi substancialmente alargado pela EC 45/04, passando a igualar-se ao universo de legitimados a propor as demais ações abstratas.

A limitação a um poucos legitimados a propor ação por via direta, embora ampliada pela nossa atual Constituição46, encontra um forte crítica em Paulo Bonavides (2003, p. 308):

O controle por via de ação toma nesse caso um sentido de controle formal de constitucionalidade, voltado sobretudo para resolver conflitos entre os poderes públicos. Desde então relega-se a segundo plano a defesa do conteúdo da ordem constitucional, dos direitos e garantias dos cidadãos, que a sobredita técnica nem sempre resguarda em toda a amplitude, talvez pelo preconceito antidemocrático de não consentir ao cidadão a possibilidade de desfazer por sua iniciativa mesma aquilo que foi obra do legislador.

E fulmina o autor: “é óbvio que sistemas mais democráticos de controle de constitucionalidade podem perfeitamente abrir o controle por via de ação a todos os cidadãos” (2003, p. 308). Ronaldo Poletti tem, curiosamente, opinião diametralmente oposta. Para esse autor, a enumeração é exagerada (2001, p.93):

Tão ampla e difusa faculdade implicará, certamente, uma discussão permanente a propósito da discussão em abstrato da constitucionalidade das leis. Com tantos caminhos, dificilmente um cidadão deixará de suscitar a sua representação de inconstitucionalidade, quase como se fosse uma ação de natureza individual. Ao lado disso, a titularidade assim difundida, o congestionamento do Supremo Tribunal Federal será inevitável, considerando-se a febril atividade legislativa do Estado brasileiro e a

43 No plano da organização sindical brasileira, somente as confederações sindicais dispõem de legitimidade ativa ad causam para o ajuizamento da ação direta de inconstitucionalidade, falecendo às centrais sindicais, em conseqüência, o poder para fazer instaurar, perante o Supremo Tribunal Federal, o concernente processo de fiscalização normativa abstrata (ADI 1.442-DF, in Info STF 385, abr/2005).

44 O STF firmou o entendimento de que o conceito de entidade de classe é dado pelo objetivo institucional classista, pouco importando que a eles diretamente se filiem os membros da respectiva categoria social ou agremiações que os congreguem, com a mesma finalidade, em âmbito territorial mais restrito. Assim, é entidade de classe de âmbito nacional aquela na qual se congregam associações regionais correspondentes a cada unidade da Federação, a fim de perseguirem, em todo o País, o mesmo objetivo institucional de defesa dos interesses de uma determinada classe. Nesse sentido, alterou o Supremo Tribunal sua jurisprudência, de modo a admitir a legitimação das “associações de associações de classe”, de âmbito nacional, para a ação direta de inconstitucionalidade (AG. REG. ADI 3.153-DF, Info STF 400, set/05).

45 Não se qualificam como entidades de classe, para fins de ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade, aquelas que são constituídas por mera fração de determinada categoria funcional (Ag.Reg. ADI 1.875-DF, rel. Min. Celso de Mello, DJ 12.12.2008).

46 Conforme observa Pinto Ferreira, no direito constitucional anterior “a legitimação ativa para agir era deferida somente ao procurador-geral da República no âmbito federal e ao procurador-geral da Justiça no âmbito estadual” (1993, p.493). Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior lembram, ainda, que o Procurador-Geral da República era, a essa época, demissível ad nutum – “portanto, o controle direto era enfraquecido” (1998, p.31).

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constante discussão sobre a sua constitucionalidade, quanto mais, agora, que a Constituição continuou a sua expansão analítica, absorvendo um sem número de matérias, reservadas, noutros tempos, à legislação ordinária.

Conforme já assinalamos, as ações do controle concentrado constituem processos objetivos, isto é, não se fundam no sujeito da ação, desvinculando-se do mesmo, mas no objeto da mesma. Como diz André Ramos Tavares (2001, p. 318):

Classicamente, é comum afirmar que o autor será admitido quando for o titular do interesse que se apresenta na pretensão. No caso do processo objetivo a legitimidade vem atribuída expressamente pela Constituição ou pela lei, e o interesse que se propõe em ação de controle concentrado é sempre de caráter público, da própria sociedade.

Interessante observar que apenas o partido político e a confederação sindical ou entidade de classe necessitam de capacidade postulatória (isto é, de advogado devidamente constituído) para ingressar com as ações para as quais são legitimados. Os demais podem propor a ação sem a representação por advogado. Outra questão é que o Supremo Tribunal Federal exige relação de pertinência com o objeto da ação no caso dos seguintes legitimados: a) Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa; b) Governador de Estado ou do Distrito Federal47 (ver ADI 2.747-DF); e c) confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional (ver ADI 1.873-MG).

Propostas essas ações, delas não se admitirá desistência (Lei 9.868/99, arts. 5º e 16), pois tais, em nome do interesse público, são como flechas que, uma vez disparadas, não podem mais ser detidas. É que a preocupação do julgador, no controle concentrado, é com a subsunção do sistema normativo à Constituição Federal, que ele vai perseguir ainda que o primeiro a levantar a questão desista de fazê-lo.

Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará previamente, o Advogado-Geral da União, que fica obrigado a defender o ato ou texto impugnado (CF, art. 103, § 3º). Não é obrigatória, contudo, tal defesa quando a posição do STF, em sede de controle difuso, já se houver afigurado firmemente pela inconstitucionalidade da norma. Também, o Advogado-Geral da União não será demandado no caso de ação direta de inconstitucionalidade por omissão, pois aí não há norma impugnada, sendo dispensável também sua participação no caso da ação declaratória de constitucionalidade.

Já o Procurador-Geral da República deverá ser previamente ouvido em todas as ações concretas de controle de constitucionalidade, como, de resto, em qualquer processo de competência do STF (art. 103, § 1º).

Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação direta de inconstitucionalidade (Lei 9.868/99, art. 7º, caput). Contudo, o relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir a manifestação de outros órgãos ou entidades (§ 2º), inclusive entidades da sociedade civil, como sindicatos e associações. Assim, na prática, admite-se que terceiros, desde que investidos de representatividade adequada, possam ingressar na relação processual.

47 Interessante observar que o Governador de um Estado pode impetrar ADI para impugnar lei ou ato normativo de outro Estado, desde que comprovada a devida relação de pertinência. Esta poderá existir quando o ato de um Estado afetar diretamente o outro – no caso, por exemplo, de normatização de im-posto estadual que prejudique o Estado vizinho.

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O STF entende que a admissão de terceiro, na condição de amicus curiae, no processo objetivo de controle normativo abstrato, além de qualificar-se como fator de legitimação social das decisões da Suprema Corte, permite o enriquecimento do debate constitucional, eis que tais entidades poderão apresentar informações, documentos e outros elementos importantes para o julgamento da ação (ADI 2.130-MC). Não são, contudo, cabíveis recursos interpostos por terceiros estranhos à relação processual nos processos objetivos de controle de constitucionalidade, nesses incluídos os que ingressam no feito na qualidade de amicus curiae (ADI 3.615 ED/ PB, rel. Min. Cármen Lúcia, 17.3.2008).

Todas essas ações admitem medida cautelar, exceto a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, eis que incompatível com o instituto. A concessão da cautelar, contudo, exige decisão da maioria absoluta dos membros do STF, tendo eficácia contra todos e efeito ex nunc. Há, contudo, uma particularidade no caso da ação direta de inconstitucionalidade, eis que, excepcionalmente, o Tribunal pode entender que deva conceder à medida eficácia retroativa (Lei 9.868/99, art. 11, § 1º). Ainda quanto a essa ação, a concessão da medida cautelar torna aplicável a legislação anterior acaso existente, salvo expressa manifestação em sentido contrário (Lei 9.868/99, art. 11, § 2º) – é a repristinação reflexa que se verifica, vez que, retirado do ordenamento jurídico a lei havida por inconstitucional, volta a vigorar lei que tenha sido revogada por esta. No que se refere à ação declaratória de constitucionalidade, convém esclarecer que a concessão da liminar consiste na determinação de que os juízes e os tribunais suspendam o julgamento dos processos que envolvam a aplicação da lei ou do ato normativo objeto da ação até seu julgamento definitivo (Lei 9.868/99, art. 21, caput).

Michel Temer ressalva, no que se refere às representações por inconstitucionalidade, que a concessão da liminar “é exceção ao princípio segundo o qual os atos normativos são presumidamente constitucionais”, e sendo a regra a “não-invalidação apriorística do texto normativo”, a cautelar “somente será deferida se, no período que medeia entre a propositura da ação e a eventual declaração de inconstitucionalidade, puder verificar-se a ocorrência de atos que impeçam, após a declaração, a recomposição dos direitos vulnerados” (2000, p. 50).

As decisões de mérito nas ações abstratas de controle de constitucionalidade somente serão tomadas se presentes na sessão pelo menos 2/3 dos Ministros (Lei 9.868/99, art. 22, e Lei 9.882/99, art. 8º), e pelo voto da maioria absoluta dos membros do STF (Lei 9.868/99, art. 23, caput). Essas decisões são irrecorríveis, ressalvada a interposição de embargos declaratórios, não podendo, igualmente, ser objeto de ação rescisória (Lei 9.868/99, art. 26, e Lei 9.882/99, art. 12). É que o Supremo Tribunal Federal fica condicionado ao pedido (análise da inconstitucionalidade), porém não à causa de pedir, tendo cognição plena sobre a matéria – a inconstitucionalidade pode ser declarada em dispositivo constitucional diferente daquele apontado como fundamento na inicial, por exemplo. Esgotada a matéria, não há se falar, evidentemente, em reexame da mesma. As decisões de mérito nas ações autônomas de controle de constitucionalidade repelem a desconstituição por ação rescisória – do contrário, poderia haver restabelecimento da lei antes eliminada, por simples variação na composição do STF, sem mudança relevante do contexto histórico e das concepções jurídicas subjacentes ao julgado rescindido, gerando, portanto, grave insegurança jurídica (ADI 2154 e 2258/DF, Info STF 456, fev/2007).

Tanto o STF não fica condicionado à causa de pedir que admite a extensão da declaração de inconstitucionalidade a dispositivos não impugnados expressamente na inicial. É o que o direito português originalmente denominou de inconstitucionalidade por arrastamento (ou por atração, ou consequencial), em que a declaração da inconstitucionalidade

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de um dispositivo legal é estendida a outro dispositivo, justificada pela existência de uma correlação, conexão ou dependência entre eles. Nesses casos, não é imprescindível que tenha havido impugnação prévia por parte do autor, já que o eventual reconhecimento do vício relativamente a certos dispositivos conduzirá, por arrastamento, à impossibilidade do aproveitamento de outros que lhe sejam correlatos, conexos ou dependentes.

A ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade têm caráter dúplice, o que significa dizer que a improcedência da primeira implica em declaração de constitucionalidade e, inversamente, a improcedência da segunda importa em declaração de inconstitucionalidade. Ou, por outras palavras, conforme consta na lei que rege a espécie, proclamada a constitucionalidade, julgar-se-á improcedente a ação direta ou procedente eventual ação declaratória; e, proclamada a inconstitucionalidade, julgar-se-á procedente a ação direta ou improcedente eventual ação declaratória (Lei 9.868/99, art. 24).

O julgamento pode declarar o dispositivo integralmente inconstitucional, ou apenas parte dele, podendo ainda ser declarada inconstitucional uma única expressão. Assim, o controle abstrato de constitucionalidade submete-se ao princípio da parcelaridade ou da divisibilidade do texto impugnado, não obedecendo, portanto, aos mesmos parâmetros do Presidente da República quanto ao oferecimento de veto a projeto de lei, situação na qual o veto deverá abranger texto integral de artigo, de parágrafo, de inciso ou de alínea.

As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo STF nessas ações, produzirão eficácia contra todos e terão efeitos retroativos, desde a data de publicação, no Diário Oficial, da ata da sessão de julgamento. A principal consequência das decisões de mérito é o chamado efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (CF, art. 102, § 2º, e Lei 9.882/99, art. 10, § 3º). O efeito vinculante significa que os tribunais e os órgãos do Poder Executivo ficam obrigados a guardar plena obediência a essas decisões. O desrespeito à eficácia vinculante por parte desses órgãos pode ser sanada por uma ação denominada reclamação, dirigida ao próprio STF. A reclamação é instrumento que tem natureza correcional, com função corregedora, e que visa garantir a autoridade das decisões do Tribunal, cabendo ressalvar que não cabe reclamação quando já houver transitado em julgado o ato judicial que se alega tenha desrespeitado decisão do Supremo Tribunal Federal (STF, Súmula 734). Note-se, contudo, que o efeito vinculante não se aplica sobre o Poder Legislativo – assim, a declaração de inconstitucionalidade não impede que o legislador venha a promulgar lei de conteúdo idêntico àquele declarado inconstitucional.

Conforme jurisprudência pacífica do STF, a declaração de inconstitucionalidade in abstracto, considerado o efeito repristinatório que lhe é inerente, importa em restauração das normas estatais revogadas pelo diploma objeto do processo de controle normativo abstrato. Vale dizer, a decisão do Supremo Tribunal Federal que declara, em sede de fiscalização abstrata, a inconstitucionalidade de determinado diploma normativo, tem o condão de provocar a repristinação dos atos estatais anteriores que foram revogados pela lei proclamada inconstitucional (ADI 2.215-MC/PE, rel. Min. Celso de Mello). Contudo, se as leis a serem repristinadas também contiverem os mesmos vícios da lei revogadora, a qual está sendo objeto de declaração de inconstitucionalidade, há a possibilidade de impugnação de todo o complexo normativo (ADI 3.148/TO, out/2007).

Os efeitos da ação direta de inconstitucionalidade por omissão merecem um tratamento à parte. Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em 30 dias

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(art. 103, § 2º). O texto constitucional, bem interpretado, aponta, pois, para dois caminhos: a) no caso de omissão da prática de atos legislativos, o STF limitar-se-á a dar ciência ao Poder competente para que este adote as providências necessárias, sem fixação de prazo – jamais caberá ao STF suprir a omissão do legislador; e b) no caso de omissão da prática de atos meramente administrativos, o STF dará ciência ao órgão responsável, para que este o pratique no prazo máximo de 30 dias.

A maior parte dos doutrinadores entende que os constituintes deveriam ter ousado mais, no que se refere aos efeitos da decisão em ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Para José Afonso da Silva, por exemplo (2003, p. 48-9):

Nos termos estabelecidos, o princípio da discricionariedade do legislador continua intacto, e está bem que assim seja. Mas isso não impediria que a sentença que reconhecesse a omissão inconstitucional já pudesse dispor normativamente sobre a matéria até que a omissão legislativa fosse suprida. Com isso, conciliar-se-iam o princípio político da autonomia do legislador e a exigência do efetivo cumprimento das normas constitucionais.

Já comentamos acerca da histórica decisão do juiz Marshall, da Suprema Corte americana, no caso “Marbury vs. Madison” (1803), em que o citado magistrado arguiu que todo ato normativo contrário à Constituição deveria ser considerado nulo, inválido e ineficaz (null and void and of no effect). Muito evoluiu a doutrina atinente ao controle de constitucionalidade, desde então. A verdade é que nem toda lei inconstitucional é nula e desprovida de efeitos, por paradoxal que isso possa parecer. José Afonso da Silva observa que a “doutrina privatística da invalidade dos atos jurídicos não pode ser transposta para o campo da inconstitucionalidade, pelo menos no sistema brasileiro” (2003, p.53). No direito privado, atos nulos não geram efeitos; já os atos anuláveis geram efeitos, e sempre poderão ser sanados. Os atos inconstitucionais podem ser considerados anuláveis e gerar efeitos, mas não podem ser sanados. Para Oswaldo Luiz Palu, o ato inconstitucional que subsistisse tendo validade não seria nem inexistente, nem nulo e nem anulável, mas irregular, o que seria uma inovação classificatória (2001, p.85). O fato é que, a fim de assegurar certos direitos subjetivos, a jurisprudência constitucional caminhou no sentido de considerar certas leis incompatíveis com a Constituição, mas não propriamente nulas e desprovidas de efeito.

Nada obstante seus efeitos usuais, no que se refere à ação direta de inconstitucionalidade e à arguição de descumprimento de preceito fundamental, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o STF, por maioria de 2/3 de seus membros, restringir os efeitos de sua decisão (atribuindo-lhe efeito ex nunc, ao invés de ex tunc) ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado (Lei 9.868/99, art. 27, e Lei 9.882/99, art. 11), podendo tal ocorrer, inclusive em momento pro futuro. Paulo Bonavides explica (2003, p.200):

A jurisprudência constitucional tende assim a criar um espaço de tempo, intermediário, que assegure a sobrevivência provisória da lei considerada incompatível com a Constituição. Desse modo, essa jurisprudência se arreda, por inteiro, das declarações puras e simples de “nulidade”, que fazem tabula rasa da obra do legislador.

Ou, conforme coloca Regina Maria Macedo Nery Ferrari (2004, p.290):

A admissão da retroatividade ex tunc da sentença deve ser feita com reservas, pois não podemos esquecer que uma lei inconstitucional foi eficaz até

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consideração nesse sentido, e que ela pode ter tido conseqüências que não seria prudente ignorar, e isto principalmente em nosso sistema jurídico, que não determina um prazo para a argüição de tal invalidade, podendo a mesma ocorrer dez, vinte ou trinta anos após sua entrada em vigor.

Vale acrescentar, ainda, que o STF já decidiu que atos praticados com base na lei inconstitucional, que não mais se afigurem passíveis de revisão, não são atingidos pela declaração de inconstitucionalidade48.

A modulação temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade surgiram como uma construção jurisprudencial, em que a posição radical de se considerar a lei inconstitucional nula desde o seu nascedouro foi gradativamente cedendo espaço para uma posição mais branda, mais realista, em favor da fixação de uma data em que a anulação por inconstitucionalidade se desse daí em diante. Regina Maria Macedo Nery Ferrari cuidou de forma minudente do tema, e por esse motivo recorreremos novamente a ela. A autora alerta o que se segue (2004, p. 316):

Deve-se reconhecer que o afastamento da eficácia retroativa só deve ter cabimento quando se demonstre, com base em uma ponderação concreta, que sua adoção acarretaria um sacrifício excessivo para a segurança jurídica ou para o excepcional interesse social, ou seja, que não seria proporcional à sua carga coativa.

Fato é que a lei não trouxe definição para o que seja excepcional interesse social. Trata-se, portanto, de conceito subjetivo, que deverá ser construído pelo Supremo Tribunal Federal, conforme as situações que se lhe apresentem.

Vejamos uma aplicação prática da excepcionalização dos efeitos de ação direta de inconstitucionalidade com fulcro na Lei 9.868/99. O STF, à unanimidade, julgou procedente pedido formulado em ação direta ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores para declarar a inconstitucionalidade de lei do Estado da Bahia – que criou o Município de Luís Eduardo Magalhães, decorrente do desmembramento de área do Município de Barreiras – e, por maioria, sem pronunciar a nulidade do ato impugnado, manteve sua vigência pelo prazo de 24 meses até que o legislador estadual estabeleça novo regramento. Considerou-se que, não obstante a inexistência da lei complementar federal necessária (art. 18, § 4º), o aludido Município fora efetivamente criado a partir de uma decisão política, assumindo existência de fato como ente federativo dotado de autonomia há mais de 6 anos, o que produzira uma série de efeitos jurídicos, não sendo possível ignorar essa realidade fática, em respeito ao princípio da segurança jurídica. (ADI 2.240-BA, Info STF 466, mai/2007).

Antes de se partir para a declaração de inconstitucionalidade de uma lei, há que se arguir se há interpretações tais que a tornem compatível com a Constituição Federal. Para tanto, o STF lança mão primeiramente da técnica de interpretação conforme a Constituição. Trata-se de uma técnica de controle de constitucionalidade que encontra o limite de sua utilização no raio das possibilidades hermenêuticas de extrair do texto uma significação normativa harmônica com a Constituição. Assim, no caso de normas com mais de uma significação possível, deverá ser buscada a significação que apresente conformidade com as normas constitucionais, evitando a declaração de inconstitucionalidade. Ou seja, uma vez arguida a inconstitucionalidade, os órgãos judiciais devem evitar a medida radical da retirada da lei do ordenamento jurídico, dando preferência, quando possível, à técnica da interpretação

48 RE 466.546/RJ, Info STF 416, fev/2006; e RE 217.141-AgR/SP, Info STF 431, jun/2006.

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conforme a Constituição. Vale anotar que a interpretação conforme a Constituição pode se dar com ou sem redução de texto.

Vamos a um exemplo, para tornar a explanação mais clara. A Lei 9.099/95, que instituiu os juizados especiais, determina que suas disposições não são aplicáveis aos processos penais nos quais a fase de instrução já tenha sido iniciada (art. 90). O dispositivo em comento se coaduna perfeitamente às normas de natureza processual, eis que a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior (CPP, art. 2º). Contudo, as normas de direito penal que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina a CF (art. 5º, XL). Solucionando o caso, o STF decidiu atribuir interpretação conforme ao dispositivo impugnado (Lei 9.099/95, art. 90) para excluir de sua abrangência as normas de direito penal mais favoráveis ao réus contidas nessa lei (ADI 1.719/DF, ago/2007).

Importa observar que, tal como se dá com a declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei, a interpretação conforme a Constituição tem eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à administração pública federal, estadual e municipal (Lei 9.868/99, art. 28, parágrafo único).

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CAPÍTULO 6 AS SÚMULAS VINCULANTES E O CONTROLE DE

CONSTITUCIONALIDADE

6.1 ColocaçãodoProblema

Conforme já vimos reiteradamente no presente trabalho, as súmulas vinculantes podem ser criadas de ofício pelo Supremo Tribunal Federal, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional. Essas súmulas têm efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (CF, art. 103). Vimos também que o controle de constitucionalidade tem o condão de retirar do ordenamento jurídico aquelas leis que se mostrem conflituosas com a Constituição Federal.

Confrontando os dois institutos, parece transparecer a ideia de que, enquanto as súmulas vinculantes se destinariam apenas a que julgadores e administradores não decidam ou ajam pela constitucionalidade de uma lei considerada inconstitucional pelo Supremo, mas sem fulminá-la diretamente, somente o controle de constitucionalidade liquidaria diretamente a lei eivada de inconstitucionalidade.

Mas não é assim: tanto em um caso como em outro pode haver a retirada do ordenamento jurídico da lei considerada inconstitucional. Veja-se, por exemplo, o teor da Súmula vinculante 2: “É inconstitucional a lei ou ato normativo estadual ou distrital que disponha sobre sistemas de consórcios e sorteios, inclusive bingos e loterias”. A fundamentação desta súmula reside no dispositivo constitucional segundo o qual compete privativamente à União legislar sobre sistemas de consórcios e sorteios (art. 20, XX). Fato é que a referida súmula fulminou, indubitavelmente, todas as leis estaduais ou distritais que tratam de consórcios e sorteios, tenham essas leis sido levadas ou não à apreciação do Supremo.

Fica então a questão: afinal, são as súmulas vinculantes também uma forma de exercer o controle de constitucionalidade? Se sim, estariam tornando o controle de constitucionalidade passível de ser exercido sem necessidade de provocação por um legitimado, já que podem ser editadas de ofício pelo Supremo? Teriam as súmulas vinculantes mais força do que o próprio controle de constitucionalidade, já que podem retirar do ordenamento jurídico até mesmo aquelas leis que nem sequer foram apreciadas diretamente pelo Supremo? Uma análise mais sofisticada da questão pode deslindar a exata relação existente as súmulas vinculantes e o controle de constitucionalidade.

6.2 AnálisedaQuestão

Entendemos que as súmulas vinculantes atuam como uma interessante forma de complementar o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, robustecendo esse controle. No âmbito do controle difuso, o que elas fazem é aproximar os efeitos do controle difuso aos efeitos do controle concentrado, dotando aquele das mesmas características deste: eficácia erga omnes e possibilidade de modulação dos efeitos. Podem também confirmar a constitucionalidade de dispositivo legal que, em diversos casos concretos, venha sendo

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objeto de seguidas impugnações judiciais, tal como se dá em sede de ação declaratória de constitucionalidade. No âmbito do controle concentrado, as súmulas vinculantes permitem que a inconstitucionalidade de diversas leis seja estendida a leis semelhantes, sem necessidade de nova provocação ao Supremo.

Vamos por partes. Conforme já visto, o controle difuso de constitucionalidade tem eficácia apenas inter partes, a menos que decisão senatorial suspenda a lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal (art. 52, X). De qualquer forma, o efeito de uma decisão havida em sede de controle abstrato será sempre ex tunc, desconstituindo todas as relações jurídicas desde o início da vigência da lei inconstitucional.

O instituto das súmulas vinculantes, contudo, veio dotar o Supremo Tribunal Federal da possibilidade de atribuir efeito erga omnes às decisões de inconstitucionalidade ocorridas em sede de recurso extraordinário, independentemente da resolução senatorial, eis que tais devem ser observadas direta ou indiretamente por toda a sociedade, em regra. Para que isso ocorra, basta que uma coletânea de recursos extraordinários sobre uma determina matéria sejam enfeixadas sob a forma de uma súmula vinculante.

O STF tem a prerrogativa de modular os efeitos da súmula vinculante, como é cediço. A Lei 11.417/2006 determinou que, embora a súmula com efeito vinculante tenha, via de regra, eficácia imediata, o Supremo Tribunal Federal, por decisão de 2/3 dos seus membros, poderá restringir os efeitos vinculantes ou decidir que só tenha eficácia a partir de outro momento, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse público (art. 4º). Assim, a edição de uma súmula vinculante baseada em uma série de recursos extraordinários que comunguem pela inconstitucionalidade de determinada norma poderá, é claro, modular os efeitos dessa inconstitucionalidade, o que não é possível no controle incidental convencional.

Outra possibilidade é que as súmulas vinculantes podem confirmar a constitucionalidade de norma que venha sendo objeto de seguidas impugnações judiciais, tal como se dá em sede de ação declaratória de constitucionalidade. Veja-se, a título de exemplo, o que diz a Súmula vinculante 6: “Não viola a Constituição o estabelecimento de remuneração inferior ao salário mínimo para as praças prestadoras de serviço militar inicial”. Essa súmula tem como precedentes diversas decisões tomadas em sede de recurso extraordinário, todas no sentido de que a Constituição não estendeu aos militares a garantia de remuneração não inferior ao salário mínimo, como o fez para outras garantias de trabalhadores. Essas decisões discutiam a constitucionalidade ou não de dispositivo legal que possibilita o pagamento de soldo inferior a um salário mínimo a praça que presta serviço militar inicial obrigatório. Com a súmula, restou definitivamente consagrada a constitucionalidade do dispositivo guerreado, o que somente seria possível, antes da EC 45/2004, em sede de ação declaratória de constitucionalidade.

No âmbito do controle concentrado, as súmulas vinculantes permitem que a declaração de inconstitucionalidade de um grupo de leis seja elastecida a leis de igual teor, sem necessidade de nova provocação ao Supremo. É o que ocorreu no caso da Súmula vinculante 2, já enunciada49. Seus precedentes são todos ações diretas de inconstitucionalidade referentes a leis dos entes subnacionais tidas como inconstitucionais. Com a edição da súmula vinculante, qualquer lei estadual ou distrital desconforme com seu enunciado deverá ser desde logo considerada inconstitucional, ainda que a lei não tenha sido levada à análise do

49 “É inconstitucional a lei ou ato normativo estadual ou distrital que disponha sobre sistemas de consórcios e sorteios, inclusive bingos e loterias”.

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Supremo, e ainda mesmo que a lei não tenha sequer nascido – quando for gerada e começar a vigorar, já nascerá com a inconstitucionalidade. Esse impressionante efeito não pode ser alcançado com o sistema tradicional de controle abstrato de constitucionalidade.

Restou ainda uma questão a ser respondida: estariam as súmulas vinculantes tornando possível o exercício de controle de constitucionalidade sem necessidade de provocação por um legitimado, já que podem ser editadas de ofício pelo Supremo? Entendemos que não, pois um dos requisitos do instituto é a necessidade de reiteradas decisões em matéria constitucional. Vale dizer, é necessário que existam precedentes a informar a nova súmula. Isso significa que a provocação ocorreu em momento pretérito, em processos múltiplos, e não necessariamente de forma contemporânea com a edição da súmula. O importante é que a matéria já foi manejada por iniciativa de alguém, distinto da figura do STF.

Podemos concluir esse ponto reforçando que as súmulas vinculantes atuam alargando as possibilidades até então previstas na Constituição Federal para o exercício do controle de constitucionalidade. Uma súmula vinculante tem o condão de atribuir efeitos próprios do controle abstrato a decisões tomadas difusamente, ao passo que é capaz de alastrar a declaração de inconstitucionalidade de uma lei havida em sede de ação direta em direção a inúmeros outros normativos, sem necessidade de submetê-los individualmente ao crivo da constitucionalidade.

CONCLUSÕES

Cabe, agora, retomar as hipóteses que nos esforçamos para defender ao longo do presente trabalho: a) a adoção das súmulas vinculantes tem o potencial de trazer importantes benefícios para o sistema jurídico brasileiro, superando em larga escala, os problemas advindos dessa inovação; e b) as súmulas vinculantes complementam o exercício do controle de constitucionalidade de normas, alargando as possibilidades previstas na Constituição Federal para esse exercício.

Vamos às conclusões referentes à primeira hipótese. Tentamos demonstrar que as súmulas vinculantes podem proporcionar importantes vantagens diretas aos jurisdicionados, que ganhariam um tratamento mais isonômico no que se refere à administração da justiça e maior previsibilidade nos julgados (maior segurança jurídica). Por meio das súmulas vinculantes, o STF tem condições de firmar um posicionamento sobre determinada matéria de índole constitucional que deverá ser observado por todos os juízes e administradores públicos, resultando em uma igualdade de todos não apenas perante a norma, mas também perante os julgados. Esse posicionamento acaba acarretando, por outro lado, a estabilização da interpretação da norma, de forma que o jurisdicionado passa a poder contar com um sólido referencial para se direcionar no mundo jurídico.

As súmulas vinculantes proporcionam, da mesma forma, que os jurisdicionados passem a contar com uma justiça mais ágil, barata e racional, na medida em que casos repetidos e decididos em definitivo pelo Supremo Tribunal Federal sejam impedidos de progredir para a instância seguinte. Somente a quantidade de processos que a Administração Pública se verá livre de impulsionar, em virtude da observância do duplo grau de jurisdição que, via de regra, precisa ser observado pelos entes públicos, já será muito significativa, de modo que teremos uma enormidade de contendas inúteis evitadas.

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É claro que a inovação das súmulas vinculantes traz algumas desvantagens e problemas, e tratamos de discutir os que são mais citadas pela doutrina em geral. A conclusão que chegamos é a de que as vantagens advindas com a adoção das súmulas vinculantes superam com ampla folga as deficiências provocadas pelo instituto.

Por certo, haverá o esmaecimento da já tênue linha que separa a função jurisdicional da função legiferante, de forma que teremos, cada vez mais, Tribunais dizendo o direito, ao invés de apenas aplicá-lo. Admitindo que isso seja um mal em si, o que não é de forma alguma pacífico, temos que o direito eventualmente criado pelo Supremo Tribunal Federal, quando da edição de súmulas vinculantes, pode ser facilmente desconstituído pelo legislador, que não se vincula ao novo entendimento. Esse contra-argumento derruba também a alegação de que o Supremo Tribunal Federal teria em suas mãos um poder exacerbado, a raiar no âmbito do ilimitado. O Poder Legislativo poderá, via de regra, derrubar ou reformatar as leis em que se fundamentam as súmulas vinculantes, tornando-as insubsistentes.

Outra alegada desvantagem que se atribui às súmulas vinculantes é o possível empobrecimento da argumentação jurídica. Ora, esse argumento traz em si o vício de se imaginar que os debates jurídicos só se dão no âmbito processual, quando, na verdade, há inúmeros outros vetores para tanto. Se há, de fato, esse empobrecimento no âmbito do processo, o debate pode subsistir ricamente em outras searas, mais apropriadas, até. O argumento é da mesma família dos que veem as súmulas vinculantes como uma ofensa à liberdade de convicção dos magistrados. Ora, os magistrados podem continuar com suas convicções, e manifestá-las à vontade por inúmeros canais, mas ao menos em matéria constitucional é aceitável que haja um órgão de cúpula a dizer definitivamente o direito.

Eventuais problemas com a interpretação de uma nova súmula – contrariedade flagrante, negativa de vigência e adequação ou não da súmula a um determinado caso concreto – podem ser resolvidos por meio de reclamação ao Supremo Tribunal Federal, de modo que essa questão já tem seu próprio escape constitucionalmente previsto.

Enfrentamos também a problemática de um pretenso desrespeito ao duplo grau de jurisdição por parte do novo instituto. As súmulas vinculantes se harmonizam perfeitamente com o sistema processual de âmbito constitucional, eis que foi previsto pelo constituinte originário que o Supremo Tribunal Federal figuraria como o guardião de nossa Constituição. Assim, nada mais natural que este órgão se pronuncie em definitivo sobre reiteradas decisões em matéria de índole constitucional, de modo que a impossibilidade de apreciação de um novo caso pelo magistrado de primeiro grau embute, na verdade, todo um trâmite pretérito havido em lides de igual teor – é dizer, o duplo grau de jurisdição terá sido observado reiteradamente, nos diversos casos que serviram de precedente para a súmula vinculante.

Entendemos também termos logrado êxito em demonstrar a segunda hipótese de nosso trabalho, segundo a qual as súmulas vinculantes alargam as possibilidades de exercício do controle de constitucionalidade de normas.

No âmbito do controle difuso, as súmulas vinculantes têm a capacidade de dotar o controle incidental de características próprias do controle concentrado, aproximando sobremaneira os efeitos observados nos dois sistemas. Basta imaginar que diversos recursos extraordinários que combatam a constitucionalidade de determinada norma sejam traduzidos em uma súmula com força vinculante. Ora, esses recursos extraordinários, que constituem em seu conjunto uma manifestação do Supremo em caráter definitivo sobre a inconstitucionalidade da norma impugnada, passam, então, a ter eficácia erga omnes, eis que a

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lei é retirada em definitivo do ordenamento jurídico, cabendo acrescentar que essa retirada pode se dar no momento em que o STF julgar mais apropriado, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse público. Tudo como se dá no controle abstrato de constitucionalidade das normas.

Cabe acrescentar que, se, por outro lado, imaginarmos que diversos recursos extraordinários tenham sido providos no sentido da constitucionalidade de certa norma, então teremos a interessante possibilidade de, ao reunir esses recursos em uma súmula vinculante, dotar o controle difuso dos mesmos efeitos observados quanto à ação declaratória de constitucionalidade.

No âmbito do controle concentrado, as súmulas vinculantes permitem que a inconstitucionalidade de diversas leis seja estendida a leis semelhantes, sem necessidade de nova provocação ao Supremo. Basta que seja editada uma súmula vinculante que tenha como precedentes diversas ações diretas de inconstitucionalidade consideradas procedentes no sentido de liquidar com normas semelhantes entre si para que todas as demais normas, daquele universo de similitude, sejam também retiradas do ordenamento jurídico.

Apesar de todas as críticas direcionadas às súmulas vinculantes, e embora tenha sido o instituto importado do common law e adaptado de forma ainda incipiente à realidade brasileira, temos motivos de sobra para acreditar que sua adoção foi uma excelente medida, que veio em muito boa hora. Resta torcer para que outras medidas simplificadoras da justiça sejam tomadas por nossos legisladores. Não é mais possível que a sociedade brasileira continue sofrendo com um sistema judiciário tão caro e, paradoxalmente, tão lento e ineficiente. A nota otimista é que o quadro já foi muito pior, e a impressão que se tem é a de que estamos mesmo caminhando no sentido de reconstruir nosso sistema judiciário.

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