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12/04/2005 SEGUNDA TURMA HABEAS CORPUS 82.788-8 RIO DE JANEIRO RELATOR : MIN. CELSO DE MELLO PACIENTE(S) : LUIZ FELIPE DA CONCEIÇÃO RODRIGUES IMPETRANTE(S) : GUSTAVO EID BIANCHI PRATES COATOR(A/S)(ES) : SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E M E N T A: FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA - APREENSÃO DE LIVROS CONTÁBEIS E DOCUMENTOS FISCAIS REALIZADA, EM ESCRITÓRIO DE CONTABILIDADE, POR AGENTES FAZENDÁRIOS E POLICIAIS FEDERAIS, SEM MANDADO JUDICIAL – INADMISSIBILIDADE - ESPAÇO PRIVADO, NÃO ABERTO AO PÚBLICO, SUJEITO À PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR (CF, ART. 5º, XI) – SUBSUNÇÃO AO CONCEITO NORMATIVO DE CASA” – NECESSIDADE DE ORDEM JUDICIAL – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA DEVER DE OBSERVÂNCIA, POR PARTE DE SEUS ÓRGÃOS E AGENTES, DOS LIMITES JURÍDICOS IMPOSTOS PELA CONSTITUIÇÃO E PELAS LEIS DA REPÚBLICA - IMPOSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO, PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, DE PROVA OBTIDA EM TRANSGRESSÃO À GARANTIA DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR – PROVA ILÍCITA INIDONEIDADE JURÍDICA - HABEAS CORPUSDEFERIDO. ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA – FISCALIZAÇÃO – PODERES NECESSÁRIO RESPEITO AOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS DOS CONTRIBUINTES E DE TERCEIROS . - Não são absolutos os poderes de que se acham investidos os órgãos e agentes da administração tributária, pois o Estado, em tema de tributação, inclusive em matéria de fiscalização tributária, está sujeito à observância de um complexo de direitos e prerrogativas que assistem, constitucionalmente, aos contribuintes e aos cidadãos em geral. Na realidade, os poderes do Estado encontram, nos direitos e garantias individuais, limites intransponíveis, cujo desrespeito pode caracterizar ilícito constitucional. - A administração tributária , por isso mesmo, embora podendo muito, não pode tudo . É que , ao Estado, é somente lícito atuar, “respeitados os direitos individuais e nos termos da lei(CF, art. 145, § 1º), consideradas , sobretudo, e para esse específico efeito, as limitações jurídicas decorrentes do próprio sistema instituído pela Lei Fundamental, cuja eficácia que prepondera sobre todos os órgãos e agentes fazendários – restringe-lhes o alcance do poder de que se acham investidos, especialmente quando exercido em face do contribuinte e dos cidadãos da República, que são titulares de garantias impregnadas de estatura constitucional e que, por tal razão, não podem ser transgredidas por aqueles que exercem a autoridade em nome do Estado. Supremo Tribunal Federal Diário da Justiça de 02/06/2006

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HC 82788Ementa e Acórdão (4)

12/04/2005 SEGUNDA TURMAHABEAS CORPUS 82.788-8 RIO DE JANEIRO RELATOR : MIN. CELSO DE MELLO PACIENTE(S) : LUIZ FELIPE DA CONCEIÇÃO RODRIGUES IMPETRANTE(S) : GUSTAVO EID BIANCHI PRATES COATOR(A/S)(ES) : SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

E M E N T A: FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA - APREENSÃO DE LIVROS CONTÁBEIS E DOCUMENTOS FISCAIS REALIZADA, EM ESCRITÓRIO DE CONTABILIDADE, POR AGENTES FAZENDÁRIOS E POLICIAIS FEDERAIS, SEM MANDADO JUDICIAL – INADMISSIBILIDADE - ESPAÇO PRIVADO, NÃO ABERTO AO PÚBLICO, SUJEITO À PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR (CF, ART. 5º, XI) – SUBSUNÇÃO AO CONCEITO NORMATIVO DE “CASA” – NECESSIDADE DE ORDEM JUDICIAL – ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA – DEVER DE OBSERVÂNCIA, POR PARTE DE SEUS ÓRGÃOS E AGENTES, DOS LIMITES JURÍDICOS IMPOSTOS PELA CONSTITUIÇÃO E PELAS LEIS DA REPÚBLICA - IMPOSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO, PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, DE PROVA OBTIDA EM TRANSGRESSÃO À GARANTIA DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR – PROVA ILÍCITA – INIDONEIDADE JURÍDICA - “HABEAS CORPUS” DEFERIDO.

ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA – FISCALIZAÇÃO – PODERES –

NECESSÁRIO RESPEITO AOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS DOS CONTRIBUINTES E DE TERCEIROS.

- Não são absolutos os poderes de que se acham investidos

os órgãos e agentes da administração tributária, pois o Estado, em tema de tributação, inclusive em matéria de fiscalização tributária, está sujeito à observância de um complexo de direitos e prerrogativas que assistem, constitucionalmente, aos contribuintes e aos cidadãos em geral. Na realidade, os poderes do Estado encontram, nos direitos e garantias individuais, limites intransponíveis, cujo desrespeito pode caracterizar ilícito constitucional.

- A administração tributária, por isso mesmo, embora

podendo muito, não pode tudo. É que, ao Estado, é somente lícito atuar, “respeitados os direitos individuais e nos termos da lei” (CF, art. 145, § 1º), consideradas, sobretudo, e para esse específico efeito, as limitações jurídicas decorrentes do próprio sistema instituído pela Lei Fundamental, cuja eficácia – que prepondera sobre todos os órgãos e agentes fazendários – restringe-lhes o alcance do poder de que se acham investidos, especialmente quando exercido em face do contribuinte e dos cidadãos da República, que são titulares de garantias impregnadas de estatura constitucional e que, por tal razão, não podem ser transgredidas por aqueles que exercem a autoridade em nome do Estado.

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HC 82.788 / RJ

A GARANTIA DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR COMO LIMITAÇÃO

CONSTITUCIONAL AO PODER DO ESTADO EM TEMA DE FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA – CONCEITO DE “CASA” PARA EFEITO DE PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL – AMPLITUDE DESSA NOÇÃO CONCEITUAL, QUE TAMBÉM COMPREENDE OS ESPAÇOS PRIVADOS NÃO ABERTOS AO PÚBLICO, ONDE ALGUÉM EXERCE ATIVIDADE PROFISSIONAL: NECESSIDADE, EM TAL HIPÓTESE, DE MANDADO JUDICIAL (CF, ART. 5º, XI).

- Para os fins da proteção jurídica a que se refere o

art. 5º, XI, da Constituição da República, o conceito normativo de “casa” revela-se abrangente e, por estender-se a qualquer compartimento privado não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade (CP, art. 150, § 4º, III), compreende, observada essa específica limitação espacial (área interna não acessível ao público), os escritórios profissionais, inclusive os de contabilidade, “embora sem conexão com a casa de moradia propriamente dita” (NELSON HUNGRIA). Doutrina. Precedentes.

- Sem que ocorra qualquer das situações excepcionais

taxativamente previstas no texto constitucional (art. 5º, XI), nenhum agente público, ainda que vinculado à administração tributária do Estado, poderá, contra a vontade de quem de direito (“invito domino”), ingressar, durante o dia, sem mandado judicial, em espaço privado não aberto ao público, onde alguém exerce sua atividade profissional, sob pena de a prova resultante da diligência de busca e apreensão assim executada reputar-se inadmissível, porque impregnada de ilicitude material. Doutrina. Precedentes específicos, em tema de fiscalização tributária, a propósito de escritórios de contabilidade (STF).

- O atributo da auto-executoriedade dos atos administrativos,

que traduz expressão concretizadora do “privilège du preálable”, não prevalece sobre a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar, ainda que se cuide de atividade exercida pelo Poder Público em sede de fiscalização tributária. Doutrina. Precedentes.

ILICITUDE DA PROVA – INADMISSIBILIDADE DE SUA PRODUÇÃO EM

JUÍZO (OU PERANTE QUALQUER INSTÂNCIA DE PODER) – INIDONEIDADE JURÍDICA DA PROVA RESULTANTE DE TRANSGRESSÃO ESTATAL AO REGIME CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS.

- A ação persecutória do Estado, qualquer que seja a

instância de poder perante a qual se instaure, para revestir-se de

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HC 82.788 / RJ

legitimidade, não pode apoiar-se em elementos probatórios ilicitamente obtidos, sob pena de ofensa à garantia constitucional do “due process of law”, que tem, no dogma da inadmissibilidade das provas ilícitas, uma de suas mais expressivas projeções concretizadoras no plano do nosso sistema de direito positivo. A “Exclusionary Rule” consagrada pela jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos da América como limitação ao poder do Estado de produzir prova em sede processual penal.

- A Constituição da República, em norma revestida de

conteúdo vedatório (CF, art. 5º, LVI), desautoriza, por incompatível com os postulados que regem uma sociedade fundada em bases democráticas (CF, art. 1º), qualquer prova cuja obtenção, pelo Poder Público, derive de transgressão a cláusulas de ordem constitucional, repelindo, por isso mesmo, quaisquer elementos probatórios que resultem de violação do direito material (ou, até mesmo, do direito processual), não prevalecendo, em conseqüência, no ordenamento normativo brasileiro, em matéria de atividade probatória, a fórmula autoritária do “male captum, bene retentum”. Doutrina. Precedentes.

- A circunstância de a administração estatal achar-se

investida de poderes excepcionais que lhe permitem exercer a fiscalização em sede tributária não a exonera do dever de observar, para efeito do legítimo desempenho de tais prerrogativas, os limites impostos pela Constituição e pelas leis da República, sob pena de os órgãos governamentais incidirem em frontal desrespeito às garantias constitucionalmente asseguradas aos cidadãos em geral e aos contribuintes em particular.

- Os procedimentos dos agentes da administração tributária

que contrariem os postulados consagrados pela Constituição da República revelam-se inaceitáveis e não podem ser corroborados pelo Supremo Tribunal Federal, sob pena de inadmissível subversão dos postulados constitucionais que definem, de modo estrito, os limites – inultrapassáveis – que restringem os poderes do Estado em suas relações com os contribuintes e com terceiros.

A C Ó R D Ã O

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Segunda Turma, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em deferir o pedido de “habeas corpus”, nos

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termos do voto do Relator. Impedido o Senhor Ministro Joaquim Barbosa.

Brasília, 12 de abril de 2005.

CELSO DE MELLO - PRESIDENTE E RELATOR

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Relatório (5)

12/04/2005 SEGUNDA TURMAHABEAS CORPUS 82.788-8 RIO DE JANEIRO RELATOR : MIN. CELSO DE MELLO PACIENTE(S) : LUIZ FELIPE DA CONCEIÇÃO RODRIGUES IMPETRANTE(S) : GUSTAVO EID BIANCHI PRATES COATOR(A/S)(ES) : SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

R E L A T Ó R I O

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO - (Relator): Trata-se

de “habeas corpus” originariamente impetrado perante o Supremo

Tribunal Federal contra decisão denegatória de idêntico “writ”

constitucional, que, emanada do E. Superior Tribunal de Justiça,

acha-se consubstanciada em acórdão assim ementado (fls. 462):

“CRIMINAL. HC. SONEGAÇÃO FISCAL. NULIDADE DE

PROCESSOS, FUNDADOS EM LIVROS CONTÁBEIS E NOTAS FISCAIS APREENDIDOS PELOS AGENTES DE FISCALIZAÇÃO FAZENDÁRIA, SEM MANDADO JUDICIAL. DOCUMENTOS NÃO ACOBERTADOS POR SIGILO E DE APRESENTAÇÃO OBRIGATÓRIA. PODER DE FISCALIZAÇÃO DOS AGENTES FAZENDÁRIOS. ILEGALIDADE NÃO EVIDENCIADA. PRECEDENTE. ORDEM DENEGADA.

I. Os documentos e livros que se relacionam com a contabilidade da empresa não estão protegidos por nenhum tipo de sigilo e são, inclusive, de apresentação obrigatória por ocasião das atividades fiscais.

II. Tendo em vista o poder de fiscalização assegurado aos agentes fazendários e o caráter público dos livros contábeis e notas fiscais, sua apreensão, durante a fiscalização, não representa nenhuma ilegalidade. Precedente.

III. Ordem denegada.” (HC 18.612/RJ, Rel. Min. GILSON DIPP - grifei)

A presente impetração apóia-se, em síntese, nos

seguintes fundamentos (fls. 02/27):

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HC 82.788 / RJ

“1.- No dia 23 do mês de agosto, do ano de 1993, quando o paciente estava ausente, em viagem de negócios, mais de duas dezenas de Auditores Fiscais da Receita Federal, acompanhados de dois grupos de Agentes da Polícia Federal chefiados cada um dos quais por um respectivo Delegado De Polícia Federal, que, como sói de ser, fortemente armados, invadiram, em verdadeira operação de guerra, a ‘manu militari’, simultânea, cronometrada e coordenadamente (no mesmo dia e hora), os dois escritórios contábeis da empresa S.A. ORGANIZAÇÃO EXCELSIOR CONTABILIDADE E ADMINISTRAÇÃO, situados, a sucursal, na Praça da Bandeira, na rua Teixeira Soares n. 29, no Rio de Janeiro, e a sede, em Duque de Caxias, na Av. Presidente Kennedy n. 1.203, 11º, 12º e 13º andares, onde, sem autorização judicial a delinear-lhes, a limitar-lhes as diligências, como reza o imperativo constitucional, e, ainda, sem, ao menos, a lavratura de termo de início de fiscalização, perpetraram, de forma ‘ex abrupta’, mediante intimidação e constrangimento dos gerentes e respectivos funcionários da empresa de contabilidade, operação de busca e apreensão e, em conseqüência, arrecadaram, indiscriminadamente, além de livros e documentos contábeis e fiscais de mais de 1.200 clientes dos escritórios contábeis da S/A ORGANIZAÇÃO EXCELSIOR, a memória (hard disk) dos computadores da sociedade, contendo os registros de todos os clientes.

.................................................. 17.- Não há dúvida de que toda a documentação

arrecadada pelo AFTNs e APFs, por ocasião da ‘blitz’ perpetrada a ‘manu militari’ nos escritórios da S/A ORGANIZAÇÃO EXCELSIOR, fere de morte o princípio insculpido no art. 5º, inc. XI, da Constituição Federal. De fato, a doutrina, como asseverava de maneira peremptória a eminente Professora Titular de Processo Penal da Universidade de São Paulo, ADA PELLEGRINI GRINOVER, tem verberado que a prova assim obtida é ilícita, ‘verbis’:

‘...chegou-se à convicção de que a prova obtida

por meios ilícitos deve ser banida do processo, por mais relevante que sejam os fatos nela apurados, uma vez que se subsume ela ao conceito de inconstitucionalidade, por vulnerar normas e princípios constitucionais – como, por exemplo, a

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HC 82.788 / RJ

intimidade, o sigilo das comunicações, a inviolabilidade do domicílio, a própria integridade e dignidade da pessoa.’ ................................................... 25.- Não padece, pois, a mínima dúvida de que a

BUSCA E APREENSÃO de livros e documentos das empresas clientes dos escritórios da S/A ORGANIZAÇÃO EXCELSIOR que serviu de prova única para ensejar a inaugural acusatória dos Processos n. 94.0000.488-5, 94.0000.583-0 e 94.0000.980-1, tal como restou reconhecido por reiteradas e sucessivas decisões, já trânsitas em julgado, proferidas, todas, à unanimidade, por essa E. Corte, que identificou exatamente nesta DILIGÊNCIA DE BUSCA E APREENSÃO, perpetrada manu militari, o ponto comum, o nexo, o liame, a gênese que interligou estas ações penais, na forma do art. 76, I e 79 do CPP, implicou em violação de domicílio, maculando de ILÍCITA toda a prova colhida por seu intermédio, ex vi do disposto no art. 5º, LVI, da Constituição Federal, segundo o qual ‘são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos’. Veja-se, neste sentido, o princípio constitucional insculpido no inciso XI, do art. 5º da atual Carta Magna, onde reza que:

‘A casa é asilo inviolável do indivíduo,

ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador; salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial’. (Grifamos) ................................................... 33.- Assim que, sob a égide de um Estado

democrático que emergiu a partir da Constituição de 1988, não há admitir-se que AFTNs e APFs, estes fortemente armados, possam adentrar em domicílio alheio e, sob ameaça bélica, abusar da sua autoridade e praticar violência contra pessoas.

34.- Esta DILIGÊNCIA DE BUSCA E APREENSÃO perpetrada nos escritórios da S/A ORGANIZAÇÃO EXCELSIOR e levada às últimas conseqüências por AFTNs e APFs, estes fortemente armados (repita-se), sem qualquer consulta ao proprietário e sem mandado judicial, violou, de forma ex abrupta o texto constitucional, ex vi do disposto no inciso LVI, do seu art. 5º, da Constituição Federal de 1988, maculando de ilícita toda prova acolhida.” (grifei)

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HC 82.788 / RJ

Pretende, o impetrante, que esta Suprema Corte

reconheça a nulidade “ab initio” dos procedimentos penais autuados

sob nºs 94.0000.488-5, 94.0000.980-1 e 94.0000583-0, instaurados

contra o paciente e que se achavam, à época desta impetração, em

curso perante a 6ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro/RJ

(fls. 44).

O eminente Ministro ILMAR GALVÃO, no exercício da

Presidência do Supremo Tribunal Federal, deferiu o pedido de medida

liminar (fls. 436).

O Ministério Público Federal, em parecer da lavra do

ilustre Subprocurador-Geral da República, Dr. EDSON OLIVEIRA DE

ALMEIDA (fls. 483/492), ao opinar pela denegação da ordem de “habeas

corpus”, assim concluiu o seu douto pronunciamento (fls. 492):

“O pedido é improcedente. Como bem anotado no pronunciamento da Drª Ela, os documentos apreendidos – livros contáveis e talões de notas fiscais – são de manutenção obrigatória pelos contribuintes e devem, sempre que exigido, ser exibidos às autoridades fazendárias que, para o desempenho de sua atividade fiscalizadora, prescindem de autorização judicial (CF art. 145, 1º e Súmula 439). Donde a admissibilidade da apreensão da documentação cuja ilicitude é constatada no curso da fiscalização. Descabe falar em ofensa à intimidade ou à inviolabilidade do domicílio (CF art. 5º X e XI) que, como tem proclamado o Supremo Tribunal Federal, não são direitos absolutos, ‘devendo ceder, é certo, diante do interesse público, do interesse social’ (voto do Min. Carlos Velloso na

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petição 577-DF, RTJ 148(2): 367, maio 1994). Aqui se cuida de exercício de atividade econômica que, embora de livre exercício, submete-se à fiscalização do Estado, ‘agente normativo e regulador da atividade econômica’ (CF arts. 170, parágrafo único, e 174). Conforme tem decidido o eg. Superior Tribunal de Justiça ‘os agentes da fiscalização fazendária, no exercício de suas atribuições fiscais, podem apreender livros de registro fiscal de empresas para exame acurado da eventual ocorrência de fraude, não se exigindo para tal exibição de mandado judicial’ (RHC 8.679-SC, DJU 04/10/99). Qualquer interpretação contrária, ultrapassando os limites da razoabilidade, ‘significaria acabar com a competência fiscalizadora do Estado’ (Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Sigilo de Dados: O Direito à Privacidade e os Limites à Função Fiscalizadora do Estado. Revista da Faculdade de Direito USP, São Paulo, 88:452, 1993).

Isso posto, opino pelo indeferimento da ordem.” (grifei)

É o relatório.

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Voto - CELSO DE MELLO (34)

12/04/2005 SEGUNDA TURMAHABEAS CORPUS 82.788-8 RIO DE JANEIRO

V O T O

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO - (Relator): A

presente impetração suscita duas questões básicas de cuja resolução

depende o julgamento da controvérsia instaurada nesta sede

processual.

A primeira questão consiste em saber se agentes da

Administração Tributária, ainda que acompanhados de policiais

federais, podem, ou não, sem autorização judicial, ingressar, de

modo legítimo, em escritório de contabilidade, em espaço privado não

aberto ao público, contra a vontade de seu titular que nele

desempenhe atividade profissional, com o objetivo de apreender

documentos ali existentes, como livros, registros contábeis e

fiscais e “memória” de computadores (“hard disk”).

A outra questão, por sua vez, para ser adequadamente

definida, exige resposta a uma indagação, que assim pode ser

formulada: revestem-se, ou não, de legitimidade jurídica, para

efeito de válida instauração de “persecutio criminis”, por suposta

prática de delito contra a ordem tributária, os dados probatórios

resultantes de diligência fazendária executada sem mandado judicial

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HC 82.788 / RJ

e no interior de compartimento não aberto ao público, localizado em

escritório de contabilidade?

O E. Superior Tribunal de Justiça, ao proferir a

decisão ora questionada nesta sede processual, entendeu legítimo o

comportamento dos agentes fiscais que atuaram em semelhante

contexto, vindo a qualificar, por isso mesmo, como lícita, a prova

resultante da diligência realizada sem ordem judicial, “Tendo em

vista o poder de fiscalização assegurado aos agentes fazendários e o

caráter público dos livros contábeis e notas fiscais (...)”

(fls. 462 - grifei).

Cabe analisar, portanto, presente o contexto em exame,

se se revela juridicamente possível, ou não, a utilização, pelo

Poder Público, contra o ora paciente, de acervo documental

apreendido por agentes da Administração Tributária, sem mandado

judicial, em diligência realizada no interior de escritório de

contabilidade, em área não aberta ao público, e executada, assim

mesmo, contra a vontade presumida do profissional que nela exerce

suas atividades.

A controvérsia jurídico-constitucional suscitada na

presente impetração depende, para sua resolução, de considerações

prévias, cujo exame reputo indispensável à análise do tema

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concernente ao poder do Estado e às relações entre o Fisco, os

contribuintes e os cidadãos em geral.

Posta a questão nesses termos, reconheço que não são

absolutos – mesmo porque não o são - os poderes de que se acham

investidos os órgãos e agentes da administração tributária, cabendo

assinalar, por relevante, Senhores Ministros, presente o contexto

veiculado nesta impetração, que o Estado, em tema de tributação,

está sujeito à observância de um complexo de direitos e

prerrogativas que assistem, constitucionalmente, aos contribuintes e

aos cidadãos em geral. Na realidade, os poderes do Estado encontram,

nos direitos e garantias individuais, limites intransponíveis, cujo

desrespeito pode caracterizar ilícito constitucional.

Daí a necessidade de rememorar, sempre, a função

tutelar do Poder Judiciário, investido de competência institucional

para neutralizar eventuais abusos das entidades governamentais, que,

muitas vezes deslembradas da existência, em nosso sistema jurídico,

de um verdadeiro “estatuto constitucional do contribuinte” -

consubstanciador de direitos e limitações oponíveis ao poder

impositivo do Estado (Pet 1.466/PB, Rel. Min. CELSO DE MELLO, “in”

Informativo/STF nº 125) - culminam por asfixiar, arbitrariamente, o

sujeito passivo da obrigação tributária, inviabilizando-lhe,

injustamente, trate-se de obrigação tributária principal, cuide-se de

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obrigação tributária acessória ou instrumental, a prática de

garantias legais e constitucionais de que é legítimo titular,

fazendo instaurar, assim, situação que só faz conferir permanente

atualidade ao “dictum” do Justice Oliver Wendell Holmes, Jr. (“The

power to tax is not the power to destroy while this Court sits”), em

palavras segundo as quais, em livre tradução, “o poder de tributar

não significa nem envolve o poder de destruir, pelo menos enquanto

existir esta Corte Suprema”, proferidas, ainda que como “dissenting

opinion”, no julgamento, em 1928, do caso “Panhandle Oil Co.

v. State of Mississippi Ex Rel. Knox” (277 U.S. 218).

Isso significa, portanto, que a administração

tributária, embora podendo muito, não pode tudo, eis que lhe é

somente lícito atuar, “respeitados os direitos individuais e nos

termos da lei” (CF, art. 145, § 1º), consideradas, sob tal

perspectiva, e para esse efeito, as limitações decorrentes do

próprio sistema constitucional, cuja eficácia restringe, como

natural conseqüência da supremacia de que se acham impregnadas as

garantias instituídas pela Lei Fundamental, o alcance do poder

estatal, especialmente quando exercido em face do contribuinte e dos

cidadãos da República.

Cumpre ter presente, neste ponto, Senhores Ministros, a

propósito do tema ora em exame, a advertência do Supremo Tribunal

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Federal, cujo magistério jurisprudencial – apoiando-se em autorizado

entendimento doutrinário (HUGO DE BRITO MACHADO SEGUNDO, “Processo

Tributário”, p. 76/86, item n. 2.5.2, 2004, Atlas; SACHA CALMON

NAVARRO COÊLHO, “Curso de Direito Tributário Brasileiro”, p. 893/907,

itens ns. 17.12 a 17.20, 8ª ed., 2005, Forense; HUGO DE BRITO

MACHADO, “Curso de Direito Tributário”, p. 214/223, itens ns. 1 a

1.6, 21ª ed., 2002, Malheiros; ROQUE ANTONIO CARRAZZA, “Curso de

Direito Constitucional Tributário”, p. 404/411, item n. 3, 21ª ed.,

2005, Malheiros, v.g.) – orienta-se no sentido de preservar o

contribuinte contra medidas arbitrárias adotadas pelos agentes da

administração tributária, muitas das quais configuram atos

eivados de ilicitude, quando não de transgressão à ordem jurídica

fundada na própria Constituição da República (RTJ 162/3-6, 4, Rel.

Min. ILMAR GALVÃO – RTJ 185/237-238, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE –

RE 331.303-AgR/PR, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, v.g.).

Na realidade, a circunstância de a administração

estatal achar-se investida de poderes excepcionais que lhe permitem

exercer a fiscalização em sede tributária não a exonera do dever de

observar, para efeito do correto desempenho de tais prerrogativas,

os limites impostos pela Constituição e pelas leis da República, sob

pena de os órgãos governamentais incidirem em frontal desrespeito às

garantias constitucionalmente asseguradas aos cidadãos em geral e

aos contribuintes, em particular.

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O procedimento estatal da administração tributária que

contrarie os postulados consagrados pela Constituição da República

revela-se inaceitável, Senhores Ministros, e não pode ser

corroborado por decisão desta Suprema Corte, sob pena de

inadmissível subversão dos postulados constitucionais que definem,

de modo estrito, os limites – inultrapassáveis – que restringem os

poderes do Estado em suas relações com os contribuintes e com

terceiros.

O exame dos fundamentos em que se apóia esta

impetração, de um lado, e a análise dos elementos produzidos neste

processo, de outro, convencem-me, presente o contexto em causa, não

obstante parecer em sentido contrário da douta Procuradoria-Geral da

República (fls. 483/492), que os agentes fazendários transgrediram a

garantia individual pertinente à inviolabilidade domiciliar, tal

como instituída e assegurada pelo inciso XI do art. 5º da Carta

Política, que representa expressiva limitação constitucional ao

poder do Estado, oponível, por isso mesmo, aos próprios órgãos da

Administração Tributária.

O ilustre impetrante sustentou, com absoluta correção,

que a apreensão de livros contábeis, notas fiscais e outros

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documentos, por agentes fiscais e policiais, sem prévia autorização

judicial, no interior de um escritório de contabilidade

(S.A. Organização Excelsior Contabilidade e Administração), em área

não aberta ao público, configurou desrespeito à cláusula

constitucional da inviolabilidade domiciliar (CF, art. 5º, XI) – que

também ampara qualquer “compartimento não aberto ao público, onde

alguém exerce profissão ou atividade” (CP, art. 150, § 4º, III) -,

daí resultando a conseqüente ilicitude material da prova penal

colhida na questionada diligência estatal (fls. 02/47).

Como salientado, assiste plena razão ao autor deste

“writ” constitucional, pois a atividade probatória do Poder Público,

no caso, decorreu de procedimento de agentes estatais que

infringiram, porque desvestidos de qualquer autorização judicial, a

proteção constitucional dispensada ao domicílio, cuja noção

conceitual – que é ampla (RUBENS GERALDI BERTOLO, “Inviolabilidade

do Domicílio”, p. 60/62 e 74, itens ns. 3.1 e 3.3, 2003, Editora

Método, v.g.) – estende-se a espaços privados não abertos ao público

(como um escritório de contabilidade ou de advocacia, ou, ainda, um

consultório médico ou odontológico, p. ex.) onde alguém exerce

profissão ou atividade.

Impende rememorar, neste ponto, por necessário, na linha

da jurisprudência desta Corte (RTJ 162/4, item n. 1.1, 244-258), que o

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Supremo Tribunal Federal reconhece, como suscetível da proteção

constitucional assegurada ao domicílio, o local (“compartimento não

aberto ao público”) onde alguém exerce determinada atividade

profissional:

“(...) GARANTIA CONSTITUCIONAL DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR (CF, ART. 5º, XI). CONSULTÓRIO PROFISSIONAL DE CIRURGIÃO-DENTISTA. ESPAÇO PRIVADO SUJEITO À PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL (CP, ART. 150, § 4º, III). NECESSIDADE DE MANDADO JUDICIAL PARA EFEITO DE INGRESSO DOS AGENTES PÚBLICOS. JURISPRUDÊNCIA. DOUTRINA.

- Para os fins da proteção constitucional a que se refere o art. 5º, XI, da Carta Política, o conceito normativo de ‘casa’ revela-se abrangente e, por estender-se a qualquer compartimento privado onde alguém exerce profissão ou atividade (CP, art. 150, § 4º, III), compreende os consultórios profissionais dos cirurgiões-dentistas.

- Nenhum agente público pode ingressar no recinto de consultório odontológico, reservado ao exercício da atividade profissional de cirurgião-dentista, sem consentimento deste, exceto nas situações taxativamente previstas na Constituição (art. 5º, XI).

A imprescindibilidade da exibição de mandado judicial revelar-se-á providência inafastável, sempre que houver necessidade, durante o período diurno, de proceder-se, no interior do consultório odontológico, a qualquer tipo de perícia ou à apreensão de quaisquer objetos que possam interessar ao Poder Público, sob pena de absoluta ineficácia jurídica da diligência probatória que vier a ser executada em tal local.” (RE 251.445/GO, Rel. Min. CELSO DE MELLO, “in” Informativo/STF nº 197, de 2000)

Não se pode perder de perspectiva, neste ponto,

Senhores Ministros, qualquer que seja a natureza da atividade

desenvolvida por agentes do Poder Público, seja em sede de

fiscalização tributária, seja em tema de repressão penal, que a

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HC 82.788 / RJ

garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar atua como

fator de restrição das diligências empreendidas pelos órgãos do

Estado, que não poderão desrespeitá-la, sob pena de o ato

transgressor infirmar a própria validade jurídica da prova

resultante de tal ilícito comportamento.

É imperioso, portanto, que as autoridades e agentes do

Estado não desconheçam que a proteção constitucional ao domicílio -

que emerge, com inquestionável nitidez, da regra inscrita no

art. 5º, XI, da Carta Política – tem por fundamento norma revestida

do mais elevado grau de positividade jurídica, que proclama, a

propósito do tema em análise, que “a casa é asilo inviolável do

indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do

morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para

prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”

(grifei).

Vê-se, pois, que a Carta Federal, em cláusula que

tornou juridicamente mais intenso o coeficiente de tutela dessa

particular esfera de liberdade individual, assegurou, em benefício

de todos, a prerrogativa da inviolabilidade domiciliar. Sendo assim,

ninguém, especialmente a autoridade pública, pode penetrar em casa

alheia, exceto (a) nas hipóteses taxativamente previstas no texto

constitucional ou, então, (b) com o consentimento de seu morador,

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que se qualifica, para efeito de ingresso de terceiros no recinto

privado, como o único titular do direito de inclusão e de exclusão.

Impõe-se enfatizar, por necessário, como previamente já

destacado, que o conceito de “casa”, para o fim da proteção

jurídico-constitucional a que se refere o art. 5º, XI, da Lei

Fundamental, reveste-se de caráter amplo, pois compreende, na

abrangência de sua designação tutelar, (a) qualquer compartimento

habitado, (b) qualquer aposento ocupado de habitação coletiva e (c)

qualquer compartimento privado não aberto ao público, onde alguém

exerce profissão ou atividade.

Esse amplo sentido conceitual da noção jurídica de

“casa” revela-se plenamente consentâneo com a exigência

constitucional de proteção à esfera de liberdade individual e de

privacidade pessoal (RT 214/409 - RT 277/576 - RT 467/385 –

RT 635/341).

É por essa razão que a doutrina - ao destacar o caráter

abrangente desse conceito jurídico - adverte que o princípio da

inviolabilidade domiciliar estende-se ao espaço privado em que

alguém exerce, com exclusão de terceiros, qualquer atividade de

índole profissional (PONTES DE MIRANDA, “Comentários à Constituição

de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969”, tomo V/187, 2ª ed./2ª tir.,

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1974, RT; JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, “Comentários à Constituição de

1988”, vol. I/261, item n. 150, 1989, Forense Universitária; PINTO

FERREIRA, “Comentários à Constituição Brasileira”, vol. 1/82, 1989,

Saraiva; MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, “Comentários à

Constituição Brasileira de 1988”, vol. 1/36-37, 1990, Saraiva;

CARLOS MAXIMILIANO, “Comentários à Constituição Brasileira”,

vol. III/91, 1948, Freitas Bastos; DINORÁ ADELAIDE MUSETTI GROTTI,

“Inviolabilidade do Domicílio na Constituição”, p. 70/78, 1993,

Malheiros; RUBENS GERALDI BERTOLO, “Inviolabilidade do Domicílio”,

p. 60/62 e 72/76, itens ns. 3.1 e 3.3, 2003, Editora Método;

CEZAR ROBERTO BITENCOURT, “Código Penal Comentado”, p. 614/615,

item n. 1.2, 3ª ed., 2005, Saraiva; ROGÉRIO GRECO, “Curso de Direito

Penal – Parte Especial”, vol. II/649, item n. 11, 2005,

Impetus, v.g.), valendo referir, neste ponto, ante a inquestionável

precisão de sua abordagem, o magistério autorizado de NELSON HUNGRIA

(“Comentários ao Código Penal”, vol. VI/216-217, item n. 168,

4ª ed., 1958, Forense):

“Por último, a tutela penal é ampliada ao ‘compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade’. (...). É o lugar que, embora sem conexão com a casa de moradia propriamente dita, serve ao exercício da atividade individual privada. Assim, o escritório do advogado, o consultório do médico, o gabinete do dentista, o laboratório do químico, o ‘atelier’ do artista, a oficina do ourives, etc. A atividade do cidadão, nos tempos modernos, é múltipla e não se exerce apenas no limite estrito da casa de moradia, e há necessidade de tutelar essa atividade em todos os lugares onde ela se abriga.

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Não basta que quaisquer dos lugares mencionados na lei sejam destinados a habitação ou atividade privada: cumpre que estejam ‘atualmente’ servindo a tais fins. Por outro lado, não importa a ausência do morador ou ocupante no momento da arbitrária invasão.” (grifei)

Sendo assim, Senhores Ministros, nem a Polícia

Judiciária, nem o Ministério Público, nem a administração

tributária, nem quaisquer outros agentes públicos podem ingressar

em domicílio alheio, sem ordem judicial, ou sem o consentimento de

seu titular, ou, ainda, fora das hipóteses autorizadas pelo texto

constitucional, com o objetivo de proceder a qualquer tipo de

diligência, como a execução de busca e apreensão (sem mandado

judicial), tal como ocorrido, de modo inteiramente ilegítimo, na

espécie em exame.

Em suma: a essencialidade da ordem judicial, para

efeito de realização de qualquer diligência de caráter probatório,

em área juridicamente compreendida no conceito de domicílio, nada

mais representa senão a plena concretização da garantia

constitucional pertinente à inviolabilidade domiciliar.

Torna-se necessário destacar, bem por isso, neste

ponto, no contexto de nosso sistema de direito positivo, que a

outorga, ao Poder Público, de prerrogativas e garantias de índole

jurídico-administrativa não o exonera do dever indisponível de

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respeitar as limitações e de observar as restrições, que,

estabelecidas pelo texto da Constituição da República (como a

garantia da inviolabilidade domiciliar), condicionam a atividade da

Administração Pública.

O atributo da auto-executoriedade dos atos

administrativos, que traduz expressão concretizadora do “privilège

du preálable”, não prevalece sobre a garantia constitucional da

inviolabilidade domiciliar, ainda que se cuide de atividade exercida

pelo Poder Público em sede de fiscalização tributária.

Na realidade, incumbe, à Administração Pública, agir

com estrita observância dos parâmetros delineados pelo sistema

normativo, sob pena de incidir, ela própria, em desrespeito aos

fundamentos em que se assenta o Estado Democrático de Direito.

Daí a advertência - que cumpre ter presente - feita

por CELSO RIBEIRO BASTOS (“Comentários à Constituição do Brasil”,

vol. 2/68, 1989, Saraiva), no sentido de que, tratando-se do

ingresso de agentes estatais, em domicílio alheio, sem o

consentimento do morador, “é forçoso reconhecer que deixou de

existir a possibilidade de invasão por decisão de autoridade

administrativa, de natureza policial ou não. Perdeu, portanto, a

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Administração a possibilidade da auto-executoriedade administrativa”

(grifei).

Ninguém ignora que, em tema de fiscalização tributária,

o Estado dispõe de prerrogativas extraordinárias que lhe permitem

exigir, de qualquer pessoa, física ou jurídica, seja contribuinte ou

não, e ainda que se qualifique como beneficiária de imunidade

tributária ou destinatária de isenção fiscal, o cumprimento de

determinados deveres instrumentais tributários (“obrigações

tributárias acessórias”), em ordem a viabilizar a efetiva cobrança e

fiscalização dos tributos.

A circunstância de a Administração Tributária achar-se

investida de poderes tão excepcionais, como aqueles previstos no

ordenamento positivo – CTN, arts. 194, 195, 197 e 200; Lei nº 9.311/96,

art. 11, § 2º (objeto da ADI 2.406/DF, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE),

e LC 105/2001, arts. 1º, § 3º, VI, 5º e 6º (objeto da ADI 2.390/DF,

Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, da ADI 2.386/DF, Rel. Min. SEPÚLVEDA

PERTENCE, e da ADI 2.397/DF, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE) -, não

confere, ao Poder Público, o direito de transgredir os limites

delineados pela própria Constituição da República, que lhe impõe o

dever de observância, de obediência e de respeito aos direitos e

garantias individuais, consoante resulta evidente do que dispõe a

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Lei Fundamental, em diversos preceitos, dentre os quais aquele

inscrito no art. 145, § 1º.

É importante referir a existência, em nosso sistema

jurídico, dessa insuperável limitação de ordem constitucional, cuja

incidência objetiva impedir excessos ou abusos por parte de órgãos e

agentes estatais incumbidos de identificar patrimônio, rendimentos e

atividades dos contribuintes.

Na realidade, a Administração Tributária possui

condições, já previstas em sede legislativa, que lhe permitem agir

no interesse da fiscalização e/ou da cobrança de tributos.

O que não se justifica, contudo, é que o Poder Público

atue, como no caso atuou, com inobservância das restrições que o

impedem de proceder em desacordo com o que determina a Constituição

Federal, especialmente quando se tratar de medidas cuja efetivação

está sujeita, como na espécie ora em exame (exigência de ordem

judicial para ingresso em domicílio alheio, mesmo tratando-se de

fiscalização tributária), ao postulado constitucional da reserva de

jurisdição (RTJ 177/229 – RTJ 180/191-193, 192), valendo referir, no

sentido do texto, a propósito dessa específica questão, o autorizado

magistério de HUGO DE BRITO MACHADO (“Curso de Direito Tributário”,

p. 221/222, item n. 1.4, 21ª ed., Malheiros):

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“A requisição, quando cabível, é feita diretamente pela autoridade administrativa. Não há necessidade de intervenção judicial. Mas é necessário distinguirmos entre as hipóteses nas quais é cabível a requisição da força pública diretamente pela autoridade administrativa daquelas nas quais se faz necessária uma decisão judicial para autorizá-la. Sem essa distinção, o art. 200 do Código Tributário Nacional será inconstitucional.

Com efeito, em sua expressão literal, e admitindo-se que se aplica em qualquer hipótese, a norma do art. 200 do Código Tributário Nacional coloca-se em aberto conflito com as garantias constitucionais relativas à inviolabilidade do domicílio (CF de 1988, art. 5º, inc. XI), conceito no qual é razoável incluir-se o estabelecimento comercial na parte em que não é acessível ao público, e ao sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas e de dados e das comunicações telefônicas (CF de 1988, art. 5º, inc. XII).

Tais garantias constitucionais impõem limitações ao alcance do art. 200 do Código Tributário Nacional, que há de ser então interpretado de conformidade com a Constituição. Assim, a autorização de requisição da força pública diretamente pela autoridade administrativa fica restrita às hipóteses nas quais o mesmo pode ser validamente aplicado. Entre elas, para garantir a fiscalização do transporte de mercadorias, a apreensão de mercadorias em trânsito desacompanhada da documentação legal necessária, ou em depósito clandestino.

Nos casos em que o uso da força pública possa estar em conflito com as garantias constitucionais do contribuinte deve este ser objeto de prévia autorização judicial, sem o quê as provas eventualmente colhidas não poderão ser utilizadas pela Fazenda Pública. Além disto, a conduta dos agentes fiscais pode eventualmente configurar o crime de excesso de exação.” (grifei)

Os desvios inconstitucionais do Estado, no exercício

(anômalo) do seu poder de fiscalização tributária, geram, na

ilegitimidade desse comportamento do aparelho governamental, efeitos

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perversos, que, projetando-se nas relações jurídico-fiscais mantidas

com os contribuintes (e terceiros), deformam os princípios que

estruturam a ordem jurídica, subvertem as finalidades do sistema

normativo e comprometem a integridade e a supremacia da própria

Constituição da República.

A necessidade de preservação da incolumidade do sistema

consagrado pela Constituição Federal não se revela compatível com

pretensões fiscais contestáveis do Poder Público (ou com

comportamentos fazendários transgressores da ordem constitucional),

que, divorciando-se dos parâmetros estabelecidos pela Lei Magna,

buscam impor, ao contribuinte – quaisquer que sejam as razões

invocadas – um estado de submissão inconvivente com os princípios

que informam e condicionam, no âmbito do Estado Democrático de

Direito, a ação das instâncias de fiscalização tributária.

Bem por isso é que se vem enfatizando, neste

julgamento, a importância de a prática do poder fiscalizador, pelo

Estado, submeter-se, por inteiro, aos modelos jurídicos positivados

no texto constitucional, que institui, em favor dos contribuintes (e

de terceiros), decisivas limitações à competência estatal para

exercer, validamente, em matéria tributária, a prerrogativa da

fiscalização.

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HC 82.788 / RJ

O fundamento do poder de fiscalizar reside, em

essência, no dever jurídico de estrita fidelidade da Administração

Tributária ao que imperativamente dispõe a Constituição da

República.

A Lei Fundamental, pois, delineia, em prescrições

subordinantes, um verdadeiro estatuto do contribuinte, cuja eficácia

impõe, em sede tributária, limites insuperáveis aos poderes do Estado,

inclusive em matéria de fiscalização, como adverte, em preciso

magistério, PAULO DE BARROS CARVALHO (“Estatuto do Contribuinte,

Direitos, Garantias Individuais em Matéria Tributária e Limitações

Constitucionais nas Relações entre Fisco e Contribuinte”, “in” Vox

Legis, vol. 141/33-54, Ano XII, 1980).

É preciso reiterar, desse modo, a advertência de que o

uso ilegítimo do poder de fiscalizar, pelo Estado, não deve, sob

pena de erosão da própria consciência constitucional, extravasar os

rígidos limites traçados e impostos à sua atuação pela Constituição

da República.

O E. Superior Tribunal de Justiça, por isso mesmo, ao

julgar o REsp 300.065/MG, Rel. Min. JOSÉ DELGADO, reafirmou esse

entendimento em decisão consubstanciada em acórdão assim ementado:

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“TRIBUTÁRIO. INTERPRETAÇÃO DO ART. 195, DO CTN. APREENSÃO DE DOCUMENTOS.

1. O ordenamento jurídico-tributário brasileiro está rigorosamente vinculado ao princípio da legalidade.

2. O art. 195, do CTN, não autoriza a apreensão de livros e documentos pela fiscalização, sem autorização judicial.

3. Recurso improvido.” (grifei)

Cumpre reconhecer, desse modo, que a ação fiscalizadora

do Poder Público, cuide-se, ou não, de matéria tributária, somente

se revelará legítima, se e quando praticada nos limites impostos

pela Constituição e pelas leis da República, sob pena de os órgãos

estatais incidirem em abuso de autoridade e em desrespeito à esfera

de proteção que a própria Carta Política estabeleceu em favor de

quaisquer pessoas, contribuintes ou não, conforme salienta o saudoso

e eminente Ministro ALIOMAR BALEEIRO (“Direito Tributário

Brasileiro”, p. 1.004, 11ª ed., 1999, Forense):

“O emprego da força, fora da legalidade, pode constituir o crime de ‘excesso de exação’, do art. 316, § 1º, do CP de 1941, ou de ‘violência arbitrária’, do art. 322 do mesmo Código.”

Esse entendimento ajusta-se à diretriz jurisprudencial

que o Supremo Tribunal Federal firmou em diversos precedentes, em que

reconheceu que a parte de um escritório não aberta ao público, na

qual alguém exerce profissão ou atividade (como um escritório de

contabilidade, p. ex.), subsume-se ao conceito jurídico de domicílio,

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para efeito de sua proteção constitucional (RTJ 192/261, Rel. Min.

SEPÚLVEDA PERTENCE – RE 251.445/GO, Rel. Min. CELSO DE MELLO, “in”

Informativo/STF nº 197, de 2000 - RE 331.303-AgR/PR, Rel. Min.

SEPÚLVEDA PERTENCE), como resulta evidente de julgamento emanado do

Plenário desta Egrégia Corte Suprema, a propósito de questão

rigorosamente idêntica à que ora se examina:

“Prova: alegação de ilicitude da obtida mediante apreensão de documentos por agentes fiscais, em escritórios de empresa - compreendidos no alcance da garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio - e de contaminação das provas daquela derivadas: tese substancialmente correta, prejudicada no caso, entretanto, pela ausência de qualquer prova de resistência dos acusados ou de seus prepostos ao ingresso dos fiscais nas dependências da empresa ou sequer de protesto imediato contra a diligência.

1. Conforme o art. 5º, XI, da Constituição - afora as exceções nele taxativamente previstas (‘em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro’) só a ‘determinação judicial’ autoriza, e durante o dia, a entrada de alguém - autoridade ou não - no domicílio de outrem, sem o consentimento do morador.

1.1. Em conseqüência, o poder fiscalizador da administração tributária perdeu, em favor do reforço da garantia constitucional do domicílio, a prerrogativa da auto-executoriedade.

1.2. Daí não se extrai, de logo, a inconstitucionalidade superveniente ou a revogação dos preceitos infraconstitucionais de regimes precedentes que autorizam a agentes fiscais de tributos a proceder à busca domiciliar e à apreensão de papéis; essa legislação, contudo, que, sob a Carta precedente, continha em si a autorização à entrada forçada no domicílio do contribuinte, reduz-se, sob a Constituição vigente, a uma simples norma de competência para, uma vez no interior da dependência domiciliar, efetivar as diligências legalmente permitidas: o ingresso, porém, sempre que necessário vencer a oposição do morador, passou a depender de autorização judicial prévia.

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1.3. Mas, é um dado elementar da incidência da garantia constitucional do domicílio o não consentimento do morador ao questionado ingresso de terceiro: malgrado a ausência da autorização judicial, só a entrada ‘invito domino’ a ofende, seja o dissenso presumido, tácito ou expresso, seja a penetração ou a indevida permanência, clandestina, astuciosa ou franca.

................................................... 2. Objeção de princípio - em relação à qual houve

reserva de Ministros do Tribunal - à tese aventada de que à garantia constitucional da inadmissibilidade da prova ilícita se possa opor, com o fim de dar-lhe prevalência em nome do princípio da proporcionalidade, o interesse público na eficácia da repressão penal em geral ou, em particular, na de determinados crimes: é que, aí, foi a Constituição mesma que ponderou os valores contrapostos e optou - em prejuízo, se necessário da eficácia da persecução criminal - pelos valores fundamentais, da dignidade humana, aos quais serve de salvaguarda a proscrição da prova ilícita: de qualquer sorte - salvo em casos extremos de necessidade inadiável e incontornável - a ponderação de quaisquer interesses constitucionais oponíveis à inviolabilidade do domicílio não compete ‘a posteriori’ ao juiz do processo em que se pretenda introduzir ou valorizar a prova obtida na invasão ilícita, mas sim àquele a quem incumbe autorizar previamente a diligência.” (RTJ 185/237-238, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Pleno - grifei)

Essa mesma orientação – tal como precedentemente

assinalado - foi reafirmada pela colenda Primeira Turma do Supremo

Tribunal Federal, em decisão consubstanciada em acórdão assim

ementado:

“Prova: alegação de ilicitude da prova obtida mediante apreensão de documentos por agentes fiscais, em escritório de empresa - compreendido no alcance da garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio - e de contaminação das provas daquela derivadas: tese

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substancialmente correta, prejudicada no caso, entretanto, pela ausência de demonstração concreta de que os fiscais não estavam autorizados a entrar ou permanecer no escritório da empresa, o que não se extrai do acórdão recorrido.

1. Conforme o art. 5º, XI, da Constituição - afora as exceções nele taxativamente previstas (‘em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro’) só a ‘determinação judicial’ autoriza, e durante o dia, a entrada de alguém - autoridade ou não - no domicílio de outrem, sem o consentimento do morador.

2. Em conseqüência, o poder fiscalizador da administração tributária perdeu, em favor do reforço da garantia constitucional do domicílio, a prerrogativa da auto-executoriedade, condicionado, pois, o ingresso dos agentes fiscais em dependência domiciliar do contribuinte, sempre que necessário vencer a oposição do morador, passou a depender de autorização judicial prévia.

3. Mas, é um dado elementar da incidência da garantia constitucional do domicílio o não consentimento do morador ao questionado ingresso de terceiro: malgrado a ausência da autorização judicial, só a entrada ‘invito domino’ a ofende.” (RE 331.303-AgR/PR, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - grifei)

O entendimento jurisprudencial desta Suprema Corte –

reiterado no RE 230.020/SP, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – já havia

sido proclamado no julgamento plenário da AP 307/DF, Rel. Min. ILMAR

GALVÃO, quando o Supremo Tribunal Federal, por votação unânime,

desqualificou, como ilícita, determinada prova obtida pela Receita

Federal em busca realizada, sem ordem judicial, em recinto não

aberto ao público, localizado em escritório destinado ao exercício

de atividade profissional, pelo fato de tratar-se de espaço privado

inteiramente protegido pela tutela constitucional que garante a

inviolabilidade domiciliar:

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“1.1. Inadmissibilidade, como prova, de laudos de degravação de conversa telefônica e de registros contidos na memória de microcomputador, obtidos por meios ilícitos (art. 5º, LVI, da Constituição Federal); no primeiro caso, por se tratar de gravação realizada por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, havendo a degravação sido feita com inobservância do princípio do contraditório, e utilizada com violação à privacidade alheia (art. 5º, X, da CF); e, no segundo caso, por estar-se diante de microcomputador que, além de ter sido apreendido com violação de domicílio, teve a memória nele contida sido degravada ao arrepio da garantia da inviolabilidade da intimidade das pessoas (art. 5º, X e XI, da CF).” (RTJ 162/3-6, 4, Rel. Min. ILMAR GALVÃO - grifei)

Essa mesma percepção do tema tem sido acolhida pelo

magistério da doutrina, como se vê de LUIZ FLÁVIO GOMES (“O Direito

de o Contribuinte não Produzir Prova contra Si Mesmo, para não se

Incriminar (CF art. 5º, LXIII) e o Disposto nos arts. 145, § 1º, da

CF e 195 do CTN”, “in” Revista Fórum de Direito Tributário, vol. 10,

p. 213/226, 213/214, Ano 2, 2004):

“Para arrecadar impostos, o fisco conta com o direito constitucional de identificar o patrimônio assim como as atividades econômicas do contribuinte. (...).

Pode, para isso, examinar livros, arquivos, documentos e papéis dos contribuintes. (...) mais que o direito do fisco de examiná-los, o próprio contribuinte tem a obrigação de exibi-los. Essa obrigação, entretanto, seria absoluta?

A resposta necessariamente tem que ser negativa. (...). Se, de um lado, o contribuinte está compelido a exibir documentos, livros e papéis para o fisco, de outro, também é certo que ele conta com o direito

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HC 82.788 / RJ

de ampla defesa, que compreende o direito de não auto-incriminar-se.

Nenhuma pessoa está obrigada a praticar qualquer ato que seja prejudicial à sua defesa. (...). Mas esse relevante aspecto da ampla defesa, entretanto, no âmbito tributário, tem que ser compatibilizado com as obrigações fiscais do contribuinte (por exemplo: exibir os livros obrigatórios de escrituração comercial e fiscal assim como os comprovantes dos lançamentos neles efetuados).

E se o contribuinte recusar-se a cumprir seus deveres? Ao fisco nada mais resta que exercer seu poder fiscalizatório, porém, dentro da legalidade e da constitucionalidade vigentes. Só para citar um exemplo de que o poder de fiscalização do fisco (garantido pelo CTN, art. 195) já não é absoluto, basta recordar a inviolabilidade do domicílio (CF, art. 5º, inc. XI).

Em caso de oposição inequívoca do contribuinte e desde que os livros, papéis e documentos estejam no interior de recinto protegido constitucionalmente (um escritório, por exemplo, de acesso restrito), não há dúvida que o fisco só pode nele ingressar com ordem judicial e durante o dia (do contrário, será a prova obtida por meio ilícito). (...).” (grifei)

Orienta-se, no mesmo sentido, HUGO DE BRITO MACHADO

SEGUNDO (“Processo Tributário”, p. 76, item n. 2.5.2, 2004, Atlas):

“Convém advertir, ainda, que o CTN deve ser interpretado, assim como as demais normas atinentes ao procedimento de fiscalização, em conjunto com a Constituição Federal, que assegura ao Fisco a atribuição de fiscalizar o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas dos contribuintes, como forma de viabilizar uma tributação conforme a capacidade econômica de cada um, ‘mas desde que respeitados os direitos individuais e nos termos da lei’.

O procedimento de fiscalização, portanto, não pode desenvolver-se em desarmonia com o direito do contribuinte à intimidade, à inviolabilidade de seu domicílio, de sua correspondência etc., ainda que isso esteja previsto em lei. A lei que autorizar tais

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abusos, se não puder ser interpretada ‘conforme a Constituição’, será simplesmente inválida.

Exemplificando, um agente fiscal não poderá violar o domicílio de um contribuinte (ou, o que é o mesmo, a parte de seu estabelecimento que não é aberta ao público), nele penetrando à força, ‘sem’ autorização do fiscalizado, salvo se munido de ‘ordem judicial’. O art. 200 do CTN deve ser entendido em harmonia com os arts. 5º, XII, e 145, § 1º, da CF/88. Em casos em que essa violação ocorre sem amparo em ordem judicial, é nulo o procedimento, bem como o lançamento que com base nele tenha sido efetuado, dada a ilicitude presente na obtenção das provas necessárias à sua feitura.” (grifei)

Note-se, portanto, seja com apoio no magistério

jurisprudencial desta Suprema Corte, seja com fundamento nas lições

da doutrina, que a transgressão, pelo Poder Público, ainda que em

sede de fiscalização tributária, das restrições e das garantias

constitucionalmente estabelecidas em favor dos contribuintes (e de

terceiros) culmina por gerar a ilicitude da prova eventualmente

obtida no curso das diligências estatais, o que provoca, como direta

conseqüência desse gesto de infidelidade às limitações impostas pela

Lei Fundamental, a própria inadmissibilidade processual dos

elementos probatórios assim coligidos.

Impõe-se relembrar, bem por isso, Senhores Ministros,

até mesmo como fator de expressiva conquista (e preservação) dos

direitos instituídos em favor daqueles que sofrem a ação

persecutória do Estado, a inquestionável hostilidade do ordenamento

constitucional brasileiro às provas ilegítimas e às provas ilícitas.

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A Constituição da República tornou inadmissíveis, no processo, as

provas inquinadas de ilegitimidade ou de ilicitude.

A norma inscrita no art. 5º, LVI, da vigente Lei

Fundamental consagrou, entre nós, o postulado de que a prova obtida

por meios ilícitos deve ser repudiada - e repudiada sempre (MAURO

CAPPELLETTI, “Efficacia di prove illegittimamente ammesse e

comportamento della parte”, “in” Rivista di Diritto Civile, p. 112,

1961; VICENZO VIGORITI, “Prove illecite e Costituzione”, “in”

Rivista di Diritto Processuale, p. 64 e 70, 1968) - pelos juízes e

Tribunais, “por mais relevantes que sejam os fatos por ela apurados,

uma vez que se subsume ela ao conceito de inconstitucionalidade...”

(ADA PELLEGRINI GRINOVER, “Novas Tendências do Direito Processual”

p. 62, 1990, Forense Universitária).

A cláusula constitucional do “due process of law” - que

se destina a garantir a pessoa do acusado contra ações eventualmente

abusivas do Poder Público - tem, no dogma da inadmissibilidade das

provas ilícitas, uma de suas projeções concretizadoras mais

expressivas, na medida em que o réu tem o impostergável direito de

não ser denunciado, de não ser julgado e de não ser condenado com

apoio em elementos instrutórios obtidos ou produzidos de forma

incompatível com os limites impostos, pelo ordenamento jurídico, ao

poder persecutório e ao poder investigatório do Estado.

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A absoluta invalidade da prova ilícita infirma-lhe, de

modo radical, a eficácia demonstrativa dos fatos e eventos cuja

realidade material ela pretende evidenciar. Trata-se de conseqüência

que deriva, necessariamente, da garantia constitucional que tutela a

situação jurídica dos acusados em juízo (notadamente em juízo penal)

e que exclui, de modo peremptório, a possibilidade de uso, em sede

processual, da prova - de qualquer prova - cuja ilicitude venha a

ser reconhecida pelo Poder Judiciário.

A prova ilícita é prova inidônea. Mais do que isso,

prova ilícita é prova imprestável. Não se reveste, por essa

explícita razão, de qualquer aptidão jurídico-material. A prova

ilícita, qualificando-se como providência instrutória repelida pelo

ordenamento constitucional, apresenta-se destituída de qualquer grau,

por mínimo que seja, de eficácia jurídica.

Tenho tido a oportunidade de enfatizar, neste Tribunal,

que a “exclusionary rule” - considerada essencial, pela

jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos da América, na

definição dos limites da atividade probatória desenvolvida pelo

Estado - destina-se a proteger os réus, em sede processual penal,

contra a ilegítima produção ou a ilegal colheita de prova incriminadora

(Weeks v. United States, 232 U.S. 383, 1914 - Garrity v. New Jersey,

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385 U.S. 493, 1967 - Mapp v. Ohio, 367 U.S. 643, 1961 - Wong Sun v.

United States, 371 U.S. 471, 1962, v.g.), impondo, em atenção ao

princípio do “due process of law”, o banimento processual de

quaisquer evidências que tenham sido ilicitamente coligidas pelo

Poder Público.

No contexto do sistema constitucional brasileiro, no

qual prevalece a inadmissibilidade processual das provas ilícitas, a

jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ao interpretar o sentido

e o alcance do art. 5º, LVI, da Carta Política, tem repudiado

quaisquer elementos de informação, desautorizando-lhes o valor

probante, sempre que a obtenção dos dados probatórios resultar de

transgressão, pelo Poder Público, do ordenamento positivo

(RTJ 163/682 - RTJ 163/709), ainda que se cuide, como sucede na

espécie, de hipótese configuradora de ilicitude por derivação

(RTJ 155/508).

Foi por tal razão que esta Corte Suprema, quando do

julgamento plenário da Ação Penal 307/DF, Rel. Min. ILMAR GALVÃO,

desqualificou, por ilícita, prova cuja obtenção decorrera do

desrespeito, por parte de autoridades públicas, da garantia

constitucional da inviolabilidade domiciliar (RTJ 162/4, item n. 1.1).

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Cabe referir, neste ponto, o magistério de ADA

PELLEGRINI GRINOVER (“Liberdades Públicas e Processo Penal”, p. 151,

itens ns. 7 e 8, 2ª ed., 1982, RT), para quem - tratando-se de prova

ilícita, especialmente daquela cuja produção derivar de ofensa a

cláusulas de ordem constitucional - não se revelará aceitável, para

efeito de sua admissibilidade, a invocação do critério de

razoabilidade do direito norte-americano, que corresponde ao

princípio da proporcionalidade do direito germânico, mostrando-se

indiferente a indagação sobre quem praticou o ato ilícito de que se

originou o dado probatório questionado:

“A inadmissibilidade processual da prova ilícita torna-se absoluta, sempre que a ilicitude consista na violação de uma norma constitucional, em prejuízo das partes ou de terceiros.

Nesses casos, é irrelevante indagar se o ilícito foi cometido por agente público ou por particulares, porque, em ambos os casos, a prova terá sido obtida com infringência aos princípios constitucionais que garantem os direitos da personalidade. Será também irrelevante indagar-se a respeito do momento em que a ilicitude se caracterizou (antes e fora do processo ou no curso do mesmo); será irrelevante indagar-se se o ato ilícito foi cumprido contra a parte ou contra terceiro, desde que tenha importado em violação a direitos fundamentais; e será, por fim, irrelevante indagar-se se o processo no qual se utilizaria prova ilícita deste jaez é de natureza penal ou civil.

................................................... Nesta colocação, não parece aceitável (embora

sugestivo) o critério de ‘razoabilidade’ do direito norte-americano, correspondente ao princípio de ‘proporcionalidade’ do direito alemão, por tratar-se de critérios subjetivos, que podem induzir a interpretações perigosas, fugindo dos parâmetros de proteção da inviolabilidade da pessoa humana.

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A mitigação do rigor da admissibilidade das provas ilícitas deve ser feita através da análise da própria norma material violada: (...) sempre que a violação se der com relação aos direitos fundamentais e a suas garantias, não haverá como invocar-se o princípio da proporcionalidade.” (grifei)

Essa mesma orientação é registrada por VÂNIA SICILIANO

AIETA (“A Garantia da Intimidade como Direito Fundamental”, p. 191,

item n. 4.4.6.4, 1999, Lumen Juris), cujo lúcido magistério também

reconhece que, “Atualmente, a teoria majoritariamente aceita é a da

inadmissibilidade processual das provas ilícitas (colhidas com

lesões a princípios constitucionais), sendo irrelevante a

averiguação, se o ilícito foi cometido por agente público, ou por

agente particular, porque, em ambos os casos, lesa princípios

constitucionais” (grifei).

Por isso mesmo, Senhores Ministros, assume inegável

relevo, na repulsa à “crescente predisposição para flexibilização

dos comandos constitucionais aplicáveis na matéria”, a advertência

de LUIS ROBERTO BARROSO, que, em texto escrito com a colaboração de

ANA PAULA DE BARCELLOS (“A Viagem Redonda: Habeas Data, Direitos

Constitucionais e as Provas Ilícitas” “in” RDA 213/149-163), rejeita,

com absoluta correção, qualquer tipo de prova obtida por meio

ilícito, demonstrando, ainda, o gravíssimo risco de se admitir essa

espécie de evidência com apoio no princípio da proporcionalidade:

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“O entendimento flexibilizador dos dispositivos constitucionais citados, além de violar a dicção claríssima da Carta Constitucional, é de todo inconveniente em se considerando a realidade político-institucional do País.

................................................... Embora a idéia da proporcionalidade possa parecer

atraente, deve-se ter em linha de conta os antecedentes de País, onde as exceções viram regra desde sua criação (vejam-se, por exemplo, as medidas provisórias). À vista da trajetória inconsistente do respeito aos direitos individuais e da ausência de um sentimento constitucional consolidado, não é nem conveniente nem oportuno, sequer de lege ferenda, enveredar por flexibilizações arriscadas.” (grifei)

Também corretamente sustentando a tese de que o Estado

não pode, especialmente em sede processual penal, valer-se de provas

ilícitas contra o acusado, mesmo que sob invocação do princípio da

proporcionalidade, impõe-se relembrar o entendimento de EDGARD

SILVEIRA BUENO FILHO (“O Direito à Defesa na Constituição”,

p. 54/56, item n. 5.9, 1994, Saraiva) e de GUILHERME SILVA BARBOSA

FREGAPANI (“Prova Ilícita no Direito Pátrio e no Direito Comparado”,

“in” Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do

Distrito Federal e Territórios nº 6/231-235).

Cabe ter presente, também, por necessário, que o

princípio da proporcionalidade, em sendo alegado pelo Poder Público,

não pode converter-se em instrumento de frustração da norma

constitucional que repudia a utilização, no processo, de provas

obtidas por meios ilícitos.

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Esse postulado, portanto, não deve ser invocado nem

aplicado indiscriminadamente pelos órgãos do Estado, ainda mais

quando se acharem expostos, a clara situação de risco, como sucede

na espécie, direitos fundamentais assegurados pela Constituição.

Sob tal perspectiva, portanto, Senhores Ministros,

tenho como incensurável a advertência feita por ANTONIO MAGALHÃES

GOMES FILHO (“Proibição das Provas Ilícitas na Constituição de

1988”, p. 249/266, “in” “Os 10 Anos da Constituição Federal”,

coordenação de ALEXANDRE DE MORAES, 1999, Atlas):

“Após dez anos de vigência do texto constitucional, persistem as resistências doutrinárias e dos tribunais à proibição categórica e absoluta do ingresso, no processo, das provas obtidas com violação do direito material.

Isso decorre, a nosso ver, em primeiro lugar, de uma equivocada compreensão do princípio do livre convencimento do juiz, que não pode significar liberdade absoluta na condução do procedimento probatório nem julgamento desvinculado de regras legais. Tal princípio tem seu âmbito de operatividade restrito ao momento da valoração das provas, que deve incidir sobre material constituído por elementos admissíveis e regularmente incorporados ao processo.

De outro lado, a preocupação em fornecer respostas prontas e eficazes às formas mais graves de criminalidade tem igualmente levado à admissão de provas maculadas pela ilicitude, sob a justificativa da proporcionalidade ou razoabilidade. Conquanto não se possa descartar a necessidade de ponderação de interesses nos casos concretos, tal critério não pode ser erigido à condição de regra capaz de tornar letra morta a disposição constitucional. Ademais, certamente

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não será com o incentivo às práticas ilegais que se poderá alcançar resultado positivo na repressão da criminalidade.” (grifei)

Em suma: a Constituição da República, em norma

revestida de conteúdo vedatório (CF, art. 5º, LVI), desautoriza, por

incompatível com os postulados que regem uma sociedade fundada em

bases democráticas (CF, art. 1º), qualquer prova cuja obtenção, pelo

Poder Público, derive de transgressão a cláusulas de ordem

constitucional, repelindo, por isso mesmo, quaisquer elementos

probatórios que resultem de violação do direito material (ou, até

mesmo, do direito processual), não prevalecendo, em conseqüência, no

ordenamento normativo brasileiro, em matéria de atividade

probatória, a fórmula autoritária do “male captum, bene retentum”.

Sendo assim, e tendo em consideração as razões

expostas, defiro o pedido de “habeas corpus”, em ordem a invalidar,

desde a denúncia, inclusive, os processos penais instaurados contra

o ora paciente e que, autuados sob nº 94.0000.488-5, nº 94.0000.980-1

e nº 94.0000.583-0, acham-se em tramitação perante a 6ª Vara Federal

Criminal do Rio de Janeiro, Seção Judiciária do Estado do Rio de

Janeiro, sem prejuízo da renovação da “persecutio criminis”, desde

que não transgredida a cláusula constitucional que veda a

utilização, em juízo, de provas ilícitas.

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É o meu voto.

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Extrato de Ata (1)

SEGUNDA TURMA

EXTRATO DE ATA HABEAS CORPUS 82.788-8 RIO DE JANEIRO RELATOR : MIN. CELSO DE MELLO PACIENTE(S) : LUIZ FELIPE DA CONCEIÇÃO RODRIGUES IMPETRANTE(S) : GUSTAVO EID BIANCHI PRATES COATOR(A/S)(ES) : SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Decisão: A Turma, por votação unânime, deferiu o pedido de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Impedido o Senhor Ministro Joaquim Barbosa. 2ª Turma, 12.04.2005.

Presidência do Senhor Ministro Celso de Mello. Presentes à Sessão os Senhores Ministros Carlos Velloso, Ellen Gracie, Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa. Compareceu à Turma o Senhor Ministro Nelson Jobim, Presidente do Tribunal, a fim de julgar processo a ele vinculado, assumindo, nesta ocasião, a Presidência da Turma, de acordo com o art. 148, parágrafo único, RISTF.

Subprocurador-Geral da República, Dr. Francisco Adalberto Nóbrega.

Carlos Alberto Cantanhede Coordenador

Supremo Tribunal Federal